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O papel da intuição no bem-estar

Psicologia - Psicologia Cognitiva

Despertando a atenção plena

Psicologia - Psicologia positiva

A importância e significação da componente política do platonismo

Filosofia - Filosofia Clássica

Pensamentos automáticos e sua influência em nossas emoções

Psicologia - Psicologia positiva

A sociedade egípcia

História - Civilização Egípcia

7/3/2022 3:40:46 PM | Por Robert Biswas-Diener, Todd B. Kashdan
O papel da intuição no bem-estar

Ao entrar numa livraria, você encontra uma estante, quando não uma seção inteira, de títulos que alardeam as vantagens de desenvolver mindfulness. Resumidamente, mindfulness é um es­tado de consciência plena. É saber observar o mundo à sua volta sem interferências de diálogo interno, julgamento e outras distra­ções. É conseguir ver um vestido como vermelho em vez de “lin­do”, ou ficar desapontado por alguma coisa em vez de se ver como “um fracasso”. Mindfulness está muito em moda. Phil Jackson, trei­nador que ganhou os maiores campeonatos da NBA em todos os tempos, era famoso por recomendar técnicas de mindfulness aos jogadores de basquete. Meditação mindfulness e concentração são usadas em psicoterapias, treinamentos esportivos e até no ramo dos negócios. Atualmente, mindfulness é aclamada como o estado ótimo do funcionamento humano.

Os entusiastas de mindfulness não são apenas uns poucos sob a influência de algum elixir da Nova Era. Há um crescente corpo de evidências científicas corroborando as vantagens da “observação tranqüila”, em oposição a julgamento e interpretação, daquilo que acontece no momento presente. Uma série de estudos mostra que pessoas com tendência a ser mindful na vida afirmam ter mais felicidade, encontram mais significado e propósito na vida, têm inteligência emocional superior, maior nível de autocompaixão e maior capacidade de lidar com situações de estresse crônico. Mindfulness, ao que parece, é bom demais.

Se você quiser dados específicos convincentes, não precisa ir além dos dois principais cientistas que foram instrumentais na popularização de práticas de mindfulness nos Estados Unidos, Jon Kabat-Zinn, da Universidade de Massachusetts Medical School, e Richard Davidson, da Universidade de Wisconsin.2 Kabat-Zinn é considerado o pai do movimento mindfulness norte-americano, e Davidson é famoso e altamente conceituado por seu pendor a usar ressonância magnética funcional e outros instrumentos de mapeamento cerebral para estudar os fundamentos biológicos e psicológicos de mindfulness. Num estudo recente, Kabat-Zinn e Davidson deram um curso de oito semanas para funcionários de uma empresa de biotecnologia. Após exporem muitos funcionários a um surto de gripe, constataram que os que haviam feito o curso apresentaram uma notável resistência à gripe.

Como se a maior imunidade não bastasse, os pesquisadores descobriram também mudanças concretas no cérebro daqueles funcionários após meras vinte horas de treinamento em mindfulness (duas horas e meia por semana). Constataram um aumento de 400% de ativação no lado esquerdo do córtex pré-frontal anterior.3 Você deve estar se perguntando: “Será que eu quero um córtex pré-frontal anterior mais ativado?” A resposta é sim. Essa é a região do cérebro associada a emoções positivas e à predisposição para ver o estresse mais como um desafio a ser enfrentado do que um perigo a ser evitado. Aqueles funcionários precisaram apenas do tempo que levariam assistindo a quatro jogos de futebol ou indo três vezes ao supermercado para modificar o cérebro de modo a ter maior sucesso. É correto dizer que mindfulness não é só ótimo; é realmente ótimo.

Se mindfulness é tão útil, por que não nascemos equipados para fazer isso com mais frequência? Há uma razão para os seres humanos terem evoluído de modo a passar uma enorme quantidade de tempo sendo mindless, distraídos. O pensamento consciente, que nos mantém atentos ao que está acontecendo no momento presente, tem uma capacidade de processamento muito limitada. Pense no esforço dispendido pelo cérebro quando passamos por alguém na rua. Estimamos a distância que estamos do corpo da pessoa, calculamos nossa velocidade e a dela, calculamos onde nosso corpo termina e o dela começa, para evitar um esbarrão, e enquanto tudo isso está acontecendo movemos magistralmente uma perna após a outra sem tropeçar em nada no chão, nem atropelar uma árvore em nosso espaço aéreo.

Quando você vê o rosto de alguém, decide imediatamente se é uma pessoa conhecida e, pela expressão dela, avalia se ela está feliz ou infeliz, se é amigável ou perigosa, querendo ou não parar para conversar. Essa função é ainda mais difícil porque, em vez de ficarem parados, os músculos faciais da pessoa se movem, mostrando expressões ligeiramente diferentes a cada poucos segundos, o que exige uma avaliação contínua. Se por acaso você conhece a pessoa, ainda precisa acessar funções de nível mais alto. Precisa lembrar o nome, o tipo de seu relacionamento com ela, lembrar o que conversaram em interações anteriores, e pôr em ação habilidades motoras finas de contato visual (nem de mais nem de menos), volume da voz, conteúdo verbal, e habilidades de audição e codificação exigidas para manter uma conversa. Se você precisasse proceder com atenção consciente e deliberada, jamais seria capaz de chegar ao fim dessa lista enorme de atividades.

A mente consciente é incapaz de manipular as camadas de dados complexos, dinâmicos, que nos inundam a cada momento. Um erro de processamento e você é atropelado por um carro em alta velocidade, fala um palavrão na frente das crianças, deixa escapar um segredo profissional, queima a mão no forno, comete um milhão de pequenas faltas. Por necessidade, muito desse processamento mental ocorre na velocidade do pensamento fora do radar da atenção consciente.

Neste capítulo, dizemos “mindless” para indicar um claro contraste da obsessão cultural de mindfulness como solução para boa saúde, bons relacionamentos e maior sucesso. As pessoas se sentem desconfortáveis com mindfulness porque é o oposto da intencionalidade, da estratégia e de todas as indicações de superioridade da inteligência humana. Uma longa tradição de intelectuais afirma que o bem viver é previdente e planejado. Mindlessness, pelo contrário, é a marca característica de, digamos, zumbis. Curiosamente, tomando o exemplo de zumbis, podemos encontrar uma ilustração das vantagens de mindlessness.

Steven Yeun faz o papel de Glenn na premiada série de televisão sobre o apocalipse de zumbis, The Walking Dead. Em quatro temporadas, o personagem de Steven se transforma de enérgico herói em esfalfado sobrevivente que foge com seus amigos de um ataque após outro de zumbis famintos de carne humana. Você pensaria que, como ator, Yeun deve dedicar uma quantidade considerável de atenção consciente às emoções, postura e atitudes do personagem. Isso deve se aplicar principalmente a cenas complicadas, quando ele finge pisotear um zumbi numa luta. Yeun diz que o segredo para fazer a cena parecer real é pensar como um zumbi, isto é, não pensar. Ele comenta que, se fosse ter o cuidado de calcular quantos centímetros de distância seu pé precisaria es­tar da cabeça do ator que representa o zumbi, a cena ficaria desco­nexa e artificial. Em vez de pensar muito firme e deliberadamente (concentração bruta), ou se fixar numa observação sem julgamen­to do que está ocorrendo no momento (mindfulness) para fazer bem seu papel, ele precisa atuar com um mínimo de reflexão conscien­te, exatamente como se comportaria se realmente estivesse andan­do pela rua tentando se livrar de um bando de zumbis comedores de cérebros. Ele precisa confiar no processamento automático, que se compõe de decisões intuitivas, instintivas, ações baseadas no bem projetado equipamento evolucionário, e em anos de pro­fissão (que Steven Yeun tem como ator). No centro da brilhante atuação de Yeun, está a capacidade de se perder - largar sua men­te consciente - totalmente e se tornar outra pessoa, o personagem tentando sobreviver ao apocalipse de zumbis num mundo alter­nativo onde milhões de telespectadores entram durante uma hora a cada semana.

As páginas a seguir exploram três áreas em que as pesquisas científicas sugerem que mindlessness pode ajudá-lo a ser mais pro­dutivo, criativo, e mais capaz de trilhar o tormentoso e ambíguo terreno da vida diária. Podemos definir mindlessness como um es­pectro que vai da distração à total imersão no inconsciente, mas isso não faria justiça ao tópico. Assim sendo, vamos expor três ti­pos de mindlessness que podem apontar o caminho do sucesso e bem-estar: 1) ligar o piloto automático, 2) partir para ações impul­sivas e 3) confiar em decisões mindless. As pessoas mais psicologi­camente flexíveis - e mais bem-sucedidas - têm a capacidade de transitar muito bem entre mindfulness e mindlessness, em vez de ficarem presas a um desses modos. Ao conhecer e usar intencionalmente esses caminhos, ainda que subestimados, você poderá ter aqueles 20% a mais, desperdiçados por quem permanece ligado à ideia de que mindfulness é melhor que mindlessness.

Três caminhos mindless para o sucesso e bem-estar

O pensamento consciente se mantém firme sob o farol [enquanto] o pensamento inconsciente se aventura pelas fendas e recantos escuros e poeirentos da mente - Dijksterhuis &Meurs, 2006

LIGAR O PILOTO AUTOMÁTICO

Para economizar espaço de computação no cérebro, as pessoas recorrem ao pensamento heurístico, isto é, usam atalhos cognitivos automáticos - e portanto mindless. Um modo comum de usar o pensamento heurístico é categorizar as coisas. Quando você vai ao correio, não vai ao balcão perguntar se o funcionário fala sua língua. Ele já foi categorizado como funcionário do correio e, como tal, você supõe que saiba muitas coisas (fala o idioma nacional, é alfabetizado, sabe o preço dos selos, pode responder a perguntas sobre formas de pagamento e assim por diante). A heurística poupa tempo e um valioso espaço cognitivo, pois não incomoda a mente consciente com exercícios desnecessários.

Pesquisas mostram que as pessoas são capazes de fazer julgamentos categóricos inconscientes sobre os outros com uma rapidez extraordinária.5 Num estudo sobre primeiras impressões, os participantes só levaram um décimo de segundo para tirar conclusões sobre a personalidade do outro. Nesse breve espaço de tempo, fizeram julgamentos sobre confiabilidade, estabilidade emocional, gentileza, entusiasmo, negligência, abertura a novas experiências e outros aspectos da personalidade. Se colocarmos esse nosso espantoso aparelho detector de personalidade em perspectiva, você levaria duzentas vezes mais tempo só para ler este parágrafo. Você deve estar se perguntando se essas avaliações tão rápidas são corretas. Numa ampla série de estudos, pesquisadores constataram que observações em “fatia fina” têm exatidão bem acima da média (cerca de 70% corretas).6 Resultado excelente para um pingo de tempo e esforço.

1. DETECTOR MINDLESS DE SITUAÇÕES SOCIAIS IMPRECISAS

Um aspecto importante do pensamento automático é determinar se uma pessoa desconhecida é ou não confiável. Essa difícil tarefa é essencial para relações comerciais e sociais, afora a segurança pessoal. Se errar, você pode ser lesado, atacado ou, no mínimo, perder um tempo enorme quando poderia estar alicerçando uma boa amizade com outra pessoa. Muitos cientistas acreditam que confiamos ou não conforme as reações da pessoa às nossas “deixas”. Quando o outro espelha nosso comportamento, é um sinal de que nossas necessidades, valores e bem-estar o afetam e despertam seu interesse.

Rick van Baaren e seus colegas da Universidade de Nijmegen viram que, quando garçons repetiam os pedidos dos clientes (um sinal claro de que o garçom estava atento), as gorjetas aumentavam em até 68%.7 Estamos certos de que era um ato mindless dos clientes (não calculavam ativamente quanto dinheiro deixar na mesa se o garçom repetia em voz alta seu pedido de um copo de água). Esse simples ato de repetir o pedido é um sinal sutil de que o garçom está atento, ciente e é confiável no contexto do restaurante.

Uma boa manutenção de interações sociais pode ser difícil, inclusive nas conversas em que você está fora de sintonia com a pessoa, ou quando sorri e se inclina para contar uma piada e a pessoa não se aproxima nem muda de expressão. Uma troca sem movimentos coordenados e algum grau de espelhamento é esquisita e desagradável. Pesquisadores afirmam, com razão, que gostamos mais da pessoa quando ela imita nosso humor e nossos gestos - não quando estão zombando, mas quando espelham sutilmente nossa postura, emoção e até o modo de falar. Por outro lado, essa imitação não é apropriada quando estamos competindo com alguém ou pedindo a um vendedor de automóveis uma orientação sobre o melhor carro para a família.

Psicólogos da Universidade de Groningen, da Universidade de Duke e da Universidade de Yale investigaram reações a “sinais sociais de nuanças negativas”.8 Num estudo, quando os participantes foram recebidos por um profissional muito formal e empertigado que tentou imitá-los durante uma interação social, ficaram “arrepiados” literalmente, sentindo 2,5 vezes mais frio do que quando a mesma pessoa não tentou imitá-los. Quando recebidos por uma pessoa amigável, brincalhona, os participantes a preferiam quando ela imitava seus gestos: sentiram duas vezes mais frio físico após passarem algum tempo com uma pessoa amigável que não os imitava, como se o corpo reconhecesse ali uma recepção fria.

Com essa perspectiva em mente, veja o que aconteceu num estudo em que participantes de diferentes grupos raciais interagiram, e depois pediram que eles adivinhassem qual era a temperatura do ambiente. Numa interação de pessoas da mesma raça, a ausência de imitação provocou uma sensação de frio, 2,04° mais frio, para sermos exatos. E, quando a interação se deu com uma pessoa de outra raça, foi a presença de imitação que provocou a sensação de 2,47° mais frio no ambiente. Esse e outros estudos similares são compatíveis com a ideia de que cada um de nós tem uma reação visceral a comportamentos desencontrados em certas situações. Dado que a imitação é tipicamente considerada um sinal de intimidade, é fácil entender que, quando alguém não está esperando intimidade, a imitação desperta suspeita. Pense na queda de temperatura psicológica como um levíssimo sinal, nas franjas da consciência, de que há maneiras menos ameaçadoras, menos incômodas de passar o tempo do que estar com aquela pessoa.

Essa forma de autoproteção mindless é cortesia de milhares de anos de evolução. Perguntado sobre a lição prática a ser extraída disso, o principal autor do estudo, Pontus Leander, diz:

E melhor não se “empenhar tanto” em adotar completamente, porque o tiro pode sair pela culatra (por exemplo, imitação numa interação inter-racial). Esses estudos mostram que é melhor deixar acontecer alguns processos automáticos. Fui criado numa região do Sul, e sempre ouvi dizerem “se está funcionando, não precisa consertar”; talvez isso se aplique especialmente à imitação.

Propomos a seguinte seqüência: 1) numa interação social com alguém que você mal conhece ou numa conversa sobre um assunto delicado, deixe o processo quase mindless acontecer; 2) faça um esforço consciente para notar qualquer mudança em seu próprio corpo; 3) observe se seu detector de perigo está ou não indo longe demais. Sim, estamos falando das vantagens complementares de começar com mindlessness e depois ir trazendo a atenção consciente para a situação entre você e o outro. Não estamos defendendo a necessidade de uma luta entre mindfulness e mindlessness. É um trabalho em conjunto, numa determinada ordem.

A primeira parte da seqüência, ligar o piloto automático, é o que nós, autores, nunca tínhamos considerado antes. Antes de escrever este livro, nenhum de nós tinha usado o fator de estimativa de temperatura ao tratar de negócios, em encontros amorosos ou em conversas com desconhecidos num saguão de hotel. Mas, agora, sim. Tomamos consciência das vantagens de mindlessness. Além de avaliar a aparência física, inteligência, curiosidade e simpatia, observamos se há alguma queda de temperatura física quando estamos perto de alguém. Antes seria normal exclamar “puxa, que frio!”, mas agora, quando sentimos um arrepio ou pensamos em buscar um agasalho, entramos em alerta. Estamos um pouquinho mais céticos, procurando algum sinal de perigo/manipulação, que antes não registrávamos conscientemente. De posse desses dados que ignorávamos, talvez tenhamos tomado decisões melhores ao contratar empregados e tomar um táxi em terra estrangeira.

2. AJUSTE MINDLESS DA EMOÇÃO

Curiosamente, o processamento automático também se aplica à emoção. Um ajuste saudável da emoção - a tentativa de controlar ou alterar o tipo, intensidade e expressão de nossas reações ao mundo - está vinculado às partes mais importantes do bem viver. Por exemplo: pesquisadores sugerem que falhas no ajuste das emoções são parcialmente responsáveis por problemas individuais como depressão, agressão, infidelidade, e, na esfera profissional, mau desempenho, roubo e assédio. Sabendo como é importante, e difícil, ajustar emoções intensas como raiva, medo, tristeza, vergonha, convém ponderar se o gerenciamento consciente das emoções exige esforço demais, e se é vagaroso demais para nos ajudar em situações fortes.

Situações fortes são aquelas em que somos tomados por emoções intensas e impelidos a tomar uma atitude, como você ver que um desconhecido se acerca de sua filha que está na fila do toalete no restaurante, murmura algo no ouvido da menina e acaricia o braço dela.9 Pense na vantagem de ser capaz de ajustar a emoção automaticamente, antes mesmo de você saber o que está sentindo, e amortecer o impulso de se entregar ao arrebatamento de uma ação impensada (nesse exemplo, dar um pulo da cadeira e pegar um garfo para cravar na mão do atrevido, e só então ficar sabendo que é o novo namorado dela). Que tal se a sua mente pudesse ser treinada para ajudar efetivamente, antes que você saiba que precisa de ajuda, numa situação dessas?

Em dois estudos, íris Mauss, da Universidade de Berkeley, e James Gross, da Universidade de Stanford, pediram a alguns participantes que reordenassem frases com palavras embutidas relacionadas ao gerenciamento de emoções, como “refrear”, “controlar”, “sossegar”, e deram a mesma tarefa a outros participantes com frases contendo palavras relacionadas a ímpetos emocionais, como “soltar”, “ferver”, “explodir”.10 Os pesquisadores queriam saber se a exposição dos participantes a essas palavras dissimuladas no texto interferia na maneira de lidarem com as emoções enquanto alguém - nesse caso um ator - tentava deliberadamente irritá-los. O ator mandou que contassem rapidamente as letras de um texto borrado enquanto lhes dizia que eram incompetentes, num tom de voz cada vez mais impaciente e enervante. Os par­ticipantes sugestionados subliminarmente a liberar as emoções sentiram 42,2% mais raiva do que os participantes sugestionados subliminarmente a manter as emoções sob controle. Um segundo estudo mostrou que os participantes expostos a palavras que aju­davam a controlar as emoções reagiam com pressão e batimentos cardíacos mais baixos quando o ator hostil se aproximava deles.

O que podemos aprender a partir desses resultados? Primei­ro: objetivos muito sofisticados, como tolerar pessoas hostis e nos­sos próprios aborrecimentos, podem ser alcançados sem qualquer ação consciente e deliberada de nossa parte. Segundo: esses atos mindless de ajuste da emoção parecem ser gratuitos, pois as pes­soas manifestam não só menos aborrecimento, mas também me­nos agravos fisiológicos. Terceiro: intervenções simples, breves e de baixo custo podem nos induzir a reações mais saudáveis em situações sociais difíceis.12 Isso indica que já existe um forte siste­ma mindless em funcionamento, regulando nossas emoções, e que, aprendendo a influenciá-lo, podemos aumentar suas vantagens.

3. CRIATIVIDADE MINDLESS

Inovação é uma palavra muito popular no mundo empresarial e na educação, pois tem a vantagem de ser tangível, mensurável, e resulta em idéias criativas que podem ser implantadas fisicamen­te, no mundo real. Elon Musk, o gênio por trás dos carros elétricos Tesla e da SpaceX, é um exemplo perfeito de como o ardor criati­vo pode ser a peça central das empresas. De fato, muitas empresas - especialmente as chamadas “empresas maduras” - estão sempre prontas a investir muito dinheiro em consultorias inovadoras pa­ra seus produtos e gestão, e outro tanto em cursos de desenvolvimento de criatividade para seus funcionários. Na maioria desses cursos, o foco é improvisar, correr riscos e aceitar pequenos fracassos. Até aí, nada contra.

Muitas oficinas de criatividade também são regidas pela ideia de que você pode se tornar criativo propositadamente; quanto mais mindful você for, mais receptivo estará a inspirações criativas. Mindfulness é atraente porque está associada a uma ação deliberada, tranqüila, dependendo somente do seu interesse e afinco. Isso combina com a noção de que uma vida bem vivida não deve - nem pode - ser fácil. A mensagem cultural é clara, porém enganosa. Pesquisadores se esforçam para identificar um problema em pessoas que devaneiam e, por isso, se mostram incapazes de controlar a mente. Seu filho tem um problema porque devaneia na sala de aula enquanto o professor está falando? Um artigo do psicólogo Scott Barry Kaufman sobre mindlessness construtiva contraria pesquisas e opiniões que menosprezam momentos mindless e devaneios em sala de aula:13

Essa perspectiva faz sentido quando o devaneio é observado por um terceiro, e quando os prejuízos são medidos segundo padrões impostos externamente, como rapidez ou exatidão de processamento, fluência ou compreensão de texto, persistência da atenção e outros padrões de medida externos.

Entretanto, há outra maneira de ver o devaneio, numa perspectiva pessoal, se você quiser... Nossa mente vagueia, de propósito ou por acaso, porque há uma compensação tangível, mensurada em objetivos e aspirações que têm um significado pessoal. Precisar reler três vezes a mesma linha porque seu pensamento voou não tem importância, se esse voo levou sua atenção a uma descoberta interna, a uma lembrança deliciosa ou a dar novo significado a um evento desagradável...

Fazer uma pausa para reflexão no meio de uma história é irrelevante se essa pausa nos permite evocar um acontecimento que torna a história mais sugestiva e interessante. Enquanto dirigimos, perder uns minutinhos porque não pegamos a rampa de saída é um inconveniente desprezível se o lapso de atenção nos permitir entender, finalmente, por que o chefe ficou tão chateado com o que dissemos na reunião da semana passada. Chegar em casa sem trazer os ovos que saímos só para comprar é uma contrariedade muito pequena se o esquecimento foi devido à decisão de mudar de emprego, pedir um aumento de salário, ou voltar a estudar.

Dessa perspectiva pessoal, é muito mais fácil entender por que as pessoas são levadas a devanear e investem quase 50% do tempo deixando a mente vagar.14

Um ponto desse artigo encontra eco num ensaio sobre preguiça de Thomas Pynchon, que diz:

... o que Tomás de Aquino denomina Inquietude da Mente ou “correr atrás de várias coisas sem que nem pra que... se pertence ao poder da imaginação... chama-se curiosidade”. Decerto, é precisamente nesses episódios de viagem mental que os escritores produzem boas obras, às vezes as melhores, solucionando problemas formais, recebendo orientação do Além, tendo aventuras hipnagógicas que, com sorte, podem ser recuperadas.15

Imagine se nossa mente fosse privada da capacidade de sair dos trilhos. Se não pudéssemos resistir ao impulso de cumprir as obrigações imediatas, seriamos mais felizes? Seriamos mais felizes e bem-sucedidos com um controle autoritário de por onde anda nossa mente? O passatempo mindless é indispensável à consciência de si, à reflexão e ao planejamento. Pode-se argumentar que nosso cérebro exige uma atividade de livre flutuação mental para revelar, descobrir e consolidar informações, assim como nosso corpo físico exige sono adequado, exercícios e vitamina D.

Antes de investir numa especialização, pense nesse fruto ao seu alcance, o ocioso estado mindless, como a gestação de uma criativa visão interna. Afinal, há muito tempo a criatividade é associada a uma incubação inconsciente, e essa ideia é apoiada por laureados pelo Prêmio Nobel e artistas famosos.16 Você provavelmente conhece a ideia do “ah-ah”, o momento de revelação que traz subitamente a solução de um problema, ou uma ideia relevante, quando menos se espera. Pode-se pensar que há algo de criativo na falta de atenção. Pesquisas apoiam a ideia de que a criatividade está sempre à nossa espreita.

Segundo David Greenberg, autor de Presidential Doodles, documentos históricos revelam que 26 dos 44 presidentes dos Estados Unidos ficavam rabiscando enquanto a mente vagava e os negócios de Estado (reforma tributária?) não prendiam sua atenção. Mas não entenda isso como um desperdício porque os cientistas constataram que, em comparação com quem não rabisca, os rabiscadores apresentam quase 25% a mais de lembrança do que aconteceu enquanto rabiscavam.17 Pode parecer contraditório que alguma coisa que “distrai” na verdade mantém a pessoa ativa, mas rabiscar exige apenas atenção mindless, mantendo a pessoa alerta e ao mesmo tempo recarregando a energia mental que, não fosse isso, estaria sendo drenada por um discurso enfadonho. Infelizmente, professores, pais e gerentes muitas vezes acham que rabiscar é desrespeito e, portanto, deve ser desestimulado.

E se professores e gerentes partissem de outra premissa? E se estimulassem atividades mindless para contrabalançar a intensidade da atenção? Já é possível encontrar esse exemplo em empresas e escolas que colocam uma música suave de fundo enquanto as pessoas trabalham. Pesquisas mostram que isso melhora a concentração, proporcionando um ambiente de calma que favorece a continuidade das atividades.18 Um exemplo menos óbvio pode ser encontrado na prática de admitir que pilotos de avião durmam um pouco durante o voo. Imagine a longa viagem de Washington D.C. a Sydney, na Austrália. Você espera ter certos confortos - um travesseiro, um filme, o toalete com a descarga funcionando e a tripulação acordada.19 Felizmente, ninguém lhe diz que o comandante está tirando uma soneca de 25 minutos enquanto o avião cruza os ares sobre o mar. Mas não se preocupe. Num estudo, pesquisadores da NASA constataram que pilotos que dormem durante o voo tomam decisões 20% mais rápidas e cometem 34% menos erros quando acordam. O valor estratégico de desligar a mente para recarregar não pode ser subestimado. Onde mais você pode obter 34% mensuráveis de melhor desempenho numa atividade, em menos de 26 minutos?

Para saber mais sobre a vantagem de desligar a atenção consciente, procuramos o dr. Andrei Medvedev, professor no Georgetown University Center for Functional and Molecular Imaging.20 Em 2012, sua equipe monitorou a atividade cerebral de adultos enquanto faziam a sesta. Constataram que, nesses períodos de sono, o hemisfério direito - altamente associado ao pensamento criativo - se comunica frequentemente com o lado esquerdo do cérebro. Medvedev especula que enquanto o corpo descansa o he­misfério direito faz uma verdadeira arrumação da casa, transfe­rindo informações e experiências recentes para o armazenamento de memória de longo prazo.

É o mesmo que programar seu computador para salvar arqui­vos importantes e deletar informações desnecessárias enquanto você não o está usando, exceto que algo diferente acontece nessa catalogação mental. Colisões acidentais com lembranças antigas resultam em combinações originais e até bizarras. Quando es­tamos dormindo, o editor dentro de nós está de folga, não pode avisar que certas idéias são proibidas, nem apagá-las por serem impraticáveis. Seria maravilhoso se cada combinação de pensa­mentos produzisse uma descoberta criativa, mas, em geral, essa sopa conceitual é intragável. Isso é esperado, e precisa ser respei­tado. Não podemos contar com uma fileira de idéias cinco estre­las; só precisamos de uma ideia interessante de vez em quando.

A criatividade surge das mais estranhas atividades mindless. Quando pesquisadores investigaram as origens das idéias mais criativas produzidas por 104 especialistas em relações públicas para empresas do Reino Unido, não encontraram ali um manan­cial de originalidade.21 A ida e volta do trabalho ganharam o título de musa das idéias, e em segundo lugar, quase empatados, fica­ram o banho ou a chuveirada. Essas ocasiões são Focos de Criação Acidental (FCAs). Para sermos criativos, precisamos aproveitar ao máximo esses e outros FCAs, que podem ser cuidar das plantas, lavar os pratos, dar uma caminhada ou levar o cachorro ao parque.

Uma observação importante: a atividade mindless, por si só, não basta para a ocorrência da criatividade. Se assim fosse, se­riamos todos Georgia O’Keeffe ou Ernest Hemingway, bastando deixar a mente vagar enquanto lavamos a louça. No entanto, a atividade mindless é o solo fértil em que as melhores idéias criam raízes. Pesquisadores descobriram, por exemplo, que as pessoas mais criativas, e as que mais investem em aprimorar o produto de sua criatividade, recorrem instintivamente a estados não conscientes para ter inspiração.22 Elas têm uma aptidão particular para filtrar os sonhos e incorporar esse material à vida desperta. Portanto, planeje não planejar, passando algum tempo longe de atividades em que a mente insiste em tentar criar. E esteja pronto a captar idéias a qualquer momento, em qualquer lugar, tendo sempre um gravador à mão.

AGIR POR IMPULSO

Se você gosta de uma pessoa engraçada e muito franca, você a classifica de “espontânea” e, se não gosta, você se refere ao mesmo conjunto de comportamentos como “impulsivos”. Temos uma relação ambígua com atividades no “calor do momento”. Por um lado, tendemos a vê-las como engraçadas, e, por outro lado, podem parecer bobas. Uma das razões da má fama da impulsividade é que não prestamos muita atenção nas situações em que a ação impulsiva dá bons resultados. Considere o seguinte: uma grande tempestade de inverno está se aproximando, prevista para chegar daí a alguns dias. Em vez de passar um dia inteiro trancado em casa com seus três filhos pequenos, você clica naquele site de promoções de viagem e reserva passagens para a família passar um delicioso fim de semana em Aruba. Bater os olhos num livro de capa esquisita e comprar por um preço irrisório, entrar por instinto num bar novo, encontrar sua laboriosa pessoa amada estendendo roupa no varal e transar apaixonadamente em cima da máquina de lavar, ter uma conversa interessante com uma pessoa totalmente desconhecida, pedir licença aos amigos e subir no palco de karaokê para cantar sua canção favorita - reações impulsivas e atividades inesperadas, apesar de arriscadas, podem ter grande sucesso e ser agradáveis. Isso acontece exatamente porque não são programadas e a incerteza do resultado contribui para uma mescla de ansiedade e curiosidade que nos faz sentir vivos e inteiros - sem afetação, sem se preocupar em causar boa impressão.

1. O EFEITO LIBERADOR DE PERDER O CONTROLE

Imagine ser arrastado para uma conversa sobre um assunto polêmico: legalizar a maconha, reduzir o número de bombeiros e policiais para cortes no orçamento municipal, decidir quem herda o quê quando vovô morrer. Esses tópicos são controversos devido à sua importância para as pessoas diretamente afetadas. Em locais de trabalho politicamente carregados, um dos assuntos mais delicados é a diversidade. Muitos países ocidentais, modernos, industrializados, concordam que a inclusão baseada em raça, sexo, orientação sexual, religião, nacionalidade e status econômico não só é justa como valiosa.

Nicky Garcea, consultora administrativa na Inglaterra, passou anos coordenando programas sobre diversidade. Ela chegava a uma empresa, reunia os funcionários e passavam horas em workshops sobre a importância de respeitar as diferenças, mas não tardou a se desencantar com essa abordagem. “Mostrar que todo mundo era diferente”, ela confessou, “era uma garantia de que cada funcionário passaria a ser rotulado de mulher, indiano ou gay.”

Muitos de nós ficamos divididos entre querer agir como se não houvesse absolutamente diferenças entre as pessoas e falar sobre possíveis diferenças com sensibilidade e respeito. O problema de tomar tanto cuidado ao escolher as palavras é a quantidade de energia mental exigida. Um homem branco, por exemplo, pode gastar muita energia conduzindo uma conversa com uma mulher negra para temas leves, inócuos, superficiais. Ambos se sentem enojados ao reconhecer que, na verdade, o importante é o que não está sendo dito. Duas pessoas bem-intencionadas acabam criando uma interação forçada, que exige muito esforço e energia.23

Mas e se fosse possível esgotar a energia da pessoa antes da conversa, de modo que ela não tivesse mais pique para ocultar, sufocar ou deixar escapar o que está pensando?24 Seria preciso que os funcionários corressem meia maratona ou fizessem todas as palavras cruzadas do jornal de domingo antes do trabalho. Num estudo, os cientistas determinaram que os sujeitos fizessem algo desafiador em termos físicos ou intelectuais antes de uma conversa potencialmente delicada com um membro de outro grupo étnico. Mentalmente exaustos, os sujeitos se livraram da difícil tentativa de falar a coisa certa, ficaram menos inibidos numa conversa sobre diferenças raciais com alguém de outra raça, e tiveram uma interação 25,4% melhor. Além disso, se sentiram menos alvo de preconceito por observadores negros que assistiram aos vídeos da interação. Os participantes, cansados, desinibidos, tiveram 72,6% mais facilidade de conversar francamente sobre diversidade e lidar efetivamente com esse tema delicado.

Um apoio adicional ao valor de ações impulsivas, ou não comedidas, vem de uma fonte inusitada: o declínio cognitivo na idade avançada, que precede doenças cerebrais degenerativas.25 Num estudo, os pesquisadores disseram a jovens adultos (de 19 anos em média) e a adultos idosos (de 73 anos em média) que eles faziam parte de um programa da comunidade para aconselhamento de adolescentes com problemas. Todos foram levados a acreditar que essa iniciativa visava a aconselhar um adolescente por meio de vídeos de entrevistas com pessoas comuns (e não com terapeutas) sobre a adolescência que essas pessoas comuns tinham vivido. Os participantes selecionaram uma entre várias fichas de adolescentes, sem saber que todas continham a mesma informação: uma menina obesa que sofria de insônia, bullying, incapacidade de fazer amigos e desinteresse na escola.

Quando disseram aos sujeitos para pensar no que desejavam dizer, os idosos demonstraram maior franqueza, falando diretamente que a menina era gorda e feia, e contaram como tinham sofrido na adolescência, como haviam lidado com isso e o quanto tinham aprendido com a rejeição e o fracasso. Os jovens foram mais cautelosos: 70% nem mencionaram a gordura da garota. Curiosamente, os idosos com o mais fraco funcionamento cognitivo (medido por um exame neuropsicológico abrangente) foram os mais abertos, com 80% falando na gordura da menina e dando mais conselhos.

Os pesquisadores pediram a dois médicos famosos, especialistas em obesidade, que assistissem ao filme das entrevistas e avaliassem a qualidade dos conselhos. Os conselhos dos idosos com menor capacidade cognitiva foram julgados melhores do que os conselhos dos jovens, que tinham maior capacidade cognitiva. A falta de inibição deixou os velhos mais acessíveis, empáticos, cooperativos, e dispostos a abordar o desconfortável fato da obesidade da garota e suas dificuldades sociais por causa disso. No artigo intitulado “The risk of polite misunderstandings”, Jean-François Bonnefon e seus colegas concluem:26 A polidez gasta recursos mentais e cria confusão sobre o verdadeiro significado.

Embora essa confusão seja funcional em situações corri­queiras, pode ter conseqüências indesejáveis em situações de alto risco, como pilotar um avião em caso de emergência ou ajudar um paciente a optar por um tratamento.

Aconselhar e servir de mentor são papéis de liderança funda­mentais para pais, professores e executivos. A incapacidade de abordar assuntos delicados aumenta a probabilidade de malogro no trabalho, erosão de relacionamentos, perda de tempo e de di­nheiro, devido à comunicação inadequada. Não evite essas conversas tão temidas. Experimente falar quando estiver um pouco cansado, com as defesas naturais em baixa. Isso vai ajudá-lo a to­lerar o desconforto e se valer de sentimentos menos convencionais.

DECISÕES MINDLESS

Desafiamos você a passar oito horas sem tomar decisões instantâ­neas. Não mudar de faixa no trânsito, não convidar alguém que você acabou de conhecer para almoçar, não expor um pensamento antes que seja bem analisado, não enviar e-mails apressados e, certamente, não comentar imediatamente alguma coisa postada no Facebook. Apostamos que você não consegue durante as oito horas. Imaginamos que consiga durante uma hora. Se você estiver num shopping center ou assistindo à televisão, reduzimos para dois minutos.

As pessoas tendem a trabalhar decisões importantes. Gosta­mos de ter trabalho com nossas escolhas, calcular custo-benefício, consultar especialistas, fazer programações, quando bastaria uma boa noite de sono para resolver o assunto. Uma abordagem mais intuitiva pode parecer quase Nova Era porque se baseia na existência do inconsciente e na crença em que o fantasma na máquina, a mente inconsciente, é capaz de dar conta das decisões enquanto a mente consciente está ocupada com outras coisas. Segundo o princípio de capacidade do cérebro, quando há excesso de dados a serem digeridos, o pensamento consciente fica confinado ao trabalho de processar todas as informações, integrando-as, apelando para os conhecimentos e experiências, comparando-as e contrastando as escolhas possíveis até chegar a uma decisão. O pensamento mindless não tem essas restrições porque ocorre fora da consciência. Isso nos traz uma regra de ouro contraintuitiva: quando é preciso tomar uma decisão complexa, após reunir informações na mente consciente, evite pensar nelas conscientemente. Não tenha pressa, deixe o inconsciente resolver.27

Nenhum autor enuncia melhor essa regra do que Ap Dijksterhuis.28 Esse psicólogo holandês passou anos estudando a inteligência inconsciente. Em um estudo muito interessante, Dijksterhuis investigou se torcedores fanáticos por futebol, com seus conhecimentos obsessivos do esporte, eram mais capazes de acertar qual time seria vencedor do que adultos sem maiores conhecimentos, que usavam mais as seções de esportes dos jornais para embrulhar o lixo do que para ler.29 Ele fez uma breve exposição estatística de gols, jogadas, passes perfeitos, dribles e segredos de vários times de futebol. Dijksterhuis queria saber como os dois grupos utilizavam essas informações.

Tendo tempo suficiente para avaliar todos esses dados sobre a performance dos times, os fanáticos tiveram melhor desempenho que os neófitos. Já era de se esperar, pois eles usaram as informações que obtinham diariamente. Mas algo estranho aconteceu quando Dijksterhuis mudou o procedimento. Deixou os sujeitos pensarem durante dois minutos apenas e, para evitar que continuassem a pensar em futebol, pediu que resolvessem complicadas equações de álgebra. Enquanto tentavam solucionar os complexos problemas de matemática, Dijksterhuis os interrompeu, pedindo que respondessem rapidamente quais times seriam vitoriosos no próximo campeonato. Nesse momento, os neófitos acertaram mais que os fanáticos! Por quê? Porque, na ausência de uma grande quantidade de dados, os neófitos confiaram nas informações que, bem diante de seus olhos, lhes chamaram a atenção, como passes perfeitos em condições de chuva e vento, uma estatística que os fanáticos devem ter negligenciado. Os neófitos basearam essa reação intuitiva em informações inusitadas, que foram sublinhadas e marcadas em negrito pelo cérebro. Como os fanáticos tinham um grande acúmulo de fatos sobre futebol estocados no cérebro, “a dica” ali à sua frente não se destacou. É muito difícil desaprender fatos antigos e descartar idéias preconcebidas, e eles precisariam ter feito isso rapidamente a fim de absorver novos fatos.

Os resultados da pesquisa sobre futebol não se limitam ao mundo dos esportes. A decisão instintiva é relevante também para uma pessoa doente escolher o médico, um adulto obeso escolher dietas e exercícios, médicos diagnosticarem doenças graves. Em um estudo similar, pediu-se a adultos com pós-graduação em psicologia para determinar se um paciente tinha algum distúrbio psicológico e, se tivesse, qual seria o diagnóstico.30 Em uma sessão, os psicólogos leram a descrição do caso de um paciente e tiveram quatro minutos para ponderar antes de formar uma opinião. Em outra sessão, tiveram que processar inconscientemente as informações sobre o caso enquanto faziam um jogo de caça-palavras durante quatro minutos. As opiniões foram piores quando tiveram os quatro minutos para pensar. De fato, as opiniões mais mindless foram cinco vezes mais corretas do que as ponderadas.31

Vemos assim que há nítidas vantagens no pensamento inconsciente, especialmente quando se trata de dissecar, manipular e sintetizar grandes quantidades de informação. Mas, certamente, há também nítidas vantagens no pensamento consciente. Se você acha que ter uma janela que dá para campos verdejantes e belas árvores é importante para sua qualidade de vida no trabalho, por exemplo, é preciso ter isso na mente consciente quando lhe oferecerem um escritório muito maior, com elegantes cadeiras ergonômicas e sem vista para o mundo externo. Caso contrário, você pode se deixar levar pelo entusiasmo de ter tanto espaço e depois se surpreender com o abrupto declínio de seu ânimo nos meses seguintes sem janela. Então, entre os dois, qual é o melhor para você?

Vejamos o problema de escolher um apartamento para alugar, que é uma decisão da maior importância. Será fácil se o apartamento tiver todos os requisitos: preço baixo, quartos amplos, banheiro com banheira, bons armários, varanda, perto de shoppings e transporte público, num bairro com ótimos restaurantes, parques e baixa criminalidade. E - ah, sim - que tenha conforto para seu bichinho de estimação. Na vida real, encontrar um apartamento é um exercício de concessões. Você tem um closet enorme, mas não tem parque; cozinha moderna, mas não tem pia dupla. Muita gente entra num jogo mental de troca-troca, num esforço para tomar uma decisão feliz.

Em 2011, Dijksterhuis e seus colegas conduziram um experimento em que os participantes tinham que fazer uma entre duas escolhas ideais dentre 12 apartamentos possíveis.32 Mas, tal como no mundo real, nenhum era perfeito. Os melhores apartamentos tinham oito características positivas e quatro negativas, e os piores tinham quatro características positivas e oito negativas. Quando as pessoas precisaram tomar uma decisão imediatamente após receber informações sobre cada apartamento, houve somente 15% de acertos na melhor opção. Quando tiveram quatro minutos para ponderar sobre cada apartamento, os acertos na melhor opção chegaram a 29%. Isso indica que a ponderação se sobrepõe à escolha impulsiva, mas nenhuma das duas parece ser totalmente satisfatória.

Curiosamente, numa terceira sessão, quando os participantes ficaram distraídos fazendo palavras cruzadas sem relação com o tema e então tiveram que tomar a decisão, o resultado foi 30% de acertos na melhor opção. Mas realmente interessante foi o que aconteceu quando os participantes puderam passar dois minutos pensando conscientemente em cada apartamento e depois sua atenção foi desviada para jogos de palavras, irrelevantes, porém difíceis, que precisavam solucionar em dois minutos. Depois de passar metade do tempo ponderando conscientemente antes de tomar uma rápida decisão mindless após um cansativo jogo de palavras, alcançaram 58% de acertos na melhor opção. Eles tinham passado apenas metade do tempo analisando cada apartamento e a decisão foi duas vezes melhor!

Esses mesmos pesquisadores constataram que a melhor estratégia é aproveitar os pontos positivos do pensamento consciente e inconsciente. Mas deram um passo adiante ao descobrir a importância da ordem seqüencial de pensamento consciente e inconsciente. Quando os possíveis compradores de apartamentos tiveram dois minutos para ponderar antes de serem distraídos com jogos de palavras, tiveram 58% de acertos na melhor opção. Quando a seqüência foi invertida e ficaram distraídos com jogos irrelevantes de palavras (pensamento inconsciente) e depois tiveram dois minutos para ponderar (pensamento consciente), sua capacidade de escolha caiu para 30%.

Não é de surpreender que existam tantos livros sobre mindfulness e pensamento irracional. Ainda estamos aprendendo a funcionar no modo ótimo, como pessoas bem integradas, inteiras. Essa fascinante linha de pesquisa mostra que a estratégia mais eficaz para lidar com decisões complexas é ter flexibilidade para usar o pensamento consciente e inconsciente, em conjunto, e nessa ordem. Numa situação em que há várias opções exigindo uma ação cognitiva, a fórmula para a melhor decisão é a seguinte:

  1. Fique algum tempo pensando conscientemente na situação.
  2. Pare.
  3. Faça uma atividade qualquer, sem relação com a situação, para ter um período de incubação.
  4. Tome a decisão.

