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mITOS | Mitologia judaico-cristã
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Odsson Ferreira | - | Atualizado em:
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Idade Antiga - Antiguidade Clássica - Civilização Romana - Britânia - Bretanha
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ABNT
.
in:
__________.
As 100 melhores histórias da bíblia.
Porto Alegre/RS:
LPM,
2005.
p..
APA
(2005).
.
in:
A .
Franchini,
C .
Seganfredo,
(Ed.),
As 100 melhores histórias da bíblia.
(pp.).
Porto Alegre/RS:
LPM.
Por
Yahweh
Isaac e Rebeca
A Torre de Babel
Abraão e o resgate de Lot
O riso de Sara
Sodoma e Gomorra
Caim e Abel

A moeda de bronze do século 1 encontrada há mais de um ano nas proximidades do rio Tâmisa era, segundo os especialistas, uma forma de pagamento nos bordéis do Império Romano, informou nesta quinta-feira o Museu de Londres.

A peça tem um tamanho similar ao de uma moeda de dois euros e em uma de suas faces é possível ver um casal, enquanto na outra aparece inscrito o número 15 em algarismos romanos. Apesar de sua antiguidade, reproduz bastante nitidamente a imagem de uma mulher deitada em um sofá ao lado de uma figura masculina, aparentemente durante um ato sexual.

Os analistas do Museu de Londres, onde está sendo exibida a moeda, acreditam que este tipo de objeto era trocado por sexo e que o número que aparece no reverso da moeda é o preço do serviço prestado. A curadora do museu, Caroline McDonald, afirmou que se trata de um objeto arqueológico "perfeito, sexy e provocativo", embora demonstre que a vida de uma escrava romana não era muito feliz.

"Este tipo de objeto pode nos ajudar a gerar debates sobre temas relevantes para a cidade e seus visitantes", continuou. A peça foi encontrada na margem do Tâmisa no outono de 2010, por um homem com um detector de metais.

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8/6/2017 10:25:22 PM | Por A. S. Franchini
O sacrifício de Isaac

Depois que Abraão recebera de Deus a notícia de que sua esposa Sara iria ter finalmente o filho que ambos esperavam há tanto tempo, partiu com ela para a região do Negueb, indo habitar no reino de Guerar. Entretanto, ali passou por uma aventura muito parecida com a que vivera no Egito, quando recém era um emigrante vindo da distante Ur dos caldeus. Nem bem chegara a Guerar, com sua mulher Sara, e já o rei, chamado Abimelec, a cobiçou ardentemente – apesar de ela ser, então, uma mulher de mais de noventa anos de idade. Mas, atendendo-se ao fato de que ela ainda tinha mais 37 anos de vida pela frente e de que ao decidir tomá-la mãe o Senhor a ornara de novos encantos, nada há aqui que se possa tomar como verdadeiro disparate. Quando os oficiais de Abimelec chegaram para levar a bela Sara, Abraão repetiu o mesmo feliz estratagema empregado com o Faraó, dizendo ser irmão dela.

- Está bem – disse um dos raptores, de modo condescendente. – Por ser apenas irmão dela, pouparemos a sua vida.

Contudo, o deus de Abraão estava atento à vilania, e logo tratou de enviar um sonho funesto ao rei, prevenindo-o de que males terríveis desceriam sobre ele por ter tomado para si uma mulher casada.

- Mas, Senhor - disse Abimelec, no mesmo sonho -, se eu não sabia de nada! O próprio marido me disse que a bela Sara era sua irmã, e só por isto a tomei para mim. Estou completamente inocente nesta estória.

- Foi por saber disto que impedi que tocasses na bela Sara - disse o Senhor -, e só por isto é que ainda não fiz desabar sobre ti o meu terrível castigo, que será a tua morte e a de todos os teus.

No dia seguinte Abimelec acordou em grande sobressalto e, no mesmo instante, mandou chamar Abraão a sua presença.

- Por que me mentiu, forasteiro, dizendo que sua esposa era sua irmã? – disse o rei, atarantado.- Por sua causa me vejo em grande risco de perder a vida e o reino, já que seu deus me ameaçou, além de ter tomado estéril toda mulher deste reino.

Abraão explicou-lhe dizendo que usava daquele estratagema para evitar que o matassem, sabendo que era marido de uma mulher tão cobiçada. Mas logo em seguida fez outra revelação realmente estarrecedora.

- Na verdade, minha bela Sara, além de minha esposa, é de fato minha irmã - disse ele, usando de sinceridade.

Abimelec arregalou os olhos.

- Sim, rei de Guerar – confirmou Abraão, de modo impassível. – Sendo filha de meu pai com outra mulher, certo dia a tomei também como esposa.

“Estarei diante de novo ardil?", pensou Abimelec, sem atinar, contudo, com a razão da malícia.

Não querendo mais saber, então, o que era e o que não era, Abimelec decretou:

- Tome de volta a sua mulher – ou sua irmã, ou as duas coisas-  e instale-se livremente em qualquer parte de meu país, para que assim se evite que a destra do seu deus desça com força sobre a minha cabeça.

Recompensado – tal como o fora da outra vez com o Faraó – com mil siclos de prata, além de grande número de ovelhas e servos, Abraão e sua disputada Sara se reconciliaram com Abimelec, o que representou verdadeira bênção para esse monarca, pois logo sua mulher e suas servas voltaram a ser férteis, enchendo o pais de novos descendentes.

Depois disso, Sara concebeu de Abraão, finalmente, o seu filho tão desejado.

- Aqui está, meu amado esposo, o tão esperado fruto! - disse ela, tomando em suas próprias mãos o filho recém-nascido e ofertando-o ao marido.

Abraão chorou de emoção ao tomar nos braços o seu verdadeiro rebento.

- Ele se chamará Isaac - disse o velho pai, pois lembrara do grande riso que Sara dera ao receber do Senhor a notícia de que iria parir aos noventa anos de idade.

E ao ver a velha Sara tirar para fora seu seio redondo como um grande mamão, a fim de dar alimento ao seu filho, pensou, num novo e agradabilíssimo acesso de espanto: "Quem haveria de dizer que minha Sara, quase centenária, ainda daria de mamar a uma criança! Grande é o Senhor!"

Aos oito dias, o pequeno herdeiro foi circuncidado, como mandara outrora o seu deus.

No dia do desmame de Isaac. Abraão deu uma grande festa para comemorar o evento. Sara, entretanto, ao ver Ismael, o filho da escrava Agar e de seu marido, brincar com seu próprio filho, tomou-se de grande ira.

- Expulse este bastardo daqui! – disse ela, ao seu marido. – Não quero que ele venha a herdar junto com o meu filho.

Abraão, entretanto, acendeu-se de ira e disse:


- Nada disto! Ismael também é meu filho!
Entretanto, Abraão recebeu, mais tarde, a visita do Senhor, o qual lhe ordenou que fizesse tal qual sua esposa ordenara.
- A estirpe que te prometi deve provir de Isaac, e não de Ismael – disse Ele.- Do filho de Agar, entretanto, farei também uma grande nação.
No dia seguinte, o próprio Abraão tomou para si a triste incumbência de expulsar para o deserto Agar e seu filho Ismael. De manhã bem cedo, tomou de um odre de água e de um pão e os levou até eles, dizendo:

- Devem partir imediatamente.

E sem escutar mais nada, deu-lhes as costas, pois sendo Deus quem lhe ordenara, não havia mais o que discutir.

Agar, desesperou-se.
- Ai de mim e de você, filho amado! Para nós está tudo acabado!
A pé, ela e Ismael tomaram, então, o rumo do deserto de Bersebá. Andaram muito, e quando o último gole de água desceu do cantil, ela depositou o exaurido Ismael debaixo de um arbusto, indo desabar ela própria um pouco mais adiante.

- Não, não assistirei à morte de meu próprio filho! - disse ela, cobrindo a cabeça com seu manto coberto de poeira.

Nesse instante, porém, ela escutou a mesma voz que escutara da outra vez em que fugira para o mesmo deserto, a fim de escapar â ira de Sara.

- Nada tema, Agar, nem por ti nem por teu filho. Já disse outrora, e agora repito, que ouvi a voz de Ismael e que farei dele pai de uma grande nação.

O anjo do Senhor estava outra vez em pé, ao lado dos dois desgraçados.

- Vai. levanta e dá de beber a teu filho - disse ele, apontando para uma nascente d'água que brotara subitamente da areia.

Desde então Deus não mais abandonou a Ismael, o qual se tornou, sob as vistas do Senhor, emérito caçador e chefe dos povos do deserto. Mais tarde casou-se com uma mulher, egípcia tal como sua mãe, e é considerado patriarca dos povos árabes seguidores da lei do profeta Muhammad (ou Maomé). Ismael morreu com 137 anos.

Depois que Isaac nasceu, Abraão fez um novo pacto de aliança com Abimelec, pois vivia ainda em suas terras. O tratado foi firmado sobre o poço de Bersebá, e desse modo Abraão ainda residiu por muito tempo na terra dos filisteus.

Tudo parecia ir maravilhosamente bem quando, certo dia, o Senhor apareceu novamente a Abraão. O que Ele tinha a dizer, no entanto, iria abalar profundamente a alma do seu velho servo.

- Deixa tudo, toma o teu filho e parte já para Moriá – disse o Senhor.

- Para Moriá? – disse Abraão, com um mau pressentimento, - O que haverei de fazer lá, meu Senhor?

- Vou Indicar-te uma montanha, a qual deverás subir, junto com teu filho Isaac. Abraão sentiu um calafrio na alma.
- Perdão, Senhor, mas ainda não entendi o que queres - balbuciou ele.
- Quando lá chegares, sacrificarás a mim o teu filho Isaac, como prova de tua submissão - disse Deus, desaparecendo em seguida.
Abraão, tateando o ar, como um cego, procurou o apoio de uma pedra.
"Como pode ser isto?, perguntava-se, incrédulo. "Como direi tal coisa a Sara? E o que restará de minha descendência, inumerável como as estrelas?"
Abraão deitou-se à noite como quem deita para morrer. Na manhã seguinte, entretanto, ergueu-se bem cedo - pois não dormira - e, tomando do machado, foi cortar a lenha para o terrível holocausto.

Enquanto fazia descer o machado, a cabeça do pai de Isaac parecia tomada por uma nuvem, e por mais que tentasse não conseguia visualizar a cena que fatalmente teria de protagonizar dali a alguns dias. “Devo cortar a lenha em grandes pedaços", pensava ele, e isto era tudo quanto sua mente podia alcançar. "Pedaços bem grandes."

Então, depois de completada a tarefa, viu o filho surgir à sua frente. Ele já era um rapaz, mas ainda guardava no rosto os traços da criança recente.

- Tom a este feixe de lenha seca, filho meu, e me acompanha – disse ele a Isaac.

Abraão seguiu montado sobre um jumento, enquanto seu filho ia um pouco mais atrás, a carregar o seu feixe às costas. Junto com ambos ainda iam dois servos.

- Porque vamos subir a montanha? – perguntou o jovem, curioso.

Abraão nada disse e permaneceu soturno, sob o passo bamboleante do jumento. Com o feixe disposto horizontalmente sobre os ombros, Isaac foi galgando os caminhos, cada vez mais intrigado com tudo aquilo. As vezes dava uma olhada para os dois servos, mas estes logo desviavam as vistas, pressentindo o pior. Isaac também notou que de tempos em tempos ambos pareciam tomados por uma espécie de espasmo, que os fazia se retorcerem. Na verdade, eles também estavam muito agitados, pois pressentiam estar envolvidos em um grande acontecimento. Ao mesmo tempo em que pressagiavam uma desgraça, também se rejubilavam interiormente com ela. “Em algum dia distante será conhecido de todos que Abraão e seu filho marcharam certa feita para as montanhas de Moriá, a fim de fazerem o que quer que seja de importante que estejam prestes a fazer", pensavam eles (pois, estando na mesma situação, ambos pensavam exatamente a mesma coisa). “Talvez, com um pouco de sorte, se dirá também que junto deles seguiam dois modestos servos. Ora, os dois servos somos justamente nós!", acrescentavam, apalpando-se, enquanto procuravam esconder os seus arreganhos de euforia.

Isaac, porém, ao ver as caretas dos dois tolos, interpretava-as de modo diferente. "Eles choram", pensava ele, o que o deixava ainda mais alarmado.

E assim seguiu o pobre Isaac, junto com o pai e os servos, durante três dias, o seu périplo pelas veredas que conduziam até a montanha fatídica.

- A partir daqui vocês dois ficam, até retornarmos – disse Abraão, sem olhar para o rosto dos dois servos. Depois, voltando-se para o filho, disse:

- Isaac, meu filho, tome seu feixe e venha nos meus passos.

Os servos, sem dar um pio – obedientes que eram -, ficaram a observar o velho senhor e o jovem infeliz, e só quando ambos sumiram em meio à vegetação foi que os dois tolos se olharam, e o olhar perfeitamente desolado do primeiro dizia: “Não, não veremos jamais o que sucederá”, ao que o olhar do outro concordava plenamente, dizendo: "Por certo que não, o que é, sem dúvida, uma lástima".

Enquanto isso, Abraão e Isaac seguiam, avançando pelas subidas Íngremes. Isaac, bastante exausto pela carga de lenha que carregava havia já três dias, fez várias paradas, no que era acompanhado por Abraão.

- Bom é parar, mas o melhor é sempre chegar – dizia o pai, mecanicamente, depois de cada parada.

Isaac, então, tomando de sua carga, retomava a subida junto com o pai. Quando o dia já estava alto, os dois chegaram finalmente ao seu destino. – É aqui – disse o velho patriarca, com a voz cavernosa.
- É aquio quê, meu pai? – disse o jovem, depondo a carga ao chão.

- Façamos agora um holocausto para o Senhor – disse o velho pai.

- Como quiser – disse o jovem, pegando as madeiras. – Onde erguerá o altar, meu pai?

- Ali, sobre aquela grande pedra - disse o velho, de cabeça curvada.

Então, assim que estava tudo arrumado, o jovem perguntou para o pai, com um ligeiro tremor em sua voz:

- Mas e o cordeiro, meu pai? Onde está que não o vejo?


- Isto a Deus compete, meu filho – disse Abraão.
E como não surgisse cordeiro algum, senão o cordeiro de Abraão, este tomou-o nos ombros e o conduziu até a pira, ainda apagada, sem dizer uma única palavra. Isaac soube, então, que era ele o cordeiro escolhido. Sem dizer, igualmente, uma única palavra, deixou que seu pai o deitasse sobre o lenho e amarrasse seus membros. Abraão, tomando da adaga afiada que trazia oculta sob o manto, somente a fez ver ao filho quando não havia mais outro meio de escondê-la.

- Eis que o Senhor me impele à maior das provas, meu filho muito amado! Console-se, pois logo estará na companhia dos outros justos como você, que também souberam se submeter à inteira vontade Daquele que é maior do que qualquer de nós.

Depois de erguer hesitantemente o punhal, Abraão fez uma prece ao Senhor, mas tão logo a terminou e preparava-se já para fazer descer a lâmina mortal foi impedido por uma voz retumbante que dizia:

- Basta, Abraão! Nada faças a teu cordeiro escolhido.
Os olhos de Abraão encheram-se de lágrimas.
- Agora sei que me tens inteira dedicação, pois não me recusaste o teu único filho. Retira-o logo do altar e põe em seu lugar aquele carneiro que ali está.
Abraão voltou os seus olhos para um denso espinheiro e ali viu, com efeito, um carneiro preso pelos grandes chifres anelados.
E antes que Abraão desse início ao verdadeiro holocausto, o Senhor repetiu do alto dos céus a sua promessa de que a Abraão estaria destinada uma descendência mais numerosa que as estrelas do céu e os grãos de areia da praia.

Cumprido o rito, Abraão e Isaac retomaram até onde haviam deixado os dois criados. Estes, ligeiramente perplexos, chegaram a temer que nada de importante houvesse realmente acontecido. Mas, ao verem o brilho de felicidade nos olhos do pai e do filho, tiveram a certeza de que a fama do ato que ambos recém haviam protagonizado também lhes respingaria, de alguma maneira, para todo o sempre.

Mitologia judaico-cristã
Yahweh, Jeová, Deus hebreu, Alah   Abraão, Isaac, Agar, Ismael, Sara, Abimelec
8/6/2017 10:16:01 PM | Por A. S. Franchini
Isaac e Rebeca

Abraão e Sara não foram os únicos a procriar no período em que tiveram seu filho Isaac. O patriarca hebreu tinha um irmão chamado Naor que. junto com sua esposa Milká, teve vários descendentes, dentre os quais Betuel, que seria, mais tarde, pai de uma linda moça chamada Rebeca. Mas para que esta nova e fresca personagem entre em cena é preciso antes que uma outra, bem mais velha, dela se retire. Estamos falando, é claro, da encantadora Sara. A esposa de Abraão, depois de ter alcançado do Senhor a grande graça de gerar um filho após os noventa anos, viveu ainda até alcançar a provecta idade de 127 anos. Sara morreu na terra de Canaã, em Hebron, e por isso Abraão negociou a compra de um túmulo para sua adorada esposa ali mesmo, na caverna de Makpelá, que o novo proprietário fez questão de pagar, embora lhe tivesse sido ofertada como presente pelos habitantes locais.

