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DICIONÁRIOS DE PSICOLOGIA - PESQUISA POR VERBETE
Psicologia positiva - BASES TEÓRICAS
Estratégias para melhorar a vida

Listamos aqui outras dicas para trazer mais segurança e amor para sua vida. Embora tratemos de aspectos do amor romântico neste capítulo, abordamos muitas formas de amor nesta lista de estratégias.

Amor

  • Narre seu histórico de vínculo em uma página do diário. Inclua linguagem de segurança/insegurança para descrever suas experiências de infância e atuais, e identifi­que de que forma seu histórico de vínculo se traduz em sua capacidade atual de demonstrar amor a amigos, parentes e pessoas importantes em sua vida.
  • Quando você está em um relacionamento, desenvolva uma lista daquilo que faz com que seu parceiro se sinta apreciado e tente aumentar a cultura de apreciação em seu relacionamento com cinco ações deliberadas por dia.

Trabalho

  • Faça um curso de meditação mindfulness com um parceiro e aplique suas habilidades recém-descobertas quando tratar de seu próprio comportamento e do relacionamento. Generalize essas habilidades para o comportamento com os colegas de trabalho.
  • Ignore quando desaconselharem você a fazer amigos no trabalho. Amizades vitais (que podem envolver amor filial) no local de trabalho podem melhorar seu envolvimento com seu trabalho.

Atividade lúdica

  • As crianças têm benefícios sociais e emocionais por ter um adulto preocupado com elas. Ofereça voluntariamente parte de seu tempo a um serviço de atendimento a crianças ou jovens e tente estabelecer uma conexão com, pelo menos, uma pessoa de menos idade. Com o passar do tempo, os benefícios da relação podem ser tomar cada vez mais mútuos.
  • Identifique o casal em sua vida que você acredita ter o melhor relacionamento. Organize-se para passar algum tempo com esse casal, para que você possa observar comportamentos no relacionamento que funcionam para eles. Se você os conhece bem, faça-lhes perguntas específicas sobre como eles mantêm seu relacionamento.
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Psicologia positiva - TEXTOS
Comportamento - Mindlessness, 
7/3/2022 3:40:46 PM | Por Robert Biswas-Diener, Todd B. Kashdan
O papel da intuição no bem-estar

Ao entrar numa livraria, você encontra uma estante, quando não uma seção inteira, de títulos que alardeam as vantagens de desenvolver mindfulness. Resumidamente, mindfulness é um es­tado de consciência plena. É saber observar o mundo à sua volta sem interferências de diálogo interno, julgamento e outras distra­ções. É conseguir ver um vestido como vermelho em vez de “lin­do”, ou ficar desapontado por alguma coisa em vez de se ver como “um fracasso”. Mindfulness está muito em moda. Phil Jackson, trei­nador que ganhou os maiores campeonatos da NBA em todos os tempos, era famoso por recomendar técnicas de mindfulness aos jogadores de basquete. Meditação mindfulness e concentração são usadas em psicoterapias, treinamentos esportivos e até no ramo dos negócios. Atualmente, mindfulness é aclamada como o estado ótimo do funcionamento humano.

Os entusiastas de mindfulness não são apenas uns poucos sob a influência de algum elixir da Nova Era. Há um crescente corpo de evidências científicas corroborando as vantagens da “observação tranqüila”, em oposição a julgamento e interpretação, daquilo que acontece no momento presente. Uma série de estudos mostra que pessoas com tendência a ser mindful na vida afirmam ter mais felicidade, encontram mais significado e propósito na vida, têm inteligência emocional superior, maior nível de autocompaixão e maior capacidade de lidar com situações de estresse crônico. Mindfulness, ao que parece, é bom demais.

Se você quiser dados específicos convincentes, não precisa ir além dos dois principais cientistas que foram instrumentais na popularização de práticas de mindfulness nos Estados Unidos, Jon Kabat-Zinn, da Universidade de Massachusetts Medical School, e Richard Davidson, da Universidade de Wisconsin.2 Kabat-Zinn é considerado o pai do movimento mindfulness norte-americano, e Davidson é famoso e altamente conceituado por seu pendor a usar ressonância magnética funcional e outros instrumentos de mapeamento cerebral para estudar os fundamentos biológicos e psicológicos de mindfulness. Num estudo recente, Kabat-Zinn e Davidson deram um curso de oito semanas para funcionários de uma empresa de biotecnologia. Após exporem muitos funcionários a um surto de gripe, constataram que os que haviam feito o curso apresentaram uma notável resistência à gripe.

Como se a maior imunidade não bastasse, os pesquisadores descobriram também mudanças concretas no cérebro daqueles funcionários após meras vinte horas de treinamento em mindfulness (duas horas e meia por semana). Constataram um aumento de 400% de ativação no lado esquerdo do córtex pré-frontal anterior.3 Você deve estar se perguntando: “Será que eu quero um córtex pré-frontal anterior mais ativado?” A resposta é sim. Essa é a região do cérebro associada a emoções positivas e à predisposição para ver o estresse mais como um desafio a ser enfrentado do que um perigo a ser evitado. Aqueles funcionários precisaram apenas do tempo que levariam assistindo a quatro jogos de futebol ou indo três vezes ao supermercado para modificar o cérebro de modo a ter maior sucesso. É correto dizer que mindfulness não é só ótimo; é realmente ótimo.

Se mindfulness é tão útil, por que não nascemos equipados para fazer isso com mais frequência? Há uma razão para os seres humanos terem evoluído de modo a passar uma enorme quantidade de tempo sendo mindless, distraídos. O pensamento consciente, que nos mantém atentos ao que está acontecendo no momento presente, tem uma capacidade de processamento muito limitada. Pense no esforço dispendido pelo cérebro quando passamos por alguém na rua. Estimamos a distância que estamos do corpo da pessoa, calculamos nossa velocidade e a dela, calculamos onde nosso corpo termina e o dela começa, para evitar um esbarrão, e enquanto tudo isso está acontecendo movemos magistralmente uma perna após a outra sem tropeçar em nada no chão, nem atropelar uma árvore em nosso espaço aéreo.

Quando você vê o rosto de alguém, decide imediatamente se é uma pessoa conhecida e, pela expressão dela, avalia se ela está feliz ou infeliz, se é amigável ou perigosa, querendo ou não parar para conversar. Essa função é ainda mais difícil porque, em vez de ficarem parados, os músculos faciais da pessoa se movem, mostrando expressões ligeiramente diferentes a cada poucos segundos, o que exige uma avaliação contínua. Se por acaso você conhece a pessoa, ainda precisa acessar funções de nível mais alto. Precisa lembrar o nome, o tipo de seu relacionamento com ela, lembrar o que conversaram em interações anteriores, e pôr em ação habilidades motoras finas de contato visual (nem de mais nem de menos), volume da voz, conteúdo verbal, e habilidades de audição e codificação exigidas para manter uma conversa. Se você precisasse proceder com atenção consciente e deliberada, jamais seria capaz de chegar ao fim dessa lista enorme de atividades.

A mente consciente é incapaz de manipular as camadas de dados complexos, dinâmicos, que nos inundam a cada momento. Um erro de processamento e você é atropelado por um carro em alta velocidade, fala um palavrão na frente das crianças, deixa escapar um segredo profissional, queima a mão no forno, comete um milhão de pequenas faltas. Por necessidade, muito desse processamento mental ocorre na velocidade do pensamento fora do radar da atenção consciente.

Neste capítulo, dizemos “mindless” para indicar um claro contraste da obsessão cultural de mindfulness como solução para boa saúde, bons relacionamentos e maior sucesso. As pessoas se sentem desconfortáveis com mindfulness porque é o oposto da intencionalidade, da estratégia e de todas as indicações de superioridade da inteligência humana. Uma longa tradição de intelectuais afirma que o bem viver é previdente e planejado. Mindlessness, pelo contrário, é a marca característica de, digamos, zumbis. Curiosamente, tomando o exemplo de zumbis, podemos encontrar uma ilustração das vantagens de mindlessness.

Steven Yeun faz o papel de Glenn na premiada série de televisão sobre o apocalipse de zumbis, The Walking Dead. Em quatro temporadas, o personagem de Steven se transforma de enérgico herói em esfalfado sobrevivente que foge com seus amigos de um ataque após outro de zumbis famintos de carne humana. Você pensaria que, como ator, Yeun deve dedicar uma quantidade considerável de atenção consciente às emoções, postura e atitudes do personagem. Isso deve se aplicar principalmente a cenas complicadas, quando ele finge pisotear um zumbi numa luta. Yeun diz que o segredo para fazer a cena parecer real é pensar como um zumbi, isto é, não pensar. Ele comenta que, se fosse ter o cuidado de calcular quantos centímetros de distância seu pé precisaria es­tar da cabeça do ator que representa o zumbi, a cena ficaria desco­nexa e artificial. Em vez de pensar muito firme e deliberadamente (concentração bruta), ou se fixar numa observação sem julgamen­to do que está ocorrendo no momento (mindfulness) para fazer bem seu papel, ele precisa atuar com um mínimo de reflexão conscien­te, exatamente como se comportaria se realmente estivesse andan­do pela rua tentando se livrar de um bando de zumbis comedores de cérebros. Ele precisa confiar no processamento automático, que se compõe de decisões intuitivas, instintivas, ações baseadas no bem projetado equipamento evolucionário, e em anos de pro­fissão (que Steven Yeun tem como ator). No centro da brilhante atuação de Yeun, está a capacidade de se perder - largar sua men­te consciente - totalmente e se tornar outra pessoa, o personagem tentando sobreviver ao apocalipse de zumbis num mundo alter­nativo onde milhões de telespectadores entram durante uma hora a cada semana.

As páginas a seguir exploram três áreas em que as pesquisas científicas sugerem que mindlessness pode ajudá-lo a ser mais pro­dutivo, criativo, e mais capaz de trilhar o tormentoso e ambíguo terreno da vida diária. Podemos definir mindlessness como um es­pectro que vai da distração à total imersão no inconsciente, mas isso não faria justiça ao tópico. Assim sendo, vamos expor três ti­pos de mindlessness que podem apontar o caminho do sucesso e bem-estar: 1) ligar o piloto automático, 2) partir para ações impul­sivas e 3) confiar em decisões mindless. As pessoas mais psicologi­camente flexíveis - e mais bem-sucedidas - têm a capacidade de transitar muito bem entre mindfulness e mindlessness, em vez de ficarem presas a um desses modos. Ao conhecer e usar intencionalmente esses caminhos, ainda que subestimados, você poderá ter aqueles 20% a mais, desperdiçados por quem permanece ligado à ideia de que mindfulness é melhor que mindlessness.

Três caminhos mindless para o sucesso e bem-estar

O pensamento consciente se mantém firme sob o farol [enquanto] o pensamento inconsciente se aventura pelas fendas e recantos escuros e poeirentos da mente - Dijksterhuis &Meurs, 2006

LIGAR O PILOTO AUTOMÁTICO

Para economizar espaço de computação no cérebro, as pessoas recorrem ao pensamento heurístico, isto é, usam atalhos cognitivos automáticos - e portanto mindless. Um modo comum de usar o pensamento heurístico é categorizar as coisas. Quando você vai ao correio, não vai ao balcão perguntar se o funcionário fala sua língua. Ele já foi categorizado como funcionário do correio e, como tal, você supõe que saiba muitas coisas (fala o idioma nacional, é alfabetizado, sabe o preço dos selos, pode responder a perguntas sobre formas de pagamento e assim por diante). A heurística poupa tempo e um valioso espaço cognitivo, pois não incomoda a mente consciente com exercícios desnecessários.

Pesquisas mostram que as pessoas são capazes de fazer julgamentos categóricos inconscientes sobre os outros com uma rapidez extraordinária.5 Num estudo sobre primeiras impressões, os participantes só levaram um décimo de segundo para tirar conclusões sobre a personalidade do outro. Nesse breve espaço de tempo, fizeram julgamentos sobre confiabilidade, estabilidade emocional, gentileza, entusiasmo, negligência, abertura a novas experiências e outros aspectos da personalidade. Se colocarmos esse nosso espantoso aparelho detector de personalidade em perspectiva, você levaria duzentas vezes mais tempo só para ler este parágrafo. Você deve estar se perguntando se essas avaliações tão rápidas são corretas. Numa ampla série de estudos, pesquisadores constataram que observações em “fatia fina” têm exatidão bem acima da média (cerca de 70% corretas).6 Resultado excelente para um pingo de tempo e esforço.

1. DETECTOR MINDLESS DE SITUAÇÕES SOCIAIS IMPRECISAS

Um aspecto importante do pensamento automático é determinar se uma pessoa desconhecida é ou não confiável. Essa difícil tarefa é essencial para relações comerciais e sociais, afora a segurança pessoal. Se errar, você pode ser lesado, atacado ou, no mínimo, perder um tempo enorme quando poderia estar alicerçando uma boa amizade com outra pessoa. Muitos cientistas acreditam que confiamos ou não conforme as reações da pessoa às nossas “deixas”. Quando o outro espelha nosso comportamento, é um sinal de que nossas necessidades, valores e bem-estar o afetam e despertam seu interesse.

Rick van Baaren e seus colegas da Universidade de Nijmegen viram que, quando garçons repetiam os pedidos dos clientes (um sinal claro de que o garçom estava atento), as gorjetas aumentavam em até 68%.7 Estamos certos de que era um ato mindless dos clientes (não calculavam ativamente quanto dinheiro deixar na mesa se o garçom repetia em voz alta seu pedido de um copo de água). Esse simples ato de repetir o pedido é um sinal sutil de que o garçom está atento, ciente e é confiável no contexto do restaurante.

Uma boa manutenção de interações sociais pode ser difícil, inclusive nas conversas em que você está fora de sintonia com a pessoa, ou quando sorri e se inclina para contar uma piada e a pessoa não se aproxima nem muda de expressão. Uma troca sem movimentos coordenados e algum grau de espelhamento é esquisita e desagradável. Pesquisadores afirmam, com razão, que gostamos mais da pessoa quando ela imita nosso humor e nossos gestos - não quando estão zombando, mas quando espelham sutilmente nossa postura, emoção e até o modo de falar. Por outro lado, essa imitação não é apropriada quando estamos competindo com alguém ou pedindo a um vendedor de automóveis uma orientação sobre o melhor carro para a família.

Psicólogos da Universidade de Groningen, da Universidade de Duke e da Universidade de Yale investigaram reações a “sinais sociais de nuanças negativas”.8 Num estudo, quando os participantes foram recebidos por um profissional muito formal e empertigado que tentou imitá-los durante uma interação social, ficaram “arrepiados” literalmente, sentindo 2,5 vezes mais frio do que quando a mesma pessoa não tentou imitá-los. Quando recebidos por uma pessoa amigável, brincalhona, os participantes a preferiam quando ela imitava seus gestos: sentiram duas vezes mais frio físico após passarem algum tempo com uma pessoa amigável que não os imitava, como se o corpo reconhecesse ali uma recepção fria.

Com essa perspectiva em mente, veja o que aconteceu num estudo em que participantes de diferentes grupos raciais interagiram, e depois pediram que eles adivinhassem qual era a temperatura do ambiente. Numa interação de pessoas da mesma raça, a ausência de imitação provocou uma sensação de frio, 2,04° mais frio, para sermos exatos. E, quando a interação se deu com uma pessoa de outra raça, foi a presença de imitação que provocou a sensação de 2,47° mais frio no ambiente. Esse e outros estudos similares são compatíveis com a ideia de que cada um de nós tem uma reação visceral a comportamentos desencontrados em certas situações. Dado que a imitação é tipicamente considerada um sinal de intimidade, é fácil entender que, quando alguém não está esperando intimidade, a imitação desperta suspeita. Pense na queda de temperatura psicológica como um levíssimo sinal, nas franjas da consciência, de que há maneiras menos ameaçadoras, menos incômodas de passar o tempo do que estar com aquela pessoa.

Essa forma de autoproteção mindless é cortesia de milhares de anos de evolução. Perguntado sobre a lição prática a ser extraída disso, o principal autor do estudo, Pontus Leander, diz:

E melhor não se “empenhar tanto” em adotar completamente, porque o tiro pode sair pela culatra (por exemplo, imitação numa interação inter-racial). Esses estudos mostram que é melhor deixar acontecer alguns processos automáticos. Fui criado numa região do Sul, e sempre ouvi dizerem “se está funcionando, não precisa consertar”; talvez isso se aplique especialmente à imitação.

Propomos a seguinte seqüência: 1) numa interação social com alguém que você mal conhece ou numa conversa sobre um assunto delicado, deixe o processo quase mindless acontecer; 2) faça um esforço consciente para notar qualquer mudança em seu próprio corpo; 3) observe se seu detector de perigo está ou não indo longe demais. Sim, estamos falando das vantagens complementares de começar com mindlessness e depois ir trazendo a atenção consciente para a situação entre você e o outro. Não estamos defendendo a necessidade de uma luta entre mindfulness e mindlessness. É um trabalho em conjunto, numa determinada ordem.

A primeira parte da seqüência, ligar o piloto automático, é o que nós, autores, nunca tínhamos considerado antes. Antes de escrever este livro, nenhum de nós tinha usado o fator de estimativa de temperatura ao tratar de negócios, em encontros amorosos ou em conversas com desconhecidos num saguão de hotel. Mas, agora, sim. Tomamos consciência das vantagens de mindlessness. Além de avaliar a aparência física, inteligência, curiosidade e simpatia, observamos se há alguma queda de temperatura física quando estamos perto de alguém. Antes seria normal exclamar “puxa, que frio!”, mas agora, quando sentimos um arrepio ou pensamos em buscar um agasalho, entramos em alerta. Estamos um pouquinho mais céticos, procurando algum sinal de perigo/manipulação, que antes não registrávamos conscientemente. De posse desses dados que ignorávamos, talvez tenhamos tomado decisões melhores ao contratar empregados e tomar um táxi em terra estrangeira.

2. AJUSTE MINDLESS DA EMOÇÃO

Curiosamente, o processamento automático também se aplica à emoção. Um ajuste saudável da emoção - a tentativa de controlar ou alterar o tipo, intensidade e expressão de nossas reações ao mundo - está vinculado às partes mais importantes do bem viver. Por exemplo: pesquisadores sugerem que falhas no ajuste das emoções são parcialmente responsáveis por problemas individuais como depressão, agressão, infidelidade, e, na esfera profissional, mau desempenho, roubo e assédio. Sabendo como é importante, e difícil, ajustar emoções intensas como raiva, medo, tristeza, vergonha, convém ponderar se o gerenciamento consciente das emoções exige esforço demais, e se é vagaroso demais para nos ajudar em situações fortes.

Situações fortes são aquelas em que somos tomados por emoções intensas e impelidos a tomar uma atitude, como você ver que um desconhecido se acerca de sua filha que está na fila do toalete no restaurante, murmura algo no ouvido da menina e acaricia o braço dela.9 Pense na vantagem de ser capaz de ajustar a emoção automaticamente, antes mesmo de você saber o que está sentindo, e amortecer o impulso de se entregar ao arrebatamento de uma ação impensada (nesse exemplo, dar um pulo da cadeira e pegar um garfo para cravar na mão do atrevido, e só então ficar sabendo que é o novo namorado dela). Que tal se a sua mente pudesse ser treinada para ajudar efetivamente, antes que você saiba que precisa de ajuda, numa situação dessas?

Em dois estudos, íris Mauss, da Universidade de Berkeley, e James Gross, da Universidade de Stanford, pediram a alguns participantes que reordenassem frases com palavras embutidas relacionadas ao gerenciamento de emoções, como “refrear”, “controlar”, “sossegar”, e deram a mesma tarefa a outros participantes com frases contendo palavras relacionadas a ímpetos emocionais, como “soltar”, “ferver”, “explodir”.10 Os pesquisadores queriam saber se a exposição dos participantes a essas palavras dissimuladas no texto interferia na maneira de lidarem com as emoções enquanto alguém - nesse caso um ator - tentava deliberadamente irritá-los. O ator mandou que contassem rapidamente as letras de um texto borrado enquanto lhes dizia que eram incompetentes, num tom de voz cada vez mais impaciente e enervante. Os par­ticipantes sugestionados subliminarmente a liberar as emoções sentiram 42,2% mais raiva do que os participantes sugestionados subliminarmente a manter as emoções sob controle. Um segundo estudo mostrou que os participantes expostos a palavras que aju­davam a controlar as emoções reagiam com pressão e batimentos cardíacos mais baixos quando o ator hostil se aproximava deles.

O que podemos aprender a partir desses resultados? Primei­ro: objetivos muito sofisticados, como tolerar pessoas hostis e nos­sos próprios aborrecimentos, podem ser alcançados sem qualquer ação consciente e deliberada de nossa parte. Segundo: esses atos mindless de ajuste da emoção parecem ser gratuitos, pois as pes­soas manifestam não só menos aborrecimento, mas também me­nos agravos fisiológicos. Terceiro: intervenções simples, breves e de baixo custo podem nos induzir a reações mais saudáveis em situações sociais difíceis.12 Isso indica que já existe um forte siste­ma mindless em funcionamento, regulando nossas emoções, e que, aprendendo a influenciá-lo, podemos aumentar suas vantagens.

3. CRIATIVIDADE MINDLESS

Inovação é uma palavra muito popular no mundo empresarial e na educação, pois tem a vantagem de ser tangível, mensurável, e resulta em idéias criativas que podem ser implantadas fisicamen­te, no mundo real. Elon Musk, o gênio por trás dos carros elétricos Tesla e da SpaceX, é um exemplo perfeito de como o ardor criati­vo pode ser a peça central das empresas. De fato, muitas empresas - especialmente as chamadas “empresas maduras” - estão sempre prontas a investir muito dinheiro em consultorias inovadoras pa­ra seus produtos e gestão, e outro tanto em cursos de desenvolvimento de criatividade para seus funcionários. Na maioria desses cursos, o foco é improvisar, correr riscos e aceitar pequenos fracassos. Até aí, nada contra.

Muitas oficinas de criatividade também são regidas pela ideia de que você pode se tornar criativo propositadamente; quanto mais mindful você for, mais receptivo estará a inspirações criativas. Mindfulness é atraente porque está associada a uma ação deliberada, tranqüila, dependendo somente do seu interesse e afinco. Isso combina com a noção de que uma vida bem vivida não deve - nem pode - ser fácil. A mensagem cultural é clara, porém enganosa. Pesquisadores se esforçam para identificar um problema em pessoas que devaneiam e, por isso, se mostram incapazes de controlar a mente. Seu filho tem um problema porque devaneia na sala de aula enquanto o professor está falando? Um artigo do psicólogo Scott Barry Kaufman sobre mindlessness construtiva contraria pesquisas e opiniões que menosprezam momentos mindless e devaneios em sala de aula:13

Essa perspectiva faz sentido quando o devaneio é observado por um terceiro, e quando os prejuízos são medidos segundo padrões impostos externamente, como rapidez ou exatidão de processamento, fluência ou compreensão de texto, persistência da atenção e outros padrões de medida externos.

Entretanto, há outra maneira de ver o devaneio, numa perspectiva pessoal, se você quiser... Nossa mente vagueia, de propósito ou por acaso, porque há uma compensação tangível, mensurada em objetivos e aspirações que têm um significado pessoal. Precisar reler três vezes a mesma linha porque seu pensamento voou não tem importância, se esse voo levou sua atenção a uma descoberta interna, a uma lembrança deliciosa ou a dar novo significado a um evento desagradável...

Fazer uma pausa para reflexão no meio de uma história é irrelevante se essa pausa nos permite evocar um acontecimento que torna a história mais sugestiva e interessante. Enquanto dirigimos, perder uns minutinhos porque não pegamos a rampa de saída é um inconveniente desprezível se o lapso de atenção nos permitir entender, finalmente, por que o chefe ficou tão chateado com o que dissemos na reunião da semana passada. Chegar em casa sem trazer os ovos que saímos só para comprar é uma contrariedade muito pequena se o esquecimento foi devido à decisão de mudar de emprego, pedir um aumento de salário, ou voltar a estudar.

Dessa perspectiva pessoal, é muito mais fácil entender por que as pessoas são levadas a devanear e investem quase 50% do tempo deixando a mente vagar.14

Um ponto desse artigo encontra eco num ensaio sobre preguiça de Thomas Pynchon, que diz:

... o que Tomás de Aquino denomina Inquietude da Mente ou “correr atrás de várias coisas sem que nem pra que... se pertence ao poder da imaginação... chama-se curiosidade”. Decerto, é precisamente nesses episódios de viagem mental que os escritores produzem boas obras, às vezes as melhores, solucionando problemas formais, recebendo orientação do Além, tendo aventuras hipnagógicas que, com sorte, podem ser recuperadas.15

Imagine se nossa mente fosse privada da capacidade de sair dos trilhos. Se não pudéssemos resistir ao impulso de cumprir as obrigações imediatas, seriamos mais felizes? Seriamos mais felizes e bem-sucedidos com um controle autoritário de por onde anda nossa mente? O passatempo mindless é indispensável à consciência de si, à reflexão e ao planejamento. Pode-se argumentar que nosso cérebro exige uma atividade de livre flutuação mental para revelar, descobrir e consolidar informações, assim como nosso corpo físico exige sono adequado, exercícios e vitamina D.

Antes de investir numa especialização, pense nesse fruto ao seu alcance, o ocioso estado mindless, como a gestação de uma criativa visão interna. Afinal, há muito tempo a criatividade é associada a uma incubação inconsciente, e essa ideia é apoiada por laureados pelo Prêmio Nobel e artistas famosos.16 Você provavelmente conhece a ideia do “ah-ah”, o momento de revelação que traz subitamente a solução de um problema, ou uma ideia relevante, quando menos se espera. Pode-se pensar que há algo de criativo na falta de atenção. Pesquisas apoiam a ideia de que a criatividade está sempre à nossa espreita.

Segundo David Greenberg, autor de Presidential Doodles, documentos históricos revelam que 26 dos 44 presidentes dos Estados Unidos ficavam rabiscando enquanto a mente vagava e os negócios de Estado (reforma tributária?) não prendiam sua atenção. Mas não entenda isso como um desperdício porque os cientistas constataram que, em comparação com quem não rabisca, os rabiscadores apresentam quase 25% a mais de lembrança do que aconteceu enquanto rabiscavam.17 Pode parecer contraditório que alguma coisa que “distrai” na verdade mantém a pessoa ativa, mas rabiscar exige apenas atenção mindless, mantendo a pessoa alerta e ao mesmo tempo recarregando a energia mental que, não fosse isso, estaria sendo drenada por um discurso enfadonho. Infelizmente, professores, pais e gerentes muitas vezes acham que rabiscar é desrespeito e, portanto, deve ser desestimulado.

E se professores e gerentes partissem de outra premissa? E se estimulassem atividades mindless para contrabalançar a intensidade da atenção? Já é possível encontrar esse exemplo em empresas e escolas que colocam uma música suave de fundo enquanto as pessoas trabalham. Pesquisas mostram que isso melhora a concentração, proporcionando um ambiente de calma que favorece a continuidade das atividades.18 Um exemplo menos óbvio pode ser encontrado na prática de admitir que pilotos de avião durmam um pouco durante o voo. Imagine a longa viagem de Washington D.C. a Sydney, na Austrália. Você espera ter certos confortos - um travesseiro, um filme, o toalete com a descarga funcionando e a tripulação acordada.19 Felizmente, ninguém lhe diz que o comandante está tirando uma soneca de 25 minutos enquanto o avião cruza os ares sobre o mar. Mas não se preocupe. Num estudo, pesquisadores da NASA constataram que pilotos que dormem durante o voo tomam decisões 20% mais rápidas e cometem 34% menos erros quando acordam. O valor estratégico de desligar a mente para recarregar não pode ser subestimado. Onde mais você pode obter 34% mensuráveis de melhor desempenho numa atividade, em menos de 26 minutos?