Intervenções Mindless

Passamos décadas tentando aumentar nossa autoconsciência para alcançar o sucesso, e os pesquisadores que apresentamos neste capítulo sugerem uma atitude diferente. Como alternativa, vamos propor uma estratégia do “levantar da (in)consciência”, que nos permite atingir as metas que almejamos e, assim, viver melhor. Propomos a audaciosa noção de que nosso comportamento pode ser modificado drasticamente sem qualquer intervenção consciente. O imperceptível processamento inconsciente da informação pode nos conduzir a decisões mais firmes, mais rápidas e melhores.

Pense na meta de melhorar seu desempenho. Em uma central de telemarketing, Garry Latham e Ronald Piccolo testaram uma intervenção de baixo custo com os funcionários, dando a eles fotografias para olharem antes de falar com os clientes.33 Uma foto era de três vendedores sorridentes durante um telefonema (desempenho relevante), outra era de uma mulher levantando os braços na linha de chegada de uma corrida (desempenho irrelevante) e, no terceiro caso, os funcionários olharam para uma foto do prédio em que trabalhavam. Os funcionários que olharam para as fotos de desempenhos vitoriosos apresentaram um aumento de 58% de chamadas bem-sucedidas, e os que olharam para a foto do prédio não apresentaram nenhum aumento.

Mas essa não é a melhor parte. Veja só: os funcionários que olharam para a foto do vendedor sorridente conseguiram 85% a mais de dinheiro do que os que olharam para a foto do prédio! Quando lhes perguntaram como tinham melhorado tanto seu desempenho, nenhum deles mencionou a foto inspiradora em seu cubículo. O que você acha melhor: gastar um dinheirinho numa foto emoldurada, ou gastar um dinheirão em workshops para melhorar o ânimo, a motivação e o desempenho dos funcionários? Nesse estudo, os pesquisadores constataram também que imprimir um melhor desempenho no inconsciente tem um impacto que não dura somente minutos ou horas, mas permanece por uma semana inteira de trabalho.

Agora, vejamos problemas sociais maiores. Tentar convencer as pessoas a não usar estereótipos sobre idosos, deficientes, gays ou de uma raça diferente tem o efeito contrário, tornando mais fácil evocar o estereótipo e, portanto, usá-lo. Na mesma linha, quando fumantes veem anúncios contra cigarros, acabam fumando mais.34 Em vista disso, pesquisadores reuniram um grupo de adultos brancos que admitiam ter preconceito racial e não gostavam de ter contato com negros, a fim de saber se essa opinião podia ser recondicionada sem tentar convencer os sujeitos de que preconceito e racismo são indesejáveis.

Os pesquisadores colocaram os sujeitos diante de uma tela de computador contendo imagens e palavras positivas sobre norte-americanos negros (uma criança negra dividindo o lanche com um coleguinha esfomeado), e instruídos a se “aproximar dos negros” movendo um joystick na direção deles. Quando apareciam imagens e palavras sobre norte-americanos brancos, deveriam mover o joystick na direção oposta a eles.35 A ideia era que associar repetidamente imagens positivas sutis de pessoas negras à motivação para se aproximar e apreciá-las levasse a rever o hábito mindless de ver pessoas negras como inimigas a serem evitadas. Os pesquisadores constataram que os adultos brancos treinados para associar negros a um comportamento de aproximação tiveram um decréscimo de 46,5% de crenças preconceituosas em comparação com os que não receberam o treinamento. Mas essa reinstalação cerebral influencia o comportamento de um branco com um desconhecido negro? A resposta é um surpreendente sim. Após o treinamento de associação mindless de rostos negros com os movimentos de aproximação via joystick, numa conversa de “apresentação”, esses brancos colocaram a cadeira seis vezes mais perto de um desconhecido negro (um ator que já estava sentado quando os participantes entraram). Vejam só, o cérebro é um órgão muito interessante!

Quem já trabalha no sentido de criar maior apreciação da diversidade não precisa ser lembrado de que as pessoas que não se parecem conosco, ou que não têm os mesmos valores, podem oferecer mais oportunidades de aproximação que de evitação. Mas há um fato importante: todos nós temos um “grupo”, um círculo de pessoas cuja mentalidade é parecida com a nossa e, por um efeito de espelho, consideramos mais atraentes do que o resto da humanidade. Sejam religiosos versus ateus, vegetarianos versus carnívoros, feministas versus fãs de pornografia, nerds versus atletas, todos têm sua tendenciosidade, algumas reconhecidas, e muitas outras ocultas. Pesquisas recentes nos oferecem alguns meios de mudar essas tendenciosidades. Sabemos agora que, com movimentos repetidos, podemos remodelar o cérebro, mudando a mente para melhor. O treinamento mindless pode ser acrescentado à lista de estratégias para aumentar o sucesso e o bem-estar.

Utilizando o Mindless

Apresentamos um contraste entre a grande divulgação científica e pública de que mindfulness é melhor que mindlessness. Ao compreender que o pensamento mindless reforça o êxito, você terá uma vantagem sobre quem está sempre pronto a acionar o estado mindful. Ainda que você queira, é fisicamente impossível estar mindful o tempo todo. Para capitalizar o pensamento inconsciente, descrevemos os pontos fortes de mindlessness em diversas áreas da vida, desde alcançar metas, confiar nas pessoas e ter mais criatividade, até lidar com uma pressão sufocante, com os preconceitos e tomar decisões complexas.

Em certas situações o pensamento mindless nos capacita a ser mais objetivos ou mais neutros. Você pode estar resistindo a aceitar essa afirmação. Afinal, acredita-se intuitivamente que um julgamento instantâneo pode ser muito bom em decisões “sem importância”, mas decisões complexas exigem intensidade e concentração nas deliberações. Estamos aqui para lhe dizer que a eficácia é frequentemente prejudicada pela crença na superioridade da mindfulness.

LEMBRETES

  1. Mindfulness pode ter vantagens, mas nossa predisposição natural é para mindlessness.
  2. O pensamento automático ajuda a conservar os recursos mentais.
  3. A redução da atividade mental pode gerar uma forma produtiva de desinibição.
  4. O processamento mindless frequentemente conduz a um desempenho superior e a melhores decisões, principalmente em situações delicadas.
  5. Intervenções subliminares podem nos impulsionar na direção de um objetivo.
  6. Tentativas de recusar mindlessness estão fadadas ao fracasso.

Reconhecer o poder de mindlessness é, por si só, uma intervenção. E as pessoas podem aprender a se beneficiar desse recurso tão menosprezado. Aqui vão mais alguns conselhos para utilizar mindlessness:

  1. Estabeleça um prazo ridiculamente curto - dez segundos - para tomar uma decisão que o deixou alguns minutos paralisado, sem saber o que fazer. Isso força uma decisão mindless. Há sempre um motivo para deixar de fazer uma viagem. Há sempre um motivo para comprar sempre o mesmo presunto e queijo no supermercado. Tire dez segundos, clique “enviar”, ponha a compra no carrinho ou vá embora sem gastar mais energia na decisão.
  2. Use dicas ou sinais que representem seus objetivos. Você quer ser calmo e moderado numa situação ou ser franco e dizer tudo o que está sentindo? Quer ter grandes aspirações e está disposto a correr riscos para alcançar a meta ou é aves­so a riscos para ter certeza de não cometer erros? Você po­de colar palavras e imagens na sua sala ou na escrivaninha, apontando para determinadas metas e estilos motivacionais.
  3. Reserve tempo para deixar a mente vagar. Mindlessness é um recurso estratégico intenso, e há motivos para não sermos dotados exclusivamente desse equipamento mental. Quan­do a mente vagueia, nossa atividade cerebral é quase a mes­ma de quando estamos descansando. As idéias colidem, e a criatividade aparece por acaso. As empresas e o ambiente doméstico podem ser organizados de modo a estimular ati­vidades mindless estratégicas. Essa é uma das muitas razões para que os exercícios físicos e as brincadeiras na hora do recreio sejam as últimas atividades a serem excluídas dos programas pedagógicos.
  4. Determine regras para usar a intuição. Quando você estiver diante de uma opção simples, é melhor usar um método lógico e deliberado. Quando precisar tomar uma decisão complicada, terá um resultado melhor se, depois de passar algum tempo analisando as informações, você se permitir um período de incubação, fazendo alguma outra coisa (“dor­mir sobre o assunto”) e depois mudar para o modo mindless, a intuição.

Em vez de eleger um vencedor entre os dois modos de pensamento, mindlessness e mindfulness, defendemos os méritos relativos de ambos. Se você retirar metade do pensamento humano, metade da consciência, poderá criar um espaço maior para o sucesso e o bem-estar.

Psicologia - Psicologia Cognitiva
4/11/2022 2:53:07 PM | Por Danny Penman, Mark Williams
Despertando a atenção plena

Imagine-se no topo de uma montanha, contemplando lá do alto a pai­sagem urbana e cinzenta sob a chuva. A cidade parece fria e inóspita. Os prédios são velhos e desgastados. As avenidas estão engarrafadas e as pessoas caminham infelizes e mal-humoradas. Então algo milagroso acontece: as nuvens se dissipam e o sol começa a brilhar. Num instante, a paisagem muda. As janelas dos prédios ficam douradas. O concreto cinza muda para um bronze lustroso. As ruas parecem reluzentes e limpas. Um arco-íris surge. O rio lodoso se transforma numa serpente exótica que corta as ruas. Por um momento, tudo fica em suspenso: sua respiração, seu coração, sua mente, os pássaros no céu, o tráfego nas ruas, o próprio tempo. Tudo parece pausar, absorver a transformação.

Essas mudanças de perspectiva têm um efeito dramático - não apenas no que você vê, mas também no que pensa e sente e na maneira como se relaciona com o mundo. Elas podem alterar sua visão da vida de forma radical num piscar de olhos. Mas o que é notável nessa situação é que, de fato, pouca coisa muda: a cena permanece exatamente a mesma, mas quando o sol aparece você vê o mundo sob uma luz diferente. Só isso.

Observar sua vida sob uma luz diferente também pode transformar seus sentimentos. Lembre-se de uma época em que você estava se pre­parando para as férias. Havia coisas de mais por fazer e tempo de menos para dar conta de tudo. Você chegou tarde em casa depois de passar o dia tentando deixar o trabalho em ordem antes de sair para seus dias de folga. Você se sentia como um hamster preso numa roda que não para­va de girar. Enquanto arrumava as malas, estava tão cansado que teve dificuldades de selecionar o que levar. Não conseguiu dormir direito porque sua mente continuava revivendo as atividades daquele dia. Na manhã seguinte, você acordou, pôs a bagagem no carro, trancou a casa e partiu... E acabou.

Pouco depois você estava deitado à beira da praia, relaxando e con­versando com os amigos. O trabalho de repente ficou a milhares de qui­lômetros de distância e você mal conseguia se lembrar dos problemas relacionados a ele. Você se sentia revigorado porque sua vida simples­mente mudara de marcha. Sua rotina estressante continuava existindo, é claro, mas você agora a estava vendo de um ponto de vista diferente.

O tempo também pode alterar profundamente sua perspectiva. Pense na última vez que você teve uma discussão com um colega ou um estranho - talvez um atendente de telemarketing. Você ficou uma fera. Passou horas pensando em todas as coisas inteligentes que pode­ria ou deveria ter dito para derrubar seu oponente. Os efeitos da dis­cussão arruinaram seu dia. Porém, poucas semanas depois, o episódio já não o afeta mais. Na verdade, você nem se lembra dele. O evento continua tendo ocorrido, mas você pensa nele de um ponto diferente no tempo.

Mudar sua perspectiva pode transformar sua experiência de vida, como mostram os exemplos. Mas eles também evidenciam um proble­ma fundamental: todos ocorreram porque algo fora de você havia mu­dado - o sol surgiu, você saiu de férias, o tempo passou. Acontece que, se você depender somente da mudança de circunstâncias externas para se sentir feliz e energizado, terá de esperar muito tempo. E enquanto você espera o sol aparecer ou as férias chegarem, sua vida passa despercebida.

Mas as coisas não precisam ser assim.

É fácil ficar preso num ciclo de sofrimento e aflição quando você tenta eliminar seus sentimentos ou se  emaranha num excesso de análises. Os sentimentos negativos persistem quando o modo Atuante da mente se oferece para ajudar, mas em vez disso acaba aumentando as dificuldades que você estava tentando superar.

Mas existe uma alternativa. Nossa mente tem outra maneira de se relacionar com o mundo: o modo Existente. Assemelha-se a uma mu­dança de perspectiva, embora vá bem além disso. Ela nos permite ver como a mente tende a distorcer a “realidade” e nos ajuda a eliminar o hábito de pensar, analisar e julgar demais. Com ela, podemos experi­mentar o mundo de forma direta, vendo qualquer dificuldade de um novo ângulo e enfrentando os obstáculos de maneira bem diferente. Por causa dela, somos capazes de mudar nossa paisagem interna (ou paisa­gem mental, se preferir) independentemente do que estiver ocorrendo a nossa volta. Deixamos de depender das circunstâncias externas para encontrar a felicidade, o contentamento e o equilíbrio. Voltamos a ter o controle de nossa própria vida.

Se o modo Atuante é uma armadilha, o modo Existente é a liberdade.

Ao longo das eras, as pessoas aprenderam a cultivar essa forma de ser, e qualquer um de nós é capaz de fazer o mesmo. A meditação da atenção plena é a porta pela qual podemos acessar o modo Existente. E, com um pouco de prática, poderemos abrir essa porta sempre que precisarmos.

A atenção plena surge espontaneamente do modo Existente quando aprendemos a prestar atenção deliberada, no momento presente e sem julgamento, nas coisas como de fato são.

Na atenção plena, começamos a ver o mundo como ele é, não como esperamos que seja, como queremos que seja ou como tememos que se torne.

Essas idéias podem soar um pouco nebulosas. Pela própria natureza, elas precisam ser experimentadas para serem compreendidas da manei­ra correta. Assim, para facilitar o entendimento, vou explicar a seguir ponto a ponto as diferenças entre os modos Atuante e Existente. Embora algumas das definições talvez não fiquem muito claras no início, os bene­fícios da prática da atenção plena são inquestionáveis. Na verdade, é até possível verificar os benefícios de longo prazo se enraizando no cérebro usando algumas das tecnologias de imagens mais avançadas do mundo.

Ao ler as páginas seguintes, é importante que você tenha em mente que o modo Atuante não é um inimigo a ser derrotado. Com frequência, é até um aliado. Ele só se torna um “problema” quando se oferece para uma tarefa que é incapaz de realizar, como “solucionar” uma emoção preocupante. Quando isso acontece, vale a pena mudar a marcha para o modo Existente.

É exatamente isto que a atenção plena proporciona: a capacidade de mudar de marcha quando precisamos, em vez de ficar presos sempre na mesma.

As sete características dos modos atuante e existente

1. Piloto automático X escolha consciente

O modo Atuante é muito eficiente em automatizar nossa vida por meio dos hábitos, mas esta é uma das características que menos perce­bemos. Sem a capacidade da mente de aprender com a repetição, ainda estaríamos tentando lembrar como amarrar o sapato - algo que hoje fazemos automaticamente. O lado ruim disso é que, quando cedemos demais ao piloto automático, podemos acabar pensando, trabalhando, comendo, caminhando ou dirigindo sem uma consciência clara do que estamos fazendo. O maior perigo é que grande parte da nossa vida passe assim, sem que de fato estejamos vivendo.

A atenção plena nos traz de volta à consciência: um local de escolha e intenção.

O modo Existente - ou “atento” - nos permite voltar a ter total consciência de nossa vida. Proporciona a capacidade de nos conec­tarmos com nós mesmos de tempos em tempos para que possamos fazer escolhas intencionais. A medi­tação da atenção plena nos leva a gastar menos tempo para realizar as coisas. É simples: quando se torna mais atento, suas intenções e ações ficam alinhadas, e você deixa de ser desviado toda hora do rumo pelo piloto automático. Aprende a parar de perder tempo à toa com sua velha maneira de pensar e agir, que se provou inútil. Além disso, diminui sua tendência a lutar demais por objetivos dos quais é melhor abrir mão. Você se torna plenamente vivo e consciente de novo.


2. Analisar X sentir

O modo Atuante precisa pensar. Ele analisa, recorda, planeja e compara. Esse é seu papel, e quase todo mundo se acha bom nisso. Passamos grande parte do tempo perdidos, desligados, sem notar o que se passa a nossa volta. A correria do mundo nos absorve de tal forma que destrói nossa percepção do agora, forçando-nos a viver mais no mundo dos nossos pensamentos do que no mundo real. E, como vimos no capítulo anterior, os pensamentos podem facilmente ser desviados para uma direção peri­gosa. Isso nem sempre ocorre, mas é um risco constante.

A atenção plena é uma forma diferente de experimentar o mundo. Não é como pegar um caminho novo; estar plenamente atento é entrar em contato com seus sentidos, de modo que possa ver, ouvir, tocar, cheirar e degustar as coisas que você já conhece como se fosse a primeira vez. Você se torna curioso de novo. Esse contato sensorial direto com o mundo pode parecer trivial de início. No entanto, quando você começa a sentir os momentos da vida comum, descobre algo fora do comum. Você cultiva uma sensação intuitiva do que está ocorrendo a sua volta, o que aumenta sua capacidade de observar as pessoas e a vida de uma nova maneira. Eis a essência da atenção plena: acordar para o que está acontecendo no mundo e dentro de você, momento a momento.

3. Lutar X aceitar

O modo Atuante envolve julgar e comparar o mundo “real” com o mundo que idealizamos em nossos sonhos e pensamentos. Ele foca a atenção na diferença entre os dois, o que acaba gerando uma insatisfa­ção permanente.

O modo Existente, por outro lado, nos convida a suspender o jul­gamento temporariamente. Significa ficar de lado por um momento e observar o mundo e a vida se desenrolando, permitindo que as coisas sejam como são. Ao analisar um problema ou uma situação sem precon­ceitos, não somos mais forçados a chegar a uma conclusão preconcebi­da. Desse modo, não precisamos reduzir nossa criatividade.

Aceitação não é o mesmo que resignação. Aceitar é reconhecer que a experiência existe e, em vez de deixar que ela controle sua vida, observá-la compassivamente, sem julgá-la, criticá-la ou negá-la. A aceitação pro­movida pela atenção plena permite que você impeça que uma espiral ne­gativa comece, ou, se já começou, reduza seu ímpeto. Ela nos concede a liberdade de escolher e, no processo, nos liberta da infelicidade, do medo, da ansiedade e da exaustão. Com isso, adquirimos um controle maior sobre a nossa vida. O mais importante é que nos permite lidar com os problemas da forma mais eficaz possível e no momento mais apropriado.

4. Ver os pensamentos como reais X tratá-los como eventos mentais

No modo Atuante, a mente usa as próprias criações, pensamentos e imagens como matéria-prima. As idéias são a sua moeda e adquirem valor próprio. Você pode começar a confundi-las com a realidade. Na  maioria das vezes, isso faz sentido. Se você saiu para visitar um amigo, precisa ter em mente seu destino. A mente planejadora, ativa, racional levará você até lá. Não faz sentido duvidar da verdade de seu pensa­mento: Vou mesmo visitar meu amigo? Em tais situações, é necessário considerar seus pensamentos como verdadeiros.

Mas isso se torna um problema quando você está estressado. Você poderia dizer a si mesmo: Vou enlouquecer se isso continuar. Eu deve­ria fazer melhor do que isso. Você pode considerar esses pensamentos verdadeiros também. Seu astral despenca quando sua mente reage de forma rude: Sou fraco, não presto, não sirvo para nada. Assim, você se esforça cada vez mais, ignorando as mensagens de seu corpo castigado e o conselho de seus amigos. Os pensamentos deixaram de ser seus servos e se tornaram seu senhor - um senhor rígido e implacável.

A atenção plena nos ensina que pensamentos não passam de pensa­mentos. São eventos criados pela mente. Costumam ser valiosos, mas não são “você” ou “a realidade”. São uma narração interna sobre você e seu mundo. A simples compreensão desse fato o liberta do excesso de preocupação, elucubração e ruminação, o que lhe permite enxergar um caminho claro pela vida de novo.

5. Evitar X aproximar-se

O modo Atuante resolve problemas não apenas mantendo na lem­brança seus objetivos e destinos, mas também lembrando “antiobjetivos” e lugares aonde você não quer ir. Isso faz sentido quando, por exemplo, você vai de carro do ponto A ao ponto B, porque convém saber quais partes da cidade você deve evitar. No entanto, esse pro­cesso se torna um problema quando se trata de estados mentais dos quais você gostaria de fugir. Por exemplo, se tentar resolver o proble­ma do cansaço e do estresse, você manterá na mente os “lugares que não deseja visitar”, como a exaustão, o esgotamento e o colapso. Então, além de se sentir cansado e estressado, você começará a invocar novos medos, aumentando sua ansiedade e gerando ainda mais estresse. O modo Atuante, usado no contexto errado, conduz você passo a passo ao esgotamento e à exaustão.

O modo Existente, por outro lado, convida você a se “aproximar” das coisas que sente vontade de evitar. Instiga-o a se interessar por seus estados mentais mais difíceis. A atenção plena não diz “não se preocupe” ou “não fique triste”: ela reconhece o medo, a tristeza, a fadiga e a exaustão e o encoraja a se voltar para aquelas emoções que ameaçam engoli-lo. Essa abordagem compassiva dissipa pouco a pouco o poder dos sentimentos negativos.

6. Viagem no tempo mental X permanecer no momento presente

Sua memória e sua capacidade de planejar o futuro são cruciais para o bom andamento da vida diária, mas elas sofrem distorções por causa de seu estado de espírito. Quando você está sob estresse, tende a se lembrar somente das coisas ruins, traumáticas, e a ter dificuldade de se lembrar das coisas boas, prazerosas. Algo semelhante ocorre quan­do você pensa no futuro: quando se sente infeliz, acha quase impossível olhar para a frente com otimismo. No momento em que esses sentimentos percorreram sua mente consciente, você deixa de perceber que não passam de memórias do passado ou de planos para o futuro. Você se perde na viagem no tempo mental.

Nós revivemos eventos passados e voltamos a sentir a dor; nós antevemos desastres futuros e sentimos seu impacto com antecedência.

A meditação treina a mente para que você conscientemente “veja” seus pensamentos quando ocorrerem, para que possa viver sua vida conforme ela se desenrola no presente. Isso não significa que você fica aprisionado no agora. Ainda consegue se lembrar do passado e planejar o futuro, mas o modo Existente permite que você os veja como são: a memória como memória e o planejamento como planejamento. Ter essa clareza evita que você seja escravo da viagem no tempo mental. Você consegue impedir a dor de reviver o passado e de se preocupar com o futuro.

7. Atividades exaustivas X tarefas revigorantes

Quando você está preso no modo Atuante, não é apenas o piloto au­tomático que o impele: você tende a se envolver em projetos pessoais e  profissionais importantes, e em tarefas exaustivas como cuidar da casa, dos filhos, dos pais idosos. Essas atividades costumam ser válidas, mas por demandarem tanto tempo é fácil concentrar-se nelas e excluir todo o resto, inclusive sua saúde e seu bem-estar. De início, você pode tentar convencer-se de que tudo isso é temporário e de que você está disposto a abrir mão dos hobbies e passatempos que nutrem sua alma. Mas desistir dessas coisas pode esgotar seus recursos internos aos poucos e levá-lo a se sentir vazio, apático e exausto.

O modo Existente restaura o equilíbrio, ajudando-o a identificar as atividades que o revigoram e aquelas que o esgotam. Ele o faz perceber que necessita de tempo para renovar sua alma e proporciona o espaço e a coragem para tal. Também o ensina a lidar com as inevitáveis tarefas do dia a dia que drenam a energia de sua vida.

Mudança consciente de marcha

A meditação da atenção plena ensina a sentir as sete dimensões de­ lineadas anteriormente e, com isso, ajuda a reconhecer em que modo sua mente está operando. Ela age como um alarme suave que avisa, por exemplo, quando você está analisando demais uma situação e lembra que existe uma alternativa: você ainda tem opções, por mais infeliz ou estressado que esteja. Ou seja, se sente que está emaranhado no excesso de análises e críticas, a atenção plena pode torná-lo mais aberto e fazê-lo aceitar a dificuldade com receptividade e curiosidade.

Agora podemos lhe revelar um segredo: se você mudar ao longo de qualquer uma dessas dimensões, as outras mudarão também. Por exem­plo, durante o programa de atenção plena, você pode praticar a recepti­vidade e se tornará menos crítico. Você pode praticar a permanência no presente e passará a interpretar seus pensamentos de forma menos literal. Se olhar para si mesmo com generosidade, também terá mais empatia pelos outros. E, ao fazer todas essas coisas, uma sensação de entusiasmo, energia e equilíbrio surgirá como uma fonte de água límpida há muito esquecida.

Embora as práticas ocupem apenas vinte a trinta minutos de “tempo de relógio” a cada dia, os resultados podem ter um impacto em toda a sua vida. Você logo perceberá que, embora certo grau de comparação e julgamento seja necessário, nossa civilização dá valor excessivo a essas coisas. Muitas escolhas que fazemos no dia a dia são desnecessárias. Elas são impelidas por seu fluxo de pensamentos. Você não precisa se comparar aos outros. Não precisa comparar seu pa­drão de vida atual com uma visão fictícia de futuro ou uma lembrança romantizada do passado. Não precisa ficar acordado à noite avaliando o impacto que um comentário casual, feito durante uma reunião de tra­balho, causará em seu emprego. Apenas aceite a vida como ela é, e você se sentirá mais realizado e livre de preocupações. E quando precisar to­mar alguma atitude, a decisão mais sábia provavelmente surgirá em sua mente no momento em que você não estiver pensando no assunto.

Precisamos enfatizar outra vez que aceitação atenta não é resignação. Não é aceitar o inaceitável. Nem é uma desculpa para ser preguiçoso e não fazer nada com sua vida, seu tempo, seus talentos e seus dons inatos. (O trabalho significativo, seja remunerado ou não, é uma forma segura de promover a felicidade.) A atenção plena é uma “recuperação dos sentidos”, uma consciência que começa a vir à tona espontaneamen­te quando você reserva tempo para praticá-la. Ela permite que você ex­perimente o mundo pelos sentidos - com calma e sem espírito crítico. Proporciona uma grande sensação de perspectiva, que o ajuda a sentir o que é importante ou não.

No longo prazo, a atenção plena o encoraja a tratar a si mesmo e aos outros com compaixão. Isso o liberta da dor e da preocupação, e em seu lugar surge uma sensação de felicidade que se propaga à vida diária. Não é o tipo de felicidade que se dissipa à medida que você se torna imune às alegrias. Pelo contrário, é um estado permanente de contentamento que invade sua rotina.

Um dos aspectos mais espantosos da meditação da atenção plena é que você consegue ver seus efeitos positivos alterando o funcionamen­to cerebral. Avanços científicos recentes nos permitem ver que as áreas do cérebro associadas às emoções positivas - como felicidade, empatia e compaixão - se tornam mais fortes e ativas quando as pessoas meditam. As novas tecnologias de imagem conseguem mapear redes críticas do cérebro sendo ativadas, quase como se estivessem brilhando e vibrando com uma vida renovada. Com essa reenergização promovida pela me­ditação, a infelicidade, a ansiedade e o estresse começam a se dissolver, deixando uma sensação profunda de revigoramento. Mas você não pre­cisa passar anos meditando para constatar esses benefícios: cada minuto conta.

Pesquisas mostraram que já é possível sentir seus efeitos se você se dedicar à prática diária por um período de oito semanas.

Durante muitos anos acreditou-se que todos temos uma espécie de “termostato emocional”, que determina nosso grau de felicidade na vida. Presumivelmente, algumas pessoas teriam um temperamento feliz, en­quanto outras teriam um temperamento infeliz. Embora grandes acon­tecimentos, como a morte de um ente querido ou ganhar na loteria, possam alterar de forma significativa o nosso estado de humor, às vezes por semanas ou meses a fio, sempre se supôs que havia um ponto de referência ao qual retornaríamos. Esse ponto de referência emocional estaria codificado em nossos genes ou seria fixado na infância. Em ou­tras palavras: algumas pessoas nasciam felizes e outras não.

Anos atrás, porém, esse pressuposto foi abalado por Richard David­son, da Universidade de Wisconsin, e Jon Kabat-Zinn, da Faculdade de Medicina da Universidade de Massachusetts. Eles descobriram que a prática da atenção plena permitia às pessoas escaparem da atração gravitacional de seu ponto de referência emocional. O trabalho deles nos ofereceu a possibilidade extraordinária de alterar permanentemente nosso nível de felicidade.

Essa descoberta tem suas raízes no trabalho do Dr. Davidson sobre a indexação (ou mensuração) da felicidade de uma pessoa por meio do exame da atividade elétrica em diferentes partes do cérebro, usando sensores no couro cabeludo ou por meio de ressonância magnética. Ele descobriu que quando as pessoas estão emocionalmente perturba­das - zangadas, ansiosas ou deprimidas -, o córtex pré-frontal direito se ilumina mais do que a parte equivalente do cérebro situada à esquerda. Quando as pessoas estão num astral positivo - contentes, entusiasma­das, radiantes -, o córtex pré-frontal esquerdo se ilumina mais do que o direito. Essa pesquisa levou o Dr. Davidson a conceber um “índice de humor” baseado na relação entre a atividade elétrica nos cortices pré-frontais esquerdo e direito. Essa relação consegue prever seu estado de ânimo diário com grande precisão. É como dar uma espiada no termos­tato emocional - se a relação tende para a esquerda, é provável que você esteja feliz, contente e energizado. Esse é o sistema da “abordagem”. Se a relação tende para a direita, a probabilidade é de que você esteja mais sombrio, desanimado e sem energia. É o sistema da “fuga”.

Davidson e Kabat-Zinn decidiram estender o trabalho e examinar os efeitos da atenção plena nos termostatos emocionais de um grupo de trabalhadores de biotecnologia. Os voluntários praticaram a meditação da atenção plena por oito semanas. Então algo incrível aconteceu: eles não apenas ficaram menos ansiosos, mais contentes, mais energizados e mais envolvidos com seu trabalho, como também o índice de ativação do cérebro deles passou a tender para a esquerda. Surpreendentemente, o sistema da abordagem continuou operando mesmo quando eles fo­ram expostos a músicas melancólicas e a lembranças do passado que os deixavam tristes. A tristeza gerada nesses momentos deixou de ser vista como um inimigo e passou a ser encarada como algo amigável, passível de ser administrado. Ficou claro não só que a prática da atenção plena aumenta os níveis de felicidade (e reduz o estresse), como também que essa mudança se reflete na forma como o cérebro funciona. Isso sugere que a atenção plena tem efeitos positivos que criam raízes profundas no cérebro.

Outro benefício inesperado foi que o sistema imunológico dos vo­luntários se fortaleceu. Os pesquisadores ministraram uma injeção com o vírus da gripe nos participantes e depois mediram a concentração de anticorpos específicos que haviam sido produzidos por cada um. Aque­les cujo cérebro mostrava maior tendência ao sistema da abordagem tiveram o sistema de defesa mais estimulado.

Mas um trabalho ainda mais interessante estava por vir. A Dra. Sa­rah Lazar, do Hospital Geral de Massachusetts, descobriu que quando as pessoas continuam meditando por vários anos, essas mudanças po­sitivas alteram a estrutura física do cérebro. O termostato emocional é reiniciado - para melhor. Isso significa que, com o tempo, você terá mais tendência a se sentir feliz em vez de triste, despreocupado em vez de agressivo, energizado em vez de cansado e apático. Essa mudança nos circuitos cerebrais é mais pronunciada numa parte da superfície do cérebro conhecida como insula, que controla muitas das características centrais à nossa humanidade.

Numerosos testes clínicos mostram que esses efeitos positivos sobre o cérebro se traduzem em benefícios para a felicidade, o bem-estar e a saúde. Veja alguns exemplos a seguir.

Atenção plena e Reisiliência

Descobriu-se que a atenção plena aumenta a resiliência - ou seja, a capacidade de resistir aos golpes e reveses da vida - num grau conside­rável. Essa capacidade de resistência varia muito de pessoa para pessoa. Algumas se saem bem em desafios estressantes que intimidariam mui­tas outras, como bater altas metas de desempenho no trabalho, acampar no Polo Sul ou cuidar de três filhos, da casa e do emprego.

O que faz com que pessoas “resistentes” sejam capazes de enfrentar as adversidades enquanto as outras se desesperam diante delas? A Dra. Su­zanne Kobasa, da City University de Nova York, identificou três traços psicológicos envolvidos nesse processo: controle, compromisso e desa­fio. Outro psicólogo eminente. Dr. Aaron Antonovsky, também tentou definir os principais aspectos psicológicos que permitem que algumas pessoas suportem uma tensão extrema, enquanto outras não. Ele con­centrou seus estudos em sobreviventes do Holocausto e encontrou três traços que se combinam para gerar uma sensação de coerência: inteligibilidade, maneabilidade e significabilidade. Assim, as pessoas “fortes” acreditam que os acontecimentos têm um significado, que são capazes de manejar sua vida e que a situação é compreensível, ainda que pareça caótica e descontrolada.

De certa forma, todos os traços identificados por Kobasa e Anto­novsky definem nosso grau de resiliência. Em termos gerais, quanto mais forte for nossa tendência a essas características, maior será nossa capacidade de enfrentar as provações e adversidades da vida.

A equipe de Jon Kabat-Zinn, da Faculdade de Medicina da Univer­sidade de Massachusetts, decidiu testar se a meditação conseguia me­lhorar essa tendência e, portanto, aumentar a capacidade de resiliência das pessoas. Os resultados foram claros. Em geral, os participantes não apenas se sentiram mais felizes, mais energizados e menos estressa­dos, como também ganharam mais controle sobre sua vida. Descobri­ram que ela fazia sentido e que os desafios podiam ser vistos como oportunidades, não como ameaças. Outros estudos confirmaram essas descobertas.

Mas talvez a descoberta mais intrigante sobre o assunto seja que esses traços de personalidade não são imutáveis. Eles podem ser mudados para melhor em apenas oito semanas de treinamento em atenção ple­na. Essas transformações não devem ser subestimadas, pois têm uma enorme importância para nossa vida diária. A empatia, a compaixão e a serenidade são vitais para o nosso bem-estar, mas certo grau de força e resistência também é necessário. E a prática da atenção plena pode ter um papel crucial nesses aspectos da vida.

Os estudos realizados em laboratórios e clínicas do mundo inteiro es­tão mudando a maneira como os cientistas pensam sobre a mente e vêm aumentando a confiança das pessoas nos benefícios da atenção plena. Muitos praticantes contam que a meditação aumenta a alegria diária. Isso significa que mesmo as coisas mais simples podem voltar a ser cativantes.

Psicologia - Psicologia positiva
4/2/2022 2:45:28 PM | Por Giovanni Reale
A importância e significação da componente política do platonismo

Somente no nosso século compreendeu-se, em toda a sua rele­vância e em todo o seu alcance, a componente política do platonismo. Em primeiro lugar, foi reivindicada a autenticidade da Carta VII, na qual Platão diz expressamente, traçando a própria autobiografia, que a política foi a paixão dominante da sua vida. Na sua biografia de Platão, ora clássica, Wilamowitz-Moellendorff, explorando o conteú­do da Carta VII, verificou que Platão, em todo o arco da sua vida, alimentou essa paixão política. Finalmente, Jaeger deu o passo deci­sivo: procurou demonstrar (e o conseguiu, embora incorrendo em excessos) que o problema político não só constitui o interesse central do homem Platão, mas ainda a substância da própria filosofia platô­nica. Outros estudiosos aderiram a essa tese.

Sócrates nunca participara ativamente da vida política: não so­mente não sentia necessidade de ocupar-se com ela, mas a conside­rava algo oposto à sua natureza. Já Platão, seja por nobreza de nas­cimento, seja por tradição familiar, seja por vocação íntima e espiritual, sentiu-se desde jovem, poderosamente atraído para a vida política. Eis as afirmações explícitas da Carta VII:

Desde jovem [...] passei por uma experiência comum a muitos e me decidi firmemente a uma coisa: apenas em condição de dispor da minha vontade, logo dedicar-me à vida política1.

Mas logo o reteve na execução desse propósito a profunda cor­rupção dos homens de governo, dos seus costumes e das próprias leis, que descobriu serem injustas não só em Atenas, mas também fora de Atenas. Eis então as suas conclusões:

Observava esses fatos (referia-se a uma série de episódios de corrupção política que culminaram na condenação e morte de Sócrates), observava tam­bém os homens que agem na cena política, como também as leis e os cos­tumes. E quanto mais avançava nas minhas observações e quanto mais eu mesmo avançava em idade, tanto se me tornava mais clara a imensa dificul­dade para bem administrar a cidade. Era impossível a ação política sem a ajuda de pessoas amigas e de fiéis colaboradores. E não era coisa fácil en­contrar esses amigos e colaboradores entre os que nos eram próximos, pois a nossa cidade não era mais governada segundo os usos e costumes dos antepassados, e era difícil e até impossível conseguir novos colaboradores. Acrescente-se que legislações, costumes e tudo o mais se dissolvia com in­crível rapidez e de modo espantoso. Desta sorte, não obstante meu primeiro impulso no sentido de participar da vida política, considerando tudo o que acontecia e vendo que tudo e em todas as partes e de todas as maneiras era arrastado num incontrolável processo de corrupção, senti uma espécie de vertigem, mas não pensei em desviar meu olhar dos acontecimentos, na es­perança de que um dia seu curso se tornasse mais favorável (e não só cada um dos acontecimentos, mas, sobretudo, melhorasse o espírito das constitui­ções). No entanto, esperava sempre a melhor ocasião para agir. Acabei, as­sim, por abraçar num único olhar todas as cidades, afirmando que todas, sem exceção, sofrem em razão de maus governos. Em todas as partes, com efeito, as legislações apresentam condições que se podem chamar desesperadas; seriam necessárias reformas excepcionais, ajudadas pela boa fortuna. Em resumo, fui irresistivelmente levado a louvar a reta filosofia e a concluir que somente graças a ela é possível esperar ver um dia justa a política das cidades e justa a vida dos cidadãos. Sim, certamente as desgraças e desven­turas do gênero humano não conhecerão fim a não ser no dia em que ver­dadeiros e puros filósofos tenham acesso ao poder; no dia em que, por algum  dom de Deus, as classes dirigentes nas várias cidades sejam inflamadas pelo verdadeiro amor da sapiência, e sejam formadas por filósofos2.

Tal convicção amadureceu em Platão, como ele mesmo diz logo a seguir, nos anos em que pela primeira vez veio à Itália, ou seja, em torno dos quarenta anos, no momento da composição do Górgias. Esse diálogo é uma manifestação de misticismo e, ao mesmo tempo, manifestação de paixão política e a proclamação de uma nova con­cepção da política. A arte política e o conceito de Estado são redimensionados em função das instâncias do socratismo. Enquanto a velha política e o velho Estado tinham na “retórica” (no sentido clás­sico que já conhecemos) o seu instrumento mais poderoso, a nova e verdadeira política e o novo Estado deverão ter, ao contrário, seu instrumento na filosofia, porque ela representa o único caminho se­guro de acesso aos valores de justiça e de bem, que são o fundamento verdadeiro de toda política autêntica e, portanto, do verdadeiro Es­tado. Assim sendo, Platão não hesita em pôr nos lábios de Sócrates (com quem doravante se identifica) esse desafio:

Eu creio estar entre os poucos atenienses, para não dizer-me o único, que tentam a verdadeira arte política, e o único entre os que agora vivem, que a exercita3.

Diferença entre a concepção platônica e a concepção moderna da política

De tudo o que ressaltamos, fica claro que toda a obra do Platão “filósofo” pretende ser, juntamente, obra de “político” no sentido explicado. Por outra parte, os próprios títulos das obras que vêm depois do Górgias o confirmam: a obra-prima central do pensamento platônico é a República; no meio dos diálogos dialéticos tem lugar o Político; a última vasta obra na qual trabalhou nos anos da velhice são as Leis. Conhecidas são, de resto, as repetidas tentativas que  Platão fez junto aos tiranos de Siracusa Dionísio I e Dionísio II para realizar os ideais políticos que nele vinham amadurecendo. Contem­plar o Verdadeiro e dirigir a Academia não era o bastante para ele; estava profundamente convencido de que o Verdadeiro e o Bem contemplados devessem descer à realidade com o fim de torná-la melhor, devessem tornar-se politicamente efetivos.

No entanto, antes de examinar qual seja a reconstrução da Cida­de, idealizada por Platão, é necessário antepor um esclarecimento sobre a diferença radical entre a concepção platônica da política e a concepção moderna da mesma, com o fim de prevenir toda uma série de equívocos.

Platão está profundamente convencido de que toda forma de política que pretenda ser autêntica deve ter em vista o bem do homem; mas, a partir do momento em que o homem é concebido como sendo a sua alma, enquanto o corpo não é senão seu casulo passageiro e fenomênico, é claro que o verdadeiro bem do homem é o seu bem espiritual.

Está assim assinalada a linha de demarcação que divide a polí­tica verdadeira da falsa: a verdadeira política deve ter em vista o “cuidado da alma” (o cuidado do verdadeiro homem), enquanto a política falsa tem em vista o corpo, o prazer do corpo e tudo o que é relativo à dimensão inautêntica do homem. E já que não existe outro meio para “curar a alma” senão a filosofia, segue-se daqui a identificação de política e filosofia, bem como a identificação (con­siderada paradoxal, mas, no contexto platônico, simplesmente óbvia), de político e filósofo.

De outra parte, não eram somente os pressupostos do sistema platônico que levavam a essas conclusões: o homem grego esteve sempre convencido (ao menos até ao tempo de Platão e Aristóteles) de que o Estado e a lei do Estado constituíssem o paradigma de toda forma de vida, como bem o sabemos; o indivíduo era, substancialmente, o cidadão, e o valor e a virtude do homem eram o valor e a virtude do cidadão: a polis não era o horizonte relativo, mas sim o horizonte absoluto da vida do homem. Por essa razão, se aos ele­mentos acima examinados se acrescenta também esse dado, é fácil compreender como as conclusões platônicas fossem absolutamente inevitáveis.

Ao invés, nossa concepção da política situa-se nos antípodas da política platônica. De há muito o Estado renunciou a ser fonte de todas as normas que regulam a vida do indivíduo porque, de há muito, “indivíduo” e “cidadão” deixaram de identificar-se. Além dis­so, o Estado renunciou há muito à apropriação das esferas da vida interior dos cidadãos que interessavam a Platão acima de tudo, dei­xando à consciência dos indivíduos a livre decisão nesses assuntos. Mais ainda, hoje a economia e a aspiração comum pelo bem-estar condicionam de tal modo radicalmente a práxis e a teoria políticas que elas se limitam freqüentemente a pretender ser justamente aquele sistema de desenvolvimento dos bens e do bem-estar material no qual Platão via a fonte de todo mal. Em suma, somos filhos de Maquiavel e, sob certos aspectos, estamos mais avançados do que Maquiavel; professamos um realismo político que assinala a inversão mais radi­cal daquele idealismo político teorizado por Platão.

Fizemos essas observações no nível da análise estrutural, sem, portanto, enunciar juízos de valor; na medida em que pretendem contribuir para a compreensão histórica da concepção platônica, al­mejam levantar também uma dúvida crítica. É certo que Platão es­tava condicionado em dois sentidos: pelos pressupostos do seu sistema e por determinada visão histórico-social-cultural do Estado; nem uma nem outra podem repetir-se historicamente. Todavia, aci­ma desses condicionamentos, ele apontou para uma verdade que hoje, mais do que nunca, soa como uma advertência: uma política que, ao regular a vida em sociedade dos homens, abdique das di­mensões do espírito e estruture-se exclusivamente segundo as leis da dimensão material do homem, não poderá subsistir; as exigências do espírito, negadas ou reprimidas, cedo ou tarde tornam a impor-se inexoravelmente.

Filosofia - Filosofia Clássica
3/24/2022 5:41:23 PM | Por Danny Penman, Mark Williams
Pensamentos automáticos e sua influência em nossas emoções

Aparentemente, Lucy era uma representante de vendas bem-suce­dida de uma rede de lojas de roupas. Mas ela estava se sentindo paralisada. Às três da tarde, olhando pela janela do escritório, estres­sada, exausta e totalmente indisposta, ela se perguntava: "Por que não consigo fazer meu trabalho direito? Por que não consigo me concentrar? O que há de errado comigo? Estou tão cansada! Nem consigo pensar direito...". Lucy vinha se punindo com esses pensamentos autocríticos constan­temente. Mais cedo, naquele dia, ela tivera uma conversa longa e ansiosa com a professora do jardim de infância sobre sua filha, Emily, que an­dava chorando quando era deixada na escola. Depois, telefonou para o bombeiro para saber por que não tinha ido consertar a descarga que­brada em sua casa. Agora fitava uma planilha, sentindo-se sem energia e mastigando um muffin de chocolate no lugar do almoço.