- Pagarei quatrocentos siclos de prata – disse Abraão, firmando o negócio.

E foi assim que Sara adentrou de pés juntos a caverna na qual, além do próprio Abraão, entrariam um dia, entre outros, seu filho Isaac e o neto Jacó, que ela jamais conheceria.

Estando Abraão viúvo, e já entrado em anos, começou a temer pela descendência maior que as estrelas, pois seu filho Isaac, um homem calmo e pouco dado a namoros, já andava perto da casa dos quarenta anos.

- É preciso que Isaac faça a sua parte para que a minha noite, que já se aproxima, se povoe de estrelas – disse um dia Abraão a seu administrador Eliézer.

O administrador concordou,

- Coloque, então, a sua mão sobre os meus testículos - disse Abraão, exigindo que Eliézer fizesse esse tipo de juramento, então corriqueiro. - Prometa que não permitirá jamais, mesmo que eu desapareça, que meu filho Isaac se case com uma mulher desta terra de Canaã, mas antes com uma de minha própria família. O administrador ficou em dúvida.


- Imagino que deva levar seu filho até a distante terra de Haran – disse ele.


- Imagina errado, caro Eliézer - disse Abraão. - Você fará sozinho tal jornada, pois o lugar de Isaac é aqui, e aqui me será dada a descendência. Faça esta jornada sozinho e, quando estiver na minha antiga terra, lá o Senhor fará com que venha ao seu encontro aquela que, indubitavelmente, será a minha nora. Agora vá, pois a minha idade já me pesa e os últimos grãos da ampulheta sempre escorrem mais rápido. Ande, pois não quero morrer sem conhecer aquela que será para meu filho o mesmo que foi para mim a saudosa Sara.

Eliézer partiu rumo a Haran, levando consigo dez camelos. Durante todo o transcurso da viagem, esteve preocupado sobre como faria para alcançar o sinal do Senhor, até que, depois de muitos dias, finalmente chegou à entrada da cidade, em um final de tarde.

- É aqui o lugar onde devo encontrar a esposa para Isaac - disse ele para si mesmo. - Que o Senhor me ilumine e não permita que volte para Abraão sem a sua nora.

Ali onde estava, Eliézer divisou um poço onde as pessoas vinham buscar água em grandes cântaros e teve a ideia de orar ao Senhor.

- Senhor do meu amo! - disse ele, ajoelhando-se. - Faze com que eu identifique a esposa de Isaac da seguinte maneira: quando ela se aproximar, direi: “Dê-me, por favor, um pouco da água de seu cântaro", e depois, caso ela me atenda, aguardarei que diga: “Darei, também, água para os seus camelos", e se ela assim o fizer, então é porque é ela a escolhida. Pois esse será o sinal da eleição.
Nem bem o mordomo de Abraão havia terminado sua prece quando surgiu uma bela mulher carregando um grande cântaro vermelho. Seu vestido alvo contrastava deliciosamente com o objeto, e Eliézer sentiu seu coração vibrar de expectativa. “Será ela, meu Senhor?", pensou, emocionado.

- Bom dia, jovem filha de Haran – disse o emissário de Isaac.


- Bom dia - disse ela, sem olhar-lhe no rosto.

A jovem aproximou-se do poço e, depois de mergulhar o cântaro escarlate na fonte, retirou-o gotejante de lá. Eliézer observou tudo, encantado, e aproximou-se da Jovem, como que impelido por uma força superior.

- Poderia me dar um pouco da sua água, pois tenho muita sede? - disse, educadamente.

No mesmo instante, e sem pestanejar, a jovem inclinou o seu cântaro para que o servo de Abraão saciasse a sede.

Com as barbas grisalhas molhadas pelo liquido, Eliézer aguardou que Deus tornasse efetiva a segunda parte do ajuste, o que, para sua felicidade, não tardou a acontecer, pois logo a jovem anunciou, retornando para o poço:

- Aguarde, que também darei de beber aos seus camelos.
“Graças ao Senhor!', pensou ele, prosternando-se, enquanto ela se afastava. Então, depois que ela havia saciado a sede dos camelos, Eliézer perguntou:


- Como é o seu nome, bela jovem?


- Sou Rebeca, filha de Betuel - disse ela, erguendo ligeiramente os cílios.

Novamente o servo de Abraão prosternou-se, agora diante das vistas da jovem.


- Bendito seja sempre o Senhor, que não me abandonou! - exclamou, extasiado, ao descobrir que estava diante da neta do irmão de Abraão.


A moça contemplou, surpresa, a reação daquele estranho homem.


- Meu senhor lhe oferece este anel de ouro e estes dois braceletes de ouro para que resplandeça ainda mais a sua beleza – disse Eliézer, estendendo-lhe os presentes.

Rebeca fez menção de partir, vagamente ofendida com a oferta.
- Não se ofenda, bela Rebeca, pois estes presentes vêm da mão de Abraão, irmão de seu avô.
Rebeca, encantada com a noticia, correu ligeiro até a sua casa para dar a boa nova aos seus parentes.

Seu irmão  Labão – que anos mais tarde iria desempenhar um papel fundamental na vida de um dos filhos de Rebeca – também estava ali, e foi com grande alegria que todos correram a receber o servo de Abraão.

Naor, que ia à frente de todos, abraçou a Eliézer, perguntando pelo irmão.
- Abraão é um grande senhor em Canaã – disse Eliézer, com orgulho.
Rebeca, com o anel colocado no nariz, à maneira oriental, e com os braceletes a penderem dos pulsos, assistia a tudo, maravilhada.
Eliézer fez o pedido em nome de Isaac, tal como ordenara seu amo, explicando as circunstancias milagrosas do encontro. Diante disso, todas as cabeças inclinaram-se

- Esta a sua vontade? – perguntou Labão à irmã.

- Sim – disse ela, satisfeita.

Rebeca retornou, então, com Eliézer, e depois de vários dias de viagem, quando haviam entrado nos limites da terra de Abraão, surgiu-lhes adiante a figura de Isaac, que estava por ali a meditar, já que esta era sua natureza.

- Quem é este homem que vem até nós? – disse Rebeca, cobrindo o rosto. – Este é Isaac, filho de Abraão e o seu futuro esposo – disse Eliézer.
E assim se deram os primeiros passos da união de Isaac e Rebeca, que se casaram na cidade de Haran.

Antes de morrer, Abraão ainda pôde desfrutar da companhia de sua nova nora, à qual coube consolar, a exemplo do que já fizera durante muitos anos com sua falecida Sara, pois a jovem Rebeca também encontrou dificuldades para gerar um filho.

- Confie nas palavras do Senhor, assim como Sara confiou – dizia ele, todas as vezes que a jovem vinha até a sua tenda lamentar a desdita.

Isaac, no entanto, com seu temperamento calmo, parecia não estar muito preocupado com o assunto, talvez porque soubesse, como o pai, que o Senhor não faltava jamais com uma promessa.

Entretanto, antes que o rebento de Rebeca pudesse vir ao mundo, tiveram todos de haver-se com um fato entristecedor, que foi a morte de Abraão. O velho patriarca, cujo nome seria exaltado para sempre, depois de ter perdido sua primeira esposa, ainda tomara outra, de nome Cetura, e com ela tivera mais seis robustos filhos.

Vivendo cercado por sua prole. Abraão teve um final de vida pacifico e feliz, morrendo aos 175 anos. Seus filhos, capitaneados pelo manso Isaac e o selvagem Ismael, conduziram o corpo do velho patriarca até a caverna de Makpelá, onde Sara já repousava há bom tempo. Rebeca, profundamente entristecida pelo fato, sentiu-se sozinha, já que agora não tinha mais a presença reconfortante daquele delicado sogro, que tinha sempre uma palavra de consolo e carinho a lhe prodigalizar. Por isso, logo depois dos funerais, tomou uma decisão.

- Isaac, preciso muito lhe falar - disse, com firme determinação.

Seu esposo, embora parecesse meio desligado das coisas terrenas, quando se tratava da esposa, tinha sempre um olhar de atenção.

- O que foi, minha Rebeca? - disse ele, tomando os cabelos dela em suas mãos.

- Quero retomar para a terra de meus pais.


Isaac ficou perplexo.
- Retornar? Para quê?

- Algo me diz que só conceberei nosso filho quando estiver de volta ao meu lar.

Isaac pediu um tempo a ela para pensar no assunto. Será que ele se adaptaria a viver na planicie de Haran? Mas depois de refletir que seu próprio pai de lá viera, decidiu fazer a vontade da esposa.

- Está bem, Rebeca amada, iremos para junto dos seus - disse ele, fazendo com que a esposa desse pulos de alegria.

De volta a Haran, fizeram muitos passeios até a fonte de Lahai-Roí, onde o servo Eliézer a encontrara com seu cântaro na mão.

E foi assim que se anunciou o ingresso no mundo dos filhos dos dois, Esaú e Jacó, cuja amarga contenda - parecida com aquela que opusera um dia Isaac a Ismael – iria repetir-se em um nível muito maior.

Mitologia judaico-cristã
Jeová, Yahweh, deus hebreu, Alah   Abraão, Isaac, Rebeca, Eliézer, Naor, Labão
8/6/2017 10:11:40 PM | Por Carmen Seganfredo
A Torre de Babel

Durou pouco tempo a nova trégua estabelecida entre Deus e suas criaturas. Nem bem havia secado a última poça de água do devastador Dilúvio e já os descendentes de Noé haviam começado a reincidir alegremente na prática do mal. Espalhados pelo mundo, os filhos de Sem, de Cam e de Jafé construíram grandes civilizações, tão adiantadas materialmente quanto eram atrasadas espiritualmente (segundo a ótica do Senhor). Uma dessas civilizações era a babilônica, cuja capital era a cidade de Babel, lugar onde viviam seres muito industriosos, porém pouco morais. Naqueles distantes dias, todos os povos falavam a mesma língua, pois ainda era recente a época em que haviam coabitado sob as mesmas tendas. E, sendo fácil a comunicação, igualmente fácil era fazer circular toda a espécie de ideias soberbas. O ser humano, como que renascido das águas, sentia-se senhor do seu destino. A velha estória do castigo divino havia sido relegada a condição de fábula, da qual se riam os homens abertamente pelas ruas da grande cidade erguida sobre a planície de Shinear.

- Que Deus, que nada! - diziam os potentados, dos quais os grandes construtores eram os maiorais. – Basta dessas bobagens! O que vale é construir, construir cada vez mais!

Empolgados por um frenesi construtivista, espalhavam-se canteiros de obras por toda parte, e o que mais se via em toda Babel eram andaimes espalhados pelos ares, repletos de formigas humanas com seus instrumentos de trabalho.

- Vamos lá, temos de entregar ainda este mês este maldito palácio! - berravam os construtores, de chicote em punho.

Ao mesmo tempo, circulavam pela corte as mais extravagantes ideias. Tomados pela inveja, ao saberem que os egípcios haviam erguido uma monumental pirâmide para louvar o seu faraó corrupto (a célebre pirâmide de Gizé), os babilônios decidiram erguer um majestoso zigurate – palavra suméria que significava ‘pináculo’ - para homenagear os governantes e os deuses do seu pais.

- Pirâmide alguma chegará aos pés de nossa elevada torre – dissera um dos construtores ao rei da Babilônia. – Será tão imensamente alta que tocará os portões do céu e dilúvio algum poderá submergi-la.

Os babilônios também pretendiam que o topo da torre fosse a habitação do deus Marduk, divindade suprema que haviam criado para substituir o velho Yahweh de Noé, divindade arcaica que os tempos modernos, empreendedoristicos e amorais haviam tomado obsoleta.

- O grande Marduk estará instalado em um enorme aposento, no topo d ozigurate, onde receberá as oferendas de seus fiéis – dissera  o mesmo construtor.

Aprovado o projeto audacioso, o rei deu a ordem para que começassem as obras imediatamente. Em poucos dias, a construção, que mais parecia um vasto cupinzeiro, já havia crescido de maneira espantosa. Ultrapassando em muito o tamanho do maior dos palácios existentes, elevava-se cada dia mais, de tal sorte que em um mês já não se podia mais divisar seu topo.

Todos os dias um mensageiro corria ao rei para levar a notícia do andamento da prodigiosa obra.

- Já tocou o céu? – perguntava o soberano.
- Ainda não, alteza, mas já alcança as nuvens – dizia o leva-e-traz.
- Redobrem, então, os trabalhos, até que perfure o céu – dizia o rei, ávido de realizar o inédito prodígio.
No outro dia, nova remessa de material era enviada para o local da construção. Juntamente com mais alguns milhares de homens. Famílias inteiras estavam entregues à tarefa exaustiva; muitas centenas de pessoas morriam no duro afã de escalar as escadas que conduziam até o pináculo, atravancando os degraus, e acabavam sendo arremessadas do alto para desobstruir os caminhos que levavam ao céu.

Os milhares de andaimes, suspensos por um verdadeiro emaranhado de cordas, subiam e desciam como pequenos elevadores de madeira, levando aos céus homens e materiais, e era uma verdadeira festa quando os trabalhadores se cruzavam, e então irrompiam os gritos, cumprimentos e brincadeiras que uns dirigiam aos outros.

Depois de uma certa altura, dependendo do clima que reinava no dia, era impossível enxergar-se algo embaixo, e era, então, como se os trabalhadores estivessem a construir um palácio sobre as nuvens.

- Até onde isto nos levará? - perguntavam-se, invariavelmente.

E assim foi até que o Senhor, tomando conhecimento da grande irrisão, perdeu finalmente a paciência diante do atrevimento daquelas formigas.

- Então ajuntam-se todos sob uma mesma língua para desafiar o meu poder?! - disse Deus, enfurecido.

Decidido a colocar um ponto final em tanta soberba, o Senhor fez, então, com que descesse sobre toda a terra dos babilônios uma grande confusão.

Era a manhã de mais um dia de trabalho na grande torre de Babel. Os operários, espremidos em seus andaimes, começavam a ser suspendidos outra vez para as nuvens, enquanto, pelas escadarias, milhares de trabalhadores galgavam exaustivamente os infinitos degraus. Os feitores e capitães-de-obra acompanhavam o serviço, impedindo por todos os meios que a preguiça se introduzisse na alma dos assentadores de tijolos.

O dia começara nublado, mas não foi assim por muito tempo, já que de repente o sol surgiu no horizonte, banhando a construção com seus raios ofuscantes.

- Bfofé liziu diguritu, fegumibe! - disse um feitor a outro, com o semblante alegre. (Na verdade, ele dissera: "Vamos ter um lindo dia de sol!”, e o que reproduzimos não era, naturalmente, o novo idioma que surgira, senão a tradução figurada de como ela soara aberrantemente aos ouvidos do outro.)

- Hunji-kinjú? - perguntou o companheiro. ("Como é que é?')
Os dois olharam-se com o pasmo estampado no rosto. Então um dos feitores, ao perceber dois operários que conversavam- e que também não conseguiam se entender de modo algum -. Os interrompeu com uma chicotada no lombo.

- Plotatunda, fadú! - disse o feitor, enfurecido (“Ao trabalho, ralé!")
Entre os andaimes a coisa se repetia.
Por toda parte a desinteligência estava instalada. Não havia duas pessoas que se entendessem entre si, de tal sorte que um alarido infernal ergueu-se em poucos minutos em todos os andares da construção. Homens agarrados às barbas dos outros tentavam fazer-se entender a qualquer custo.

A verdade é que Deus, decidido a impedir o avanço da obra blasfema, decidira também poupar, por esta vez, as suas criaturas da sua fúria sanguinária (pois não lhe custaria nada fazer ruir a torre inteira, sepultando em seus escombros toda a legião de obreiros), fazendo simplesmente com que as línguas se embaralhassem num caldeirão de idiomas diferentes e ininteligíveis.

A partir daquele dia, não houve mais quem se entendesse em toda a Babel. Dispersos pelo mundo, seus construtores foram buscar outros lugares para viver, fundando comunidades onde pudessem se desentender no mesmo idioma. A torre gigantesca, por sua vez, abandonada como lugar de maldição, permaneceu como um monumento inconcluso da vaidade e do orgulho humanos frente ao poder soberano do Deus supremo de Adão e de Noé.

Mitologia judaico-cristã
Yahweh/Jeová/Deus hebreu/Alah   
8/6/2017 10:06:54 PM | Por A. S. Franchini
A Arca de Noé

Depois de ter gerado os infaustos Caim e Abel, Adão foi pai, ainda, de inumerável prole. O tronco mais nobre desta verdadeira árvore da vida que foi Adão chamou-se Set. Dele veio, algumas gerações mais tarde, um certo Enoque, homônimo do filho de Caim, mas tão infinitamente superior ao filho deste que mereceu o maior dos favores de Deus, sendo dispensado de morrer. O Criador, de fato, extremamente agradado de sua fidelidade, arrebatou-o aos céus, um certo dia, como a um Ganimedes ancião, quando completara 365 anos de idade. Também a seu filho Matusalém esteve reservada outra graça – um pouco menor que a conferida a Enoque, mas ainda assim invejável -, pois que chegou a viver mais do que qualquer outro ser humano sobre a Terra. O bom Matusalém, enfim, viveu nada menos que 969 anos de idade - ou *31 menos que mil*, como diziam os amigos, para acentuar ainda mais o maravilhoso prodígio.