Para saber mais sobre a vantagem de desligar a atenção consciente, procuramos o dr. Andrei Medvedev, professor no Georgetown University Center for Functional and Molecular Imaging.20 Em 2012, sua equipe monitorou a atividade cerebral de adultos enquanto faziam a sesta. Constataram que, nesses períodos de sono, o hemisfério direito - altamente associado ao pensamento criativo - se comunica frequentemente com o lado esquerdo do cérebro. Medvedev especula que enquanto o corpo descansa o he­misfério direito faz uma verdadeira arrumação da casa, transfe­rindo informações e experiências recentes para o armazenamento de memória de longo prazo.

É o mesmo que programar seu computador para salvar arqui­vos importantes e deletar informações desnecessárias enquanto você não o está usando, exceto que algo diferente acontece nessa catalogação mental. Colisões acidentais com lembranças antigas resultam em combinações originais e até bizarras. Quando es­tamos dormindo, o editor dentro de nós está de folga, não pode avisar que certas idéias são proibidas, nem apagá-las por serem impraticáveis. Seria maravilhoso se cada combinação de pensa­mentos produzisse uma descoberta criativa, mas, em geral, essa sopa conceitual é intragável. Isso é esperado, e precisa ser respei­tado. Não podemos contar com uma fileira de idéias cinco estre­las; só precisamos de uma ideia interessante de vez em quando.

A criatividade surge das mais estranhas atividades mindless. Quando pesquisadores investigaram as origens das idéias mais criativas produzidas por 104 especialistas em relações públicas para empresas do Reino Unido, não encontraram ali um manan­cial de originalidade.21 A ida e volta do trabalho ganharam o título de musa das idéias, e em segundo lugar, quase empatados, fica­ram o banho ou a chuveirada. Essas ocasiões são Focos de Criação Acidental (FCAs). Para sermos criativos, precisamos aproveitar ao máximo esses e outros FCAs, que podem ser cuidar das plantas, lavar os pratos, dar uma caminhada ou levar o cachorro ao parque.

Uma observação importante: a atividade mindless, por si só, não basta para a ocorrência da criatividade. Se assim fosse, se­riamos todos Georgia O’Keeffe ou Ernest Hemingway, bastando deixar a mente vagar enquanto lavamos a louça. No entanto, a atividade mindless é o solo fértil em que as melhores idéias criam raízes. Pesquisadores descobriram, por exemplo, que as pessoas mais criativas, e as que mais investem em aprimorar o produto de sua criatividade, recorrem instintivamente a estados não conscientes para ter inspiração.22 Elas têm uma aptidão particular para filtrar os sonhos e incorporar esse material à vida desperta. Portanto, planeje não planejar, passando algum tempo longe de atividades em que a mente insiste em tentar criar. E esteja pronto a captar idéias a qualquer momento, em qualquer lugar, tendo sempre um gravador à mão.

AGIR POR IMPULSO

Se você gosta de uma pessoa engraçada e muito franca, você a classifica de “espontânea” e, se não gosta, você se refere ao mesmo conjunto de comportamentos como “impulsivos”. Temos uma relação ambígua com atividades no “calor do momento”. Por um lado, tendemos a vê-las como engraçadas, e, por outro lado, podem parecer bobas. Uma das razões da má fama da impulsividade é que não prestamos muita atenção nas situações em que a ação impulsiva dá bons resultados. Considere o seguinte: uma grande tempestade de inverno está se aproximando, prevista para chegar daí a alguns dias. Em vez de passar um dia inteiro trancado em casa com seus três filhos pequenos, você clica naquele site de promoções de viagem e reserva passagens para a família passar um delicioso fim de semana em Aruba. Bater os olhos num livro de capa esquisita e comprar por um preço irrisório, entrar por instinto num bar novo, encontrar sua laboriosa pessoa amada estendendo roupa no varal e transar apaixonadamente em cima da máquina de lavar, ter uma conversa interessante com uma pessoa totalmente desconhecida, pedir licença aos amigos e subir no palco de karaokê para cantar sua canção favorita - reações impulsivas e atividades inesperadas, apesar de arriscadas, podem ter grande sucesso e ser agradáveis. Isso acontece exatamente porque não são programadas e a incerteza do resultado contribui para uma mescla de ansiedade e curiosidade que nos faz sentir vivos e inteiros - sem afetação, sem se preocupar em causar boa impressão.

1. O EFEITO LIBERADOR DE PERDER O CONTROLE

Imagine ser arrastado para uma conversa sobre um assunto polêmico: legalizar a maconha, reduzir o número de bombeiros e policiais para cortes no orçamento municipal, decidir quem herda o quê quando vovô morrer. Esses tópicos são controversos devido à sua importância para as pessoas diretamente afetadas. Em locais de trabalho politicamente carregados, um dos assuntos mais delicados é a diversidade. Muitos países ocidentais, modernos, industrializados, concordam que a inclusão baseada em raça, sexo, orientação sexual, religião, nacionalidade e status econômico não só é justa como valiosa.

Nicky Garcea, consultora administrativa na Inglaterra, passou anos coordenando programas sobre diversidade. Ela chegava a uma empresa, reunia os funcionários e passavam horas em workshops sobre a importância de respeitar as diferenças, mas não tardou a se desencantar com essa abordagem. “Mostrar que todo mundo era diferente”, ela confessou, “era uma garantia de que cada funcionário passaria a ser rotulado de mulher, indiano ou gay.”

Muitos de nós ficamos divididos entre querer agir como se não houvesse absolutamente diferenças entre as pessoas e falar sobre possíveis diferenças com sensibilidade e respeito. O problema de tomar tanto cuidado ao escolher as palavras é a quantidade de energia mental exigida. Um homem branco, por exemplo, pode gastar muita energia conduzindo uma conversa com uma mulher negra para temas leves, inócuos, superficiais. Ambos se sentem enojados ao reconhecer que, na verdade, o importante é o que não está sendo dito. Duas pessoas bem-intencionadas acabam criando uma interação forçada, que exige muito esforço e energia.23

Mas e se fosse possível esgotar a energia da pessoa antes da conversa, de modo que ela não tivesse mais pique para ocultar, sufocar ou deixar escapar o que está pensando?24 Seria preciso que os funcionários corressem meia maratona ou fizessem todas as palavras cruzadas do jornal de domingo antes do trabalho. Num estudo, os cientistas determinaram que os sujeitos fizessem algo desafiador em termos físicos ou intelectuais antes de uma conversa potencialmente delicada com um membro de outro grupo étnico. Mentalmente exaustos, os sujeitos se livraram da difícil tentativa de falar a coisa certa, ficaram menos inibidos numa conversa sobre diferenças raciais com alguém de outra raça, e tiveram uma interação 25,4% melhor. Além disso, se sentiram menos alvo de preconceito por observadores negros que assistiram aos vídeos da interação. Os participantes, cansados, desinibidos, tiveram 72,6% mais facilidade de conversar francamente sobre diversidade e lidar efetivamente com esse tema delicado.

Um apoio adicional ao valor de ações impulsivas, ou não comedidas, vem de uma fonte inusitada: o declínio cognitivo na idade avançada, que precede doenças cerebrais degenerativas.25 Num estudo, os pesquisadores disseram a jovens adultos (de 19 anos em média) e a adultos idosos (de 73 anos em média) que eles faziam parte de um programa da comunidade para aconselhamento de adolescentes com problemas. Todos foram levados a acreditar que essa iniciativa visava a aconselhar um adolescente por meio de vídeos de entrevistas com pessoas comuns (e não com terapeutas) sobre a adolescência que essas pessoas comuns tinham vivido. Os participantes selecionaram uma entre várias fichas de adolescentes, sem saber que todas continham a mesma informação: uma menina obesa que sofria de insônia, bullying, incapacidade de fazer amigos e desinteresse na escola.

Quando disseram aos sujeitos para pensar no que desejavam dizer, os idosos demonstraram maior franqueza, falando diretamente que a menina era gorda e feia, e contaram como tinham sofrido na adolescência, como haviam lidado com isso e o quanto tinham aprendido com a rejeição e o fracasso. Os jovens foram mais cautelosos: 70% nem mencionaram a gordura da garota. Curiosamente, os idosos com o mais fraco funcionamento cognitivo (medido por um exame neuropsicológico abrangente) foram os mais abertos, com 80% falando na gordura da menina e dando mais conselhos.

Os pesquisadores pediram a dois médicos famosos, especialistas em obesidade, que assistissem ao filme das entrevistas e avaliassem a qualidade dos conselhos. Os conselhos dos idosos com menor capacidade cognitiva foram julgados melhores do que os conselhos dos jovens, que tinham maior capacidade cognitiva. A falta de inibição deixou os velhos mais acessíveis, empáticos, cooperativos, e dispostos a abordar o desconfortável fato da obesidade da garota e suas dificuldades sociais por causa disso. No artigo intitulado “The risk of polite misunderstandings”, Jean-François Bonnefon e seus colegas concluem:26 A polidez gasta recursos mentais e cria confusão sobre o verdadeiro significado.

Embora essa confusão seja funcional em situações corri­queiras, pode ter conseqüências indesejáveis em situações de alto risco, como pilotar um avião em caso de emergência ou ajudar um paciente a optar por um tratamento.

Aconselhar e servir de mentor são papéis de liderança funda­mentais para pais, professores e executivos. A incapacidade de abordar assuntos delicados aumenta a probabilidade de malogro no trabalho, erosão de relacionamentos, perda de tempo e de di­nheiro, devido à comunicação inadequada. Não evite essas conversas tão temidas. Experimente falar quando estiver um pouco cansado, com as defesas naturais em baixa. Isso vai ajudá-lo a to­lerar o desconforto e se valer de sentimentos menos convencionais.

DECISÕES MINDLESS

Desafiamos você a passar oito horas sem tomar decisões instantâ­neas. Não mudar de faixa no trânsito, não convidar alguém que você acabou de conhecer para almoçar, não expor um pensamento antes que seja bem analisado, não enviar e-mails apressados e, certamente, não comentar imediatamente alguma coisa postada no Facebook. Apostamos que você não consegue durante as oito horas. Imaginamos que consiga durante uma hora. Se você estiver num shopping center ou assistindo à televisão, reduzimos para dois minutos.

As pessoas tendem a trabalhar decisões importantes. Gosta­mos de ter trabalho com nossas escolhas, calcular custo-benefício, consultar especialistas, fazer programações, quando bastaria uma boa noite de sono para resolver o assunto. Uma abordagem mais intuitiva pode parecer quase Nova Era porque se baseia na existência do inconsciente e na crença em que o fantasma na máquina, a mente inconsciente, é capaz de dar conta das decisões enquanto a mente consciente está ocupada com outras coisas. Segundo o princípio de capacidade do cérebro, quando há excesso de dados a serem digeridos, o pensamento consciente fica confinado ao trabalho de processar todas as informações, integrando-as, apelando para os conhecimentos e experiências, comparando-as e contrastando as escolhas possíveis até chegar a uma decisão. O pensamento mindless não tem essas restrições porque ocorre fora da consciência. Isso nos traz uma regra de ouro contraintuitiva: quando é preciso tomar uma decisão complexa, após reunir informações na mente consciente, evite pensar nelas conscientemente. Não tenha pressa, deixe o inconsciente resolver.27

Nenhum autor enuncia melhor essa regra do que Ap Dijksterhuis.28 Esse psicólogo holandês passou anos estudando a inteligência inconsciente. Em um estudo muito interessante, Dijksterhuis investigou se torcedores fanáticos por futebol, com seus conhecimentos obsessivos do esporte, eram mais capazes de acertar qual time seria vencedor do que adultos sem maiores conhecimentos, que usavam mais as seções de esportes dos jornais para embrulhar o lixo do que para ler.29 Ele fez uma breve exposição estatística de gols, jogadas, passes perfeitos, dribles e segredos de vários times de futebol. Dijksterhuis queria saber como os dois grupos utilizavam essas informações.

Tendo tempo suficiente para avaliar todos esses dados sobre a performance dos times, os fanáticos tiveram melhor desempenho que os neófitos. Já era de se esperar, pois eles usaram as informações que obtinham diariamente. Mas algo estranho aconteceu quando Dijksterhuis mudou o procedimento. Deixou os sujeitos pensarem durante dois minutos apenas e, para evitar que continuassem a pensar em futebol, pediu que resolvessem complicadas equações de álgebra. Enquanto tentavam solucionar os complexos problemas de matemática, Dijksterhuis os interrompeu, pedindo que respondessem rapidamente quais times seriam vitoriosos no próximo campeonato. Nesse momento, os neófitos acertaram mais que os fanáticos! Por quê? Porque, na ausência de uma grande quantidade de dados, os neófitos confiaram nas informações que, bem diante de seus olhos, lhes chamaram a atenção, como passes perfeitos em condições de chuva e vento, uma estatística que os fanáticos devem ter negligenciado. Os neófitos basearam essa reação intuitiva em informações inusitadas, que foram sublinhadas e marcadas em negrito pelo cérebro. Como os fanáticos tinham um grande acúmulo de fatos sobre futebol estocados no cérebro, “a dica” ali à sua frente não se destacou. É muito difícil desaprender fatos antigos e descartar idéias preconcebidas, e eles precisariam ter feito isso rapidamente a fim de absorver novos fatos.

Os resultados da pesquisa sobre futebol não se limitam ao mundo dos esportes. A decisão instintiva é relevante também para uma pessoa doente escolher o médico, um adulto obeso escolher dietas e exercícios, médicos diagnosticarem doenças graves. Em um estudo similar, pediu-se a adultos com pós-graduação em psicologia para determinar se um paciente tinha algum distúrbio psicológico e, se tivesse, qual seria o diagnóstico.30 Em uma sessão, os psicólogos leram a descrição do caso de um paciente e tiveram quatro minutos para ponderar antes de formar uma opinião. Em outra sessão, tiveram que processar inconscientemente as informações sobre o caso enquanto faziam um jogo de caça-palavras durante quatro minutos. As opiniões foram piores quando tiveram os quatro minutos para pensar. De fato, as opiniões mais mindless foram cinco vezes mais corretas do que as ponderadas.31

Vemos assim que há nítidas vantagens no pensamento inconsciente, especialmente quando se trata de dissecar, manipular e sintetizar grandes quantidades de informação. Mas, certamente, há também nítidas vantagens no pensamento consciente. Se você acha que ter uma janela que dá para campos verdejantes e belas árvores é importante para sua qualidade de vida no trabalho, por exemplo, é preciso ter isso na mente consciente quando lhe oferecerem um escritório muito maior, com elegantes cadeiras ergonômicas e sem vista para o mundo externo. Caso contrário, você pode se deixar levar pelo entusiasmo de ter tanto espaço e depois se surpreender com o abrupto declínio de seu ânimo nos meses seguintes sem janela. Então, entre os dois, qual é o melhor para você?

Vejamos o problema de escolher um apartamento para alugar, que é uma decisão da maior importância. Será fácil se o apartamento tiver todos os requisitos: preço baixo, quartos amplos, banheiro com banheira, bons armários, varanda, perto de shoppings e transporte público, num bairro com ótimos restaurantes, parques e baixa criminalidade. E - ah, sim - que tenha conforto para seu bichinho de estimação. Na vida real, encontrar um apartamento é um exercício de concessões. Você tem um closet enorme, mas não tem parque; cozinha moderna, mas não tem pia dupla. Muita gente entra num jogo mental de troca-troca, num esforço para tomar uma decisão feliz.

Em 2011, Dijksterhuis e seus colegas conduziram um experimento em que os participantes tinham que fazer uma entre duas escolhas ideais dentre 12 apartamentos possíveis.32 Mas, tal como no mundo real, nenhum era perfeito. Os melhores apartamentos tinham oito características positivas e quatro negativas, e os piores tinham quatro características positivas e oito negativas. Quando as pessoas precisaram tomar uma decisão imediatamente após receber informações sobre cada apartamento, houve somente 15% de acertos na melhor opção. Quando tiveram quatro minutos para ponderar sobre cada apartamento, os acertos na melhor opção chegaram a 29%. Isso indica que a ponderação se sobrepõe à escolha impulsiva, mas nenhuma das duas parece ser totalmente satisfatória.

Curiosamente, numa terceira sessão, quando os participantes ficaram distraídos fazendo palavras cruzadas sem relação com o tema e então tiveram que tomar a decisão, o resultado foi 30% de acertos na melhor opção. Mas realmente interessante foi o que aconteceu quando os participantes puderam passar dois minutos pensando conscientemente em cada apartamento e depois sua atenção foi desviada para jogos de palavras, irrelevantes, porém difíceis, que precisavam solucionar em dois minutos. Depois de passar metade do tempo ponderando conscientemente antes de tomar uma rápida decisão mindless após um cansativo jogo de palavras, alcançaram 58% de acertos na melhor opção. Eles tinham passado apenas metade do tempo analisando cada apartamento e a decisão foi duas vezes melhor!

Esses mesmos pesquisadores constataram que a melhor estratégia é aproveitar os pontos positivos do pensamento consciente e inconsciente. Mas deram um passo adiante ao descobrir a importância da ordem seqüencial de pensamento consciente e inconsciente. Quando os possíveis compradores de apartamentos tiveram dois minutos para ponderar antes de serem distraídos com jogos de palavras, tiveram 58% de acertos na melhor opção. Quando a seqüência foi invertida e ficaram distraídos com jogos irrelevantes de palavras (pensamento inconsciente) e depois tiveram dois minutos para ponderar (pensamento consciente), sua capacidade de escolha caiu para 30%.

Não é de surpreender que existam tantos livros sobre mindfulness e pensamento irracional. Ainda estamos aprendendo a funcionar no modo ótimo, como pessoas bem integradas, inteiras. Essa fascinante linha de pesquisa mostra que a estratégia mais eficaz para lidar com decisões complexas é ter flexibilidade para usar o pensamento consciente e inconsciente, em conjunto, e nessa ordem. Numa situação em que há várias opções exigindo uma ação cognitiva, a fórmula para a melhor decisão é a seguinte:

  1. Fique algum tempo pensando conscientemente na situação.
  2. Pare.
  3. Faça uma atividade qualquer, sem relação com a situação, para ter um período de incubação.
  4. Tome a decisão.

Intervenções Mindless

Passamos décadas tentando aumentar nossa autoconsciência para alcançar o sucesso, e os pesquisadores que apresentamos neste capítulo sugerem uma atitude diferente. Como alternativa, vamos propor uma estratégia do “levantar da (in)consciência”, que nos permite atingir as metas que almejamos e, assim, viver melhor. Propomos a audaciosa noção de que nosso comportamento pode ser modificado drasticamente sem qualquer intervenção consciente. O imperceptível processamento inconsciente da informação pode nos conduzir a decisões mais firmes, mais rápidas e melhores.

Pense na meta de melhorar seu desempenho. Em uma central de telemarketing, Garry Latham e Ronald Piccolo testaram uma intervenção de baixo custo com os funcionários, dando a eles fotografias para olharem antes de falar com os clientes.33 Uma foto era de três vendedores sorridentes durante um telefonema (desempenho relevante), outra era de uma mulher levantando os braços na linha de chegada de uma corrida (desempenho irrelevante) e, no terceiro caso, os funcionários olharam para uma foto do prédio em que trabalhavam. Os funcionários que olharam para as fotos de desempenhos vitoriosos apresentaram um aumento de 58% de chamadas bem-sucedidas, e os que olharam para a foto do prédio não apresentaram nenhum aumento.

Mas essa não é a melhor parte. Veja só: os funcionários que olharam para a foto do vendedor sorridente conseguiram 85% a mais de dinheiro do que os que olharam para a foto do prédio! Quando lhes perguntaram como tinham melhorado tanto seu desempenho, nenhum deles mencionou a foto inspiradora em seu cubículo. O que você acha melhor: gastar um dinheirinho numa foto emoldurada, ou gastar um dinheirão em workshops para melhorar o ânimo, a motivação e o desempenho dos funcionários? Nesse estudo, os pesquisadores constataram também que imprimir um melhor desempenho no inconsciente tem um impacto que não dura somente minutos ou horas, mas permanece por uma semana inteira de trabalho.

Agora, vejamos problemas sociais maiores. Tentar convencer as pessoas a não usar estereótipos sobre idosos, deficientes, gays ou de uma raça diferente tem o efeito contrário, tornando mais fácil evocar o estereótipo e, portanto, usá-lo. Na mesma linha, quando fumantes veem anúncios contra cigarros, acabam fumando mais.34 Em vista disso, pesquisadores reuniram um grupo de adultos brancos que admitiam ter preconceito racial e não gostavam de ter contato com negros, a fim de saber se essa opinião podia ser recondicionada sem tentar convencer os sujeitos de que preconceito e racismo são indesejáveis.

Os pesquisadores colocaram os sujeitos diante de uma tela de computador contendo imagens e palavras positivas sobre norte-americanos negros (uma criança negra dividindo o lanche com um coleguinha esfomeado), e instruídos a se “aproximar dos negros” movendo um joystick na direção deles. Quando apareciam imagens e palavras sobre norte-americanos brancos, deveriam mover o joystick na direção oposta a eles.35 A ideia era que associar repetidamente imagens positivas sutis de pessoas negras à motivação para se aproximar e apreciá-las levasse a rever o hábito mindless de ver pessoas negras como inimigas a serem evitadas. Os pesquisadores constataram que os adultos brancos treinados para associar negros a um comportamento de aproximação tiveram um decréscimo de 46,5% de crenças preconceituosas em comparação com os que não receberam o treinamento. Mas essa reinstalação cerebral influencia o comportamento de um branco com um desconhecido negro? A resposta é um surpreendente sim. Após o treinamento de associação mindless de rostos negros com os movimentos de aproximação via joystick, numa conversa de “apresentação”, esses brancos colocaram a cadeira seis vezes mais perto de um desconhecido negro (um ator que já estava sentado quando os participantes entraram). Vejam só, o cérebro é um órgão muito interessante!

Quem já trabalha no sentido de criar maior apreciação da diversidade não precisa ser lembrado de que as pessoas que não se parecem conosco, ou que não têm os mesmos valores, podem oferecer mais oportunidades de aproximação que de evitação. Mas há um fato importante: todos nós temos um “grupo”, um círculo de pessoas cuja mentalidade é parecida com a nossa e, por um efeito de espelho, consideramos mais atraentes do que o resto da humanidade. Sejam religiosos versus ateus, vegetarianos versus carnívoros, feministas versus fãs de pornografia, nerds versus atletas, todos têm sua tendenciosidade, algumas reconhecidas, e muitas outras ocultas. Pesquisas recentes nos oferecem alguns meios de mudar essas tendenciosidades. Sabemos agora que, com movimentos repetidos, podemos remodelar o cérebro, mudando a mente para melhor. O treinamento mindless pode ser acrescentado à lista de estratégias para aumentar o sucesso e o bem-estar.

Utilizando o Mindless

Apresentamos um contraste entre a grande divulgação científica e pública de que mindfulness é melhor que mindlessness. Ao compreender que o pensamento mindless reforça o êxito, você terá uma vantagem sobre quem está sempre pronto a acionar o estado mindful. Ainda que você queira, é fisicamente impossível estar mindful o tempo todo. Para capitalizar o pensamento inconsciente, descrevemos os pontos fortes de mindlessness em diversas áreas da vida, desde alcançar metas, confiar nas pessoas e ter mais criatividade, até lidar com uma pressão sufocante, com os preconceitos e tomar decisões complexas.

Em certas situações o pensamento mindless nos capacita a ser mais objetivos ou mais neutros. Você pode estar resistindo a aceitar essa afirmação. Afinal, acredita-se intuitivamente que um julgamento instantâneo pode ser muito bom em decisões “sem importância”, mas decisões complexas exigem intensidade e concentração nas deliberações. Estamos aqui para lhe dizer que a eficácia é frequentemente prejudicada pela crença na superioridade da mindfulness.

LEMBRETES

  1. Mindfulness pode ter vantagens, mas nossa predisposição natural é para mindlessness.
  2. O pensamento automático ajuda a conservar os recursos mentais.
  3. A redução da atividade mental pode gerar uma forma produtiva de desinibição.
  4. O processamento mindless frequentemente conduz a um desempenho superior e a melhores decisões, principalmente em situações delicadas.
  5. Intervenções subliminares podem nos impulsionar na direção de um objetivo.
  6. Tentativas de recusar mindlessness estão fadadas ao fracasso.

Reconhecer o poder de mindlessness é, por si só, uma intervenção. E as pessoas podem aprender a se beneficiar desse recurso tão menosprezado. Aqui vão mais alguns conselhos para utilizar mindlessness:

  1. Estabeleça um prazo ridiculamente curto - dez segundos - para tomar uma decisão que o deixou alguns minutos paralisado, sem saber o que fazer. Isso força uma decisão mindless. Há sempre um motivo para deixar de fazer uma viagem. Há sempre um motivo para comprar sempre o mesmo presunto e queijo no supermercado. Tire dez segundos, clique “enviar”, ponha a compra no carrinho ou vá embora sem gastar mais energia na decisão.
  2. Use dicas ou sinais que representem seus objetivos. Você quer ser calmo e moderado numa situação ou ser franco e dizer tudo o que está sentindo? Quer ter grandes aspirações e está disposto a correr riscos para alcançar a meta ou é aves­so a riscos para ter certeza de não cometer erros? Você po­de colar palavras e imagens na sua sala ou na escrivaninha, apontando para determinadas metas e estilos motivacionais.
  3. Reserve tempo para deixar a mente vagar. Mindlessness é um recurso estratégico intenso, e há motivos para não sermos dotados exclusivamente desse equipamento mental. Quan­do a mente vagueia, nossa atividade cerebral é quase a mes­ma de quando estamos descansando. As idéias colidem, e a criatividade aparece por acaso. As empresas e o ambiente doméstico podem ser organizados de modo a estimular ati­vidades mindless estratégicas. Essa é uma das muitas razões para que os exercícios físicos e as brincadeiras na hora do recreio sejam as últimas atividades a serem excluídas dos programas pedagógicos.
  4. Determine regras para usar a intuição. Quando você estiver diante de uma opção simples, é melhor usar um método lógico e deliberado. Quando precisar tomar uma decisão complicada, terá um resultado melhor se, depois de passar algum tempo analisando as informações, você se permitir um período de incubação, fazendo alguma outra coisa (“dor­mir sobre o assunto”) e depois mudar para o modo mindless, a intuição.

Em vez de eleger um vencedor entre os dois modos de pensamento, mindlessness e mindfulness, defendemos os méritos relativos de ambos. Se você retirar metade do pensamento humano, metade da consciência, poderá criar um espaço maior para o sucesso e o bem-estar.

Psicologia - Psicologia Cognitiva
Meditação - Mindfulness, Atenção primária
4/11/2022 2:53:07 PM | Por Danny Penman, Mark Williams
Despertando a atenção plena

Imagine-se no topo de uma montanha, contemplando lá do alto a pai­sagem urbana e cinzenta sob a chuva. A cidade parece fria e inóspita. Os prédios são velhos e desgastados. As avenidas estão engarrafadas e as pessoas caminham infelizes e mal-humoradas. Então algo milagroso acontece: as nuvens se dissipam e o sol começa a brilhar. Num instante, a paisagem muda. As janelas dos prédios ficam douradas. O concreto cinza muda para um bronze lustroso. As ruas parecem reluzentes e limpas. Um arco-íris surge. O rio lodoso se transforma numa serpente exótica que corta as ruas. Por um momento, tudo fica em suspenso: sua respiração, seu coração, sua mente, os pássaros no céu, o tráfego nas ruas, o próprio tempo. Tudo parece pausar, absorver a transformação.