As exigências e tensões na vida de Lucy estavam piorando gradual­mente nos últimos meses. O trabalho se tornava cada vez mais estressante e começava a se estender até bem depois do horário do expediente. As noites haviam se tornado insones, os dias, mais sonolentos. Seu cor­po começou a doer. A vida perdeu a alegria. Seguir em frente era uma luta. Ela já havia se sentido assim antes, mas sempre fora uma situação temporária. Jamais imaginara que aquilo poderia se tornar um aspecto permanente de sua vida.

Ela vivia se perguntando: O que aconteceu com a minha vida? Por que me sinto tão exausta? Eu deveria estar feliz. Eu costumava ser feliz. Para onde foi minha alegria?

A vida de Lucy girava em torno de excesso de trabalho, infelicidade, insatisfação e estresse. Ela fora privada de sua energia mental e física e se sentia perdida. Queria voltar a ser feliz e estar em paz consigo mesma, mas não tinha ideia de como chegar lá. Sua frustração não era grave a ponto de justificar uma ida ao médico, mas era suficiente para solapar o seu prazer de viver. Ela não vivia, apenas sobrevivia.

A história de Lucy não é um caso isolado. Ela é uma das milhões de pessoas que não estão deprimidas nem ansiosas na acepção médica - mas também não são felizes de verdade. O humor de todos nós passa por altos e baixos. Às vezes nosso estado de espírito muda de uma hora para outra, sem nem sabermos por quê: num momento estamos felizes, contentes e despreocupados, então algo sutil acontece e começamos a ficar estressados. Pensamos em nossas dificuldades, em todas as coisas que precisamos fazer, na falta de tempo para resolver tudo. O ritmo das exigências é cada vez mais implacável. Nesse estado, ficamos cansados o tempo todo, de forma que nem uma boa noite de sono nos revigora. E nos perguntamos: Como isso foi acontecer? Por que ficamos assim? Talvez não tenha havido nenhuma grande mudança em nossa vida: não perdemos um amigo, não nos endividamos de forma descontrolada. Nada mudou, mas de alguma forma a alegria desapareceu, sendo subs­tituída por uma espécie de aflição generalizada.

Na maior parte do tempo, as pessoas conseguem escapar dessa espiral descendente. Esses períodos difíceis costumam passar. No entanto, às vezes podem perdurar e nos levar para o fundo do poço. No caso de Lucy, a tristeza e a frustração duraram meses, sem qualquer razão apa­rente. Nas situações mais graves, a pessoa pode ser acometida por uma crise séria de ansiedade ou de depressão clínica.

Embora períodos persistentes de aflição e exaustão geralmente pare­çam surgir do nada, existem processos ocorrendo no fundo da mente que só se tornaram conhecidos na década de 1990. E essa descoberta trouxe a percepção de que podemos nos libertar das preocupações, da infelicidade, da ansiedade, do estresse, da exaustão e até da depressão.

Se você perguntasse a Lucy como estava se sentindo naquela tarde, ela teria dito que estava “exausta” ou “tensa”. À primeira vista, essas sen­sações parecem afirmações factuais, mas se olhasse para dentro de si mesma com mais atenção, Lucy teria percebido que não havia algo es­pecífico que pudesse ser rotulado de “exaustão” ou “tensão”. Ambas as emoções eram, na verdade, feixes de pensamentos, sentimentos, sensa­ções físicas e impulsos (como o desejo de gritar ou de sair correndo da sala). As emoções são assim: uma “cor de fundo” criada quando a mente funde pensamentos, sentimentos, impulsos e sensações físicas para evo­car um tema norteador ou estado mental geral. Todos os elementos que formam as emoções interagem entre si e podem intensificar o estado de humor geral. É uma dança intricada, cheia de ligações sutis que só agora começamos a entender.

Tomemos os pensamentos como exemplo. Algumas décadas atrás, acreditava-se que os pensamentos conseguiam mudar nosso estado de espírito e nossas emoções, mas a partir dos anos 1980 descobriu-se que o contrário também pode acontecer: nosso estado de espírito pode mudar nossos pensamentos. Na prática, isso significa que mesmo os momentos passageiros de tristeza podem acabar se autoalimentando para criar pensamentos negativos, definindo a maneira como você vê e interpreta o mundo. Assim como um céu nublado pode fazê-lo se sen­tir melancólico, uma pequena irritação pode trazer à tona lembranças ruins, aprofundando ainda mais seu nervosismo. O mesmo vale para outras emoções: se você se sente estressado, esse estado pode criar ainda mais estresse. Isso também acontece com a ansiedade, o medo, a raiva, e com emoções “positivas” como amor, felicidade, compaixão e empatia.

Mas não são apenas pensamentos e estados de ânimo que se alimen­tam mutuamente e destroem o bem-estar - o corpo também se envolve nesse processo. Isso acontece porque a mente não existe de forma isolada. Ela é uma parte fundamental do corpo, e ambos compartilham informa­ções emocionais entre si o tempo todo. Na verdade, grande parte do que o corpo sente é influenciado pelos pensamentos e pelas emoções, e tudo o que pensamos é influenciado pelo que está ocorrendo no corpo. Pesquisas recentes mostram que nossa perspectiva de vida pode ser alterada por mínimas mudanças corporais: atitudes sutis como fechar a cara, sorrir ou corrigir a postura podem ter um impacto enorme em nosso estado de espírito e em nossos pensamentos.

Para compreender melhor o poder da interação entre o corpo e o es­tado de humor, os psicólogos Fritz Strack, Leonard Martin e Sabine Stepper1 pediram a um grupo de pessoas que assistisse a desenhos ani­mados e depois avaliasse quão engraçados eram. Alguns voluntários tiveram que colocar um lápis entre os lábios, sendo forçados a franzi­dos e fazer uma cara triste. Outros assistiram aos desenhos com o lápis entre os dentes, simulando um sorriso. Os resultados foram impres­sionantes: aqueles forçados a sorrir acharam os desenhos bem mais engraçados do que aqueles obrigados a fechar a cara. Todos sabemos que sorrir demonstra que estamos felizes, mas, convenhamos: é sur­preendente descobrir que o ato de sorrir pode ele próprio torná-lo feliz. Esse é um exemplo perfeito de como são estreitos os vínculos entre a mente e o corpo.

Sorrir também é contagioso. Quando você vê alguém sorrindo, quase inevitavelmente sorri de volta. Pense nisto: o simples ato de sorrir pode deixá-lo contente (ainda que seja um sorriso forçado). E, se você sorrir, os outros sorrirão de volta, o que reforça sua felicidade. É um círculo virtuoso.

Mas também existe um círculo vicioso, que atua na direção oposta. Ao pressentirmos uma ameaça, ficamos tensos, prontos para lutar ou fugir. Essa reação de “luta ou fuga” não é consciente: é controlada por uma das partes mais “primitivas” do cérebro e, por isso, ele pode ser um pouco simplista na maneira de interpretar o perigo. O cérebro não faz distinção entre uma ameaça externa (como um tigre) e uma interna (como uma lembrança incômoda ou uma preocupação futura), tratan­do as duas como um perigo equivalente. Quando uma ameaça é detecta­da - seja real ou imaginária -, o corpo fica tenso e se prepara para entrar em ação. Isso pode se manifestar de várias formas, como rosto franzido, frio na barriga ou tensão nos ombros. A mente lê a reação do corpo e entende que está diante de uma ameaça (lembra como uma cara amar­rada pode fazê-lo se sentir triste?), o que faz o corpo tensionar ainda mais. O círculo vicioso começou.

Na prática, isso significa que, se você está se sentindo um pouco es­tressado ou vulnerável, uma pequena mudança emocional pode acabar arruinando seu dia - ou até mesmo lançá-lo num período prolongado de insatisfação ou preocupação. Essas mudanças costumam surgir do nada, deixando-o sem energia e se perguntando por que está tão infeliz.

Oliver Burkeman, colunista do jornal The Guardian, descobriu isso sozinho e escreveu sobre como pequenas sensações corporais se retroalimentavam para lançá-lo em uma espiral emocional descendente:

Geralmente sou feliz, mas de vez em quando sou atingido por um estado de infelicidade e ansiedade que se intensifica muito rápido. Nos piores dias, sou capaz de passar horas perdido em divagações angustiantes, refletindo sobre as grandes mudanças que preciso fazer em minha vida. De repente, percebo que me esqueci de almoçar. Como um sanduíche de atum e o mau humor desapa­rece. No entanto, minha primeira reação à sensação ruim nunca é pensar que estou com fome. Aparentemente, meu cérebro prefere se chatear com reflexões sobre a falta de sentido da existência a me direcionar até a geladeira.

Como Oliver Burkeman constatou em sua própria experiência, quase sempre essas “divagações angustiantes” se desfazem rápido. Algo atrai nosso olhar e nos faz sorrir - um amigo telefona, encontramos um bom filme passando na TV, tomamos uma deliciosa xícara de chocolate quente ou decidimos ir para a cama cedo. Em geral, toda vez que somos atingidos pelos turbilhões da vida, algo de bom acontece para restabe­lecer o equilíbrio. Mas nem sempre é assim. Às vezes o peso de nossa história entra em ação e adiciona uma carga emocional extra, já que nossas lembranças têm um impacto poderoso em nossos pensamentos, sentimentos, impulsos e, em última análise, em nosso corpo.

Vamos voltar ao exemplo de Lucy. Embora se descreva como uma pessoa “ambiciosa” e “relativamente bem-sucedida”, ela tem consciên­cia de que algo fundamental está faltando em sua vida. Ela conquistou quase tudo o que queria, por isso acha estranho que não se sinta feliz, contente e em paz consigo mesma. Constantemente repete a frase “Eu deveria estar feliz”, como se dizer isso fosse suficiente para expulsar a tristeza.

Os surtos de infelicidade de Lucy começaram na adolescência. Seus pais se separaram quando ela tinha 17 anos e a casa da família precisou ser vendida, forçando seus pais a se mudarem para locais não muito adequados. Lucy surpreendeu a todos por segurar a barra. É claro que no início ficou arrasada com o divórcio, mas logo aprendeu a tirar o foco dos problemas se empenhando nos estudos. Essa foi sua tábua de salvação. Tirou boas notas, entrou na faculdade e se formou com uma qualificação satisfatória. Seu primeiro emprego foi como trainee numa loja de roupas. Ao longo dos anos, foi subindo na hierarquia da empresa, até chegar a chefe de uma pequena equipe de representantes de vendas. Aos poucos, o trabalho dominou a vida de Lucy, deixando-a cada vez mais sem tempo para si mesma. Aconteceu tão lentamente que ela mal percebeu que deixava sua vida de lado. Ocorreram coisas boas também, é claro, como o casamento com Tom e o nascimento das duas filhas. Ela adorava sua família, mas não conseguia se livrar da sensação de que apenas algumas pessoas tinham direito de viver de forma plena. Sua impressão era de estar caminhando em areia movediça.

Essa areia movediça era sua rotina, seu estresse, seus padrões de pen­samentos e seus sentimentos do passado. Embora por fora Lucy pare­cesse uma pessoa de sucesso, por dentro ela morria de medo do fracas­so. Esse medo fazia com que qualquer mau humor passageiro desenca­deasse lembranças dolorosas, enquanto seu crítico interno dizia que era vergonhoso exibir tais fraquezas. Sensações vagas de insegurança aca­bavam despertando uma sucessão de sentimentos negativos do passado que pareciam bem reais e rapidamente assumiam vida própria, ativando outra onda de emoções nocivas.

Como Lucy atestará, é raro experimentarmos a tensão ou a tristeza isoladamente - raiva, irritabilidade, amargura, ciúmes e ódio às vezes estão ligados em um novelo intricado. Esses sentimentos podem até ser dirigidos aos outros, mas na maioria das vezes são voltados para nós mesmos, ainda que não percebamos. Ao longo da vida, esses emaranha­dos emocionais podem se tornar mais associados aos pensamentos, aos sentimentos, às sensações físicas e aos comportamentos. É assim que o passado consegue ter um efeito tão difuso no presente. Se ativamos uma chave emocional, as outras são ativadas em seguida (o mesmo ocor­re com as sensações físicas, como a dor). Tudo isso pode desencadear padrões de pensamento, comportamento e sentimentos que sabemos que são nocivos, mas que simplesmente não conseguimos evitar. E que, quando combinados, são capazes de transformar qualquer contratempo em uma tempestade emocional.

Aos poucos, o acionamento repetitivo de pensamentos e humores ne­gativos começa a abrir sulcos na mente. Com o tempo, esses sulcos se tornam mais profundos, fazendo com que os pensamentos negativos, a autocrítica, a melancolia e o medo se instalem com mais facilidade e se dissipem com mais esforço. A conseqüência disso é que os períodos prolongados de fragilidade podem ser desencadeados por coisas cada vez mais banais, como uma chateação momentânea ou uma baixa de energia - tão banais que às vezes nem as reconhecemos. Com frequên­cia, os pensamentos negativos aparecem disfarçados de perguntas duras que fazemos a nós mesmos: Por que estou tão infeliz? O que está aconte­cendo comigo? Onde será que errei? Onde isso vai acabar?

Os vínculos estreitos entre os diversos aspectos da emoção, que o tem­po todo recorrem ao passado, podem explicar por que um sentimento passageiro pode ter um efeito significativo sobre o estado de humor. Às vezes esses sentimentos chegam e partem tão rápido quanto uma rajada de vento. Outras vezes, no entanto, o estresse, a fadiga e o mau humor ficam grudados como adesivos em nossa mente, e nada parece ser capaz de arrancá-los dali. A impressão que se tem é que é justamente isso que está ocorrendo: a mente é ativada para entrar em alerta máximo, mas depois não consegue ser desativada, como deveria acontecer.

Uma boa forma de ilustrar esse processo é comparar a maneira como humanos e animais reagem diante do perigo. Tente se lembrar do últi­mo documentário sobre a vida selvagem a que assistiu na TV. Deve ter aparecido um rebanho de gazelas sendo caçado por um leopardo na savana africana. Aterrorizados, os animais correram feito loucos até que o leopardo capturou um deles ou desistiu da caçada naquele dia. Uma vez passado o perigo, as gazelas voltaram a pastar tranquilamente. Algo no cérebro delas foi acionado quando avistaram o leopardo e depois desativado quando a ameaça se dissipou.

Mas a mente humana é diferente, sobretudo quando se trata de amea­ças “intangíveis” capazes de desencadear ansiedade, estresse, preocupa­ção ou irritabilidade. Quando nos preocupamos ou tememos alguma coisa - seja ela real ou imaginária - nossas reações de luta ou fuga entram em ação. Mas aí algo mais ocorre: a mente começa a percor­rer nossas lembranças em busca de algo que explique por que nos sen­timos daquele jeito. Assim, se nos sentimos tensos ou em perigo, nossa mente desenterra memórias de ocasiões passadas em que nos sentimos ameaçados e depois cria cenários do que poderá ocorrer no futuro se não conseguirmos explicar o que está acontecendo agora. O resultado é que os sinais de alerta do cérebro são ativados não apenas pelo perigo atual, mas por ameaças passadas e preocupações futuras. Tal processo se dá de forma instantânea, sem que percebamos.

Estudos recentes feitos a partir de tomografias do cérebro confirmam que pessoas que sentem dificuldade de viver o presente e têm rotinas muito agitadas possuem uma amígdala cerebral (a parte primitiva do cérebro envolvida no instinto de luta ou fuga) em “alerta máximo” o tempo todo.2 Assim, quando trazemos à tona lembranças de ameaças e perdas antigas e as juntamos ao “perigo” atual, nosso mecanismo de luta ou fuga não é desativado quando a ameaça passa. Ao contrário das gazelas, não paramos de correr.

Então, a forma como reagimos pode transformar emoções temporá­rias e não problemáticas em dores persistentes e incômodas. Em suma, a mente pode acabar agravando a situação. Isso vale para muitos outros sentimentos do dia a dia. Eis um exemplo:

Enquanto está lendo este livro, veja se consegue perceber qualquer sinal de fadiga em seu corpo. Passe um momento observando-o a fun­do. Depois que tiver se conscientizado de seu cansaço, faça a si mesmo as seguintes perguntas: Por que estou me sentindo tão exausto?O que fiz de errado? O que essa sensação revela sobre mim? O que acontecerá se eu não conseguir me livrar dessa fadiga?

Reflita sobre essas questões por um tempo. Deixe-as ecoar em sua mente. Por que estou tão cansado? O que aconteceu comigo? O que vou fazer se permanecer assim?

Como se sente agora? Provavelmente pior. Acontece com todo mun­do, porque aliado a essas perguntas existe um desejo de se livrar da fadi­ga e de descobrir suas causas e conseqüências.3 O impulso de explicar e expulsar a exaustão deixou você mais exausto.

O mesmo vale para uma série de sentimentos, como a infelicidade, a ansiedade e o estresse. Quando estamos infelizes, é natural tentarmos descobrir a razão por nos sentirmos assim e procurarmos um meio de resolver esse “problema”. Mas tensão, infelicidade ou exaustão não são problemas que possam ser resolvidos. São emoções. Refletem estados da mente e do corpo. Como tais, não podem ser resolvidas - apenas sentidas. Se você as percebeu e abandonou a tendência de explicá-las ou resolvê-las, terá mais chances de vê-las desaparecer sozinhas, como a névoa numa manhã de primavera.

Isso lhe soa estranho? Deixe-me explicar melhor.

Quando você tenta resolver o “problema” da infelicidade (ou de qual­ quer outra emoção “negativa”), mobiliza uma das ferramentas mais poderosas da mente: o pensamento crítico racional. Funciona assim: você se vê num lugar (infeliz) e sabe onde deseja estar (feliz). Sua mente analisa o hiato entre os dois polos e tenta descobrir a melhor forma de transpô-lo. Para isso, usa seu modo Atuante (assim chamado porque é eficiente para resolver problemas e realizar tarefas), que reduz progres­sivamente o hiato entre onde você está e onde deseja chegar. Ele faz isso fragmentando o problema, resolvendo cada uma das partes e depois ve­rificando se isso o ajudou a se aproximar de seu objetivo. Esse processo é instantâneo e nem nos damos conta dele. É uma forma incrivelmente poderosa de resolver problemas: é assim que nos orientamos nas cidades desconhecidas, dirigimos carros e organizamos cronogramas de trabalho frenéticos. Numa escala maior, foi como os povos antigos construí­ram pirâmides e navegaram pelo mundo em veleiros primitivos.

Parece perfeitamente natural, portanto, aplicar essa abordagem para resolver o “problema” da infelicidade. Mas, na verdade, é a pior coisa que se pode fazer, pois requer que você se concentre no hiato entre como está e como gostaria de estar. Então você faz perguntas como: O que há de errado comigo? Onde foi que errei? Por que cometo sempre os mesmos erros? Esses questionamentos, além de duros e autodestrutivos, exigem que a mente forneça indícios para explicar seu descontentamento. E a mente é de fato brilhante em fornecer tais indícios.

Imagine-se passeando num belo parque em um dia de primavera. Você está feliz, mas, por alguma razão desconhecida, uma centelha de tristeza surge em sua mente. Pode ser por causa da fome, já que você não almo­çou, ou talvez porque você tenha se lembrado sem querer de alguma coisa incômoda. Após alguns minutos, você começa a se sentir um pouco aba­tido. Assim que percebe seu desânimo, pensa: O dia está lindo. O parque é maravilhoso. Gostaria de me sentir mais contente do que estou agora.

Repita: Gostaria de me sentir mais contente.

Como se sente depois disso? Provavelmente, ainda mais triste. Você se concentrou no hiato entre como se sente e como quer se sentir. E concentrar-se no hiato o realçou. A mente vê a distância entre os dois estados como um problema a ser resolvido. Essa abordagem é desastro­sa quando se trata das emoções, devido à interligação complexa entre pensamentos, emoções e sensações físicas. Todos se alimentam mutua­mente e podem conduzir sua mente em direções perturbadoras. Em pouco tempo, você se vê sufocado pelos próprios pensamentos. Você começa a analisar demais a situação, a remoer o sentimento, a se culpar por não se sentir feliz.

Seu estado de ânimo piora. Seu corpo fica tenso, seu rosto se franze e o desânimo se instala. Algumas dores podem surgir. Essas sensações realimentam sua mente, que se sente mais ameaçada. Seu astral pode cair a tal ponto que você deixa de aproveitar o passeio no parque e não presta mais atenção na beleza do dia.

Claro que ninguém fica remoendo os problemas porque acredita que é uma forma nociva de pensar. As pessoas acreditam que, preocupando-se o suficiente com sua infelicidade, acabarão encontrando uma solu­ção para ela. Mas as pesquisas provam o oposto: na verdade, remoer pensamentos reduz nossa capacidade de solucionar problemas, e é um artifício absolutamente inútil para lidar com dificuldades emocionais.

Os sinais são claros: remoer pensamentos é o problema, não a solução.

Escapando do círculo vicioso

Não dá para deter o fluxo de lembranças infelizes, monólogos inter­nos negativos e outras formas de pensamento prejudiciais - mas você pode evitar o que acontece a seguir. Como já dissemos, você pode im­]pedir que o círculo vicioso se autoalimente e desencadeie a próxima es­piral de pensamentos negativos. E pode fazer isso experimentando um jeito novo de se relacionar consigo mesmo e com o mundo. Se você pára e reflete por um momento, a mente não apenas pensa: ela tem consciência de que está pensando. Essa forma de pura consciência permite que você veja o mundo de outra maneira, de um ponto de vista distanciado, sem sofrer a interferência de seus pensamentos, sentimentos e emoções. É como estar numa montanha alta - um ponto de observação - da qual você pode ver tudo por quilômetros a sua volta.

A pura consciência transcende o pensamento. Permite que você cale a mente tagarela e iniba seus impulsos e emoções reativas. Possibilita que você olhe para o mundo com os olhos abertos. E quando faz isso, a sensação de contentamento reaparece em sua vida.

 

Psicologia - Psicologia positiva
O coxear de Hefesto
Hefesto na Forja, de Peter Paul Rubens [1577-1640]

Um dia Zeus (Júpiter) tornou-se rei dos deuses e acabaram os assassínios de deuses por deuses, mas continuaram a poder ferir-se uns aos outros. O deus da forja, Hefesto (Vulcano), coxeava ao caminhar, o que lhe tinha sido provocado pelo pai Zeus, ou pela mãe Hera (Juno) dependendo da versão da estória. Segundo uma delas, quando Hefesto nasceu a mãe achou que ele era o bebe mais feio do mundo e atirou com ele para fora do palácio e pelo Monte Olimpo abaixo, o que fez com que as pernas dele se partissem e torcessem para sempre na queda. Na outra versão, Hefesto era um bebê feio, mas a mãe não o rejeitou. Cresceu sem nunca ter sido ferido até ter sido suficientemente louco para se envolver numa discussão entre Hera e Zeus. Quando ele concordou com a mãe, o pai atirou-o montanha abaixo.

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1/19/2022 3:07:56 PM | Psicologia, n. 14
Fobia social

O transtorno de ansiedade social pode causar fobia extrema diante de coisas cotidianas, como falar ou comer em público.

Psicologia - Psicopatologia
9/14/2021 4:24:35 PM | Filosofia, n. 10
A farmácia de Epicuro

O hedonismo e a busca do prazer como receita de vida e finalidade da existência. Na cultura ocidental, o homem sempre se perguntou sobre o fim último da vida, e diversas respostas marcaram diferentes momentos da história de nossa civilização.

Filosofia - Filosofia Clássica
9/12/2021 4:24:36 PM | Filosofia, n. 10
Ouse saber

Ideário iluminista sepultou as trevas da Idade Média e postulou que o conhecimento, por meio do uso da razão, é o caminho para a emancipação do homem.

Filosofia - Filosofia moderna
9/11/2021 4:50:34 PM | Filosofia, n. 10
A superação do luto

Desde Freud, no clássico Luto e Melancolia, estu­damos o luto como sendo um processo doloroso do senti­mento da perda de um ente querido; de um sonho, como o da liberdade e dignidade huma­nas, por exemplo. Ou ainda, a perda do ideal de alguém, uma profunda decepção em relação à avaliação do caráter de uma pessoa que nos seja cara.

Filosofia - Filosofia moderna
Todas as matérias
A coruja de Atena

Existem muitas espécies de corujas. A de Atena (Minerva) é a coruja pequena e está tão fortemente associada à deusa que o nome científico desta coruja é Athene noctua. Atena era a deusa padroeira da cidade de Atenas
e a moeda da cidade, na era clássica, era cunhada com a imagem da coruja. A própria Atena é descrita como tendo «olhos de coruja», um sinal de sabedoria e de percetibilidade. Porém, nem todas as corujas são aves de sabedoria. A coruja de orelhas pequenas foi em tempos um homem, Ascálafo, metamorfoseado por Deméter (Ceres) para o punir por ter revelado que a filha Perséfone (Proserpina) tinha comido uma romã, o que a impediu de regressar ao mundo dos vivos.

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7/3/2022 3:40:46 PM | Por Robert Biswas-Diener, Todd B. Kashdan
O papel da intuição no bem-estar

Ao entrar numa livraria, você encontra uma estante, quando não uma seção inteira, de títulos que alardeam as vantagens de desenvolver mindfulness. Resumidamente, mindfulness é um es­tado de consciência plena. É saber observar o mundo à sua volta sem interferências de diálogo interno, julgamento e outras distra­ções. É conseguir ver um vestido como vermelho em vez de “lin­do”, ou ficar desapontado por alguma coisa em vez de se ver como “um fracasso”. Mindfulness está muito em moda. Phil Jackson, trei­nador que ganhou os maiores campeonatos da NBA em todos os tempos, era famoso por recomendar técnicas de mindfulness aos jogadores de basquete. Meditação mindfulness e concentração são usadas em psicoterapias, treinamentos esportivos e até no ramo dos negócios. Atualmente, mindfulness é aclamada como o estado ótimo do funcionamento humano.

Os entusiastas de mindfulness não são apenas uns poucos sob a influência de algum elixir da Nova Era. Há um crescente corpo de evidências científicas corroborando as vantagens da “observação tranqüila”, em oposição a julgamento e interpretação, daquilo que acontece no momento presente. Uma série de estudos mostra que pessoas com tendência a ser mindful na vida afirmam ter mais felicidade, encontram mais significado e propósito na vida, têm inteligência emocional superior, maior nível de autocompaixão e maior capacidade de lidar com situações de estresse crônico. Mindfulness, ao que parece, é bom demais.

Se você quiser dados específicos convincentes, não precisa ir além dos dois principais cientistas que foram instrumentais na popularização de práticas de mindfulness nos Estados Unidos, Jon Kabat-Zinn, da Universidade de Massachusetts Medical School, e Richard Davidson, da Universidade de Wisconsin.2 Kabat-Zinn é considerado o pai do movimento mindfulness norte-americano, e Davidson é famoso e altamente conceituado por seu pendor a usar ressonância magnética funcional e outros instrumentos de mapeamento cerebral para estudar os fundamentos biológicos e psicológicos de mindfulness. Num estudo recente, Kabat-Zinn e Davidson deram um curso de oito semanas para funcionários de uma empresa de biotecnologia. Após exporem muitos funcionários a um surto de gripe, constataram que os que haviam feito o curso apresentaram uma notável resistência à gripe.

Como se a maior imunidade não bastasse, os pesquisadores descobriram também mudanças concretas no cérebro daqueles funcionários após meras vinte horas de treinamento em mindfulness (duas horas e meia por semana). Constataram um aumento de 400% de ativação no lado esquerdo do córtex pré-frontal anterior.3 Você deve estar se perguntando: “Será que eu quero um córtex pré-frontal anterior mais ativado?” A resposta é sim. Essa é a região do cérebro associada a emoções positivas e à predisposição para ver o estresse mais como um desafio a ser enfrentado do que um perigo a ser evitado. Aqueles funcionários precisaram apenas do tempo que levariam assistindo a quatro jogos de futebol ou indo três vezes ao supermercado para modificar o cérebro de modo a ter maior sucesso. É correto dizer que mindfulness não é só ótimo; é realmente ótimo.

Se mindfulness é tão útil, por que não nascemos equipados para fazer isso com mais frequência? Há uma razão para os seres humanos terem evoluído de modo a passar uma enorme quantidade de tempo sendo mindless, distraídos. O pensamento consciente, que nos mantém atentos ao que está acontecendo no momento presente, tem uma capacidade de processamento muito limitada. Pense no esforço dispendido pelo cérebro quando passamos por alguém na rua. Estimamos a distância que estamos do corpo da pessoa, calculamos nossa velocidade e a dela, calculamos onde nosso corpo termina e o dela começa, para evitar um esbarrão, e enquanto tudo isso está acontecendo movemos magistralmente uma perna após a outra sem tropeçar em nada no chão, nem atropelar uma árvore em nosso espaço aéreo.

Quando você vê o rosto de alguém, decide imediatamente se é uma pessoa conhecida e, pela expressão dela, avalia se ela está feliz ou infeliz, se é amigável ou perigosa, querendo ou não parar para conversar. Essa função é ainda mais difícil porque, em vez de ficarem parados, os músculos faciais da pessoa se movem, mostrando expressões ligeiramente diferentes a cada poucos segundos, o que exige uma avaliação contínua. Se por acaso você conhece a pessoa, ainda precisa acessar funções de nível mais alto. Precisa lembrar o nome, o tipo de seu relacionamento com ela, lembrar o que conversaram em interações anteriores, e pôr em ação habilidades motoras finas de contato visual (nem de mais nem de menos), volume da voz, conteúdo verbal, e habilidades de audição e codificação exigidas para manter uma conversa. Se você precisasse proceder com atenção consciente e deliberada, jamais seria capaz de chegar ao fim dessa lista enorme de atividades.

A mente consciente é incapaz de manipular as camadas de dados complexos, dinâmicos, que nos inundam a cada momento. Um erro de processamento e você é atropelado por um carro em alta velocidade, fala um palavrão na frente das crianças, deixa escapar um segredo profissional, queima a mão no forno, comete um milhão de pequenas faltas. Por necessidade, muito desse processamento mental ocorre na velocidade do pensamento fora do radar da atenção consciente.

Neste capítulo, dizemos “mindless” para indicar um claro contraste da obsessão cultural de mindfulness como solução para boa saúde, bons relacionamentos e maior sucesso. As pessoas se sentem desconfortáveis com mindfulness porque é o oposto da intencionalidade, da estratégia e de todas as indicações de superioridade da inteligência humana. Uma longa tradição de intelectuais afirma que o bem viver é previdente e planejado. Mindlessness, pelo contrário, é a marca característica de, digamos, zumbis. Curiosamente, tomando o exemplo de zumbis, podemos encontrar uma ilustração das vantagens de mindlessness.

Steven Yeun faz o papel de Glenn na premiada série de televisão sobre o apocalipse de zumbis, The Walking Dead. Em quatro temporadas, o personagem de Steven se transforma de enérgico herói em esfalfado sobrevivente que foge com seus amigos de um ataque após outro de zumbis famintos de carne humana. Você pensaria que, como ator, Yeun deve dedicar uma quantidade considerável de atenção consciente às emoções, postura e atitudes do personagem. Isso deve se aplicar principalmente a cenas complicadas, quando ele finge pisotear um zumbi numa luta. Yeun diz que o segredo para fazer a cena parecer real é pensar como um zumbi, isto é, não pensar. Ele comenta que, se fosse ter o cuidado de calcular quantos centímetros de distância seu pé precisaria es­tar da cabeça do ator que representa o zumbi, a cena ficaria desco­nexa e artificial. Em vez de pensar muito firme e deliberadamente (concentração bruta), ou se fixar numa observação sem julgamen­to do que está ocorrendo no momento (mindfulness) para fazer bem seu papel, ele precisa atuar com um mínimo de reflexão conscien­te, exatamente como se comportaria se realmente estivesse andan­do pela rua tentando se livrar de um bando de zumbis comedores de cérebros. Ele precisa confiar no processamento automático, que se compõe de decisões intuitivas, instintivas, ações baseadas no bem projetado equipamento evolucionário, e em anos de pro­fissão (que Steven Yeun tem como ator). No centro da brilhante atuação de Yeun, está a capacidade de se perder - largar sua men­te consciente - totalmente e se tornar outra pessoa, o personagem tentando sobreviver ao apocalipse de zumbis num mundo alter­nativo onde milhões de telespectadores entram durante uma hora a cada semana.

As páginas a seguir exploram três áreas em que as pesquisas científicas sugerem que mindlessness pode ajudá-lo a ser mais pro­dutivo, criativo, e mais capaz de trilhar o tormentoso e ambíguo terreno da vida diária. Podemos definir mindlessness como um es­pectro que vai da distração à total imersão no inconsciente, mas isso não faria justiça ao tópico. Assim sendo, vamos expor três ti­pos de mindlessness que podem apontar o caminho do sucesso e bem-estar: 1) ligar o piloto automático, 2) partir para ações impul­sivas e 3) confiar em decisões mindless. As pessoas mais psicologi­camente flexíveis - e mais bem-sucedidas - têm a capacidade de transitar muito bem entre mindfulness e mindlessness, em vez de ficarem presas a um desses modos. Ao conhecer e usar intencionalmente esses caminhos, ainda que subestimados, você poderá ter aqueles 20% a mais, desperdiçados por quem permanece ligado à ideia de que mindfulness é melhor que mindlessness.

Três caminhos mindless para o sucesso e bem-estar

O pensamento consciente se mantém firme sob o farol [enquanto] o pensamento inconsciente se aventura pelas fendas e recantos escuros e poeirentos da mente - Dijksterhuis &Meurs, 2006

LIGAR O PILOTO AUTOMÁTICO

Para economizar espaço de computação no cérebro, as pessoas recorrem ao pensamento heurístico, isto é, usam atalhos cognitivos automáticos - e portanto mindless. Um modo comum de usar o pensamento heurístico é categorizar as coisas. Quando você vai ao correio, não vai ao balcão perguntar se o funcionário fala sua língua. Ele já foi categorizado como funcionário do correio e, como tal, você supõe que saiba muitas coisas (fala o idioma nacional, é alfabetizado, sabe o preço dos selos, pode responder a perguntas sobre formas de pagamento e assim por diante). A heurística poupa tempo e um valioso espaço cognitivo, pois não incomoda a mente consciente com exercícios desnecessários.

Pesquisas mostram que as pessoas são capazes de fazer julgamentos categóricos inconscientes sobre os outros com uma rapidez extraordinária.5 Num estudo sobre primeiras impressões, os participantes só levaram um décimo de segundo para tirar conclusões sobre a personalidade do outro. Nesse breve espaço de tempo, fizeram julgamentos sobre confiabilidade, estabilidade emocional, gentileza, entusiasmo, negligência, abertura a novas experiências e outros aspectos da personalidade. Se colocarmos esse nosso espantoso aparelho detector de personalidade em perspectiva, você levaria duzentas vezes mais tempo só para ler este parágrafo. Você deve estar se perguntando se essas avaliações tão rápidas são corretas. Numa ampla série de estudos, pesquisadores constataram que observações em “fatia fina” têm exatidão bem acima da média (cerca de 70% corretas).6 Resultado excelente para um pingo de tempo e esforço.

1. DETECTOR MINDLESS DE SITUAÇÕES SOCIAIS IMPRECISAS

Um aspecto importante do pensamento automático é determinar se uma pessoa desconhecida é ou não confiável. Essa difícil tarefa é essencial para relações comerciais e sociais, afora a segurança pessoal. Se errar, você pode ser lesado, atacado ou, no mínimo, perder um tempo enorme quando poderia estar alicerçando uma boa amizade com outra pessoa. Muitos cientistas acreditam que confiamos ou não conforme as reações da pessoa às nossas “deixas”. Quando o outro espelha nosso comportamento, é um sinal de que nossas necessidades, valores e bem-estar o afetam e despertam seu interesse.

Rick van Baaren e seus colegas da Universidade de Nijmegen viram que, quando garçons repetiam os pedidos dos clientes (um sinal claro de que o garçom estava atento), as gorjetas aumentavam em até 68%.7 Estamos certos de que era um ato mindless dos clientes (não calculavam ativamente quanto dinheiro deixar na mesa se o garçom repetia em voz alta seu pedido de um copo de água). Esse simples ato de repetir o pedido é um sinal sutil de que o garçom está atento, ciente e é confiável no contexto do restaurante.

Uma boa manutenção de interações sociais pode ser difícil, inclusive nas conversas em que você está fora de sintonia com a pessoa, ou quando sorri e se inclina para contar uma piada e a pessoa não se aproxima nem muda de expressão. Uma troca sem movimentos coordenados e algum grau de espelhamento é esquisita e desagradável. Pesquisadores afirmam, com razão, que gostamos mais da pessoa quando ela imita nosso humor e nossos gestos - não quando estão zombando, mas quando espelham sutilmente nossa postura, emoção e até o modo de falar. Por outro lado, essa imitação não é apropriada quando estamos competindo com alguém ou pedindo a um vendedor de automóveis uma orientação sobre o melhor carro para a família.

Psicólogos da Universidade de Groningen, da Universidade de Duke e da Universidade de Yale investigaram reações a “sinais sociais de nuanças negativas”.8 Num estudo, quando os participantes foram recebidos por um profissional muito formal e empertigado que tentou imitá-los durante uma interação social, ficaram “arrepiados” literalmente, sentindo 2,5 vezes mais frio do que quando a mesma pessoa não tentou imitá-los. Quando recebidos por uma pessoa amigável, brincalhona, os participantes a preferiam quando ela imitava seus gestos: sentiram duas vezes mais frio físico após passarem algum tempo com uma pessoa amigável que não os imitava, como se o corpo reconhecesse ali uma recepção fria.

Com essa perspectiva em mente, veja o que aconteceu num estudo em que participantes de diferentes grupos raciais interagiram, e depois pediram que eles adivinhassem qual era a temperatura do ambiente. Numa interação de pessoas da mesma raça, a ausência de imitação provocou uma sensação de frio, 2,04° mais frio, para sermos exatos. E, quando a interação se deu com uma pessoa de outra raça, foi a presença de imitação que provocou a sensação de 2,47° mais frio no ambiente. Esse e outros estudos similares são compatíveis com a ideia de que cada um de nós tem uma reação visceral a comportamentos desencontrados em certas situações. Dado que a imitação é tipicamente considerada um sinal de intimidade, é fácil entender que, quando alguém não está esperando intimidade, a imitação desperta suspeita. Pense na queda de temperatura psicológica como um levíssimo sinal, nas franjas da consciência, de que há maneiras menos ameaçadoras, menos incômodas de passar o tempo do que estar com aquela pessoa.

Essa forma de autoproteção mindless é cortesia de milhares de anos de evolução. Perguntado sobre a lição prática a ser extraída disso, o principal autor do estudo, Pontus Leander, diz:

E melhor não se “empenhar tanto” em adotar completamente, porque o tiro pode sair pela culatra (por exemplo, imitação numa interação inter-racial). Esses estudos mostram que é melhor deixar acontecer alguns processos automáticos. Fui criado numa região do Sul, e sempre ouvi dizerem “se está funcionando, não precisa consertar”; talvez isso se aplique especialmente à imitação.

Propomos a seguinte seqüência: 1) numa interação social com alguém que você mal conhece ou numa conversa sobre um assunto delicado, deixe o processo quase mindless acontecer; 2) faça um esforço consciente para notar qualquer mudança em seu próprio corpo; 3) observe se seu detector de perigo está ou não indo longe demais. Sim, estamos falando das vantagens complementares de começar com mindlessness e depois ir trazendo a atenção consciente para a situação entre você e o outro. Não estamos defendendo a necessidade de uma luta entre mindfulness e mindlessness. É um trabalho em conjunto, numa determinada ordem.

A primeira parte da seqüência, ligar o piloto automático, é o que nós, autores, nunca tínhamos considerado antes. Antes de escrever este livro, nenhum de nós tinha usado o fator de estimativa de temperatura ao tratar de negócios, em encontros amorosos ou em conversas com desconhecidos num saguão de hotel. Mas, agora, sim. Tomamos consciência das vantagens de mindlessness. Além de avaliar a aparência física, inteligência, curiosidade e simpatia, observamos se há alguma queda de temperatura física quando estamos perto de alguém. Antes seria normal exclamar “puxa, que frio!”, mas agora, quando sentimos um arrepio ou pensamos em buscar um agasalho, entramos em alerta. Estamos um pouquinho mais céticos, procurando algum sinal de perigo/manipulação, que antes não registrávamos conscientemente. De posse desses dados que ignorávamos, talvez tenhamos tomado decisões melhores ao contratar empregados e tomar um táxi em terra estrangeira.

2. AJUSTE MINDLESS DA EMOÇÃO

Curiosamente, o processamento automático também se aplica à emoção. Um ajuste saudável da emoção - a tentativa de controlar ou alterar o tipo, intensidade e expressão de nossas reações ao mundo - está vinculado às partes mais importantes do bem viver. Por exemplo: pesquisadores sugerem que falhas no ajuste das emoções são parcialmente responsáveis por problemas individuais como depressão, agressão, infidelidade, e, na esfera profissional, mau desempenho, roubo e assédio. Sabendo como é importante, e difícil, ajustar emoções intensas como raiva, medo, tristeza, vergonha, convém ponderar se o gerenciamento consciente das emoções exige esforço demais, e se é vagaroso demais para nos ajudar em situações fortes.

Situações fortes são aquelas em que somos tomados por emoções intensas e impelidos a tomar uma atitude, como você ver que um desconhecido se acerca de sua filha que está na fila do toalete no restaurante, murmura algo no ouvido da menina e acaricia o braço dela.9 Pense na vantagem de ser capaz de ajustar a emoção automaticamente, antes mesmo de você saber o que está sentindo, e amortecer o impulso de se entregar ao arrebatamento de uma ação impensada (nesse exemplo, dar um pulo da cadeira e pegar um garfo para cravar na mão do atrevido, e só então ficar sabendo que é o novo namorado dela). Que tal se a sua mente pudesse ser treinada para ajudar efetivamente, antes que você saiba que precisa de ajuda, numa situação dessas?

Em dois estudos, íris Mauss, da Universidade de Berkeley, e James Gross, da Universidade de Stanford, pediram a alguns participantes que reordenassem frases com palavras embutidas relacionadas ao gerenciamento de emoções, como “refrear”, “controlar”, “sossegar”, e deram a mesma tarefa a outros participantes com frases contendo palavras relacionadas a ímpetos emocionais, como “soltar”, “ferver”, “explodir”.10 Os pesquisadores queriam saber se a exposição dos participantes a essas palavras dissimuladas no texto interferia na maneira de lidarem com as emoções enquanto alguém - nesse caso um ator - tentava deliberadamente irritá-los. O ator mandou que contassem rapidamente as letras de um texto borrado enquanto lhes dizia que eram incompetentes, num tom de voz cada vez mais impaciente e enervante. Os par­ticipantes sugestionados subliminarmente a liberar as emoções sentiram 42,2% mais raiva do que os participantes sugestionados subliminarmente a manter as emoções sob controle. Um segundo estudo mostrou que os participantes expostos a palavras que aju­davam a controlar as emoções reagiam com pressão e batimentos cardíacos mais baixos quando o ator hostil se aproximava deles.

O que podemos aprender a partir desses resultados? Primei­ro: objetivos muito sofisticados, como tolerar pessoas hostis e nos­sos próprios aborrecimentos, podem ser alcançados sem qualquer ação consciente e deliberada de nossa parte. Segundo: esses atos mindless de ajuste da emoção parecem ser gratuitos, pois as pes­soas manifestam não só menos aborrecimento, mas também me­nos agravos fisiológicos. Terceiro: intervenções simples, breves e de baixo custo podem nos induzir a reações mais saudáveis em situações sociais difíceis.12 Isso indica que já existe um forte siste­ma mindless em funcionamento, regulando nossas emoções, e que, aprendendo a influenciá-lo, podemos aumentar suas vantagens.