Matusalém ainda vivia quando já andava pelo mundo o seu netinho Noé. Este patriarca ilustre, que a tradição nos apresenta sempre como um ancião severo - que, de fato, realmente foi, especialmente no período da grande tribulação -, era, no entanto, nos seus verdes dias, um menino muito alegre e que, como todos os outros, também gostava de brincar. Um desses brinquedos já era um sinal de sua futura eleição. Era assim que, desde o raiar do dia, o pequeno Noé já andava por toda parte à cata de insetos e pequenos animaizinhos para juntá-los, sempre aos pares, encerrando-os depois em minúsculas caixinhas. Tão logo reunia nova parelha, corria radiante até o avô lhe estendia a caixinha, num grande sorriso ainda sem dentes.

O bom Matusalém recebia o presente com um sorriso divertido e o colocava de lado, para mais tarde soltar os pequeninos prisioneiros – pois o moleque, incansável na sua obra, esquecia-se sempre de libertá-los.

Mas o pequeno Noé cresceu, afinal, e tornou-se um robusto jovem, casando-se mais tarde com uma dedicada mulher (que a tradição identificou, posteriormente, como Naamá). Para sustentar a esposa e seus três filhos, o incansável Noé fez-se carpinteiro, talvez o melhor que já houve em todos os tempos.

Entretanto, no mundo, as coisas andavam de mal a pior, em termos morais. Totalmente corrompida, a raça humana entregara-se a todos os excessos, de tal sorte que um dia, enquanto Noé – já um velho de veneráveis barbas – trabalhava em sua oficina, foi visitado pela voz de Deus.

- Noé, largue a enxó e ouça a voz do Senhor!
O velho carpinteiro, tomado pelo assombro, obedeceu.
- Estou farto desta humanidade corrompida – disse Deus, com uma nota evidente de amargura. – Por isso decidi apagar da face da Terra os sinais não só da presença dela, como também dos animais que por aí andam e das aves que voam pelos céus.

Noé, pálido pelo simples de fato de estar diante da presença divina, ficou estupefato diante daquele terrível anúncio.

- Exterminar... a todos, meu Senhor? – disse ele, quase incrédulo.
- Não – disse a voz. – A ti e aos teus pouparei do castigo.
Noé sentiu-se um pouco mais aliviado, mas não a ponto de esquecer da

desgraça que poria fim aos dias de todas as coisas vivas sobre a Terra.
- Farei desabar sobre a Terra inteira todas as águas represadas no céu, de tal sorte que em muito pouco tempo tudo perecerá debaixo d'água – disse Deus.
Um estupor de espanto substituiu as feições normalmente serenas do patriarca.

- Mas como poderá minha família escapar à tuaira, Senhor?
- Assim será, se fizeres como agora vou te dizer.
Então Deus ordenou a Noé que construísse uma grande arca, de três pavimentos, a qual encheria de todas as espécies de animais – um casal para cada espécie; deveria embarcar nela junto com os seus familiares, e lá deveriam permanecer durante quarenta dias e quarenta noites, que seria o tempo de duração para o Dilúvio,

- Esteja alerta – concluiu a voz, em um tom admoestatório -, pois quando começar a grande tribulação, daqui a sete dias, não haverá muito tempo para providências.

No mesmo dia Noé reuniu a esposa e os três filhos, além das noras, e deu-lhes a conhecer o terrível veredicto proferido pelo Senhor.

- Comecemos imediatamente a construir a Arca - disse aos filhos, que, apesar de um tanto incrédulos, não ousaram pôr em dúvida a veracidade das palavras do velho pai.

Nos sete dias seguintes Noé e seus parentes não conheceram um único segundo de descanso, consumindo todo o tempo a recolher material para a construção da arca, além de reunir animais aos pares, deixando-os ajuntados em uma espécie de redil enorme construído nos fundos da casa. Naamá, a esposa de Noé, também ficou encarregada de juntar quantidades enormes de alimento para manter vivos a família e os animais durante a longa quarentena sobre as águas. Durante todos esses dias de preparativos - mesmo naquele que antecedeu ao sétimo -, não se viu uma única nuvem cruzar os céus, pois Deus queria testar a fé de Noé, ver se ele era digno de sua escolha. Noé, contudo, nem por um instante, durante todo esse período, ergueu os olhos para o céu; ao contrário, manteve-os sempre voltados para a terra, pois sabia que o tempo urgia.

- Depressa com o betume! – dizia ele a seus filhos, que engrossavam em uma caldeira o material destinado a calafetar todas as frestas da grande nave.

Aos poucos a imensa arca foi ganhando forma, suspensa sobre dois gigantescos tripés de madeira que Noé fizera erguer, com a ajuda de outros homens, os quais, assalariados para tal, o faziam com empenho, mas também com grandes mostras de deboche.

- O velho endoideceu – dizia um, enquanto enfiava as cunhas das junturas.
- Também, seiscentos anos nas barbas...! - dizia outro, a serrar uma tábua.
E não só entres estes, mas também em meio à população do lugar se espalhou a maledicência. a ponto dos fofoqueiros se reunirem em pequenos bandos para perturbar o trabalho do velho marceneiro;

- Lá vem a chuva, Noé! Larga a arca e dá no pé!

Mas o forte ancião, a quem a escolha divina dava uma segurança acima de qualquer escárnio, continuava inquebrantável em sua obra.

E assim foi até que chegou a noite que antecedeu o dia fatal.

Uma verdadeira multidão acompanhou o extraordinário movimento daquela última e memorável noite sobre a terra. Sob a luz espectral de dezenas de archotes, uma extraordinária procissão de animais começou a subir a enorme rampa que dava acesso aos dois primeiros pavimentos da enorme arca.

Foi, realmente, um espetáculo magnífico, uma noite de sonho que antecedeu o pesadelo: debaixo de uma mistura de aplausos e assobios, subiam os animais, tendo por fundo o grande disco prateado da lua. Elefantes prodigiosos, leões selvagens, tigres inquietos, zebras - toda espécie, enfim, de animais de grande porte precederam a dos menores, como ovelhas, lobos, coelhos, cães e vários tipos de animais domésticos.

- Venha logo, Mimi! - disse Jafé ao velho gato de estimação, que surgira com a fêmea no seu manso passo aveludado.

Logo atrás veio o grande cortejo dos insetos, guardados em pequenas caixas, o que trouxe de imediato à memória de Noé o seu brinquedo antigo, além do saudoso avô, fazendo com que seus olhos se enchessem subitamente de lágrimas.

E assim, ainda antes que a aurora se anunciasse com seu rubor no horizonte, estavam já todas as criaturas irracionais acomodadas no interior da grande arca suspensa sobre os dois gigantescos tripés.

Então foi a vez de Noé e sua família adentrarem a grande nau. Apoiado em seu bastão, o velho patriarca subiu levando ao lado a esposa, os filhos e as noras, debaixo do riso delirante da multidão. Noé, porém, assim que pisou no terceiro pavimento, sentiu uma pena tão grande daquelas pobres almas chafurdadas no pecado, que lhes dirigiu, ainda, um último apelo:

- PorcosI Até quando desafiarão a ira do Senhor?

Um coro sonoro de risos estourou lá embaixo, com alguns chegando mesmo a lançar objetos sobre a arca.

Entretanto, apesar do tom de deboche, a maioria daquelas pessoas eram mais supersticiosas do que cínicas, e por isso resolveram esperar até o fim para ver no que ia dar aquilo tudo. “Vai que o velho maluco estava certo?", pensavam secretamente.

Mas quando o sol surgiu outra vez no horizonte, espalhando amplamente os seus raios, a expectativa do povo esmoreceu. Entendendo que aquela anedota já se estendera em demasia, aos poucos a multidão começou a dissolver-se, indo no rumo de suas mesquinhas tarefas cotidianas. Logo a barca ficou entregue á solidão, debaixo de um sol abrasador.

- Meu pai, como faremos para zarpar aqui de cima? – disse o jovem Cam ao velho marceneiro, ao perceber que não teriam quaisquer meios de fazer a arca se liberar dos dois tripés onde estava assentada.

- Deus o fará- disse Noé, laconicamente.

Mal Noé terminara de pronunciar essas palavras e uma pequenina nuvem surgiu, bem ao longe, no horizonte. Avançando velozmente, foi logo sucedida por mais algumas, e logo atrás, por um exército de outras, de uma cor ferruginosa verdadeiramente assustadora.

- Veja, Noé! - disse Naamá.
O ancião voltou suas barbas naquela direção e disse, com vigor na voz:
- Chegou a hora de o Senhor demonstrar todo o seu poder!
Um rumor surdo, como que de rochedos a rolar sobre a cúpula côncava dos céus, desceu do alto, enquanto o firmamento escurecia como a mais negra das noites. Apesar de as nuvens correrem alucinadamente pelos céus, na terra o ar estava morbidamente parado. Então uma lufada de vento surgiu de repente, levantando uma nuvem de pó e indo de encontro à arca. Os tripulantes oscilaram para trás, como se uma mão invisível os tivesse empurrado ao mesmo tempo.

- Sem! – berrou Noé.- Recolha as escadas!

Imediatamente Sem deu cumprimento às ordens do pai. Outra lufada abateu-se sobre a arca, fazendo com que os tripés de madeira que a sustentavam rangessem. Jafé viu a arca desprendendo-se das escoras e indo mergulhar sobre o solo ainda seco, num espalhar de madeira e animais. Mas sua visão foi obstada pelo ruído desses mesmos animais, os quais, inquietos com a escuridão, começaram a remexer-se nos pisos abaixo, fazendo tremer a arca toda com os golpes surdos de suas patas.

Noé mirava o céu, em uma espécie de transe místico, quando sentiu nas barbas a primeira gota da chuva prometida. E então, o temporal verdadeiramente começou. Em uma fração de segundos, a chuva fina evoluiu para uma tempestade de impressionante violência. As águas caiam dos céus com tanta intensidade que parecia que o mundo recebia sobre si o jorro continuo de uma gigantesca cachoeira. Em menos de um minuto a terra desapareceu sob os olhos dos marinheiros improvisados, e a única coisa que puderam ver lá embaixo eram formas opacas a correr alucinadamente de lá para cá, com as pernas já submersas até os joelhos.

- Pobres coitados! – gritava Naamá.

- Silêncio, mulher! - disse-lhe Noé, com autoridade. – Quer atrair, também sobre nós, a ira que o Senhor destinou aos imprevidentes?

Uma legião de desesperados – que a chuva espessa tornava meros vultos - arremessava-se aos tripés, tentando escalá-los desesperadamente para alcançarem o primeiro pavimento da arca. Entretanto, um a um, iam sendo arrancados antes que conseguissem alcançar seu objetivo, mergulhando de ponta cabeça para a morte. Apenas um destemido conseguira colocar a mão sobre a madeira lustrosa da grande nau, mas. sem poder encontrar um apoio, fora perdendo aos poucos o fôlego, até que, afinal, vencido pela adversidade, foi juntar-se à massa dos desgraçados no turbilhão das águas.

Rapidamente as casas foram sendo engolidas pela elevação das águas. Pessoas e animais rodopiavam como bonecos desengonçados em gigantescos redemoinhos até desaparecerem na vastidão do grande mar no qual a Terra ia se convertendo.

- Meu pai, a água está quase alcançando o casco da arca! – berrou Jafé.


- Segurem-se todosl - disse Noé, sabendo perfeitamente o que os aguardava.

Tão logo o nível das águas alcançou o casco, a arca foi subitamente impelida para cima, provocando um violento movimento que fez todas as juntas da mesma rangerem. Ao mesmo tempo, o barulho dos animais em desespero atroou a arca inteira. Uma gritaria sobrenatural elevou-se de todas aquelas criaturas espremidas em seus compartimentos, em um grito único de mil vozes estridentes e desparelhas que fez eriçarem os cabelos de toda a família de Noé.

O tripé dianteiro, entretanto, tendo perdido sua base de sustentação, saiu fora do lugar e terminou sendo levado pelas águas, o que fez a arca, ainda presa ao tripé traseiro, mergulhar a proa violentamente para baixo. Agarrado a escoras e cordames, Noé viu a proa onde estava inclinar-se de tal modo que chegou a ficar em uma posição horizontal sobre as águas abaixo de si.

- O Senhor nos reerguerá! – bradou ele, frente a frente com a morte.

No mesmo instante o tripé traseiro, não suportando o peso inteiro da arca, partiu- se em dois sob as águas revoltas, e desta vez a popa da embarcação, até então suspensa, desceu para as profundezas com toda a força. Convertida num balanço diabólico, a arca oscilou várias vezes, fazendo com que a proa fosse arremessada ora para as nuvens, ora para um vórtice profundo, a ponto de colocar grande quantidade de água para dentro. Noé e seus familiares, solidamente agarrados, estiveram submetidos a este vaivém continuo até que a arca, finalmente liberta de seus dois entraves, conseguiu estabilizar-se livremente sobre a água.

A chuva, entretanto, continuava a cair com fúria inacreditável. Tudo era escuridão, somente quebrada pelos estilhaços dos relâmpagos, que permitiam aos ocupantes da arca ter uma brevíssima visão do que acontecia ao redor.

- Oh, não há mais nada sobre o mundo! - lamentava-se a esposa de Noé.

- Quando não existir mais o Senhor, então me unirei aos seus lamentos - disse Noé, entrando para o interior da nave, pois agora nada mais havia a fazer senão entregar-se aos desígnios do Criador, uma vez que a arca não tinha leme algum.

Enquanto a chuva durou, não foi possível distinguir o dia da noite, de tal sorte que o mais exato seria dizer que a arca navegou no curso de oitenta noites. Empurrada pelo ímpeto desencontrado das águas, a arca de Noé flutuou durante todo o tempo, porém não tão mansamente quanto se podia esperar de uma nau comandada pelo Senhor. Depois de sofrer diversos abalroamentos, a arca começou a apresentar algumas sérias avarias.

- Não imaginaram, de certo, que o Senhor os colocaria aqui dentro para que estivessem a se fartar o tempo todo – disse o patriarca à família, vendo em tudo, sempre, a mão de Deus. – O Senhor tem duas mãos: com a destra nos a bençoa e com a outra nos experimenta.

A maior parte dos quarenta dias passados sobre as águas – que não devem ser tomados, necessariamente, ao pé da letra, pois quarenta era um número genérico usado pelos cronistas para representar um tempo muito longo (assim como os quarenta anos que  os fugitivos do Egito passariam no deserto) – os sobreviventes do dilúvio gastaram em dar de comer à verdadeira legião de animais encerrada na arca, além de mantê-la limpa, expulsando do seu interior a quantidade enorme de dejetos.

Então aproximou-se. finalmente, o termo do prazo dado por Deus para que a chuva cessasse. Sem e Jafé estavam de pé, ao abrigo da grande coberta, observando o temporal, que continuava a cair com semelhante intensidade.

- É nacreditável! – disse Jafé a seu irmão, apontando para o cume de uma elevadíssima montanha, quase inteiramente submersa pela água.- Até ondeirá a elevação das águas?

- O Senhor é quem sabe-  disse Sem, piedosamente, mas também com grande temor em sua alma.

Entretanto, naquele mesmo dia a chuva começou a amainar, enquanto um grande sopro varria a superfície das águas, tornando-a prateada. Noé e os demais foram chamados aos gritos pelos dois irmãos, e logo surgiram todos juntos para contemplar o abrandamento da ira de Deus.

- Nada pode ser mais doce sobre a Terra do que o momento em que a ira do Senhor começa a aplacar-se – disse Noé, com os olhos rasos d'água.

Em seguida o comandante da arca ergueu uma ação de graças junto com toda a sua família. Em resposta, surgiu no grande teto coberto de nuvens escuras uma pequena brecha por onde insinuou-se um estreito porém vivido raio de sol, que foi bater em cheio sobre a arca.

- Bendito seja o Senhor! – disse a esposa de Noé.
- É o primeiro sinal da reconciliação! – disse Sem, com um alivio profundo. As águas, porém, continuavam muito altas, e a arca ainda navegou o dia e a noite inteiros sem que fosse possível imaginar haver alguma parte seca em toda a Terra.

- É cedo, ainda – disse Noé.

E realmente era. Mas em breve um pequeno susto, muito parecido com aquele que dera início à imprevisível jornada, veio alterar a situação. Repentinamente, a arca cessou de navegar.
- Acho que encalhamos – disse Jafé, correndo de um lado a outro da borda da nave para ver se enxergava algo.
Mas ainda não era possível saber exatamente no que eles haviam encalhado, o que só aconteceu quando as águas baixaram mais um pouco.
- Se não estou enganado, meu pai - disse ainda o mesmo Jafé - , acho que encalhamos sobre o Monte Ararat.
De fato, a arca havia encalhado sobre uma encosta daquela montanha, localizada na Armênia. A medida que as águas baixavam, a arca foi ajustando-se sobre o terreno elevado, de tal sorte que em alguns dias já podiam avistar boa parte da montanha abaixo de seus pés.

- Chegou a hora – disse Noé, saindo do convés.

Logo em seguida retomou trazendo um corvo sobre o pulso, à maneira dos falcões.

- Vá, ave escolhida - disse Noé, liberando-a para o vôo. - Vá e somente regresse se não houver solo onde pousar.