Essas mudanças de perspectiva têm um efeito dramático - não apenas no que você vê, mas também no que pensa e sente e na maneira como se relaciona com o mundo. Elas podem alterar sua visão da vida de forma radical num piscar de olhos. Mas o que é notável nessa situação é que, de fato, pouca coisa muda: a cena permanece exatamente a mesma, mas quando o sol aparece você vê o mundo sob uma luz diferente. Só isso.

Observar sua vida sob uma luz diferente também pode transformar seus sentimentos. Lembre-se de uma época em que você estava se pre­parando para as férias. Havia coisas de mais por fazer e tempo de menos para dar conta de tudo. Você chegou tarde em casa depois de passar o dia tentando deixar o trabalho em ordem antes de sair para seus dias de folga. Você se sentia como um hamster preso numa roda que não para­va de girar. Enquanto arrumava as malas, estava tão cansado que teve dificuldades de selecionar o que levar. Não conseguiu dormir direito porque sua mente continuava revivendo as atividades daquele dia. Na manhã seguinte, você acordou, pôs a bagagem no carro, trancou a casa e partiu... E acabou.

Pouco depois você estava deitado à beira da praia, relaxando e con­versando com os amigos. O trabalho de repente ficou a milhares de qui­lômetros de distância e você mal conseguia se lembrar dos problemas relacionados a ele. Você se sentia revigorado porque sua vida simples­mente mudara de marcha. Sua rotina estressante continuava existindo, é claro, mas você agora a estava vendo de um ponto de vista diferente.

O tempo também pode alterar profundamente sua perspectiva. Pense na última vez que você teve uma discussão com um colega ou um estranho - talvez um atendente de telemarketing. Você ficou uma fera. Passou horas pensando em todas as coisas inteligentes que pode­ria ou deveria ter dito para derrubar seu oponente. Os efeitos da dis­cussão arruinaram seu dia. Porém, poucas semanas depois, o episódio já não o afeta mais. Na verdade, você nem se lembra dele. O evento continua tendo ocorrido, mas você pensa nele de um ponto diferente no tempo.

Mudar sua perspectiva pode transformar sua experiência de vida, como mostram os exemplos. Mas eles também evidenciam um proble­ma fundamental: todos ocorreram porque algo fora de você havia mu­dado - o sol surgiu, você saiu de férias, o tempo passou. Acontece que, se você depender somente da mudança de circunstâncias externas para se sentir feliz e energizado, terá de esperar muito tempo. E enquanto você espera o sol aparecer ou as férias chegarem, sua vida passa despercebida.

Mas as coisas não precisam ser assim.

É fácil ficar preso num ciclo de sofrimento e aflição quando você tenta eliminar seus sentimentos ou se  emaranha num excesso de análises. Os sentimentos negativos persistem quando o modo Atuante da mente se oferece para ajudar, mas em vez disso acaba aumentando as dificuldades que você estava tentando superar.

Mas existe uma alternativa. Nossa mente tem outra maneira de se relacionar com o mundo: o modo Existente. Assemelha-se a uma mu­dança de perspectiva, embora vá bem além disso. Ela nos permite ver como a mente tende a distorcer a “realidade” e nos ajuda a eliminar o hábito de pensar, analisar e julgar demais. Com ela, podemos experi­mentar o mundo de forma direta, vendo qualquer dificuldade de um novo ângulo e enfrentando os obstáculos de maneira bem diferente. Por causa dela, somos capazes de mudar nossa paisagem interna (ou paisa­gem mental, se preferir) independentemente do que estiver ocorrendo a nossa volta. Deixamos de depender das circunstâncias externas para encontrar a felicidade, o contentamento e o equilíbrio. Voltamos a ter o controle de nossa própria vida.

Se o modo Atuante é uma armadilha, o modo Existente é a liberdade.

Ao longo das eras, as pessoas aprenderam a cultivar essa forma de ser, e qualquer um de nós é capaz de fazer o mesmo. A meditação da atenção plena é a porta pela qual podemos acessar o modo Existente. E, com um pouco de prática, poderemos abrir essa porta sempre que precisarmos.

A atenção plena surge espontaneamente do modo Existente quando aprendemos a prestar atenção deliberada, no momento presente e sem julgamento, nas coisas como de fato são.

Na atenção plena, começamos a ver o mundo como ele é, não como esperamos que seja, como queremos que seja ou como tememos que se torne.

Essas idéias podem soar um pouco nebulosas. Pela própria natureza, elas precisam ser experimentadas para serem compreendidas da manei­ra correta. Assim, para facilitar o entendimento, vou explicar a seguir ponto a ponto as diferenças entre os modos Atuante e Existente. Embora algumas das definições talvez não fiquem muito claras no início, os bene­fícios da prática da atenção plena são inquestionáveis. Na verdade, é até possível verificar os benefícios de longo prazo se enraizando no cérebro usando algumas das tecnologias de imagens mais avançadas do mundo.

Ao ler as páginas seguintes, é importante que você tenha em mente que o modo Atuante não é um inimigo a ser derrotado. Com frequência, é até um aliado. Ele só se torna um “problema” quando se oferece para uma tarefa que é incapaz de realizar, como “solucionar” uma emoção preocupante. Quando isso acontece, vale a pena mudar a marcha para o modo Existente.

É exatamente isto que a atenção plena proporciona: a capacidade de mudar de marcha quando precisamos, em vez de ficar presos sempre na mesma.

As sete características dos modos atuante e existente

1. Piloto automático X escolha consciente

O modo Atuante é muito eficiente em automatizar nossa vida por meio dos hábitos, mas esta é uma das características que menos perce­bemos. Sem a capacidade da mente de aprender com a repetição, ainda estaríamos tentando lembrar como amarrar o sapato - algo que hoje fazemos automaticamente. O lado ruim disso é que, quando cedemos demais ao piloto automático, podemos acabar pensando, trabalhando, comendo, caminhando ou dirigindo sem uma consciência clara do que estamos fazendo. O maior perigo é que grande parte da nossa vida passe assim, sem que de fato estejamos vivendo.

A atenção plena nos traz de volta à consciência: um local de escolha e intenção.

O modo Existente - ou “atento” - nos permite voltar a ter total consciência de nossa vida. Proporciona a capacidade de nos conec­tarmos com nós mesmos de tempos em tempos para que possamos fazer escolhas intencionais. A medi­tação da atenção plena nos leva a gastar menos tempo para realizar as coisas. É simples: quando se torna mais atento, suas intenções e ações ficam alinhadas, e você deixa de ser desviado toda hora do rumo pelo piloto automático. Aprende a parar de perder tempo à toa com sua velha maneira de pensar e agir, que se provou inútil. Além disso, diminui sua tendência a lutar demais por objetivos dos quais é melhor abrir mão. Você se torna plenamente vivo e consciente de novo.


2. Analisar X sentir

O modo Atuante precisa pensar. Ele analisa, recorda, planeja e compara. Esse é seu papel, e quase todo mundo se acha bom nisso. Passamos grande parte do tempo perdidos, desligados, sem notar o que se passa a nossa volta. A correria do mundo nos absorve de tal forma que destrói nossa percepção do agora, forçando-nos a viver mais no mundo dos nossos pensamentos do que no mundo real. E, como vimos no capítulo anterior, os pensamentos podem facilmente ser desviados para uma direção peri­gosa. Isso nem sempre ocorre, mas é um risco constante.

A atenção plena é uma forma diferente de experimentar o mundo. Não é como pegar um caminho novo; estar plenamente atento é entrar em contato com seus sentidos, de modo que possa ver, ouvir, tocar, cheirar e degustar as coisas que você já conhece como se fosse a primeira vez. Você se torna curioso de novo. Esse contato sensorial direto com o mundo pode parecer trivial de início. No entanto, quando você começa a sentir os momentos da vida comum, descobre algo fora do comum. Você cultiva uma sensação intuitiva do que está ocorrendo a sua volta, o que aumenta sua capacidade de observar as pessoas e a vida de uma nova maneira. Eis a essência da atenção plena: acordar para o que está acontecendo no mundo e dentro de você, momento a momento.

3. Lutar X aceitar

O modo Atuante envolve julgar e comparar o mundo “real” com o mundo que idealizamos em nossos sonhos e pensamentos. Ele foca a atenção na diferença entre os dois, o que acaba gerando uma insatisfa­ção permanente.

O modo Existente, por outro lado, nos convida a suspender o jul­gamento temporariamente. Significa ficar de lado por um momento e observar o mundo e a vida se desenrolando, permitindo que as coisas sejam como são. Ao analisar um problema ou uma situação sem precon­ceitos, não somos mais forçados a chegar a uma conclusão preconcebi­da. Desse modo, não precisamos reduzir nossa criatividade.

Aceitação não é o mesmo que resignação. Aceitar é reconhecer que a experiência existe e, em vez de deixar que ela controle sua vida, observá-la compassivamente, sem julgá-la, criticá-la ou negá-la. A aceitação pro­movida pela atenção plena permite que você impeça que uma espiral ne­gativa comece, ou, se já começou, reduza seu ímpeto. Ela nos concede a liberdade de escolher e, no processo, nos liberta da infelicidade, do medo, da ansiedade e da exaustão. Com isso, adquirimos um controle maior sobre a nossa vida. O mais importante é que nos permite lidar com os problemas da forma mais eficaz possível e no momento mais apropriado.

4. Ver os pensamentos como reais X tratá-los como eventos mentais

No modo Atuante, a mente usa as próprias criações, pensamentos e imagens como matéria-prima. As idéias são a sua moeda e adquirem valor próprio. Você pode começar a confundi-las com a realidade. Na  maioria das vezes, isso faz sentido. Se você saiu para visitar um amigo, precisa ter em mente seu destino. A mente planejadora, ativa, racional levará você até lá. Não faz sentido duvidar da verdade de seu pensa­mento: Vou mesmo visitar meu amigo? Em tais situações, é necessário considerar seus pensamentos como verdadeiros.

Mas isso se torna um problema quando você está estressado. Você poderia dizer a si mesmo: Vou enlouquecer se isso continuar. Eu deve­ria fazer melhor do que isso. Você pode considerar esses pensamentos verdadeiros também. Seu astral despenca quando sua mente reage de forma rude: Sou fraco, não presto, não sirvo para nada. Assim, você se esforça cada vez mais, ignorando as mensagens de seu corpo castigado e o conselho de seus amigos. Os pensamentos deixaram de ser seus servos e se tornaram seu senhor - um senhor rígido e implacável.

A atenção plena nos ensina que pensamentos não passam de pensa­mentos. São eventos criados pela mente. Costumam ser valiosos, mas não são “você” ou “a realidade”. São uma narração interna sobre você e seu mundo. A simples compreensão desse fato o liberta do excesso de preocupação, elucubração e ruminação, o que lhe permite enxergar um caminho claro pela vida de novo.

5. Evitar X aproximar-se

O modo Atuante resolve problemas não apenas mantendo na lem­brança seus objetivos e destinos, mas também lembrando “antiobjetivos” e lugares aonde você não quer ir. Isso faz sentido quando, por exemplo, você vai de carro do ponto A ao ponto B, porque convém saber quais partes da cidade você deve evitar. No entanto, esse pro­cesso se torna um problema quando se trata de estados mentais dos quais você gostaria de fugir. Por exemplo, se tentar resolver o proble­ma do cansaço e do estresse, você manterá na mente os “lugares que não deseja visitar”, como a exaustão, o esgotamento e o colapso. Então, além de se sentir cansado e estressado, você começará a invocar novos medos, aumentando sua ansiedade e gerando ainda mais estresse. O modo Atuante, usado no contexto errado, conduz você passo a passo ao esgotamento e à exaustão.

O modo Existente, por outro lado, convida você a se “aproximar” das coisas que sente vontade de evitar. Instiga-o a se interessar por seus estados mentais mais difíceis. A atenção plena não diz “não se preocupe” ou “não fique triste”: ela reconhece o medo, a tristeza, a fadiga e a exaustão e o encoraja a se voltar para aquelas emoções que ameaçam engoli-lo. Essa abordagem compassiva dissipa pouco a pouco o poder dos sentimentos negativos.

6. Viagem no tempo mental X permanecer no momento presente

Sua memória e sua capacidade de planejar o futuro são cruciais para o bom andamento da vida diária, mas elas sofrem distorções por causa de seu estado de espírito. Quando você está sob estresse, tende a se lembrar somente das coisas ruins, traumáticas, e a ter dificuldade de se lembrar das coisas boas, prazerosas. Algo semelhante ocorre quan­do você pensa no futuro: quando se sente infeliz, acha quase impossível olhar para a frente com otimismo. No momento em que esses sentimentos percorreram sua mente consciente, você deixa de perceber que não passam de memórias do passado ou de planos para o futuro. Você se perde na viagem no tempo mental.

Nós revivemos eventos passados e voltamos a sentir a dor; nós antevemos desastres futuros e sentimos seu impacto com antecedência.

A meditação treina a mente para que você conscientemente “veja” seus pensamentos quando ocorrerem, para que possa viver sua vida conforme ela se desenrola no presente. Isso não significa que você fica aprisionado no agora. Ainda consegue se lembrar do passado e planejar o futuro, mas o modo Existente permite que você os veja como são: a memória como memória e o planejamento como planejamento. Ter essa clareza evita que você seja escravo da viagem no tempo mental. Você consegue impedir a dor de reviver o passado e de se preocupar com o futuro.

7. Atividades exaustivas X tarefas revigorantes

Quando você está preso no modo Atuante, não é apenas o piloto au­tomático que o impele: você tende a se envolver em projetos pessoais e  profissionais importantes, e em tarefas exaustivas como cuidar da casa, dos filhos, dos pais idosos. Essas atividades costumam ser válidas, mas por demandarem tanto tempo é fácil concentrar-se nelas e excluir todo o resto, inclusive sua saúde e seu bem-estar. De início, você pode tentar convencer-se de que tudo isso é temporário e de que você está disposto a abrir mão dos hobbies e passatempos que nutrem sua alma. Mas desistir dessas coisas pode esgotar seus recursos internos aos poucos e levá-lo a se sentir vazio, apático e exausto.

O modo Existente restaura o equilíbrio, ajudando-o a identificar as atividades que o revigoram e aquelas que o esgotam. Ele o faz perceber que necessita de tempo para renovar sua alma e proporciona o espaço e a coragem para tal. Também o ensina a lidar com as inevitáveis tarefas do dia a dia que drenam a energia de sua vida.

Mudança consciente de marcha

A meditação da atenção plena ensina a sentir as sete dimensões de­ lineadas anteriormente e, com isso, ajuda a reconhecer em que modo sua mente está operando. Ela age como um alarme suave que avisa, por exemplo, quando você está analisando demais uma situação e lembra que existe uma alternativa: você ainda tem opções, por mais infeliz ou estressado que esteja. Ou seja, se sente que está emaranhado no excesso de análises e críticas, a atenção plena pode torná-lo mais aberto e fazê-lo aceitar a dificuldade com receptividade e curiosidade.

Agora podemos lhe revelar um segredo: se você mudar ao longo de qualquer uma dessas dimensões, as outras mudarão também. Por exem­plo, durante o programa de atenção plena, você pode praticar a recepti­vidade e se tornará menos crítico. Você pode praticar a permanência no presente e passará a interpretar seus pensamentos de forma menos literal. Se olhar para si mesmo com generosidade, também terá mais empatia pelos outros. E, ao fazer todas essas coisas, uma sensação de entusiasmo, energia e equilíbrio surgirá como uma fonte de água límpida há muito esquecida.

Embora as práticas ocupem apenas vinte a trinta minutos de “tempo de relógio” a cada dia, os resultados podem ter um impacto em toda a sua vida. Você logo perceberá que, embora certo grau de comparação e julgamento seja necessário, nossa civilização dá valor excessivo a essas coisas. Muitas escolhas que fazemos no dia a dia são desnecessárias. Elas são impelidas por seu fluxo de pensamentos. Você não precisa se comparar aos outros. Não precisa comparar seu pa­drão de vida atual com uma visão fictícia de futuro ou uma lembrança romantizada do passado. Não precisa ficar acordado à noite avaliando o impacto que um comentário casual, feito durante uma reunião de tra­balho, causará em seu emprego. Apenas aceite a vida como ela é, e você se sentirá mais realizado e livre de preocupações. E quando precisar to­mar alguma atitude, a decisão mais sábia provavelmente surgirá em sua mente no momento em que você não estiver pensando no assunto.

Precisamos enfatizar outra vez que aceitação atenta não é resignação. Não é aceitar o inaceitável. Nem é uma desculpa para ser preguiçoso e não fazer nada com sua vida, seu tempo, seus talentos e seus dons inatos. (O trabalho significativo, seja remunerado ou não, é uma forma segura de promover a felicidade.) A atenção plena é uma “recuperação dos sentidos”, uma consciência que começa a vir à tona espontaneamen­te quando você reserva tempo para praticá-la. Ela permite que você ex­perimente o mundo pelos sentidos - com calma e sem espírito crítico. Proporciona uma grande sensação de perspectiva, que o ajuda a sentir o que é importante ou não.

No longo prazo, a atenção plena o encoraja a tratar a si mesmo e aos outros com compaixão. Isso o liberta da dor e da preocupação, e em seu lugar surge uma sensação de felicidade que se propaga à vida diária. Não é o tipo de felicidade que se dissipa à medida que você se torna imune às alegrias. Pelo contrário, é um estado permanente de contentamento que invade sua rotina.

Um dos aspectos mais espantosos da meditação da atenção plena é que você consegue ver seus efeitos positivos alterando o funcionamen­to cerebral. Avanços científicos recentes nos permitem ver que as áreas do cérebro associadas às emoções positivas - como felicidade, empatia e compaixão - se tornam mais fortes e ativas quando as pessoas meditam. As novas tecnologias de imagem conseguem mapear redes críticas do cérebro sendo ativadas, quase como se estivessem brilhando e vibrando com uma vida renovada. Com essa reenergização promovida pela me­ditação, a infelicidade, a ansiedade e o estresse começam a se dissolver, deixando uma sensação profunda de revigoramento. Mas você não pre­cisa passar anos meditando para constatar esses benefícios: cada minuto conta.

Pesquisas mostraram que já é possível sentir seus efeitos se você se dedicar à prática diária por um período de oito semanas.

Durante muitos anos acreditou-se que todos temos uma espécie de “termostato emocional”, que determina nosso grau de felicidade na vida. Presumivelmente, algumas pessoas teriam um temperamento feliz, en­quanto outras teriam um temperamento infeliz. Embora grandes acon­tecimentos, como a morte de um ente querido ou ganhar na loteria, possam alterar de forma significativa o nosso estado de humor, às vezes por semanas ou meses a fio, sempre se supôs que havia um ponto de referência ao qual retornaríamos. Esse ponto de referência emocional estaria codificado em nossos genes ou seria fixado na infância. Em ou­tras palavras: algumas pessoas nasciam felizes e outras não.

Anos atrás, porém, esse pressuposto foi abalado por Richard David­son, da Universidade de Wisconsin, e Jon Kabat-Zinn, da Faculdade de Medicina da Universidade de Massachusetts. Eles descobriram que a prática da atenção plena permitia às pessoas escaparem da atração gravitacional de seu ponto de referência emocional. O trabalho deles nos ofereceu a possibilidade extraordinária de alterar permanentemente nosso nível de felicidade.

Essa descoberta tem suas raízes no trabalho do Dr. Davidson sobre a indexação (ou mensuração) da felicidade de uma pessoa por meio do exame da atividade elétrica em diferentes partes do cérebro, usando sensores no couro cabeludo ou por meio de ressonância magnética. Ele descobriu que quando as pessoas estão emocionalmente perturba­das - zangadas, ansiosas ou deprimidas -, o córtex pré-frontal direito se ilumina mais do que a parte equivalente do cérebro situada à esquerda. Quando as pessoas estão num astral positivo - contentes, entusiasma­das, radiantes -, o córtex pré-frontal esquerdo se ilumina mais do que o direito. Essa pesquisa levou o Dr. Davidson a conceber um “índice de humor” baseado na relação entre a atividade elétrica nos cortices pré-frontais esquerdo e direito. Essa relação consegue prever seu estado de ânimo diário com grande precisão. É como dar uma espiada no termos­tato emocional - se a relação tende para a esquerda, é provável que você esteja feliz, contente e energizado. Esse é o sistema da “abordagem”. Se a relação tende para a direita, a probabilidade é de que você esteja mais sombrio, desanimado e sem energia. É o sistema da “fuga”.

Davidson e Kabat-Zinn decidiram estender o trabalho e examinar os efeitos da atenção plena nos termostatos emocionais de um grupo de trabalhadores de biotecnologia. Os voluntários praticaram a meditação da atenção plena por oito semanas. Então algo incrível aconteceu: eles não apenas ficaram menos ansiosos, mais contentes, mais energizados e mais envolvidos com seu trabalho, como também o índice de ativação do cérebro deles passou a tender para a esquerda. Surpreendentemente, o sistema da abordagem continuou operando mesmo quando eles fo­ram expostos a músicas melancólicas e a lembranças do passado que os deixavam tristes. A tristeza gerada nesses momentos deixou de ser vista como um inimigo e passou a ser encarada como algo amigável, passível de ser administrado. Ficou claro não só que a prática da atenção plena aumenta os níveis de felicidade (e reduz o estresse), como também que essa mudança se reflete na forma como o cérebro funciona. Isso sugere que a atenção plena tem efeitos positivos que criam raízes profundas no cérebro.

Outro benefício inesperado foi que o sistema imunológico dos vo­luntários se fortaleceu. Os pesquisadores ministraram uma injeção com o vírus da gripe nos participantes e depois mediram a concentração de anticorpos específicos que haviam sido produzidos por cada um. Aque­les cujo cérebro mostrava maior tendência ao sistema da abordagem tiveram o sistema de defesa mais estimulado.

Mas um trabalho ainda mais interessante estava por vir. A Dra. Sa­rah Lazar, do Hospital Geral de Massachusetts, descobriu que quando as pessoas continuam meditando por vários anos, essas mudanças po­sitivas alteram a estrutura física do cérebro. O termostato emocional é reiniciado - para melhor. Isso significa que, com o tempo, você terá mais tendência a se sentir feliz em vez de triste, despreocupado em vez de agressivo, energizado em vez de cansado e apático. Essa mudança nos circuitos cerebrais é mais pronunciada numa parte da superfície do cérebro conhecida como insula, que controla muitas das características centrais à nossa humanidade.

Numerosos testes clínicos mostram que esses efeitos positivos sobre o cérebro se traduzem em benefícios para a felicidade, o bem-estar e a saúde. Veja alguns exemplos a seguir.

Atenção plena e Reisiliência

Descobriu-se que a atenção plena aumenta a resiliência - ou seja, a capacidade de resistir aos golpes e reveses da vida - num grau conside­rável. Essa capacidade de resistência varia muito de pessoa para pessoa. Algumas se saem bem em desafios estressantes que intimidariam mui­tas outras, como bater altas metas de desempenho no trabalho, acampar no Polo Sul ou cuidar de três filhos, da casa e do emprego.

O que faz com que pessoas “resistentes” sejam capazes de enfrentar as adversidades enquanto as outras se desesperam diante delas? A Dra. Su­zanne Kobasa, da City University de Nova York, identificou três traços psicológicos envolvidos nesse processo: controle, compromisso e desa­fio. Outro psicólogo eminente. Dr. Aaron Antonovsky, também tentou definir os principais aspectos psicológicos que permitem que algumas pessoas suportem uma tensão extrema, enquanto outras não. Ele con­centrou seus estudos em sobreviventes do Holocausto e encontrou três traços que se combinam para gerar uma sensação de coerência: inteligibilidade, maneabilidade e significabilidade. Assim, as pessoas “fortes” acreditam que os acontecimentos têm um significado, que são capazes de manejar sua vida e que a situação é compreensível, ainda que pareça caótica e descontrolada.

De certa forma, todos os traços identificados por Kobasa e Anto­novsky definem nosso grau de resiliência. Em termos gerais, quanto mais forte for nossa tendência a essas características, maior será nossa capacidade de enfrentar as provações e adversidades da vida.

A equipe de Jon Kabat-Zinn, da Faculdade de Medicina da Univer­sidade de Massachusetts, decidiu testar se a meditação conseguia me­lhorar essa tendência e, portanto, aumentar a capacidade de resiliência das pessoas. Os resultados foram claros. Em geral, os participantes não apenas se sentiram mais felizes, mais energizados e menos estressa­dos, como também ganharam mais controle sobre sua vida. Descobri­ram que ela fazia sentido e que os desafios podiam ser vistos como oportunidades, não como ameaças. Outros estudos confirmaram essas descobertas.

Mas talvez a descoberta mais intrigante sobre o assunto seja que esses traços de personalidade não são imutáveis. Eles podem ser mudados para melhor em apenas oito semanas de treinamento em atenção ple­na. Essas transformações não devem ser subestimadas, pois têm uma enorme importância para nossa vida diária. A empatia, a compaixão e a serenidade são vitais para o nosso bem-estar, mas certo grau de força e resistência também é necessário. E a prática da atenção plena pode ter um papel crucial nesses aspectos da vida.

Os estudos realizados em laboratórios e clínicas do mundo inteiro es­tão mudando a maneira como os cientistas pensam sobre a mente e vêm aumentando a confiança das pessoas nos benefícios da atenção plena. Muitos praticantes contam que a meditação aumenta a alegria diária. Isso significa que mesmo as coisas mais simples podem voltar a ser cativantes.

Psicologia - Psicologia positiva
Meditação - Mindfulness, Atenção primária
3/24/2022 5:41:23 PM | Por Danny Penman, Mark Williams
Pensamentos automáticos e sua influência em nossas emoções

Aparentemente, Lucy era uma representante de vendas bem-suce­dida de uma rede de lojas de roupas. Mas ela estava se sentindo paralisada. Às três da tarde, olhando pela janela do escritório, estres­sada, exausta e totalmente indisposta, ela se perguntava: "Por que não consigo fazer meu trabalho direito? Por que não consigo me concentrar? O que há de errado comigo? Estou tão cansada! Nem consigo pensar direito...". Lucy vinha se punindo com esses pensamentos autocríticos constan­temente. Mais cedo, naquele dia, ela tivera uma conversa longa e ansiosa com a professora do jardim de infância sobre sua filha, Emily, que an­dava chorando quando era deixada na escola. Depois, telefonou para o bombeiro para saber por que não tinha ido consertar a descarga que­brada em sua casa. Agora fitava uma planilha, sentindo-se sem energia e mastigando um muffin de chocolate no lugar do almoço.

As exigências e tensões na vida de Lucy estavam piorando gradual­mente nos últimos meses. O trabalho se tornava cada vez mais estressante e começava a se estender até bem depois do horário do expediente. As noites haviam se tornado insones, os dias, mais sonolentos. Seu cor­po começou a doer. A vida perdeu a alegria. Seguir em frente era uma luta. Ela já havia se sentido assim antes, mas sempre fora uma situação temporária. Jamais imaginara que aquilo poderia se tornar um aspecto permanente de sua vida.

Ela vivia se perguntando: O que aconteceu com a minha vida? Por que me sinto tão exausta? Eu deveria estar feliz. Eu costumava ser feliz. Para onde foi minha alegria?

A vida de Lucy girava em torno de excesso de trabalho, infelicidade, insatisfação e estresse. Ela fora privada de sua energia mental e física e se sentia perdida. Queria voltar a ser feliz e estar em paz consigo mesma, mas não tinha ideia de como chegar lá. Sua frustração não era grave a ponto de justificar uma ida ao médico, mas era suficiente para solapar o seu prazer de viver. Ela não vivia, apenas sobrevivia.