3. CRIATIVIDADE MINDLESS

Inovação é uma palavra muito popular no mundo empresarial e na educação, pois tem a vantagem de ser tangível, mensurável, e resulta em idéias criativas que podem ser implantadas fisicamen­te, no mundo real. Elon Musk, o gênio por trás dos carros elétricos Tesla e da SpaceX, é um exemplo perfeito de como o ardor criati­vo pode ser a peça central das empresas. De fato, muitas empresas - especialmente as chamadas “empresas maduras” - estão sempre prontas a investir muito dinheiro em consultorias inovadoras pa­ra seus produtos e gestão, e outro tanto em cursos de desenvolvimento de criatividade para seus funcionários. Na maioria desses cursos, o foco é improvisar, correr riscos e aceitar pequenos fracassos. Até aí, nada contra.

Muitas oficinas de criatividade também são regidas pela ideia de que você pode se tornar criativo propositadamente; quanto mais mindful você for, mais receptivo estará a inspirações criativas. Mindfulness é atraente porque está associada a uma ação deliberada, tranqüila, dependendo somente do seu interesse e afinco. Isso combina com a noção de que uma vida bem vivida não deve - nem pode - ser fácil. A mensagem cultural é clara, porém enganosa. Pesquisadores se esforçam para identificar um problema em pessoas que devaneiam e, por isso, se mostram incapazes de controlar a mente. Seu filho tem um problema porque devaneia na sala de aula enquanto o professor está falando? Um artigo do psicólogo Scott Barry Kaufman sobre mindlessness construtiva contraria pesquisas e opiniões que menosprezam momentos mindless e devaneios em sala de aula:13

Essa perspectiva faz sentido quando o devaneio é observado por um terceiro, e quando os prejuízos são medidos segundo padrões impostos externamente, como rapidez ou exatidão de processamento, fluência ou compreensão de texto, persistência da atenção e outros padrões de medida externos.

Entretanto, há outra maneira de ver o devaneio, numa perspectiva pessoal, se você quiser... Nossa mente vagueia, de propósito ou por acaso, porque há uma compensação tangível, mensurada em objetivos e aspirações que têm um significado pessoal. Precisar reler três vezes a mesma linha porque seu pensamento voou não tem importância, se esse voo levou sua atenção a uma descoberta interna, a uma lembrança deliciosa ou a dar novo significado a um evento desagradável...

Fazer uma pausa para reflexão no meio de uma história é irrelevante se essa pausa nos permite evocar um acontecimento que torna a história mais sugestiva e interessante. Enquanto dirigimos, perder uns minutinhos porque não pegamos a rampa de saída é um inconveniente desprezível se o lapso de atenção nos permitir entender, finalmente, por que o chefe ficou tão chateado com o que dissemos na reunião da semana passada. Chegar em casa sem trazer os ovos que saímos só para comprar é uma contrariedade muito pequena se o esquecimento foi devido à decisão de mudar de emprego, pedir um aumento de salário, ou voltar a estudar.

Dessa perspectiva pessoal, é muito mais fácil entender por que as pessoas são levadas a devanear e investem quase 50% do tempo deixando a mente vagar.14

Um ponto desse artigo encontra eco num ensaio sobre preguiça de Thomas Pynchon, que diz:

... o que Tomás de Aquino denomina Inquietude da Mente ou “correr atrás de várias coisas sem que nem pra que... se pertence ao poder da imaginação... chama-se curiosidade”. Decerto, é precisamente nesses episódios de viagem mental que os escritores produzem boas obras, às vezes as melhores, solucionando problemas formais, recebendo orientação do Além, tendo aventuras hipnagógicas que, com sorte, podem ser recuperadas.15

Imagine se nossa mente fosse privada da capacidade de sair dos trilhos. Se não pudéssemos resistir ao impulso de cumprir as obrigações imediatas, seriamos mais felizes? Seriamos mais felizes e bem-sucedidos com um controle autoritário de por onde anda nossa mente? O passatempo mindless é indispensável à consciência de si, à reflexão e ao planejamento. Pode-se argumentar que nosso cérebro exige uma atividade de livre flutuação mental para revelar, descobrir e consolidar informações, assim como nosso corpo físico exige sono adequado, exercícios e vitamina D.

Antes de investir numa especialização, pense nesse fruto ao seu alcance, o ocioso estado mindless, como a gestação de uma criativa visão interna. Afinal, há muito tempo a criatividade é associada a uma incubação inconsciente, e essa ideia é apoiada por laureados pelo Prêmio Nobel e artistas famosos.16 Você provavelmente conhece a ideia do “ah-ah”, o momento de revelação que traz subitamente a solução de um problema, ou uma ideia relevante, quando menos se espera. Pode-se pensar que há algo de criativo na falta de atenção. Pesquisas apoiam a ideia de que a criatividade está sempre à nossa espreita.

Segundo David Greenberg, autor de Presidential Doodles, documentos históricos revelam que 26 dos 44 presidentes dos Estados Unidos ficavam rabiscando enquanto a mente vagava e os negócios de Estado (reforma tributária?) não prendiam sua atenção. Mas não entenda isso como um desperdício porque os cientistas constataram que, em comparação com quem não rabisca, os rabiscadores apresentam quase 25% a mais de lembrança do que aconteceu enquanto rabiscavam.17 Pode parecer contraditório que alguma coisa que “distrai” na verdade mantém a pessoa ativa, mas rabiscar exige apenas atenção mindless, mantendo a pessoa alerta e ao mesmo tempo recarregando a energia mental que, não fosse isso, estaria sendo drenada por um discurso enfadonho. Infelizmente, professores, pais e gerentes muitas vezes acham que rabiscar é desrespeito e, portanto, deve ser desestimulado.

E se professores e gerentes partissem de outra premissa? E se estimulassem atividades mindless para contrabalançar a intensidade da atenção? Já é possível encontrar esse exemplo em empresas e escolas que colocam uma música suave de fundo enquanto as pessoas trabalham. Pesquisas mostram que isso melhora a concentração, proporcionando um ambiente de calma que favorece a continuidade das atividades.18 Um exemplo menos óbvio pode ser encontrado na prática de admitir que pilotos de avião durmam um pouco durante o voo. Imagine a longa viagem de Washington D.C. a Sydney, na Austrália. Você espera ter certos confortos - um travesseiro, um filme, o toalete com a descarga funcionando e a tripulação acordada.19 Felizmente, ninguém lhe diz que o comandante está tirando uma soneca de 25 minutos enquanto o avião cruza os ares sobre o mar. Mas não se preocupe. Num estudo, pesquisadores da NASA constataram que pilotos que dormem durante o voo tomam decisões 20% mais rápidas e cometem 34% menos erros quando acordam. O valor estratégico de desligar a mente para recarregar não pode ser subestimado. Onde mais você pode obter 34% mensuráveis de melhor desempenho numa atividade, em menos de 26 minutos?

Para saber mais sobre a vantagem de desligar a atenção consciente, procuramos o dr. Andrei Medvedev, professor no Georgetown University Center for Functional and Molecular Imaging.20 Em 2012, sua equipe monitorou a atividade cerebral de adultos enquanto faziam a sesta. Constataram que, nesses períodos de sono, o hemisfério direito - altamente associado ao pensamento criativo - se comunica frequentemente com o lado esquerdo do cérebro. Medvedev especula que enquanto o corpo descansa o he­misfério direito faz uma verdadeira arrumação da casa, transfe­rindo informações e experiências recentes para o armazenamento de memória de longo prazo.

É o mesmo que programar seu computador para salvar arqui­vos importantes e deletar informações desnecessárias enquanto você não o está usando, exceto que algo diferente acontece nessa catalogação mental. Colisões acidentais com lembranças antigas resultam em combinações originais e até bizarras. Quando es­tamos dormindo, o editor dentro de nós está de folga, não pode avisar que certas idéias são proibidas, nem apagá-las por serem impraticáveis. Seria maravilhoso se cada combinação de pensa­mentos produzisse uma descoberta criativa, mas, em geral, essa sopa conceitual é intragável. Isso é esperado, e precisa ser respei­tado. Não podemos contar com uma fileira de idéias cinco estre­las; só precisamos de uma ideia interessante de vez em quando.

A criatividade surge das mais estranhas atividades mindless. Quando pesquisadores investigaram as origens das idéias mais criativas produzidas por 104 especialistas em relações públicas para empresas do Reino Unido, não encontraram ali um manan­cial de originalidade.21 A ida e volta do trabalho ganharam o título de musa das idéias, e em segundo lugar, quase empatados, fica­ram o banho ou a chuveirada. Essas ocasiões são Focos de Criação Acidental (FCAs). Para sermos criativos, precisamos aproveitar ao máximo esses e outros FCAs, que podem ser cuidar das plantas, lavar os pratos, dar uma caminhada ou levar o cachorro ao parque.

Uma observação importante: a atividade mindless, por si só, não basta para a ocorrência da criatividade. Se assim fosse, se­riamos todos Georgia O’Keeffe ou Ernest Hemingway, bastando deixar a mente vagar enquanto lavamos a louça. No entanto, a atividade mindless é o solo fértil em que as melhores idéias criam raízes. Pesquisadores descobriram, por exemplo, que as pessoas mais criativas, e as que mais investem em aprimorar o produto de sua criatividade, recorrem instintivamente a estados não conscientes para ter inspiração.22 Elas têm uma aptidão particular para filtrar os sonhos e incorporar esse material à vida desperta. Portanto, planeje não planejar, passando algum tempo longe de atividades em que a mente insiste em tentar criar. E esteja pronto a captar idéias a qualquer momento, em qualquer lugar, tendo sempre um gravador à mão.

AGIR POR IMPULSO

Se você gosta de uma pessoa engraçada e muito franca, você a classifica de “espontânea” e, se não gosta, você se refere ao mesmo conjunto de comportamentos como “impulsivos”. Temos uma relação ambígua com atividades no “calor do momento”. Por um lado, tendemos a vê-las como engraçadas, e, por outro lado, podem parecer bobas. Uma das razões da má fama da impulsividade é que não prestamos muita atenção nas situações em que a ação impulsiva dá bons resultados. Considere o seguinte: uma grande tempestade de inverno está se aproximando, prevista para chegar daí a alguns dias. Em vez de passar um dia inteiro trancado em casa com seus três filhos pequenos, você clica naquele site de promoções de viagem e reserva passagens para a família passar um delicioso fim de semana em Aruba. Bater os olhos num livro de capa esquisita e comprar por um preço irrisório, entrar por instinto num bar novo, encontrar sua laboriosa pessoa amada estendendo roupa no varal e transar apaixonadamente em cima da máquina de lavar, ter uma conversa interessante com uma pessoa totalmente desconhecida, pedir licença aos amigos e subir no palco de karaokê para cantar sua canção favorita - reações impulsivas e atividades inesperadas, apesar de arriscadas, podem ter grande sucesso e ser agradáveis. Isso acontece exatamente porque não são programadas e a incerteza do resultado contribui para uma mescla de ansiedade e curiosidade que nos faz sentir vivos e inteiros - sem afetação, sem se preocupar em causar boa impressão.

1. O EFEITO LIBERADOR DE PERDER O CONTROLE

Imagine ser arrastado para uma conversa sobre um assunto polêmico: legalizar a maconha, reduzir o número de bombeiros e policiais para cortes no orçamento municipal, decidir quem herda o quê quando vovô morrer. Esses tópicos são controversos devido à sua importância para as pessoas diretamente afetadas. Em locais de trabalho politicamente carregados, um dos assuntos mais delicados é a diversidade. Muitos países ocidentais, modernos, industrializados, concordam que a inclusão baseada em raça, sexo, orientação sexual, religião, nacionalidade e status econômico não só é justa como valiosa.

Nicky Garcea, consultora administrativa na Inglaterra, passou anos coordenando programas sobre diversidade. Ela chegava a uma empresa, reunia os funcionários e passavam horas em workshops sobre a importância de respeitar as diferenças, mas não tardou a se desencantar com essa abordagem. “Mostrar que todo mundo era diferente”, ela confessou, “era uma garantia de que cada funcionário passaria a ser rotulado de mulher, indiano ou gay.”

Muitos de nós ficamos divididos entre querer agir como se não houvesse absolutamente diferenças entre as pessoas e falar sobre possíveis diferenças com sensibilidade e respeito. O problema de tomar tanto cuidado ao escolher as palavras é a quantidade de energia mental exigida. Um homem branco, por exemplo, pode gastar muita energia conduzindo uma conversa com uma mulher negra para temas leves, inócuos, superficiais. Ambos se sentem enojados ao reconhecer que, na verdade, o importante é o que não está sendo dito. Duas pessoas bem-intencionadas acabam criando uma interação forçada, que exige muito esforço e energia.23

Mas e se fosse possível esgotar a energia da pessoa antes da conversa, de modo que ela não tivesse mais pique para ocultar, sufocar ou deixar escapar o que está pensando?24 Seria preciso que os funcionários corressem meia maratona ou fizessem todas as palavras cruzadas do jornal de domingo antes do trabalho. Num estudo, os cientistas determinaram que os sujeitos fizessem algo desafiador em termos físicos ou intelectuais antes de uma conversa potencialmente delicada com um membro de outro grupo étnico. Mentalmente exaustos, os sujeitos se livraram da difícil tentativa de falar a coisa certa, ficaram menos inibidos numa conversa sobre diferenças raciais com alguém de outra raça, e tiveram uma interação 25,4% melhor. Além disso, se sentiram menos alvo de preconceito por observadores negros que assistiram aos vídeos da interação. Os participantes, cansados, desinibidos, tiveram 72,6% mais facilidade de conversar francamente sobre diversidade e lidar efetivamente com esse tema delicado.

Um apoio adicional ao valor de ações impulsivas, ou não comedidas, vem de uma fonte inusitada: o declínio cognitivo na idade avançada, que precede doenças cerebrais degenerativas.25 Num estudo, os pesquisadores disseram a jovens adultos (de 19 anos em média) e a adultos idosos (de 73 anos em média) que eles faziam parte de um programa da comunidade para aconselhamento de adolescentes com problemas. Todos foram levados a acreditar que essa iniciativa visava a aconselhar um adolescente por meio de vídeos de entrevistas com pessoas comuns (e não com terapeutas) sobre a adolescência que essas pessoas comuns tinham vivido. Os participantes selecionaram uma entre várias fichas de adolescentes, sem saber que todas continham a mesma informação: uma menina obesa que sofria de insônia, bullying, incapacidade de fazer amigos e desinteresse na escola.

Quando disseram aos sujeitos para pensar no que desejavam dizer, os idosos demonstraram maior franqueza, falando diretamente que a menina era gorda e feia, e contaram como tinham sofrido na adolescência, como haviam lidado com isso e o quanto tinham aprendido com a rejeição e o fracasso. Os jovens foram mais cautelosos: 70% nem mencionaram a gordura da garota. Curiosamente, os idosos com o mais fraco funcionamento cognitivo (medido por um exame neuropsicológico abrangente) foram os mais abertos, com 80% falando na gordura da menina e dando mais conselhos.

Os pesquisadores pediram a dois médicos famosos, especialistas em obesidade, que assistissem ao filme das entrevistas e avaliassem a qualidade dos conselhos. Os conselhos dos idosos com menor capacidade cognitiva foram julgados melhores do que os conselhos dos jovens, que tinham maior capacidade cognitiva. A falta de inibição deixou os velhos mais acessíveis, empáticos, cooperativos, e dispostos a abordar o desconfortável fato da obesidade da garota e suas dificuldades sociais por causa disso. No artigo intitulado “The risk of polite misunderstandings”, Jean-François Bonnefon e seus colegas concluem:26 A polidez gasta recursos mentais e cria confusão sobre o verdadeiro significado.

Embora essa confusão seja funcional em situações corri­queiras, pode ter conseqüências indesejáveis em situações de alto risco, como pilotar um avião em caso de emergência ou ajudar um paciente a optar por um tratamento.

Aconselhar e servir de mentor são papéis de liderança funda­mentais para pais, professores e executivos. A incapacidade de abordar assuntos delicados aumenta a probabilidade de malogro no trabalho, erosão de relacionamentos, perda de tempo e de di­nheiro, devido à comunicação inadequada. Não evite essas conversas tão temidas. Experimente falar quando estiver um pouco cansado, com as defesas naturais em baixa. Isso vai ajudá-lo a to­lerar o desconforto e se valer de sentimentos menos convencionais.

DECISÕES MINDLESS

Desafiamos você a passar oito horas sem tomar decisões instantâ­neas. Não mudar de faixa no trânsito, não convidar alguém que você acabou de conhecer para almoçar, não expor um pensamento antes que seja bem analisado, não enviar e-mails apressados e, certamente, não comentar imediatamente alguma coisa postada no Facebook. Apostamos que você não consegue durante as oito horas. Imaginamos que consiga durante uma hora. Se você estiver num shopping center ou assistindo à televisão, reduzimos para dois minutos.

As pessoas tendem a trabalhar decisões importantes. Gosta­mos de ter trabalho com nossas escolhas, calcular custo-benefício, consultar especialistas, fazer programações, quando bastaria uma boa noite de sono para resolver o assunto. Uma abordagem mais intuitiva pode parecer quase Nova Era porque se baseia na existência do inconsciente e na crença em que o fantasma na máquina, a mente inconsciente, é capaz de dar conta das decisões enquanto a mente consciente está ocupada com outras coisas. Segundo o princípio de capacidade do cérebro, quando há excesso de dados a serem digeridos, o pensamento consciente fica confinado ao trabalho de processar todas as informações, integrando-as, apelando para os conhecimentos e experiências, comparando-as e contrastando as escolhas possíveis até chegar a uma decisão. O pensamento mindless não tem essas restrições porque ocorre fora da consciência. Isso nos traz uma regra de ouro contraintuitiva: quando é preciso tomar uma decisão complexa, após reunir informações na mente consciente, evite pensar nelas conscientemente. Não tenha pressa, deixe o inconsciente resolver.27

Nenhum autor enuncia melhor essa regra do que Ap Dijksterhuis.28 Esse psicólogo holandês passou anos estudando a inteligência inconsciente. Em um estudo muito interessante, Dijksterhuis investigou se torcedores fanáticos por futebol, com seus conhecimentos obsessivos do esporte, eram mais capazes de acertar qual time seria vencedor do que adultos sem maiores conhecimentos, que usavam mais as seções de esportes dos jornais para embrulhar o lixo do que para ler.29 Ele fez uma breve exposição estatística de gols, jogadas, passes perfeitos, dribles e segredos de vários times de futebol. Dijksterhuis queria saber como os dois grupos utilizavam essas informações.

Tendo tempo suficiente para avaliar todos esses dados sobre a performance dos times, os fanáticos tiveram melhor desempenho que os neófitos. Já era de se esperar, pois eles usaram as informações que obtinham diariamente. Mas algo estranho aconteceu quando Dijksterhuis mudou o procedimento. Deixou os sujeitos pensarem durante dois minutos apenas e, para evitar que continuassem a pensar em futebol, pediu que resolvessem complicadas equações de álgebra. Enquanto tentavam solucionar os complexos problemas de matemática, Dijksterhuis os interrompeu, pedindo que respondessem rapidamente quais times seriam vitoriosos no próximo campeonato. Nesse momento, os neófitos acertaram mais que os fanáticos! Por quê? Porque, na ausência de uma grande quantidade de dados, os neófitos confiaram nas informações que, bem diante de seus olhos, lhes chamaram a atenção, como passes perfeitos em condições de chuva e vento, uma estatística que os fanáticos devem ter negligenciado. Os neófitos basearam essa reação intuitiva em informações inusitadas, que foram sublinhadas e marcadas em negrito pelo cérebro. Como os fanáticos tinham um grande acúmulo de fatos sobre futebol estocados no cérebro, “a dica” ali à sua frente não se destacou. É muito difícil desaprender fatos antigos e descartar idéias preconcebidas, e eles precisariam ter feito isso rapidamente a fim de absorver novos fatos.

Os resultados da pesquisa sobre futebol não se limitam ao mundo dos esportes. A decisão instintiva é relevante também para uma pessoa doente escolher o médico, um adulto obeso escolher dietas e exercícios, médicos diagnosticarem doenças graves. Em um estudo similar, pediu-se a adultos com pós-graduação em psicologia para determinar se um paciente tinha algum distúrbio psicológico e, se tivesse, qual seria o diagnóstico.30 Em uma sessão, os psicólogos leram a descrição do caso de um paciente e tiveram quatro minutos para ponderar antes de formar uma opinião. Em outra sessão, tiveram que processar inconscientemente as informações sobre o caso enquanto faziam um jogo de caça-palavras durante quatro minutos. As opiniões foram piores quando tiveram os quatro minutos para pensar. De fato, as opiniões mais mindless foram cinco vezes mais corretas do que as ponderadas.31

Vemos assim que há nítidas vantagens no pensamento inconsciente, especialmente quando se trata de dissecar, manipular e sintetizar grandes quantidades de informação. Mas, certamente, há também nítidas vantagens no pensamento consciente. Se você acha que ter uma janela que dá para campos verdejantes e belas árvores é importante para sua qualidade de vida no trabalho, por exemplo, é preciso ter isso na mente consciente quando lhe oferecerem um escritório muito maior, com elegantes cadeiras ergonômicas e sem vista para o mundo externo. Caso contrário, você pode se deixar levar pelo entusiasmo de ter tanto espaço e depois se surpreender com o abrupto declínio de seu ânimo nos meses seguintes sem janela. Então, entre os dois, qual é o melhor para você?

Vejamos o problema de escolher um apartamento para alugar, que é uma decisão da maior importância. Será fácil se o apartamento tiver todos os requisitos: preço baixo, quartos amplos, banheiro com banheira, bons armários, varanda, perto de shoppings e transporte público, num bairro com ótimos restaurantes, parques e baixa criminalidade. E - ah, sim - que tenha conforto para seu bichinho de estimação. Na vida real, encontrar um apartamento é um exercício de concessões. Você tem um closet enorme, mas não tem parque; cozinha moderna, mas não tem pia dupla. Muita gente entra num jogo mental de troca-troca, num esforço para tomar uma decisão feliz.

Em 2011, Dijksterhuis e seus colegas conduziram um experimento em que os participantes tinham que fazer uma entre duas escolhas ideais dentre 12 apartamentos possíveis.32 Mas, tal como no mundo real, nenhum era perfeito. Os melhores apartamentos tinham oito características positivas e quatro negativas, e os piores tinham quatro características positivas e oito negativas. Quando as pessoas precisaram tomar uma decisão imediatamente após receber informações sobre cada apartamento, houve somente 15% de acertos na melhor opção. Quando tiveram quatro minutos para ponderar sobre cada apartamento, os acertos na melhor opção chegaram a 29%. Isso indica que a ponderação se sobrepõe à escolha impulsiva, mas nenhuma das duas parece ser totalmente satisfatória.

Curiosamente, numa terceira sessão, quando os participantes ficaram distraídos fazendo palavras cruzadas sem relação com o tema e então tiveram que tomar a decisão, o resultado foi 30% de acertos na melhor opção. Mas realmente interessante foi o que aconteceu quando os participantes puderam passar dois minutos pensando conscientemente em cada apartamento e depois sua atenção foi desviada para jogos de palavras, irrelevantes, porém difíceis, que precisavam solucionar em dois minutos. Depois de passar metade do tempo ponderando conscientemente antes de tomar uma rápida decisão mindless após um cansativo jogo de palavras, alcançaram 58% de acertos na melhor opção. Eles tinham passado apenas metade do tempo analisando cada apartamento e a decisão foi duas vezes melhor!

Esses mesmos pesquisadores constataram que a melhor estratégia é aproveitar os pontos positivos do pensamento consciente e inconsciente. Mas deram um passo adiante ao descobrir a importância da ordem seqüencial de pensamento consciente e inconsciente. Quando os possíveis compradores de apartamentos tiveram dois minutos para ponderar antes de serem distraídos com jogos de palavras, tiveram 58% de acertos na melhor opção. Quando a seqüência foi invertida e ficaram distraídos com jogos irrelevantes de palavras (pensamento inconsciente) e depois tiveram dois minutos para ponderar (pensamento consciente), sua capacidade de escolha caiu para 30%.

Não é de surpreender que existam tantos livros sobre mindfulness e pensamento irracional. Ainda estamos aprendendo a funcionar no modo ótimo, como pessoas bem integradas, inteiras. Essa fascinante linha de pesquisa mostra que a estratégia mais eficaz para lidar com decisões complexas é ter flexibilidade para usar o pensamento consciente e inconsciente, em conjunto, e nessa ordem. Numa situação em que há várias opções exigindo uma ação cognitiva, a fórmula para a melhor decisão é a seguinte:

  1. Fique algum tempo pensando conscientemente na situação.
  2. Pare.
  3. Faça uma atividade qualquer, sem relação com a situação, para ter um período de incubação.
  4. Tome a decisão.

Intervenções Mindless

Passamos décadas tentando aumentar nossa autoconsciência para alcançar o sucesso, e os pesquisadores que apresentamos neste capítulo sugerem uma atitude diferente. Como alternativa, vamos propor uma estratégia do “levantar da (in)consciência”, que nos permite atingir as metas que almejamos e, assim, viver melhor. Propomos a audaciosa noção de que nosso comportamento pode ser modificado drasticamente sem qualquer intervenção consciente. O imperceptível processamento inconsciente da informação pode nos conduzir a decisões mais firmes, mais rápidas e melhores.

Pense na meta de melhorar seu desempenho. Em uma central de telemarketing, Garry Latham e Ronald Piccolo testaram uma intervenção de baixo custo com os funcionários, dando a eles fotografias para olharem antes de falar com os clientes.33 Uma foto era de três vendedores sorridentes durante um telefonema (desempenho relevante), outra era de uma mulher levantando os braços na linha de chegada de uma corrida (desempenho irrelevante) e, no terceiro caso, os funcionários olharam para uma foto do prédio em que trabalhavam. Os funcionários que olharam para as fotos de desempenhos vitoriosos apresentaram um aumento de 58% de chamadas bem-sucedidas, e os que olharam para a foto do prédio não apresentaram nenhum aumento.

Mas essa não é a melhor parte. Veja só: os funcionários que olharam para a foto do vendedor sorridente conseguiram 85% a mais de dinheiro do que os que olharam para a foto do prédio! Quando lhes perguntaram como tinham melhorado tanto seu desempenho, nenhum deles mencionou a foto inspiradora em seu cubículo. O que você acha melhor: gastar um dinheirinho numa foto emoldurada, ou gastar um dinheirão em workshops para melhorar o ânimo, a motivação e o desempenho dos funcionários? Nesse estudo, os pesquisadores constataram também que imprimir um melhor desempenho no inconsciente tem um impacto que não dura somente minutos ou horas, mas permanece por uma semana inteira de trabalho.

Agora, vejamos problemas sociais maiores. Tentar convencer as pessoas a não usar estereótipos sobre idosos, deficientes, gays ou de uma raça diferente tem o efeito contrário, tornando mais fácil evocar o estereótipo e, portanto, usá-lo. Na mesma linha, quando fumantes veem anúncios contra cigarros, acabam fumando mais.34 Em vista disso, pesquisadores reuniram um grupo de adultos brancos que admitiam ter preconceito racial e não gostavam de ter contato com negros, a fim de saber se essa opinião podia ser recondicionada sem tentar convencer os sujeitos de que preconceito e racismo são indesejáveis.

Os pesquisadores colocaram os sujeitos diante de uma tela de computador contendo imagens e palavras positivas sobre norte-americanos negros (uma criança negra dividindo o lanche com um coleguinha esfomeado), e instruídos a se “aproximar dos negros” movendo um joystick na direção deles. Quando apareciam imagens e palavras sobre norte-americanos brancos, deveriam mover o joystick na direção oposta a eles.35 A ideia era que associar repetidamente imagens positivas sutis de pessoas negras à motivação para se aproximar e apreciá-las levasse a rever o hábito mindless de ver pessoas negras como inimigas a serem evitadas. Os pesquisadores constataram que os adultos brancos treinados para associar negros a um comportamento de aproximação tiveram um decréscimo de 46,5% de crenças preconceituosas em comparação com os que não receberam o treinamento. Mas essa reinstalação cerebral influencia o comportamento de um branco com um desconhecido negro? A resposta é um surpreendente sim. Após o treinamento de associação mindless de rostos negros com os movimentos de aproximação via joystick, numa conversa de “apresentação”, esses brancos colocaram a cadeira seis vezes mais perto de um desconhecido negro (um ator que já estava sentado quando os participantes entraram). Vejam só, o cérebro é um órgão muito interessante!

Quem já trabalha no sentido de criar maior apreciação da diversidade não precisa ser lembrado de que as pessoas que não se parecem conosco, ou que não têm os mesmos valores, podem oferecer mais oportunidades de aproximação que de evitação. Mas há um fato importante: todos nós temos um “grupo”, um círculo de pessoas cuja mentalidade é parecida com a nossa e, por um efeito de espelho, consideramos mais atraentes do que o resto da humanidade. Sejam religiosos versus ateus, vegetarianos versus carnívoros, feministas versus fãs de pornografia, nerds versus atletas, todos têm sua tendenciosidade, algumas reconhecidas, e muitas outras ocultas. Pesquisas recentes nos oferecem alguns meios de mudar essas tendenciosidades. Sabemos agora que, com movimentos repetidos, podemos remodelar o cérebro, mudando a mente para melhor. O treinamento mindless pode ser acrescentado à lista de estratégias para aumentar o sucesso e o bem-estar.

Utilizando o Mindless

Apresentamos um contraste entre a grande divulgação científica e pública de que mindfulness é melhor que mindlessness. Ao compreender que o pensamento mindless reforça o êxito, você terá uma vantagem sobre quem está sempre pronto a acionar o estado mindful. Ainda que você queira, é fisicamente impossível estar mindful o tempo todo. Para capitalizar o pensamento inconsciente, descrevemos os pontos fortes de mindlessness em diversas áreas da vida, desde alcançar metas, confiar nas pessoas e ter mais criatividade, até lidar com uma pressão sufocante, com os preconceitos e tomar decisões complexas.

Em certas situações o pensamento mindless nos capacita a ser mais objetivos ou mais neutros. Você pode estar resistindo a aceitar essa afirmação. Afinal, acredita-se intuitivamente que um julgamento instantâneo pode ser muito bom em decisões “sem importância”, mas decisões complexas exigem intensidade e concentração nas deliberações. Estamos aqui para lhe dizer que a eficácia é frequentemente prejudicada pela crença na superioridade da mindfulness.

LEMBRETES

  1. Mindfulness pode ter vantagens, mas nossa predisposição natural é para mindlessness.
  2. O pensamento automático ajuda a conservar os recursos mentais.
  3. A redução da atividade mental pode gerar uma forma produtiva de desinibição.
  4. O processamento mindless frequentemente conduz a um desempenho superior e a melhores decisões, principalmente em situações delicadas.
  5. Intervenções subliminares podem nos impulsionar na direção de um objetivo.
  6. Tentativas de recusar mindlessness estão fadadas ao fracasso.

Reconhecer o poder de mindlessness é, por si só, uma intervenção. E as pessoas podem aprender a se beneficiar desse recurso tão menosprezado. Aqui vão mais alguns conselhos para utilizar mindlessness:

  1. Estabeleça um prazo ridiculamente curto - dez segundos - para tomar uma decisão que o deixou alguns minutos paralisado, sem saber o que fazer. Isso força uma decisão mindless. Há sempre um motivo para deixar de fazer uma viagem. Há sempre um motivo para comprar sempre o mesmo presunto e queijo no supermercado. Tire dez segundos, clique “enviar”, ponha a compra no carrinho ou vá embora sem gastar mais energia na decisão.
  2. Use dicas ou sinais que representem seus objetivos. Você quer ser calmo e moderado numa situação ou ser franco e dizer tudo o que está sentindo? Quer ter grandes aspirações e está disposto a correr riscos para alcançar a meta ou é aves­so a riscos para ter certeza de não cometer erros? Você po­de colar palavras e imagens na sua sala ou na escrivaninha, apontando para determinadas metas e estilos motivacionais.
  3. Reserve tempo para deixar a mente vagar. Mindlessness é um recurso estratégico intenso, e há motivos para não sermos dotados exclusivamente desse equipamento mental. Quan­do a mente vagueia, nossa atividade cerebral é quase a mes­ma de quando estamos descansando. As idéias colidem, e a criatividade aparece por acaso. As empresas e o ambiente doméstico podem ser organizados de modo a estimular ati­vidades mindless estratégicas. Essa é uma das muitas razões para que os exercícios físicos e as brincadeiras na hora do recreio sejam as últimas atividades a serem excluídas dos programas pedagógicos.
  4. Determine regras para usar a intuição. Quando você estiver diante de uma opção simples, é melhor usar um método lógico e deliberado. Quando precisar tomar uma decisão complicada, terá um resultado melhor se, depois de passar algum tempo analisando as informações, você se permitir um período de incubação, fazendo alguma outra coisa (“dor­mir sobre o assunto”) e depois mudar para o modo mindless, a intuição.

Em vez de eleger um vencedor entre os dois modos de pensamento, mindlessness e mindfulness, defendemos os méritos relativos de ambos. Se você retirar metade do pensamento humano, metade da consciência, poderá criar um espaço maior para o sucesso e o bem-estar.

Psicologia - Psicologia Cognitiva
5/21/2022 4:45:03 PM | Por Robert Graves
O dilúvio de Deucalião

O dilúvio de Deucalião, assim chamado para diferenciar-se do dilúvio de Ogigia e de outros dilúvios, foi provocado pela ira de Zeus contra os ímpios filhos de Licaão, o filho de Pelasgo. O mesmo Licaão foi o primeiro a civilizar a Arcádia, institucionalizando o culto ao Zeus Lício, mas acabou irritando Zeus ao sacrificar-lhe um menino. Por essa razão, foi transformado num lobo e sua casa foi destruída por um raio. Alguns dizem que Licaão teve, no total, 22 filhos; outros dizem que teve cinqüenta.

A notícia dos crimes cometidos pelos filhos de Licaão chegou ao Olimpo, e o próprio Zeus foi visitá-los, disfarçado de viajante miserável. Eles tiveram o descaramento de lhe servir uma sopa de miúdos, em que haviam misturado as vísceras de seu irmão Nictimo com as de ovelhas e cabras. Zeus não se deixou enganar e, derrubando a um só golpe a mesa sobre a qual haviam servido aquele repugnante banquete —o lugar ficou conhecido mais tarde como Trapezo —, converteu-os todos em lobos, exceto Nictimo, a quem devolveu a vida.

Após regressar ao Olimpo, Zeus desafogou o seu desgosto desferindo um grande dilúvio sobre a terra, com a intenção de varrer de sua face toda a raça humana. Mas Deucalião, rei de Ftia, avisado por seu pai, o titã Prometeu, que o havia visitado no Cáucaso, construiu uma arca, encheu-a de suprimentos e subiu abordo com sua mulher, Pirra, filha de Epimeteu. Então, o Vento Sul começou a soprar, a chuva desabou, e os rios se precipitaram na direção do mar, que subia com uma assombrosa rapidez, arrasando e submergindo todas as cidades do litooral e das planícies, até que o mundo todo ficou submerso, exceto alguns cumes e montanhas, e todas as criaturas mortais pareciam ter desaparecido, à exceção de Deucalião e Pirra. A arca flutuou por nove dias, quando finalmente as águas baixaram, e a embarcação pousou no monte Parnaso ou, segundo alguns, no monte Etna, no monte Atos ou ainda no monte Ótris, na Tessália. Diz-se que Deucalião obteve a confirmação do fim do dilúvio ao soltar uma pomba em vôo exploratório.

Após desembarcarem sãos e salvos, eles ofereceram um sacrifício ao Pai Zeus, protetor dos fugitivos, e desceram à margem do rio Cefiso para orar no santuário de Têmis, cujo teto se achava coberto de algas e cujo altar estava frio. Suplicaram humildemente que a raça humana renascesse, e Zeus, escutando suas vozes de longe, enviou Hermes para assegurar-lhes de que tudo o que pediam lhes seria concedido. Têmis apareceu em pessoa e disse: “Cubram suas cabeças e atirem os ossos de sua mãe para trás!” Por serem filhos de mães diferentes, ambas já falecidas, Deucalião e Pirra deduziram que a titânide se referia à Mãe Terra, cujos ossos eram as rochas que jaziam às margens do rio. Portanto, cobriram a cabeça e se inclinaram para recolher as rochas, atirando-as por cima dos ombros. As rochas se transformaram em homens ou mulheres, dependendo de quem as houvesse tocado, Deucalião ou Pirra. Dessa forma, a humanidade se renovou, e desde então “povo” (laos) e “uma pedra” (laas) têm sido a mesma palavra em diversas línguas.

Entretanto, Deucalião e Pirra não foram os únicos sobreviventes do dilú­vio. Tanto que Megareu, um filho de Zeus, tendo sido despertado de seu sono pelos gritos dos grous, foi impelido a subir até o pico do monte Gerânia, lugar que não chegou a ser coberto pelas águas. Outro que escapou foi Cerambo de Pélion, que, transformado pelas ninfas num escaravelho, pôde voar para o cume do Parnaso.

De modo similar, os habitantes do Parnaso - cidade fundada por Parnaso, filho de Poseidon, que inventou a arte do agouro - foram despertados pelo uivo dos lobos e os seguiram até o alto da montanha. Em memória desses lobos, eles chamaram a sua cidade de Licoréia.

Assim, o dilúvio provou ser pouco eficaz, pois alguns parnasianos emigra­ram para a Arcádia e repetiram as abominações de Licaão. Até o dia de hoje, um menino é sacrificado ao Zeus Liceu, e suas vísceras são misturadas a outras numa sopa de miúdos, que é então servida a uma multidão de pastores às margens de um rio. O pastor que come as vísceras do menino (que lhe são servidas por sor­teio) uiva como um lobo, pendura suas roupas num carvalho, cruza o rio a nado e se transforma em lobisomem. Por oito anos ele fica vivendo entre os lobos, mas, abstendo-se de comer carne humana durante esse período, ele pode regressar, cruzar de novo o rio a nado e recuperar suas roupas. Há algum tempo, um habi­tante de Parrásia chamado Damarco passou oito anos com os lobos, recuperou sua condição humana e, no décimo ano, após um período de treinamento inten­sivo num ginásio, ganhou o prêmio de pugilismo nos jogos olímpicos.

Esse Deucalião era o irmão da Ariadne cretense e pai de Oresteu, rei dos lócrios ózolas, em cuja época uma cadela branca pariu uma estaca que, plantada por Oresteu, cresceu e se tornou uma videira. Outro de seus filhos, Anfictião, alojou Dionísio e foi o primeiro homem a misturar vinho com água. Mas seu primeiro descendente e o mais famoso de seus filhos foi Heleno, pai de todos os gregos.

A história de Zeus e as entranhas do menino não é tanto um mito quanto uma anedota moral para expressar a repugnância que provocavam, nas regiões mais civilizadas da Grécia, as primitivas práticas canibais da Arcádia ainda praticadas em nome de Zeus e consideradas “bárbaras e antinaturais”. Cécrope, o virtuoso ateniense contemporâneo de Licaão, merecia somente bolos de cevada, abstendo-se inclusive dos sacrifícios de animais. Os ritos licaones, que, segundo o autor, nunca contaram com o beneplácito de Zeus, aparentemente tinham a intenção de evitar que os lobos atacassem os rebanhos, entregando-lhes um rei humano. Lycaeus significa “da loba”, mas também "da luz”, e o raio no mito de Licaão revela que o Zeus da Arcádia era um rei sagrado que invocava a chuva a serviço da Loba divina, a Lua, a quem a matilha de lobos uivava.

Um Grande Ano de cem meses, ou oito anos solares, era dividido equitativamente entre o rei sagrado e o seu sucessor. Já os cinqüenta filhos de Licaão — um para cada mês do reinado do rei sagrado — deviam ser os que compunham a sopa de miúdos. O número 22, a não ser que seja o resultado do cálculo do número de famílias que se diziam descendentes de Licaão para participar do banquete de miúdos, refere-se provavelmente aos 22 lustros que constituíam um ciclo — o ciclo de 110 anos compunha o reinado de uma linha

O mito do dilúvio de Deucalião, aparentemente trazido da Ásia pelos heleênicos, tem a mesma origem da lenda bíblica de Noé. Porém, enquanto Noé é citado como inventor do vinho numa fábula moral hebraica que justificava a escravização imposta aos cananeus por seus conquistadores semitas e cassitas, a citação da invenção do vinho por Deucalião foi suprimida pelos gregos, que a atribuíram a Dionísio. Entretanto, Deucalião é descrito como irmão de Ariadne, que, ligada a Dionísio, era a mãe de várias tribos seguidoras do culto do vinho, e o nome dele continuou sendo “marinheiro do vinho novo” (de deucos e halieus). O mito de Deucalião registra um dilúvio mesopotâmico do terceiro milênio a.e.c., bem como a festa outonal do Ano-novo da Babilônia, Síria e Palestina. Essa festa celebrava o novo vinho doce, servido por Parnafistim aos construtores da arca, na qual (conforme o poema épico babilónico Gilgamesh) ele e sua família sobreviveram ao dilúvio enviado pela deusa Ishtar. A arca era um barco-lua, e a festa, celebrada por ocasião da Lua nova mais próxima do equinócio de outono, era uma forma de evocar as chuvas invernais. Ishtar, no mito grego, é chamada de Pirra - nome da deusa-mãe dos puresati (filisteus), povo cretense que chegou à Palestina através da Cilicia em torno de 1200 a.e.c. Em grego, pyrrha significa “vermelho vivo” e é um adjetivo que se aplica ao vinho.

Xisutros era o herói da lenda do dilúvio sumeriano, registrada por Berossus, e sua arca acabou pousando no monte Ararat. Todas essas arcas eram construídas com madeira de acácia, utilizada também por Ísis para construir o barco mortuário de Osíris.

O mito de um deus irado que decide punir as maldades do homem com um dilúvio parece ter chegado tardiamente aos gregos, que o tomaram empres­tado aos fenícios ou aos judeus. Não obstante, o número de diferentes montes da Grécia, Trácia e Sicília onde se diz que a arca de Deucalião teria atracado sugere que um antigo mito do dilúvio tenha se sobreposto a uma lenda posterior sobre um dilúvio no norte da Grécia. Na primeira versão grega do mito, Têmis renova a raça humana sem ter sido previamente autorizada por Zeus. É prová­vel, portanto, que ela, e não ele, tenha sido a responsável pelo dilúvio, como na Babilônia.

A transformação de pedras em pessoas é, talvez, outro empréstimo heládico vindo do Oriente. São João Batista referiu-se a uma lenda semelhante, declarando, num jogo de palavras com os termos hebraicos banim e abanim, que Deus podia dar filhos a Abraão a partir das pedras do deserto (Mateus III. 3-9 e Lucas III. 8).

A história da cadela branca, a deusa-Lua Hécate que pariu um ramo de videira no reinado de Oresteu, filho de Deucalião, é provavelmente o mito grego mais antigo sobre o vinho. Diz-se que o nome “ózola” deriva de ozoi, “brotos de videira”. Um dos filhos malvados de Licaão também se chamava Oresteu, o que pode justificar a conexão forçada que os mitógrafos estabeleceram entre o mito da sopa de miúdos e o dilúvio de Deucalião.

Anfictião, nome de outro filho de Deucalião, é uma forma masculina de Anfictionis, a deusa em nome da qual se havia fundado a Liga Anfictiônica, a famosa confederação setentrional. Segundo Estrabão, Calímaco e o escoliasta do Orestes de Eurípides, a liga foi regularizada por Acrísio de Argos. Os gregos civilizados, à diferença dos trácios dissolutos, abstinham-se de tomar vinho puro, e seu costume de aguá-lo nas assembléias dos estados membros cele­bradas na época da vindima em Antela, perto das Termópilas, deve ter sido uma maneira de evitar disputas sangrentas durante o evento.

Heleno, filho de Deucalião, era o antecessor epônimo de toda a raça helênica. Seu nome demonstra que ele era o representante real da sacerdotisa de Hele, Helen, Helena ou Selene, a Lua. Segundo Pausânias (III. 20. 6), a primeira tribo chamada helena chegou da Tessália, onde se adorava Hele.

Aristóteles (Meteorológica I. 14) diz que o dilúvio de Deucalião teve lugar “na antiga Grécia (Graecia), ou seja, num distrito perto de Dodona e do rio Aquelôo”. Graeci significa “adoradores da Velha”, presumivelmente a deusa Terra Dodona, que aparecia em tríade formando as Gréias. Conta-se que os aqueus foram obrigados a invadir o Peloponeso porque fortes chuvas, nada comuns naquela região, haviam inundado suas pastagens. O culto a Hele parece ter substituído o culto às Gréias.