E assim fez o corvo, regressando depois de algum tempo, pois ainda não havia nada sobre a superfície da Terra senão água. Mais adiante Noé soltou uma pomba, que não teve melhor sorte. Mas na segunda tentativa, esta regressou trazendo no bico um ramo de oliveira.

- Glória a Deus! – disseram todos, pois agora tinham certeza de que a água já havia secado em algum lugar da Terra o suficiente para descobrir a vegetação.

Sete dias depois. Noé soltou novamente a pomba, mas desta feita ela não regressou, dando a todos a certeza de que já havia condições sobre a Terra para ser novamente habitada.

- Vamos descer! Vamos descer! – disseram as noras de Noé.

- Aquietem-se- disse o sogro, rudemente. – Sabem vocês, por acaso, se o Senhor já decretou a hora do retomo?

Um silêncio obediente seguiu-se ás palavras do velho, pois naqueles piedosos dias uma palavra do patriarca era o bastante para pôr fim a qualquer alarido.

Algum tempo depois, o próprio Senhor tratou de confirmar a atitude de seu servo, declarando a Noé, com suas próprias palavras:

- Já podes desembarcar. Noé. Leva contigo os teus e todos os animais, pois a terra já está completamente seca. Ali homens, animais e toda espécie de seres poderão procriar livremente, enchendo-a novamente de vida.

As rampas foram baixadas e os casais de animais começaram a descer, cada qual tomando o seu rumo para poder se multiplicar e povoar a Terra inteira, até que não restasse mais nenhum dentro da arca.

Assim que Noé pôs seu pé sobre o solo, mandou erigir um altar a Deus e ofereceu-lhe um holocausto com alguns animais (o que deve ter feito com as crias dos casais, pois senão alguma espécie inevitavelmente seria extinta).

Quando a fumaça chegou ao nariz do Senhor, este regozijou-se a tal ponto que afirmou jamais voltar a infligir um flagelo igual àquele a Terra e a todas as suas criaturas. (Deus, depois de ter se arrependido de criar o Homem e os demais seres, parecia agora arrependido de quase tê-los exterminado.)

Outra vez o Senhor entregou às mãos do homem o império de toda a natureza, declarando que maldito seria aquele que tornasse a verter o sangue de outro homem. Ele estava, de fato, tão feliz com aquele recomeço de sua criação que estendeu por sobre o céu um grande arco colorido.

- Este é o sinal da aliança que solenemente renovo com o Homem – disse o Criador -. E desde hoje, todas as vezes que vir este arco suspenso sobre as nuvens me lembrarei da aliança que fiz convosco neste dia, suspendendo todo e qualquer novo dilúvio.

Depois da nova aliança, Noé estabeleceu-se com sua família em tendas, para dar início à nova era. O patriarca, feliz em poder ser o novo Adão, abandonou o seu oficio de marceneiro e decidiu tornar-se agricultor.

- Plantarei a vinha e verei o que dela sairá – disse Noé.

De fato, algum tempo depois, a vinha brotou com extraordinária vitalidade. Noé, provando dos frutos da videira, teve a ideia de transformá-la numa bebida saborosa, dando origem ao vinho. O velho patriarca gostou tanto da bebida que se embriagou.

Coube ao seu filho Cam a sorte funesta de entrar inadvertidamente na tenda do pai e encontrá-lo caído sobre os tapetes e inteiramente nu.

- Sem...! Jafé..! - gritou ele, saindo da tenda, ansioso para contar a novidade. - Venham ver em que estado se encontra nosso venerável pai!

Os dois irmãos correram até lá, mas, tendo sido informados em qual estado iriam encontrar o velho, tiveram a precaução de apanhar um manto e de cobrir seus próprios olhos.

- Cubramo-lo de uma vez, antes que as mulheres o vejam neste estado e percam todo o respeito que lhe devem – disse Jafé a Sem, lançando sobre a nudez do pai o manto protetor.

No dia seguinte, entretanto. Noé, ao ficar sabendo da atitude de Cam, bradou:

- Maldito seja Cam! Por causa de seu desrespeito, sua descendência será serva de Sem e de Jafé!

Depois deste incidente as coisas tomaram o rumo normal, e Noé pôde desfrutar ainda de anos bastantes para ver sua raça multiplicar-se, morrendo apenas aos 950 anos de idade (contando apenas 19 anos menos que seu avô Matusalém).

Dos três ramos de sua descendência – Sem, Cam e Jafé - fez-se a base para as raças futuras que se espalhariam por toda a Terra. Sem, o mais importante, segundo a ótica divina, se tornaria o tronco dos hebreus ou “semitas" (palavra derivada de Sem): Jafé viria a ser o tronco das nações gentias: e finalmente a Cam seria atribuída a descendência de todos os habitantes de Canaã, bem como dos povos de pele escura das partes da África.

Mitologia judaico-cristã
Yahweh   Noé, Cam, Jafé, Sem
8/6/2017 10:02:02 PM | Por A. S. Franchini
Abraão e o resgate de Lot

Abraão é até hoje tido entre judeus, cristãos e muçulmanos como 'o pai dos crentes'. Ninguém simbolizou tão bem como este patriarca hebreu a virtude da confiança e da submissão aos decretos divinos. Descendente direto de Sem, um dos filhos de Noé, e de Heber (do qual derivou o termo “hebreu"), Abrão, que como se verá passou a se chamar Abraão, era filho de Taré, um descendente de Noé que se tornara idólatra - ou seja, passara a venerar outro deus que não o deus de seus antepassados. Vivendo na cidade babilônica de Ur, localizada na margem ocidental do rio Eufrates, Abrão (que quer dizer "pai exaltado") cresceu sob o ambiente materialista dos grandes comerciantes caldeus. Isto não impediu, contudo, que procurasse desde cedo informar-se sobre o velho deus de Noé, pois ainda eram bastante vívidas as estórias que os velhos contavam sobre ele. - Por favor, fale-me mais sobre Deus - dizia o jovem Abrão a Taré, seu pai, na tentativa de compreender melhor aquele ser misterioso do qual tanto ouvira falar.

Seu pai, no entanto, totalmente comprometido com a adoração aos deuses de Ur, expulsava o filho de sua presença todas as vezes que ele vinha com o mesmo assunto. – Lá vem você de novo com estas bobagens! – dizia o velho, envolvido nos seus negócios. – Esqueça suas devoções e vá ganhar dinheiro! Veja, lá está chegando a nova caravana de mercadores!

Abrão, contudo, dava logo um jeito de safar – sedo meio daquela balbúrdia - onde homens exaltados regateavam um dia inteiro por uma misera moeda – e ia procurar um lugar sossegado para oferecer seus holocaustos em paz ao único deus que considerava verdadeiro: o deus eterno de Noé.

Abrão era casado com uma mulher chamada Sarai, a qual, embora bela e honesta, era estéril.

Então um dia seu pai, o velho Taré, decidiu deixar a cidade de Ur e estabelecer-se em Haran. Para tanto levou consigo o filho Abrão, a nora Sarai e o neto Lot, filho de Arão, irmão de Abrão. Os quatro chegaram a nova cidade, e ali Abrão viveu com sua esposa, mais o pai e o sobrinho, até completar 75 anos de idade. (Seu pai morreu nesta mesma cidade, aos 205 anos.)

Abrão, malvisto sempre por causa de sua fé, considerada ultrapassada e inconveniente, não mudou nunca seus hábitos, adorando o seu próprio deus a seu modo, até que um dia, sentado em frente à sua casa, recebeu, para seu tremendo espanto, um chamado dos céus.

- Deixa a tu acasa, a tua família e os teus bens, Abrão, e parte para a terra que vou te mostrar – disse a voz misteriosa.

- Deixar...tudo?

- Leva contigo apenas a tua mulher e o teu sobrinho, eis que decidi tornar-te pai de uma grande nação – acrescentou a voz, com grande autoridade.

Abrão não precisou escutar mais nada. Alguma coisa lhe dizia, desde sempre, que um dia receberia algo parecido com este chamado. Agora que ele se concretizara em uma ordem expressa. Abrão não esperou mais um único segundo para fazer suas malas e partir, mesmo com a severa oposição do obtuso Taré e dos demais parentes.

O verdadeiro motivo da partida, entretanto, ele só revelou á sua mulher e a Lot, o seu sobrinho.

- Vamos, Sarai, partamos - disse à esposa. - O Senhor decidiu curar a sua esterilidade, mas muito longe daqui.

Influída por essa promessa, Sarai concordou imediatamente, e logo, montada sobre um burrico, partia com o marido, o sobrinho e a esposa deste para distante de Canaã.

Foi uma longa viagem aquela à qual os quatro emigrantes tiveram de se submeter para alcançar o lugar prometido. Depois de chegar a Siquém – lugar que os filhos de Jacó haveriam de celebrizar tristemente muitos anos depois - junto ao carvalho de Betei, Abrão recebeu outra visita do Senhor, que lhe disse:

- É esta a terra que prometi a ti e à tua descendência.

O patriarca ergueu um altar em louvor a Deus e seguiu adiante até alcançar os campos de Mambré, e bem depois o vaie do Negueb, já nos limites do Egito.

Ali reinava grande fome, e por isso decidiu ir até a cidade do Faraó, para encontrar guarida. Antes, porém, resolveu prevenir sua esposa.

- Sarai querida, precisamos combinar uma coisa - disse ele, olhando-a com severidade. - Talvez você não saiba, mas o Faraó é senhor de tudo quanto entra em suas terras. Uma vez que chegue ao conhecimento dele que você é uma mulher de grande beleza, tudo fará para tirá-la de mim e colocá-la em seu harém.

Sarai arregalou os olhos de espanto: o que um Faraó iria querer com a esposa idosa de um homem de 75 anos de idade? Deus, porém, havia feito com que, apesar da adiantada idade, ela mantivesse toda a sua antiga beleza, e assim não eram poucos os homens que ainda a cobiçavam.

- Entendido isto, faremos, então, o seguinte – continuou Abrão. – Em vez de minha esposa, você dirá a qualquer um que indagar que é minha irmã.

- Irmã? – disse ela, com um sorriso.
- Exatamente.
- E isso me livrará do harém do Faraó?
- De modo algum. Isso apenas evitará que eu seja morto, pois é costume nesta terra de ímpios matar-se um homem para tomar sua esposa. Sendo minha irmã, os seus raptores me deixarão em paz e eu poderei tramar a sua libertação.

- Deverei, então, coabitar com o Faraó?

- O Senhor não o permitirá. Mas deverá fazer parte do seu harém por um tempo que, espero, seja o mais curto possível.

E tudo se deu como Abrão dissera. Sarai terminou sendo levada para o harém do Faraó, e lá esteve como legitima prisioneira, enquanto seu marido – que os tolos tomaram, efetivamente, por seu irmão - foi cumulado de benesses pelo soberano.

Mas Abrão queria mesmo era sua esposa de volta e, por isto, tratou de pedir a Deus que a livrasse das mãos daquele bárbaro governante. Logo obteve sua resposta, quando uma praga irrompeu nas margens do Nilo, levando a miséria e a doença a todo o pais. Desconfiado de que aquela estranha mulher recém-chegada tinha algo a ver com a desgraça, o Faraó mandou chamá-la diante de si.

- Quem é você? - disse o Faraó, o qual, inexplicavelmente, ainda não conseguira coabitar com a bela esposa do homem de 75 anos de idade.

Sarai explicou francamente, dizendo quem era e qual a razão da praga que infestava o Egito.

- Traição e feitiço! - disse ele.

No mesmo instante, aterrorizado daquela presença ao mesmo tempo sedutora e repulsiva, ordenou que ela fosse imediatamente devolvida ao esposo.

- Levem esta demônia! -  disse o Faraó, cobrindo o rosto com o manto real.

No mesmo dia, Abrão e Sarai deixaram as terras do Faraó, na condição de exilados perpétuos. Repleto das riquezas com as quais o Faraó o havia cumulado - e as quais não tomara de volta, no temor de que nova desgraça sobreviesse ao Egito -, Abrão retornou com os seus para os campos de Betel, em Canaã.

- Aqui seremos todos felizes – disse o patriarca, tão logo seus pés tocaram a terra prometida.

Infelizmente não o foram, pois logo a discórdia estalou entre Abrão e seu sobrinho Lot. Este, tendo se tornado insubmisso às ordens do tio - influenciado, talvez, pelas opiniões de sua esposa -. logo começou a fazer exigências descabidas, querendo ficar com as melhores terras e a melhor parte dos tesouros arrecadados no Egito. Por fim, a coisa evoluiu a tal ponto que os pastores de um e de outro se desentenderam violentamente.

- Lot meu sobrinho, precisamos acabar de vez com esses desentendimentos – disse um dia o seu tio, apaziguadoramente.- Uma vez que não podemos estar juntos sem rixas contínuas, deixo a você a liberdade de escolher a parte desta terra que mais lhe agrada. Se escolher o norte, irei para o sul; se escolher o sul, irei para o norte.

Lot gostou imensamente da ideia. Tomando o rumo do oriente, não se fez de rogado e apossou-se de todas as terras férteis do Jordão, restando a Abrão as terras de Canaã. Mais tarde Lot estabeleceu-se em Sodoma, onde dois desastres o aguardavam.

Abrão, estabelecido em Hebron, ergueu ali o santuário de Mamrê, onde recebeu novamente a visita do seu deus, o qual renovou as promessas anteriores acerca da terra em que já estava e de sua descendência, que outra vez declarou que viria a ser tão inumerável quanto os grãos de areia que recobrem a terra.

A primeira das duas desgraças a aguardarem Lot se desencadeou pouco tempo depois que ele se estabelecera em Sodoma. Quatro soberanos de pequenos reinos próximos decidiram fazer guerra a Sodoma e a outros pequenos reinos adjacentes. Houve vários combates em toda a região, que se tornou, assim, assolada pela guerra. Quatro reis combatiam aguerridamente contra cinco, até que os primeiros obtiveram finalmente a vitória sobre esses. Os reis de Sodoma e Gomorra acabaram presos nos poços de betume que havia naquela região, como em verdadeiras armadilhas, e viram seus reinos serem pilhados pelos invasores.

Abrão, enquanto isso, continuava entregue aos seus afazeres, até que um fugitivo chegou certo dia para anunciar a queda de Sodoma e dos reinos aliados. Mas, muito pior que isso, trazia uma notícia ainda mais infausta.

- Abrão, senhor das terras de Canaã! - disse o mensageiro, esbaforido. - Seu sobrinho Lot foi levado com sua família e os bens como mero despojo de guerra.

Sem pestanejar, Abrão correu imediatamente a reunir homens.
- O que pretende fazer? – disse sua esposa Sarai, atemorizada.
- Naturalmente que irei resgatar meu sobrinho das mãos dos reis perversos - disse ele, em meio aos preparativos.
- Mas Abrão... E a promessa? – disse a velha esposa, temerosa de que a o perecer seu marido nessa temerária expedição se acabassem todas as suas esperanças de ser mãe da progénie eleita.

- O Senhor estará à minha frente – replicou ele. Logo Abrão tinha reunido 318 homens - poucos, em comparação com a missão arriscada, mas prontos para o que desse e viesse.
- Meu esposo, são só 319 homens, incluído você!
- Trezentos e dezenove e mais Deus – disse Abrão, afivelando o cinto,- Somos, portanto, ampla maioria, minha doce Sarai.
Junto com seu pequeno exército, o velho patriarca marchou na direção de Dã.

Como estivesse em inferioridade numérica, resolveu fazer uso do velho estratagema da surpresa. Depois de dividir seus homens em dois grupos, deu inicio ao assalto, que resultou bem-sucedido, perseguindo os quatro reis inimigos até Hobá, que fica ao norte de Damasco.

Abrão sagrou-se vitorioso, naquela que foi a primeira guerra patrocinada pelo Senhor dos Exércitos. Depois de tomar a cidade onde estava aprisionado seu sobrinho, libertou-o, levando-o consigo de volta a Sodoma. juntamente com suas riquezas, das quais se decidiu a não tomar para si uma única moeda.

No caminho de volta, na altura do vale de Shavê, Abrão encontrou-se com o rei de Sodoma e seus aliados, que também retornavam da áspera campanha.

- Salve Abrão! - disse o rei de Sodoma. - Aqui tenho comigo Melquisedeque, rei de Salém, e sacerdote de Deus, o Altíssimo, que o abençoará.

Melquisedeque, segundo se dizia, era sacerdote de Jeová, embora haja quem afirme que o deus que ele adorava era outro, porém quase idêntico ao deus de Abrão. De qualquer forma, Abrão aceitou a bênção do sacerdote supremo de Salém - que ficava no ponto exato onde hoje se encontra a cidade santa de Jerusalém -, que este lhe ofertou sob a forma de pão e de vinho, reconhecendo, assim, de maneira algo profética, a importância que Abrão tinha perante a sua divindade.

- Bendito seja Deus Altíssimo que entregou às suas mãos os seus adversários!- disse o velho sacerdote, impondo as mãos sobre os cabelos brancos do velho peregrino, convertido subitamente em guerreiro.

- Agora, tome a sua parte nos despojos - disse o rei de Sodoma, alegremente.

Abrão, entretanto, dando voz à sua decisão, tornou explícito seu desejo de nada pegar para si.