A história de Lucy não é um caso isolado. Ela é uma das milhões de pessoas que não estão deprimidas nem ansiosas na acepção médica - mas também não são felizes de verdade. O humor de todos nós passa por altos e baixos. Às vezes nosso estado de espírito muda de uma hora para outra, sem nem sabermos por quê: num momento estamos felizes, contentes e despreocupados, então algo sutil acontece e começamos a ficar estressados. Pensamos em nossas dificuldades, em todas as coisas que precisamos fazer, na falta de tempo para resolver tudo. O ritmo das exigências é cada vez mais implacável. Nesse estado, ficamos cansados o tempo todo, de forma que nem uma boa noite de sono nos revigora. E nos perguntamos: Como isso foi acontecer? Por que ficamos assim? Talvez não tenha havido nenhuma grande mudança em nossa vida: não perdemos um amigo, não nos endividamos de forma descontrolada. Nada mudou, mas de alguma forma a alegria desapareceu, sendo subs­tituída por uma espécie de aflição generalizada.

Na maior parte do tempo, as pessoas conseguem escapar dessa espiral descendente. Esses períodos difíceis costumam passar. No entanto, às vezes podem perdurar e nos levar para o fundo do poço. No caso de Lucy, a tristeza e a frustração duraram meses, sem qualquer razão apa­rente. Nas situações mais graves, a pessoa pode ser acometida por uma crise séria de ansiedade ou de depressão clínica.

Embora períodos persistentes de aflição e exaustão geralmente pare­çam surgir do nada, existem processos ocorrendo no fundo da mente que só se tornaram conhecidos na década de 1990. E essa descoberta trouxe a percepção de que podemos nos libertar das preocupações, da infelicidade, da ansiedade, do estresse, da exaustão e até da depressão.

Se você perguntasse a Lucy como estava se sentindo naquela tarde, ela teria dito que estava “exausta” ou “tensa”. À primeira vista, essas sen­sações parecem afirmações factuais, mas se olhasse para dentro de si mesma com mais atenção, Lucy teria percebido que não havia algo es­pecífico que pudesse ser rotulado de “exaustão” ou “tensão”. Ambas as emoções eram, na verdade, feixes de pensamentos, sentimentos, sensa­ções físicas e impulsos (como o desejo de gritar ou de sair correndo da sala). As emoções são assim: uma “cor de fundo” criada quando a mente funde pensamentos, sentimentos, impulsos e sensações físicas para evo­car um tema norteador ou estado mental geral. Todos os elementos que formam as emoções interagem entre si e podem intensificar o estado de humor geral. É uma dança intricada, cheia de ligações sutis que só agora começamos a entender.

Tomemos os pensamentos como exemplo. Algumas décadas atrás, acreditava-se que os pensamentos conseguiam mudar nosso estado de espírito e nossas emoções, mas a partir dos anos 1980 descobriu-se que o contrário também pode acontecer: nosso estado de espírito pode mudar nossos pensamentos. Na prática, isso significa que mesmo os momentos passageiros de tristeza podem acabar se autoalimentando para criar pensamentos negativos, definindo a maneira como você vê e interpreta o mundo. Assim como um céu nublado pode fazê-lo se sen­tir melancólico, uma pequena irritação pode trazer à tona lembranças ruins, aprofundando ainda mais seu nervosismo. O mesmo vale para outras emoções: se você se sente estressado, esse estado pode criar ainda mais estresse. Isso também acontece com a ansiedade, o medo, a raiva, e com emoções “positivas” como amor, felicidade, compaixão e empatia.

Mas não são apenas pensamentos e estados de ânimo que se alimen­tam mutuamente e destroem o bem-estar - o corpo também se envolve nesse processo. Isso acontece porque a mente não existe de forma isolada. Ela é uma parte fundamental do corpo, e ambos compartilham informa­ções emocionais entre si o tempo todo. Na verdade, grande parte do que o corpo sente é influenciado pelos pensamentos e pelas emoções, e tudo o que pensamos é influenciado pelo que está ocorrendo no corpo. Pesquisas recentes mostram que nossa perspectiva de vida pode ser alterada por mínimas mudanças corporais: atitudes sutis como fechar a cara, sorrir ou corrigir a postura podem ter um impacto enorme em nosso estado de espírito e em nossos pensamentos.

Para compreender melhor o poder da interação entre o corpo e o es­tado de humor, os psicólogos Fritz Strack, Leonard Martin e Sabine Stepper1 pediram a um grupo de pessoas que assistisse a desenhos ani­mados e depois avaliasse quão engraçados eram. Alguns voluntários tiveram que colocar um lápis entre os lábios, sendo forçados a franzi­dos e fazer uma cara triste. Outros assistiram aos desenhos com o lápis entre os dentes, simulando um sorriso. Os resultados foram impres­sionantes: aqueles forçados a sorrir acharam os desenhos bem mais engraçados do que aqueles obrigados a fechar a cara. Todos sabemos que sorrir demonstra que estamos felizes, mas, convenhamos: é sur­preendente descobrir que o ato de sorrir pode ele próprio torná-lo feliz. Esse é um exemplo perfeito de como são estreitos os vínculos entre a mente e o corpo.

Sorrir também é contagioso. Quando você vê alguém sorrindo, quase inevitavelmente sorri de volta. Pense nisto: o simples ato de sorrir pode deixá-lo contente (ainda que seja um sorriso forçado). E, se você sorrir, os outros sorrirão de volta, o que reforça sua felicidade. É um círculo virtuoso.

Mas também existe um círculo vicioso, que atua na direção oposta. Ao pressentirmos uma ameaça, ficamos tensos, prontos para lutar ou fugir. Essa reação de “luta ou fuga” não é consciente: é controlada por uma das partes mais “primitivas” do cérebro e, por isso, ele pode ser um pouco simplista na maneira de interpretar o perigo. O cérebro não faz distinção entre uma ameaça externa (como um tigre) e uma interna (como uma lembrança incômoda ou uma preocupação futura), tratan­do as duas como um perigo equivalente. Quando uma ameaça é detecta­da - seja real ou imaginária -, o corpo fica tenso e se prepara para entrar em ação. Isso pode se manifestar de várias formas, como rosto franzido, frio na barriga ou tensão nos ombros. A mente lê a reação do corpo e entende que está diante de uma ameaça (lembra como uma cara amar­rada pode fazê-lo se sentir triste?), o que faz o corpo tensionar ainda mais. O círculo vicioso começou.

Na prática, isso significa que, se você está se sentindo um pouco es­tressado ou vulnerável, uma pequena mudança emocional pode acabar arruinando seu dia - ou até mesmo lançá-lo num período prolongado de insatisfação ou preocupação. Essas mudanças costumam surgir do nada, deixando-o sem energia e se perguntando por que está tão infeliz.

Oliver Burkeman, colunista do jornal The Guardian, descobriu isso sozinho e escreveu sobre como pequenas sensações corporais se retroalimentavam para lançá-lo em uma espiral emocional descendente:

Geralmente sou feliz, mas de vez em quando sou atingido por um estado de infelicidade e ansiedade que se intensifica muito rápido. Nos piores dias, sou capaz de passar horas perdido em divagações angustiantes, refletindo sobre as grandes mudanças que preciso fazer em minha vida. De repente, percebo que me esqueci de almoçar. Como um sanduíche de atum e o mau humor desapa­rece. No entanto, minha primeira reação à sensação ruim nunca é pensar que estou com fome. Aparentemente, meu cérebro prefere se chatear com reflexões sobre a falta de sentido da existência a me direcionar até a geladeira.

Como Oliver Burkeman constatou em sua própria experiência, quase sempre essas “divagações angustiantes” se desfazem rápido. Algo atrai nosso olhar e nos faz sorrir - um amigo telefona, encontramos um bom filme passando na TV, tomamos uma deliciosa xícara de chocolate quente ou decidimos ir para a cama cedo. Em geral, toda vez que somos atingidos pelos turbilhões da vida, algo de bom acontece para restabe­lecer o equilíbrio. Mas nem sempre é assim. Às vezes o peso de nossa história entra em ação e adiciona uma carga emocional extra, já que nossas lembranças têm um impacto poderoso em nossos pensamentos, sentimentos, impulsos e, em última análise, em nosso corpo.

Vamos voltar ao exemplo de Lucy. Embora se descreva como uma pessoa “ambiciosa” e “relativamente bem-sucedida”, ela tem consciên­cia de que algo fundamental está faltando em sua vida. Ela conquistou quase tudo o que queria, por isso acha estranho que não se sinta feliz, contente e em paz consigo mesma. Constantemente repete a frase “Eu deveria estar feliz”, como se dizer isso fosse suficiente para expulsar a tristeza.

Os surtos de infelicidade de Lucy começaram na adolescência. Seus pais se separaram quando ela tinha 17 anos e a casa da família precisou ser vendida, forçando seus pais a se mudarem para locais não muito adequados. Lucy surpreendeu a todos por segurar a barra. É claro que no início ficou arrasada com o divórcio, mas logo aprendeu a tirar o foco dos problemas se empenhando nos estudos. Essa foi sua tábua de salvação. Tirou boas notas, entrou na faculdade e se formou com uma qualificação satisfatória. Seu primeiro emprego foi como trainee numa loja de roupas. Ao longo dos anos, foi subindo na hierarquia da empresa, até chegar a chefe de uma pequena equipe de representantes de vendas. Aos poucos, o trabalho dominou a vida de Lucy, deixando-a cada vez mais sem tempo para si mesma. Aconteceu tão lentamente que ela mal percebeu que deixava sua vida de lado. Ocorreram coisas boas também, é claro, como o casamento com Tom e o nascimento das duas filhas. Ela adorava sua família, mas não conseguia se livrar da sensação de que apenas algumas pessoas tinham direito de viver de forma plena. Sua impressão era de estar caminhando em areia movediça.

Essa areia movediça era sua rotina, seu estresse, seus padrões de pen­samentos e seus sentimentos do passado. Embora por fora Lucy pare­cesse uma pessoa de sucesso, por dentro ela morria de medo do fracas­so. Esse medo fazia com que qualquer mau humor passageiro desenca­deasse lembranças dolorosas, enquanto seu crítico interno dizia que era vergonhoso exibir tais fraquezas. Sensações vagas de insegurança aca­bavam despertando uma sucessão de sentimentos negativos do passado que pareciam bem reais e rapidamente assumiam vida própria, ativando outra onda de emoções nocivas.

Como Lucy atestará, é raro experimentarmos a tensão ou a tristeza isoladamente - raiva, irritabilidade, amargura, ciúmes e ódio às vezes estão ligados em um novelo intricado. Esses sentimentos podem até ser dirigidos aos outros, mas na maioria das vezes são voltados para nós mesmos, ainda que não percebamos. Ao longo da vida, esses emaranha­dos emocionais podem se tornar mais associados aos pensamentos, aos sentimentos, às sensações físicas e aos comportamentos. É assim que o passado consegue ter um efeito tão difuso no presente. Se ativamos uma chave emocional, as outras são ativadas em seguida (o mesmo ocor­re com as sensações físicas, como a dor). Tudo isso pode desencadear padrões de pensamento, comportamento e sentimentos que sabemos que são nocivos, mas que simplesmente não conseguimos evitar. E que, quando combinados, são capazes de transformar qualquer contratempo em uma tempestade emocional.

Aos poucos, o acionamento repetitivo de pensamentos e humores ne­gativos começa a abrir sulcos na mente. Com o tempo, esses sulcos se tornam mais profundos, fazendo com que os pensamentos negativos, a autocrítica, a melancolia e o medo se instalem com mais facilidade e se dissipem com mais esforço. A conseqüência disso é que os períodos prolongados de fragilidade podem ser desencadeados por coisas cada vez mais banais, como uma chateação momentânea ou uma baixa de energia - tão banais que às vezes nem as reconhecemos. Com frequên­cia, os pensamentos negativos aparecem disfarçados de perguntas duras que fazemos a nós mesmos: Por que estou tão infeliz? O que está aconte­cendo comigo? Onde será que errei? Onde isso vai acabar?

Os vínculos estreitos entre os diversos aspectos da emoção, que o tem­po todo recorrem ao passado, podem explicar por que um sentimento passageiro pode ter um efeito significativo sobre o estado de humor. Às vezes esses sentimentos chegam e partem tão rápido quanto uma rajada de vento. Outras vezes, no entanto, o estresse, a fadiga e o mau humor ficam grudados como adesivos em nossa mente, e nada parece ser capaz de arrancá-los dali. A impressão que se tem é que é justamente isso que está ocorrendo: a mente é ativada para entrar em alerta máximo, mas depois não consegue ser desativada, como deveria acontecer.

Uma boa forma de ilustrar esse processo é comparar a maneira como humanos e animais reagem diante do perigo. Tente se lembrar do últi­mo documentário sobre a vida selvagem a que assistiu na TV. Deve ter aparecido um rebanho de gazelas sendo caçado por um leopardo na savana africana. Aterrorizados, os animais correram feito loucos até que o leopardo capturou um deles ou desistiu da caçada naquele dia. Uma vez passado o perigo, as gazelas voltaram a pastar tranquilamente. Algo no cérebro delas foi acionado quando avistaram o leopardo e depois desativado quando a ameaça se dissipou.

Mas a mente humana é diferente, sobretudo quando se trata de amea­ças “intangíveis” capazes de desencadear ansiedade, estresse, preocupa­ção ou irritabilidade. Quando nos preocupamos ou tememos alguma coisa - seja ela real ou imaginária - nossas reações de luta ou fuga entram em ação. Mas aí algo mais ocorre: a mente começa a percor­rer nossas lembranças em busca de algo que explique por que nos sen­timos daquele jeito. Assim, se nos sentimos tensos ou em perigo, nossa mente desenterra memórias de ocasiões passadas em que nos sentimos ameaçados e depois cria cenários do que poderá ocorrer no futuro se não conseguirmos explicar o que está acontecendo agora. O resultado é que os sinais de alerta do cérebro são ativados não apenas pelo perigo atual, mas por ameaças passadas e preocupações futuras. Tal processo se dá de forma instantânea, sem que percebamos.

Estudos recentes feitos a partir de tomografias do cérebro confirmam que pessoas que sentem dificuldade de viver o presente e têm rotinas muito agitadas possuem uma amígdala cerebral (a parte primitiva do cérebro envolvida no instinto de luta ou fuga) em “alerta máximo” o tempo todo.2 Assim, quando trazemos à tona lembranças de ameaças e perdas antigas e as juntamos ao “perigo” atual, nosso mecanismo de luta ou fuga não é desativado quando a ameaça passa. Ao contrário das gazelas, não paramos de correr.

Então, a forma como reagimos pode transformar emoções temporá­rias e não problemáticas em dores persistentes e incômodas. Em suma, a mente pode acabar agravando a situação. Isso vale para muitos outros sentimentos do dia a dia. Eis um exemplo:

Enquanto está lendo este livro, veja se consegue perceber qualquer sinal de fadiga em seu corpo. Passe um momento observando-o a fun­do. Depois que tiver se conscientizado de seu cansaço, faça a si mesmo as seguintes perguntas: Por que estou me sentindo tão exausto?O que fiz de errado? O que essa sensação revela sobre mim? O que acontecerá se eu não conseguir me livrar dessa fadiga?

Reflita sobre essas questões por um tempo. Deixe-as ecoar em sua mente. Por que estou tão cansado? O que aconteceu comigo? O que vou fazer se permanecer assim?

Como se sente agora? Provavelmente pior. Acontece com todo mun­do, porque aliado a essas perguntas existe um desejo de se livrar da fadi­ga e de descobrir suas causas e conseqüências.3 O impulso de explicar e expulsar a exaustão deixou você mais exausto.

O mesmo vale para uma série de sentimentos, como a infelicidade, a ansiedade e o estresse. Quando estamos infelizes, é natural tentarmos descobrir a razão por nos sentirmos assim e procurarmos um meio de resolver esse “problema”. Mas tensão, infelicidade ou exaustão não são problemas que possam ser resolvidos. São emoções. Refletem estados da mente e do corpo. Como tais, não podem ser resolvidas - apenas sentidas. Se você as percebeu e abandonou a tendência de explicá-las ou resolvê-las, terá mais chances de vê-las desaparecer sozinhas, como a névoa numa manhã de primavera.

Isso lhe soa estranho? Deixe-me explicar melhor.

Quando você tenta resolver o “problema” da infelicidade (ou de qual­ quer outra emoção “negativa”), mobiliza uma das ferramentas mais poderosas da mente: o pensamento crítico racional. Funciona assim: você se vê num lugar (infeliz) e sabe onde deseja estar (feliz). Sua mente analisa o hiato entre os dois polos e tenta descobrir a melhor forma de transpô-lo. Para isso, usa seu modo Atuante (assim chamado porque é eficiente para resolver problemas e realizar tarefas), que reduz progres­sivamente o hiato entre onde você está e onde deseja chegar. Ele faz isso fragmentando o problema, resolvendo cada uma das partes e depois ve­rificando se isso o ajudou a se aproximar de seu objetivo. Esse processo é instantâneo e nem nos damos conta dele. É uma forma incrivelmente poderosa de resolver problemas: é assim que nos orientamos nas cidades desconhecidas, dirigimos carros e organizamos cronogramas de trabalho frenéticos. Numa escala maior, foi como os povos antigos construí­ram pirâmides e navegaram pelo mundo em veleiros primitivos.

Parece perfeitamente natural, portanto, aplicar essa abordagem para resolver o “problema” da infelicidade. Mas, na verdade, é a pior coisa que se pode fazer, pois requer que você se concentre no hiato entre como está e como gostaria de estar. Então você faz perguntas como: O que há de errado comigo? Onde foi que errei? Por que cometo sempre os mesmos erros? Esses questionamentos, além de duros e autodestrutivos, exigem que a mente forneça indícios para explicar seu descontentamento. E a mente é de fato brilhante em fornecer tais indícios.

Imagine-se passeando num belo parque em um dia de primavera. Você está feliz, mas, por alguma razão desconhecida, uma centelha de tristeza surge em sua mente. Pode ser por causa da fome, já que você não almo­çou, ou talvez porque você tenha se lembrado sem querer de alguma coisa incômoda. Após alguns minutos, você começa a se sentir um pouco aba­tido. Assim que percebe seu desânimo, pensa: O dia está lindo. O parque é maravilhoso. Gostaria de me sentir mais contente do que estou agora.

Repita: Gostaria de me sentir mais contente.

Como se sente depois disso? Provavelmente, ainda mais triste. Você se concentrou no hiato entre como se sente e como quer se sentir. E concentrar-se no hiato o realçou. A mente vê a distância entre os dois estados como um problema a ser resolvido. Essa abordagem é desastro­sa quando se trata das emoções, devido à interligação complexa entre pensamentos, emoções e sensações físicas. Todos se alimentam mutua­mente e podem conduzir sua mente em direções perturbadoras. Em pouco tempo, você se vê sufocado pelos próprios pensamentos. Você começa a analisar demais a situação, a remoer o sentimento, a se culpar por não se sentir feliz.

Seu estado de ânimo piora. Seu corpo fica tenso, seu rosto se franze e o desânimo se instala. Algumas dores podem surgir. Essas sensações realimentam sua mente, que se sente mais ameaçada. Seu astral pode cair a tal ponto que você deixa de aproveitar o passeio no parque e não presta mais atenção na beleza do dia.

Claro que ninguém fica remoendo os problemas porque acredita que é uma forma nociva de pensar. As pessoas acreditam que, preocupando-se o suficiente com sua infelicidade, acabarão encontrando uma solu­ção para ela. Mas as pesquisas provam o oposto: na verdade, remoer pensamentos reduz nossa capacidade de solucionar problemas, e é um artifício absolutamente inútil para lidar com dificuldades emocionais.

Os sinais são claros: remoer pensamentos é o problema, não a solução.

Escapando do círculo vicioso

Não dá para deter o fluxo de lembranças infelizes, monólogos inter­nos negativos e outras formas de pensamento prejudiciais - mas você pode evitar o que acontece a seguir. Como já dissemos, você pode im­]pedir que o círculo vicioso se autoalimente e desencadeie a próxima es­piral de pensamentos negativos. E pode fazer isso experimentando um jeito novo de se relacionar consigo mesmo e com o mundo. Se você pára e reflete por um momento, a mente não apenas pensa: ela tem consciência de que está pensando. Essa forma de pura consciência permite que você veja o mundo de outra maneira, de um ponto de vista distanciado, sem sofrer a interferência de seus pensamentos, sentimentos e emoções. É como estar numa montanha alta - um ponto de observação - da qual você pode ver tudo por quilômetros a sua volta.

A pura consciência transcende o pensamento. Permite que você cale a mente tagarela e iniba seus impulsos e emoções reativas. Possibilita que você olhe para o mundo com os olhos abertos. E quando faz isso, a sensação de contentamento reaparece em sua vida.

 

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Estratégias para melhorar a vida

A seguir, uma lista de dicas extras para aumentar as experiências emocionais prazerosas, a felicidade e o bem-estar em sua vida. Embora classifiquemos essas sugestões entre os domínios importantes da vida, como fazemos na maioria dos capítulos, não pretendemos sugerir que todos os aspectos dos sentimentos e emoções positivos e da felicidade estão relacionados a domínios específicos. O que acreditamos, contudo, é que alguns aspectos de uma vida com prazer e com sentido podem ser encontrados em cada um dos domínios da vida.

Amor

  • Cerque-se de pessoas felizes. O afeto e as emoções positivos dessas pessoas o afetam e ajudam nos tempos ruins.
  • Diga aos que estão perto de você que você os ama. Sua expressão sincera de amor irá fortalecer seu relacionamento e induzir sentimentos positivos nos outros.

Trabalho

  • Comece uma reunião com comentários positivos sobre as contribuições dos colegas. Isso pode gerar sentimentos positivos que produzem criatividade e decisões acerta­das.
  • Traga para o trabalho ou para as aulas “presentinhos” feitos em casa. Isso pode gerar interações produtivas.

Atividade lúdica

  • Realize suas atividades lúdicas favoritas do passado - aquelas que lhe trouxeram alegria quando criança ainda podem fazê-lo hoje em dia.
  • Participe de atividades breves de relaxamento para fazer pequenas pausas no seu dia. O relaxamento pode tornar sua mente e seu corpo mais sensíveis aos momentos de prazer do dia-a-dia.
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Comportamento - Desequilíbrio psicológico, 
12/8/2021 12:36:12 PM | Por Robert Biswas-Diener, Todd B. Kashdan
Por que é bom não estar bem

No primeiro tempo de um jogo de basquete profissional, quando Pat Riley era o treinador do Los Angeles Lakers, o time estava totalmente desconcentrado. Os jogadores ficavam olhando para as meninas da torcida, fazendo piadas, praticamente ignorando o que se passava na quadra. O único a manter a cabeça no lugar foi o astro do basquete Kareem Abdul-Jabbar. No inter­ valo, Riley simulou um ataque de raiva, que começou com gritos e culminou com uma bandeja cheia de copos de água derrubada. O único atingido foi Kareem, que ficou encharcado. Essa cena le­vou os jogadores a se sentirem culpados pelo mau comportamen­to que fez Kareem sofrer injustamente a ira do treinador. A partir daí eles se compenetraram, superaram a diferença de 24 pontos e venceram o jogo. Acontece que, desde o começo, Riley teve a in­tenção de jogar a água em Kareem, e a estratégia funcionou.

Alguém acha que o time teria jogado melhor se, no intervalo, Riley tivesse ido para o vestiário com a intenção de criar uma atmosfera de alegria, calma e contentamento? Naquele momen­to, a raiva era exatamente o que a situação exigia. Como vimos pela reação dos jogadores, as emoções negativas podem ser alta­mente motivadoras. Se você não se abrir para aceitar sentimentos negativos, poderá perder ótimas oportunidades de usar alguns dos [87] instrumentos mais úteis na vida. Se cair na tentação de procurar sempre algo positivo em que se agarrar, na esperança de eliminar, dissimular ou esconder emoções negativas, vai sair perdendo no jogo da vida. Ao evitar as emoções negativas, você estará, invo­luntariamente, sufocando a felicidade, a fortaleza de caráter, a curiosidade, a maturidade, a sabedoria e o crescimento pessoal. Se você abafar as emoções negativas, abafa as positivas também. Lembra-se dos norte-americanos deprimidos que não riram do filme cômico?

Por que o mau pode ser mais potente que o bom

Roy Baumeister e seus colegas da Universidade Estadual da Fló­rida publicaram um artigo intitulado “Bad is Stronger thatn Good” [O mau é mais forte que o bom].1 É sse título ousado sugere que os psicólogos tinham dado um jeito de medir o bom e o mau no mun­do, e o resultado foi a favor do lado mau. Na verdade, o artigo afir­ma que temos uma reação mais forte aos eventos negativos da vida do que aos eventos positivos. Tomemos apenas um exemplo: nu­ma pesquisa com adultos norte-americanos escolhidos aleato­riamente e mais ou menos como nós, constatou-se que o fato de terem passado um dia muito agradável não influenciava a quali­dade do dia seguinte. Por outro lado, um dia péssimo se refletia no dia seguinte logo ao acordar (cambaleando), no café da manhã (achando tudo horrível), indo para o trabalho (fechando todos os carros na via expressa para ganhar dois minutos). O mesmo pa­drão surge diversas vezes na pesquisa psicológica:[88]

  • O sexo bom no casamento está relacionado a cerca de 20% da diferença de satisfação marital entre marido e mulher.2 Quando o sexo não é bom, a variação sobe para 50% a 75%.
  • Perguntaram a crianças em idade escolar se algum colega de classe era um “amigo indesejável”.3 Se punham alguém na lista, justificavam dizendo que o colega não era bom nos esportes ou no dever de casa, entre outros mil defeitos. Mas na lista de “amigos desejáveis” não vinha ao caso se era atlé­tico, estudioso ou bonito.
  • As pessoas têm uma reação mais forte a cheiros desagradá­veis - franzindo o nariz por mais tempo - do que a odores agradáveis, que lhes põe um breve sorriso nos lábios.4

A equipe de Baumeister relatou um estudo abrangente e mui­to interessante que mostra que eventos, experiências, relaciona­mentos e estados psicológicos negativos têm um peso muito maior em nossa sensibilidade do que os positivos. Você pode questionar essa conclusão aparentemente pessimista, mas lembremos que a negatividade é nosso direito evolucionário inato.5 Avaliações ne­gativas são essenciais à sobrevivência (a folha amarga é também venenosa), e a maior verdade disso é o caso das emoções negativas. As emoções são como um sistema de rastreamento das experiên­cias, e fornecem um rápido sinal mental de aprovação ou desapro­vação para aceitar ou recusar uma determinada situação.

É fácil ver que um breve desentendimento com seu parceiro permanece mais na lembrança do que um doce beijo de despedida de manhã, mas e os estados desagradáveis, como a frustração e a decepção? São sentidos com maior intensidade do que seus pri­mos felizes - o entusiasmo e a satisfação? Veja isso como uma porta aberta para refletir sobre as emoções negativas. Pare um [89] momento e escreva todas as palavras que significam emoções ne­gativas que lhe vierem à mente. Depois, escreva todas as que sig­nificam emoções positivas. Provavelmente, sua primeira lista é mais longa que a segunda. Isso pode ser porque as palavras nega­tivas têm um significado mais específico do que as positivas (tente definir amor e raiva ou feliz e medo).6 Pesquisadores interessados em saber como as pessoas se lembram dos eventos emocionais monitoraram estados de espírito de adultos no dia a dia, e depois pediram que se lembrassem da frequência e intensidade de suas emoções durante as duas semanas do estudo.7

Como se pode ima­ginar, as pessoas tiveram mais propensão a se lembrar dos eventos intensos, tanto positivos como negativos. Mas é interessante notar que subestimaram a frequência das emoções positivas, e não tive­ram dificuldade em recordar os eventos negativos. Temos muito mais técnicas para reduzir, eliminar e tolerar emoções negativas do que para destacar as positivas.