O escaravelho era um emblema da imortalidade no Baixo Egito, porque sobrevivia aos transbordamentos do Nilo —o Faraó, como Osíris, embarcava em um barco-sol na forma de um escarabeu —, e sua utilização sagrada se propagou, seguindo a Palestina, o Egeu, a Etrúria e as Ilhas Baleares. Antoninus Liberalis menciona o mito de Cerambo, ou Terambo, quando cita Nicandro.

Mitologia - Mitologia Grega
5/21/2022 4:37:54 PM | Por Robert Graves
Os feitos e a natureza de Apolo

Apolo, filho de Zeus e Leto, nasceu de sete meses, mas os deuses crescem muito depressa. Temis o alimentou com néctar e ambrosia, e quando amanheceu o quarto dia ele pediu um arco-e-flecha, providenciado na mesma hora por Hefesto. Ao sair de Delos, dirigiu-se diretamente ao monte Párnaso, onde estava à sua espreita a serpente Piton, inimiga de sua mãe, e feriu-a gravemente com suas flechas. Piton fugiu para o Oraculo da Mãe Terra na cidade de Delfos, assim chamada em homenagem a seu companheiro, o monstro Delfim. Mas Apolo atreveu-se a persegui-la ate o santuário e ali a matou, junto ao precipício sagrado.

Informado pela Mãe Terra sobre esse crime, Zeus não só ordenou a Apolo que fosse a Tempe purificar-se como também instituiu os jogos piticos em homenagem a Piton, encarregando-o de presidi-los como penitência. Descaradamente, Apolo desobedeceu a ordem de Zeus e, em vez de ir a Tempe, foi purificar-se em Aigialeia, acompanhado de Artemis. Depois, como não gostara do lugar, velejou em direção a Tarra, em Creta, onde o rei Carmanor celebrou a cerimônia.

Ao regressar a Grécia, Apolo saiu a procura de Pã, o velho e desacreditado deus árcade com pernas de cabra, e, depois de persuadi-lo a revelar-lhe a arte da profecia, apoderou-se do Oráculo de Delfos e manteve sua sacerdotisa, denominada pitonisa, sob suas ordens.

Ao saber das noticias, Leto foi com Artemis a Delfos, onde buscou uma caverna sagrada para realizar um rito particular. O gigante Titio interrompeu sua veneração e estava tentando viola-la quando, ao ouvir gritos, Apolo e Artemis saíram correndo e o mataram com uma salva de flechas - vingança que Zeus, pai do gigante, achou por bem classificar de piedosa. No Tártaro, Titio havia sido torturado: seus braços e pernas foram esticados e presos firmemente ao chão, fazendo com que seu corpo ocupasse uma superfície de nada menos que nove acres e ficasse a mercê de dois abutres, que lhe devoravam o fígado.

Em seguida, Apolo matou o sátiro Mársias, seguidor da deusa Cibele. Isso aconteceu da seguinte forma: um dia, Atena confeccionou uma flauta dupla com ossos de cervo e tocou-a em um banquete dos deuses. No início, ela não entendeu por que Hera e Afrodite riam baixinho, tapando a boca com as mãos, enquanto os outros deuses pareciam deleitar-se com sua musica. Intrigada, Atena se retirou, sozinha, para um bosque frígio, empunhou a flauta junto a um ribeirão e contemplou sua imagem na água enquanto tocava. Ao dar-se conta de como a face azulada e as bochechas inchadas de ar tornavam grotesca sua aparência, ela jogou fora a flauta e lançou uma maldição sobre quem a encontrasse.

Mársias foi a inocente vítima dessa maldição. Ele tropeçou na flauta e, mesmo antes de leva-la aos lábios, ela começou a tocar sozinha, inspirada pela recordação da musica de Atena. E assim ele percorreu a Frígia, acompanhando o séquito de Cibele e deleitando os camponeses ignorantes. Estes o aclamaram, dizendo que nem mesmo Apolo, com sua lira, seria capaz de compor musica melhor, e Mársias, por ingenuidade, não se atreveu a contradize-los. Isso, claro, despertou a ira de Apolo, que lhe propôs uma competição, cujo vencedor teria o direito de infligir ao adversário o castigo que desejasse. Mársias aceitou o desafio, e Apolo convocou as musas como árbitros do torneio - que terminou empatado, porque elas ficaram encantadas com os dois instrumentos, ate que Apolo gritou a Mársias:

- Desafio você a fazer com seu instrumento o mesmo que faço com o meu: colocá-lo de ponta-cabeça e tocá-lo, cantando ao mesmo tempo!

Evidentemente, como tal feito era impossível com uma flauta, Mársias fracassou no desafio, ao passo que Apolo colocou sua lira ao contrário e entoou hinos tão melodiosos em louvor aos deuses olímpicos que as musas se viram na obrigação de emitir um veredicto a seu favor. Depois, por toda aquela doçura dissimulada, Apolo vingou-se de Mársias da maneira mais cruel: esfolou-o vivo e pendurou sua pele em um pinheiro (segundo alguns, num plátano), junto à foz de no que agora leva o seu nome.

Mais tarde, Apolo venceu um segundo desafio musical, presidido pelo rei. Dessa vez, derrotou Pã. Desde que se tornou reconhecido como o deus musica, tocou sempre sua lira de sete cordas nos banquetes dos deuses. Outro de seus deveres era o de guardar os rebanhos e as manadas que os deuses tinham em Pieria, trabalho que, mais tarde, ele acabou delegando a Hermes.

Apesar de negar-se a ter ligações matrimoniais, Apolo deixou grávidas várias ninfas e mulheres mortais, entre elas Ftia, com quem teve Doro, Polidectes e Laodoco; a musa Talia, que deu a luz os coribantes; Coronis, mãe de Asclépio; Aria, que lhe deu Mileto; e Cirene, mãe de Aristeu.

Apolo seduziu também a ninfa Driopeia, que cuidava do gado de seu pai no monte Eta, na companhia de suas amigas, as hamadriades. Apolo se disfarçou de tartaruga, com a qual todas brincaram, e, quando Driopeia a colocou sobre o peito, ele se converteu numa serpente sibilance, assustando as hamadriades e unindo-se a Driopeia. Ela então lhe deu Anfisso, que fundou a cidade de Eta e construiu um templo em homenagem ao pai, onde Driopeia serviu como sacerdotisa, ate o dia em que as hamadriades a raptaram e deixaram um choupo em seu lugar.

Apolo nem sempre teve sorte no amor. Certa vez, tentou roubar Marpessa de Idas, mas ela permaneceu fiel ao marido. De outra feita, perseguiu Dafne, a ninfa da montanha, sacerdotisa da Mãe Terra, filha do rio Peneu, na Tessalia, mas, quando a alcançou, ela suplicou por ajuda a Mãe Terra, que a fez desaparecer em um instante e reaparecer em Creta, onde se tornou conhecida como Pasifae. A Mãe Terra deixou um loureiro em seu lugar, e, com suas folhas, Apolo fez uma grinalda para se consolar.

Cabe acrescentar que sua tentativa de se aproximar de Dafne não foi um impulso repentino. Fazia muito tempo que ele andava apaixonado por ela, e já havia causado a morte de seu rival Leucipo, filho de Enomao, que se disfarçara de mulher para participar das orgias montanhesas de Dafne. Tendo se inteirado disso por adivinhação, Apolo sugeriu às ninfas que se banhassem desnudas, para se assegurarem de que todas as que ali estavam eram mulheres. As ninfas logo descobriram a impostura de Leucipo e o esquartejaram.

O mesmo aconteceu com o belo jovem Jacinto, príncipe espartano, pelo qual se apaixonou não só o poeta Tamiris - o primeiro homem a cortejar alguém do mesmo sexo - como também o próprio Apolo, o primeiro deus a faze-lo. Apolo não considerou Tamiris um rival serio. Tendo ouvido que o poeta se vangloriava de poder superar as musas com seu canto, ele, ardilosamente, tratou de informa-las. Elas não tardaram em privar Tamiris de sua voz, de sua visão e de sua memoria para tocar a harpa. Mas o Vento Oeste (Zefiro) também se enamorara de Jacinto e, um dia, ao ver Apolo ensinando o jovem a arremessar um disco, ficou loucamente enciumado, agarrou o disco no ar e lançou-o contra o crânio de Jacinto, matando-o. De seu sangue brotou a flor que leva seu nome, na qual ainda se podem ver suas iniciais.

Apolo enfureceu Zeus apenas uma vez, depois da famosa conspiração para destrona-lo. Foi quando seu filho Asclépio (Esculápio), o medico, cometeu a temeridade de ressuscitar um morto, roubando assim um súdito de Hades. Este, naturalmente, apresentou queixa ao Olimpo e, na sequencia, Zeus fulminou Asclépio, e Apolo, para se vingar, matou os ciclopes. Encolerizado pela perda de seus armeiros, Zeus só não o condenou ao desterro perpetuo no Tártaro porque Leto, implorando-lhe clemencia, comprometeu-se a fazer com que Apolo melhorasse sua conduta. A sentença reduziu-se a um ano de trabalhos forçados, e Apolo foi cuidar dos rebanhos de ovelhas do rei Admeto, de Teras. Seguindo o conselho de Leto, ele não só cumpriu humildemente sua pena como também trouxe grandes benefícios a Admeto.

Tendo aprendido a lição, ele passou a pregar a moderação em todas as coisas. As frases "Conhece-te a ti mesmo!" e "Nada em excesso!" estavam sempre em seus lábios. Trouxe para Delfos as musas de sua morada no monte Helicon, moderou seu exaltado frenesi e as orientou para tipos de danças mais formais e decorosas.

A historia de Apolo é confusa - Os gregos o fizeram filho de Leto, deusa conhecida pelo nome de Lat no sul da Palestina, mas era também deus dos hiperboreos ("homens de além do Setentrião"), que Hecataeus (Diodoro Siculo: 11.47) identificava claramente como os britânicos, embora Píndaro (Odes piticas X. 50-55) os considerasse líbios. Delos era o centro desse culto hiperbóreo que aparentemente estendia-se pelo sudeste ate a Nabateia e a Palestina, pelo noroeste até a Bretanha, e incluía Atenas. Havia um intercambio constante de visitas entre os povos unidos por tal culto (Diodoro Siculo: loc. cit.).

Entre os hiperbóreos, Apolo sacrificou quantidades enormes de asnos (Píndaro: loc. cit.), o que o identifica como o "Menino Hórus", cuja vitoria sobre seu inimigo Seth os egípcios celebravam anualmente, impelindo burros selvagens a um precipício (Plutarco: Sobre Isis e Osíris 30). Hórus queria vingar-se de Seth pelo assassinato de seu pai Osíris, o rei sagrado, amante da deusa-Lua tripla (Ísis, ou Lat), que tinha sido sacrificado pelo seu sucessor Seth no solstício estival e no invernal, e do qual o próprio Horus era a reencarnação. O mito da perseguição a Leto por parte de Píton é análogo ao da perseguição a Isis por parte de Seth (durante os 72 dias mais quentes do ano). Além disso, Píton pode ser identificado como Tifon, o Seth grego, no Hino homérico a Apolo é também pelo escoliasta de Apolônio de Rodes. De fato, o Apolo hiperbóreo é um Hórus grego.

Mas ao mito deu-se um contorno politico: diz-se que Píton foi enviado contra Leto por Hera, que o havia parido partenogenicamente, a fim de contrariar Zeus (Hino homérico a Apolo 305). Apolo, apos matar Píton (e supostamente também seu companheiro Delfim), apodera-se do templo oracular da Mãe Terra em Delfos - por ser Hera a Mãe Terra, ou Delfim, em seu aspecto profético. Parece que certos helenos do norte, aliados dos trácio-líbios, invadiram a Grécia central e o Peloponeso, onde enfrentaram a oposição dos adoradores pré-helênicos da deusa Terra, capturando, contudo, seus principais santuários oraculares. Em Delfos, eles destruíram a sagrada serpente oracular - uma serpente parecida era guardada no Erecteion de Atenas - e se apoderaram do Oraculo em nome de seu deus Apolo Esminteu. Esminteu ("murídeo"), assim como Esmun, o deus cananeu da cura, tinha como emblema um camundongo curativo. Os invasores concordaram em identifica-lo como Apolo, o Hórus hiperbóreo venerado par seus aliados. A fim de aplacar a opinião publica em Delfos, instituíram-se jogos funerários periódicos em homenagem ao herói morto Píton, e sua sacerdotisa foi mantida no cargo.

Brizo ("apaziguadora"), a deusa-Lua de Delos, indistinguível de Leto, pode ser identificada como a deusa tripla hiperbórea Brigite, cristianizada como Santa Brigite ou Santa Brígida. Brigite era a padroeira de todas as artes, e Apolo seguiu seu exemplo. O atentado do gigante Titio contra Leto aponta uma fracassada tentativa de sublevação por parte dos montanheses da Fócida contra os invasores.

As vitórias de Apolo sobre Mársias e Pã comemoram as conquistas helênicas da Frigia e da Arcádia e a consequente substituição, nessas regiões, de instrumentos de sopro por instrumentos de corda, exceto entre os camponeses. O castigo de Mársias pode referir-se ao ritual de esfolar o rei sagrado - assim como Atena despojou Palas de sua égide magica - ou ao costume de remover toda a cortiça de um amieiro jovem para se confeccionar uma flauta de pastor, sendo o amieiro personificado como deus ou semideus. Apolo era aclamado como antecessor dos gregos dórios e dos milesios, que lhe rendiam homenagens especiais. E os coribantes, bailarinos no festival de solstício de inverno, eram chamados de filhos da musa Talia com Apolo, pois ele era o deus da musica.

Sua perseguição a Dafne, a ninfa da montanha, filha do rio Peneu e sacerdotisa da Mãe Terra, aparentemente se refere a captura de Tempe por parte dos helenos. Ali, a deusa Dafene ("a sanguinária') era venerada por uma ordem de menades orgiásticas que mascavam folhas de louro. Após ter suprimido a ordem - o relato de Plutarco sugere que a sacerdotisa fugiu para Creta, onde a deusa-Lua era chamada de Pasifae, Apolo apoderou-se do louro, que, posteriormente, só a pitonisa poderia mascar. Tanto em Tempe como em Figália, Dafene devia ter cabeça de égua. Leucipo ("cavalo branco") era o rei sagrado do culto local do cavalo, esquartejado anualmente pelas mulheres selvagens, que se banhavam para purificar-se depois de mata-lo, e não antes.

O fato de Driopéia ter sido seduzida por Apolo em Oeta registra talvez a substituição do culto local ao carvalho pelo culto a Apolo, a quem o álamo era consagrado. O mesmo se pode dizer da sedução que exerceu sobre Aria. Seu disfarce de tartaruga é uma referência a lira que havia comprado de Hermes. O nome Ftia sugere o aspecto outonal da deusa. A fracassada tentativa com Marpessa ("a que agarra") parece evocar o fracasso de Apolo, ao querer apoderar-se de um templo messenio: o da deusa do trigo em seu aspecto de Porca. Seu servilismo diante de Admeto de Feres pode evocar um acontecimento histórico: a humilhação imposta a seus sacerdotes, como forma de punição pelo massacre de uma corporação de ferreiros pré-helênicos que estava sob a proteção de Zeus.

O mito de Jacinto, que, a primeira vista, parece ser apenas uma fabula sentimental para explicar o símbolo do jacinto grego, faz alusão ao herói-flor cretense Jacinto, aparentemente chamado também de Narciso, cujo culto foi introduzido na Grécia micênica e deu nome ao ultimo mês do verão em Creta, Rodes, Cos, Tira e Esparta. O Apolo dórico usurpou o nome de Jacinto em Tarento, onde o ultimo tinha uma tumba de herói. Em Amiclas, cidade micênica, outra "tumba de jacinto" converteu-se nas fundações do trono de Apolo. Naquela evoca, Apolo já era imortal, ao passo que Jacinto reinou somente durante uma estação. Sua morte em consequência de um golpe de disco recorda a de seu sobrinho Acrisio.

Apolo teve um filho, Asclépio, com Coronis ("corvo"). Este era provavelmente um dos títulos de Atena, mas os atenienses sempre negaram que ela tivesse filhos, e por isso distorceram o mito.

Na época clássica, a musica, a poesia, a filosofia, a astronomia, a matemática, a medicina e as ciências em geral estiveram sob o controle de Apolo. Inimigo do barbarismo, ele pregou a moderação em tudo. As sete cordas de sua lira estavam conectadas as sete vogais do alfabeto grego posterior, eram imbuídas de um significado místico e utilizadas como terapia musical. Finalmente, devido a sua identificação com o Menino Hórus, uma concepção solar, Apolo foi adorado como o Sol, cujo culto coríntio havia sido arrebatado pelo Zeus Solar. Sua irmã Artemis foi corretamente identificada como a Lua.

Cícero, em seu Ensaio Da natureza dos deuses (III. 23), estabelece que Apolo, filho de Leto, era o quarto de uma antiga serie de outros, homônimos: distinguem-se também Apolo, filho de Hefesto; Apolo, pai dos coribantes cretenses; e o Apolo que entregou suas leis a Arcádia.

Sem dúvida, o assassinato de Píton cometido por Apolo não é um mito tão simples como parece à primeira vista, pois a pedra Onfalo sobre a qual a pitonisa se sentava era, tradicionalmente, a tumba do herói encamado na serpente, cujos oráculos ela transmitia (Hesiquio sub o Tumulo de Arcos; Varrão: Sobre os idiomas latinos VII. 17). O sacerdote helênico de Apolo usurpou as funções do rei sagrado que, legitima e cerimonialmente, sempre havia matado seu predecessor, o herói. Isso se demonstra no rito das Esteptérias registrado por Plutarco em Por que os oráculos silenciam (15). A cada nove anos, no chão de terra batida junto a Delfos, construía-se uma cabana que representava a moradia do rei, e que era atacada repentinamente numa noite por... [aqui há uma lacuna no relato]... A mesa com as primeiras frutas era derrubada, ateava-se fogo a cabana, e os que empunhavam as tochas saiam correndo do santuário sem olhar para trás. Mais tarde, o jovem que havia participado da façanha ia purificar-se em Tempe, de onde retomava triunfante e coroado, carregando um ramo de loureiro.

O planejado assalto-surpresa ao morador da cabana faz lembrar o misterioso assassinato de Romulo por seus companheiros, bem como o sacrifício anual no festival das Bufonias de Atenas, onde os sacerdotes matavam o Zeus-boi com um machado duplo e saiam correndo sem olhar para trás. Depois, comiam a carne em um banquete publico, realizavam uma representação mimica da ressurreição do boi e levavam o machado a um tribunal, acusando-o de haver cometido um sacrilégio.

Em Delfos e em Knossos, o rei sagrado deve ter reinado até o nono ano. Sem duvida, o menino ia a Tempe porque o culto a Apolo havia se originado ali.

Mitologia - Mitologia Grega
5/21/2022 4:36:04 PM | Por Robert Graves
Os gigantes Alóidas

Efialtes e Oto eram filhos bastardos de Ifimedia, filha de Tríopas. Ela havia se apaixonado por Posídon e costumava agachar-se à beira-mar para recolher as ondas com as mãos e derramar no colo a água. Foi assim que engravidou. Efialtes e Oto eram chamados, entretanto, de Aloídas, porque Ifimedia se casou depois com Aloeu, consagrado rei de Asópia, na Beócia, por seu pai, Hélio. Os Aloídas cresciam dois metros de largura e de altura a cada ano, e, quando atingiram nove anos de idade, com nove cúbitos de largura e nove braças de altura, declararam guerra ao Olimpo. As margens do rio Estige, Efialtes jurou violar Hera, e Oto jurou fazer o mesmo com Ártemis.

Tendo decidido que Ares, o deus da guerra, devia ser o primeiro prisio­neiro, os Aloídas se puseram rumo à Trácia, desarmaram-no, amarraram-no e o confinaram num vaso de bronze, que ocultaram na casa da madrasta dos dois, Enbéia, pois Ifimedia já havia morrido. Depois, iniciaram o assédio ao Olimpo e fizeram um baluarte para atacá-lo, pondo o monte Pélion em cima do monte Ossa, e, em seguida, ameaçaram arremessar montanhas no mar até convertê-lo num deserto, embora as terras baixas ficassem inundadas e se transformassem em pântanos por causa das ondas. Estavam totalmente confiantes porque, segundo a profecia, nenhum homem, nem mesmo um deus, seria capaz de matá-los.

Por recomendação de Apoio, Ártemis mandou uma mensagem aos Aloí­das: se voltassem atrás em seu propósito, ela se reuniria com eles na ilha de Naxos e ali se submeteria aos assédios de Oto. Este, então, foi tomado por arroubos de alegria, mas Efialtes, que não havia recebido nenhuma mensagem similar de Hera, ficou enciumado e enraivecido. Uma briga cruenta eclodiu em Naxos, para onde eles foram juntos: Efialtes insistia em rejeitar os termos, a não ser que ele, como o mais velho dos dois, fosse o primeiro a desfrutar de Ártemis. A discussão estava no ápice quando Ártemis fez sua aparição em forma de corça branca, e os Aloídas posicionaram suas lanças para arremessá-las contra a deusa, cada qual disposto a provar que seria o melhor atirador. Quando ela passou voando por eles, veloz como o vento, os dois se atrapalharam e acabaram cravando a lança um no outro. Assim pereceram ambos, comprovando a profecia de que nenhum homem ou deus poderia matá-los. Seus cadáveres foram levados de volta para Antédon, para serem enterrados na Beócia, mas os habitantes de Naxos ainda lhes rendem honras de heróis. Eles também são lembrados como fundadores de Ascra, na Beócia, e como os primeiros mortais a adorarem as musas do Hélicon.

Uma vez levantado o cerco do Olimpo, Hermes saiu à procura de Ares e obrigou Eribéia a libertá-lo, já meio morto, do vaso de bronze. Mas as almas dos Aloídas desceram para o Tártaro, onde foram firmemente amarradas a uma coluna com cordas de nós, feitas de víboras vivas. Ali continuam sentadas, uma de costas para a outra, enquanto a ninfa Estígia, perversamente encarapitada no topo da coluna, serve como uma lembrança dos juramentos não cumpridos pelos Aloídas.

Esta é mais uma versão popular da rebelião dos gigantes. O nome Efialtes, o assalto ao Olimpo, a ameaça dirigida a Hera e a profecia da in­vulnerabilidade dos Aloídas ocorrem em ambas as versões. Efialtes e Oto, “filhos do campo debulhado” com “a que fortalece os genitais”, netos da “Trifacetada”, ou seja, Hécate, e adoradores das musas selvagens, personificam o incubo, ou pesadelo orgiástico, que oprime e profana as mulheres durante o sono. Assim como o Pesadelo da lenda britânica, eles estão associados ao número nove. O mito se confunde com um obscuro episódio histórico relatado por Diodoro. Ele conta que um certo Aloeu, da Tessália, encarregou seus filhos de libertar a mãe Ifimedia e a irmã Pancrátis (“toda-força”) das mãos dos trácios, que as haviam levado para Naxos. A expedição foi bem-sucedida, mas brigaram entre si pela posse da ilha e acabaram se matando um ao outro. Entretanto, ainda que Estêvão de Bizâncio mencione que a cidade de Aloeium, na Tessália, assim se chamasse por causa dos Aloídas, antigos mitógrafos dizem que eles eram beócios.

O assassinato recíproco dos irmãos gêmeos evoca a eterna rivalidade pelo amor da Deusa Branca entre o rei sagrado e seu sucessor, que alternadamente atacavam-se um ao outro. O fato de se chamarem “filhos do campo debulhado” e terem escapado da destruição do raio de Zeus os relaciona mais ao culto do cereal do que ao do carvalho. O suplício a que foram condenados no Tártaro, igual ao de Teseu e Pirítoo, parece deduzir-se de um antigo símbolo calendárico em que aparecem as cabeças dos gêmeos, uma de costas para a outra em cada lado da coluna, na posição em que se sentavam na Cadeira do Esquecimento. A coluna, sobre a qual está pousada a deusa da morte em vida, marca o apogeu do verão no momento em que termina o reinado do rei sagrado e começa o de seu sucessor. Na Itália, esse mesmo símbolo converteu-se no Jano bicéfalo, mas ali o Ano-novo se celebrava em janeiro, e não por ocasião do nascer helíaco do astro bicéfalo Sírio.

O confinamento de Ares durante três meses constitui um fragmento mítico desconexo, cuja datação exata é desconhecida, e se refere talvez a um armistício combinado entre os tessalo-beócios e os trácios, que durou um ano inteiro - o ano pelasgo tinha 13 meses período em que os símbolos bélicos de ambas as partes foram guardados dentro de um recipiente de bronze, num tem­plo de Hera Eribéia. Pélion, Ossa e Olimpo são montanhas ao leste da Tessália, das quais se tem uma visão distante do Quersoneso trácio, onde possivelmente foi travada a guerra que terminou graças a esse armistício.

Mitologia - Mitologia Grega
5/15/2022 6:04:32 PM | Por Robert Graves
Delfina e a humilhação de Zeus

Em vingança pela destruição dos gigantes, a Mãe Terra deitou-se com Tártaro e pouco tempo depois, na caverna Corícia, deu à luz seu filho mais novo, Tífon, o maior monstro que já existiu. Das coxas para baixo ele não era nada mais que serpentes enroscadas. Seus braços, estendidos, chegavam a 600 qui­lômetros de comprimento cada um, e em vez de mãos ele tinha, na ponta de cada braço, inúmeras cabeças de serpente. Sua cabeça, ornada de crinas de asno, roçava as estrelas, suas enormes asas ensombreciam o Sol, seus olhos lançavam chamas, e de sua boca saíam rochas flamejantes. Quando entrou em disparada no Olimpo, os deuses fugiram aterrorizados para o Egito, onde se disfarçaram de animais: Zeus se converteu num carneiro; Apolo, num corvo; Dionísio, em cabra; Hera, numa vaca branca; Ártemis, num gato; Afrodite, em peixe; Ares, em javali; Hermes, num íbis, e assim por diante.

Só Atena enfrentou, altiva, a situação, e escarneceu da covardia de Zeus até que este, recuperando a forma original, lançou contra Tífon um raio seguido de um golpe com a mesma foice de pedra lascada que servira para castrar seu avô Urano. Ferido e aos gritos, Tífon fugiu para o monte Casio, ao norte da Síria, e ali travou-se um terrível combate. Tífon enrolou em Zeus sua miríade de caudas, arrancou-lhe a foice e, após cortar-lhe os tendões das mãos e dos pés, arrastou-o para a caverna Corícia. Embora imortal, Zeus, a essa altura, não podia mover um dedo pois Tífon havia escondido os tendões numa pele de urso vigiada por Delfina. uma irmã-monstro com cauda de serpente.

A notícia da derrota de Zeus semeou o desânimo entre os deuses, mas Hermes e Pã conseguiram entrar furtivamente na caverna. Ali, Pã assustou Delfina um grito espantoso, enquanto Hermes subtraía habilmente os tendões e os colocava de volta nos membros de Zeus.

Mas alguns dizem que foi Cadmo quem persuadiu Delfina a entregar-lhe os tendões de Zeus, dizendo que precisava deles para fabricar as cordas de uma lira, com a qual iria dedicar-lhe uma música maviosa, e que foi Apolo quem a matou.

Zeus voltou ao Olimpo num carro puxado por cavalos alados e mais uma vez perseguiu Tífon com seus raios. O monstro havia se dirigido ao monte Nisa, onde as três Parcas lhe ofereceram frutos efêmeros como se fossem revigo­rantes, quando, na verdade, eram letais. Ele chegou ao monte Hemo, na Trácia, e, erguendo montanhas inteiras, lançou-as contra Zeus, que interpôs seus raios de maneira que eles ricochetearam para cima do monstro, provocando-lhe feri­ das horrendas. Os jorros de sangue de Tífon deram nome ao monte Hemo. O monstro, então, fugiu para a Sicília, onde Zeus pôs fim à perseguição atirando em cima dele o monte Etna, cuja cratera até hoje cospe fogo.

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Diz-se que “corício” significa “da sacola de couro”. Talvez seja uma refe­rência ao antigo costume de encerrar ventos em sacos, adotado por Éolo e conservado pelas bruxas medievais. Na outra caverna Corícia, a de Delfos, a serpente companheira de Delfina se chamava Píton, e não Tífon. Píton (“serpente”) era a personificação do destrutivo Vento Norte, o Setentrião - os ventos eram habitualmente representados com caudas de serpente - , que se pre­cipita sobre a Síria a partir do monte Casio, e sobre a Grécia a partir do monte Hemo. Tífon, por outro lado, significa “fumo estupefaciente”, e seu aspecto é o de uma erupção vulcânica, daí a lenda de que Zeus o derrotou, enter­rando-o finalmente sob o monte Etna. Mas o nome Tífon significava também o ardente siroco do deserto meridional que causava estragos na Líbia e na Grécia, trazendo consigo um odor vulcânico. Ele era retratado pelos egípcios como um asno do deserto. O deus Set, cujo hálito seria o próprio Tí­fon, mutilou Osíris quase do mesmo modo como Píton mutilou Zeus, embora ambos tenham sido finalmente derrotados. Não obstante, o paralelismo fez com que se confundisse Píton com Tífon.

Esse vôo divino para o Egito, como observa Luciano, foi inventado para justificar a adoração dos egípcios a deuses em forma animal: Zeus-Amon como carneiro; Hermes-Tot como íbis; Hera-Isis como vaca; Ártemis-Pasht como gato, e assim por diante. Mas historicamente pode referir-se também ao êxodo de sacerdotes e sacerdotisas que fugiram assustados das ilhas do Egeu, quando uma erupção vulcânica sepultou metade da grande ilha de Tera, pouco antes do ano 2000 a.e.c. Os gatos não eram animais domésticos na Grécia clássica. Uma outra fonte dessa lenda parece ser o poema épico babilônico da Criação, o Enuma Elish, conforme o qual, na primeira versão de Damascius, a deusa Tiamat, seu consorte Apsu e seu filho Mummi (“confusão”) soltam Kingu e uma horda de outros monstros contra a recém-nascida trindade de deuses: Ea, Anu e Bei. Em seguida vem a fuga provocada pelo pânico, até que Bei reúne seus irmãos, controla a situação e derrota as forças de Tiamat, esmagando seu crânio com uma clava e partindo-a em dois “como um linguado”.

O mito de Zeus, Delfina e a pele de urso registra a humilhação de Zeus diante da Grande Deusa, adorada, como a Ursa, cujo oráculo principal estava em Delfos. Desconhece-se o momento histórico, mas os cadmeus da Beócia pareciam preocupados em manter o culto a Zeus. Os “frutos efêmeros” entre­gues aTífon pelas três Parcas são, ao que parece, as típicas maçãs da morte. Numa versão proto-hitita do mito, a serpente Illyunka vence o deus da tormenta e lhe arranca os olhos e o coração, que ele recupera mediante um estratagema. O Conselho Divino chama então a deusa Inara para executar a vingança. A seu convite, a serpente Illyunka vai a uma festa e come até empanturrar-se. Nisso, Inara a amarra com uma corda, e o deus da tormenta a aniquila.

O monte Casio (atualmente Jebel-el-Akra) é o monte Hazzi que aparece na história hitita de Ullikummi, o gigante de pedra que crescia a uma velocidade surpreendente e que recebera ordens do pai, Kumarbi, para destruir os setenta deuses do Céu. O deus da tormenta, o deus do Sol, a deusa da beleza e as demais divindades fracassaram em suas tentativas de matar Ullikummi, até que Ea, a deusa da sabedoria, utilizando-se da faca que originalmente separara o céu da terra, cortou os pés do monstro e jogou-os no mar. Certos elementos dessa história ocorrem no mito de Tífon e também no dos Aloídas, que cresciam com a mesma velocidade e utilizavam as montanhas como escadas para subir ao Céu. Os cadmeus foram provavelmente os que levaram essas lendas para a Grécia a partir da Ásia Menor.

Mitologia - Mitologia Grega
4/11/2022 2:53:07 PM | Por Danny Penman, Mark Williams
Despertando a atenção plena

Imagine-se no topo de uma montanha, contemplando lá do alto a pai­sagem urbana e cinzenta sob a chuva. A cidade parece fria e inóspita. Os prédios são velhos e desgastados. As avenidas estão engarrafadas e as pessoas caminham infelizes e mal-humoradas. Então algo milagroso acontece: as nuvens se dissipam e o sol começa a brilhar. Num instante, a paisagem muda. As janelas dos prédios ficam douradas. O concreto cinza muda para um bronze lustroso. As ruas parecem reluzentes e limpas. Um arco-íris surge. O rio lodoso se transforma numa serpente exótica que corta as ruas. Por um momento, tudo fica em suspenso: sua respiração, seu coração, sua mente, os pássaros no céu, o tráfego nas ruas, o próprio tempo. Tudo parece pausar, absorver a transformação.

Essas mudanças de perspectiva têm um efeito dramático - não apenas no que você vê, mas também no que pensa e sente e na maneira como se relaciona com o mundo. Elas podem alterar sua visão da vida de forma radical num piscar de olhos. Mas o que é notável nessa situação é que, de fato, pouca coisa muda: a cena permanece exatamente a mesma, mas quando o sol aparece você vê o mundo sob uma luz diferente. Só isso.

Observar sua vida sob uma luz diferente também pode transformar seus sentimentos. Lembre-se de uma época em que você estava se pre­parando para as férias. Havia coisas de mais por fazer e tempo de menos para dar conta de tudo. Você chegou tarde em casa depois de passar o dia tentando deixar o trabalho em ordem antes de sair para seus dias de folga. Você se sentia como um hamster preso numa roda que não para­va de girar. Enquanto arrumava as malas, estava tão cansado que teve dificuldades de selecionar o que levar. Não conseguiu dormir direito porque sua mente continuava revivendo as atividades daquele dia. Na manhã seguinte, você acordou, pôs a bagagem no carro, trancou a casa e partiu... E acabou.

Pouco depois você estava deitado à beira da praia, relaxando e con­versando com os amigos. O trabalho de repente ficou a milhares de qui­lômetros de distância e você mal conseguia se lembrar dos problemas relacionados a ele. Você se sentia revigorado porque sua vida simples­mente mudara de marcha. Sua rotina estressante continuava existindo, é claro, mas você agora a estava vendo de um ponto de vista diferente.

O tempo também pode alterar profundamente sua perspectiva. Pense na última vez que você teve uma discussão com um colega ou um estranho - talvez um atendente de telemarketing. Você ficou uma fera. Passou horas pensando em todas as coisas inteligentes que pode­ria ou deveria ter dito para derrubar seu oponente. Os efeitos da dis­cussão arruinaram seu dia. Porém, poucas semanas depois, o episódio já não o afeta mais. Na verdade, você nem se lembra dele. O evento continua tendo ocorrido, mas você pensa nele de um ponto diferente no tempo.

Mudar sua perspectiva pode transformar sua experiência de vida, como mostram os exemplos. Mas eles também evidenciam um proble­ma fundamental: todos ocorreram porque algo fora de você havia mu­dado - o sol surgiu, você saiu de férias, o tempo passou. Acontece que, se você depender somente da mudança de circunstâncias externas para se sentir feliz e energizado, terá de esperar muito tempo. E enquanto você espera o sol aparecer ou as férias chegarem, sua vida passa despercebida.

Mas as coisas não precisam ser assim.

É fácil ficar preso num ciclo de sofrimento e aflição quando você tenta eliminar seus sentimentos ou se  emaranha num excesso de análises. Os sentimentos negativos persistem quando o modo Atuante da mente se oferece para ajudar, mas em vez disso acaba aumentando as dificuldades que você estava tentando superar.

Mas existe uma alternativa. Nossa mente tem outra maneira de se relacionar com o mundo: o modo Existente. Assemelha-se a uma mu­dança de perspectiva, embora vá bem além disso. Ela nos permite ver como a mente tende a distorcer a “realidade” e nos ajuda a eliminar o hábito de pensar, analisar e julgar demais. Com ela, podemos experi­mentar o mundo de forma direta, vendo qualquer dificuldade de um novo ângulo e enfrentando os obstáculos de maneira bem diferente. Por causa dela, somos capazes de mudar nossa paisagem interna (ou paisa­gem mental, se preferir) independentemente do que estiver ocorrendo a nossa volta. Deixamos de depender das circunstâncias externas para encontrar a felicidade, o contentamento e o equilíbrio. Voltamos a ter o controle de nossa própria vida.

Se o modo Atuante é uma armadilha, o modo Existente é a liberdade.

Ao longo das eras, as pessoas aprenderam a cultivar essa forma de ser, e qualquer um de nós é capaz de fazer o mesmo. A meditação da atenção plena é a porta pela qual podemos acessar o modo Existente. E, com um pouco de prática, poderemos abrir essa porta sempre que precisarmos.

A atenção plena surge espontaneamente do modo Existente quando aprendemos a prestar atenção deliberada, no momento presente e sem julgamento, nas coisas como de fato são.

Na atenção plena, começamos a ver o mundo como ele é, não como esperamos que seja, como queremos que seja ou como tememos que se torne.

Essas idéias podem soar um pouco nebulosas. Pela própria natureza, elas precisam ser experimentadas para serem compreendidas da manei­ra correta. Assim, para facilitar o entendimento, vou explicar a seguir ponto a ponto as diferenças entre os modos Atuante e Existente. Embora algumas das definições talvez não fiquem muito claras no início, os bene­fícios da prática da atenção plena são inquestionáveis. Na verdade, é até possível verificar os benefícios de longo prazo se enraizando no cérebro usando algumas das tecnologias de imagens mais avançadas do mundo.

Ao ler as páginas seguintes, é importante que você tenha em mente que o modo Atuante não é um inimigo a ser derrotado. Com frequência, é até um aliado. Ele só se torna um “problema” quando se oferece para uma tarefa que é incapaz de realizar, como “solucionar” uma emoção preocupante. Quando isso acontece, vale a pena mudar a marcha para o modo Existente.

É exatamente isto que a atenção plena proporciona: a capacidade de mudar de marcha quando precisamos, em vez de ficar presos sempre na mesma.

As sete características dos modos atuante e existente

1. Piloto automático X escolha consciente

O modo Atuante é muito eficiente em automatizar nossa vida por meio dos hábitos, mas esta é uma das características que menos perce­bemos. Sem a capacidade da mente de aprender com a repetição, ainda estaríamos tentando lembrar como amarrar o sapato - algo que hoje fazemos automaticamente. O lado ruim disso é que, quando cedemos demais ao piloto automático, podemos acabar pensando, trabalhando, comendo, caminhando ou dirigindo sem uma consciência clara do que estamos fazendo. O maior perigo é que grande parte da nossa vida passe assim, sem que de fato estejamos vivendo.

A atenção plena nos traz de volta à consciência: um local de escolha e intenção.

O modo Existente - ou “atento” - nos permite voltar a ter total consciência de nossa vida. Proporciona a capacidade de nos conec­tarmos com nós mesmos de tempos em tempos para que possamos fazer escolhas intencionais. A medi­tação da atenção plena nos leva a gastar menos tempo para realizar as coisas. É simples: quando se torna mais atento, suas intenções e ações ficam alinhadas, e você deixa de ser desviado toda hora do rumo pelo piloto automático. Aprende a parar de perder tempo à toa com sua velha maneira de pensar e agir, que se provou inútil. Além disso, diminui sua tendência a lutar demais por objetivos dos quais é melhor abrir mão. Você se torna plenamente vivo e consciente de novo.


2. Analisar X sentir

O modo Atuante precisa pensar. Ele analisa, recorda, planeja e compara. Esse é seu papel, e quase todo mundo se acha bom nisso. Passamos grande parte do tempo perdidos, desligados, sem notar o que se passa a nossa volta. A correria do mundo nos absorve de tal forma que destrói nossa percepção do agora, forçando-nos a viver mais no mundo dos nossos pensamentos do que no mundo real. E, como vimos no capítulo anterior, os pensamentos podem facilmente ser desviados para uma direção peri­gosa. Isso nem sempre ocorre, mas é um risco constante.

A atenção plena é uma forma diferente de experimentar o mundo. Não é como pegar um caminho novo; estar plenamente atento é entrar em contato com seus sentidos, de modo que possa ver, ouvir, tocar, cheirar e degustar as coisas que você já conhece como se fosse a primeira vez. Você se torna curioso de novo. Esse contato sensorial direto com o mundo pode parecer trivial de início. No entanto, quando você começa a sentir os momentos da vida comum, descobre algo fora do comum. Você cultiva uma sensação intuitiva do que está ocorrendo a sua volta, o que aumenta sua capacidade de observar as pessoas e a vida de uma nova maneira. Eis a essência da atenção plena: acordar para o que está acontecendo no mundo e dentro de você, momento a momento.

3. Lutar X aceitar

O modo Atuante envolve julgar e comparar o mundo “real” com o mundo que idealizamos em nossos sonhos e pensamentos. Ele foca a atenção na diferença entre os dois, o que acaba gerando uma insatisfa­ção permanente.

O modo Existente, por outro lado, nos convida a suspender o jul­gamento temporariamente. Significa ficar de lado por um momento e observar o mundo e a vida se desenrolando, permitindo que as coisas sejam como são. Ao analisar um problema ou uma situação sem precon­ceitos, não somos mais forçados a chegar a uma conclusão preconcebi­da. Desse modo, não precisamos reduzir nossa criatividade.

Aceitação não é o mesmo que resignação. Aceitar é reconhecer que a experiência existe e, em vez de deixar que ela controle sua vida, observá-la compassivamente, sem julgá-la, criticá-la ou negá-la. A aceitação pro­movida pela atenção plena permite que você impeça que uma espiral ne­gativa comece, ou, se já começou, reduza seu ímpeto. Ela nos concede a liberdade de escolher e, no processo, nos liberta da infelicidade, do medo, da ansiedade e da exaustão. Com isso, adquirimos um controle maior sobre a nossa vida. O mais importante é que nos permite lidar com os problemas da forma mais eficaz possível e no momento mais apropriado.

4. Ver os pensamentos como reais X tratá-los como eventos mentais

No modo Atuante, a mente usa as próprias criações, pensamentos e imagens como matéria-prima. As idéias são a sua moeda e adquirem valor próprio. Você pode começar a confundi-las com a realidade. Na  maioria das vezes, isso faz sentido. Se você saiu para visitar um amigo, precisa ter em mente seu destino. A mente planejadora, ativa, racional levará você até lá. Não faz sentido duvidar da verdade de seu pensa­mento: Vou mesmo visitar meu amigo? Em tais situações, é necessário considerar seus pensamentos como verdadeiros.

Mas isso se torna um problema quando você está estressado. Você poderia dizer a si mesmo: Vou enlouquecer se isso continuar. Eu deve­ria fazer melhor do que isso. Você pode considerar esses pensamentos verdadeiros também. Seu astral despenca quando sua mente reage de forma rude: Sou fraco, não presto, não sirvo para nada. Assim, você se esforça cada vez mais, ignorando as mensagens de seu corpo castigado e o conselho de seus amigos. Os pensamentos deixaram de ser seus servos e se tornaram seu senhor - um senhor rígido e implacável.

A atenção plena nos ensina que pensamentos não passam de pensa­mentos. São eventos criados pela mente. Costumam ser valiosos, mas não são “você” ou “a realidade”. São uma narração interna sobre você e seu mundo. A simples compreensão desse fato o liberta do excesso de preocupação, elucubração e ruminação, o que lhe permite enxergar um caminho claro pela vida de novo.

5. Evitar X aproximar-se

O modo Atuante resolve problemas não apenas mantendo na lem­brança seus objetivos e destinos, mas também lembrando “antiobjetivos” e lugares aonde você não quer ir. Isso faz sentido quando, por exemplo, você vai de carro do ponto A ao ponto B, porque convém saber quais partes da cidade você deve evitar. No entanto, esse pro­cesso se torna um problema quando se trata de estados mentais dos quais você gostaria de fugir. Por exemplo, se tentar resolver o proble­ma do cansaço e do estresse, você manterá na mente os “lugares que não deseja visitar”, como a exaustão, o esgotamento e o colapso. Então, além de se sentir cansado e estressado, você começará a invocar novos medos, aumentando sua ansiedade e gerando ainda mais estresse. O modo Atuante, usado no contexto errado, conduz você passo a passo ao esgotamento e à exaustão.