- De ninguém tomarei sequer uma correia de sandália – disse ele, com altivez -, de modo que ninguém poderá dizer que enriqueci às suas custas. Que meus auxiliares diretos tomem o que julgarem justo e necessário para si próprios.

Abrão foi recompensado por seu deus com mais uma renovação de sua promessa – pois Ele parecia fazer questão de lembrar sempre ao seu servidor que não o esqueceria jamais.

- Nada temas quanto à tua parte – disse o Senhor pois ela te será alcançada. Desta vez, contudo, Abrão se permitiu argumentar
- Mas que coisa devo esperar, Senhor, se não tenho filhos, e o único herdeiro de que disponho é meu criado Eliézer?
- Não será, decerto, o teu mordomo quem herdará a tua descendência - retrucou a voz divina -, mas um ser que sairá de tuas próprias entranhas. – Então Deus chamou Abrão para fora de sua tenda.

- Estás vendo todas estas estrelas que espalhei sobre o firmamento? Podes me dizer quantas há? Pois nesta mesma quantidade serão os teus descendentes.

Abrão contemplou, extasiado, o grande manto estrelado que se estendia acima de sua cabeça e sentiu-se reconfortado.

- Não, o Deus que me fez sair de Ur e atravessar os inóspitos desertos para tomar posse desta terra, que em seu nome herdei, não irá, igualmente, faltar nesta outra promessa!- disse ele, repleto de confiança.

No dia seguinte, Deus ordenou a Abrão que lhe fizesse uma oferenda de animais, o que o patriarca prontamente cumpriu. Depois disso Abrão sentiu um profundo cansaço tomar conta dos seus membros. Uma treva desceu sobre os seus olhos e ele escutou, outra vez, a voz divina.

- Tua descendência errará numa terra que não lhe pertencerá. Durante quatrocentos anos ela será escravizada e oprimida, até que a libertarei dos seus opressores. Quanto a ti, terás uma velhice feliz antes de seres sepultado. Enfim, na quarta geração teus descendentes voltarão para cá.

Mitologia judaico-cristã
Yahweh/Jeová/Deus hebreu/Alah   Lot, Sara
8/6/2017 9:56:35 PM | Por
O riso de Sara

Abrão e sua esposa Sarai viviam um dilema verdadeiramente angustiante: apesar de já estarem em plena velhice, ainda desejavam ardentemente ter um filho. Esse desejo, já de si natural, havia se tornado uma verdadeira obsessão para ambos - especialmente para a pobre Sarai quando o deus de Abrão se manifestara, anunciando-lhe que ele seria pai de numerosa descendência. - Abrão, isto não pode ser – dizia a velha esposa, quase todas as noites em que ambos, dividindo o leito, rediscutiam pela milésima vez o assunto. – Com o poderei eu, uma velha de mais de setenta anos, procriar? - O Senhor pode tudo- dizia Abrão, diante do incômodo argumento. - Se é assim, porque Ele não faz com que seja de uma vez? – dizia a velha Sarai, depois de nova pausa. - Será quando Ele quiser – dizia Abrão.
Era um belo argumento. Mas ele sabia que ainda não era o fim.
- Porque Ele repete sempre a mesma promessa, mas nunca a cumpre? - dizia ela, penetrando em uma fronteira que sabia ser perigosa.
- Seremos nós quem vamos pedir contas a o Senhor de suas promessas? - dizia, então, Abrão, suspendendo levemente a cabeça para que suas palavras se tornassem perfeitamente audíveis.

Um novo silêncio descia sobre as cabeças grisalhas do casal angustiado. Abrão, entretanto, mantinha os olhos abertos, pois sabia que não dormiria tão cedo.

- Faz tempo que ele renovou a sua promessa? – dizia Sarai, mais suavemente. – Algum tempo – respondia laconicamente Abrão.
- Quem sabe, então, a bênção já esteja operando?
Então Abrão sabia que era chegada a hora de virar de lado, porque de outro modo não poderia, jamais, ingressar no seu sono.
Alguns dias depois Sarai lhe aparecia, de olhos baixos.
- Nada, Abrão.
E então, à noite, sob o manto cintilante e figurado da descendência inteira de Abrão, o velho servo de Deus preparava-se para recomeçar tudo outra vez.

As coisas estavam assim quando, depois de nova frustração, Sarai apresentou-se diante de seu marido.

- Abrão, eu desisto – disse ela, tomando finalmente uma decisão.
- Desiste do quê?
- Definitivamente, o Senhor não quer que eu procrie - disse ela, desalentada.

- Tome, então, nossa escrava Agar, e tenha um filho com ela.
- O que está dizendo? – falou Abrão, arregalando o solhos.
- É isto mesmo o que eu disse, meu esposo – insistiu a desiludida Sarai.- Agar será a mãe do filho que não posso nem nunca poderei lhe dar.
E dando as costas, encerrou o assunto, pois era humilhante demais para ela estar a pedir ao marido uma tal coisa.
Abrão alisou as barbas alvas durante um dia inteiro, enquanto observava a escrava no seu ir e vir cotidiano.
"Agar, uma escrava, mãe de minha descendência?", pensava ele, demoradamente. Então, sem receber qualquer outro sinal de seu deus, indicando que tal não fizesse, decidiu-se a acatar a sugestão da esposa.

- Agar, irei à sua tenda esta noite – disse ele ,um dia, a escrava.
Submissa, ela acatou a ordem do seu senhor.
- É vontade minha e de minha esposa que coabitemos, para que desta união resulte um filho que leve adiante o meu nome. Os olhos amendoados da escrava de pele escura arregalaram-se ligeiramente.
- Importa muito que você saiba, entretanto, que o filho desta união não será seu, mas como se fosse meu e de minha esposa Sarai.
- Será como diz, meu senhor-  disse Agar, curvando-se.
E então, nessa mesma noite, Abrão adentrou a tenda de Agar, que já o esperava de olhos baixos e discretamente enfeitada. Sem que nenhum deles dissesse qualquer palavra. Abrão a possuiu, enquanto sua esposa, sozinha na tenda do casal, fazia um esforço sobre-humano para converter a humilhação em humildade.

No dia seguinte, a escrava Agar ergueu-se com novo semblante.
- Será de meu ventre que sairá a descendência prometida – dizia ela, orgulhosa. No mesmo dia, de maneira imprudente, perdeu toda a consideração pela sua senhora, passando a andar de ventre empinado em meio às tendas.
- Tem o ventre mais liso que a palma da mão e, no entanto, parece que já leva a descendência inteira dentro dele! – diziam as más vozes.
Sarai, naturalmente, era a mais revoltada com aquele desplante.
- Porque não abaixa um pouco a crista, escrava? – dizia ela, irada.
- Quem carrega no ventre o filho de Abrão não tem, então, motivo de erguê-la até as estrelas?
Aquilo de estrelas já era, claro, outra provocação que a rival lhe lançava às faces.

Então Sarai, arrependendo-se totalmente de ter permitido tal afronta à sua autoridade, resolveu interpelar o marido.

- Abrão, sua escrava tornou-se de tal presunção que muito me custa não chicoteá-la, mesmo carregando nas entranhas o fruto de sua virilidade!- disse ela, adentrando um dia a tenda do esposo.

- Mas Sarai, foi você que mas sim o quis...!
- Nunca pretendi ser humilhada, por certo! Decida-se já entre mim e aescrava! Abrão, pouco disposto a bate-bocas, resolveu lavar as mãos naquele caso.
- Ela é sua escrava – disse ele meio encolhido. – Faça o que achar melhor. No mesmo dia, Sarai fez o que achava melhor, e tanto maltratou a pobre Agar, que esta, temendo pela vida do filho, fugiu para o deserto.

Agar fugira na calada da noite, levando consigo uma trouxa de roupa e o filho no ventre. Temerosa de que sua senhora a fizesse perder a coisa mais preciosa de sua vida – e única oportunidade de vir a ter uma dignidade infinitamente superior à dos meros escravos, Agar errou pelo deserto até buscar refúgio em uma fonte, que ficava no caminho de Shur.

Ali estava ela, recostada e exausta, com o ventre suado da longa caminhada, quando viu surgir à sua frente uma criatura resplandecente.

- Quem é você? - exclamou, assustada.
- Um anjo do Senhor – disse ele, calmamente. – O que está fazendo aqui?

- Fui expulsa da presença de minha senhora.
- Volta até ela e curva-te às suas ordens.
- Meu filho corre perigo diante da ira desta terrível mulher!
- Nada temas. Teu filho  nascerá e sechamará Ismael, porque o Senhor te escutou, ele será um verdadeiro jumento selvagem e dará origem a uma nação imensa e poderosa. Todos erguerão sua mão contra ele, e ele, a sua contra todos.

Ora, depois de ter recebido a honra de dirigir a palavra ao próprio anjo do Senhor (privilégio que a própria esposa de Abrão não merecera), Agar encheu-se de coragem e determinação. Por isso, resolveu seguir as ordens de Deus e retornar para o convívio dos seus senhores, deixando para trás o poço de Lahai, que se chamou assim porque foi ali que o Senhor a viu em sua aflição.

Por certo que Agar não foi recebida de braços abertos pela sua senhora. Muita briga e desaforo teve de suportar, mas ainda assim resistiu até que suas entranhas pudessem liberar o produto do seu ventre, que se chamou efetivamente Ismael.

Abrão tornou-se pai, deste modo, aos 86 anos-  o que não deixava de ser uma primeira, ainda que incompleta, confirmação da promessa divina. Mas a verdadeira promessa ainda não se concretizara. Mais treze anos se passaram, até que Abrão, contando então com 99 anos de idade, recebeu nova visita do seu deus, que começou por lhe repetir os mesmos termos de sua velha promessa. Apesar de seus ouvidos escutarem mais uma repetição das mesmas coisas, em momento algum Abrão pensou em perder as estribeiras e lhe dizer, inconformado: “Agora chega, Senhor! Falta um ano para eu completar cem anos de vida, e o Senhor vem de novo com a mesma conversa”.

Desta vez, porém, Deus tinha uma novidade concreta a apresentar.

- Já que estás destinado a te tornar pai de uma multidão de nações – disse o Senhor -, desde hoje passarás a chamar-te não mais de “Abrão" (“pai exaltado"), mas sim Abraão (“pai da multidão”), ao passo que tua mulher deixará de se chamar "Sarai" (“senhora") para chamar-se “Sara" (“grande senhora"). Este é o primeiro sinal da nova aliança que estabeleço entre nós.

O Senhor repetiu, então, de maneira quase inacreditável, aos ouvidos atentos de Abraão, a sua velha promessa - a da terra prometida e a da descendência inumerável como as estrelas -, praticamente nos mesmos termos, de tal sorte que o esposo de Sara chegou a cogitar se o Senhor não estivera durante todos esses anos repetindo-lhe uma anedota. Mas as palavras que se seguiram trouxeram, desta feita, uma verdadeira novidade.

- Como sinal da aliança que estabeleço entre mim e teu povo, exijo que todos os homens nascidos de tua fecundidade sejam circuncidados.

- Circuncidados, Senhor?

- Sim, tomarás o prepúcio de todo menino nascido de ti e o cortarás no oitavo dia após o seu nascimento.

Agora, sim, estava-se diante de algo verdadeiramente concreto, pensou Abraão, quase eufórico. Se o Senhor já descia a detalhes, então era porque a promessa finalmente se realizaria. Abraão, prostrado de joelhos, apesar de seus 99 anos, indagou do seu Senhor:

- Mas como poderei gerar filhos, quase aos cem anos de idade? E Sara, como poderá parir um filho aos noventa?

Depois de todo esse tempo, Abraão parecia ter se convencido dos argumentos de sua incrédula esposa.

- Senhor – disse ele, amigavelmente -, que Ismael, já vivo, seja o primeiro elo de nossa aliança, e que através dele sigam todos os demais, para que não se exija de uma carne quase morta o que ela não mais pode obrar.

Mas a voz do Senhor retumbou:

- Não. Sara, tua mulher, é quem vai gerar o primeiro filho da minha aliança, e ele se chamará “Isaac". A Ismael caberá a ascendência sobre outra grande nação, mas a minha aliança estará estabelecida a partir do filho teu e de Sara.

Dito isso, o Senhor desapareceu, deixando Abraão banhado em euforia.

No mesmo dia, o velho patriarca tomou Ismael, que já tinha treze anos de idade - e, por via das dúvidas, também os escravos e todos os homens de sua tribo -, e cortou, pessoalmente, o prepúcio de todos eles. Depois, tomando do mesmo instrumento, fez a operação em si mesmo, para que não fosse ele o único a não trazer no corpo o sinal divino da sagrada aliança.

Alguns dias depois, Ele ressurgiu novamente, desta feita sob a forma de três enviados.

Abraão estava sentado em frente á sua tenda. Fazia muito calor, e ele tentava aliviar-se gozando da brisa quente que soprava. Era quente, mas era vento, afinal. Então, subitamente, viu surgir ao longe os tais três personagens. Algo lhe dizia que eram pessoas muito importantes, pois, desde que pusera os olhos sobre eles, sentira uma sensação extraordinária percorrer-lhe os membros. Um deles, em especial, parecia trazer um ar de autoridade, o que o tornava superior aos demais.

Quando se aproximaram da tenda de Abraão, este correu até eles.

- Forasteiros, não passem reto por minha tenda! - disse ele, humildemente. - Entrem e descansem, enquanto minha mulher prepara coisas deliciosas para que renovem as suas forças.

Os três estrangeiros concordaram e foram sentar-se ao pé de um dos carvalhos de Mamrê. Enquanto isso, Abraão corria até a tenda onde estava sua mulher.

- Ande, Sara, prepare bolos deliciosos para os forasteiros que aí estão! - disse ele, convicto de que era necessário agradá-los a todo custo.

Depois correu até o redil das ovelhas e ordenou a um dos tratadores que escolhesse a melhor ovelha e a preparasse do modo mais saboroso.

Quando tudo ficou pronto, a refeição foi servida aos três forasteiros, que a saborearam com muito gosto. Ao cabo disso, o principal deles começou a falar.

- Onde está a tua esposa Sara?
Assim que ele falou, Abraão sentiu que estava diante do próprio Senhor.
- Oh, ela está em sua tenda, Senhor! Ela é um pouco envergonhada.
- Envergonhada?
- Sim. Na verdade, está escondida porque sou um pouco ciumento, também.
- Então ela deve ser muito bela.
- Verdadeiramente, apesar da idade, que se aproxima da minha. Embora pareça vanglória, ainda assim direi que chegou a ser desejada pelo próprio Faraó.
- Muito bem - disse o Senhor. – Então ouve o que agora vou dizer. Abraão afinou bem os ouvidos e permaneceu em atenta expectativa.
- No próximo ano retornarei, e quando o fizer tua esposa será mãe de um menino.

O velho patriarca ficou a mirar o vazio.
- No ano que vem...? – repetiu maquinalmente.
- No ano que vem, nesta mesma época.
Sara, entretanto, que estava escondida em sua tenda, um pouco atrás, escutou aquelas palavras com infinito estupor. Na verdade, foi como se tivesse escutado aquela promessa pela primeira vez em sua vida. Afinal, desde que entrara na casa dos noventa anos havia abandonado de vez a velha esperança. "Há quanto tempo deixei já de menstruar!", pensou ela, diante da surpreendente notícia E, passando a mão em seu rosto e suas formas, não pôde deixar de constatar: - Não adianta, estou murcha e seca como uma velha tâmara. E meu marido, o pobre, não está em melhor situação. Como esperam, então, que eu volte a parir? Porém, nem bem terminara de pronunciar esta palavra e viu-se acometida por um repentino acesso de riso. Cobrindo a boca com a ampla manga de seu manto, a velha senhora de cabelos brancos começou a rir como nunca o fizera, a ponto de seus olhos encherem-se de lágrimas.

"A velha Sara... esposa... do arquivelho Abraão..... dando à luz...!”, sussurrava ela, tentando controlar o acesso.

Então ouviu a voz do Senhor, que estava entre seus dois anjos, elevar-se.

- Porque Sara está rindo, lá atrás, em sua tenda? Julga, por ventura, que haja algo impossível ao Senhor?

Abraão ficou pálido como as suas barbas e endereçou um olhar faiscante para a tenda onde sua esposa se ocultava

- Oh, não! Eu não estava rindo! - disse ela, lá de dentro, sem aparecer.

- Estavas, sim, Sara - retorquiu o Senhor, como se tivesse pego um faltoso em um Jogo do sério.

E foi por causa desse riso franco que o filho de Sara, que efetivamente nasceria no ano seguinte, receberia o nome de Isaac, que quer dizer “riso".

Anunciada a boa nova, o Senhor ergueu-se, junto com os seus anjos, e fez menção de partir. Antes, porém, para que não ficasse nenhuma dúvida a respeito, repetiu pela última vez a promessa de que seu escolhido seria pai de uma grande nação, bendita entre os povos, e que tanto ele como seus sucessores deveriam seguir sempre nas suas veredas. Depois o Senhor declarou que ia para Sodoma e Gomorra, pois queria ver com seus próprios olhos se era verdade que o pecado havia se assenhoreado da gente perversa que lá habitava.

Abraão e seu deus ainda estiveram conversando longamente sobre o assunto, mas Sara, que ainda permanecia em sua tenda, não queria saber de mais nada, a não ser do filho que tinha, a partir de agora, data certa para nascer.

