(Povo Xerente)
Antes, ninguém cozinhava, todos comiam apenas as coisas cruas ou esquentadas ao calor do Sol. Até que, certo dia, aconteceu de um menino ser convidado por seu cunhado para ir à mata capturar araras. Os dois partiram da aldeia, o homem mais velho guiou o mais jovem até uma grande árvore oca, em que as araras haviam feito ninho; ele queria que o irmão de sua mulher subisse até o alto da árvore e capturasse as aves para ele. O menino aceitou subir e, com a ajuda do cunha do, foi escalando um grande pedaço de tronco encostado na outra árvore. Ao chegar à altura em que ficava o ninho, encontrou duas ararinhas. Mas não teve coragem de desaninhar os filhotes, e quando o outro, lá embaixo, o chamou, disse:
- Não tem nada aqui, só ovos!
O cunhado insistiu, desconfiado de que ele mentira, e então o garoto, com a boca, pegou uma pedra branca que encontrou enfiada entre o emaranhado do ninho e a jogou lá para baixo, dizendo que era um ovo de arara. A pedra foi caindo e, durante a queda, se transformou num ovo! Ao atingir o chão, estatelou-se. E o homem ficou muito zangado, tanto que [75] retirou o pedaço de tronco pelo qual o jovem subira e foi embora, resmungando.
Ora, o menino ficou preso no alto da árvore com as duas ararinhas, sem ter como descer. Cinco dias se passaram e ele continuava lá. Foi quando apareceu uma onça macho. O animal rodeou a árvore, viu o menino lá em cima e perguntou:
- O que você está fazendo aí ?
Ele explicou como o cunhado o abandonara no alto da árvore. Então a onça prometeu que, se ele lhe jogasse os filhotes de arara, ela o ajudaria a descer. O jovem acabou concordando e atirou as duas aves para a onça, que imediatamente as devorou. Depois, disse ao menino para pular, pois o apanharia para que não se machucasse no chão.
Apesar de estar assustado, ele resolveu obedecer. A onça o aparou e, embora rugisse e o segurasse com suas patas de garras afiadas, ficou impressionada por ele não ter demonstrado medo.
- Suba nas minhas costas, vou levar você para a minha casa.
O menino concordou e subiu nas costas da onça, que logo se embrenhou na mata e foi tomando o rumo de onde morava.
Quando chegaram perto de um riozinho, o garoto quis parar para beber água.
- Não pode – negou a onça – esta água é dos urubus. Só eles podem beber aqui.
Seguiram em frente e, quando alcançaram outro rio, ele quis descer das costas da onça, mais uma vez, para beber.
- Não pode, esta água é dos passarinhos - foi a nova resposta. [76]
Porém, quando encontraram o terceiro riacho, o jovem já estava com tanta sede que não ligou para a proibição da onça, dizendo que aquela água pertencia aos jacarés. Ele saltou das costas do animal e bebeu tanto, mas tanto, que quase secou a água toda; não adiantou os jacarés aparecerem e pedirem para que parasse! Só quando saciou a sede foi que ele tornou a subir nas costas da onça para continuarem a viagem. Finalmente chegaram à aldeia, e a fêmea da onça ficou muito zangada por seu marido ter trazido o menino até lá.
- Ele é muito magro e muito feio - disse ela.
A onça macho, contudo, mandou que a esposa tomasse conta do jovem. Ela não gostou muito, mas aceitou e mandou que ele se sentasse junto dela para catar os piolhos da sua cabeça.
O garoto fez o que fora ordenado; quando estava sentado entre as patas da onça fêmea, catando os piolhos, ela soltou um rugido tão feroz que quase o matou de medo.
Ele saiu correndo para se queixar à onça macho, que o defendeu. Mas a onça sabia que o menino não poderia ficar ali, pois sua mulher o mataria. Disse-lhe, então:
- Você vai voltar para sua aldeia.
E, antes da viagem, deu-lhe vários presentes: arco, flechas, enfeites e comida para comer no caminho. Foi até um tronco que pegava fogo num canto, e de lá trouxe vários pedaços de carne assada.