O modo Existente, por outro lado, convida você a se “aproximar” das coisas que sente vontade de evitar. Instiga-o a se interessar por seus estados mentais mais difíceis. A atenção plena não diz “não se preocupe” ou “não fique triste”: ela reconhece o medo, a tristeza, a fadiga e a exaustão e o encoraja a se voltar para aquelas emoções que ameaçam engoli-lo. Essa abordagem compassiva dissipa pouco a pouco o poder dos sentimentos negativos.

6. Viagem no tempo mental X permanecer no momento presente

Sua memória e sua capacidade de planejar o futuro são cruciais para o bom andamento da vida diária, mas elas sofrem distorções por causa de seu estado de espírito. Quando você está sob estresse, tende a se lembrar somente das coisas ruins, traumáticas, e a ter dificuldade de se lembrar das coisas boas, prazerosas. Algo semelhante ocorre quan­do você pensa no futuro: quando se sente infeliz, acha quase impossível olhar para a frente com otimismo. No momento em que esses sentimentos percorreram sua mente consciente, você deixa de perceber que não passam de memórias do passado ou de planos para o futuro. Você se perde na viagem no tempo mental.

Nós revivemos eventos passados e voltamos a sentir a dor; nós antevemos desastres futuros e sentimos seu impacto com antecedência.

A meditação treina a mente para que você conscientemente “veja” seus pensamentos quando ocorrerem, para que possa viver sua vida conforme ela se desenrola no presente. Isso não significa que você fica aprisionado no agora. Ainda consegue se lembrar do passado e planejar o futuro, mas o modo Existente permite que você os veja como são: a memória como memória e o planejamento como planejamento. Ter essa clareza evita que você seja escravo da viagem no tempo mental. Você consegue impedir a dor de reviver o passado e de se preocupar com o futuro.

7. Atividades exaustivas X tarefas revigorantes

Quando você está preso no modo Atuante, não é apenas o piloto au­tomático que o impele: você tende a se envolver em projetos pessoais e  profissionais importantes, e em tarefas exaustivas como cuidar da casa, dos filhos, dos pais idosos. Essas atividades costumam ser válidas, mas por demandarem tanto tempo é fácil concentrar-se nelas e excluir todo o resto, inclusive sua saúde e seu bem-estar. De início, você pode tentar convencer-se de que tudo isso é temporário e de que você está disposto a abrir mão dos hobbies e passatempos que nutrem sua alma. Mas desistir dessas coisas pode esgotar seus recursos internos aos poucos e levá-lo a se sentir vazio, apático e exausto.

O modo Existente restaura o equilíbrio, ajudando-o a identificar as atividades que o revigoram e aquelas que o esgotam. Ele o faz perceber que necessita de tempo para renovar sua alma e proporciona o espaço e a coragem para tal. Também o ensina a lidar com as inevitáveis tarefas do dia a dia que drenam a energia de sua vida.

Mudança consciente de marcha

A meditação da atenção plena ensina a sentir as sete dimensões de­ lineadas anteriormente e, com isso, ajuda a reconhecer em que modo sua mente está operando. Ela age como um alarme suave que avisa, por exemplo, quando você está analisando demais uma situação e lembra que existe uma alternativa: você ainda tem opções, por mais infeliz ou estressado que esteja. Ou seja, se sente que está emaranhado no excesso de análises e críticas, a atenção plena pode torná-lo mais aberto e fazê-lo aceitar a dificuldade com receptividade e curiosidade.

Agora podemos lhe revelar um segredo: se você mudar ao longo de qualquer uma dessas dimensões, as outras mudarão também. Por exem­plo, durante o programa de atenção plena, você pode praticar a recepti­vidade e se tornará menos crítico. Você pode praticar a permanência no presente e passará a interpretar seus pensamentos de forma menos literal. Se olhar para si mesmo com generosidade, também terá mais empatia pelos outros. E, ao fazer todas essas coisas, uma sensação de entusiasmo, energia e equilíbrio surgirá como uma fonte de água límpida há muito esquecida.

Embora as práticas ocupem apenas vinte a trinta minutos de “tempo de relógio” a cada dia, os resultados podem ter um impacto em toda a sua vida. Você logo perceberá que, embora certo grau de comparação e julgamento seja necessário, nossa civilização dá valor excessivo a essas coisas. Muitas escolhas que fazemos no dia a dia são desnecessárias. Elas são impelidas por seu fluxo de pensamentos. Você não precisa se comparar aos outros. Não precisa comparar seu pa­drão de vida atual com uma visão fictícia de futuro ou uma lembrança romantizada do passado. Não precisa ficar acordado à noite avaliando o impacto que um comentário casual, feito durante uma reunião de tra­balho, causará em seu emprego. Apenas aceite a vida como ela é, e você se sentirá mais realizado e livre de preocupações. E quando precisar to­mar alguma atitude, a decisão mais sábia provavelmente surgirá em sua mente no momento em que você não estiver pensando no assunto.

Precisamos enfatizar outra vez que aceitação atenta não é resignação. Não é aceitar o inaceitável. Nem é uma desculpa para ser preguiçoso e não fazer nada com sua vida, seu tempo, seus talentos e seus dons inatos. (O trabalho significativo, seja remunerado ou não, é uma forma segura de promover a felicidade.) A atenção plena é uma “recuperação dos sentidos”, uma consciência que começa a vir à tona espontaneamen­te quando você reserva tempo para praticá-la. Ela permite que você ex­perimente o mundo pelos sentidos - com calma e sem espírito crítico. Proporciona uma grande sensação de perspectiva, que o ajuda a sentir o que é importante ou não.

No longo prazo, a atenção plena o encoraja a tratar a si mesmo e aos outros com compaixão. Isso o liberta da dor e da preocupação, e em seu lugar surge uma sensação de felicidade que se propaga à vida diária. Não é o tipo de felicidade que se dissipa à medida que você se torna imune às alegrias. Pelo contrário, é um estado permanente de contentamento que invade sua rotina.

Um dos aspectos mais espantosos da meditação da atenção plena é que você consegue ver seus efeitos positivos alterando o funcionamen­to cerebral. Avanços científicos recentes nos permitem ver que as áreas do cérebro associadas às emoções positivas - como felicidade, empatia e compaixão - se tornam mais fortes e ativas quando as pessoas meditam. As novas tecnologias de imagem conseguem mapear redes críticas do cérebro sendo ativadas, quase como se estivessem brilhando e vibrando com uma vida renovada. Com essa reenergização promovida pela me­ditação, a infelicidade, a ansiedade e o estresse começam a se dissolver, deixando uma sensação profunda de revigoramento. Mas você não pre­cisa passar anos meditando para constatar esses benefícios: cada minuto conta.

Pesquisas mostraram que já é possível sentir seus efeitos se você se dedicar à prática diária por um período de oito semanas.

Durante muitos anos acreditou-se que todos temos uma espécie de “termostato emocional”, que determina nosso grau de felicidade na vida. Presumivelmente, algumas pessoas teriam um temperamento feliz, en­quanto outras teriam um temperamento infeliz. Embora grandes acon­tecimentos, como a morte de um ente querido ou ganhar na loteria, possam alterar de forma significativa o nosso estado de humor, às vezes por semanas ou meses a fio, sempre se supôs que havia um ponto de referência ao qual retornaríamos. Esse ponto de referência emocional estaria codificado em nossos genes ou seria fixado na infância. Em ou­tras palavras: algumas pessoas nasciam felizes e outras não.

Anos atrás, porém, esse pressuposto foi abalado por Richard David­son, da Universidade de Wisconsin, e Jon Kabat-Zinn, da Faculdade de Medicina da Universidade de Massachusetts. Eles descobriram que a prática da atenção plena permitia às pessoas escaparem da atração gravitacional de seu ponto de referência emocional. O trabalho deles nos ofereceu a possibilidade extraordinária de alterar permanentemente nosso nível de felicidade.

Essa descoberta tem suas raízes no trabalho do Dr. Davidson sobre a indexação (ou mensuração) da felicidade de uma pessoa por meio do exame da atividade elétrica em diferentes partes do cérebro, usando sensores no couro cabeludo ou por meio de ressonância magnética. Ele descobriu que quando as pessoas estão emocionalmente perturba­das - zangadas, ansiosas ou deprimidas -, o córtex pré-frontal direito se ilumina mais do que a parte equivalente do cérebro situada à esquerda. Quando as pessoas estão num astral positivo - contentes, entusiasma­das, radiantes -, o córtex pré-frontal esquerdo se ilumina mais do que o direito. Essa pesquisa levou o Dr. Davidson a conceber um “índice de humor” baseado na relação entre a atividade elétrica nos cortices pré-frontais esquerdo e direito. Essa relação consegue prever seu estado de ânimo diário com grande precisão. É como dar uma espiada no termos­tato emocional - se a relação tende para a esquerda, é provável que você esteja feliz, contente e energizado. Esse é o sistema da “abordagem”. Se a relação tende para a direita, a probabilidade é de que você esteja mais sombrio, desanimado e sem energia. É o sistema da “fuga”.

Davidson e Kabat-Zinn decidiram estender o trabalho e examinar os efeitos da atenção plena nos termostatos emocionais de um grupo de trabalhadores de biotecnologia. Os voluntários praticaram a meditação da atenção plena por oito semanas. Então algo incrível aconteceu: eles não apenas ficaram menos ansiosos, mais contentes, mais energizados e mais envolvidos com seu trabalho, como também o índice de ativação do cérebro deles passou a tender para a esquerda. Surpreendentemente, o sistema da abordagem continuou operando mesmo quando eles fo­ram expostos a músicas melancólicas e a lembranças do passado que os deixavam tristes. A tristeza gerada nesses momentos deixou de ser vista como um inimigo e passou a ser encarada como algo amigável, passível de ser administrado. Ficou claro não só que a prática da atenção plena aumenta os níveis de felicidade (e reduz o estresse), como também que essa mudança se reflete na forma como o cérebro funciona. Isso sugere que a atenção plena tem efeitos positivos que criam raízes profundas no cérebro.

Outro benefício inesperado foi que o sistema imunológico dos vo­luntários se fortaleceu. Os pesquisadores ministraram uma injeção com o vírus da gripe nos participantes e depois mediram a concentração de anticorpos específicos que haviam sido produzidos por cada um. Aque­les cujo cérebro mostrava maior tendência ao sistema da abordagem tiveram o sistema de defesa mais estimulado.

Mas um trabalho ainda mais interessante estava por vir. A Dra. Sa­rah Lazar, do Hospital Geral de Massachusetts, descobriu que quando as pessoas continuam meditando por vários anos, essas mudanças po­sitivas alteram a estrutura física do cérebro. O termostato emocional é reiniciado - para melhor. Isso significa que, com o tempo, você terá mais tendência a se sentir feliz em vez de triste, despreocupado em vez de agressivo, energizado em vez de cansado e apático. Essa mudança nos circuitos cerebrais é mais pronunciada numa parte da superfície do cérebro conhecida como insula, que controla muitas das características centrais à nossa humanidade.

Numerosos testes clínicos mostram que esses efeitos positivos sobre o cérebro se traduzem em benefícios para a felicidade, o bem-estar e a saúde. Veja alguns exemplos a seguir.

Atenção plena e Reisiliência

Descobriu-se que a atenção plena aumenta a resiliência - ou seja, a capacidade de resistir aos golpes e reveses da vida - num grau conside­rável. Essa capacidade de resistência varia muito de pessoa para pessoa. Algumas se saem bem em desafios estressantes que intimidariam mui­tas outras, como bater altas metas de desempenho no trabalho, acampar no Polo Sul ou cuidar de três filhos, da casa e do emprego.

O que faz com que pessoas “resistentes” sejam capazes de enfrentar as adversidades enquanto as outras se desesperam diante delas? A Dra. Su­zanne Kobasa, da City University de Nova York, identificou três traços psicológicos envolvidos nesse processo: controle, compromisso e desa­fio. Outro psicólogo eminente. Dr. Aaron Antonovsky, também tentou definir os principais aspectos psicológicos que permitem que algumas pessoas suportem uma tensão extrema, enquanto outras não. Ele con­centrou seus estudos em sobreviventes do Holocausto e encontrou três traços que se combinam para gerar uma sensação de coerência: inteligibilidade, maneabilidade e significabilidade. Assim, as pessoas “fortes” acreditam que os acontecimentos têm um significado, que são capazes de manejar sua vida e que a situação é compreensível, ainda que pareça caótica e descontrolada.

De certa forma, todos os traços identificados por Kobasa e Anto­novsky definem nosso grau de resiliência. Em termos gerais, quanto mais forte for nossa tendência a essas características, maior será nossa capacidade de enfrentar as provações e adversidades da vida.

A equipe de Jon Kabat-Zinn, da Faculdade de Medicina da Univer­sidade de Massachusetts, decidiu testar se a meditação conseguia me­lhorar essa tendência e, portanto, aumentar a capacidade de resiliência das pessoas. Os resultados foram claros. Em geral, os participantes não apenas se sentiram mais felizes, mais energizados e menos estressa­dos, como também ganharam mais controle sobre sua vida. Descobri­ram que ela fazia sentido e que os desafios podiam ser vistos como oportunidades, não como ameaças. Outros estudos confirmaram essas descobertas.

Mas talvez a descoberta mais intrigante sobre o assunto seja que esses traços de personalidade não são imutáveis. Eles podem ser mudados para melhor em apenas oito semanas de treinamento em atenção ple­na. Essas transformações não devem ser subestimadas, pois têm uma enorme importância para nossa vida diária. A empatia, a compaixão e a serenidade são vitais para o nosso bem-estar, mas certo grau de força e resistência também é necessário. E a prática da atenção plena pode ter um papel crucial nesses aspectos da vida.

Os estudos realizados em laboratórios e clínicas do mundo inteiro es­tão mudando a maneira como os cientistas pensam sobre a mente e vêm aumentando a confiança das pessoas nos benefícios da atenção plena. Muitos praticantes contam que a meditação aumenta a alegria diária. Isso significa que mesmo as coisas mais simples podem voltar a ser cativantes.

Psicologia - Psicologia positiva
4/2/2022 2:45:28 PM | Por Giovanni Reale
A importância e significação da componente política do platonismo

Somente no nosso século compreendeu-se, em toda a sua rele­vância e em todo o seu alcance, a componente política do platonismo. Em primeiro lugar, foi reivindicada a autenticidade da Carta VII, na qual Platão diz expressamente, traçando a própria autobiografia, que a política foi a paixão dominante da sua vida. Na sua biografia de Platão, ora clássica, Wilamowitz-Moellendorff, explorando o conteú­do da Carta VII, verificou que Platão, em todo o arco da sua vida, alimentou essa paixão política. Finalmente, Jaeger deu o passo deci­sivo: procurou demonstrar (e o conseguiu, embora incorrendo em excessos) que o problema político não só constitui o interesse central do homem Platão, mas ainda a substância da própria filosofia platô­nica. Outros estudiosos aderiram a essa tese.

Sócrates nunca participara ativamente da vida política: não so­mente não sentia necessidade de ocupar-se com ela, mas a conside­rava algo oposto à sua natureza. Já Platão, seja por nobreza de nas­cimento, seja por tradição familiar, seja por vocação íntima e espiritual, sentiu-se desde jovem, poderosamente atraído para a vida política. Eis as afirmações explícitas da Carta VII:

Desde jovem [...] passei por uma experiência comum a muitos e me decidi firmemente a uma coisa: apenas em condição de dispor da minha vontade, logo dedicar-me à vida política1.

Mas logo o reteve na execução desse propósito a profunda cor­rupção dos homens de governo, dos seus costumes e das próprias leis, que descobriu serem injustas não só em Atenas, mas também fora de Atenas. Eis então as suas conclusões:

Observava esses fatos (referia-se a uma série de episódios de corrupção política que culminaram na condenação e morte de Sócrates), observava tam­bém os homens que agem na cena política, como também as leis e os cos­tumes. E quanto mais avançava nas minhas observações e quanto mais eu mesmo avançava em idade, tanto se me tornava mais clara a imensa dificul­dade para bem administrar a cidade. Era impossível a ação política sem a ajuda de pessoas amigas e de fiéis colaboradores. E não era coisa fácil en­contrar esses amigos e colaboradores entre os que nos eram próximos, pois a nossa cidade não era mais governada segundo os usos e costumes dos antepassados, e era difícil e até impossível conseguir novos colaboradores. Acrescente-se que legislações, costumes e tudo o mais se dissolvia com in­crível rapidez e de modo espantoso. Desta sorte, não obstante meu primeiro impulso no sentido de participar da vida política, considerando tudo o que acontecia e vendo que tudo e em todas as partes e de todas as maneiras era arrastado num incontrolável processo de corrupção, senti uma espécie de vertigem, mas não pensei em desviar meu olhar dos acontecimentos, na es­perança de que um dia seu curso se tornasse mais favorável (e não só cada um dos acontecimentos, mas, sobretudo, melhorasse o espírito das constitui­ções). No entanto, esperava sempre a melhor ocasião para agir. Acabei, as­sim, por abraçar num único olhar todas as cidades, afirmando que todas, sem exceção, sofrem em razão de maus governos. Em todas as partes, com efeito, as legislações apresentam condições que se podem chamar desesperadas; seriam necessárias reformas excepcionais, ajudadas pela boa fortuna. Em resumo, fui irresistivelmente levado a louvar a reta filosofia e a concluir que somente graças a ela é possível esperar ver um dia justa a política das cidades e justa a vida dos cidadãos. Sim, certamente as desgraças e desven­turas do gênero humano não conhecerão fim a não ser no dia em que ver­dadeiros e puros filósofos tenham acesso ao poder; no dia em que, por algum  dom de Deus, as classes dirigentes nas várias cidades sejam inflamadas pelo verdadeiro amor da sapiência, e sejam formadas por filósofos2.

Tal convicção amadureceu em Platão, como ele mesmo diz logo a seguir, nos anos em que pela primeira vez veio à Itália, ou seja, em torno dos quarenta anos, no momento da composição do Górgias. Esse diálogo é uma manifestação de misticismo e, ao mesmo tempo, manifestação de paixão política e a proclamação de uma nova con­cepção da política. A arte política e o conceito de Estado são redimensionados em função das instâncias do socratismo. Enquanto a velha política e o velho Estado tinham na “retórica” (no sentido clás­sico que já conhecemos) o seu instrumento mais poderoso, a nova e verdadeira política e o novo Estado deverão ter, ao contrário, seu instrumento na filosofia, porque ela representa o único caminho se­guro de acesso aos valores de justiça e de bem, que são o fundamento verdadeiro de toda política autêntica e, portanto, do verdadeiro Es­tado. Assim sendo, Platão não hesita em pôr nos lábios de Sócrates (com quem doravante se identifica) esse desafio:

Eu creio estar entre os poucos atenienses, para não dizer-me o único, que tentam a verdadeira arte política, e o único entre os que agora vivem, que a exercita3.

Diferença entre a concepção platônica e a concepção moderna da política

De tudo o que ressaltamos, fica claro que toda a obra do Platão “filósofo” pretende ser, juntamente, obra de “político” no sentido explicado. Por outra parte, os próprios títulos das obras que vêm depois do Górgias o confirmam: a obra-prima central do pensamento platônico é a República; no meio dos diálogos dialéticos tem lugar o Político; a última vasta obra na qual trabalhou nos anos da velhice são as Leis. Conhecidas são, de resto, as repetidas tentativas que  Platão fez junto aos tiranos de Siracusa Dionísio I e Dionísio II para realizar os ideais políticos que nele vinham amadurecendo. Contem­plar o Verdadeiro e dirigir a Academia não era o bastante para ele; estava profundamente convencido de que o Verdadeiro e o Bem contemplados devessem descer à realidade com o fim de torná-la melhor, devessem tornar-se politicamente efetivos.

No entanto, antes de examinar qual seja a reconstrução da Cida­de, idealizada por Platão, é necessário antepor um esclarecimento sobre a diferença radical entre a concepção platônica da política e a concepção moderna da mesma, com o fim de prevenir toda uma série de equívocos.

Platão está profundamente convencido de que toda forma de política que pretenda ser autêntica deve ter em vista o bem do homem; mas, a partir do momento em que o homem é concebido como sendo a sua alma, enquanto o corpo não é senão seu casulo passageiro e fenomênico, é claro que o verdadeiro bem do homem é o seu bem espiritual.

Está assim assinalada a linha de demarcação que divide a polí­tica verdadeira da falsa: a verdadeira política deve ter em vista o “cuidado da alma” (o cuidado do verdadeiro homem), enquanto a política falsa tem em vista o corpo, o prazer do corpo e tudo o que é relativo à dimensão inautêntica do homem. E já que não existe outro meio para “curar a alma” senão a filosofia, segue-se daqui a identificação de política e filosofia, bem como a identificação (con­siderada paradoxal, mas, no contexto platônico, simplesmente óbvia), de político e filósofo.

De outra parte, não eram somente os pressupostos do sistema platônico que levavam a essas conclusões: o homem grego esteve sempre convencido (ao menos até ao tempo de Platão e Aristóteles) de que o Estado e a lei do Estado constituíssem o paradigma de toda forma de vida, como bem o sabemos; o indivíduo era, substancialmente, o cidadão, e o valor e a virtude do homem eram o valor e a virtude do cidadão: a polis não era o horizonte relativo, mas sim o horizonte absoluto da vida do homem. Por essa razão, se aos ele­mentos acima examinados se acrescenta também esse dado, é fácil compreender como as conclusões platônicas fossem absolutamente inevitáveis.

Ao invés, nossa concepção da política situa-se nos antípodas da política platônica. De há muito o Estado renunciou a ser fonte de todas as normas que regulam a vida do indivíduo porque, de há muito, “indivíduo” e “cidadão” deixaram de identificar-se. Além dis­so, o Estado renunciou há muito à apropriação das esferas da vida interior dos cidadãos que interessavam a Platão acima de tudo, dei­xando à consciência dos indivíduos a livre decisão nesses assuntos. Mais ainda, hoje a economia e a aspiração comum pelo bem-estar condicionam de tal modo radicalmente a práxis e a teoria políticas que elas se limitam freqüentemente a pretender ser justamente aquele sistema de desenvolvimento dos bens e do bem-estar material no qual Platão via a fonte de todo mal. Em suma, somos filhos de Maquiavel e, sob certos aspectos, estamos mais avançados do que Maquiavel; professamos um realismo político que assinala a inversão mais radi­cal daquele idealismo político teorizado por Platão.

Fizemos essas observações no nível da análise estrutural, sem, portanto, enunciar juízos de valor; na medida em que pretendem contribuir para a compreensão histórica da concepção platônica, al­mejam levantar também uma dúvida crítica. É certo que Platão es­tava condicionado em dois sentidos: pelos pressupostos do seu sistema e por determinada visão histórico-social-cultural do Estado; nem uma nem outra podem repetir-se historicamente. Todavia, aci­ma desses condicionamentos, ele apontou para uma verdade que hoje, mais do que nunca, soa como uma advertência: uma política que, ao regular a vida em sociedade dos homens, abdique das di­mensões do espírito e estruture-se exclusivamente segundo as leis da dimensão material do homem, não poderá subsistir; as exigências do espírito, negadas ou reprimidas, cedo ou tarde tornam a impor-se inexoravelmente.

Filosofia - Filosofia Clássica
3/24/2022 5:41:23 PM | Por Danny Penman, Mark Williams
Pensamentos automáticos e sua influência em nossas emoções

Aparentemente, Lucy era uma representante de vendas bem-suce­dida de uma rede de lojas de roupas. Mas ela estava se sentindo paralisada. Às três da tarde, olhando pela janela do escritório, estres­sada, exausta e totalmente indisposta, ela se perguntava: "Por que não consigo fazer meu trabalho direito? Por que não consigo me concentrar? O que há de errado comigo? Estou tão cansada! Nem consigo pensar direito...". Lucy vinha se punindo com esses pensamentos autocríticos constan­temente. Mais cedo, naquele dia, ela tivera uma conversa longa e ansiosa com a professora do jardim de infância sobre sua filha, Emily, que an­dava chorando quando era deixada na escola. Depois, telefonou para o bombeiro para saber por que não tinha ido consertar a descarga que­brada em sua casa. Agora fitava uma planilha, sentindo-se sem energia e mastigando um muffin de chocolate no lugar do almoço.

As exigências e tensões na vida de Lucy estavam piorando gradual­mente nos últimos meses. O trabalho se tornava cada vez mais estressante e começava a se estender até bem depois do horário do expediente. As noites haviam se tornado insones, os dias, mais sonolentos. Seu cor­po começou a doer. A vida perdeu a alegria. Seguir em frente era uma luta. Ela já havia se sentido assim antes, mas sempre fora uma situação temporária. Jamais imaginara que aquilo poderia se tornar um aspecto permanente de sua vida.

Ela vivia se perguntando: O que aconteceu com a minha vida? Por que me sinto tão exausta? Eu deveria estar feliz. Eu costumava ser feliz. Para onde foi minha alegria?

A vida de Lucy girava em torno de excesso de trabalho, infelicidade, insatisfação e estresse. Ela fora privada de sua energia mental e física e se sentia perdida. Queria voltar a ser feliz e estar em paz consigo mesma, mas não tinha ideia de como chegar lá. Sua frustração não era grave a ponto de justificar uma ida ao médico, mas era suficiente para solapar o seu prazer de viver. Ela não vivia, apenas sobrevivia.

A história de Lucy não é um caso isolado. Ela é uma das milhões de pessoas que não estão deprimidas nem ansiosas na acepção médica - mas também não são felizes de verdade. O humor de todos nós passa por altos e baixos. Às vezes nosso estado de espírito muda de uma hora para outra, sem nem sabermos por quê: num momento estamos felizes, contentes e despreocupados, então algo sutil acontece e começamos a ficar estressados. Pensamos em nossas dificuldades, em todas as coisas que precisamos fazer, na falta de tempo para resolver tudo. O ritmo das exigências é cada vez mais implacável. Nesse estado, ficamos cansados o tempo todo, de forma que nem uma boa noite de sono nos revigora. E nos perguntamos: Como isso foi acontecer? Por que ficamos assim? Talvez não tenha havido nenhuma grande mudança em nossa vida: não perdemos um amigo, não nos endividamos de forma descontrolada. Nada mudou, mas de alguma forma a alegria desapareceu, sendo subs­tituída por uma espécie de aflição generalizada.

Na maior parte do tempo, as pessoas conseguem escapar dessa espiral descendente. Esses períodos difíceis costumam passar. No entanto, às vezes podem perdurar e nos levar para o fundo do poço. No caso de Lucy, a tristeza e a frustração duraram meses, sem qualquer razão apa­rente. Nas situações mais graves, a pessoa pode ser acometida por uma crise séria de ansiedade ou de depressão clínica.

Embora períodos persistentes de aflição e exaustão geralmente pare­çam surgir do nada, existem processos ocorrendo no fundo da mente que só se tornaram conhecidos na década de 1990. E essa descoberta trouxe a percepção de que podemos nos libertar das preocupações, da infelicidade, da ansiedade, do estresse, da exaustão e até da depressão.

Se você perguntasse a Lucy como estava se sentindo naquela tarde, ela teria dito que estava “exausta” ou “tensa”. À primeira vista, essas sen­sações parecem afirmações factuais, mas se olhasse para dentro de si mesma com mais atenção, Lucy teria percebido que não havia algo es­pecífico que pudesse ser rotulado de “exaustão” ou “tensão”. Ambas as emoções eram, na verdade, feixes de pensamentos, sentimentos, sensa­ções físicas e impulsos (como o desejo de gritar ou de sair correndo da sala). As emoções são assim: uma “cor de fundo” criada quando a mente funde pensamentos, sentimentos, impulsos e sensações físicas para evo­car um tema norteador ou estado mental geral. Todos os elementos que formam as emoções interagem entre si e podem intensificar o estado de humor geral. É uma dança intricada, cheia de ligações sutis que só agora começamos a entender.

Tomemos os pensamentos como exemplo. Algumas décadas atrás, acreditava-se que os pensamentos conseguiam mudar nosso estado de espírito e nossas emoções, mas a partir dos anos 1980 descobriu-se que o contrário também pode acontecer: nosso estado de espírito pode mudar nossos pensamentos. Na prática, isso significa que mesmo os momentos passageiros de tristeza podem acabar se autoalimentando para criar pensamentos negativos, definindo a maneira como você vê e interpreta o mundo. Assim como um céu nublado pode fazê-lo se sen­tir melancólico, uma pequena irritação pode trazer à tona lembranças ruins, aprofundando ainda mais seu nervosismo. O mesmo vale para outras emoções: se você se sente estressado, esse estado pode criar ainda mais estresse. Isso também acontece com a ansiedade, o medo, a raiva, e com emoções “positivas” como amor, felicidade, compaixão e empatia.

Mas não são apenas pensamentos e estados de ânimo que se alimen­tam mutuamente e destroem o bem-estar - o corpo também se envolve nesse processo. Isso acontece porque a mente não existe de forma isolada. Ela é uma parte fundamental do corpo, e ambos compartilham informa­ções emocionais entre si o tempo todo. Na verdade, grande parte do que o corpo sente é influenciado pelos pensamentos e pelas emoções, e tudo o que pensamos é influenciado pelo que está ocorrendo no corpo. Pesquisas recentes mostram que nossa perspectiva de vida pode ser alterada por mínimas mudanças corporais: atitudes sutis como fechar a cara, sorrir ou corrigir a postura podem ter um impacto enorme em nosso estado de espírito e em nossos pensamentos.

Para compreender melhor o poder da interação entre o corpo e o es­tado de humor, os psicólogos Fritz Strack, Leonard Martin e Sabine Stepper1 pediram a um grupo de pessoas que assistisse a desenhos ani­mados e depois avaliasse quão engraçados eram. Alguns voluntários tiveram que colocar um lápis entre os lábios, sendo forçados a franzi­dos e fazer uma cara triste. Outros assistiram aos desenhos com o lápis entre os dentes, simulando um sorriso. Os resultados foram impres­sionantes: aqueles forçados a sorrir acharam os desenhos bem mais engraçados do que aqueles obrigados a fechar a cara. Todos sabemos que sorrir demonstra que estamos felizes, mas, convenhamos: é sur­preendente descobrir que o ato de sorrir pode ele próprio torná-lo feliz. Esse é um exemplo perfeito de como são estreitos os vínculos entre a mente e o corpo.

Sorrir também é contagioso. Quando você vê alguém sorrindo, quase inevitavelmente sorri de volta. Pense nisto: o simples ato de sorrir pode deixá-lo contente (ainda que seja um sorriso forçado). E, se você sorrir, os outros sorrirão de volta, o que reforça sua felicidade. É um círculo virtuoso.

Mas também existe um círculo vicioso, que atua na direção oposta. Ao pressentirmos uma ameaça, ficamos tensos, prontos para lutar ou fugir. Essa reação de “luta ou fuga” não é consciente: é controlada por uma das partes mais “primitivas” do cérebro e, por isso, ele pode ser um pouco simplista na maneira de interpretar o perigo. O cérebro não faz distinção entre uma ameaça externa (como um tigre) e uma interna (como uma lembrança incômoda ou uma preocupação futura), tratan­do as duas como um perigo equivalente. Quando uma ameaça é detecta­da - seja real ou imaginária -, o corpo fica tenso e se prepara para entrar em ação. Isso pode se manifestar de várias formas, como rosto franzido, frio na barriga ou tensão nos ombros. A mente lê a reação do corpo e entende que está diante de uma ameaça (lembra como uma cara amar­rada pode fazê-lo se sentir triste?), o que faz o corpo tensionar ainda mais. O círculo vicioso começou.

Na prática, isso significa que, se você está se sentindo um pouco es­tressado ou vulnerável, uma pequena mudança emocional pode acabar arruinando seu dia - ou até mesmo lançá-lo num período prolongado de insatisfação ou preocupação. Essas mudanças costumam surgir do nada, deixando-o sem energia e se perguntando por que está tão infeliz.

Oliver Burkeman, colunista do jornal The Guardian, descobriu isso sozinho e escreveu sobre como pequenas sensações corporais se retroalimentavam para lançá-lo em uma espiral emocional descendente:

Geralmente sou feliz, mas de vez em quando sou atingido por um estado de infelicidade e ansiedade que se intensifica muito rápido. Nos piores dias, sou capaz de passar horas perdido em divagações angustiantes, refletindo sobre as grandes mudanças que preciso fazer em minha vida. De repente, percebo que me esqueci de almoçar. Como um sanduíche de atum e o mau humor desapa­rece. No entanto, minha primeira reação à sensação ruim nunca é pensar que estou com fome. Aparentemente, meu cérebro prefere se chatear com reflexões sobre a falta de sentido da existência a me direcionar até a geladeira.

Como Oliver Burkeman constatou em sua própria experiência, quase sempre essas “divagações angustiantes” se desfazem rápido. Algo atrai nosso olhar e nos faz sorrir - um amigo telefona, encontramos um bom filme passando na TV, tomamos uma deliciosa xícara de chocolate quente ou decidimos ir para a cama cedo. Em geral, toda vez que somos atingidos pelos turbilhões da vida, algo de bom acontece para restabe­lecer o equilíbrio. Mas nem sempre é assim. Às vezes o peso de nossa história entra em ação e adiciona uma carga emocional extra, já que nossas lembranças têm um impacto poderoso em nossos pensamentos, sentimentos, impulsos e, em última análise, em nosso corpo.

Vamos voltar ao exemplo de Lucy. Embora se descreva como uma pessoa “ambiciosa” e “relativamente bem-sucedida”, ela tem consciên­cia de que algo fundamental está faltando em sua vida. Ela conquistou quase tudo o que queria, por isso acha estranho que não se sinta feliz, contente e em paz consigo mesma. Constantemente repete a frase “Eu deveria estar feliz”, como se dizer isso fosse suficiente para expulsar a tristeza.

Os surtos de infelicidade de Lucy começaram na adolescência. Seus pais se separaram quando ela tinha 17 anos e a casa da família precisou ser vendida, forçando seus pais a se mudarem para locais não muito adequados. Lucy surpreendeu a todos por segurar a barra. É claro que no início ficou arrasada com o divórcio, mas logo aprendeu a tirar o foco dos problemas se empenhando nos estudos. Essa foi sua tábua de salvação. Tirou boas notas, entrou na faculdade e se formou com uma qualificação satisfatória. Seu primeiro emprego foi como trainee numa loja de roupas. Ao longo dos anos, foi subindo na hierarquia da empresa, até chegar a chefe de uma pequena equipe de representantes de vendas. Aos poucos, o trabalho dominou a vida de Lucy, deixando-a cada vez mais sem tempo para si mesma. Aconteceu tão lentamente que ela mal percebeu que deixava sua vida de lado. Ocorreram coisas boas também, é claro, como o casamento com Tom e o nascimento das duas filhas. Ela adorava sua família, mas não conseguia se livrar da sensação de que apenas algumas pessoas tinham direito de viver de forma plena. Sua impressão era de estar caminhando em areia movediça.

Essa areia movediça era sua rotina, seu estresse, seus padrões de pen­samentos e seus sentimentos do passado. Embora por fora Lucy pare­cesse uma pessoa de sucesso, por dentro ela morria de medo do fracas­so. Esse medo fazia com que qualquer mau humor passageiro desenca­deasse lembranças dolorosas, enquanto seu crítico interno dizia que era vergonhoso exibir tais fraquezas. Sensações vagas de insegurança aca­bavam despertando uma sucessão de sentimentos negativos do passado que pareciam bem reais e rapidamente assumiam vida própria, ativando outra onda de emoções nocivas.

Como Lucy atestará, é raro experimentarmos a tensão ou a tristeza isoladamente - raiva, irritabilidade, amargura, ciúmes e ódio às vezes estão ligados em um novelo intricado. Esses sentimentos podem até ser dirigidos aos outros, mas na maioria das vezes são voltados para nós mesmos, ainda que não percebamos. Ao longo da vida, esses emaranha­dos emocionais podem se tornar mais associados aos pensamentos, aos sentimentos, às sensações físicas e aos comportamentos. É assim que o passado consegue ter um efeito tão difuso no presente. Se ativamos uma chave emocional, as outras são ativadas em seguida (o mesmo ocor­re com as sensações físicas, como a dor). Tudo isso pode desencadear padrões de pensamento, comportamento e sentimentos que sabemos que são nocivos, mas que simplesmente não conseguimos evitar. E que, quando combinados, são capazes de transformar qualquer contratempo em uma tempestade emocional.

Aos poucos, o acionamento repetitivo de pensamentos e humores ne­gativos começa a abrir sulcos na mente. Com o tempo, esses sulcos se tornam mais profundos, fazendo com que os pensamentos negativos, a autocrítica, a melancolia e o medo se instalem com mais facilidade e se dissipem com mais esforço. A conseqüência disso é que os períodos prolongados de fragilidade podem ser desencadeados por coisas cada vez mais banais, como uma chateação momentânea ou uma baixa de energia - tão banais que às vezes nem as reconhecemos. Com frequên­cia, os pensamentos negativos aparecem disfarçados de perguntas duras que fazemos a nós mesmos: Por que estou tão infeliz? O que está aconte­cendo comigo? Onde será que errei? Onde isso vai acabar?

Os vínculos estreitos entre os diversos aspectos da emoção, que o tem­po todo recorrem ao passado, podem explicar por que um sentimento passageiro pode ter um efeito significativo sobre o estado de humor. Às vezes esses sentimentos chegam e partem tão rápido quanto uma rajada de vento. Outras vezes, no entanto, o estresse, a fadiga e o mau humor ficam grudados como adesivos em nossa mente, e nada parece ser capaz de arrancá-los dali. A impressão que se tem é que é justamente isso que está ocorrendo: a mente é ativada para entrar em alerta máximo, mas depois não consegue ser desativada, como deveria acontecer.

Uma boa forma de ilustrar esse processo é comparar a maneira como humanos e animais reagem diante do perigo. Tente se lembrar do últi­mo documentário sobre a vida selvagem a que assistiu na TV. Deve ter aparecido um rebanho de gazelas sendo caçado por um leopardo na savana africana. Aterrorizados, os animais correram feito loucos até que o leopardo capturou um deles ou desistiu da caçada naquele dia. Uma vez passado o perigo, as gazelas voltaram a pastar tranquilamente. Algo no cérebro delas foi acionado quando avistaram o leopardo e depois desativado quando a ameaça se dissipou.

Mas a mente humana é diferente, sobretudo quando se trata de amea­ças “intangíveis” capazes de desencadear ansiedade, estresse, preocupa­ção ou irritabilidade. Quando nos preocupamos ou tememos alguma coisa - seja ela real ou imaginária - nossas reações de luta ou fuga entram em ação. Mas aí algo mais ocorre: a mente começa a percor­rer nossas lembranças em busca de algo que explique por que nos sen­timos daquele jeito. Assim, se nos sentimos tensos ou em perigo, nossa mente desenterra memórias de ocasiões passadas em que nos sentimos ameaçados e depois cria cenários do que poderá ocorrer no futuro se não conseguirmos explicar o que está acontecendo agora. O resultado é que os sinais de alerta do cérebro são ativados não apenas pelo perigo atual, mas por ameaças passadas e preocupações futuras. Tal processo se dá de forma instantânea, sem que percebamos.

Estudos recentes feitos a partir de tomografias do cérebro confirmam que pessoas que sentem dificuldade de viver o presente e têm rotinas muito agitadas possuem uma amígdala cerebral (a parte primitiva do cérebro envolvida no instinto de luta ou fuga) em “alerta máximo” o tempo todo.2 Assim, quando trazemos à tona lembranças de ameaças e perdas antigas e as juntamos ao “perigo” atual, nosso mecanismo de luta ou fuga não é desativado quando a ameaça passa. Ao contrário das gazelas, não paramos de correr.

Então, a forma como reagimos pode transformar emoções temporá­rias e não problemáticas em dores persistentes e incômodas. Em suma, a mente pode acabar agravando a situação. Isso vale para muitos outros sentimentos do dia a dia. Eis um exemplo:

Enquanto está lendo este livro, veja se consegue perceber qualquer sinal de fadiga em seu corpo. Passe um momento observando-o a fun­do. Depois que tiver se conscientizado de seu cansaço, faça a si mesmo as seguintes perguntas: Por que estou me sentindo tão exausto?O que fiz de errado? O que essa sensação revela sobre mim? O que acontecerá se eu não conseguir me livrar dessa fadiga?

Reflita sobre essas questões por um tempo. Deixe-as ecoar em sua mente. Por que estou tão cansado? O que aconteceu comigo? O que vou fazer se permanecer assim?

Como se sente agora? Provavelmente pior. Acontece com todo mun­do, porque aliado a essas perguntas existe um desejo de se livrar da fadi­ga e de descobrir suas causas e conseqüências.3 O impulso de explicar e expulsar a exaustão deixou você mais exausto.

O mesmo vale para uma série de sentimentos, como a infelicidade, a ansiedade e o estresse. Quando estamos infelizes, é natural tentarmos descobrir a razão por nos sentirmos assim e procurarmos um meio de resolver esse “problema”. Mas tensão, infelicidade ou exaustão não são problemas que possam ser resolvidos. São emoções. Refletem estados da mente e do corpo. Como tais, não podem ser resolvidas - apenas sentidas. Se você as percebeu e abandonou a tendência de explicá-las ou resolvê-las, terá mais chances de vê-las desaparecer sozinhas, como a névoa numa manhã de primavera.

Isso lhe soa estranho? Deixe-me explicar melhor.

Quando você tenta resolver o “problema” da infelicidade (ou de qual­ quer outra emoção “negativa”), mobiliza uma das ferramentas mais poderosas da mente: o pensamento crítico racional. Funciona assim: você se vê num lugar (infeliz) e sabe onde deseja estar (feliz). Sua mente analisa o hiato entre os dois polos e tenta descobrir a melhor forma de transpô-lo. Para isso, usa seu modo Atuante (assim chamado porque é eficiente para resolver problemas e realizar tarefas), que reduz progres­sivamente o hiato entre onde você está e onde deseja chegar. Ele faz isso fragmentando o problema, resolvendo cada uma das partes e depois ve­rificando se isso o ajudou a se aproximar de seu objetivo. Esse processo é instantâneo e nem nos damos conta dele. É uma forma incrivelmente poderosa de resolver problemas: é assim que nos orientamos nas cidades desconhecidas, dirigimos carros e organizamos cronogramas de trabalho frenéticos. Numa escala maior, foi como os povos antigos construí­ram pirâmides e navegaram pelo mundo em veleiros primitivos.

Parece perfeitamente natural, portanto, aplicar essa abordagem para resolver o “problema” da infelicidade. Mas, na verdade, é a pior coisa que se pode fazer, pois requer que você se concentre no hiato entre como está e como gostaria de estar. Então você faz perguntas como: O que há de errado comigo? Onde foi que errei? Por que cometo sempre os mesmos erros? Esses questionamentos, além de duros e autodestrutivos, exigem que a mente forneça indícios para explicar seu descontentamento. E a mente é de fato brilhante em fornecer tais indícios.

Imagine-se passeando num belo parque em um dia de primavera. Você está feliz, mas, por alguma razão desconhecida, uma centelha de tristeza surge em sua mente. Pode ser por causa da fome, já que você não almo­çou, ou talvez porque você tenha se lembrado sem querer de alguma coisa incômoda. Após alguns minutos, você começa a se sentir um pouco aba­tido. Assim que percebe seu desânimo, pensa: O dia está lindo. O parque é maravilhoso. Gostaria de me sentir mais contente do que estou agora.

Repita: Gostaria de me sentir mais contente.

Como se sente depois disso? Provavelmente, ainda mais triste. Você se concentrou no hiato entre como se sente e como quer se sentir. E concentrar-se no hiato o realçou. A mente vê a distância entre os dois estados como um problema a ser resolvido. Essa abordagem é desastro­sa quando se trata das emoções, devido à interligação complexa entre pensamentos, emoções e sensações físicas. Todos se alimentam mutua­mente e podem conduzir sua mente em direções perturbadoras. Em pouco tempo, você se vê sufocado pelos próprios pensamentos. Você começa a analisar demais a situação, a remoer o sentimento, a se culpar por não se sentir feliz.