Mitologia judaico-cristã
Yahweh, Jeová, Deus hebreu, Alah, Senhor - - Agar, Sara, Abrão, Ismael
8/6/2017 9:54:12 PM | Por A. S. Franchini
Sodoma e Gomorra

Quando o deus de Abraão estava sentado à sombra dos carvalhos de Manrê para anunciar ao seu servo a feliz notícia de que sua mulher Sara iria conceber um filho (apesar de seus quase cem anos de vida), anunciou também, à sua partida, que pretendia ir até as cidades vizinhas de Sodoma e Gomorra. - Quero ver se é mesmo verdade que lá reina grande pecado – disse ra Ele ,com o semblante carregado. Abraão, sabedor de que seu sobrinho Lot residia em Sodoma com sua família, mostrou-se grandemente preocupado, pois temia que Deus fizesse desabar sobre as duas cidades um castigo parecido com o que fizera por ocasião do grande Dilúvio. - Por certo que lá reina grande impiedade, Senhor - disse. – Sendo assim, o que pretende fazer com aquele povo corrupto?

- Hei de destruir até os alicerces desses dois antros de corrupção – disse o Senhor, confirmando as mais negras suspeitas de Abraão.

Enquanto o Senhor rumava naquela direção, juntamente com os dois anjos que o acompanhavam, Abraão seguia ansiosamente seus passos.

- Mas e se houver cinquenta justos naquelas cidades, o Senhor estaria disposto a perdoar todo o restante? – disse Abraão, com uma esperança na alma.

- Certamente que perdoaria a todos – disse o Senhor, sem deter contudo.

Abraão, apoiado a seu bordão, suspirou aliviado, e parou de caminhar, achando que já podia retornar. Porém, pensou melhor e decidiu garantir-se. Deu uma ligeira corrida para emparelhar novamente com o Senhor e seus velozes anjos.

- Senhor! Senhor! – disse ele, esbaforido. – Perdoa minha insolência, mas e se não fossem cinqüenta, mas apenas quarenta e cinco os justos, ainda assim livraria a todos do seu castigo?

- Certamente que livraria a todos – disse o Senhor, sempre marchando.

Abraão parou e deu outro grande suspiro. "Agora acho que está bom!", pensou, dando as costas.

Porém, ao voltar-se, foi assaltado por nova dúvida. “Quarenta e cinco justos!", pensou, agoniado.

- Senhor! Senhor! – bradou ele, arregaçando o manto e dando nova corrida. Depois de um esforço tremendo, estava outra vez ao lado do Criador. – Perdoa mais uma vez se eu, que sou a poeira de suas sandálias, ousa erguer novamente a voz até o Senhor! Mas, por favor, diga-me: e se forem tão somente quarenta justos?

- Pouparei a todos por esses quarenta – disse o Senhor.

Abraão suspirou outra vez, mas logo estava de volta nas pegadas do Senhor, e tantas vezes repetiu o vaivém em favor dos ímpios que da última vez a coisa ficou somente em dez únicos justos.

- Se houver dez únicos justos - disse o Senhor-, todos os demais serão poupados.

Abraão ficou, então, satisfeito. "Lot, sua mulher e mais as duas filhas perfazem já quatro. Será preciso que existam apenas mais seis justos e tudo estará bem", pensou. Infelizmente, ele não conhecia direito nem a esposa, nem as duas filhas de Lot.

O fato é que, cientificado de que as coisas iam ainda pior do que Ele pudesse imaginar. Deus decidiu lançar imediatamente o castigo sobre as duas cidades. Para tanto, mandou que os dois anjos da sua escolta fossem resgatar Lot e sua família de Sodoma antes do extermínio dos demais habitantes.
A noite, os dois emissários divinos entraram na cidade de Sedoma. Lot, que estava à porta de sua casa, logo os reconheceu como seres angelicais.
- Por favor, adentrem a minha morada e permaneçam comigo e minha família - disse, acenando para os dois forasteiros.
Os anjos, entretanto, avisados dos perigos que rondavam aquele antro de perdição, recusaram com firmeza.


- Não, obrigado ,ficaremos na praça – disse um deles, aligeirando o passo. Mas Lot insistiu tanto que eles concordaram, principalmente depois que descobriram estar tratando com o irmão de Abraão.


- Mulher, prepare para estes dois forasteiros pão sem fermento, e que seus pés sejam lavados enquanto descansam – disse Lot ao abrir a porta de sua casa. Anjos e humanos jantaram fraternalmente e já se preparavam para ir dormir quando escutaram um berreiro vindo de fora da casa.


- Ei, forasteiros! Já sabemos que estão ai! – disse uma voz em falsete.
- Venham para fora! Queremos ver se são tão belos quanto dizem! - disse outra voz masculina.
Lot, então, foi até a janela e viu verdadeira multidão de homens – e apenas homens – reunida à porta de sua casa. Os dois forasteiros fizeram menção de sair, mas Lot os deteve e saiu ele próprio.

- Meus senhores, o que pretendem? - perguntou, face a face com a turba de pederastas.

- Sabemos que esconde em sua casa dois jovens encantadores – disse um velho careca e barrigudo, de barbas grisalhas. – Não arredarem os pé da qui enquanto não pudermos saciar nossa curiosidade e também nosso desejo.

Lot, temendo pela integridade dos mensageiros divinos, teve uma ideia feliz, porém não muito moral.

- Senhores, proponho outra coisa - disse Lot. - No lugar dos forasteiros, ofereço a vocês minhas duas filhas, que ainda são virgens. Sirvam-se delas à vontade, mas poupem meus dois hóspedes.

Caretas de asco desenharam-se em todos aqueles rostos cúpidos e corrompidos, até que o mesmo velho barrigudo exclamou:

- Fora! Você também é um estrangeiro por aqui, afinal. Porque pretende arvorar-se em juiz de nossos atos?

E depois de dar um empurrão em Lot, rumou enfurecido para a porta.
- Vamos, companheiros! Arranquemos à força os dois forasteiros!
Uma gritaria infernal levantou-se da malta degenerada, e já se preparavam todos para invadir a casa quando os dois anjos surgiram à porta.
Um rugido de prazer levantou-se da massa enlouquecida:


- Oh, são verdadeiramente encantadores! - diziam, maravilhados.
No mesmo instante, os dois forasteiros ergueram seus braços, fazendo com que toda multidão se tornasse imediatamente cega. Trombando entre si, os pederastas ganiam de pavor, sem encontrar o seu rumo.

Lot foi trazido outra vez para dentro de casa.

- Junta tudo quanto é teu, irmão de Abraão, pois o Senhor vai destruir esta cidade às primeiras horas do dia de amanhã – disse um dos anjos.

Sem pestanejar, Lot foi falar com seus dois futuros genros, mas estes não lhe deram ouvidos. Lot chamou, então, sua mulher e suas duas filhas.

- Que estória é esta de deixarmos nossa casa? – disse a esposa, que se mostrava pouco disposta a abandonar aquela odiosa cidade.


- Não ouviu o que eles disseram? – disse seu esposo, irritado.


- Ora, e por que não vão divertir-se com os outros? - disse ela, mal-humorada. Mas acabou concordando com a ordem do marido, o qual, nem bem amanhecera, foi despertado pelos anjos.


- De pé – disse um deles. – Daqui a instantes tudo se acabará.
Enquanto avançavam para os limites da cidade, viram casais de pederastas embriagados caídos sobre as pedras das calçadas, enquanto prostitutas, voltando de sua faina, observavam-nos com um sorriso azedo nos lábios.

- Vamos, falta pouco para o castigo! – diziam os anjos, apertando o passo. - Fujam para a montanha e não voltem jamais os seus olhos para o que vai acontecer às suas costas, sob pena do castigo também recair sobre vocês!

Lot entretanto, pediu para que ficassem todos na pequenina cidade de Zoar, e que por isso ela fosse poupada do terrível flagelo.

- Está bem, refugiem-se lá – disse o anjo.- Nada a contecerá às duas cidades amaldiçoadas antes que coloque seu pé em Zoar.

E assim foi. Tão logo Lot, a mulher e suas duas filhas pisaram os limites da pequena cidade, escutaram um ruído forte atrás de si.

- O que é isto? – exclamou a mulher de Lot, fazendo menção de virar-se, pois estavam todos de costas, ainda avançando para dentro da cidade.

- Não olhe para trás! – disse Lot, travando seu braço.

Todos os quatro permaneceram avançando – agora quase em uma desabalada corrida pois temiam que a ira de Deus pudesse alcançá-los de alguma maneira. Clarões impressionantes começaram a se refletir nas fachadas das casas caiadas, à sua frente, enquanto silvos contínuos e chilreantes soavam às suas costas.

- A ira do Senhor começou – disse Lot, transformado em uma espécie de novo Noé, mas sem o privilégio de poder assistir à consumação da cólera divina.

Estrondos pavorosos começaram a soar atrás de si, como se as duas cidades pecaminosas estivessem sob um bombardeio, e em meio a eles podiam captar também os gritos lancinantes dos seus moradores clamando por misericórdia.

Logo uma fumaça espessa envolveu a família de fugitivos, deixando-os completamente cobertos de cinzas. Não só a mulher de Lot, mas ele próprio, além das suas filhas, sentiram um vivo desejo de voltar-se para contemplar ao menos uma vez o horrendo castigo, mas sempre que intentavam fazê-lo eram obstados uns pelas mãos dos outros. Mas finalmente houve um descuido. Pretextando ajeitar uma tira de sua sandália, a mulher de Lot ficou um pouco para trás. Assim que se viu livre dos demais, curiosa, virou-se de corpo inteiro.

- Oh, é magnífico! - disse ela, arregalando os olhos. - A ira do Senhor! A ira do Senhor! – berrou ela, eletrizada, momentos antes de converter-se em uma estátua de sal.

- Mamãe! – gritou uma das filhas, querendo retomar.
- Não olhem para trás! - disse Lot, empurrando-as para diante. - Eu vou buscá-la.

Com os olhos cobertos pelo braço, Lot tateou até encostar os dedos em um ombro, que se esfarelou entre eles.

- Oh, Senhor! - disse ele, abrindo os olhos e olhando para a ex-esposa.

Lot tentou arrastá-la consigo, mas a estátua permaneceu fixa no solo, e assim tiveram de seguir adiante apenas ele e suas filhas.

Entretanto, antes de ingressar na cidade, Lot mudou de idéia.

- Não entremos em Zoar, pois tenho medo de que nos considerem amaldiçoados – disse às duas filhas.

Tomando-as, então, pelas mãos, rumou com elas até uma gruta nas montanhas adjacentes – Aqui estaremos mais seguros- disse ele.
Agora que o cataclismo já havia se encerrado, eles puderam voltar seus olhos para as duas cidades castigadas. Nada mais havia delas senão uma grande fumaça a evolar-se para o alto, que o vento lentamente espalhava por toda a região, como uma grande e ameaçadora nuvem.

As duas filhas de Lot, observando os destroços de Sodoma e Gomorra, puseram-se a confabular, dando vazão às suas angústias:

- E agora, o que será de nós, minha irmã? - disse a mais velha. - Que homem haverá de se interessar por nós duas, sabendo que somos sobreviventes do pecado?

- Então nunca mais coabitaremos com homem algum? – disse a caçula.


- Certamente que não - disse a mais velha, com o ar sombrio.


- E isso significa que não teremos descendência alguma?
- Certamente que sim – disse a mais velha, com o ar duplamente sombrio.


A caçula mordeu os lábios de frustração ao imaginar que jamais poderia vir a ser mãe, reação parecida com a que teve sua irmã.


- Mas isso não será assiml – disse a mais velha, subitamente.


- Como não..,?


- Temos vinho bastante nos alforjes, não temos?


- Sim, trouxe um odre inteiro.


 Ótimo, nosso pai ainda não dorme. Vamos até ele e façamos com que beba até perder a noção do certo e do errado.


- O que pretende fazer? - disse a caçula, espantada.


- Isto mesmo que você está pensando – disse  a mais velha, com um furor maligno nos olhos. - Afinal, ele não nos ofereceu às mãos imundas daqueles pederastas?

A caçula, ao relembrar o episódio, sentiu uma raiva crescer em seu peito.


- Sim, ele procedeu de modo vil conosco!


- Vamos embebedá-lo e conceber cada qual um filho dele. Eu serei a primeira.

No mesmo instante o velho Lot surgiu à procura das filhas.


- O que estão tagarelando aí no escuro? Venham, vamos dormir.


- Sim, papai, com todo o prazer – disse a mais velha, olhando significativamente para a caçula.


Quando estavam os três reunidos à entrada da gruta, a filha mais velha ofereceu ao pai um gole do vinho, que ele aceitou prontamente. E assim, de gole em gole, o velho Lot chegou a perder a noção de tudo.

- Acho melhor nos recolhermos, meu pai – disse  afilha mais velha, tomando o pai pelo braço.

- Sim, vamos ,minha querida – disse o velho, apoiando o braço sobre os ombros da filha.

E assim entraram para a escuridão da caverna, onde consumou-se o grande pecado - embora Lot não tivesse pecado intencionalmente, senão por ter abusado demais da bebida. Na noite seguinte, foi a vez de a caçula repetir a infâmia, tomando o lugar da irmã no ato pecaminoso.

Nove meses depois as filhas de Lot pariram seus filhos – ao mesmo tempo filhos e netos de Lot. O da mais velha chamou-se Moab, que mais tarde daria origem à estirpe dos moabitas, enquanto o da caçula chamou-se Ben-Ami, tornando-se, posteriormente, pai dos amorritas.

Mitologia judaico-cristã
Yahweh, Jeová, Deus hebreu, Alah   Lot
8/6/2017 9:46:15 PM | Por Carmen Seganfredo
Esaú e Jacó

- Lembra, Isaac? Foi exatamente aqui que, de certo modo, nos conhecemos - disse um dia Rebeca, à beira da fonte de Lahai-Roí, encostando a cabeça ao ombro do marido. Isaac sorria ao pensar no estratagema inventado pelo servo de seu pai, quando fora arrumar a sua esposa na distante terra de Haram. - Verdadeiramente tudo se deu conforme os planos dele - disse Isaac, dando novas graças ao Senhor. Eliézer, com efeito, após haver orado ao Senhor, conseguira identificar em Rebeca aquela que a providência havia destinado para ser a esposa do filho de Abraão. E foi instalados nas proximidades da velha fonte, na cidade natal de Rebeca, que ela e seu marido tiveram a ventura maior de sua vida. Rebeca, depois de lamentar-se seguidas vezes pela sua esterilidade, chegou a provocar em Isaac uma dolorosa pena, que o fez clamar certa noite ao Senhor, sob o brilho daquelas mesmas estrelas que Abraão tantas vezes vira como uma metáfora de sua futura descendência.

- Faze, meu Pai - disse ele, prostrado sobre a areia -, com que a minha doce Rebeca possa conceber, também, um filho!

Na mesma noite Isaac dormiu com sua esposa, e desta união veio o fruto de seu amor. Na verdade, dois frutos, pois desde os primeiros meses da sua gestação Rebeca sentia em seu ventre os espasmos de algo parecido a uma luta.

Assustada, ela clamava aos céus:

- Oh, Senhor! Soubesse eu quão ai de espera me aguardava!
Deus, entretanto, respondeu às suas queixas, dizendo:

- Dois povos se debatem em teu ventre. Eles disputarão um com o outro, de tal sorte que ao fim o mais fraco estará submetido ao mais forte.

Rebeca teve de sofrer o restante da gestação com todo o ânimo que pôde reunir, até que finalmente chegou a hora de lançar os dois irrequietos produtos do seu ventre para a luz do dia. O primeiro a sair foi um garoto de cabelos ruivos, que por isto mesmo mereceu o nome de Esaú (ou Ruivo). Já o segundo, que saíra com uma das mãos agarradas ao tornozelo do outro, como que para tentar tomar-lhe a dianteira, era muito diferente, e recebeu o nome de Jacó, ou seja, “aquele que domina".

Com o passar do tempo, as diferenças entre ambos foram se acentuando: enquanto Esaú o primogênito, era amante da caça – o que, por alguma razão estranha, fazia dele o predileto de seu pai -, Jacó era um espírito contemplativo, o que o tornava o predileto de Rebeca.

Rebeca, na verdade, identificava em Esaú, com seus modos rudes e seu corpo recoberto por um espesso pêlo ruivo, uma espécie de sucedâneo de Ismael, o turbulento tio dos gêmeos, que vivera sempre em meio as rudes tribos do deserto.

- Jacó, sim, puxou a mim e a Isaac – dizia ela -, e por isso deveria caber a ele o direito de herdar a bênção paterna.

A esposa de Isaac, com o passar dos anos, fora perdendo a sua candura de moça virgem e adstrita à autoridade dos pais, para adquirir a frieza do instinto maternal ameaçado. Sim, porque Esaú, embora saído de suas entranhas, tinha pouco ou quase nada do seu sangue, e era com certo asco que sentia o cheiro deste, quando ele retornava de suas correrias sanguinárias pelos campos, suarento e pegajoso.