Pense na última vez em que você precisou falar com um serviço de atendimento ao cliente. Talvez estivesse querendo marcar uma consulta médica e havia poucos horários disponíveis, ou tentando conseguir isenção de juros de um pagamento atrasado do cartão de crédito. Ou talvez estivesse convencendo uma atendente da companhia aérea a dar um jeitinho de lhe conseguir um lugar me­lhor no avião. Você se lembra de como se expressou? Falou num tom simpático e educado? Ou levantou a voz e falou com agressi­vidade? Supomos que você seja uma pessoa bem-educada e tenha escolhido a forma gentil. Difícil de engolir - pelo menos para a maioria de nós - é que frequentemente os arrogantes e grosseirões conseguem o que querem.

Personalidades irritadiças, embora desagradáveis, podem ser tremendamente eficientes. A agilidade psicológica que defendemos [90] aqui pode expandir seu repertório para lhe dar acesso a abor­dagens mais duras, mais diretas, e às vezes mais eficazes. Você provavelmente evita essa estratégia porque acha que ser negativo é... negativo. Pode pensar que as pessoas agressivas, hostis ou francamente ruins são idiotas, e não quer fazer parte dessa turma. A boa notícia é que há toda uma gama de negatividade - negatividade benéfica, veja bem - que nada tem a ver com idiotice.

Emoções negativas também podem ajudar a se concentrar na situação em curso. Quando você pega a furadeira para fazer um furo na parede, deve prestar atenção no local do furo e também na posição da sua mão. A ansiedade associada ao risco de erro ajuda a fazer o furo no lugar exato. (Cortar um bolo de aniversário com uma faca de plástico é uma experiência muito diferente, em que um método “também serve” de fato também serve.) Uma pesquisa de Kate Harkness, da Universidade de Queens, mostra que pessoas com propensão a estados depressivos também tendem a prestar mais atenção em detalhes.8 Isso é verdade, particularmente em se tratando de expressões faciais. Indivíduos alegres e expansivos veem os traços em geral - um nariz, dois olhos, e talvez as sobran­celhas estejam franzidas. No estudo de Harkness, os menos exu­berantes tinham olhos de águia para expressões faciais, captando o menor tremor dos lábios, o mais leve movimento dos olhos. É por isso que - como você provavelmente já terá notado -, quan­do está brigando com a pessoa amada (um evento negativo), você “lê” as mínimas mudanças na atitude dela, coisas que jamais no­taria quando tudo está bem. A questão é: se as pessoas felizes pas­sam por cima das minúcias, e se isso conduz a interações mais confortáveis, não devemos nos satisfazer com “está bom assim”? Não. Você prefere contratar um advogado alegre e bonachão, em vez de um ranzinza, que identifica as menores falhas num contra­to? Nós também não.[91]

O clima das salas de controle de tráfego aéreo tende a ser ne­gativo. Isso se deve, em parte, ao fato de os controladores terem plena consciência de sua responsabilidade pela segurança, e qual­ quer erro pode ser fatal. Na extremidade menos grave do espetro, os erros podem causar atrasos e complicações logísticas, e no ou­tro extremo o custo pode chegar a dezenas de milhões de dólares e à morte de centenas de pessoas. O trabalho exige muita atenção aos detalhes. Os pontinhos bipando na tela do radar são aeronaves, cada uma com sua identificação, altitude, velocidade e plano de voo. Emoções negativas, como ansiedade e suspeição, podem agir como um funil estreitando os olhos da mente para detalhes im­portantes. No controle de tráfego aéreo, não há lugar para “tam­bém serve”. Em consonância com o que vimos aqui, enquanto tudo funciona bem ninguém nota. As pessoas só voltam sua aten­ção para o controle aéreo quando há um desastre.

Greg Petto, controlador de tráfego aéreo em Louisville, Ken­tucky, nos contou que sua torre é responsável por 230 quilômetros quadrados de tráfego aéreo entre o chão e uma altitude de três mil metros. É um trabalho estressante, em que aviões que vão chegan­do a uma distância de cinco quilômetros um do outro ficam peri­gosamente próximos. Petto compara o radar a um dojo, nome dado a salas de treinamento de artes marciais japonesas. Os controla­dores orientam setecentos voos por dia, e o maior movimento é durante a noite, quando os jatos do correio expresso, FedEx, che­gam em grande número. Perguntamos a ele se, sabendo que os aviões da FedEx estavam transportando carga, e não passageiros, a tensão na sala de controle era menor que durante o dia.

- Para ser franco - ele respondeu -, preciso pensar que cada ponto na tela é um avião. Se eu parasse para pensar o que está se passando lá no céu, ficaria maluco. E acrescentou: - Mas é muito [92] bom alinhar todos os aviões na distância exata e no tempo exato. É muito bom mesmo. - Apesar de se orgulhar do trabalho, Petto é o primeiro a admitir que há alguma negatividade entre os pró­prios controladores. - Eles ficam malcriados ou competitivos quando a coisa aperta. A gente lida com isso implicando uns com os outros, ou indo para casa rezar, ou beber, dependendo da ten­dência cultural.

Aqui é importante fazer uma pausa para frisar que muitas pessoas cometem um erro enorme, muito comum, quando se trata de emoções negativas.

Elas separam a experiência de sentimentos negativos da expressão de sentimentos negativos. Muitas pessoas com quem conversamos aceitam rapidamente que estar mal é uma experiência psicológica válida, e até mesmo inevitável. Por outro lado, expressar frustração, ou muita tristeza, é um horror! É como se tivéssemos que ser computadores, cujos processos in­ternos estivessem escondidos e separados do que aparece na tela. Essa atitude existe em vários graus em nossa cultura; faz parte da ideia de que é mais fácil viver numa sociedade de pessoas sorri­dentes do que coexistir com gente que esbraveja e chora. Não se pode ignorar que a expressão emocional tem razões para existir. A expressão emocional é um meio importante de se comunicar com os outros. Um cenho franzido, um olhar carrancudo, avisa aos outros que se afastem porque não estamos de bom humor (e às vezes não estamos mesmo de bom humor). Um grito de medo tem tamanho efeito contagiante que quem está por perto também sente o aumento da adrenalina e olha nervosamente em torno. A expressão de sentimentos, inclusive negativos, é uma parte ne­cessária da experiência emocional humana. [93]

Se as emoções negativas são tão proveitosas, por que não gostamos delas? 

Pare um momento para pensar: quanto você pagaria para não pre­cisar repetir uma palestra em que as pessoas não riam, não sorriam e não paravam de se remexer na cadeira? Pense numa ocasião em que você infernizou uma pessoa inocente por causa de sua própria insegurança: quanto você pagaria para não repetir essa atitude vergonhosa? Do outro lado da moeda: quanto pagaria para reviver a emoção do primeiro encontro com seu/sua atual marido/esposa/parceiro/parceira/amante? Pense na melhor massagem que você teve na vida: quanto você pagaria para ter uma igualmente relaxante neste momento?

O dr. Hi Po Bobo Lau, da Universidade de Hong Kong, e sua equipe colocaram essas mesmas questões numa pesquisa.10 Imagi­ne-se no invejável cenário dos participantes dessa pesquisa. Você recebe duzentos dólares para alterar sua experiência psicológica de modo que sua vida se aproxime do ideal. Pense numa situação específica em que você se sentiu muito feliz. Quantos desses du­zentos dólares você pagaria para recriar esse sentimento? Se você já decidiu quantos dólares exatamente, vamos passar para outra emoção positiva. Calma e tranqüilidade? Animação? Muito bem. Agora vamos a emoções negativas. Pense numa situação que lhe causou muito remorso. Quantos dos duzentos dólares você paga­ria para evitar ter esse sentimento novamente? E medo? Vergonha? Estamos dizendo que determine a quantia exata para cada um dos sentimentos. E agora você já pode imaginar que, para os partici­pantes da pesquisa, evitar o sofrimento valia mais do que comprar felicidade. Vejamos a cotação dos participantes da pesquisa do dr. Lau, detalhada até os centavos de dólar: [94]

  • $44,30 por calma e tranqüilidade;
  • $62,80 por animação;
  • $79,06 por felicidade;
  • $83,27 para evitar o medo;
  • $92,80 para evitar a tristeza;
  • $99,81 para evitar a vergonha;
  • $106,26 para evitar o remorso.

Apenas um sentimento foi considerado mais valioso do que evitar o remorso: o amor. Felicidade, animação, tranqüilidade, é muito bom, mas, como criaturas sociais, queremos que alguém aceite, valorize e cuide do nosso ser interior. O amor foi cotado a 113,55 dólares. Se você, leitor, não for de Hong Kong, pode duvi­dar dessas cotações. Portanto, vamos mostrar que essas mesmas questões, colocadas para adultos do Reino Unido, obtiveram os mesmos valores de compra, em dólares: vale a pena comprar tran­qüilidade por $53,47 e animação por $60,90, mas não se compara à vontade de fugir da vergonha, cotada em $71,83, e do remorso, valendo $64,40. E nada tem mais valor que o amor, cotado em $115,16.

Esses valores em dólar dão uma ideia da motivação dos seres humanos para alterar seu mundo interno e externo. Da maior im­portância é o desejo de ser aceito. Isso é um problema porque não temos o menor controle sobre o que as pessoas vão dizer de nós. Só podemos controlar o que pensamos e como agimos. A falta de controle, o sentimento de incerteza, pode ser o estado psicológico mais desconfortável. Logo atrás vêm os medos do remorso e da vergonha. Portanto, os estados psicológicos mais valorizados es­tão centrados em como somos vistos pelos outros. Infelizmente, as [95] inquietações frequentemente dificultam a aprovação imediata. Mas essa é apenas uma das razões para nossa antipatia pelas emo­ções negativas.

Evitamos as emoções negativas não porque somos tolos a pon­to de ignorar que não devemos, mas por quatro motivos básicos, e muito intuitivos:

  1. São desagradáveis.
  2. Representam estagnação.
  3. São associadas à perda de controle pessoal.
  4. São associadas (corretamente!) a um alto custo social.

Vamos examinar melhor esses motivos fundamentais. Em pri­meiro lugar, evitamos nos sentir mal porque se sentir mal é mau. Ou seja, as emoções negativas são desagradáveis. A ideia de pas­sar uma tarde inteira com tédio, ou estresse, ou frustração, é tão sedutora quanto passar o dia inteiro fazendo depilação com cera quente. Contudo, as pessoas se enganam, não em seu desejo de evitar o desagradável, mas em subestimar sua capacidade de tole­rar a chatice das emoções negativas. Como vimos no exemplo das mulheres à espera de saber se estavam grávidas, as emoções nega­tivas são um pouco menos chatas do que a gente espera. Você já teve raiva e medo, e - assim esperamos - não está sentindo nada disso neste momento. Isso já passou, e você não está pior porque teve esses sentimentos. Você é mais capaz de lidar com emoções desagradáveis do que imagina.

Pense na última vez em que teve tédio, por exemplo. Peter Toohey, da Universidade de Calgary, afirma que o tédio é uma ferra­menta muito útil, que tem a função de nos fazer saber quando as interações sociais ou a rotina estão nos dando desejos que não [96] estamos satisfazendo. Talvez pouco haja a fazer para espantar o té­dio quando você está ouvindo um discurso infindável ou numa longa viagem de avião, mas muitas vezes é possível escapar de si­tuações entediantes. O tédio pode ser um indicador importante de que você está fazendo más escolhas ou entrando em situações com uma atitude restritiva (talvez com mentalidade estreita ou abertamente crítica). O mais interessante é que, mesmo odiando o tédio, você lida muito bem com esse sentimento a cada vez, e ele logo passa. Quando você pensa no tédio, naturalmente se concentra em quanto é desconfortável. Você não atenta para o fato de que lidou efetivamente com o tédio centenas (ou milhares) de vezes na vida.

Um segundo motivo comum para as pessoas desejarem se afastar das emoções negativas é a crença em que elas são como areia movediça - puxam a gente para baixo, sem esperança de escapar. É muito comum a noção de que a depressão, por exem­plo, é um estado difícil de mudar, e, quanto mais crônica for a emoção negativa, maior é o risco de que se torne permanente. Ve­jamos a Prova A, com pessoas que lutam há anos contra a depres­são. De fato, algumas evidências dão suporte à crença popular. Cerca de 60% de adultos que têm um episódio clinicamente sig­nificativo de depressão grave têm um segundo; as que têm um segundo episódio têm cerca de 70% de chance de ter um terceiro, o que dispara para 90% de chance de ter um quarto episódio.1 Sim, essas estatísticas são alarmantes, principalmente se você esquecer a matemática. Se 100 pessoas têm um episódio de depres­são e 60 delas têm um segundo episódio, 42 têm um terceiro, e 38 têm um quarto episódio. Para essas 38 pessoas, é um problema grave, sem dúvida. Mas a grande maioria de pessoas que lutam contra a depressão não está confinada a uma prisão emocional da [97] qual não há escapatória. A maioria estará livre depois de uns pou­cos - notoriamente desagradáveis - episódios. O mesmo se aplica a outros estados. Apesar da tendência a acreditar que a raiva irá acionar algum mecanismo interno que nos transformará em ban­didos violentos, ou que o pânico nos deixará escondidos debaixo da mesa pelo resto da vida, basta você dar uma olhada em sua experiência pessoal para saber que isso não é verdade.

Um terceiro motivo pelo qual evitamos sentimentos negativos é o temor de que, tal como um tsunami psicológico, eles desabem sobre nós e nos arrastem para um destino desconhecido e indesejado de pensamentos. Portanto, o temor das pessoas, ainda que não o articulem, é de que um determinado estado as leve a perder o controle e fazer coisas que de outro modo não fariam. O caso mais óbvio é a raiva. Certamente, há um elemento de verdade nisso, o que leva o sistema judiciário a considerar que um assassi­nato cometido “no calor do momento” é menos grave do que um assassinato planejado. É como se a comunidade jurídica tivesse se reunido e concordado: “Sim, a pessoa com a cabeça quente tem uma tendência a se descontrolar um pouco.” Mas quantas pessoas você conhece que já cometeram um assassinato, de um modo ou de outro? É extremamente incomum, e por isso vira notícia.

É muito improvável que a raiva faça de você um criminoso, mas pode afetá-lo de outras maneiras, às vezes surpreendentes. Alguns pesquisadores interessados no termo “cabeça quente” in­vestigaram se haveria alguma associação entre cabeça e calor na mente das pessoas.12 Num estudo, apresentaram a alguns partici­pantes (mas não a todos) palavras relativas à raiva, como desde­nhoso, hostil e irritado, dizendo que essas palavras eram parte de uma experiência de memória. Em outra tarefa, disseram aos par­ticipantes que opinassem se a média de temperatura de trinta [98] cidades que eles não conheciam era fria ou quente. Os pesquisadores constataram que os participantes que lembraram mais as palavras ligadas à raiva opinaram muito mais que as cidades eram quentes.

O quarto motivo pelo qual evitamos emoções negativas é o me­do das conseqüências sociais de expressá-las. Você tem uma noção intuitiva de que, se ficar no local de trabalho se lastimando ou tendo súbitos ataques de raiva, as pessoas vão se esconder em seus cubículos até que você fique longe delas. Mais uma vez, há um grão de verdade nessa crença, mas seu medo é muito exagerado. Nossos estados negativos têm poder sobre os outros.

Num estudo clássico, o pesquisador Thomas Joiner investigou se o ânimo de colegas de quarto era contagioso. Ele constatou que, se um deles estivesse deprimido logo que se instalaram, havia uma alta proba­bilidade de que o outro desenvolvesse depressão nas três semanas subsequentes. Isso é verdade, apesar de Jointer ter feito o controle pelas taxas básicas da depressão e a presença ou ausência de even­tos de vida negativos. A depressão não somente é contagiosa, mas, contradizendo o folclore recente, é mais provável que o colega de quarto deprimido afete o outro negativamente do que o colega mais feliz modifique o ânimo depressivo do primeiro. É mais um exemplo de que o mal é mais forte que o bem.

Você agora deve estar surpreso com o fato de que nós, os auto­res, esmiuçamos os quatro principais motivos pelos quais as pes­soas evitam emoções negativas e não os invalidamos, um a um. Não podemos. Todos eles têm pelo menos alguma validade. A questão importante é: para que servem as emoções negativas? Constituem uma parte importante da nossa arquitetura emocional. Embora confusas, desagradáveis e às vezes problemáticas, não deixam de ser úteis. As emoções - todas as emoções - são informações. Estar bem ou estar mal nos mostra a qualidade de nossos progressos, [99] interações, ambiente e ações. Numa comparação sumária, as emo­ções são como um aparelho de GPS no painel do carro, trans­mitindo informações metafóricas sobre sua posição, o terreno à frente e atrás, o ritmo de progresso. Quem tenta desesperadamente evitar, esconder e fugir de estados negativos perde todas essas valiosas informações. Para esclarecer ainda mais:

  • Você quer sentir o arrepio de medo em situações de perigo físico.
  • Você quer sentir o calor da raiva quando precisa defender seus filhos.
  • Você quer sentir frustração quando não progride nas aulas de violão.
  • Você quer se arrepender de ter dito aos seus filhos que eles não são bonitos, nem inteligentes, nem boas pessoas.

Em cada uma dessas situações, as emoções são sinal de que algo não vai bem e exige sua atenção imediata. Se a raiva e outros sentimentos maus forem tamponados instantaneamente, deixa­rão de sinalizar o que os despertou e o curso de ação a ser tomado. É difícil enfatizar toda a importância disso. Você deve estar pen­sando: Há milhares de motivos para evitar os sentimentos negativos, mas deixe-me entender hem: só há um único motivo para serem bons? Ainda que seja um único motivo, é um motivo excelente. Imagine viver num mundo em que ninguém sentisse culpa. Em que nin­guém se revoltasse contra a injustiça. Em que ninguém sentisse frustração por não atingir um objetivo. Em que você não conseguis­se sentir medo na presença de um incêndio em casa, um assaltante ou uma seringa de injeção usada boiando ao seu lado num banho de mar. Na ausência desses sentimentos negativos, estaríamos [100] vivendo num mundo desprovido de humanos em pleno funcionamento.

Um passeio por três emoções temidas

Raiva

Matthew Jacobs é um carpinteiro autônomo de 50 e poucos anos. Mora num apartamento coletivo em San Francisco, Califórnia. É conhecido pela boa qualidade de seu trabalho, joga futebol e lê obras de não ficção nas horas livres. Quando jovem, serviu por algum tempo como oficial da polícia militar na Guerra do Vietnã. Ele diz ter sido um jovem de cabeça quente, mas há muito tempo se acalmou e almeja levar uma vida sem encrencas.

Em maio de 2013, já tarde da noite, uma camelô vietnamita estava vendendo a Jacobs uma tigela depho numa rua do centro da cidade, quando um homem grandalhão se aproximou, gritan­do com ela. O homem, totalmente desconhecido, chegou exigindo que a mulher lhe desse uma moeda, ela disse que não tinha, e ele começou a berrar xingamentos com palavras ofensivas à raça de­la. Duas colegiais estavam presentes, dando mostras de nervosis­mo, obviamente temerosas de chamar a atenção do homem.

À medida que os insultos do homem ficavam mais acalorados, Jacobs viu que ninguém por perto iria se adiantar para defender a mulher e as adolescentes. Recorrendo a um preceito pessoal - sempre oferecer duas interações gentis antes de passar a um tom mais agressivo -, ele disse calmamente ao homem: “Com licença. Poderia falar mais baixo, por favor?” O homem se voltou para Jacobs e começou a berrar com ele também. “Eu agradeceria se [101] você se retirasse”, disse Jacobs. “Estamos tentando comer em paz; ninguém aqui quer confusão.” Jacobs tinha usado a sua segunda e última cota de boa vontade. Infelizmente, não obteve o efeito calmante que desejava, e o homem chegou mais perto de Jacobs, gritando obscenidades.

Jacobs largou cuidadosamente sua tigela de macarrão e elevou a voz, num tom de ameaça: “Na minha terra, isso quer dizer que você está procurando briga. Muito bem, estou aqui. Vamos lá!” O homem recuou, surpreso, murmurou uns xingamentos para manter a pose e foi embora. Jacobs respirou fundo para recuperar a calma, grato pela altercação não ter chegado à agressão física, e a vendedora e as adolescentes não terem sido feridas. Ele olhou para elas, esperando um gesto de simpatia ou uma palavra de agradecimento. Não houve. Em vez disso, notou que elas pare­ciam ter tanto medo dele quanto do grosseirão.

Essa é uma história verdadeira, não uma narrativa dramati­zada que termina em briga, ou numa donzela em perigo recom­pensando o salvador com imorredoura gratidão. É um exemplo de como os sentimentos negativos se apresentam na vida real. As emoções negativas, como a raiva no caso de Jacobs, geralmente afloram em resultado de circunstâncias externas (em oposição a “surgir do nada”). Podem ser tremendamente úteis, apesar de terem um preço (como assustar as pessoas presentes). Como vimos aqui, a raiva altera drasticamente o comportamento das outras pessoas, muitas vezes levando-as a recuar ou a transigir rápido. Por essa mesma razão, a raiva e outros sentimentos negativos são às vezes mais oportunos que a positividade.

A raiva em si não é boa nem má; o que importa é o que você faz com ela. Pesquisas sugerem que apenas 10% de acessos de raiva levam a alguma forma de violência, mostrando que raiva não é [102] exatamente igual à agressão. Em geral, a raiva surge quando acre­ditamos que fomos tratados injustamente, ou que algo está blo­queando nossa capacidade de alcançar objetivos significativos. Em nossos dados, registramos 3.679 dias em que as pessoas rela­taram ter tido raiva no dia a dia.13 Descobrimos que em 63,3% desses episódios a culpa foi atribuída a outra pessoa (em oposição a, digamos, se irritar com o teclado do computador). Tipicamen­te, a raiva é causada por algo que outra pessoa fez, ou que não fez, ou que poderia ter feito.

A dificuldade de transitar num mundo complexo, hipotético, e muitas vezes imprevisível, de trocas sociais que podem incluir a raiva, é precisamente a razão pela qual os humanos adultos pos­suem o cérebro tão pesado (47 vezes mais pesado que o cérebro de um gato e 19,5 vezes mais pesado que o cérebro de um cão beagle). Todos nós já fomos ofendidos ou magoados por outra pessoa. Ape­sar da sua vibração gentil e compassiva, você também já foi im­portunado, provocado, hostilizado, traído, enganado e tratado com grosseria. A positividade não dá conta de nos ajudar a transitar pelas relações e interações sociais. A raiva é uma ferramenta que nos ajuda a apreender e responder a situações sociais complicadas. Quanto aos benefícios, pesquisas indicam, com uma frequência esmagadora, que sentir raiva aumenta o otimismo, a criatividade e o desempenho efetivo, enquanto expressar raiva leva a negocia­ções mais bem-sucedidas e a um caminho mais rápido para mobilizar as pessoas como agentes de mudança. Vejamos cada caso separadamente.

Primeiro, o sentimento de raiva é associado a uma atitude mais otimista. Num estudo, os participantes foram orientados a virar quantas cartas quisessem até um total de 32 cartas, cada uma com [103] um valor de pontos específico.14 Misturadas nas 32, porém, havia três “cartas de bancarrota”, que custariam centenas de pontos ao participante que virasse uma delas (muito mais do que os poucos pontos ganhos com outras cartas). Numa versão, os participan­tes podiam decidir antecipadamente quantas cartas iriam virar, desde 1 a 32. Esperava-se que ninguém iria querer virar as 32, sa­bendo que três delas os levariam à bancarrota, e sairiam do jogo. Quantas iriam virar? As pessoas previamente induzidas a sentir uma ligeira raiva arriscaram mais. A raiva as deixou mais propen­sas a explorar os limites da possibilidade.

Esse achado foi sustentado por uma equipe de pesquisa inte­ressada em investigar como as pessoas avaliam riscos.15 Nesse estudo, fizeram aos participantes perguntas relativas ao - entre outras temas - risco de se divorciar, contrair uma doença venérea, e um tratamento experimental de uma doença grave que iria sal­var muitas vidas se desse certo, mas iria matar muitas mais se não desse. Os participantes que os pesquisadores incitaram a ter raiva apresentaram maior tendência a achar que tinham controle sobre os resultados, acreditavam que um resultado positivo era alta­mente provável e que valia a pena correr riscos. Pode ser que a rai­va - uma alta elevação emocional que nos prepara para lidar com ameaças - ajude a predispor as pessoas à ação. Talvez por isso seja tão comum ver atletas com raiva para entrar no clima psicológico.

Em segundo lugar, a raiva pode acender a fagulha da criativi­dade. Vale a pena repetir, porque pode soar louco demais para crer: sim, a raiva pode nos ajudar a ser criativos. Na psicologia, o estudo da criatividade pode ser muito divertido. Vejamos o exem­plo clássico: quantas utilidades você acha que um tijolo pode ter? Não tenha pressa. Pare um momento e faça uma lista de todas as [104] utilidades que puder imaginar. O mais provável é que as mais óbvias lhe venham primeiro à mente. Você pode pensar facilmen­te numa parede. Depois você fica mais esperto e pensa em utilida­des que tenham a ver com o peso, forma e durabilidade do tijolo. Talvez sua lista inclua um batente de porta, peso de papel, um banquinho ou um projétil. Muito bem. Mas podemos tentar pen­sar em outras aplicações? Que tal colocar um tijolo na mochila para melhorar sua postura? E usar para apoiar uma panela quen­te, ou junto ao pneu do carro como calço numa ladeira? Você pode até usar, para fazer graça, como moldura de um celular da primei­ra geração e falar com ele na orelha.

Os psicólogos usam o teste de utilidades do tijolo para medir a criatividade. O teste pode servir para avaliar a fluência (quantas idéias foram criadas?), a originalidade (quantas idéias constam em quantas outras listas?) e a flexibilidade (quantas categorias de uso você pode propor?). Num estudo, os pesquisadores deram às pessoas feedbacks irritados (negativos) ou neutros numa ativida­de prévia, e depois aplicaram o teste do tijolo.16 Algumas pessoas manifestaram grande necessidade de entender bem as regras e queriam saber o que se esperava delas em determinada situação. Entre estas, as que tinham tido feedbacks negativos tiveram me­lhor desempenho. Melhor desempenho significa aqui que obtive­ram melhores resultados do que as pessoas com características similares que tinham recebido feedback neutro. A mensagem é que, em alguns casos, a raiva induz a maior criatividade. Por ou­tro lado, em pessoas rebeldes, menos equilibradas, a criatividade é embotada pela raiva. Isso mostra que o contexto é importante quando se trata de raiva, e que o preconceito generalizado contra ela é um equívoco. [105]

Por fim, a raiva é seletivamente útil enquanto ferramenta de melhora do desempenho. Ninguém quer viver sob o jugo de um tirano, mas um pequeno acesso de irritação pode fazer alguém sair correndo para trabalhar. Alguns pais sabem que é uma estratégia que funciona com os filhos, e muitos patrões sabem disso muito bem. Num estudo com gerentes de construção no Reino Unido, os pesquisadores descobriram que alguns acessos de raiva eram de­ploráveis e outros funcionavam como um remédio perfeito.17 Um gerente de construção comentou:

Não faz muito tempo, tive um ataque de raiva numa reunião com o engenheiro estrutural porque eles estavam querendo virar o acerto contratual sem qualquer justificativa, e aquilo já vinha acontecendo havia algum tempo... Acho que [a reu­nião] terminou com o surto emocional. Em retrospecto, me arrependo? Provavelmente não, na verdade, porque resolveu a questão...