Seu estado de ânimo piora. Seu corpo fica tenso, seu rosto se franze e o desânimo se instala. Algumas dores podem surgir. Essas sensações realimentam sua mente, que se sente mais ameaçada. Seu astral pode cair a tal ponto que você deixa de aproveitar o passeio no parque e não presta mais atenção na beleza do dia.

Claro que ninguém fica remoendo os problemas porque acredita que é uma forma nociva de pensar. As pessoas acreditam que, preocupando-se o suficiente com sua infelicidade, acabarão encontrando uma solu­ção para ela. Mas as pesquisas provam o oposto: na verdade, remoer pensamentos reduz nossa capacidade de solucionar problemas, e é um artifício absolutamente inútil para lidar com dificuldades emocionais.

Os sinais são claros: remoer pensamentos é o problema, não a solução.

Escapando do círculo vicioso

Não dá para deter o fluxo de lembranças infelizes, monólogos inter­nos negativos e outras formas de pensamento prejudiciais - mas você pode evitar o que acontece a seguir. Como já dissemos, você pode im­]pedir que o círculo vicioso se autoalimente e desencadeie a próxima es­piral de pensamentos negativos. E pode fazer isso experimentando um jeito novo de se relacionar consigo mesmo e com o mundo. Se você pára e reflete por um momento, a mente não apenas pensa: ela tem consciência de que está pensando. Essa forma de pura consciência permite que você veja o mundo de outra maneira, de um ponto de vista distanciado, sem sofrer a interferência de seus pensamentos, sentimentos e emoções. É como estar numa montanha alta - um ponto de observação - da qual você pode ver tudo por quilômetros a sua volta.

A pura consciência transcende o pensamento. Permite que você cale a mente tagarela e iniba seus impulsos e emoções reativas. Possibilita que você olhe para o mundo com os olhos abertos. E quando faz isso, a sensação de contentamento reaparece em sua vida.

 

Psicologia - Psicologia positiva
3/3/2022 2:27:26 PM | Por Morgana Gomes
A sociedade egípcia

Organizada de forma piramidal, no topo da hierarquia social egípcia destacava-se o faraó. Tido como o soberano todo poderoso era considerado um deus vivo, filho de Amon-Rá, o deus-sol, e a encarnação de Hórus, o deus-falcão. Dessa forma, além de se fazer intermediário entre os deuses e os homens, sua figu­ra sagrada também era objeto de culto. Como tal, em seu governo teocrático [sistema em que a autoridade política é exercida por pessoas que se consideram re­ presentantes de Deus na Terra), ele tinha autoridade absoluta, já que concentrava poderes administrativos, militares e religiosos, embora os delegasse para não se sobrecarregar. De acordo com essa hierarquia, no degrau abaixo da pirâmide social dos dominantes, des­tacavam-se os nobres, representados pelos familiares do faraó, altos funcionários do palácio, oficiais superiores do exército e chefes administrativos. Normalmen­te, eles ocupavam cargos de sacerdotes e nomarcas ou eram grandes proprietários de terras, isso quando não ocupavam os principais postos do exército.

Entre os nobres, os sacerdotes que na escala de poder ficavam somente abaixo do faraó, presidiam as cerimônias, conheciam as características e funções dos deuses, transmitiam as respostas das divinda­des às perguntas dos dominantes, comandavam os rituais após a morte do rei e, além de serem dis­pensados do pagamento de impostos, mesmo sendo proprietários de terras, ainda se enriqueciam com as oferendas feitas aos deuses. Consequentemente, a função sacerdotal era lucrativa e honrosa, por isso muito insistiam com a hereditariedade do cargo. Em seguida, vinham os chefes militares. Responsáveis pela segurança do território egípcio tinham que pre­parar e organizar o exército de forma eficiente, pois uma derrota ou fracasso podia lhes custar a própria vida. Mas, em momentos de guerra, sempre ganha­vam destaque. Depois surgiam os escribas. Respon­sáveis pela escrita egípcia (hieroglífica e demótica), eles registrarem os acontecimentos, principalmente sobre a vida do faraó, em papiros, paredes de pirâ­mides e em placas de barro ou pedra, mas também eram encarregados da cobrança de impostos, da or­ganização escrita das leis, dos decretos e da fiscali­zação da atividade econômica em geral. [53]

Costumeiramente, a classe mais elevada dos dominantes usava perucas de fibra de papiro (planta perene da família das ciperáceas, abundante as margens do rio Nilo] para se proteger do sol e tinta preta, à base de antimônio, ao redor dos olhos para diminuir o excesso de luminosidade e se prevenir contra oftalmias. Os sacerdotes ainda ras­pavam a cabeça e os demais pelos do corpo, tanto para manter a higienização durante as oferendas feitas nos templos quanto para se livrar dos piolhos e outros parasitas que proliferavam e infestavam o Egito.

Já a classe dos dominados congregava soldados, artesãos, cam­poneses e escravos. Os soldados nunca podiam atingir o posto de co­mando, que era reservado exclusivamente aos nobres. Eles viviam gra­ças aos produtos que recebiam pelos serviços prestados e de saques realizados durante as guerras. Por sua vez, os artesãos dedicavam-se as mais diversas profissões. Eram pedreiros, carpinteiros, desenhistas, escultores, pintores, tecelões, ourives, entre outros. Quando contrata­dos por empreiteiros para exercerem suas atividades em grandes obras públicas, em troca do trabalho prestado, recebiam apenas alimentos.

Já os camponeses formavam a maioria do povo. Trabalhavam nas propriedades do faraó e dos sacerdotes e, apesar de terem o direito de conservar uma pequena parte dos produtos colhidos, viviam submeti­dos a uma violenta repressão por parte da camada dominante, que os ameaçava constantemente com exércitos profissionais, para forçá-los a pagar impostos. Muitas vezes, principalmente nos períodos de cheia do rio Nilo, eles também eram convocados para trabalhar nas obras faraônicas. Por último, na escala hierárquica da sociedade egípcia, sur­giam os escravos. Normalmente provenientes da dominação de outros povos durante campanhas militares ou levados a essa condição devido às dívidas, eles faziam serviços domésticos, trabalhavam nas pedreiras e nas minas, sem receber nada pelos serviços prestados.[54] 

Quanto às mulheres, desde os tempos mais antigos, elas deti­nham um lugar na sociedade. Caso o marido morresse, elas assu­miam a chefia da família, inclusive nas classes mais altas, nas quais chegavam a tratar de assuntos de estados. Também podiam ser sa­cerdotisas nos templos. Mas se traíssem o esposo, era normal se­rem assassinadas. No entanto, o homem, inclusive o faraó, podia ter mais de uma mulher e, mesmo assim, ainda lhe era permitido ter amantes em sua própria casa. Além disso, como a linhagem de po­der do topo da pirâmide era repassada pela mulher, caso ela tivesse filhos homens, um deles (usualmente o mais velho) seria o novo faraó. Porém, se ela só tivesse filhas, após aprovação sacerdotal, o indivíduo que se casasse com a mais velha assumia o trono e se tor­nava o eleito dos deuses para exercer o reinado. Mas em virtude da política e dos jogos de interesses vigentes, por vezes, as mulheres ainda se casavam com seus próprios irmãos, para legitimá-los no trono, sem que isso configurasse incesto.

A vida no palácio dos faraós

Segundo Olavo Leonel Ferreira em "Egito: terra dos faraós" (pp. 27-28), "os faraós e sua família viviam em meio a tal luxo e conforto, que mesmo hoje causa admiração. Os palácios eram equipados com móveis de cedro, revestidos às vezes de ouro e de marfim, os utensí­lios de uso diário eram também de qualidade superior, demonstrando a riqueza daqueles que possuíam, bem como a habilidade e a perícia dos artesãos que os fabricavam. A presença de uma legião de servido­res, criados, músicos, cantores, dançarinas e copeiros colaborava ainda mais para tornar confortável a vida diária dos governantes do país. As caçadas e pescarias freqüentes, a prática de jogos diversos contribuía, também, para que fosse agradável o dia a dia dos 'deuses vivos' que governavam o Egito e daqueles que com eles conviviam (...). Os faraós egípcios casavam-se frequentemente com pessoas da própria família, muitas vezes com as próprias irmãs. Os casamentos consanguíneos ti­nham como motivo a preocupação em manter a pureza do sangue real. Muitos faraós mantinham mais de uma esposa, como resultado, seu número de filhos podia chegar a dezenas. Ramsés II, por exemplo, teve mais de 160."

A economia

De acordo com a organização social, em território egípcio instalou-se o chamado modo de produção asiático, em que todas as terras pertenciam ao Estado que, por sua vez, intervinha na economia, contro­lando a produção, recrutando mão-de-obra e cobrando impostos. Dessa forma, os camponeses tinham o direito de cultivar o solo desde que pa­gassem um imposto coletivo. Como eles plantavam trigo, cevada, fru­tas, legumes, linho e algodão, esse imposto era pago em espécimes que ficavam estocados nos armazéns reais. Em conseqüência, todos eram obrigados a trabalhar para sustentar o faraó. Mas, além da agricultura, [55] ainda havia a criação de animais, a indústria artesanal de tecidos e de vidro, a cerâmica, o comércio externo, o forjamento de cobre e ouro, a construção de barcos e a produção de armas. Porém, como os egípcios não conheciam o dinheiro, todo o comércio funcionava a base de trocas, prática que se tornou mais intensa no Novo Império, quando as impor­tações e exportações se intensificaram, favorecendo os contatos com a ilha de Creta, Palestina, Fenícia e Síria, de onde era trazido marfim, peles de animais, perfumes e outros utensílios usados pelos ricos. Os lucros obtidos com o comércio ainda ajudavam a pagar a construção das pirâmides.

Com as construções das pirâmides, se durante as cheias do Nilo, os egípcios faziam as pedras flutuar até a orla do deserto, em outros períodos, eles as transportavam em navio, construídos com madeira do Líbano. Conforme consta em diversos papiros, esses navios contavam com grandes remos, presos à popa. Posteriormente, os egípcios tam­bém foram os primeiros a usar velas. Mas para atravessar o Nilo, pes­car e caçar, os homens comuns utilizavam barcos de junco. Os cavalos só passaram a ser criados e usados no transporte, após a invasão dos hicsos em 1750 a.e.c., que os utilizaram contra os exércitos egípcios, que copiou a estratégia em guerras posteriores. [56]

A escrita hieroglífica

Constitui provavelmente o mais antigo sistema organizado de es­crita do planeta e apenas os sacerdotes, membros da realeza, funcio­nários de altos cargos e escribas conheciam a arte de ler e escrever esses sinais "sagrados". Utilizada em inscrições formais nas paredes de templos e túmulos, com o tempo evoluiu para formas mais simplifi­cadas, como o hierático, uma variante mais cursiva que se podia pintar em papiros ou placas de barro. Mais tarde, com a influência grega, os hieróglifos adquiriram ares demóticos, fase em que os sinais iniciais se tornaram bastante estilizados e ainda ganharam a inclusão de alguns símbolos gregos. Apesar desses aspectos, durante quase 4 mil anos, os hieróglifos que perfaziam um total de cerca de 6.900 sinais, reinaram soberanos a sombra dos faraós.

Entretanto, no século IV, devido ao cristianismo que se expandia, os escribas foram desaparecendo com o que ainda restava da velha cultura egípcia, levando consigo as chaves que decifravam a escritura sagrada. Em conseqüência, por muito tempo, afirmou-se que os hieróglifos eram uma esfinge que nunca seria decifrada.Também nas primeiras dinas­tias, um texto não continha mais do que 700 sinais, mas no final dessa civilização já eram usados milhares de hieróglifos, o que complicava muito a leitura e tornava impraticável o uso constante dos sinais.

Por volta de 1600 e.c., o jesuíta alemão Athanasius Kircher tentou de­ cifrar os hieróglifos, porém teve que desistir diante da complexidade dos sinais que, por milhares de anos, isoladamente representavam um objeto único. Entre esses sinais, havia partes do corpo humano, plantas, animais, edifícios, barcos, utensílios de trabalho, profissões, armas, etc. Embora tenham sido substituídos gradativamente por figuras mais sim­plificadas ou por símbolos gráficos, apenas no século XVIII, Jean-François Chapollion (1790-1832), professor francês, lhes deu um significado inteligível. Se inicialmente, Champollion estava convencido de que os hieróglifos eram puramente simbólicos, sem qualquer valor fonético, togo ele concluiu que o cóptico, a língua falada pelos cristãos egípcios ainda existentes, correspondia ao último estágio da antiga língua egíp­cia e essa foi a sua grande vantagem sobre o médico inglês Thomas Young, que também investigava o significado dos sinais, embora com menos sucesso. No entanto, após estudar várias inscrições hieroglíficas que continham nomes reais, tais como as do obelisco de Bankes e as da Pedra de Roseta, finalmente ele descobriu que muitos tinham um efeito fonético comum aos ideogramas. Contudo, o estudo da antiga língua egípcia, vinculada nos hieróglifos, avançou de forma concreta somente durante o século XX, a partir do trabalho de linguistas como Sir Alan Gardiner e Hans Jacob Polotski, que permitiu uma melhor compreen­são da gramática e do sistema verbal da civilização egípcia.

Atualmente sabemos que as inscrições hieroglíficas existem desde antes de 3000 a.e.c. Mas é possível que a última tenha sido feita sobre uma pedra descoberta na Ilha de Philae - que fica próxima à primeira catarata do Nilo e antigamente era chamada de Pilak -, cuja data [57] aproximada é de 394 e.c.. De forma bem resumida, nesse sistema de escrita, para representar sentimentos como ódio e amor ou ações como amar e sofrer, os egípcios desenhavam objetos, cujas palavras que os designa­vam, tinham sons semelhantes aos das palavras que os hieróglifos se referiam concretamente, com um sinal vertical ao lado de cada figura. Ao se referirem a algo abstrato, acrescentavam aos sinais o desenho um rolo de papiro. Caso os hieróglifos correspondessem à determinada pessoa, eles traziam a imagem de uma figura feminina ou masculina, com um pequeno sol. O sistema que por si só é bem complicado, ainda apresenta outra característica complexa: os hieróglifos podiam ser es­critos da direita para a esquerda ou vice-versa e, nesse caso, o sentido dos mesmos dependia da direção dos olhos das figuras humanas ou dos pássaros representados a lado deles. 

A arte

A arte no Antigo Egito tinha objetivos políticos e religiosos. Ro­busta, sólida e solene, de modo geral, ela se manteve homogênea du­rante as diversas dinastias, embora haja algumas nuances no seu eixo estruturador, em grande parte, devido à sucessão de acontecimentos históricos. Dessa maneira, além de representar, exaltar e homenagear constantemente o faraó e as diversas divindades egípcias, ela ainda era aplicada em peças ou espaços relacionados ao culto dos mortos, por­que a transição da vida à morte era compreendida de forma antecipada e preparada como uma passagem suprema. Logo, todas as suas re­presentações estão repletas de significados que caracterizam figuras, estabelecem níveis hierárquicos e descrevem situações.

A simbologia em si ainda estruturava, simplificava e clarificava a mensagem transmitida, criando um forte sentido de ordem e raciona­lidade extremamente importantes. A hierarquia social e religiosa, por exemplo, traduzia-se artisticamente na atribuição de diferentes tama­nhos aos vários personagens, de acordo com sua importância. Portanto, o faraó sempre era a maior figura numa representação bidimensional. Essa harmonia e equilíbrio tinham que ser mantidos, porque qualquer [58] perturbação implicaria em um distúrbio pós-morte. Esse objetivo tam­bém era atingido com linhas simples, formas estilizadas, níveis retilíneos de estruturação de espaços, cores uniformes que transmitem limpidez e às quais se atribuem significados próprios.

Embora muito estilizada, a arte egípcia tinha um pormenor realista, que tentava apresentar o aspecto mais revelador de determinada entidade. Ainda que, com restritos ângulos de visão, tal estilo tem um forte componente de estática, que apresenta uma imobilidade solene. Por conseguinte, diante de tais representações são só possíveis três pontos de vista pela parte do observador: de frente, de perfil e de cima. Por isso, as imagens do corpo humano, especialmente a de figuras [59] importantes, eram sempre representadas a partir de dois pontos de vista simultâneos, que oferecem maior informação e favorecem a dignidade da personagem: os olhos, os ombros e o peito representam-se vistos de frente; a cabeça e as pernas representam-se vistos de lado.

As cores utilizadas não cumpriam apenas a função decorativa. Nelas também havia um simbolismo intríseco. O preto usado nas so­brancelhas, perucas, olhos e bocas estava associado à noite e à morte, mas ainda poderia representar a fertilidade, a regeneração ou as inun­dações anuais do Nilo, que traziam a terra que fertilizava o solo [por esta razão, os Egípcios chamavam de Khemet, "A Negra", à sua terra). Osíris, muitas vezes, foi representado com a pele negra, assim como a rainha deificada Ahmés-Nefertari. O branco era a cor da pureza e da verdade. Como tal era utilizado nas vestes dos sacerdotes, nos objetos rituais, nas casas, nas flores e nos templos. O vermelho tinha um sig­nificado ambivalente, se por um lado representava a energia, o poder e a sexualidade, por outro lado estava associado ao maléfico deus Set, cujos olhos e cabelo eram pintados de vermelho, e ao deserto, local que os egípcios evitavam. O amarelo, devido ao Sol e ao ouro, era a cor da eternidade, tanto que as estátuas dos deuses, assim como os objetos funerários do faraó, incluindo a máscaras, eram feitos com esse metal. O verde simbolizava a regeneração e a vida. Muitas vezes, Osíris tinha a pele pintada com essa cor. Por fim, o azul aparecia associado ao rio Nilo e ao céu. No entanto, em virtude das poucas inovações, também é quase certo que o estilo de arte dos egípcios, seguia rígidos cânones e normas, que os artistas deveriam obedecer e que, de certo modo, im­puseram barreiras ao espírito criativo individual.

Todas essas características ainda se refletiram na produção de esculturas e na confecção de joias. Mas se as estátuas de grandes di­mensões se associavam à arquitetura, as pequenas representações de deuses e faraós, como também de animais, primavam pelo relevo des­critivo (hieróglifos) e pelo busto. Ambas se destacavam nos templos e monumentos, principalmente, nos funerários. Já a joalheria, que apre­sentava grande qualidade, se evidenciava nos objetos do cotidiano e no mobiliário requintado adotado pelas classes dominantes. As peças, geralmente em ouro, eram adornadas com gemas e símbolos, entre os quais escaravelho, nó de ísis, olho de Hórus, esfinge, entre outros de grande significado simbólico. [60]

A arquitetura

As pirâmides, inquestionavelmente, representam a expressão má­xima da arquitetura egípcia. Segundo a crença desse povo, como a ter­ra dos mortos ficava no oeste, lugar onde o sol se põe, as pirâmides deveriam estar alinhadas com a estrela polar do norte. Os sacerdotes, encarregados desse trabalho, demarcavam os pontos do nascimento e do acaso da estrela, estabeleciam o norte com exatidão e escolhiam os funcionários para trabalhar na pirâmide. Em cada dez homens, um sempre era convocado. Havia fiscais, operários que trabalhavam com metais, pedreiros, carpinteiros, além dos pintores e escultores, que decoravam templos. Em conjunto, eles arrastavam enormes blocos de pedra, que chegavam a pesar 3 toneladas cada um. Para cortarem as pedras, esses abriam uma fenda estreita com cunhas de madeira que, ao serem fixadas com um macete, eram encharcadas com água, que dilatavam a madeira e separavam a rocha. Durante a construção em si, os egípcios erguiam uma rampa e arrastavam os blocos de pedra para cima em trenós.

Algumas das ruínas de construções inacabadas mostram rampas construídas em direção reta. Mas de acordo com a necessidade da cons­trução, ela podia ser mais longa e mais alta. Ao mesmo tempo, eles edificavam o templo mortuário, encostado à pirâmide. Porém, conforme as paredes de ambos iam sendo erguidas, os operários enchiam o interior dos mesmos com areia para que os blocos ficassem bem assentados. Depois que tudo estava pronto, a areia era removida gradativamente, porque os entalhadores e pintores ainda a usavam como se fosse uma espécie de an­daime. Entre uma série de suposições, a mais aceita é que tais edificações foram construídas com calcário, extraído do próprio local. [61] Mas em meio às construções, as colunas de pedra merecem um destaque especial. Se antigamente elas seguravam os telhados dos templos e colunatas, hoje, conforme o formato do seu capitel é possível estimar a data da construção. A forma palmiforme (ins­pirada nas palmeiras] surge no Antigo Império e vai passando por transições até chegar ao pilar e depois à coluna. As papiriformes ou flores de papiro tinham seu corpo fasciculado em arestas, mas quando apresentavam às umbrelas abertas, o capitel passava ser chamado de campaniforme.

As lotiformes apresentavam ramos de lótus com corolas fechadas e no corpo reproduções de caules atados por um laço. Também eram construídas estátuas do rei que, por sua vez, eram colocadas no vale ou nos templos mortuários. Na seqüência, eles construíam separadamen­te a pirâmide da rainha que sempre era bem menor que a do seu rei. Depois que a pirâmide alcançava a altura desejada, os trabalhadores ainda colocavam as pedras de revestimento, cujos encaixes eram tão perfeitos que não passava nem uma lâmina de faca entre eles. Por fim, davam o polimento final, com calcário branco vindo da Turá. Atualmen­te, a pirâmide de Quéfren é a única que ainda tem no seu topo parte desse revestimento.

Considerando que, de acordo com a lenda da criação do mundo, como outrora tudo era água até que surgiu uma colina, na qual o deus-sol ficou em pé para criar o mundo, a pirâmide provavelmente simbo­lizava tanto a primeira colina da terra, que seria a pedra consagrada a Rá, quanto uma rampa para o céu.

Entretanto nem a morte do faraó punha no fim no trabalho. Quan­do o rei morria, os homens ainda tinham que enterrar, perto de sua pirâmide, o barco que ele utilizava em vida (Um dos maiores barcos encontrados no Egito, pertenceu ao rei Quéops. Descoberto ao lado de sua pirâmide, em bom estado de conservação, hoje ele está exposto no museu de Gizé, embora haja outro que ainda se encontra sob as areais do local), lacrar a entrada do túmulo para toda a eternidade e construir um poço que serviria como obstáculo para ladrões e curiosos.

Posteriormente, quando os faraós passaram a construir seus tú­mulos no Vale dos Reis, eles começaram a recrutar somente os habi­tantes do povoado de Deir el-Medina, que ficava na margem ocidental de Tebas, para fazer as construções, acima do povoado, nos rochedos locais. Nessa época, os túmulos variavam em tamanho e traçado, mas todos tinham uma minipirâmide esculpida em cima do seu telhado.

Curiosamente, a preocupação com a vida após a morte explica por­ que a maioria das casas e palácios não resistiu aos 3 mil anos de histó­ria egípcia, já que só restam ruínas dos templos, tumbas e pirâmides. As moradias comuns eram feitas em tijolos muito frágeis, porém na construção da casa dos mortos, os egípcios utilizavam pedras, metais e madeira. Graças a isso, além das pinturas com cenas cotidianas como guerras, recepção de visitantes estrangeiros, cenas familiares, higiene pessoal, trabalho e festas religiosas, também chegaram até nós [62] documentos escritos pelo povo, registros de estoques de armazém, anotações de escribas, correspondência particular de homens ricos, entre outros itens, que ficaram abrigados nos templos sagrados.

A música e a dança

Estudiosos acreditam que a música no Antigo Egito tenha surgido entre os séculos XVIII e XV a.e.c., tal como ocorreu na Mesopotamia e, graças às pinturas dos templos e túmulos, eles reconstruíram com uma relativa precisão o desenvolvimento dos instrumentos musicais e o uso da música na civilização egípcia. Entre o sexto e o quarto milênio a.e.c., após o estabelecimento das primeiras cidades, a dança era a principal manifestação em que se empregava a música. Supostamente, nessa época, os instrumentos vinham do sul da África e da Suméria. Na épo­ca do Império Antigo, entre a III e X Dinastias, a música atingiu seu ápice, como revelam diversas representações - nas quais se destacam pequenos conjuntos musicais com cantores, harpas e flautas - e inscrições que descrevem danças realizadas para o faraó. Segundo os egiptólogos nesse período houve um grande florescimento da arte musical. Já no Império Médio, representa­ções indicam conjuntos maiores e até orquestras, compostas por harpas, alaúdes, liras, flautas, flautas de palheta dupla (oboés), trombetas, tambores e crótalos. Por sua vez, no Império Novo os instrumentos se aperfeiçoam e a música passou a ter papel ritual e militar.

Quando o Egito começou a entrar em decadência, em virtude das sucessivas invasões, a cultura musical do território passou a ser influenciada pelos gregos e romanos, perdendo totalmente sua identidade, entre outras causas porque músicos estrangei­ros foram contratados para integrar a corte e trouxeram consigo alguns de seus instrumentos. Como até uma espécie de órgão hidráulico foi encontrado durante escavações, alguns musicólogos acreditam que os últimos vestígios da música faraônica po­dem ser identificados apenas na liturgia copta. Esses fatos es­tão comprovados porque muitos instrumentos surgiram durante as escavações das pirâmides, templos e túmulos subterrâneos, principalmente no Vale dos Reis. No entanto, como nenhum deles tinha afinação fixa, a possibilidade de definir que tipo de escalas musicais era utilizado, inviabilizou-se.

Também não foram encontrados textos que permitam de­duzir a existência de um sistema de notação e nem sobre teoria musical. Aparentemente isso se deve ao fato de que os músicos não gozavam, entre os egípcios, do mesmo status que tinham entre os sumérios, por exemplo. Em afrescos, eles sempre apa­recem ajoelhados e vestidos como escravos. Logo, a posição su­balterna do músico não permitiria a transmissão de uma arte, tão pouco valorizada, por meio de textos. [63] 

As ciências

Os egípcios não tiveram interesse por questões filosóficas nem abstratas, mas se dedicaram a construção de templos e pirâmides, a cura de doenças, a duração das estações agrícolas, a um método efi­ciente de contabilidade comercial, etc. Eles também foram os primeiros a manipular as substâncias químicas (arsênio, cobre, petróleo, alabastro, sal, sílex moído), que deram origem à fabricação de diversos remé­dios e composições simples. Até a palavra química provém do egípcio kemi, que significa terra preta.

A astronomia também se desenvolveu bastante no Antigo Egito. Como as estrelas orientavam os egípcios tanto na navegação quanto na agricultura, eles elaboraram mapas do céu, distinguindo estrelas, planetas e constelações. Desenvolveram ainda o calendário solar de 365 dias, divididos em 12 meses de 30 dias, mais 5 dias festivos e, em conseqüência, também ampliaram a astrologia, relacionando as traje­tórias dos astros com o nascimento de um indivíduo e suas caracterís­ ticas pessoais.
Em relação à matemática, eles também conheciam as três opera­ções fundamentais: soma, subtração e divisão. E, sem nenhum tipo de símbolo para representar o zero, eles constituíram o sistema decimal e passaram a calcular com precisão a área do triângulo, do retângulo, do trapézio e ainda o volume dos sólidos. Mas, graças às transações co­merciais e o período de cheias do Nilo, que exigiam uma padronização de pesos e medidas e um sistema de notação numérica de contagem, também se desenvolveram a álgebra e a geometria. [64]

No campo da medicina, como os progressos sempre estiveram re­lacionados com a anatomia humana, há mais ou menos 3000 anos a.e.c., no Antigo Egito, os médicos já tinham uma noção interna do corpo hu­mano, em virtude do costume religioso de embalsamar os mortos, dos quais se retiravam as vísceras, que eram guardadas em vasos espe­ciais, próximo ao corpo. Segundo os egiptólogos, o médico mais antigo do Egito viveu nesse mesmo período. Chamado Hesy-Ra, ele só cuidava de dentes, mas nessa época já havia outras especialidades como nariz, olhos, ânus e abdômen. Portanto, foi a partir de técnicas de mumificação que eles acumularam conhecimentos, reconheceram a importância do coração em relação aos outros órgãos do corpo, desenvolveram téc­nicas para tratar fraturas, realizar pequenas cirurgias e suturar cortes profundos. Os egípcios também foram os primeiros a afirmar que as doenças tinham causas naturais e, para combatê-las, elaboraram listas de remédios, formando a primeira farmacopeia de que se tem notícia. Conforme a doença, eles indicavam medicamentos que variavam desde sangue de lagarto, livro velho fervido em azeite, leite de mulher que tinha dado à luz até excremento de crocodilo.

Os médicos do Antigo Egito se dividiam em três grupos de terapeu­tas: os sacerdotes de Sekhmet, os magos e os sunus. Os sacerdotes de Sekhmet acreditavam que a deusa de mesmo nome era a causadora de todas as doenças. Então, eles mantinham um bom contato com ela, induzindo-a a não castigar certa pessoa com doenças. Por sua vez, os magos diziam que as doenças eram provenientes de maus espíritos que atacavam as pessoas. Logo, eles tinham como função o exorcis­mo. Já o sunus recebiam instruções médicas da PerAnkh ou da "Casa da Vida" e, antes de terminarem seus estudos em certa área do corpo humano, já exerciam suas funções, em seus próprios consultórios. Eles trabalhavam junto aos uts, os primeiros enfermeiros de que se têm notícia e, ao mesmo tempo em que podiam ser um sacerdote da deusa Sekhmet ou um mago. conforme papiros encontrados, ainda ocupavam cargos paralelos de admi­nistrador, arquiteto ou escriba. Contudo, eles defendiam que o organismo humano era o medicamento mais potente contra qualquer doença, já que podia produzir por si mesmo o medicamento necessário, no momento pre­ciso; sabiam como se dava a fecundação, que só o esperma tinha o poder de gerar um indivíduo e que o papel da mulher era o de recebê-lo. Diziam que, para saber se uma mulher estava grávida, o segredo era urinar sobre um punhado de grãos. Se em alguns dias, eles germinassem, um novo indivíduo estaria a caminho.

Curiosamente, enquanto os sunus se impressionavam com a possi­bilidade do sangue coagular e as artérias endurecerem, a maior preocu­pação da classe dominante era o ânus, tanto que cada faraó possuía um médico nessa área. Eles temiam os vermes que, por serem encontrados em múmias, acabaram sendo identificados como os legítimos mensagei­ros da morte. De certa forma, eles estavam certos, porque se os mesmos insistiam em aparecer, eles também estavam prenunciando a chance de uma diarréia fatal. [65]

História - Civilização Egípcia
1/9/2022 4:49:30 PM | Por Giovanni Reale
A tentativa de classificar o sistema filosófico de Platão

Seguindo a linha desse novo modelo de interpretação de Platão, é possível resolver toda uma série de problemas, até agora sem solução. O maior problema que ocupou os intérpretes de Platão desde a antigüidade até hoje consiste na reconstrução da unidade do pensa­mento platônico e em alcançar uma visão sintética e orgânica que ordene o complexo material conceituai que os diálogos nos oferecem, no qual se entrecruzam perspectivas múltiplas de gênero diverso, instâncias aporéticas e problemáticas, referências a dimensões dife­rentes, disfarces irônicos muitas vezes desconcertantes, provocações surpreendentes. Leibniz, que viveu numa época na qual a plurissecular interpretação neoplatônica (que se mantivera prevalentemente sobre a base de uma leitura alegórica dos diálogos) estava já em processo de radical dissolução, escrevia: “Se alguém reduzisse Platão a um siste­ma prestaria um grande serviço ao gênero humano"'.

É esse justamente, na verdade, o grande enigma que é preciso resolver para se poder penetrar o pensamento platônico e para compreendê-lo profundamente.

Pois bem, a tradição indireta, na medida em que nos revela quais fossem para Platão os fundamentos supremos do real e em que nos indica os nexos que unem todas as realidades ao Princípio supremo, preenche em boa parte essa lacuna que os diálogos apresentam e ajuda a resolver o enigma. Com efeito, de quanto se depreende dos testemunhos que chegaram até nós, não há dúvida de que Platão tivesse em vista apresentar um sistema capaz de abarcar o real na sua inteireza e nas suas partes essenciais. E, não obstante esses testemu­nhos sejam incompletos e muito sintéticos, eles nos permitem recons­truir as linhas essenciais e os nexos estruturais de tal sistema. Mas, já que essa descoberta torna obsoletas de um só golpe toda uma série de interpretações que foram dadas de Platão (e, de modo particular, as interpretações de tipo cético, problematicista, existencialista e anti-metafísico), é necessário determinar exatamente em que sentido se deva entender o termo “sistema” referido ao pensamento de Platão. Não se deve entendê-lo em sentido hegeliano ou neo-idealista, mas sim naquele sentido que, desde as suas origens com os pré-socráticos, a filosofia grega revelou como traço definitivo e como propriedade essencial do pensamento filosófico. Explicar significa unificar, em função de conceitos de base que implicam um vínculo estrutural entre si e que se referem a um conceito supremo que os engloba. Portanto, “sistema” é uma conexão orgânica de conceitos em função de um conceito-chave (ou de alguns conceitos-chave). Naturalmente, enten­dido dessa maneira, o “sistema” não tem nada a ver com rigidez sistematizante e estreitezas dogmáticas, mas apresenta-se como um projeto do eixo de sustentação principal das pesquisas, dos eixos de sustentação com ele conexos e das suas implicações.

Parece-nos exato o que Krämer explicou a esse respeito: “[...] o projeto era considerado elástico e flexível e estava aberto fundamen­talmente a ampliações, seja no conjunto, seja em pormenores. Pode-se falar, pois, de uma instância, não dogmática, mas heurística que permaneceu mesmo em alguns pontos particulares em estado de es­boço e, portanto, de sistema aberto; porém, não certamente de um anti-sistema de fragmentos de teorias sem conexões exatas. Ao invés, deve-se levar certamente em conta a tendência à totalização e a um projeto geral coerente e consistente”. Por sua vez, Gaiser insiste de maneira análoga: “Com a qualificação de ‘sistemática’ quero dizer que com esta teoria se tinha em vista e se punha por obra uma com­posição completa, uma síntese universal, um apanhado especulativo sinótico de cada conhecimento adquirido em todos os âmbitos possí­veis do real. Essa qualificação porém, não quer dizer que se tratasse de um complexo de proposições rigidamente fechado, escolástico, estabelecido de uma vez por todas. Há até hoje em cada ciência, e isso vale para a ontologia no seu conjunto, o tipo do sistema vivente-dinâmico que é ‘aberto’ na medida em que procura representar a realidade sempre e somente de modo hipotético e dialético. Compre­endido corretamente, o sistema platônico não exclui, antes acolhe um constante desenvolvimento ulterior: mesmo se a concepção funda­mental, semelhante a um núcleo de cristalização, permaneceu sem mudança por longo tempo, era sempre possível integrar novos conhe­cimentos singulares no sistema complexivo”.

A tradição indireta, revelando-nos as linhas essenciais das “Dou­trinas não-escritas” e oferecendo-nos aquele plus que falta nos diálo­gos, faz-nos conhecer justamente o eixo de sustentação (o conceito supremo ou os conceitos supremos) que organiza e unifica de modo notável os vários conceitos apresentados pelos diálogos.

A questão da ironia e sua função nos diálogos platônicos

O que foi dito por Leibniz a propósito do problema da reconstru­ção do sistema platônico, Goethe repetia-o com razão e com palavras semelhantes a respeito da ironia: “Quem soubesse explicar-nos que coisa homens como Platão disseram com seriedade, por brincadeira ou de modo meio brincalhão, e o que disseram por convicção ou então simplesmente por modo de dizer, certamente nos prestaria um serviço extraordinário e traria uma contribuição infinitamente valiosa à nossa cultura”.

Na realidade, juntamente com o diálogo socrático, Platão devia retomar também a “ironia” e introduzi-la nos seus escritos como um constitutivo essencial, com todas as dificuldades e com todos os pro­blemas que ela traz consigo. Em Sócrates, a ironia consistia num jogo hábil conduzido sobretudo com a máscara da ignorância em todas as suas variantes polimorfas e policrômicas, a fim de desmascarar a ignorância do presunçoso interlocutor. Como é sabido, no variado jogo das simulações, Sócrates chegava mesmo a fingir que acolhia idéias e métodos do adversário como se fossem dele e os levava ao extremo para poder fazer emergir facilmente os pontos débeis e refutá-los, algumas vezes fazendo uso da lógica própria àqueles métodos. Ora, em Platão encontramos ambos estes aspectos da ironia. O pri­meiro, porém, que é um tanto acentuado nos primeiros diálogos, pouco a pouco vai reduzindo o seu mordente e o seu alcance na medida em que os diálogos se enriquecem com conteúdos de doutri­na e na medida em que, neles, o momento construtivo prevalece sobre o momento aporético. Ao invés, o segundo tende a ampliar-se e a tornar-se sempre mais complexo, até atingir sua intensidade má­xima em diálogos muito importantes como, por exemplo, o Parmênides. É justamente esse aspecto da ironia platônica que dificulta a interpretação de certos diálogos, porque o filósofo não mostra expressa­mente reconhecível a ficção irônica como tal e muda de máscara sem nunca deixá-la cair. A ironia platônica tem um profundo valor meto­ dológico cujas raízes estão na maiêutica socrática: o leitor dos diálo­gos é envolvido nas invenções e no jogo das ficções com a finalidade de obter o seu empenho total e assim fazer saltar desde dentro a centelha da verdade.

Portanto, a ironia platônica nada tem a ver, como Jaspers justa­mente acentuou na sua reconstrução do pensamento platônico, com a visão niilista que segue o caminho da pura negação e coincide com o ridículo que fere e aniquila. Ao contrário, a ironia platônica implica a posse de algo positivo, que não é expresso diretamente com o fim de evitar a incompreensão de quem não é capaz de entender. “A ironia filosófica — escreve Jaspers — ao invés, é a expressão da certeza de um conteúdo originário. Perplexa diante da univocidade da necessidade racional e da multiplicidade dos significados que os fe­nômenos possuem, ela quereria captar o verdadeiro não falando, mas suscitando. Quereria dar um sinal da verdade escondida, enquan­to a ironia niilista é vazia. No torvelinho dos fenômenos, quereria levar, com um autêntico descobrimento, à presença inefável da sua verdade, enquanto a ironia vazia, através do torvelinho, nos faz cair no nada. A ironia filosófica é pudor de toda verdade direta. Ela impe­de toda incompreensão total imediata”. Com a sua ironia — diz ainda Jaspers — “parece que Platão tenha querido dizer: aqueles que não podem compreender devem compreender erradamente”.

Pois bem, acolhendo o novo modelo interpretativo, não poucos diálogos deixam de ser enigmas, e se pode compreender o que Platão disse de fato seriamente e por convicção. As indicações exatas que se extraem da tradição indireta lançam muita luz sobre muitos diálogos e, sobretudo, sobre as partes enigmáticas dos diálogos (que algumas vezes alcançam objetivamente os limites do não-decifrável) e ofere­cem a chave para compreender o jogo irônico, para fazer cair a máscara e para identificar de fato a mensagem filosófica platônica. Em todo caso, a interpretação pan-irônica dos diálogos platônicos à qual, ao fim e ao cabo, a ironia tudo arrasta, inclusive a si mesma, não se pode mais propor à luz da revalorização da tradição indireta, ao passo que o jogo irônico descobre afinal sua seriedade filosófica e seus fins construtivos.

A questão crucial da “evolução” do pensamento de Platão

A propósito da questão crucial da evolução do pensamento pla­tônico, Theodor Gomperz escrevia em fins do século XIX: “Concedamo-nos, por um momento, o luxo de um belo sonho. Supo­nhamos que um dos discípulos íntimos de Platão, por exemplo, seu sobrinho Espêusipo [...] tivesse feito o que não exigiria mais do que um quarto de hora dos seus ócios e que o teria tornado, de modo inestimável, benemérito da história da filosofia: isto é, que ele tivesse registrado sobre uma tabuinha a lista, por ordem de data, dos escritos do seu tio, e que uma cópia dessa lista tivesse chegado até nós. Nesse caso possuiríamos o melhor auxílio para o estudo do desenvolvimen­to espiritual de Platão”. Gomperz observa que isso não supriria a falta de um diário, de um rico epistolário, de notícias sobre as suas conversações; além disso, o ponto de vista diretivo que diz respeito ao desenvolvimento cronológico e o que diz respeito à continuidade dos conteúdos doutrinais disputariam sempre a primazia; todavia, um catálogo daquele tipo poderia resolver os maiores problemas, dado que o pensamento de Platão é um contínuo progredir.

Pois bem, essa convicção se considera hoje em parte superada sobre o fundamento das relações entre “escritura” e “oralidade” em Platão; em todo caso, ela é redimensionada segundo o modo estrutural. Mas, para entender bem esse problema e as soluções que hoje sempre mais se impõem, é necessário expor com exatidão alguns dos seus traços essenciais.

O conceito de “evolução” do pensamento de Platão foi introdu­zido por Hermann em 1839, numa obra que assinalou uma inflexão essencial nos estudos platônicos, articulando de maneira nova o modelo interpretativo proposto por Schleiermacher. A tese encontrou acolhi­da excepcional, e a concepção da evolução do pensamento platônico tornou-se um verdadeiro e próprio cânon hermenêutico, inclusive pelo fato de ter recebido algumas confirmações importantes apoiadas na aplicação do método da análise estilística e da estilística lingüística e ainda com o auxílio dos refinados métodos da filologia moderna.

O ponto de partida foram as Leis, que sabemos terem sido cer­tamente o último escrito de Platão. Com uma determinação acurada das características estilísticas dessa obra procurou-se estabelecer que escritos correspondessem a tais características. Daqui foi possível con­cluir (com o auxílio também de critérios colaterais de vários tipos), que os escritos do último período seguem provavelmente a seguinte ordem: Teeteto, Parmênides, Sofista, Político, Filebo, Timeu, Crítias, Leis. Ulteriormente foi possível estabelecer que a República pertence à fase central da produção platônica, sendo precedida pelo Banquete e pelo Fédon, e seguida pelo Fedro. Igualmente foi possível dar como certo que um grupo de diálogos representa o período de amadureci­mento e de passagem da fase juvenil a uma fase de maior originali­dade: o Górgias pertence verossimilmente ao período imediatamente anterior à primeira viagem à Itália, e o Mênon ao período imediatamente seguinte. A esse período de amadurecimento pertence prova­velmente também o Crátilo. O Protágoras é talvez a coroa da primei­ra atividade. Os outros diálogos, sobretudo os mais breves, são, com certeza, escritos da juventude, o que é confirmado pela temática es­pecificamente socrática neles discutida. Alguns deles podem ter sido retocados no período da maturidade.

Eis as conclusões que, do ponto de vista teorético e doutrinal, podem ser inferidas dessa ordem dos diálogos e que ilustram o esque­ma também por nós adotado no passado.

Primeiramente, Platão dedicou-se a uma problemática prevalentemente ética (ético-política), partindo exatamente da posição à qual Sócrates chegara. Em seguida, e justamente no aprofundar em todas as direções a problemática ético-política, ele compreendeu a necessi­dade de reavaliar as instâncias da filosofia da physis: entendeu que a justificação última da ética não pode provir da própria ética, mas somente de um conhecimento do ser e do cosmo do qual o homem é parte. Mas a recuperação das instâncias ontocosmológicas dos físi­cos deu-se de modo originalíssimo e, mais ainda, por meio de uma autêntica revolução do pensamento, com a descoberta do supra-sensível (do ser supra-físico). A descoberta do ser supra-sensível e das suas categorias desencadeou um processo de revisão de toda uma série de problemas antigos e deu origem, por outro lado, a toda uma série de novos problemas que Platão incansavelmente tematizou e aprofundou pouco a pouco nos diálogos da maturidade e da velhice. A conquista do conceito de supra-sensível deu novo sentido à psyché socrática e ao socrático “cuidado da alma”; deu um outro sentido ao homem e ao seu destino, um outro sentido à Divindade, ao cosmo e à verdade. Do alto dos horizontes alcançados com a descoberta do supra-sensível, Platão pôde harmonizar a antítese entre Heráclito e Parmênides, fundamentar a intuição teleológica de Anaxágoras, resol­ver muitas aporias do eleatismo, dar ao pitagorismo um novo sentido. Na fase da maturidade, as instâncias eleáticas tornaram-se mesmo de tal modo urgentes que não somente inspiraram todo um diálogo como o Parmênides, mas até levaram a uma substituição de Sócrates como protagonista. De fato, no Sofista e no Polí­tico, o verdadeiro protagonista será um Estrangeiro de Eléia. Finalmente, na fase da velhice, alçaram-se ao primeiro plano as instâncias pitagóricas (de resto, sempre presentes e ativas de muitos modos do (iGórgias em diante) a tal ponto que, na grande síntese final cosmo-ontológica do Timeu, Platão escolheu como protagonista exatamente o pitagórico Timeu. Segundo a maioria dos estudiosos (incluindo aqueles que primeiramente as tinham reavaliado), as “Doutrinas não-escritas” teriam levado a termo a parábola evolutiva de Platão.