Jacó, entretanto, apesar do gênio mais manso, também havia herdado a lábia tardia que sua mãe desenvolvera (porque uma mulher sem filhos é uma coisa, e a mesma, virada em mãe, é outra). Foi assim que, certo dia, estando Jacó sentado diante de uma pequena fogueira, a preparar sua comida, viu chegar seu irmão Esaú, completamente exaurido.


- Jacó, que bom que você está ai a cozinhar – disse, como pêlo ruivo lustroso. - O que temos para matar a nossa fome?


- Tenho uma suculenta sopa de lentilhas e um pedaço de pão fresco – disse o irmão, de olhos fitos nas labaredas do fogo, que brotando debaixo da caldeira pareciam dedos amarelados a suspendê-la sobre os gravetos.

- Deixe-me sentir o aroma – disse o Ruivo, aproximando o nariz lustroso de suor da nuvem esbranquiçada que se erguia da caldeira. - Hum! Vejo que pôs também alguns tomates!

Jacó sentiu o cheiro do irmão, e isto o irritou profundamente.


- Esta sopa só dá para um – disse ele, com franqueza.


- Não diga tal - disse o irmão. - Há na panela o bastante para dois.


- Comerei, então, por nós dois – respondeu secamente Jacó.


Esaú estava tão fraco da infrutífera caçada que teve de apoiar-se ao tronco de uma árvore, antes de retrucar:


- Estou com muita fome, Jacó.


- Eu também – disse o irmão, de maneira fria.

Esaú sentiu a água crescer em sua boca. a ponto de esconder pelos cantos dos lábios.

- O que quer em troca de um prato destas saborosas lentilhas? – disse ele, afinal.

- Quero o seu direito de primogenitura – respondeu Jacó, sempre de cócoras. Esaú refletiu longamente e terminou com uma conclusão pouco sensata.


- Está bem, mais vale estar vivo sem a primogenitura do que estar morto e enterrado junto com ela.


- Jure, então, pelo Senhor de nosso pai, que é assim que você quer.
Só depois de Esaú jurar solenemente que cedia o seu direito em troca do alimento foi que Jacó se retirou, deixando o irmão a sós com a caldeira fumegante.

Isaac envelhecera assustadoramente em seus últimos anos de vida. Transformado em um velho praticamente cego, vivia recluso em sua tenda. Rebeca, sua esposa, apesar de também ter se transformado em uma velha, ainda guardava intactos os sentidos.

- Preciso vigiar todos os atos de meu amado Isaac, antes que ingresse também na caverna de Makpelá - dizia ela, todo dia, ao levantar-se.

Um dia, então, escutou o velho Isaac chamar por seu filho dileto. - Esaú, venha até mim! – berrava ele, de dentro da tenda.


O filho peludo surgiu no mesmo instante.


- Aqui estou, meu pai - disse ele, pressuroso.

- Vá até o campo, mate um animal e faça para mim um assado saboroso - disse o velho. – Sinto que o momento de minha morte se aproxima com celeridade e quero, antes de partir, dar a você minha bênção.

Esaú tomou do arco e das flechas e saiu campo afora, como um alucinado.

Rebeca, contudo, escutara tudo do lado de fora, e tão logo vira o filho sumir-se, correu até Jacó, que estava a meditar, e lhe disse, não sem rudeza:

- Jacó, venha até a minha tenda!
Jacó seguiu a mãe, e, sob o abrigo das espessas lonas, ela disse:

- Chegou a hora de endireitarmos as coisas por aqui - disse ,com determinação. - Vá agora até o redil e mate dois cabritos. Depois prepararei um belo assado que você levará ao seu pai, que se ensaia já para deixar este mundo.

Assim que Jacó cumpriu as ordens, ela o tomou novamente pelo braço e o fez vestir as vestes de seu irmão.

- Mas minha mãe - disse o atônito Jacó -, como poderei enganar as mãos videntes de meu pai?

Rebeca, que já havia pensado no caso, tomou de alguns pedaços de pêlo de cabra e prendeu-os ao redor dos braços e do pescoço do filho.

- Pronto – disse ela, cheirando-o e apalpando-o. – O cheiro é o mesmo, e a pele é a mesma. Vá e cumpra o seu papel, que é o de ser Esaú.

Jacó, carregando nas mãos a terrina com o alimento, caminhou de maneira vacilante até a entrada da tenda do velho Isaac.

- Pai, posso entrar? - disse, engrossando um pouco a voz.


- Quem está aí? – disse o velho, inclinando a orelha direita para a entrada.


- Sou Esaú, seu filho, que retorna com a caça olorosa.


- Entre, de qualquer modo, ainda que eu saiba que não é meu filho Esaú.


Jacó paralisou-se. Por um instante sentiu vontade de jogar a terrina para o alto e sair correndo. Mas agora era tarde, não podia mais recuar, e assim, avançou.


- O que diz, meu pai? – falou, fazendo um grande esforço para tornar sua voz parecida com a do irmão.


- Como você caçou tão rápido? – disse o velho, sem lhe dar ouvidos.

- A caça veio até mim, por obra de Deus.


Isaac silenciou. Depois disse:


- Largue tudo e venha até mim.


Jacó obedeceu.


- Vejamos se você é mesmo meu filho Esaú – disse o velho, tomando  mãos de Jacó, recobertas pelo pêlo espesso da cabra.
Depois de alisar longamente as mãos e de espichar alguns fios enovelados, o ancião quase cego pareceu convencido.
- Está bem. O cheiro também me parece o mesmo – acrescentou ele, dilatando as grandes narinas avermelhadas.
- Dê-me, agora, a comida, pois o cheiro está delicioso.

Jacó deu de comer ao pai e baixou reverentemente os olhos ao ver os pedaços de carne serem consumidos pela velha boca.


- Estava muito bom – disse o velho, ao fim. - Agoradê-me de beber.


Jacó serviu-lhe um grande copo de vinho, que o velho repetiu.
Depois que esteve novamente recostado sobre os travesseiros, Isaac disse:

- Agora, Esaú, aproxime sua cabeça peluda da minha destra, eis que vou abençoá-lo.
E assim o fez, vertendo sobre a cabeça do falso Esaú a sua bênção poderosa e fazendo deste o último herdeiro legitimo e senhor da casa dos descendentes de Abraão.

- Que os filhos de sua mãe se prostrem diante de você! - disse ele, encerrando a bênção fatal.

Jacó, então, se retirou, e o fez em boa hora, pois nesse instante Esaú retornava trazendo a sua caça, que ainda precisava cozinhar.

Durante um bom tempo preparou a carne até que, estando tudo pronto, dirigiu-se com a sua terrina à tenda do pai.

- Com licença, meu pai - disse ele. - Cá estou com a delicia prometida.


- Esaú, outra vez? - disse o velho, suspendendo a cabeça. - O que você ainda quer? Já não lhe dei a minha bênção?


- Desculpe, meu pai, mas não o entendo.


Rebeca viu ao longe o pano da entrada da tenda descer. Um ligeiro e abafado altercar de vozes soou e então ela compreendeu que o filho enganado já era sabedor de sua constrangedora e irremediável situação.

- Traído! - berrou Esaú, arrancando os cabelos avermelhados. - Miseravelmente enganado!

Ainda assim tentou arrancar uma benção do velho pai, mas este não podia tomar.

- Você viverá desde hoje sob o jugo do seu irmão, até que ele, em suas andanças, se rompa naturalmente.

Foram estas as palavras mais suaves que Isaac encontrou para dizer ao filho mais amado.

Depois disso Esaú silenciou, pois sabia que, enquanto o pai vivesse, ele não poderia tirar a desforra – que outra não era se não matar o irmão usurpador.

Rebeca, no entanto, sabia perfeitamente dos propósitos do Ruivo. Por isso chegou até Isaac e disse:

- Isaac, não é bom que Jacó esteja a misturar-se com essas mulheres da qui. Faça como seu pai fez com você: não permita que seu filho se case com uma cananéia.

- Jacó não desposará nenhuma filha de Canaã, como Esaú – disse o velho cego.

Na verdade o Ruivo casara-se havia tempos com duas mulheres do lugar, as quais, desde então, infernizavam a vida de Isaac e Rebeca.

- Mande Jacó à terra de Abraão para que lá tome por esposa uma das filhas de seu irmão Labão - disseIsaac.

E assim Jacó partiu escondido, a fim de evitar a ira de Esaú. Quanto a Rebeca, a causadora de tudo, despediu-se do filho sem saber que jamais tornaria a revê-lo.

Mitologia judaico-cristã
   Esaú, Jacó, Rebeca, Isaac
8/6/2017 9:41:30 PM | Por A. S. Franchini
Caim e Abel

Adão e Eva, expulsos do Paraíso, descobriram muitas coisas novas desde que transpuseram, para sempre, as portas do ameno Jardim do Éden. A primeira delas foi que o ar se tornara súbita e desagradavelmente frio. Por isso trataram logo de vestir as roupas que seu Pai previdente lhes dera antes de sua partida. - Vista logo a sua pele, Adão - disse sua esposa Eva, quase obrígando-o a proteger-se do vento cortante que soprava livremente. Mas o Homem primordial estava, na verdade, triste demais para perceber alguma coisa. Tudo o que importava, dizia ele a todo instante, é que havia lançado fora, com a mesma inconsideração de uma criança, o afeto de seu divino Pai, além de um mundo perfeito, de onde estavam ausentes toda dor e sofrimento. Eva, contudo, parecia mais conformada. Seus olhos curiosos perscrutavam tudo quase alegremente, pois. imersa ainda na ignorância da extensão dos males que desencadeara sobre a Terra com a sua desobediência, parecia que as coisas haviam mudado muito pouco em seu novo lar-  na verdade, quase idêntico ao antigo.

Um põr-do-sol maravilhoso manchava o horizonte de um festival de cores, que seriam alegres não fosse o estado de espírito que ambos traziam.

- Não fique triste, meu amor -  disse ela, alisando as costas de Adão em um fago suave. – Nãos sei porquê, mas tenho a sensação de que nosso Pai não nos abandonou, afinal, e que segue diligentemente os nossos passos.

Adão, entretanto, parecia pouco convicto disso:

- Somos réprobos - disse, num murmúrio desanimado. - Logo o Éden estará povoado de criaturas mais dignas que nós.

Sua cabeça curvou-se ainda mais.

- Sim, logo ele terá nos esquecido totalmente e a morte nos chegará sem que Ele se digne a nos lançar um simples olhar de piedade!

- Adão! - disse sua esposa. - Agora sim está agindo como uma criança! Lembre- se de que Ele prometeu a reconciliação à nossa descendência.

- A eles, talvez - retrucou Adão, acabrunhado. - Mas nós, com toda certeza, jamais estaremos de volta à sua companhia, pois nosso destino é a morte.

- Não seja tão sombrio! Se agirmos corretamente a partir de agora, quem sabe não seremos chamados um dia, também, a partilhar dessa divina reconciliação?

- Estaremos mortos nesse dia.

- Que seja. Mas se nosso Pai teve um dia o poder de nos tirar do nada para a vida, por que não teria o poder de nos devolver a essa mesma vida? Não subestime os dons Dele, nem a Sua infinita misericórdia!

Adão silenciou, e assim continuaram os dois a caminhar vagarosamente e sem destino certo.

- Este outro pedaço do mundo parece ser infinitamente maior do que aquele  pequeno jardim que habitávamos  - disse Eva, procurando dar um outro rumo à conversa. -  Temos um mundo inteiro a desbravar!

Os dois, tendo subido ao alto de uma pequena montanha, sentaram-se numa saliência e ficaram observando, longo tempo, o sol morrer no horizonte, até que Adão tocou no ombro de Eva e disse, num tom um pouco mais animado:

- Vamos procurar um abrigo para passarmos a noite.
Eva sorriu ao descobrir que tinha, outra vez, um verdadeiro homem ao seu lado. Depois de vasculhar pelas proximidades – pois as trevas desciam rapidamente.

Encontraram, afinal, uma pequena gruta, onde foram alojar-se.
- É meio apertada, mas por hoje não há meios de encontrarmos outra melhor - disse Adão. Mas nem todos os dias de suas longas vidas seriam tão suaves quanto foi esse começo quase idílico de exílio. Já na manhã seguinte ambos tiveram uma primeira amostra das terríveis diferenças que havia entre o novo mundo que deviam desbravar e o paraíso para sempre perdido do qual tinham sido expulsos.

Logo depois de descerem de volta para a planície, Eva teve sua atenção atraída por um ruído que não lhe era nada estranho.

- Venha, Adão – disse ela, tomando o esposo pela mão. -  Acho que há um leão logo atrás daqueles arbustos!

Habituados à mansidão dos animais do Éden, ambos rumaram apressadamente para o local. Entretanto, logo ao romperem a moita depararam-se com uma visão de pesadelo: um leão, de fato, ali estava, agachado sobre algo. Porém, tão logo percebeu a presença do casal, encarou-os com um olhar tão feroz que Eva quase desfaleceu.

- Sua boca... está toda manchada de sangue! - disse ela, e no mesmo instante lembrou-se do aspecto que Adão apresentara ao provar do fruto maldito, com a boca toda lambuzada do sumo vermelho.

Somente então perceberam aquilo que o leão tentava esconder sob as suas poderosas patas.

- Meu Deus...é uma ovelha! - disse Adão, horrorizado.

Sim, era uma ovelha, ainda a debater-se num último e desesperado espasmo para tentar se livrar das garras implacáveis de seu agressor.

O homem fez um movimento na direção da fera para tentar evitar que a morte se consumasse, mas foi impedido por um grito de sua mulher:

- Não, não faça isso!

E o fez em boa hora, pois o predador, pondo-se em pé, num salto, pareceu disposto a liquidar com toda e qualquer coisa que tentasse impedi-lo de se fartar com a caça.

Adão e Eva afastaram-se levando o horror na alma, enquanto o leão, reclinado novamente sobre a ovelha, pressionava ainda mais as suas presas sobre o pescoço do animalzinho, sufocando-o lentamente.

- O mais forte, doravante, a massacrar o mais fraco! -  disse Adão, como rosto coberto pelas mãos.

Eva, sentada numa pedra, também deixou que as lágrimas corressem livremente pelo rosto, até que uma folha caiu sobre o seu cabelo, deslizando até o seu regaço. Num gesto mecânico, ela a apanhou delicadamente, apenas para vê-la esfarelar-se entre os seus dedos E então outras – muitas outras! – começaram a descer sobre si como uma lenta e persistente chuva da morte.

Os dois, abraçados, observaram aquele espetáculo deprimente, sem conseguir mover os pés do lugar, até verem-se rodeados por um tapete dourado de folhas secas e completamente mortas. O outono estava chegando e tudo na natureza parecia tornar- se sombrio, como que num prenúncio de morte. Os animais, tomados por um furor assassino, tratavam de prover-se, a qualquer custo, para os tempos difíceis que se anunciavam. Para toda a parte onde voltavam seus olhos, Adão e Eva viam cenas de ininterrupto morticínio – na terra, no céu e nas águas –, de tal sorte que Adão chegou a convencer-se de que eles próprios não estavam a salvo de se converterem, também, em presas de algum outro animal. Tendo sido retirado de todas as criaturas o privilégio da isenção da morte, a natureza parecia bradar através do vento cortante: "Nada mais de favoritos em meu reino!". O mundo passara a ser uma guerra aberta, onde ao fraco e ao imprudente estava reservada a pior parte. Tomando de um pedaço de madeira, Adão começou a desbastá-lo desesperadamente com uma pedra.

- O que está fazendo? – perguntou Eva.

- Precisamos nos defender – disse ele, arfando, na ânsia de ter logo nas mãos algo afiado que pudesse ajudá-los a se defender.

Entregue desesperadamente ao seu ofício, sentiu que algo lhe escorria pela fronte, descendo do alto da testa. Levando a mão às faces, recolheu delas uma linfa incolor e pegajosa:

- O que é isto? – disse parasita mesmo.
- Suor – respondeu Eva, cabisbaixa, esfregando o líquido entre os dedos. Adão nada mais disse – pois lembrara-se imediatamente da maldição que o Senhor lançará no dia da expulsão – E recomeçou a trabalhar arduamente. O primeiro homem sabia que desde aquele instante nada mais conseguiria obter deste mundo sem verter, em troca, grandes quantidades daquela linfa amaldiçoada.

Foi um tempo difícil aquele. Adão e Eva, submetidos à dura privação do primeiro inverno sobre a face da Terra, julgaram que dali para a frente o mundo seria sempre daquele jeito, sombrio e sem vida.

- A morte chegou também à natureza – dizia Adão, quase todos os dias, pois rara era a ocasião em que não era surpreendido pelos sinais inequívocos daquela.

Entretanto, Deus, apesar de parecer ausente todo este tempo, havia preparado algumas surpresas verdadeiramente reconfortantes, que davam ao casal original a ideia de que nem tudo estava inteiramente perdido.

- Veja, Eva, a neve começa a derreter! - disse Adão, um belo dia. à sua esposa. A mulher comeu a ver aquilo que parecia ser um verdadeiro renascimento.
De fato, um aquecimento gradual da atmosfera começara a trazer de volta à tona os sinais de um renascer de toda a natureza. Flores brotavam debaixo do solo úmido em uma profusão milagrosa, enquanto nos céus os pássaros retornavam em verdadeiras legiões, em uma alacridade ensurdecedora.