O que diferenciou as querelas lamentáveis das eficazes não foi o tamanho da raiva envolvida. Foi uma questão de contexto. Con­tudo, mesmo os gerentes que aprovavam uma palavra mais forte de vez em quando reconheceram que não era - e não podia ser - uma atitude permanente na interação com os outros. Um deles resumiu brilhantemente:

Funcionou, eu consegui a reação que esperava, todo mundo voltou ao trabalho, e o que estava pendente foi resolvido na mesma hora, de modo que tudo deu muito certo. Acho que se acontecesse com muita frequência, se ficasse sempre usando uma linguagem grosseira com as pessoas, chegaria ao ponto [106] de não surtir mais efeito. Se você usar de vez em quando, acho que funciona.

Outro contexto em que a raiva funciona bem é nas negocia­ções. Quando duas ou mais pessoas estão tentando chegar a uma resolução, a raiva é uma espécie de alavanca. Numa série de estu­dos, os participantes tiveram a tarefa de negociar o maior preço possível por um lote de telefones celulares (e a recompensa na vida real estava diretamente ligada ao desempenho deles).18 Após um valor inicial ser pedido pelo vendedor, o comprador apresen­tou uma série de contrapropostas. Para atingir os objetivos do ex­perimento, alguns participantes foram escalados para ter um comprador irritadiço, e outros foram contemplados com compra­dores alegres ou neutros. Viu-se que, diante da raiva, as pessoas têm muito menos propensão a fazer exigências. Na terceira roda­da de negociação, quem tentava vender os celulares a um compra­ dor com raiva acabava cedendo e dando 20% de desconto, e, na sexta rodada de negociação, já davam mais de 33% de seus ganhos potenciais. Os pesquisadores sugeriram que pessoas com raiva eram vistas como poderosas e de alto status na situação. Portanto, vemos que a raiva em certas competições faz pender o resultado a seu favor. A felicidade não rende os mesmos dividendos.

Por outro lado, não basta adotar uma postura zangada na es­perança de obter uma transação favorável. Esses mesmos pesqui­sadores advertem - e a ciência está a favor deles - contra a raiva fingida. Num estudo, os pesquisadores constataram que, quan­do um ator experiente fingia uma raiva superficial em oposição a uma raiva intensa, era inconvincente.19 Em negociações, as pes­soas fazem exigências maiores de quem finge raiva, em parte por­ que estes parecem menos confiáveis. [107]

Tomemos, do mundo real, o exemplo de Barack Obama. Sejam quais forem suas cores políticas, você tem que admitir que Obama é mais afável que a maioria dos presidentes dos Estados Unidos jamais foi. Ele tem a fala suave, a voz profunda e bem modulada. Quando houve o vazamento do petroleiro britânico no golfo do México, em 2010, Obama foi criticado por sua reação fria. Mais tarde ele expressou raiva na televisão, mas essa resposta mais emo­cional teve o efeito oposto ao desejado: as pessoas perceberam que o presidente não estava sendo sincero.

Por fim, a raiva tem o poder de despertar uma ação coletiva diante de ameaças inadequadas, injustas. Em toda autobiografia, encontramos a mesma história: o impulso inicial de lutar contra a injustiça foi motivado pela raiva, como a faísca da ignição que põe o motor do carro em funcionamento. Martin Luther King Jr. dis­se: “A tarefa suprema é organizar e unir o povo para que sua raiva seja uma força transformadora.” Foi a raiva que transformou W. E. B. Du Bois de acadêmico - brilhante, mas ineficaz num mundo de exploração e racismo desenfreados - num poderoso ativista em defesa dos direitos civis:

Justamente na época em que minhas pesquisas tinham maior sucesso, veio aquele corte nos meus planos de cientista, um clarão vermelho que não podia ser ignorado. Lembro-me de quando me atingiu como um raio...20 A notícia me despertou: Sam Hose fora linchado, e diziam que seus dedos estavam ex­postos num açougue... Passei a me afastar do trabalho... Não é possível continuar a ser um cientista calmo, frio e distancia­ do enquanto negros eram linchados, assassinados e mortos de fome. [108]

Pouco adiante, em sua autobiografia, Du Bois narra como a raiva o incitou à ação e ele fundou o Niagara Movement, que mais tarde veio a ser a NAACP.

Ao recordar suas atividades em defesa dos opositores à Pri­meira Guerra Mundial, Bertrand Russell relata que ficou “cheio de desesperada ternura pelos jovens que iriam ser massacrados, e de raiva contra os estadistas da Europa”. Da mesma forma, He­len Caldicott deu os primeiros passos como ativista quando ficou “indignada”. Sua indignação inspirou uma geração de movimen­tos sociais.

Quando a raiva aflora, somos levados a prevenir ou eliminar ameaças iminentes ao nosso bem-estar, ou ao bem-estar das pes­soas que nos são caras. Muitas vezes, o altruísmo nasce da raiva. Quando se trata de mobilizar pessoas e conseguir apoio para uma causa, não existe emoção mais forte. É um erro supor que bonda­de, compaixão, amor e equidade estão de um lado do continuum, e raiva, fúria e aversão estão do outro lado. A raiva é um elemento poderoso, difamado pela noção errônea de que uma sociedade saudável é isenta de raiva.

O grande preconceito contra a raiva é amplamente injustifica­do.21 Decerto, é uma emoção forte e altamente inflamável. A cau­tela com a raiva é aconselhável, assim como o conhecimento de que não deve ser usada em demasia ou indiscriminadamente. Seu melhor uso é acompanhado de uma atitude de respeito pelo ponto de vista da pessoa ou das pessoas que violam seu bem-estar. Quem se dispõe a arcar com as conseqüências tem mais facilidade para utilizar uma expressão eficaz da raiva. Tomando certas precau­ções, a raiva - a raiva autêntica - é totalmente apropriada para certas pessoas em certas situações. [109]

O jeito certo de ficar com raiva

Quando você quiser expressar raiva, ou outra emoção negativa, um modo conveniente é começar com o que chamamos de aviso de desconforto. Deixe o outro saber explicitamente que você está ten­do emoções intensas e, por causa disso, é mais difícil se comuni­car com clareza. Desculpe-se por antecipação, não por suas emoções ou ações, mas pela falta de clareza na forma de comuni­cação do que você vai dizer. Comece com uma declaração do tipo: “Quero que você saiba que estou me sentindo muito desconfortá­vel, o que significa que não é o melhor momento para me expressar. Mas dadas as circunstâncias, é importante, para mim, dizer...” O objetivo do aviso de desconforto é desarmar o outro, evitando que fique na defensiva. Quando alguém ouve que você está se sen­tindo desconfortável e a conversa é difícil para você, é mais prová­vel que receba com empatia o que você tem a dizer. Depois dessa introdução, você pode se aprofundar no motivo do aborrecimen­to, no que pensa e sente por causa do que aconteceu (por que a raiva irrompeu, em vez de outros sentimentos).

Você pode usar a tática do aviso de desconforto mesmo quan­do estiver se sentindo perfeitamente confortável ao expressar a raiva ou outros sentimentos negativos, desde que sejam autênti­cos. Lembre-se: o objetivo é provocar uma mudança no que o ou­tro está fazendo ou sentindo, diminuir a progressão da situação de modo a torná-la mais favorável à sua mensagem. Se for ade­quadamente controlada, a raiva nos oferece um modo de ser proativo na alteração ou remoção de ameaças e obstáculos. Portanto, não tenha medo de usar pequenas mostras físicas de raiva, o que chamamos de “microagressão”, para expressar o nível da emoção que está sentindo. Ponha as mãos abertas com força em cima da mesa. Aperte os punhos. Ok, você entendeu. [110]

Se ainda não se convenceu da importância de expressar a rai­va abertamente para repelir uma ameaça, considere o seguinte: O dr. Ernest Harburg e sua equipe de pesquisa da School of Public Health da Universidade de Michigan passaram várias décadas fazendo acompanhamento de alguns adultos num estudo longitu­dinal sobre a raiva.22 Constataram que homens e mulheres que es­condiam a raiva diante de uma agressão injusta apresentavam maior tendência a ter bronquite e infarto, e a morrer mais cedo do que os que liberavam a raiva quando se deparavam com pessoas ofensivas e irritantes.

A dificuldade óbvia está em saber como pôr a raiva em funcio­namento, principalmente em relacionamentos. Primeiro, quere­mos desencorajá-lo a se policiar no sentido de controlar ou evitar a raiva, dizendo a si mesmo, por exemplo: “Preciso me livrar des­sa raiva”, ou “Tenho que guardar a raiva para mim mesmo”, ou “Por que não posso ter menos raiva?”. Em vez disso, reconheça a diferença entre eventos que você pode mudar e os que estão além da sua capacidade de controlar. Se está viajando e perde o casaco no primeiro dia, não há nada a fazer, e portanto não há benefício em expressar a raiva. Mas, se está numa loja pechinchando o pre­ço de um casaco e se zanga porque a balconista está tentando lhe vender por um preço mais alto do que o freguês anterior pagou, é uma situação em que você tem algum controle. Nesse caso, co­mo pode comunicar o aborrecimento ou a raiva de modo a obter um resultado favorável? O psicólogo e autor de Anger Disorders, dr. Howard Kassinove, diz que a chave é usar “um tom apropriado, sem aviltar a outra pessoa”.23

Segundo, desacelere a situação. Nossa tendência é mergulhar de cabeça na situação e agir no mesmo instante, especialmente [111] quando o sangue está fervendo. Em vez disso, imagine a raiva variando entre depressa e devagar, como você querendo gritar ver­sus querendo motivar a pessoa de maneira calculada. Quando es­tiver zangado, permita-se fazer uma pausa, mesmo que tenha alguém esperando sua resposta. Pode até deixar que saibam que está diminuindo o ritmo da situação. Tome decisões boas, e não apressadas. Quando estiver zangado, respirar fundo, fazer pausas e momentos de reflexão exercem mais poder do que respostas rá­pidas. Se você ficar menos zangado depois disso, ótimo, mas não é o objetivo. Trata-se de ter mais opções numa situação emocio­nalmente carregada.

Pense como um jogador de xadrez. Antes de se decidir por um curso de ação, imagine como o outro irá reagir e como estará a situação dois movimentos adiante. Se lhe parecer boa, prossiga. Se lhe parecer má, pense num caminho alternativo, imagine qual será a reação do outro e avalie esse cenário. Mantenha uma avalia­ção constante, perguntando-se: “Minha raiva está ajudando ou piorando a situação?” Num diálogo, não há uma resposta “tama­nho único” para essa questão, pois as emoções, comportamentos e ações envolvidas estão sempre mudando. Em certo momento, quero contar uma história para afirmar meu domínio da discus­são, e minutos depois posso querer ignorar um comentário forte para aumentar o sentimento de conexão.

Quando a raiva chega ao extremo, parece que, se não partir­mos para o ataque, iremos sofrer sérias conseqüências. O psicólo­go John Riskind, especialista no tratamento de pessoas com emoções aparentemente incontroláveis, desenvolveu técnicas pa­ra desacelerar os eventos ameaçadores.24 Riskind constatou que a experiência de raiva não é tão problemática quanto a crença em [112] que a seqüência de eventos desencadeadores da raiva vai acelerando, o perigo vai aumentando, e a saída para a ação está se fe­chando rapidamente. Esse sentimento de perigo iminente leva as pessoas a fazer algo que dê um fim imediato à ameaça, mas, em longo prazo, irá piorar a situação (como dar um soco em quem furou a fila no caixa do supermercado).

O primeiro passo é avaliar consigo mesmo se a raiva está au­mentando, diminuindo ou estável em determinada situação. Para um autoexame escrupuloso, use um número ou algumas palavras que descrevam a intensidade da raiva, como se pode ver no exem­plo do velocímetro:25

Se a raiva estiver acima do limite de velocidade, será preciso mais tempo para conservar o máximo de flexibilidade e controle a fim de lidar com quem a provocou. Nesse caso, pense em redu­zir a velocidade. Em alta velocidade, a tendência é perder um pouco o controle; portanto, imagine-se freando para que o modo [113] como você está agindo e que o outro está agindo seja reduzido de 130 para 100, e de 100 para 80. Crie uma imagem visual de sua aparência no momento, e da aparência do outro. Repare que o ou­tro já não está tão perto fisicamente de você. Escute com atenção o que o outro está dizendo, e leia a mensagem corporal dele. Use a baixa velocidade para ver se o outro está aberto ou fechado ao diálogo, se está realmente disposto a atacar ou procurando um meio de sair da confusão.

O que acontece quando você imagina a situação desaceleran­do? Como observa Riskind sobre a raiva: “Você pode achar que há muito a fazer e pouco tempo para fazer tudo.” Esse exercício de concentração na velocidade em que as coisas estão acontecendo nos dá um pouco mais de espaço psicológico para respirar. Expe­rimente. O objetivo aqui é aprender a trabalhar a raiva, em vez de deixá-la sair do controle.

Culpa e vergonha

Na sociedade contemporânea, as pessoas pensam na culpa da mes­ma maneira que pensam na obesidade: um estado temível, inacei­tável do ponto de vista social e da saúde. Talvez por isso engordar seja tão frequentemente associado à culpa. Em nossa cultura, “cul­par” alguém é algo falado aos cochichos, terapeutas acenam com redução da culpa, gurus da autoajuda encorajam as pessoas a “se libertarem”, conselheiros do bem-viver escarnecem das palavras “você deve fazer/ser”. Em contraste, queremos remover o estigma da culpa. Não estamos dizendo que é sempre bom sentir culpa, mas em certas ocasiões a culpa traz vantagens. Por exemplo: quando você se sente culpado, fica mais motivado para melhorar, [114] enquanto seus colegas menos propensos à culpa não têm essa mo­tivação.

Doug Hensch, de 40 e poucos anos, ajuda organizações a de­senvolver líderes fortes, mas sua paixão na vida é treinar o time de futebol americano de seu filho de 9 anos. Sua melhor experiên­cia como treinador aconteceu quando estava trabalhando com um atleta musculoso, rápido, chamado Zander, que tinha vindo de Gana para os Estados Unidos. Era desagradável porque, em vez de aplicar suas qualidades no esporte, Zander ficava esguichando água ou enfiando o dedo lambido na orelha dos outros meninos. Cansado daquilo, Doug convocou uma reunião para falar com Zander e todo o time.

Doug não tinha o menor prazer em ter aquela conversa, e não tentou esconder isso na reunião. Começou com um aviso de des­conforto. (“Sou o treinador de vocês, sou pai, mas também já fui menino, e joguei futebol dos 9 aos 21 anos, assim como muitos de vocês jogarão. Por isso eu sei que uma reunião com um treinador frustrado é difícil. Entendam que é desconfortável para mim tam­bém.”) E prosseguiu: Vejam seus companheiros neste time. Pensem no esforço de cada um deles a cada semana, se machucando, se sujando, suando, ficando sem fôlego, e às vezes com ânsias de vômito. Agora, pensem bem: O que você faz aqui está ajudando ou preju­dicando o time?

Doug se calou por um minuto inteiro, e então pediu que cada um desse um exemplo de como tinha ajudado o time no treino da­ quele dia. Depois pediu que cada um desse um exemplo de como [115] tinha prejudicado o time naquela temporada, por menor que fos­se a falta. Todos tinham alguma coisa a dizer e, depois do último menino falar, Doug disse:

Quando você faz alguma coisa que não ajuda o time, está pre­judicando seus colegas, meninos que vão proteger você, vão brigar por você, vão se arriscar a serem machucados por al­guém duas vezes maior que eles na disputa da bola, para que vocês façam uma boa jogada. De hoje em diante, vou fazer sempre essa mesma pergunta a todos, e se acharem que estão prejudicando o time, não precisam se sentir culpados; só tratem de melhorar. Entenderam?

Quando todos concordaram com um gesto de cabeça, Doug lhes disse para se unirem de mãos dadas e gritarem o nome do time três vezes.

Zander perdeu sua posição de estrela no time inicial. Se você quiser saber se a motivação dele foi a vergonha ou a culpa, Doug lhe dirá que, quando Zander voltou a jogar, pegou a bola e correu cem metros para um touchdown que trouxe a primeira vitória do time na temporada. E, quando Zander viu que os colegas o respei­tavam mais pelas ações que ajudavam do que pelas que prejudi­cavam o time (embora algumas de suas palhaçadas fossem muito engraçadas), investiu mais energia nos treinos e passou a animar os outros jogadores, mostrando uma atitude completamente di­ferente. Doug ajudou Zander a se tornar um jovem adulto res­ponsável e, revelando seu próprio desconforto e induzindo a um pouquinho de culpa, conseguiu melhorar o menino e o time.

Nós, os autores, usamos a mesma pergunta em sala de aula (“O que você faz está ajudando ou prejudicando a classe?”) e aos [116] nossos filhos (“O que você está fazendo está melhorando ou piorando a situação?”). Na condição de psicólogos socialmente incômodos, fazemos a mesma pergunta a nós mesmos quando conversamos com as pessoas (“O que estamos fazendo está ajudando ou preju­dicando esse relacionamento?”). Sugerimos que você considere essa pergunta com relação à culpa: vai ajudar ou prejudicar a von­tade de ser uma pessoa melhor, mais forte e mais sábia?

Se quiser mais um exemplo de utilidade da culpa, vamos pen­sar naqueles que foram banidos temporariamente pela sociedade devido a suas más ações: os prisioneiros. Segundo o National Re­cidivism Study of Released Prisoners, conduzido pelo Bureau of Justice dos Estados Unidos, dos 272.111 presos libertados em 15 estados em 1994, 67,5% voltaram dentro de três anos para a prisão por crimes ou contravenções graves.26 Cometer um crime depois de sair do presídio é a norma, e não uma exceção.

Ao tomar conhecimento dessa estatística, você pode julgar que os prisioneiros são pessoas más. Ou pode acreditar que a maioria deles não é muito diferente de nós - eles querem achar um lugar onde sejam aceitos, sentir que têm controle sobre a vida deles, encontrar pelo menos uma aparência de significado e propósito na vida, e ter a esperança de que seus filhos tenham uma vida me­lhor que a deles. Seja como for, a pergunta-chave é: o que evita que um meliante solto volte a cometer atos ilegais ou imorais? A dra. June Tangney, eminente psicóloga clínica, passou quase dez anos investigando se sentimentos morais como a culpa são o segredo para evitar o crime. Em pesquisa recente, ela constatou que os presos com tendência ao sentimento de culpa sofriam mais pelos atos cometidos e eram mais motivados para confessar, pedir perdão e reparar os problemas que causaram.27 Após serem [117] libertados, tinham menor probabilidade de serem presos novamente. Ou seja, presos propensos a sentir culpa pelo mal que causaram contrariam as estatísticas e não causam mais problemas.

A culpa dá mais fibra moral, dá motivação para sermos cida­dãos mais socialmente sensíveis e conscienciosos, e esses bene­fícios se estendem à comunidade não criminosa. Por exemplo: pesquisadores constataram que adultos propensos a sentir culpa eram menos propensos a dirigir bêbados, roubar, usar drogas ile­gais e atacar as pessoas.28 Se o caráter se reflete naquilo que você faz quando ninguém está vendo, a emoção moral chamada culpa é um elemento de construção do caráter. Ao ignorar o valor da culpa, pais e educadores encaram uma dificuldade muito maior para formar as crianças que constituirão o futuro de uma socieda­de saudável.

A fracassada campanha destacando a culpa é uma conseqüên­cia direta de se confundir culpa e vergonha. Segundo o dicionário American Heritage, a culpa é “arrependimento consciente de ter feito algo mau”, e “autorreprovação por suposta inadequação ou transgressões”. A vergonha é diferente. Quando sentimos ver­gonha, não nos contentamos em achar que nossas ações foram erradas ou equivocadas, mas nos vemos como pessoas fundamen­talmente más. No caso da culpa, a consciência da transgressão se limita a uma situação específica. A vergonha nos parece ser uma medida de quem somos. A culpa é útil; sua prima, a vergonha, não é. A culpa é local, a vergonha é global.

Há maneiras úteis e inúteis de sentir remorso pelos fracassos e transgressões. Para aprender a adicionar a negatividade às ferra­mentas psicológicas úteis, vejamos as diferenças. [118]

As pessoas que sentem vergonha sofrem. Pessoas envergo­nhadas se desaprovam e querem mudar, se esconder, ou livrar-se totalmente de si mesmas. Pessoas que sentem culpa querem aprender com seus erros e são motivadas a melhorar. Embora não queiram que sua transgressão esteja escrita na testa, as pessoas culpadas são menos propensas a esconder suas más ações. O mo­tivo? Estão prontas a reparar os danos e dispostas a se esforçar para que não se repitam. Quanto à vergonha, vejamos os resíduos sombrios desse sentimento. Lembremos que os adultos são mais inclinados a pagar quantias exorbitantes para evitar um remorso insistente. Vamos investigar por quê.

Faz seis meses que você tomou a última dose de uísque e a razão de estar sóbrio são as reuniões dos Alcoólicos Anônimos. Na condição de adulto novamente sóbrio, pessoas desconhecidas se aproximam para ouvir sua história. Sabendo que é típico falar [119] sobre problemas pessoais em reuniões do AA, você cede, e até con­corda em gravar um vídeo. Entre as perguntas sobre como você começou a beber, como isso afetou seus relacionamentos etc., a entrevistadora pede que você fale sobre “a última vez em que bebeu e se sentiu mal por ter bebido”. É uma solicitação pesada, que lhe traz lembranças desagradáveis, mas você responde com franque­za. Passam-se quatro meses até que a entrevistadora volte a procurá-lo, trazendo um calendário, pedindo-lhe que anote todos os dias em que bebeu desde a entrevista. Tendo a garantia de que seria confidencial e anônimo, você preenche o calendário.

A entrevistadora era a dra. Jessica Tracy, ou seu aluno de pós-graduação, Daniel Randles, da Universidade de British Colum­bia, e eles fizeram algo realmente criativo.29 A dra. Tracy queria saber se as manifestações de vergonha ao falar sobre bebida aju­davam a prever quais adultos recém-sóbrios voltariam a beber. (Se você quiser identificar vergonha na expressão corporal de al­guém, veja se a pessoa mantém os ombros caídos e a área do peito encolhida ou se fica curvada na cadeira como se buscasse uma posição fetal.)

Os resultados desse estudo podem causar espanto. No decorrer de quatro meses, adultos recém-sóbrios que não demonstraram vergonha durante a entrevista tomaram 7,91 drinques. Quanto aos que demonstraram maior vergonha na entrevista (os 10% mais envergonhados) - imagine só - consumiram, em média, 117,89 drinques no mesmo período. Para aqueles que tinham uma relação de vergonha com o comportamento de beber foi muito mais difí­cil evitar uma recidiva. [120]

De gavião à pombinha

Todo mundo comete erros. No trabalho, você se encarrega de man­dar flores para uma colega doente e se esquece de mandar. Em casa, você reclama do descaso de sua vizinha com o lixo e o jardim dela, e depois descobre que ela estava de cama, com pneumonia. Sentir culpa, por definição, tira a felicidade da pessoa. Mas vimos que, embora à custa da felicidade imediata, a culpa pode ser útil em longo prazo. Além disso, a culpa beneficia os outros. Nas pa­lavras do pesquisador Roy Baumeister, a culpa nos “causa mal-estar, mas, para evitar esse desconforto, precisamos fazer algo melhor para nossos parceiros e membros do nosso grupo”. O agui­lhão da culpa pelo que nossas ações causaram em alguém nos im­pele a agir com maior sensibilidade social na próxima vez.

Por outro lado, se você ficar envergonhado, seus problemas vão aumentar, e tentar melhorar o comportamento de alguém ape­lando para a vergonha também não adianta nada. Esperamos que essas palavras sejam lidas por pais bem-intencionados que casti­gam os filhos obrigando-os a dar a volta no quarteirão com um cartaz dizendo: “Acessei pornografia no computador lá de casa.” Esperamos que sejam levadas em consideração por juizes que condenam motoristas bêbados a colocar no carro um adesivo para que todos saibam da infração. Esperamos que essa informação atinja professores que colocam na sala de aula um painel infor­mando quantas vezes uma criança de 6 anos mordeu, lambeu ou bateu num coleguinha. Essas táticas não surtem o efeito desejado, não estimulam as pessoas a ter mais respeito e consideração pelos outros. Os resultados de pesquisas sobre isso são muito claros: quanto mais envergonhadas as pessoas se sentem, mais ansiosas, agressivas e distanciadas elas se tornam. Usar a vergonha como [121] forma de punição tem o trágico efeito paradoxal de acentuar o comportamento que se tenta extinguir.

Se você quiser motivar, escolha a culpa, e não a vergonha. Co­mo diz a dra. June Tangney: “Sentimos culpa porque damos im­portância [às pessoas] - uma mensagem relevante para quem magoamos ou ofendemos.” Atos incorretos não são prova de que você é uma pessoa incorreta. Assuma a responsabilidade por suas ações, sinta a dor de ter magoado uma pessoa, caso aconteça, e volte a atenção para nada mais e nada menos que a ação específica que causou aquele agravo. Sinta, erre, falhe, se aborreça, e então fique mais atento ao bem-estar dos outros na próxima ocasião de interações sociais.

Como escapar da armadilha da vergonha

Supondo que você não desconheça a compaixão, oferecemos as seguintes sugestões para inspirar a culpa em lugar da vergonha.

Tenha em mente o objetivo. Um erro comum ao lidar com a par­te culpada é partir diretamente para o ataque pessoal. É fácil se apressar em associar - até de forma inconsciente - a culpa à au­sência de valores, idiotice, ganância e a tantas outras falhas de caráter. O problema é que ninguém quer ouvir que é uma pessoa má. As pessoas estão mais abertas a ouvir que fizeram algo mau. Você tem maior probabilidade de ser ouvido, se reforçar as virtu­des e pontos fortes da pessoa (se você de fato os reconhece; não invente) ao mesmo tempo em que a responsabiliza por suas ações.

Comece estabelecendo um terreno comum. Se alguém fez algo er­rado, mostre, se possível, que vocês têm os mesmos valores e obje­tivos. Depois mostre como o comportamento da pessoa a afastou desses valores e que há alternativas, comportamentos mais saudáveis [122], mais compatíveis com quem ela é. Outro terreno em comum, como já dissemos, é compartilhar seu desconforto. Essas conver­sas são difíceis, e às vezes parece ser mais fácil desconsiderar o mau comportamento. É tão desconfortável para quem está apon­tando o dedo acusador quanto para quem está se encolhendo de arrependimento. Para que a conversa resulte numa modificação do comportamento do outro, é preciso ter a honestidade de ver por que a conversa lhe causa desconforto.

Em vez de tentar controlar o outro, ofereça autonomia. Ao contrá­rio do que se pensa, as pessoas não se incomodam que lhes digam o que fazer. Por exemplo: você tem boa vontade para levar o lixo para fora quando lhe pedem, você entrega trabalhos com prazo apertado, quando vai ao supermercado e alguém lhe pede que tra­ga algo mais, se for razoável, você acrescenta à lista e traz. As pessoas se incomodam é que lhes digam como fazer alguma coisa. Ninguém quer conselhos sobre a maneira de colocar o saco de li­xo, como formatar o relatório em que você está trabalhando há meses ou como comparar preços no supermercado. Cientistas que estudam a motivação humana sabem que uma de nossas necessidades básicas, na mesma medida da sobrevivência física, é o dese­jo de dirigir a própria vida. Ao conversar com a parte culpada, não lhe dê instruções de como agir no futuro. Deixe que tenha autonomia para fazer as modificações possíveis. As conseqüên­cias das más ações conduzem a melhores resultados quando o pla­nejamento de mudança do comportamento para melhor é visto como um processo criativo entre o culpado e a vítima.