Essa parábola típica que brevemente esboçamos tem, naturalmen­te, uma série de variantes (e até mesmo bastante notáveis) nos diversos intérpretes. Deve-se notar que muitos estudiosos acreditaram poder descobrir nos diálogos posteriores à República expressões de crises, de superações, de “autocríticas”, de “autocorreções” de diverso gênero do pensamento platônico originário, sobretudo no que diz respeito à doutrina central, ou seja, à doutrina das Idéias. Convém notar como o pro­blema das relações entre evolução e sistema foi resolvido de maneira diversa, a maioria das vezes com a tendência a conferir a primazia à evolução exatamente como cânon hermenêutico, com prejuízo do sistema, vale dizer, com prejuízo da unidade do pensamento platônico.

Ora, aceitando-se o novo modelo interpretativo, a reconstrução genética do pensamento platônico recebe, juntamente com todas as pretensões que ela acolhe, um redimensionamento drástico, porque justamente os pressupostos sobre os quais se apóia são submetidos a uma séria crítica. Será oportuno recordar em grandes linhas os pontos focais dessa questão.

  • Deve-se observar em primeiro lugar que o estudo dos diálogos platônicos em chave genética pode alcançar resultados merecedores de atenção no que diz respeito ao aspecto do Platão escritor, mas não, ao mesmo tempo, ao aspecto do Platão pensador. Com efeito, o es­critor Platão está longe de coincidir sistemática e globalmente com o pensador Platão, como fica claro do que acima foi dito e como se mostrará com exatidão a partir das observações a seguir.
  • A interpretação genética aplica, sem de nenhum modo demonstrá-lo, o princípio segundo o qual Platão possuía somente o nível de doutrina e de consciência teorética que exprime nos diálogos sucessivamente escritos.
  • As finalidades diversas e os diversos objetivos que inspiram os vários diálogos impõem, por razões de natureza estrutural, níveis diferentes de exposição doutrinal, ou seja, um mais ou um menos em quantidade e qualidade de doutrinas, que produz um espaçamento notável no jogo das inferências sobre as quais se apóia o método genético. Alguns diálogos, por exemplo, apresentam um conteúdo doutrinal menor simplesmente pelo fato de que eles têm em vista fins mais limitados com relação a outros, adaptando, além disso, esses fins à medida dos personagens.
  • Além disso, no Fedro Platão diz clara­mente que o momento de elaboração oral da doutrina vinha em pri­meiro lugar, e só em um segundo momento eram fixadas nos escritos as doutrinas (ou ao menos algumas dentre elas) estabelecidas através da discussão oral, e isso com propósitos hipomnemáticos. A esse respeito é fácil salientar uma mobilidade de limites entre escrito e não-escrito. Platão, com o passar dos anos, viu-se impelido a escrever sempre mais e deteve-se somente diante das “coisas de maior valor”, isto é, diante das doutrinas que deve­riam permanecer definitivamente “não-escritas”.
  • Ademais, ele fez uma série de referências a essas “Doutrinas não-escritas”, inequívocas para os leitores e os intérpretes que não estejam indevidamente munidos de pré-conceitos tradicionais.
  • Portanto, as conclusões são evidentes. Quando Platão compu­nha os diálogos, movia-se num horizonte de pensamento mais amplo do que aquele que ia fixando por escrito. A reavaliação correta da tradição indireta permite reconstruir, em boa medida, esse horizonte de pensamento. E uma vez comprovado que o núcleo essencial das “Doutrinas não-escritas” remonta a uma época muito anterior à que se pensava no passado, segue-se evidentemente que a questão da evolução do pensamento platônico será formulada de modo inteiramente novo, ou seja, exatamente sobre os fundamentos das relações entre a obra es­crita e o ensinamento oral, vale dizer, sobre os fundamentos das re­lações entre as duas tradições que chegaram até nós, levando-se em conta todas as circunstâncias acima indicadas.
  • Em todo caso, será necessário distinguir diferentes níveis da parábola evolutiva: o do Platão pensador; o do Platão escritor, em geral, e o da estrutura das relações entre escritura e oralidade que, em certa medida, pouco a pouco se estreitam.

“Mito” e “logos” em Platão

Outro problema de enorme alcance, ao lado dos que acabamos de examinar, é constituído pelo fato de Platão revalorizar o ‘mito ao lado do “logos” e, a partir do Górgias até os diálogos tardios, atribuir-lhe uma importância assaz notável

Como se explica isso? Como, afinal, a filosofia volta a retomar o mito do qual procurara, de várias maneiras, libertar-se? Trata-se de uma involução, de uma abdicação parcial da filosofia das suas prer­rogativas próprias, de uma renúncia à coerência ou, em último caso, de uma desconfiança de si? Em suma, qual o sentido do mito em Platão? As respostas a esse problema foram as mais diversas. As soluções extremas vieram de Hegel e da escola de Heidegger.

A propósito, Hegel escrevia: “O mito é uma forma de exposição que, na medida em que é mais antiga, suscita sempre imagens sensí­veis adaptadas à representação, não ao pensamento; mas isso atesta a impotência do pensamento que ainda não sabe manter-se por si mes­mo e, portanto, não é ainda pensamento livre. O mito faz parte da pedagogia do gênero humano porque estimula e atrai a ocupar-se do conteúdo. Mas, como o pensamento está nele contaminado com for­mas sensíveis, ele não pode exprimir o que o pensamento deseja expri­mir. Quando o conceito amadurece não tem necessidade de mitos”'. Portanto, o mito platônico pertenceria à forma exterior e à represen­tação; o conceito filosófico deve ser sempre separado do mito, pois só se mistura com ele quando ainda não está de todo amadurecido. Logo, o mito em Platão teria um valor (filosoficamente) negativo.

Ao invés, a escola de Heidegger chegou a conclusões diame­tralmente opostas. Ela apontou no mito a expressão mais autêntica da metafísica platônica; o logos, que domina na teoria das Idéias, mostra-se capaz de captar o ser, mas incapaz de explicar a vida: o mito vem em socorro justamente para explicar a vida e, de certa maneira, supera o logos e se faz mitologia. Na mitologia dever-se-ia procurar o sentido mais autêntico do platonismo".

Entre esses dois extremos situa-se, naturalmente, uma gama bas­tante variada de soluções intermediárias.

O problema, segundo o nosso parecer, só encontra solução se descobrirmos as razões exatas que levaram Platão a repropor o mito. E essas razões são identificáveis na revalorização de algumas teses fundamentais do orfismo e da sua tendência mística e, em geral, no poderoso afirmar-se da componente religiosa a partir do Górgias. Em suma, o mito em Platão renasce não apenas como expressão de fan­tasia, mas, antes, como expressão daquela que poderemos denominar fé (Platão usa no Fédon o termo esperança).

Com efeito, o discurso filosófico platônico sobre alguns temas escatológicos na maior parte dos diálogos, do Górgias em diante, torna-se uma espécie de fé acompanhada de razões: o mito procura um esclarecimento no logos, e o logos um complemento no mito. À força da “fé” que se explicita no mito Platão confia ora a tarefa de transportar e elevar o espírito humano a âmbitos e esferas de visões superiores que a razão dialética, sozinha, tem dificuldade em alcan­çar, mas que pode conquistar mediatamente; ora, ao invés, Platão confia à força do mito a tarefa, no momento em que a razão alcançou seus limites extremos, de superar intuitivamente esses limites e de coroar e completar esse esforço da razão, elevando o espírito a uma visão ou, ao menos, a uma tensão transcendente.

Eis o que responde expressamente Platão às negações racionalistas do valor do mito usado nesse sentido, dirigindo-se a Cálicles e aos campeões da sofística hiper-racionalista:

Essa estória (i.é, o mito de além-túmulo) parecerá a ti que seja uma dessas lendas que as velhinhas contam e a desprezarás; na verdade, não seria absurdo desprezar tais coisas se buscando (i.é, puramente com a razão) pudéssemos encontrar outras melhores e mais verdadeiras. Mas considera bem que vós três, que sois os mais sábios entre todos os gregos, tu, Polo e Górgias, não sabeis demonstrar que se deva viver uma vida diferente dessa vida que nos parece útil também do lado de lá1.

Além disso deve-se notar particularmente que o mito, do qual Platão faz uso metódico, é essencialmente diverso do mito pré-filosófico que ainda não conhecia o logos. Trata-se de um mito que não somente é expressão de fé, como dizíamos, mais do que de espanto fantástico, mas é igualmente, um mito que não subordina o logos a si, mas estimula o logos e o fecunda no sentido que já explicamos, sendo um mito que, em certo sentido, enriquece o logos. Em suma, é um mito que, ao ser criado, é despojado pelo logos dos seus ele­mentos puramente fantásticos para manter somente seus poderes alu­sivos e intuitivos. A exemplificação mais clara do que afirmamos encontra-se numa passagem do Fédon que segue imediatamente a narração de um dos mais grandiosos mitos escatológicos com que Platão procurou representar o destino das almas no além:

Sem dúvida, obstinar-se em pretender que essas coisas sejam exatamen­te como as descrevi não convém a um homem sensato; mas afirmar que isso ou algo parecido a isso aconteça com as nossas almas ou com as suas mo­radas, desde que se concluiu que a alma é imortal, eis o que me parece convenha e valha a pena arriscar a quem assim pense. Com efeito, o risco é belo e convém com essas crenças fazer um encantamento sobre si mesmo, é por essa razão que há tempos eu me demoro nesse mito2.

Mas o problema é ainda mais complexo na medida em que o mito em Platão apresenta outras significações além daquela ora consi­derada, ligada sobretudo a problemáticas escatológicas. Um segundo e notável significado é, com efeito, o de narração provável que diz respeito a todas as coisas sujeitas à geração. O logos, na sua pureza, pode aplicar-se apenas ao ser que não muda; ao contrário, ao ser mutável não se poderá aplicar o logos, mas a opinião verdadeira ou, justamente, o mito provável. Com efeito, explica Platão, entre o conhe­cimento e as coisas das quais temos conhecimento existe uma afini­dade estrutural. Os raciocínios e os discursos que têm por objeto o ser estável e firme são também estáveis e imutáveis e captam a ver­dade pura; ao contrário, os raciocínios e discursos que têm por objeto a realidade sujeita à geração são verossímeis e fundados na crença.

E eis o ponto ao qual se deve prestar bem atenção: exatamente na medida em que o cosmo em devir é uma “imagem” do ser puro, que é “modelo originário ”, ele é cognoscível de alguma maneira; e justamente sobre esse seu ser “imagem” funda-se o diferente alcance cognoscitivo com relação ao modelo.

As conclusões de Platão são, pois, as seguintes: com relação ao universo físico (que não é puro ser, mas a sua imagem), não é pos­sível fazer raciocínios veritativos em sentido absoluto, mas é possível fazer somente alguns raciocínios verossímeis. Nesse âmbito, a natu­reza humana deve contentar-se com o “mito”, no sentido de “narração provável”, pois, em razão da própria natureza do objeto da pesquisa, não é possível ir mais além:

Portanto, ó Sócrates, não te deves maravilhar se, depois de muitas coisas por muitos enunciadas em torno aos Deuses e à origem do universo, não conseguimos apresentar raciocínios exatos em tudo e por tudo coerentes com eles mesmos. Mas, se apresentarmos raciocínios verossímeis tanto como qual­ quer outro, então devemos ficar satisfeitos com eles, lembrando-nos de que tanto eu que falo quanto vós que julgais temos uma natureza humana; assim, acolhendo em torno a essas coisas o mito (narração) provável, convém que não avancemos além disso3.

Por conseguinte, toda a cosmologia e toda a física são, nesse sentido, “mito”.

Mas há outros significados do mito em Platão. Algumas vezes o nosso filósofo o apresenta mesmo com uma esconjura de caráter tipicamente mágico. Foi justamente salientado que, com isto, “ele pretende caracterizar a particular força persuasiva do discurso poético-mítico, que é capaz de alcançar não somente as camadas racionais, mas também as camadas emotivas da alma.

Mais ainda, em certos casos Platão entende por mito toda espécie de exposição narrativa de temas filosóficos que não tenha puramente a forma dialética (e, portanto, todos os seus diálogos ou grande parte dos mesmos).

O leitor terá compreendido a enorme importância do mito para Platão. Se quiséssemos resumir com um mínimo denominador co­mum o que acabamos de explicar, poderíamos dizer que, para o nosso filósofo, falar por mitos é um exprimir-se por ima­gens, o que permanece válido em vários níveis, na medida em que pensamos não só por conceitos, mas também por imagens.

O mito platônico na sua forma e no seu poder mais elevados é um pénsar-por-imagens não somente na dimensão físico-cosmológica, mas também na dimensão escatológica e mesmo metafísica, torna-se, dessa maneira, uma das cifras emblemáticas do espírito humano à qual Platão conferiu, de fato, amplo relevo.

O caráter poliédrico e polivalente da filosofia platônica

Ao compreender e expor a filosofia platônica, os intérpretes se­guiram, em geral, dois caminhos opostos. Alguns expuseram-na de maneira sistemática, inspirando-se em esquemas que prevaleceram de Aristóteles em diante ou, mesmo, no esquema hegeliano (como, por exemplo, Zeller, que organizou sua exposição do platonismo segundo o esquema dialético triádico Idéia-Natureza-Espírito). Outros, ao con­trário, depois da descoberta de critérios que permitiram fixar uma sucessão, ainda que aproximativa, dos diálogos mais importantes, e com a convicção de que o pensamento platônico tenha sofrido uma profunda evolução, da qual já falamos, preferiram expor cada diálogo separadamente. Mas o primeiro método acaba por transformai-se num leito de Procusto, na medida em que obriga a amputar numerosas partes do pensamento platônico, a fim de poder sistematizá-lo. O segundo, ao invés, acaba por ser essencialmente dispersivo e, no fim, em lugar de resolver, escamoteia o problema da leitura de Platão. Com efeito, para ser esclarecedora, a leitura de um filósofo deve individuar algumas cifras, algumas chaves e, em suma, algumas cons­tantes e as idéias de base em torno das quais elas giram. Procuraremos seguir uma terceira via que avança no meio das outras duas, tentando recuperar o “sistema” no sentido que acima foi explicado. Platão revelou pouco a pouco, no curso dos séculos, faces diversas: talvez seja justamente essa diversidade de faces que pode desvelar-lhe o pensamento.

  • Já a partir dos filósofos da Academia, começou-se a ler Platão em chave metafísica e gnosiológica, apontando na teoria das Idéias e dos Princípios supremos o fulcro do platonismo.
  • Em seguida, com o neoplatonismo, pensou-se encontrar a mensagem platônica mais autêntica na temática religiosa, na ânsia do divino e, em geral, na dimensão mística, temas intensamente presentes na maior parte dos diálogos.
  • Essas duas interpretações são as que perduraram de vá­rias maneiras até os tempos modernos, até que, no nosso século, surgiu uma terceira interpretação, original e sugestiva, que apontou a essência do platonismo na temática política, ou melhor, ético-político-educativa, temática transcurada no passado, ao menos no que diz respeito à sua justa importância.

Acreditamos que o verdadeiro Platão não se encontre em nenhu­ma dessas três perspectivas tomadas separadamente como sendo a única válida, mas deva encontrar-se, ao contrário, nas três direções juntamente e na dinâmica que lhes é própria. Com efeito, as três propostas de leitura iluminam três faces efetivas da poliédrica e polivalente especulação platônica, três dimensões ou três componen­tes ou, ainda, três linhas de força que constantemente vêm à tona, de cada escrito ou de todos juntos, acentuadas ou orientadas de diversas maneiras.

É certo que a teoria das Idéias, com todas as suas implicações metafísicas, lógicas e gnosiológicas, em particular nos diálogos da maturidade e da velhice, está no centro da especulação platônica. Mas é igualmente verdadeiro que Platão não é o metafísico abstrato: a metafísica das Idéias tem também um profundo sentido religioso e o próprio processo cognoscitivo é apresentado como conversão, sendo o Amor que eleva à Idéia suprema apresentado como força de ascen­são que conduz à contemplação mística. Finalmente, é verdade que Platão não fixou na contemplação o estádio no qual o filósofo deve acabar seu itinerário, uma vez que prescreveu ao filósofo, depois de ter visto o verdadeiro, voltar para salvar também os outros e para empenhar-se politicamente na construção de um Estado justo, dentro do qual é possível uma vida justa.

Todavia, o ponto-chave, ou seja, o eixo de sustentação em torno do qual essas três dimensões se articulam per­manece a protologia revelada nas “Doutrinas não-escritas”. Consignada à dimensão da oralidade e transmitida a nós pela tradição indireta, a protologia, em certo sentido, forma uma quarta dimensão. No en­tanto, em outro sentido, situa-se num plano diferente e, portanto, não está ao lado das outras em condições de igualdade; ela constitui o percurso final da metafísica, mas, ao mesmo tem­po, o vértice da dimensão ético-religiosa e da dimensão política. Portanto, a protologia é o vértice unitário geral, o que faz do com­plexo pensamento platônico um “sistema”, dando-lhe unidade de estrutura.

Filosofia - Filosofia Clássica
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As águas do Letes
As Planícies de Elísio | John Stanhope [1829-1908]

O Letes era um dos rios do mundo dos mortos juntamente com o Estige (cuja travessia era feita pelo barqueiro Caronte), Aqueronte, Cocito e Flegetonte, o rio do fogo. As águas do Letes davam, a quem delas bebesse, o dom do esquecimento e, à exceção dos atormentados pelos crimes cometidos, todos os mortos bebiam do Letes. Podiam recuperar a memória apenas temporariamente, quando algum herói descia ao reino dos Infernos e lhes dava a beber do seu sangue. O filósofo Platão especula que as almas voltam a renascer depois da morte e que em vez de beberem as águas do Letes logo após terem morrido, lhes é dado o dom do esquecimento fornecido pelo Letes pouco antes do nascimento seguinte. É por esta razão que as pessoas não têm memórias das suas vidas passadas.

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9/11/2021 4:39:33 PM | Filosofia, n. 10
A vida começa aos 70

A velhice, encarada como a etapa derradeira da vida, pode ser uma época repleta de encantos e realizações. Se for verdade que aprendemos vi­vendo, uma pessoa que vive há sete décadas é mais sábia do que um ado­lescente no auge da sua mocidade. Sua bagagem de experiências é imensamente superior.

Filosofia - Filosofia Clássica
2/9/2021 6:04:10 PM | MenteCérebro, n.197
Maconha como remédio

Realizou-se em abril [2014] na Universidade de Campinas uma ampla discussão sobre drogas, culminando no debate de três questões provocativas: Maconha faz bem? Maconha faz mal? Devemos legalizar a maconha? Mil pessoas participaram com entusiasmo, refletindo o crescente interesse sobre o assunto. Nem o mais otimista dos ativistas imaginaria que a causa da legalização da maconha poderia avançar tão rapidamente quanto nos últimos meses.

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O filósofo Platão explicou a natureza do amor contando um mito a respeito dos primeiros seres humanos, que eram criaturas circulares cada uma delas com duas caras num único pescoço, quatro pernas e quatro braços. Zeus (Júpiter) ficou furioso com estes primeiros humanos por terem desafiado a regra dos deuses e partiu cada um deles ao meio, deixando a humanidade apenas com uma cara, dois braços e duas pernas, Zeus ameaçou ainda os seres homens de que se voltasse a haver problemas, os partia novamente a meio. E assim, apenas com uma perna e um braço cada um, reduzidos a deslocarem-se aos saltinhos para todo o lado, aprenderiam a tratar os deuses com respeito. Segundo este mito, todos nós somos metades de um todo, cada um de nós procurando ansioso a metade perdida. O amor, segundo este mito, é o desejo de procura do todo.

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Mitos e lendas
5/15/2022 4:29:45 PM | Zeus
A Ascenção dos Olímpicos

Cronos casou-se com sua irmã Réia, a quem o carvalho é consagrado. Mas foi profetizado pela Mãe Terra e por seu pai moribundo Urano que um dos próprios filhos de Cronos viria a destroná-lo. Por isso, ele passou a engolir todo ano as crianças que Réia paria: primeiro Hestia (Vesta), depois Démeter (Ceres) e Hera (Juno), Hades (Plutão) e, por fim, Posídon (Netuno).

Réia estava enfurecida. Ela pariu Zeus, seu terceiro filho, na calada da noite, sobre o monte Liceu, na Arcádia, onde nenhuma criatura projetava sombra, e, após lava-lo no rio Neda, entregou-o à Mae Terra, que o levou para Licto, em Creta, para ser escondido na caverna de Dicte, na colina egeia. A Mãe Terra deixou-o lá aos cuidados da ninfa-freixo Adrasteia e de sua irmã lo, ambas filhas de Melisso com a ninfa-cabra Amalteia. Seu alimento era o mel, e bebia o leite de Amalteia junto com o Bode-Pã, seu irmão de criação. Zeus nutriu muita gratidão por essas três ninfas tão gentis e, ao se tornar Senhor do Universo, colocou a imagem de Amalteia entre as estrelas, sob a forma de Capricornio. Ele também tomou emprestado um dos chifres do animal, semelhantes aos de uma vaca, e o ofereceu as filhas de Melisso. Esse chifre se transformou na famosa cornucópia, ou corno da abundancia, que está sempre repleto da comida ou bebida que seu proprietário deseje. Mas há quem diga que Zeus foi amamentado por uma porca, que cavalgava em seu dorso, e que perdeu o cordão umbilical em Ônfalo, perto de Knossos.

Em torno do berço dourado do pequeno Zeus, pendurado no alto de uma árvore (de modo que Cronos não pudesse encontra-lo nem no céu, nem na terra, nem no mar), montavam guarda os curetes, filhos de Réia. Eles batiam suas lanças nos escudos e gritavam para abafar o barulho do choro de Zeus, com receio de que Cronos pudesse ouvi-lo à distancia. Réia enfaixou uma pedra como se fosse um bebê e entregou-a a Cronos no alto do monte Taumasio, na Arcádia. Ele a engoliu, acreditando estar engolindo o pequeno Zeus. Entretanto deu-se conta da artimanha e foi ao encanço de Zeus, que se transformou em uma serpente, e suas pajens, em ursas: dai as constelações da Serpente e das Ursas.

Zeus cresceu, ate a idade adulta, entre os pastores de Ida, ocupando uma outra caverna. Foi então que ele procurou Metis, a titanida que vivia ao lado da torrente do Oceano. Seguindo o seu conselho, foi visitar a mãe Réia e pediu para ser o copeiro de Cronos. Réia o ajudou prontamente em sua tarefa de vingança, fornecendo-lhe a poção emética que Metis lhe dissera para misturar com o mel da bebida de Cronos. Depois de beber tudo, Cronos vomitou primeiro a pedra e, em seguida, os irmãos e irmãs mais velhos de Zeus. Todos ressurgiram incólumes e, agradecidos, pediram-lhe que os liderasse numa guerra contra os titãs, que haviam escolhido o gigante Atlas como líder, pois Cronos já havia Perdido o seu vigor.

A guerra durou dez anos, mas, finalmente, a Mãe Terra profetizou que seu neto Zeus sairia vitorioso, caso se aliasse aqueles que Cronos confinara no Tártaro. Então ele foi ter com Campe, a velha carcereira do Tártaro, matou-a, tomou-lhe as chaves e, após libertar os ciclopes e os Hecatônquiros, fortaleceu-os com comida e bebida divinas. Os ciclopes deram a Zeus, por conseguinte, o raio como arma ofensiva; Hades deu-lhe o elmo da escuridão; e Posídon, o tridente. Assim que os três irmãos terminaram a reunião de guerra, Hades fez-se invisível para roubar as armas de Cronos e, enquanto Posídon o ameaçava com o tridente para desviar sua atenção, Zeus o derrubou com um raio. Os três Hecatônquiros armaram-se de rochas e as arremessaram contra os titãs que ainda lutavam, e um grito repentino do Bode-Pã os pôs em fuga. Os deuses correram em seu encalço. Cronos e todos os titãs derrotados, à exceção de Atlas, foram banidos para uma ilha britânica nos confins do Ocidente (ou, conforme alguns, confinados no Tártaro), sob a vigilância dos Hecatônquiros. Eles jamais voltaram a perturbar a Helade. Atlas, na posição de comandante militar, foi recompensado com uma punição exemplar, tendo sido obrigado a carregar o firmamento nos ombros, já as titanides foram poupadas, graças à Metis e Réia.

O próprio Zeus instalou em Delfos a pedra que Cronos havia vomitado. Ela ainda está lá, constantemente ungida com óleo, sobre a qual fibras de lã crua são deixadas como oferenda.

Alguns contam que Posídon não foi comido nem vomitado, mas que Réia dera a Cronos um potro no lugar dele, tendo-o escondido entre a manada de cavalos. E os cretenses, que são mentirosos, relatam que Zeus nasce a cada ano na mesma caverna em meio a um fogo rutilante e uma torrente de sangue, e que todo ano ele morre e é sepultado.

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Réia, que forma par com Cronos como a titanide do sétimo dia, pode ser equiparada a Dione, Diana, a deusa tripla do culto da Pomba e do Carvalho. O podão carregado por Saturno, contraparte latina de Cronos, tinha a forma de um bico de corvo e era aparentemente utilizado no sétimo mês do ano sagrado de 13 meses a fim de emascular o carvalho, podando o visco, exatamente como uma foice ritual era utilizada para ceifar a primeira espiga de trigo. Esse gesto marcava o inicio do sacrifício sagrado do Rei-Zeus. Em Atenas, partilhando o mesmo templo com Réia, Cronos era venerado como o Deus da Cevada Sabázio e pranteado como Osíris, Litierses ou Maneros. Mas esses mitos se referem a uma época em que os reis tinham a permissão de prolongar seus reinados por um Grande Ano de cem lunações, bem como de oferecer, anualmente, um sacrifício de meninos em seu lugar. Assim, Cronos é retratado comendo os próprios filhos para evitar o destronamento. Porfirio (Sobre a abstinência 11. 56) registra que, em tempos antigos, os coribantes cretenses costumavam oferecer sacrifícios de crianças a Cronos.

Em Creta, no inicio, um cabrito substituía o sacrifício humano; na Trácia, uma vitela; entre, os adoradores eólios de Poseidon, um potro. Mas nos distritos retrógrados da Arcádia, meninos ainda eram comidos como sacrifício mesmo durante a era cristã. Não está claro ainda se o ritual elidense era canibal ou se (já que Cronos era um titã-corvo) corvos sagrados se alimentavam das vitimas massacradas.

O nome Amalteia, "carinhosa", demonstra que ela deve ter sido uma deusa-virgem; Io era uma deusa-ninfa orgiástica; Adrasteia significa "aquela da qual não se pode escapar", a Velha oracular do outono. Juntas, elas formavam a costumeira tríade-Lua. Os gregos tardios identificaram Adrasteia com a deusa pastoral Nemesis, do freixo fazedor de chuva, que havia se tornado uma deusa da vingança. lo foi retratada em Argos como uma novilha branca no cio - algumas moedas cretenses de Praesus mostram Zeus sendo amamentado por ela -, mas Amalteia, que viveu na "Colina da Cabra", foi sempre uma cabra. E Melisso ("homem-mel"), o suposto pai de Adrasteia e lo, e, na verdade, a mãe delas - Melissa, deusa retratada como abelha rainha, que todo ano matava seu consorte. Tanto Diodoro Siculo (V 70) quanto Calimaco (Hino a Zeus 49) registram que as abelhas alimentaram o pequeno Zeus. Mas sua madrasta é por vezes também retratada como uma porca, pois esse era um dos emblemas das deusas-velhas. Moedas cidônias retratam-na como uma cadela, semelhante aquela que amamentou Neleu. As ursas são os animais de Artemis - os coribantes participavam de seus holocaustos -, e Zeus, como serpente, e Zeus Ctesius, protetor dos depósitos, pois as cobras dão fim aos camundongos.

Os coribantes eram os companheiros armados do rei sagrado, cujas armas emitiam um som metálico para espantar os maus espíritos durante os rituais. O nome deles, entendido pelos gregos tardios como "mãos que rasparam o cabelo", provavelmente significava "devotos de Ker, ou Car", um titulo comum das deusas triplas. Hercules ganhou do bovídeo Aqueloo sua cornucópia, e o imenso tamanho dos cornos do bode selvagem cretense levou os mitógrafos que desconheciam Creta a atribuir a Amalteia um chifre de vaca anômalo.

Os invasores helenos parecem ter feito amizade com o povo pré-helênico do culto do titã, mas, aos poucos, separaram seus súditos aliados dos demais e devastaram o Peloponeso. A vitória de Zeus, em aliança com os Hecatônquiros, sobre os titãs da Tessalia ocorreu, segundo Thallus, historiador do século I citado por Tatiano em seu Discurso aos gregos, "322 anos antes do cerco a Tróia", ou seja, em 1505 a.e.c., uma data plausível para a ampliação do poder helênico na Tessalia. A concessão de soberania a Zeus relembra um evento semelhante na Epopeia de Criação babilônica, em que Marduk recebeu poderes de seus antepassados Lahmu e Lahamu para combater Tiamat.

O parentesco entre os irmãos Hades, Poseidon e Zeus evoca a trindade masculina védica - Mitra, Varuna e Indra - que aparece em um tratado hitita de cerca de 1380 a.e.c. Mas, nesse mito, eles parecem representar três invasões helênicas sucessivas, geralmente conhecidas como jônica, eólica e dória. Os adoradores pré-helênicos da deusa-mãe assimilaram os jônios, que se tornaram filhos de Io e subjugaram os eólios, mas foram oprimidos pelos aqueus. Os primeiros chefes helênicos, que se tornaram reis sagrados dos cultos do carvalho e do freixo, tomaram os títulos de "Zeus" e "Posídon", sendo obrigados a morrer no fim de seus reinados. Tanto o carvalho quanto o freixo tendem a atrair raios e, portanto, estão presentes, por toda a Europa, nas cerimônias populares de fazer chuva e de fazer fogo.

A vitória dos aqueus pôs fim à tradição dos sacrifícios reais. Zeus e Posídon foram considerados imortais, ambos retratados segurando um raio como arma - um machado duplo de pedra lascada empunhado por Réia no passado e, nas religiões minoica e micênica, negado ao uso masculino. Mais tarde, o raio de Poseidon converteu-se num tridente e os marinheiros passaram a ser seus principais devotos, ao passo que Zeus manteve o raio como símbolo da soberania suprema. O nome de Posídon, que às vezes varia para Potidan, talvez venha do nome de sua mãe-deusa, em honra da qual a cidade de Potideia foi chamada "a deusa-agua de Ida" - Ida significando qualquer montanha coberta por floresta. O fato de os Hecatônquiros terem vigiado os titãs nos confins do Ocidente pode significar que os pelasgos, dentre cujos sobreviventes estavam os centauros da Magnésia - centauro talvez seja um cognato do latim centúria, "um grupo de guerra de uma centena" -, não abandonaram seu culto aos titãs e continuaram acreditando em um longínquo Paraiso ocidental e na ideia de que Atlas segurava o firmamento.

O nome de Réia provavelmente uma versão de Era, "terra". Seu pássaro principal era a pomba, e seu animal principal, o leão montanhês. O nome Demeter significa "mãe-cevada". Hestia é a deusa do lar. A pedra, em Delfos, utilizada para as cerimônias de fazer chuva, parece ter sido um grande meteorito.

Os montes Dicte e Liceu foram antigas sedes de adoração a Zeus. Uma pira sacrifical era provavelmente oferecida no monte Liceu, na hora em que nenhuma criatura projetava sombra - ou seja, ao meio-dia, durante o solstício de verão. Mas Pausânias acrescenta que, embora na Etiópia, quando o Sol esta em Câncer, as pessoas não projetem sombras, este é invariavelmente o caso do monte Liceu. Ele talvez esteja preocupado com filigranas: ninguém que ultrapassasse esses limites tinha permissão de viver e já era mais do que sabido que os mortos não projetam sombras. A localização incorreta da Cvema de Psicro indica que ela não corresponde, como geralmente se imagina, a verdadeira Caverna Dicteia, que não foi ainda descoberta. Onfalo ("pequeno umbigo") sugere o lugar de um oraculo.

O grito repentino de Pã que assombrou os titãs tornou-se proverbial e deu origem, no português, a palavra pânico (do grego panikós, "relativo ao deus Pã").

Mitologia Grega
5/15/2022 3:54:05 PM | Atena
Atena, Zeus e Métis

Alguns helenos dizem que Atena teve um pai chamado Palas, um gigante alado libidinoso que mais tarde tentou viola-la, cujo nome ela adicionou ao seu, depois de arrancar-lhe a pele (para fazer a égide) e as asas (para coloca-las em seus próprios ombros). Isso se a égide não foi feita da pele da górgona Medusa, que, depois de decapitada por Perseu, foi esfolada por Atena.

Há quem diga que seu pai foi Itono, rei de Iron, em Ftiótide, cuja filha Iodâmia ela matara acidentalmente, ao deixa-la ver a cabeça da gorgona, transformando-a, assim, em um bloco de pedra ao adentrar seu santuário inadvertidamente a noite.

Contam ainda que Posídon era seu pai, mas que ela o teria renegado, pedindo a Zeus que a adotasse, o que ele fez com prazer.

Mas os próprios sacerdotes de Atena contam a seguinte historia sobre o seu nascimento: Zeus desejava com ardor a titânida Metis, que, para escapar de seu assedio, se transfigurou em variadas formas, até que, finalmente, ele a agarrou e a engravidou. Um oraculo da Mãe Terra declarou, então, que o nascituro seria uma menina e que, se Metis engravidasse mais uma vez, daria à luz um filho fadado a depor Zeus, assim como Zeus depusera Cronos e como este havia deposto Urano. Portanto, apos seduzir Metis, atraindo-a para o seu leito com palavras melífluas, Zeus, de repente, abriu a boca e a engoliu, e esse foi o fim de Metis, embora ele, depois, alegasse que ela lhe dava conselhos de dentro do seu ventre. No devido tempo, Zeus foi tomado por uma intensa dor de cabeça enquanto caminhava às margens do lago Tritão, tão intensa que seu crânio parecia prestes a explodir. Ele berrou furiosamente, até que seu grito ressoou por todo o firmamento. Logo veio Hermes, que adivinhou imediatamente a causa do desconforto de Zeus e persuadiu Hefesto - ou Prometeu, segundo outra versão - a trazer sua cunha e seu malho e fazer uma brecha no crânio de Zeus, através da qual saiu Atena, toda armada, com um ressonante grito de guerra.

---------------

 

J. E. Harrison descreveu corretamente a história do nascimento de Atena a partir da cabeça de Zeus como um desesperado expediente teológico para livrá-la de suas condições matriarcais. É também uma insistência dogmática sobre a sabedoria como uma prerrogativa masculina; até agora, só a deusa havia sido sábia. Hesíodo conseguiu, de fato, reconciliar três visões conflituosas em sua historia:

I. Atena, a deusa-cidade dos atenienses, era a filha partenogenica da imortal Metis, titânida do quarto dia e do planeta Mercúrio, que governava toda a sabedoria e todo o conhecimento;

II. Zeus engoliu Metis, mas sem perder com isso sua sabedoria (ou seja, os aqueus suprimiram o culto aos titãs e atribuíram toda a sabedoria a seu deus Zeus);

III. Atena era a filha de Zeus (ou seja, os aqueus insistiram para que os atenienses reconhecessem a supremacia patriarcal de Zeus).

Harrison tomou emprestado o mecanismo de seu mito de exemplos análogos: Zeus perseguindo Nemesis; Cronos engolindo seus filhos e filhos; o renascimento de Dionísio a partir da coxa de Zeus; e a abertura da cabeça da Mãe Terra feita por dois homens com machados, aparentemente para libertar Core - como a que está retratada, por exemplo, num jarro de azeite na Biblioteca Nacional de Paris. Depois, Atena torna-se a porta-voz obediente de Zeus, suprimindo deliberadamente seus próprios antecedentes. Ela emprega sacerdotes, e não sacerdotisas.

Palas, que significa "virgem", é um nome inadequado ao gigante alado, cujo atentado contra a castidade de Atena e provavelmente deduzido de uma imagem de uma cena de seu casamento ritual, em que ela aparece como Atena Láfria ao lado de um rei-bode, depois de um duelo armado com sua rival. Esse costume líbio do casamento com o bode alastrou-se pelo norte da Europa como parte das festividades do Dia de Maio. Os akans, um povo líbio, costumavam esfolar seus reis.

O repúdio à paternidade de Posídon por parte de Atena refere-se a uma mudança precoce na supremacia da cidade de Atenas.

O mito de Itono ("homem-salgueiro") representa a alegação, por parte dos itonianos, de que eles veneravam Atena antes mesmo dos atenienses. O nome de Itono demonstra que Atena teve um culto ao salgueiro em Friótide - assim como teve sua contraparte, a deusa Anata, em Jerusalém, até ser expulsa pelos sacerdotes de Jeová, a quem designaram o salgueiro fazedor de chuva como sua árvore, durante a Festa dos Tabernáculos.

Estaria condenado a morte o homem que removesse uma égide - a túnica de castidade feita de pele de cabra e usada pelas meninas líbias - sem o consentimento de sua proprietária: daí a existência da máscara gorgônea profilática colocada por cima dela, bem como da serpente escondida no saco, ou bolsa, de couro. Mas, tendo em vista que a égide de Atena é descrita como um escudo, sugiro em The White Goddess (p. 279) que ela seja um invólucro de saco para um disco sagrado, como aquele que continha o segredo alfabético de Palamedes, e do qual ele seria o inventor. Estatuetas cirenaicas segurando discos de tamanho proporcional ao do famoso disco de Festo, que tem marcada sobre ele, em forma de espiral, uma lenda sagrada, antecipam, segundo o professor Richter, Atena e sua égide. Os escudos heróicos, tão bem descritos por Homero e Hesíodo, parecem ter gerado pictogramas gravados numa faixa em espiral.

lodamia, que provavelmente significa "novilha de lo", teria sido uma antiga imagem de pedra da deusa-Lua, e a história de sua petrificação constitui uma advertência, a meninas curiosas, contra violar os Mistérios.

Seria um equívoco pensar que Atena fosse apenas ou predominantemente a deusa de Atenas. Numerosas acrópoles antigas lhe foram consagradas, inclusive Argos (Pausanias:11. 24. 3), Esparta (ibid.: 3. 17. 1), Tróia (Iliada vi. 88), Esmir (Estrabão: IV 1. 4), Epidauro (Pausanias: II. 32. S), Trezena (Pausanias: III. Z3. 10) e Feneus (Pausanias: X. 38. 5). Todos esses lugares são pré-helênicos.

Mitologia Grega
3/6/2021 2:41:17 PM | Urano
A Castração de Urano

Urano gerou os titãs com a Mãe Terra depois de haver atirado seus filhos rebeldes, os ciclopes, ao Tártaro, um lugar sombrio no mundo subterrâneo, que fica tão distante da Terra quanto a Terra do céu. Uma bigorna levaria nove dias caindo ate atingir o seu fundo. Por vingança, a Mãe Terra persuadiu os titãs a atacar o pai, e foi o que fizeram, liderados por Cronos (Saturno), o caçula dentre os sete, que ela armou com uma foice de pedra. Eles surpreenderam Urano durante o sono, e foi com a foice de pedra que o implacável Cronos o castrou, apanhando seus testículos com a mão esquerda (que tem sido desde então a mão de mau agouro) e os atirando depois, junto com a foice, ao mar, perto do cabo Drepano. Gotas de sangue, porém, escorreram do ferimento e caíram sobre a Mãe Terra, de maneira que ela deu à luz as três Erigias - Fúrias que punem crimes de parricídio e perjúrio - de nome Alecto, Tisifone e Megera. As ninfas dos freixos chamadas meliades também surgiram do sangue de Urano.

Os titãs, então, libertaram os ciclopes do Tártaro e outorgaram a soberania da Terra a Cronos.

Entretanto, pouco tempo depois de assumir o comando supremo, Cronos confinou de novo os ciclopes no Tártaro junto com os Hecatônquiros e, tomando sua irmã Réia (Cibele, entre os romanos) como esposa, governou a Elida.

---------------


Hesíodo, que registra esse mito, era um cadmiano. Os cadmianos tinham vindo da Ásia Menor, provavelmente por ocasião do colapso do Império Hitita, trazendo consigo a historia da castração de Urano. É sabido, contudo, que o mito não é de composição hitita, visto que uma antiga versão hurrita (horita) foi descoberta. A versão de Hesíodo talvez reflita uma aliança entre os vários colonos pré-helênicos na Grécia meridional e central, cujas tribos dominantes favoreciam o culto titânico contra os primeiros invasores helênicos do norte. Tiveram sucesso na guerra, mas, em seguida, eles impuseram sua suserania aos nativos setentrionais que haviam libertado. A castração de Urano não é necessariamente metafórica, caso alguns dos guerreiros vitoriosos tenham tido sua origem na África oriental, onde, até hoje, guerreiros galas levam nas batalhas uma miniatura de foice para castrar seus inimigos. Há estreitas afinidades entre os ritos religiosos da África oriental e os da Grécia primitiva.

Os gregos tardios leem "Cronos" como Chronos, "Pai Tempo", com sua inexorável foice. Mas ele figura na companhia de um corvo, assim como Apolo, Asclépio (Esculápio), Saturno (seu correspondente romano) e Bran, um primitivo deus britânico. E Cronos provavelmente significa "corvo", como cornix em latim e corone em grego. O corvo era um pássaro oracular, que supostamente alojava-se na alma de um rei sagrado apos seu sacrifício.

Aqui, as três Erínias, ou Fúrias, que surgiram a partir das gotas do sangue de Urano, são a própria deusa tripla. Significa dizer que, durante o sacrifício do rei em prol da frutificação dos trigais e pomares, as sacerdotisas da deusa estariam usando ameaçadoras máscaras gorgoneas para afugentar os visitantes profanos. Os testículos dele parecem ter sido atirados ao mar a fim de estimular a reprodução dos peixes. As vingativas Erínias são vistas pelo mitógrafo como se advertissem Zeus (Júpiter, entre os romanos) no sentido de não emascular Cronos com a mesma foice. No entanto, sua função original era a de punir apenas as injustiças praticadas contra a mãe, não contra o pai, ou suplicar a proteção da deusa do lar.

As ninfas dos freixos são as três Fúrias numa disposição mais graciosa: o rei sagrado era dedicado ao freixo, originalmente utilizado nas cerimonias para fazer chover. Na Escandinávia, ele se tornou a árvore da magia universal. As três Nornas, ou Moiras (nome grego das Parcas romanas), distribuíam justiça debaixo de um freixo que Odin, ao reivindicar a paternidade da humanidade, transformara em seu cavalo mágico. As mulheres devem ter sido as primeiras fazedoras de chuva na Grécia e na Líbia.

As foices neolíticas de osso, denteadas com pederneira ou obsidiana, parecem ter continuado em uso ritual por muito tempo, após haverem sido suplantadas como instrumentos agrícolas por foices de bronze e de ferro.

Os hititas fazem Kumarbi (Cronos) arrancar com uma mordida os testículos do deus-céu Ann (Urano), engolir um pouco do sêmen e cuspir o resto sobre o monte Kansura, onde o sêmen se transforma numa deusa. O deus do amor, assim concebido por ele, é cortado de seu flanco por Ea, irmão de Anu. Esses dois nascimentos foram misturados pelos gregos, num conto sobre como Afrodite (Vênus, entre os romanos) surgiu de um mar impregnado pelos testículos cortados de Urano. Kumarbi, posteriormente, dá à luz uma outra criança retirada de sua coxa - assim como Dionísio (Baco, entre os romanos) renasce de Zeus -, que conduz uma charrete tempestuosa puxada por um touro e chega até Anu para pedir-lhe ajuda. A faca que separou a terra do céu aparece na mesma historia como a arma com a qual o filho de Kumarbi, o gigante nascido da terra Ullikummi, é destruído.

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