Adão e Eva observavam o dia todo os efeitos desse esplendoroso desabrochar, em especial o comportamento dos animais, que pareciam dominados por um intenso desejo de coabitarem com seus pares.

- A vida renasce, Adão querido! - disse Eva, abraçada a ele, sem perceber que ambos também estavam sob a mesma influência.

A partir daquele dia tiveram muito pouco tempo para admirar fosse o que fosse, entregues sempre a um furor sensual que os fazia esquecer de tudo o mais.

E foi sob esse estado de extrema excitação - que, em alguns momentos, lhes parecia sublime, para logo depois lhes parecer uma perfeita abominação, fruto equívoco do seu pecado – que Eva concebeu o seu primeiro filho. Tendo observado repetidas vezes os animais pejados pelos campos, não foi difícil à futura mãe associar o seu estado ao deles. “Deverei, então, tal como estes brutos, ver romperem-se minhas entranhas, em um dilúvio de sangue, para lançar ao mundo um novo ser?”, pensava, em uma angústia que crescia junto com o seu ventre, monstruosamente disforme.

Então, nove meses depois da concepção, em uma noite tempestuosa, Eva viu chegada a hora de cumprir a sua parte na maldição divina. Enquanto a chuva desabava fora da gruta, acompanhada de violentos trovões, Eva tornou-se presa de incríveis e inenarráveis tormentos, que a obrigaram a misturar os seus gritos estertorantes ao rugido selvagem dos ventos que a tempestade desencadeara.

- Oh, Senhor! Livrai-me desta aflição! - disse ela, quando, exausta já do seu martírio, elevou aos céus o seu pedido.

Como por milagre. Eva viu cessarem seus tormentos com a expulsão de dentro do seu ventre daquilo que tão terrivelmente a oprimia.

- Procriei – o com  ajuda do Senhor! – disse ela, reclinando a cabeça para o lado.

Adão, atento a tudo, aparou o novo ser em seus musculosos braços. Em um misto de nojo e estupefação, ficou alguns segundos sem saber o que faria daquele ser, tão diferente dele próprio, que só sabia gritar alucinadamente.

“Santo Deus! Então será sob esta forma miseravelmente fraca que todo homem deverá ingressar neste mundo?", pensou ele, atônito.

Eva, contudo, recebeu o filho com indizível emoção, estreitando-o imediatamente nos braços – o que, como num passe de mágica, teve o efeito de fazer com que a criança diminuísse o choro até aquietar-se completamente, de maneira tão repentina que Adão chegou mesmo a temer por sua frágil vida.

Mas o pequeno ser vingou plenamente, pois era um bebê robusto, cujos cabelos vermelhos denunciavam uma constituição sanguínea e viril. Foi chamado de Caim – pois esta palavra semítica tem os entido de "procriar" – e seu nascimento precedeu em menos de um ano ao de outra criança, de constituição mais delicada, que se chamou Abel.

Durante muito tempo a única distração dos raros momentos de folga de Adão foi observar o rápido crescimento dos seus filhos. Ao mesmo tempo em que ficava encantado, acompanhando as travessuras daquelas duas parodiazinhas infinitamente ternas e engraçadas dele mesmo, também escandalizava-se com a terrível contradição de vê-las expostas, frágeis daquele jeito, a um mundo tão selvagem e ameaçador. Quantas vezes, por exemplo, não vira nos indefesos filhotes dos animais, estraçalhados brutalmente pelas gamas de predadores, a imagem aterrorizante de seus próprios filhos!

- Eva, tudo isso é profundamente desolador! - dizia ele, nos momentos em que expunha à esposa o seu desânimo, pois sabia que a segurança dela e daqueles dois seres indefesos repousava exclusivamente sobre a sua firmeza de alma.

Durante um breve tempo a pequena família sobreviveu da cultura de alguns poucos legumes, arrancados a duras penas da terra insubmissa, até que Adão se viu obrigado a tomar a mulher e os filhos e partir em dura peregrinação, em busca de campos novos e férteis. Depois de colocar os três dentro de uma espécie rudimentar de carroça, Adão partiu com eles, em uma manhã bem cedo, para desbravar aquele mundo vasto e desabitado. Durante todo o longo trajeto, que percorreu às cegas, fez questão de ele próprio conduzir o desajeitado veiculo.

- Por que teima em esfalfar-se á frente desta coisa? – dizia Eva ao marido, o qual, preso em uma espécie de arreio improvisado, se fazia de surdo, apressando ainda mais o passo pelos campos repletos de pedras e de cardos.

Eva queria que Adão domesticasse um animal de tração qualquer para realizar a penosa tarefa, mas ele, surdo aos argumentos, recusava-se terminantemente a fazê-lo. Convicto de que não tinha o direito de estender às outras criaturas uma pena que era exclusivamente sua, Adão recusou-se soturnamente – não só daquela vez, mas até o fim da sua longa vida – a escravizar qualquer animal, mesmo o menor deles, para qualquer coisa que ele próprio pudesse realizar.

Adão, realmente, tornara-se um outro homem. Quanta diferença daquele ser puro (mas tão ingenuamente tolo!) que saíra um dia das mãos do Criador.

Esta viagem teve tantos destinos quantos foram os anos que Caim e Abel levaram para crescer e atingir a juventude. Acostumados a ajudar os pais na árdua tarefa da sobrevivência, acabaram sendo, ao mesmo tempo, amigos e inimigos um do outro.

Caim, embora tivesse um gênio mais feroz, jamais fora inimigo acerbo de seu próprio irmão, tendo ambos tido uma convivência pacifica. Somente quando um terceiro e fundamental elemento entrou em cena é que se instalou na alma de Caim (e por sua própria culpa) o veneno que o corromperia, maculando para sempre a sua alma - e também a sua carne.

Os dois irmãos cresceram. E logo atrás deles vieram uma infinidade de filhos e filhas do casal primordial, os quais, tão logo atingiram a idade da razão, partiram para o mundo, decididos a povoar por conta própria o vasto universo, de tal sorte que em pouco mais de vinte anos viram-se apenas os quatro sozinhos outra vez.

- Permaneçamos sempre juntos, nós, que começamos tudo isto – dizia sempre Adão aos dois filhos e à adorada esposa.

Caim e Abel ainda eram jovens - atendendo-se ao fato de que naqueles dias a vida humana era extraordinariamente longa (Adão, por exemplo, viveu bem mais que novecentos anos) - e viviam ocupados em seus afazeres. Caim, o primogênito, gostava de cultivar a terra, enquanto que Abel tomara gosto pelo pastoreio dos animais - tarefa que tanto repugnava a seu pai, Adão. Essa divergência de gostos entre os irmãos, que por si só não poderia jamais originar a discórdia que tão fatal seria a ambos, mostrar- se-ia, no entanto, decisiva na hora em que, fazendo cada qual uso de suas habilidades, viram-se obrigados a provar qual delas era mais agradável ao Senhor, aquele ente misterioso do qual seus pais falavam com tanto carinho, mas também com bastante medo.

E tudo deu-se assim: um dia Adão cozia alguns vegetais quando percebeu que a fumaça que saía do cedro ardente subia numa coluna retilínea, em direção aos céus. Ora, Adão sempre tivera uma profunda nostalgia das conversas que tivera com seu Pai nos dias amenos do Jardim. Então, decidido a restabelecer de alguma forma o vínculo sagrado, confeccionou com algumas pedras uma espécie de “mesa sagrada"- que nada mais era do que o protótipo rudimentar do primeiro altar – e nela fez arder alguns cereais recém-colhidos, como maneira de agradecer ao Criador pela abundância, além de tê-lo como participante, ainda que simbólico, de sua ceia.

A todos agradou essa ideia, principalmente a Eva, que ansiava por ver seus filhos receberem a bênção que ela própria perdera de seu Deus.

No mesmo dia, fez-se a queima das oferendas. Caim, tomando dos produtos da terra, fez uma fogueira enorme para si, enquanto Abel colocou sobre a sua as entranhas de algumas ovelhas abatidas. Logo as duas fogueiras começaram a arder, sob os aplausos do manso Abel. Para seu irmão, no entanto, aquilo se convertera em uma disputa surda, na qual esperava levar a melhor.

- Vejam como a fumaça de minha oferta sobe diretamente ás narinas do meu Senhor - disse ele, forçando muito as coisas, pois na verdade se alguma fumaça subia retilineamente aos céus era justamente a de seu irmão.

- Caim, não seja injusto - disse Eva. - Admita que a oferta de seu irmão Abel está sendo muito melhor acolhida pelos céus do que a sua. Cumpre a você resignar-se e acatar com humildade o veredicto do Senhor.

Mas Caim não queria ser humilde, e por isso deu as costas a todos e foi morder a mão de raiva em uma gruta afastada.

- Miserável bajulador! – rosnou ele, com os dentes cravados na mão.

Então, inesperadamente, escutou uma voz retumbante, que só poderia pertencer ao misterioso Ser.

- Porque estás escondido e de cabeça baixa? – disse a voz. – Faz o bem e poderás andar sempre de cabeça erguida. Mas se fizeres o mal, logo terás erguido diante de ti o teu pecado. Trata, pois, Caim, de refrear teus maus instintos!

Infelizmente as palavras do Senhor não deram o fruto esperado na alma de Caim, pois, na verdade, ele esperava ouvir palavras muito diferentes.

Vendo, então, que Deus não o deixava descarregar em paz o ódio que o sufocava, Caim abandonou a gruta e retornou para onde seu irmão estava, decidido a aliviar seu desgosto fazendo uma besteira. Quando enxergou o irmão, este estava inclinado sobre a oferenda.

- Obrigado, Senhor, por ter honrado a minha oferenda! - dizia ele, contritamente. - Tomo isto como sinal evidente de minha eleição!

Caim, vesgo de ódio, tomou uma grande pedra e correu até onde Abel estava. Este, contudo, estava tão absorto em sua ação de graças que não percebeu o rápido aproximar-se do Irmão. Ainda com a pedra erguida, Caim não esperou mais nada e descarregou-a com toda a força sobre a cabeça de Abel. Escutou-se um ruído terrível de algo que se rompe e logo em seguida a vítima desabou sobre os restos de sua oferenda, misturando seu sangue ao do cordeiro que ainda chiava sobre as brasas.

Certo de haver matado Abel. Caim fugiu. Entretanto, não nos lancemos afoitamente no seu encalço, pois, acostumados, neste ponto da estória, a dirigir nossas vistas ansiosas para o primeiro de todos os assassinos, esquecemos sempre de que tão ou mais importante do que o drama de Caim é a tragédia de seu irmão, caído ao solo com um rombo profundo na cabeça.

Abel, pois, jazia de bruços sobre o solo. Sem ainda estar inteiramente morto, em um gesto mecânico escarvou a terra com seus dedos encurvados, ao mesmo tempo em que sentia na boca o gosto do pó que sua respiração espalhava em pequenas nuvens. Logo em seguida virou-se, em um movimento estranho, como se duas mãos desajeitadas o tivessem virado de costas sobre a terra. Seus olhos quase vidrados ficaram voltados para o céu, e então ele soube que estava prestes a conhecer o terrível mistério da maldição suprema que Deus havia lançado a seus pais e a toda a sua descendência. Os olhos arregalados de Abel vasculhavam na claridade algo a que se apegar, enquanto seu cérebro, sem dúvida abalado pelo tremendo golpe, em vão tentava ordenar as ideias.

Abel, entretanto, era um homem de fé. Podemos ter quase a certeza de que, de alguma maneira, a imagem daquela divindade que ele jamais pôde ver, ou da qual nunca ouviu a voz, esteve presente em suas visões, ainda que de um modo dramaticamente confuso. Em pleno delírio, remexeu os olhos em um espasmo que deixou à mostra duas escleróticas muito brancas, dando ao seu rosto a aparência angustiante dos que nada podem ver. Cego para as coisas deste mundo, Abel contemplava agora as coisas divinas. Seu rosto impassível e seu peito imóvel eram a denúncia mais expressa de que o alento divino finalmente o abandonara.

E acabou-se.

Caim comia loucamente para longe do seu crime. Um misto de remorso e de receio de ser punido o impelia para longe da cena do crime. Caim pressentia que aquele ser misterioso, que lhe dirigira uma censura antes mesmo que ele cometesse o ato hediondo, poderia, a qualquer momento, voltar a falar-lhe. Além do mais, como poderia ele encarar seu pai e sua mãe depois do que fizera?

Nesse instante, porém, Caim teve seus passos detidos justamente por aquela voz.

- Caim, onde está teu irmão Abel?

Atemorizado, em um primeiro momento, o assassino encolheu-se junto a um rochedo, como um lagarto. Acuado, entretanto, por nova indagação, Caim sentiu-se tomado por uma súbita revolta e disse, abandonando seu esconderijo:

- Sei eu onde Abel está? Sou, por acaso, pastor de meu irmão?
Deus, entretanto, voltou à carga.
- Não adianta tentar me enganar, filho de Adão. A voz de teu irmão sobe até mim da terra encharcada de sangue.
O Senhor falava essas coisas, entretanto, em um tom surpreendentemente calmo. E mesmo quando sua voz retomou, mostrando que já concluíra seu julgamento pouco favorável, não foi com voz demasiado severa que se pronunciou:

- Porque tua presença tornou-se a maldiçoada neste mesmo chão onde derramou o sangue do teu irmão, condeno-te a vagar pelo mundo, como malfadado errante, sem que possas retirar mais nada desta ou de qualquer outra terra.

Caim ficou ligeiramente surpreso. Sim, era uma punição, mas nem de longe tão severa quanto se poderia esperar. Pelo menos saíra de tudo aquilo com o corpo intacto, ao contrário do irmão, que lá ficara estendido sobre o pó, inerte.

- Senhor, aceito a tua punição - disse, com ar contrito. - Meu crime pesa horrivelmente sobre mim! Mas como, a partir de hoje, estarei a salvo da ira de meus semelhantes? Todos haverão de me apedrejar como a um cão, até a morte!

- Nada temas, Caim a maldiçoado – disse a voz pois todo aquele que erguera mão contra ti será punido sete vezes mais. E para que todos te conheçam como amaldiçoado, porei um sinal sobre o teu corpo.

Caim sentiu uma espécie de paralisia tomar todos os seus membros, enquanto sua testa começava a arder, como se Deus nele desenhasse, com a ponta da unha, um estigma sangrento. Sem poder levar as mãos ao local da ardência. Caim teve de suportar o martírio até que cessasse. Então correu até a primeira fonte para ver que espécie de sinal o Senhor gravara em sua pele.

-Oh, é horrível...! Oh, odiosa marca! Tem a mesma cor rubra do sangue que derramei! Miséria e punição! Será, então, com esta marca infamante que deverei cumprir meu duro exilio, repetindo, de um modo sete vezes pior, a triste sina de meus pais.

Deus, no entanto, já havia partido, e Caim fez o mesmo instantes depois.

Os anos se passaram e Caim estabeleceu-se em diversos lugares, tentando arar a terra. Mas esta só lhe dava cardos, enquanto as pessoas o maldiziam sempre que o vento levantava a sua comprida franja. Depois de vagar por muitos anos, Caim chegou finalmente à distante terra de Nod, a leste do Éden. Aquela terra lhe pareceu bastante aprazível, a começar pelo próprio nome – pois Nod quer dizer “errante” e apesar da maldição que carregava, ainda assim encontrou uma mulher que não se importou nem um pouco com isto.

Caim e a mulher – cujo nome a tradição perdeu - casaram-se, e dessa união surgiu o pequeno Enoque (o qual não se deve confundir com outro de mesmo nome e que foi possuidor de um destino verdadeiramente invejável).

Farto de tentar plantar e colher, sem obter sucesso, Caim disse:
- Desta vez vou fazer diferente.
Tendo certa habilidade na arte de construir, começou a erguer uma casa, e depois outra, e tantas ajuntou que logo fundou a primeira cidade do mundo, que batizou com o nome de seu filho, Enoque. Este, por sua vez, retribuiu a homenagem mantendo viva a história do crime do seu pai, o qual foi cantado em versos por um descendente seu, chamado Lamec.

E assim Caim, abandonado pelo Senhor (embora protegido por uma estranha maldição), viveu ainda longos anos sob o peso do crime que cometera.

Mas com que cara teriam recebido Adão e Eva a notícia da morte de Abel e da fuga do outro filho? Evidentemente que desgosto algum – nem mesmo a expulsão de ambos do Paraíso- sequer chegaria aos pés dessa terrível provação.

- Eis, Eva desgraçada, que nos chega, enfim, das mãos do Senhor o nosso grande e verdadeiro castigo! - dizia Adão, arrancando maços inteiros de sua longa cabeleira. – Para o dia de hoje estava reservada a grande punição! Maldição eterna ao meu e ao seu pecado, Eva infausta!

Sua esposa, estupidificada pela inesperada tragédia, caíra em um pasmo mudo. Jamais pudera imaginar que a ira do Senhor pudesse, um dia, alcançar tamanho grau de dureza, apresentando-se, assim, tão despida de qualquer misericórdia.

- Deus guardou o melhor de sua ira para hoje – repetia ela, em sombria contrição. – Pois que faz do sangue do inocente apagado meu pecado. E tão mais grandioso é seu castigo, que mal posso compreendê-lo. Hosanas à justiça do Senhor! Hosanas sempre a ele!

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