Ansiedade

Muito se tem escrito sobre o valor da ansiedade. Em suma, pouca ansiedade sugere uma situação enfadonha, ausência de estímulos, [123] a mente num estado de hibernação em que a atenção, as motiva­ções prioritárias, a energia e a determinação são deixadas de lado. Como você pode imaginar, patrões e gerentes não apreciam essa condição, pois os empregados se distraem, buscando estímulo em videogames e brincadeiras com os colegas. Ansiedade em excesso sugere uma situação incontrolável, chegando a paralisar efetiva­mente a pessoa. Quando a ansiedade é passageira, o desempenho é afetado, mas no final dá certo e você se sente bem. E sabemos que períodos prolongados de ansiedade são desastrosos para a saúde física e mental. Quem tem ansiedade muito intensa com muita frequência envelhece prematuramente. Podemos constatar isso em nível celular, na deterioração dos telômeros, que formam as extremidades dos cromossomos.30 Por isso, especialistas em desempenho e empresários dão preferência a pessoas que têm a “quantidade certa” de ansiedade, suficiente para despertar a mo­tivação, sem levar a incontroláveis ataques de pânico e a estresse crônico.31 Perfeito. Estamos totalmente de acordo.

Só nos perguntamos por que chegamos a esse ponto. Nossos ancestrais hominídeos, que viviam em pequenas comunidades caçadoras e coletoras na África, sobreviviam graças a um conjunto específico de circuitos de ansiedade. Criado pela seleção natural e desenvolvido no decorrer da história evolucionária da nossa es­pécie, esse programa especializado em ansiedade opera basica­mente fora da nossa consciência, e por isso mesmo é subvalorizado, pois resolve nossos problemas sem um esforço da vontade. Assim como nós, autores, você já deve ter ouvido dizer que as emoções positivas expandem o pensamento e o comportamento em deter­minadas situações e, em contraste, a ansiedade restringe o pensa­mento e o comportamento, levando-nos a “não ter uma visão geral da situação”. A isso, vamos contrapor: o expandido não é melhor [124] que o restringido. O importante é você usar todos os softwares instalados no seu cérebro. O que acontece quando há uma possibilidade de perigo e o programa de ansiedade está ativado?

Consideremos três situações problemáticas que podem iniciar seu programa mental de ansiedade. Você está sendo ridiculariza­do na frente de um grupo de pessoas por alguém que quer aumen­tar o próprio status social perante o grupo, em detrimento do seu. A pessoa com quem você tem um envolvimento romântico está se comportando de modo estranho, chegou atrasada para um jantar, e vocês ficam longos momentos em silêncio, o que não acontecia antes. Você tem palpitações cardíacas enquanto conversa sobre problemas financeiros, e é a primeira vez que isso acontece. Nes­sas situações, e em muitas outras que induzem a pensamentos e sensações de ansiedade, a parte mais antiga do cérebro, associada à sobrevivência, já está considerando três tipos de ação: fugir, lu­tar ou paralisar. Esse processo ocorre sem qualquer contribuição da sua consciência. Na verdade, muito se tem pesquisado sobre o que causa esse estresse indevido, pois a sobrevivência não é mais o problema cotidiano dos tempos em que compartilhávamos o planeta com os tigres-dentes-de-sabre.

Entretanto, ainda há relíquias remanescentes no disco rígido da ansiedade, forças que permanecem ocultas até o momento an­sioso. Nesses momentos você consegue acessar um aumento da percepção, inclusive uma amplificação da visão, sendo capaz de enxergar a uma grande distância, e uma amplificação da audição, e capaz de sintonizar com maior clareza ruídos aleatórios vindos de uma determinada direção. Você tem maior capacidade de solu­cionar problemas. Para citar um exemplo dado pelos psicólogos da evolução John Tooby e Leda Cosmides: “Lugares estranhos, que você não ocupa normalmente - armário do corredor, galhos [125] de árvore podem subitamente se salientar como locais incluídos na categoria lugar seguro ou esconderijo.”32

A utilidade da ansiedade para seu sucesso, o de sua família, de seu parceiro e da sua empresa está ausente de discussões anterio­res. A surpreendente verdade sobre a ansiedade é:

  • Há situações em que você gostaria de ser uma pessoa alta­mente ansiosa.
  • Você precisa de uma pessoa ansiosa em sua equipe.
  • Sem ansiedade, pequenos problemas podem facilmente ir se transformando num desastre.

Já abordamos o fato de que os erros são necessários para a criati­vidade e as inovações. Sem os erros, não aprendemos nem evoluí­mos. Mas não devemos superestimar o valor dos erros; precisamos identificá-los logo no início, a fim de aprendermos a lição sem nin­guém sair prejudicado. É aí que o valor da ansiedade entra em cena.

O que há de especial em ansiosos sempre apavorados com ameaças e perigos potenciais é a sofisticada contribuição que dão aos outros. Quando tomados pela ansiedade, temos a mesma fun­ção que os canários nos túneis das minas: somos sentinelas, rea­gindo rápida e sonoramente ao primeiro sinal de perigo. Isso ocorre em cinco passos:

  • Medo: pessoas ansiosas ficam em estado de alerta à menor mudança no ambiente. São, portanto, extremamente aten­tas a problemas potenciais, especialmente em situações no­vas ou ambíguas. [126]
  • Sobressalto: pessoas ansiosas reagem com rapidez e intensi­dade à menor indicação de presença de perigo (por exem­plo, sons diferentes, ritmos interrompidos).
  • Aviso: pessoas ansiosas são rápidas em advertir os outros so­bre um perigo iminente. Possuem um desejo incomum de vigiar e cuidar; esse ato de “sair de seu caminho para ajudar os outros” as acalma.
  • Patrulha: se os outros não lhe dão atenção imediata, as pes­soas ansiosas vão investigar e coletar mais dados. Reúnem informações com o intuito de ser mais persuasivas, a fim de construir uma aliança com os outros e, juntos, afastarem o perigo.
  • Vigilância: pessoas ansiosas se abstêm de necessidades im­portantes, como dormir ou comer, e perseveram até que o problema seja resolvido.

Sim, você não quer ter ansiedade crônica. Sim, você não quer ter uma família ou uma equipe formada apenas por pessoas an­siosas. Mas, como pode ver, há enormes vantagens em ter um sis­tema de alarme humano. Pessoas não ansiosas não percebem sinais ambíguos que podem significar perigo. Pessoas não ansio­sas tendem mais a ignorar até os sinais óbvios de um perigo em potencial porque não julgam a informação mais premente do que qualquer outra coisa que lhes passa pela cabeça.

Em uma pesquisa fascinante, membros de um grupo foram levados a crer que tinham ativado, acidentalmente, um vírus de computador que infectou rápido todos os arquivos.33 A caminho de comunicar o ocorrido à administração, eles encontraram qua­tro obstáculos, impedindo que comunicassem ou pedissem ajuda a outros. Uma pessoa lhes pediu que respondessem a um pequeno [127] questionário para uma pesquisa, um funcionário disse onde pode­riam encontrar o administrador do prédio, mas lhes pediu o favor de ajudar com umas fotocópias, na porta da sala do administrador havia uma placa pedindo que visitantes aguardassem e, finalmen­te, depois de serem encaminhados a um técnico em computado­res, passaram por um aluno que “acidentalmente” deixou cair no chão uma pilha de papéis. Quatro obstáculos sociais planejados para fazê-los tropeçar. Para superar os obstáculos, eles precisavam ser determinados e insistentes, duas qualidades nem sempre asso­ciadas a pessoas que sofrem de ansiedade. No entanto, diante do perigo, as pessoas mais ansiosas contornaram todos os obstáculos sem perder o foco. Recusando pedidos de ajuda e atos de gentileza, foram mais eficientes do que seus colegas mais tranqüilos e feli­zes para alertar sobre o perigo e conseguir assistência imediata.

Melhor que a positividade

As vantagens de ser uma pessoa ansiosa não estão ao alcance de quem vive tipicamente no reino da positividade. Pesquisadores constataram que ser extrovertido, sociável e dominante não com­bina com a determinação férrea e a concentração das pessoas ansiosas.34 Em zonas de perigo, a ansiedade prevalece sobre a po­sitividade. Nas situações em que há possibilidade de perigo, mas os sinais são obscuros, complicados ou duvidosos, a ansiedade prevalece sobre a positividade. Nesses casos, as pessoas ansiosas descobrem soluções e, tendo gente à sua volta (amigos, família, co­legas), compartilham os problemas e as soluções. Os grupos são mais bem-sucedidos quando formados por uma mistura de tipos de personalidade com pontos fortes variados e pelo menos uma sentinela ansiosa. [128] 

Como aplicar efetivamente à ansiedade

  1. Crie uma atmosfera em que a atitude vigilante das pessoas ansiosas seja encarada como um ponto psicologicamente forte, e não uma neurose a ser curada. Fale claramente, ex­plicando aos outros que o valor inerente à ansiedade traz o equilíbrio necessário a uma cultura, tentando maximizar o prazer, o crescimento e a busca de realização de sonhos e aspirações. Um grupo bem-sucedido mescla pessoas com diversas motivações, desde alcançar objetivos até evitar os perigos.
  2. Estimule sempre a atenção aos problemas. Crie canais de informação, designando para trabalhar no centro do grupo alguém que tenha a medida exata de pontos fortes, isto é, que seja sensível, articulado, persuasivo, socialmente co­nectado e ciente dos diversos pontos fortes das outras pes­soas (a fim de encontrarem as soluções mais rápidas).
  3. Crie uma estrutura de incentivos, com recompensas para formas mais discretas de detectar e neutralizar os proble­mas. Isso significa que uma força antiterrorista que impede a entrada de armas num aeroporto deve ser tão valorizada quanto um agente que agarra um criminoso prestes a explodir uma bomba escondida na mochila. A mídia adora exal­tar um indivíduo como herói porque propicia uma matéria mais fácil, mais continuada, mais romantizada. Organiza­ções devem escrever suas próprias histórias, criando opor­tunidades para as sentinelas ganharem os aplausos quando merecidos. [129]
  4. Em vez de pensar em ameaças como algo presente-ausente, liga-desliga, lembre que as maiores ameaças frequentemen­te começam como sinais de fumaça, fracos, insidiosos, mal perceptíveis, que de repente aumentam muito. Reconheça a qualidade de quem detecta o começo da ameaça. É preciso deixar de estigmatizar esse processo, a fim de ver seu lado saudável, quando as pessoas ficam à vontade para falar de desgaste e desconforto.

Lembretes

  • Quando não evitamos emoções negativas, ganhamos agilida­de emocional, a capacidade de usar todas as nuanças das experiências emocionais.
  • Raiva, culpa, ansiedade e outras emoções negativas têm vá­rias e inesperadas serventias. Servem para nos dar coragem, regular o comportamento, manter-nos alertas ao ambiente e recarregar as energias criativas, além de outras vantagens.
  • Estratégias concretas como diminuir a velocidade podem ser usadas para transformar as emoções consideradas nega­tivas em boas ferramentas.
  • Abandone a ideia de rotular emoções como exclusivamen­te negativas ou positivas. Em vez disso, identifique o que é aconselhável ou não em cada situação.

Quando você era criança, provavelmente imaginava possuir al­gum superpoder (se não imaginou, perdeu uma boa oportunida­de). Talvez imaginasse poder voar, ter uma força descomunal ou ser invulnerável. Quando você pensa à luz dos benefícios associa­dos a todos os sentimentos - positivos e negativos -, se dá conta de [130] que não tem um único superpoder, e sim vários: tem um potenciador de coragem (raiva), um comportamento que mantém a ética nos trilhos (culpa) e um vigilante sempre alerta ao seu lado (an­siedade). No próximo capítulo, vamos examinar seu menospreza­do detector de mentiras (tristeza). Como seus sentimentos vêm e vão, você tem sempre um poder ao seu dispor.

Afinal, muitos preconceitos contra as experiências emocionais negativas surgem porque as pessoas misturam emoções proble­máticas, extremas, arrebatadoras, com suas primas mais benignas. Culpa não é vergonha, raiva não é fúria, ansiedade não é distúrbio de pânico. Em cada caso, o primeiro é uma fonte benéfica de in­formações emocionais que ativa a atenção, o pensamento e o com­portamento que conduzem a resultados desejáveis. [131]

 

 

Psicologia - Psicologia positiva
Personalidade - Inteligência emocional, 
11/17/2021 1:04:11 PM | Por Robert Biswas-Diener, Todd B. Kashdan
Por que o modo de buscarmos a felicidade não nos fará felizes

Na  Dinamarca do século XVI, Tycho Brahe era tão famoso pelo seu estilo extravagante quanto pelo seu gênio científico. O nariz de Brahe foi cortado num duelo (colocou no lugar um de metal) e ele ia a festas levando seu alce de estimação (que bebia ál­cool exageradamente), mas perpetuou sua fama com a contribuição para a astronomia. Em vez de aceitar as velhas noções filosóficas ou religiosas sobre a natureza do céu, Brahe observou e cartogra­fou todas as estrelas que via. Suas anotações levaram a descobertas extraordinárias, como o nascimento e morte de estrelas, um fe­nômeno em contradição com as antigas teorias de que todos os corpos celestes eram fixos. Nariz artificial e alce bêbado à parte, a obra de Brahe lhe valeu um lugar na história como pai da astro­nomia moderna, ao lançar a base na qual seu assistente, Johannes Kepler, e todos os astrônomos modernos construíram esta ciência.

Hoje a psicologia vive um “momento Brahe”. Até agora mui­tos têm tido sucesso em criar abordagens intuitivas para melhorar a qualidade de vida. Você provavelmente conhece algumas dessas teorias, como a hierarquia de necessidades de Abraham Maslow - a ideia de que as pessoas precisam satisfazer suas necessidades básicas, como comida e segurança, antes de se ocuparem das [19] necessidades de autoestima e realização pessoal. O bom senso não poupa conselhos para a pessoa tornar-se mais feliz: ser gentil, va­lorizar o que tem, não se dedicar totalmente ao trabalho, passar mais tempo com a família e os amigos, ter uma vida frugal e mo­deração em tudo. Boas sugestões, mas haverá motivos para crer que essas dicas são universalmente aplicáveis ou sempre verda­deiras?

Felizmente, estamos vivendo numa era admirável da psicolo­gia, graças à introdução da sofisticada neurociência, aos avanços da estatística, ao computador portátil, que permite comunicação imediata de experiências cotidianas, e a outras conquistas técni­cas e metodológicas. É o nosso momento Brahe, promovendo a mudança do entendimento básico da qualidade de vida. No campo da psicologia em geral, e no tema específico da felicidade, esses novos instrumentos produziram duas descobertas transformado­ras: primeira, nossa abordagem do tema da felicidade está toda errada; segunda, podemos fazer alguma coisa para corrigir isso.

Por que o modo de buscarmos a felicidade não nos fará felizes

Faz muito tempo que os humanos deixaram de viver em socie­dades caçadoras-coletoras. Já que passamos menos tempo nos preocupando com abrigo, períodos de seca e a próxima caça é ra­zoável voltar nossa atenção coletiva para a busca da felicidade. De fato, num estudo com mais de dez mil participantes de 48 países, os psicólogos Ed Diener, da Universidade de Illinois, e Shigehiro Oishi, da Universidade de Virgínia, constataram que pessoas de [20] todos os cantos do mundo consideram a felicidade mais impor­tante do que qualquer outra realização pessoal altamente desejá­vel, como ter uma vida significativa, ficar rico ou ir para o céu.2

A pressa de ser feliz é estimulada, pelo menos em parte, por um crescente campo de pesquisa sugerindo que a felicidade não só faz a gente se sentir bem, mas faz bem para a gente. Pesquisa­ dores da felicidade associaram sentimentos positivos a uma série de vantagens, desde maiores ganhos financeiros ao melhor fun­cionamento do sistema imunológico e a maior predisposição à gentileza.3 Esses resultados positivos desejáveis não só estão rela­cionados à felicidade, mas a ciência indica que emoções positivas são a causa da felicidade. Alguns pesquisadores, como Barbara Fredrickson, da Universidade da Carolina do Norte, chegam a afirmar que a felicidade é um direito evolucionário inerente à humanidade.4 Ela argumenta que a felicidade ajuda a criar recursos pessoais e sociais vitais para ter sucesso na vida e - do ponto de vista evolucionário - para a própria sobrevivência.

Mas a pergunta que não quer calar mostra uma face não tão feliz assim: se a felicidade proporciona uma vantagem evolucionária, se a valorizamos tanto e temos milhares de anos de bons conselhos para conquistá-la, por que ela não é mais disseminada? Por que não estamos falando sobre uma epidemia de felicidade, em vez de aumentos astronômicos de casos de ansiedade e depres­são? O pesquisador Corey Keyes, da Universidade de Emory, ana­lisou uma amostra de três mil adultos norte-americanos de idades variadas e fez a constatação alarmante de que apenas 17% estavam progredindo psicologicamente. [21] Como é possível acontecer isso? Verifica-se que, apesar de toda a atenção dada a esse tópico, as pessoas não sabem fazer escolhas que levem à felicidade. Não queremos criticar sua malhação na academia, férias na praia, prática de meditação ou a decisão de pôr seus filhos em quatro atividades diferentes depois da escola. Quando se trata de encontrar a felicidade, somos tão culpados quanto você, pois também não chegamos lá. Na verdade, várias pesquisas recentes mostram que todo mundo está mais ou menos nesse desencontro.

Vamos começar com a pesquisa de Barbara Mellers, da Uni­versidade da Pensilvânia, e seus colegas Tim Wilson e Daniel Gilbert, o autor do best-seller O que nos faz felizes? Esse trio condu­ziu uma série de estudos sobre “erros de previsão emocional”. As­ sim como meteorologistas experientes cometem pequenos erros que podem ter um grande impacto na previsão do tempo de uma semana, as pessoas fazem a mesma coisa ao prever como um even­to as afetará emocionalmente no futuro. Superestimamos, por exemplo, o quanto ficaremos felizes se nosso candidato ganhar as eleições ou nosso time de futebol vencer o jogo.8 E tendemos a subestimar dificuldades que teremos, como mudar para outra cidade.

Tomemos como exemplo o estudo em que Mellers e seus co­ legas investigaram mulheres que fizeram teste de gravidez na instituição de planejamento familiar Planned Parenthood.9 (É im­portante saber que nenhuma das mulheres nesse estudo estava tentando engravidar.) Em termos sucintos, as mulheres caíram em dois grupos: as que temiam ter um filho e gostariam de um resultado negativo, e as que gostariam de um resultado positivo. Os pesquisadores disseram às mulheres que fizessem uma previ­ são do grau de felicidade que teriam se tivessem o resultado [23] desejado. Eles esperavam que as mulheres desejosas do resultado negativo sentissem uma espécie de júbilo ao saber que não estavam grávidas, e que as desejosas de engravidar ficassem muito contentes ao receber o resultado positivo.

Ao final do teste, os pesquisadores ficaram surpresos ao cons­tatar que não houve agonia nem êxtase, mas apenas uma ponti­nha de declínio no equilíbrio emocional das mulheres dos dois grupos. As que desejavam um filho não ficaram abatidas ao rece­ber o resultado negativo; ficaram só um pouquinho desapontadas e voltaram rapidamente ao estado emocional normal (podemos esperar reações diferentes, se essas mulheres tivessem tentando engravidar, sem sucesso, durante meses ou anos). Quanto às mu­lheres que não queriam ter um filho e descobriram que havia um embrião não planejado em seu ventre, o temor previsto não se concretizou, pois tiveram uma reação muito mais tranqüila (e uma pequena minoria teve uma inesperada sensação de prazer). Uma razão pela qual erramos ao prever o que nos fará felizes no futuro é que não avaliamos bem nossa capacidade de tolerar, e até de nos adaptar a, situações incômodas. Tomando outro exemplo: um novo emprego nos intimida na primeira semana, mas pouco depois estamos agindo como se já trabalhássemos lá há anos.

A maior razão para se preocupar com os erros de previsão emocional é que quase todas as decisões que você toma agora se baseiam na suposição de como espera se sentir no futuro. Você compra uma casa espetacular de cinco quartos num condomínio chique, imaginando-se tomando café da manhã na varanda de frente para um belo gramado, minimizando os trinta minutos a mais que levará para ir e voltar do trabalho ou para visitar os ami­gos. Você abre mão de passar muito tempo com a família enquanto [25] tenta conseguir uma boa promoção no trabalho. Você escolhe um/a parceiro/a, decide quando (ou se quer) ter filhos ou escolhe uma região ideal para morar, mas geralmente essas decisões são com­ prometidas pela falta de compreensão do seu mundo emocional. Nisso, você não está só. Todos nós tendemos a exagerar o grau de positividade da reação a eventos positivos, e subestimamos nossa capacidade de tolerar o desconforto. Quando se trata de como va­mos nos sentir no futuro, quase sempre erramos.

O pior de tudo na busca da felicidade é a informação de uma recente série de pesquisas conduzidas por íris Mauss, da Uni­versidade da Califórnia, em Berkeley.10 Mauss é um pouco como Tycho Brahe; em vez de aceitar frequentemente as suposições, do tipo “podemos ser felizes”, prefere mapear os céus metafóricos para descobrir o que está lá no firmamento emocional. Ela chega ao ponto de fazer perguntas desconcertantes, como: “As pessoas devem buscar a felicidade?” Um estudo de Mauss e seus colegas mostrou que as pessoas que valorizam a busca da felicidade são de fato mais solitárias que as demais. Os pesquisadores manipula­ram a importância dada à felicidade, fazendo com que a metade dos participantes lesse um artigo falso de jornal exaltando as mui­ tas vantagens da felicidade. Aqueles que leram o artigo disseram se sentir mais solitários do que os que não leram, e produziam uma taxa menor de progesterona (um hormônio liberado quando nos sentimos ligados a outra pessoa). Portanto, apostar tanto na feli­cidade tem implicações na saúde também!

Em suma: nós, humanos, somos péssimos em supor se sere­mos felizes no futuro e, no entanto, baseamos decisões importan­tes na vida nessas previsões equivocadas. Compramos aparelhos de televisão, fazemos seguro de vida, aceitamos convites para jantar [26], tudo por causa de previsões imperfeitas da felicidade que nos trará. Não é à toa que nos damos mal no departamento da felici­dade, e o tema da felicidade está em alta para escritores, instruto­res e conselheiros. A trabalheira imposta pela noção universal de felicidade - com as pessoas seguindo à risca os passos ditados pe­lo bom senso e supostamente benéficos para todo mundo - não funciona. É um pouco como o nariz postiço de Tycho Brahe: uma imitação razoável, mas não melhora a respiração. O que todos nós precisamos com relação à felicidade é um novo conjunto de estra­tégias. Precisamos de uma percepção mais relevante e completa da abrangência disso.

Num mundo em que rejeição, fracasso, insegurança, hipocri­sia, perdas, tédio, e pessoas chatas e detestáveis são inevitáveis, nós, os autores, rejeitamos a noção de que a positividade é o único lugar para encontrar as respostas. Rejeitamos a crença em que saudável é ter uma vida com a menor dor possível. Na verdade, é somente quando tentamos nos esquivar das inescapáveis dores da vida - seja a morte do parceiro, um divórcio, não conseguir a pro­moção no trabalho - que o sofrimento se torna algo que sentimos como dor. A dor aparece quando damos as costas a um aumento do desconforto emocional, físico ou social.

Em vez de batalhar por mais felicidade, valorizamos a capaci­dade de acessar toda a gama de estados psicológicos, tanto os po­sitivos como os negativos, a fim de aproveitar efetivamente o que a vida oferece. Numa palavra: inteireza. Diante dos desafios ine­vitáveis que a vida nos traz, agimos melhor quando paramos de fazer tentativas ineficazes ou desnecessárias de controlar pensa­mentos e sentimentos negativos. Uma pessoa plena age a serviço daquilo que define como importante, e às vezes isso exige recorrer ao lado obscuro da gama de emoções. [37] 

Pesquisas científicas apoiam a ideia de que, em geral, aquilo que vemos como sentimentos negativos podem ser mais benéficos do que os positivos. Estudos mostram, por exemplo:

  • Alunos que têm dificuldades mas não desanimam, têm me­lhor desempenho nas provas do que seus colegas que “enten­dem tudo” rapidamente.11
  • Pessoas centenárias - as que têm 100 anos ou mais - acham que os sentimentos negativos, e não os positivos, estão asso­ciados à saúde melhor e mais atividade física.12
  • Detetives da polícia que foram vítimas de crimes mostram mais determinação e envolvimento no trabalho com civis vítimas de crimes.13
  • Marido e/ou mulher que perdoam agressões físicas ou ver­bais são mais sujeitos a sofrer outras agressões, mas para os que não perdoam há uma forte diminuição das agressões.14
  • Trabalhadores que têm mau humor de manhã e bom humor à tarde demonstram mais concentração no trabalho do que seus colegas bem-humorados o dia inteiro.15

Quanto à criatividade, os pesquisadores viram que as idéias suge­ridas por pessoas que têm estados de ânimo tanto positivo como negativo são consideradas 9% mais criativas, em comparação com as idéias apresentadas por pessoas contentes. No trabalho, a ten­são associada a desafios parece promover a motivação. Ronald Bedlow e seus colegas, que conduziram um recente estudo sobre envolvimento no trabalho, descreveram suas descobertas assim:

Defendemos que adaptativo é o equilíbrio entre a aptidão pa­ra suportar fases de afeto negativo e conseguir mudar para [28] afetos positivos. Minimizar as experiências negativas e repri­mir as positivas não é funcional para a motivação no trabalho nem para o desenvolvimento pessoal.16

A pesquisa da equipe de Bedlow enfatiza também um ponto vital e frequentemente ignorado sobre os estados psicológicos: são temporários. Quando as pessoas falam em felicidade ou em de­pressão, supõem que são experiências relativamente estáveis. No movimento da psicologia positiva moderna, está na moda falar em felicidade sustentável, como se clicar num botão produzisse um sorriso permanente. A verdade é que alternamos entre estados po­sitivos e negativos. Pessoas que têm inteireza, aquelas que se dis­põem a trocar o positivo pelo negativo a fim de obter os melhores resultados numa dada situação, são mais saudáveis, mais bem-sucedidas, aprendem mais e gozam de maior bem-estar. Chama­mos a isso “20% de vantagem” porque a inteireza abrange os que vivem na positividade cerca de 80% do tempo, mas que também podem se valer dos estados negativos nos outros 20% do tempo. Certamente, não pretendemos sugerir que esses percentuais se­jam exatos, que possam ser usados como valores corretos. Não. Só estamos dizendo que a razão de 80:20 é uma regra de ouro para o entendimento da inteireza.

A maré crescente da ansiedade

A ansiedade é notícia há mais de uma década. Guerras, terroris­mo, impasses políticos, crise do mercado imobiliário, obesidade infantil - tudo isso constitui eventos geopolíticos e econômicos importantes. Mas o insidioso aumento da ansiedade é tão digno [29] de nota quanto os outros. O estresse é epidêmico e, como qualquer vírus, não faz discriminação de classe social, nível de inteligência ou profissão. Segundo o National Institute of Mental Health, em qualquer período de 12 meses, um em cada cinco norte-ameri­canos adultos é acometido de distúrbio de ansiedade.17 Em ado­lescentes, o número é mais alto: 25% sofrem de um distúrbio de ansiedade clinicamente significativo. Levando em conta o tempo de vida de um adulto, os números saltam para a elevadíssima ta­xa de um em cada três norte-americanos sofrendo de ansiedade. E essas estatísticas só mostram as pessoas que lutam contra uma ansiedade diagnosticável. Se acrescentarmos estresses do cotidia­no, medo de viajar de avião, de falar em público, de preocupações financeiras, o número chega a quase 100%.