O jovem nunca havia visto o fogo, e achou a carne muito saborosa. A onça instruiu:
- Vá agora, e se minha mulher o seguir, atire uma flecha nela, mas precisa acertar seu pescoço, senão ela o matará. [77]
Aconteceu exatamente como a onça macho previra. Logo que tomou o rumo de casa, o menino viu que a onça fêmea o seguia; preparou a flecha e atirou, atingindo o animal na carótida. Com a perseguidora morta, ele conseguiu seguir em segurança para sua aldeia. Porém, ao chegar perto, não teve coragem de entrar lá e ficou escondido na mata. Não sabia o que sua família pensava de seu sumiço, depois da expedição com o cunhado. Entretanto, mesmo permanecendo oculto, ele foi visto por dois de seus irmãos, que correram para contar à mãe que seu filho não estava morto, como todos haviam pensado pelo que o cunhado contara. A mãe não queria acreditar, porém, quando todos estavam no meio de uma grande festa, ele apareceu e foi então cercado por toda a família.
Eles se deslumbraram com os presentes que ele recebera da onça. Quando viram a carne assada, foi um acontecimento! Ficaram todos maravilhados, pois não conheciam o fogo.
- Como esta carne foi preparada? - perguntaram. - Ao Sol, respondeu ele.
Só depois de muitas perguntas, e de um tio insistir em que ele dissesse a verdade, foi que o garoto contou que a carne fora assada ao fogo, um segredo que só a onça possuía. Todos então se reuniram e decidiram que precisavam ter o fogo para assar seus alimentos. Mas, para isso, teriam de ir à aldeia da onça e roubá-lo. Prepararam, então, um grande grupo de homens e animais para uma expedição que obtivesse o fogo. Quando chegaram lá, pegaram o tronco incandescente e saíram correndo; o fogo foi carregado pelas aves corredoras, pelo mutum e a galinha d agua. Não foi fácil atravessar a [78] mata com aquilo, mas conseguiram! O jacu, que ia atrás deles, ia bicando as brasas que caíam no chão e engolindo-as, e é por isso que, até hoje, seu papo é vermelho.
Foi após roubar o fogo da onça que os homens aprenderam a usá-lo para cozinhar os alimentos, e nunca mais comeram carne crua.
Povo Xerente
Esse grupo tribal tem também por nome Akwen ou Acuen. Originários do Centro-oeste brasileiro, hoje concentram-se no Estado de Tocantins. Falam dialetos da família linguística Jê, e consta que formavam um só grupo com o povo Xavante, mas teriam se separado deles no século XIX, mantendo-se desde então separados, com aqueles se fixando no cerrado e estes às margens do rio Tocantins.
Seus primeiros contatos com missionários e bandeirantes aconteceram no século XVII, e desde então os Xerentes se envolveram em muitos conflitos por terras, que seprolongam até os dias de hoje.
A sociedade Xerente é organizada deform a complexa, estruturada em torno de duas metades, que compreendem três clãs cada uma; essas metades recebem os nomes de D oí e Wáhirê, o Sol e a Lua. Os clãs Doí se chamam Kuzaptedkwá, Kbazitdkwá e Kritóitdkwa; e os Wáhirê recebem as denominações de Krozaké, Kreprehí e Wáhirê. Tudo na aldeia gira em torno dessas divisões: as atividades de subsistência, os rituais sociais, os jogos. [79]
Todo feito de promessas é o pobre homem procrastinador. E isso em cada etapa [da vida]. Enquanto jovens, de fato, por vezes plenos de contentamento altivamente repousamos, despreocupados de nós mesmos, e somente desejamos, como filhos devotos, que nossos pais fossem mais sábios. Aos trinta nasce no homem a suspeita de que ele é um tolo; aos quarenta ele sabe disso, e revê seus planos. Aos cinquenta maldiz sua infame demora e força em si mesmo a prudente intenção de resolver-se. Com toda a magnanimidade do pensamento ele resolve, re-resolve e, então, igualmente morre. E por quê? Porque ele se supõe imortal.