Paradoxalmente, ficamos cada vez mais estressados porque colocamos muita ênfase no conforto. Temos purificadores de ar, ar-condicionado no carro, óculos polarizados, banhos de espuma, roupas à prova d’água, cobertores elétricos e camas adaptadas à conformação específica de nossa espinha dorsal. É difícil enfati­zar suficientemente esse ponto: enquanto, historicamente, escolhe­mos o prazer em vez da dor - quem não o faria? -, a era moderna traz uma aberração na história humana. Não apenas gozamos do conforto, mas somos viciados em conforto.

Por que o conforto é indicativo de um problema? Os altos ní­veis atuais refletem a tendência a usar sabonetes antibacterianos. Esses sabonetes significam que ficamos menos expostos a bacté­rias e, portanto, menos capazes de resistir a elas. Sim, nos velhos tempos a vida era dura, muito trabalhosa, mas teve o efeito cola­teral positivo de enrijecer mentalmente nossos ancestrais. Prova disso é um anúncio clássico do serviço público britânico de 1939, em plena guerra: “Mantenha a calma e vá em frente.” [Keep calm and carry on.] [30] Em outras palavras, as bombas estão caindo, mas não entre em pânico; continue levando a vida. Hoje, seguimos na direção oposta. Vejamos um popular anúncio do serviço público norte-americano contemporâneo: “Se liga. Não polua.” A ideia central dessa mensagem é que as pessoas têm hoje tantos luxos e acessórios que - espere aí! - não podemos parar de jogar coisas no chão e usar a lata de lixo? Quando o lixo dos cidadãos se torna um problema, é sinal de que a sociedade atingiu um elevado estado de conforto.

Atualmente, com tantos supérfluos à nossa disposição, cria­mos a tendência de evitar o desconforto. Clicamos loucamente no smartphone toda vez que estamos sozinhos - sai fora, tédio! Cor­remos como loucos para pegar a faixa expressa na estrada - frus­tração no trânsito, não! Ligamos a televisão assim que chegamos do trabalho - chega de estresse e confusão! O que muita gente não percebe é que essa aparente atração natural por uma vida mais fácil tem raízes numa fuga ao desconforto. Quem teme a rejeição evita as pessoas; quem teme o fracasso não assume riscos; quem teme a intimidade se refugia na televisão ou na internet quando chega em casa. A fuga é uma atitude básica em nossos dias.

Há dois tipos de fuga que causam problemas: evitar o prazer e evitar o sofrimento. A primeira vista, é difícil acreditar que não se queira ter prazer, mas todos nós conhecemos alguém que não quer se divertir, alegando que tem coisa melhor para fazer. (Você pode ser uma dessas pessoas.) Nessa mesma linha, também há quem ache que alardear a felicidade pode dar azar, que comemorar al­guma coisa boa - o aniversário, uma promoção, atuação perfeita numa aula de kickboxing - vai atrair muita atenção e causar des­peito nas pessoas. Os psicólogos chamam a isso “desqualificar o positivo”.18 Infelizmente, ao desqualificar o positivo, perdemos [31] esses momentos de ouro, magníficos, que fazem parte de uma vi­da bem vivida. Ao privar os outros da oportunidade de comparti­lhar nossas emoções positivas, nossas relações sociais se tornam menos íntimas. Se não saboreamos os detalhes de eventos positi­vos, fica mais difícil acessar as boas lembranças para animar um dia sombrio.

A outra forma de fuga, a mais comum de todas, é recusar os estados psicológicos considerados negativos, como a raiva e a an­siedade. Essa atitude reflete a filosofia dos hedonistas da Grécia Antiga - fortes antagonistas intelectuais dos estoicos - cujo pres­suposto era que o bom da vida está no prazer. O problema com a filosofia hedonista é que as pessoas podem se tornar excessiva­mente céticas a respeito de tudo o que for negativo. Isso é uma grande verdade nos tempos modernos, quando dizemos aos ami­gos “veja o lado bom”, “vamos lá, dê um sorriso”, “anime-se”. Além do famoso estudo de Fritz Strack, que mostra que os parti­cipantes da pesquisa que mantinham o lápis entre os dentes (sem saber que assim ativavam os músculos do sorriso) escreviam com maior clareza e tinham opiniões mais positivas a respeito de si mesmos que os demais pesquisados.19 Numa prática vergonhosa, conselheiros de felicidade têm usado esse estudo como prova de que as pessoas devem “fingir até conseguir”. Em essência, todas essas estratégias tentam convencer as pessoas a sair de um estado negativo. Infelizmente, evitar os problemas significa também evi­tar encontrar as soluções para eles.

Você pode imaginar as lutas históricas pela igualdade racial ou por direitos humanos sem um toque de raiva? Pode imaginar vi­ver num mundo em que ninguém tenha remorsos? Pode imaginar uma viagem a um país exótico em que tudo se passe exatamente como planejado? Ou uma vida em que você nunca se debateu com [32] a grave decisão de desistir de um objetivo e continuou insistindo apesar da pouca chance de sucesso? Existe um mal disfarçado preconceito contra estados negativos, e a conseqüência de evitá-los é inibir, inadvertidamente, o crescimento, a maturidade, a aven­tura e o sentido da vida.

Como a interireza se apresenta

Agora é um momento oportuno para ilustrar como a inteireza se apresenta na vida real. Recorremos ao apoio de cientistas que acre­ditam que a história pessoal é mais significativa do que as escalas de felicidade artificiais dominantes em tantas pesquisas. Se existe algo próximo a um exame de sangue ou raios X para qualidade de vida, são as ricas histórias de nossa experiência diária. As histó­rias que contamos sobre os eventos do dia - um pneu furou, che­guei atrasado para a reunião, conheci uma pessoa interessante, vi um pôr do sol lindo - revelam realizações, fracassos, atitudes, de­sejos e anseios, expõem nossa identidade e aquilo a que aspiramos ser e a fazer. Nesse viés, vamos descrever três pessoas que encar­nam aspectos da qualidade que chamamos de inteireza.

Por trás da síndrome do impostor

Apesar de estar cursando o terceiro ano da faculdade de psicologia clínica na Universidade Pacific, Jennifer ainda abria a correspon­dência esperando receber uma carta com o timbre da universidade. Em sua imaginação, a carta diria: “Jennifer, lamentamos infor­mar que cometemos um erro ao aceitá-la no curso de graduação. Sua solicitação deveria ter sido negada.” Como muita gente, Jennifer [33] tinha o sentimento de inadequação pessoal chamado de “síndrome do impostor”, muito comum quando a pessoa atinge um nível mais alto: promoção no trabalho, mudança de carreira, estu­dos avançados. Esse sentimento de duvidar de si mesmo é descon­fortável, às vezes até doloroso. Em casos extremos, é tão forte que leva a pessoa a rejeitar a oportunidade.

Muita gente não vê que o fato da dúvida, com moderação, tem uma função saudável. A dúvida é um estado psicológico que nos leva a fazer um balanço de nossas competências, e a um esforço para melhorar nas áreas de deficiência. Karl Wheatley, pesquisa­dor da Universidade Estadual de Cleveland, afirma que a dúvida pode ser benéfica - pelo menos no caso de professores primários.20 Ele destaca o fato de que, quando um professor tem incerteza sobre seu desempenho, esse sentimento incita à colaboração com outras pessoas, promove a reflexão, motiva o desenvolvimento pessoal e prepara para aceitar mudanças.

Jennifer, ainda novata, usava a dúvida para tomar boas deci­sões sobre quais pacientes encaminhar para terapeutas mais ex­perientes, e quais ela poderia atender. À medida que adquiria mais conhecimentos, ela usava a dúvida para aprimorar sua com­petência e ajudar seus pacientes. Ao eleger a dúvida como ferra­menta, entre tantas outras, mas sem reprimir ou rejeitar essas outras, Jennifer se tornou uma excelente terapeuta e continua a se aperfeiçoar profissionalmente.

As vantagens de jogar a toalha

Em 1995, um aventureiro sueco chamado Goran Kropp estabele­ceu um novo padrão de extremos para um grupo de peritos em escaladas do monte Everest.21 Ao contrário de seus pares [34] alpinistas, Kropp queria escalar sem cilindros de oxigênio, sem cordas e escadas fixas, sem ajuda de sherpas e sem transporte motorizado de qualquer espécie. Montou numa bicicleta e percorreu os quase 13 mil quilômetros de sua casa na Suécia até Katmandu. De lá, foi carregando grandes fardos nas costas até o acampamento no pé do Everest. Saiu do acampamento antes de qualquer outra expedição, e foi subindo por uma trilha de gelo e neve nas escarpas rochosas. No dia de chegar ao cimo, porém, faltando apenas cem metros para alcançar o ponto mais alto da Terra, Kropp tomou a difícil decisão de voltar atrás. Sua decisão se baseou nas condições do fim de tarde, na situação em que ele teria que descer, com muito frio, cansaço, e na escuridão.

O extraordinário autocontrole de Kropp, a decisão de voltar quando estava tão perto do objetivo, depois de ter investido tanto, foi muito sensata e quase divinatória. Uma semana depois, mem­bros de várias expedições sofreram o que se chama “febre do topo” e ficaram presos no flanco do Everest, fustigados pelas nevascas, porque não voltaram no tempo previsto.22 Os dias que se seguiram ficaram conhecidos como o Desastre de 1996 no Everest, que le­vou oito vidas na temporada mais mortal na história das escaladas do Himalaia. Nesse contexto, a decisão de Kropp talvez tenha sal­vado sua vida. E lança outra luz na suposição comumente aceita de que a perseverança é boa e a desistência é má.

É muito fácil ter um objetivo. Pessoas que têm metas específi­cas usam um padrão de medida para avaliar o êxito, diretrizes para aderir aos seus valores, um alvo definido para motivá-las e uma bússola para tomar decisões.23 O ramo dos negócios tem me­tas para melhorar a produção, e os times de futebol têm gols - li­teralmente - para vencer os jogos. Para muita gente, ter uma meta é sinônimo de compromisso, e compromisso com a meta, por sua [35] vez, é quase sinônimo de sucesso. O lendário boxeador Muham­mad Ali disse, em tom jocoso: “Eu odiava cada minuto de treino, mas dizia: ‘Não desista. Sofra agora e seja campeão pelo resto da vida.”’24 Aí está a clara noção de que apostar tudo nas metas é o caminho mais provável do sucesso. Por outro lado, desistir é re­servado para os moral e fisicamente fracos.

Como você já percebeu, rejeitamos a noção de que desistir (certamente um desconforto psicológico) seja horrível. A fidelida­de cega às metas produziu, entre outras coisas, a “febre do ouro”, frequentemente associada à Corrida do Ouro na Califórnia, em 1859, quando mineradores fizeram enormes investimentos finan­ceiros, físicos e emocionais em busca da fortuna, e resultou em nada. A pesquisadora Eva Pomerantz, da Universidade de Illi­nois, afirma que investir pesadamente na busca de um objetivo pode elevar a ansiedade a ponto de corroer a qualidade de vida psicológica da pessoa.25 Isso é tanto mais verdadeiro quando a pessoa se esforça, mas põe o foco no possível impacto negativo de não atingir a meta, aumentando ainda mais o estresse.

Uma das maiores vantagens de algum desânimo - tipicamente desconfortável e que as pessoas sempre tentam evitar - é que, ao senti-lo, nossa tendência é desistir de atingir a meta. A tristeza, frustração, confusão, e até a culpa, servem ao mesmo propósito. São sinais para você puxar o freio e recuar para dentro de si mes­mo a fim de refletir, de conservar sua energia e seus recursos. Isso é especialmente importante para minimizar nossa tendência de continuar investindo em causas impossíveis ou agir com base em um fundo perdido, em vez de tomar a decisão de diminuir as per­das quando os ganhos parecem cada vez menos prováveis. As pes­soas com inteireza são capazes de ter flexibilidade na busca de objetivos, continuando a investir à medida que há progressos num [36] ritmo aceitável e, quando o fracasso é quase certo, trocando os antigos objetivos por outros.

As vantagens da fantasia

Quando menina, o sonho de Melanie Baumgartner era ser juíza. Na universidade, porém, ela se apaixonou e sua vida tomou um rumo inesperado. Em vez de cursar direito, Melanie encontrou um novo sentido em ser dona de casa e mãe. Às vezes, levando e buscando as crianças da escola, ela se surpreendia devaneando sobre aquela outra vida, batendo o martelo para exigir ordem no tribunal.

Num fenômeno psicológico chamado sehnsucht, não é incomum o fato de o anseio por uma oportunidade perdida ou um objetivo não alcançado despertar uma rica fantasia, em que nos imagina­mos realizados naquela situação.26 Sehnsucht é um bálsamo psico­lógico importante para o tormento da oportunidade perdida. Os participantes de uma pesquisa internacional que tinham sehnsucht foram capazes de aceitar a fantasia e transformá-la em compen­sação emocional. A única exceção digna de nota foram os norte-americanos. Ao contrário dos europeus, os norte-americanos são muito mais propensos a achar que seus sonhos são realizáveis e, portanto, relutam em mantê-los no reino da fantasia, o que ten­dem a considerar uma atitude negativa. Mas a fantasia pode ser um recurso muito valioso.

Hoje, com seus filhos crescidos, Melanie pode voltar à facul­dade de direito. Mas ela já não sente tanto o desejo de ser juíza, em parte porque vivenciou as conquistas emocionais em suas fan­tasias. Sehnsucht é uma das muitas estratégias que as pessoas inteiras [37] usam para administrar as conseqüências de terem tomado outro caminho, para tornar a desistência palatável quando foi sen­sata, e a lidar com o desapontamento.

Sabemos que o sofrimento é terrível. Vamos deixar bem claro que não desejamos que você fique arrasado por objetivos frustrados ou porque seu namorado dormiu com a sua irmã. Não estamos sugerindo que você prenda a respiração embaixo de água gelada sem tremer um músculo. Estamos apenas dizendo que acumular emoções que parecem agradáveis agora e evitar emoções que pa­recem desagradáveis agora não é a melhor estratégia para viver bem. Neste livro, oferecemos a inteireza como alternativa a que­rer tirar proveito somente do positivo. A característica principal das pessoas inteiras é a grande capacidade de negociar com tudo o que a vida lhes apresenta. Elas possuem o que chamamos de agi­lidade emocional. Por quê? Porque sabem tirar o maior proveito possível de uma situação, adequando seu comportamento - do la­do bom ou do lado obscuro - a cada desafio que enfrentam. Elas sabem usar os dois lados de todos os traços de personalidade: sé­rio e brincalhão, passional e objetivo, extrovertido e introvertido, altruísta e egoísta. São bondosas, mas seletivas ao conceder seu tempo e energia. Finalmente, pessoas que têm inteireza se bene­ficiam da relutância em desprezar qualidades que a sociedade menospreza. A seguir, vamos expor o que significa ser emocional, social e mentalmente ágil, para você entender a amplitude, a be­leza e as vantagens da inteireza. [38]

Agilidade emocional

Na inteireza, não se trata de evitar emoções negativas, mas de ti­rar o “negativo” delas. Pode-se ver isso no braço da ciência em que se apoiam as boas psicoterapias. Os psicólogos Jonathan Adler (do Franklin W. Olin College of Engineering) e Hal Hershfield (da Universidade de Nova York), testaram a crença predominante de que a terapia funciona quando livra a pessoa de problemas como a depressão, e ajuda a montar estratégias para estimular a positividade.27 Esses pesquisadores observaram 47 adultos em tratamento terapêutico de ansiedade e depressão, e para aprender a lidar com eventos de maior tensão, como a transição para a paternidade/maternidade. Adler e Hershfield queriam saber o que acontece antes de o cliente resolver seus problemas, antes de sua qualidade de vida melhorar e antes de passar realmente a gostar de si mesmo.

Você pode se surpreender tanto quanto eles ao saber que as pessoas em terapia não têm menos experiências negativas e mais experiências positivas, mas passam a se dizer mais felizes. Na ver­dade, o sucesso da terapia começa quando a pessoa passa a se sen­tir confortável com emoções mistas (tanto alegres quanto tristes) sobre o trabalho, os relacionamentos e qualquer outra situação. Vejamos o relato de um cliente após algumas sessões:28

Foram semanas difíceis. Minha esposa e eu comemoramos a boa notícia de uma gravidez saudável com nove semanas (o tempo em que perdemos a gravidez em janeiro passado). Mas também sinto tristeza por ainda estar procurando emprego, e por minha mulher, cuja avó está morrendo. Sinto assim: “quan­to mais posso aguentar?” Mas ao mesmo tempo me sinto razoavelmente [39] confiante e feliz. Não que não fique abatido, mas agradeço as coisas boas da minha vida, especialmente meu ca­samento.

O ponto crucial aqui é que essa pessoa, e tantas outras que de­monstram a capacidade de vivenciar emoções positivas e negativas, teve, subsequentemente, ganhos maiores em bem-estar. Não é o que acontece no caso oposto: sentir a positividade não melhora a capacidade de ser emocionalmente ágil. Esse estudo sugere que a maior vantagem não está na felicidade, e sim que a maior vanta­gem provém de ser plenamente capaz, de ser inteiro, tolerando o bom e o mau sempre que surgirem.

Agilidade social

Os humanos são primatas e, portanto, criaturas sociais. Assim co­mo nossos primos chimpanzés, temos o cérebro altamente desen­volvido para a interação social. Podemos, por exemplo, interpretar facilmente expressões faciais sutis, enquanto os cães, porcos e fal­cões não podem. Temos também centros de linguagem altamente evoluídos, que nos permitem expressar grandes quantidades de informação complexa, inclusive toda a gama de intenções e dese­jos. De fato, somos tão sociais que muitos pesquisadores afirmam que só podemos sobreviver por meio da interdependência. Dacher Keltner, psicólogo em Berkeley, afirma que a generosidade, a hospitalidade e a benevolência são nossos estados naturais.29 Em­bora possamos citar facilmente exemplos de egoísmo, fraude, ganância e outros males sociais, tendemos a achar que as pessoas são capazes de boas ações extraordinárias. De fato, ensinamos às crianças que a bondade é a virtude suprema. [40]

Os efeitos colaterais da bondade e gentileza são inúmeros: as pessoas bondosas vivem mais, ganham mais, são cidadãos melho­res, e os relacionamentos íntimos que cultivam podem sanar mui­tos danos de uma infância problemática. Mas se olharmos mais de perto o mundo social, teremos que admitir um fato incômodo: se estamos envolvidos no amor, no trabalho, em qualquer recreação, precisamos ser gentis, mas também precisamos ser seletivos. Não podemos nos dar ao luxo de nos entregar completamente a qual­quer pessoa. Tempo e energia são recursos limitados, que precisa­mos empregar com discernimento.

Às vezes, em certas situações, precisamos até agir de maneira diametralmente oposta à gentileza. Quem se dispõe a acessar seu lado obscuro está em posição de vantagem, sejam pais, atletas, soldados, professores ou empresários. E aqui vem a parte mais di­fícil de assimilar: é melhor assim para todo mundo. Mesmo os me­lhores pais têm momentos em que não estão dispostos a se esmerar pelos filhos; paternidade e maternidade, como qualquer emprego, precisam de uma hora de almoço. É quando os pais não se cuidam que os filhos sofrem de formas inesperadas e desnecessárias.

Antes que você jogue este livro pela janela ou venda para um sebo, queremos lhe apresentar uma de nossas heroínas científicas, Esther Kim, socióloga da Universidade de Yale. Kim é uma pessoa singular entre os acadêmicos, pois larga o laboratório e sai para o mundo.30 A fim de observar como pessoas desconhecidas intera­gem, Kim percorreu milhares de quilômetros em ônibus de trans­porte público. Ela ficou particularmente fascinada pelo modo como as pessoas evitam sutilmente que outro passageiro ocupe o assento vago ao lado.

Todos nós já tivemos a experiência de ver um passageiro en­trando no ônibus, trem ou avião, enquanto entoamos [41] silenciosamente o mantra “ao meu lado, não; ao meu lado, não”. Kim observou uma variedade impressionante de táticas criativas para evitar a convivência indesejada: gente no assento do corredor com fones de ouvido para fingir que não ouviam o outro pedir licença; sacola colocada no assento ao lado; cenho franzido, pernas estica­das, fingindo dormir; e a lista se alonga. Esses passageiros não são rudes; são humanos. Estão interessados na própria segurança, na energia gasta para interagir com um desconhecido, no conforto durante uma viagem longa. O estudo de Kim ilustra uma situação em que temos propensão a sair da norma de “ser gentil”.

Agilidade social é a capacidade de reconhecer como uma si­tuação difere de outra e alterar o comportamento de acordo com essas diferenças. A pessoa socialmente ágil é proativa, seleciona e influencia as situações que se apresentam. Dependendo das especificidades da situação, a pessoa socialmente ágil pode ser acolhe­dora, dizer mentiras inofensivas, ou fazer pressão; pode se exibir, flertar, elogiar, oferecer ajuda. Pode até mencionar casualmente que limpou a geladeira recentemente para mostrar ao marido que é boa dona de casa. As pessoas socialmente ágeis não são maquia­vélicas, mas operam com um conjunto de normas sociais mais inclusivo e flexível do que o básico “seja gentil”. É interessante notar que, em muitos casos de infração das regras, não intencionamos obter algum ganho pessoal, e sim fazer com que o outro se sinta bem, fortalecer relacionamentos e alcançar metas signifi­cativas.

Agilidade mental

O conceito psicológico de mindfulness (consciência plena) é famo­síssimo. Tem raízes nas práticas budistas, e é a superstar das [42] estratégias mentais. Uma pessoa mindful é aquela focada em viver o momento presente, em “observar com suavidade” o que está acon­tecendo no momento presente, em oposição a “julgar”. As pessoas mindful são mais conscientes, supostamente mais atentas e mais propensas a apreciar a vida do que as outras. Se você for a uma livraria, verá uma estante inteira de livros sobre comer conscien­te, pais conscientes, liderança consciente e até pôquer consciente. Autoridades no assunto dizem que a hiperconsciência é talvez o estado supremo do funcionamento humano, um lugar em que de­sejamos entrar e lá viver perpetuamente. Em conformidade com o provocativo tema deste livro, queremos ser os primeiros a lhe di­zer que é impossível permanecer em estado mindful constante. Se­ja escovando os dentes, seja levando as crianças à escola no piloto automático, é uma maravilha ter um cérebro que nos permite encontrar atalhos que liberam a energia mental para outros empre­endimentos mais significativos, mais intensos. É essencial ter um sistema inconsciente que processa a informação automaticamente, sem autoconsciência e esforço intencional.

Uma das áreas mais fascinantes da psicologia lida especifica­mente com nossa suscetibilidade a influências dos sinais sutis que existem por baixo da atenção consciente. Num estudo com alunos, conduzido pelo psicólogo holandês Ap Dijksterhuis, por exemplo, os sujeitos deviam cumprir uma tarefa antes de responder a perguntas de um teste.31 Um grupo de alunos devia escrever sobre como seria ser um professor. Esse grupo na “condição de professor” respondeu 60% das questões sobre conhecimento geral corretamente, enquanto o grupo de controle respondeu correta­mente a 50% das questões.

A atuação da mente inconsciente cria uma circunstância privi­legiada para mudanças de comportamento, em geral para melhor, [43] sem o esforço exigido normalmente. Por exemplo: num estudo, os pesquisadores levaram sutilmente alguns participantes - mas não todos - a sentir o cheiro de produtos de limpeza (escondidos num balde num canto do laboratório).32 Em seguida, os participantes comeram biscoitos crocantes, e os que tinham sentido o cheiro dos produtos de limpeza comeram com mais cuidado e limparam os farelos. O inconsciente age também ajudando a processar infor­mações complexas. No fenômeno conhecido como “dormir sobre o assunto”, as pessoas distraídas - e portanto não mindful são mais capazes de chegar a boas decisões de compra do que as pes­soas que “se esforçam” de modo consciente.33 Embora a mentalidade da consciência plena de “estar aqui e agora” tenha de fato suas vantagens, é um erro pensar que é o úni­co estado positivo. Quando nos utilizamos de tudo o que somos, de nosso ser por inteiro, podemos alternar atenção e desatenção de acordo com as circunstâncias. Isso nos ajuda a conservar os recur­sos mentais e nos concentrar nas questões que realmente conside­ramos mais importantes.
 

Psicologia - Psicologia positiva
Personalidade - Inteligência emocional, 
11/17/2021 1:01:13 PM | Por Robert Biswas-Diener, Todd B. Kashdan
A Intolerância ao desconforto e a ascensão da classe acomodada

Para os cientistas sociais, o Google é mais que uma ferramenta de busca. Em vários aspectos, é um termômetro da socieda­de. O Google pode ser usado para rastrear atitudes coletivas e ma­pear tendências populares. Tomemos como exemplo uma simples busca de imagem das palavras “desconforto” e “conforto”. Clicando em “desconforto”, surgem imagens de pessoas franzindo as sobrancelhas, massageando as têmporas, esfregando um joelho dolorido ou contraindo o estômago. Em contraste, a busca da pa­lavra “conforto” traz imagens de camas macias, poltronas fofas e primeira classe em aviões a jato. A implicação é clara: o des­conforto é interno, um fenômeno subjetivo, uma experiência in­dividual, e seu antídoto, o conforto, é encontrado no exterior, no mundo material que nos cerca.

Essa noção popularizada de desconforto como um estado in­terno, desagradável e frequentemente fora de controle, é tema cen­tral neste livro. Se a inteireza remete à capacidade de vivenciar e utilizar toda a gama de estados psicológicos - emocionais, cogni­tivos e sociais -, nosso mal-estar generalizado com o desconforto deve estar ligado a uma estreiteza da experiência. Evitar estados desconfortáveis, ainda que proveitosos, nos impede de alcançar todo o nosso potencial. É interessante notar que essa relação distanciada [50] com o desconforto é um fenômeno muito ocidental, e especificamente norte-americano. Os norte-americanos são mui­tas coisas: criativos, confiantes, industriosos e famosos por serem irremediáveis otimistas. Acima de tudo, porém, são adeptos do conforto. Apesar dos bolsões de pobreza total e da assombrosa dis­paridade na distribuição de renda, os Estados Unidos são um lu­gar notavelmente organizado, conveniente e confortável para se viver. Os sinais de trânsito funcionam, os cinemas têm temperatura controlada, banheiros completos são tão comuns quanto manguei­ras para regar jardim, todo mundo tem acesso a xampu, e as pes­soas escolhem o colchão conforme o material, tamanho e maciez.

À medida que o mundo enriquece, não são apenas os norte-americanos que estão vivendo com mais conforto. Quanto mais uma sociedade se aproxima da dos Estados Unidos - Austrália, Canadá e o Reino Unido me vêm à mente -, maior é a probabili­dade de ter uma atitude semelhante (mas não idêntica) em rela­ção ao conforto. Quanto mais distante é uma cultura - pense no Zimbábue, China, Paquistão -, maior é a probabilidade de se sen­tir confortável com o desconforto. No entanto, em muitas partes do mundo em fase de desenvolvimento econômico, vemos uma classe média emergente que se distingue pelo conforto na mesma medida em que é separada pela renda.

Se você quiser ter uma noção de quão arraigada é a propensão da sociedade norte-americana ao conforto e a uma atitude positi­va, faça a seguinte pergunta: “Jesus era feliz?” Foi exatamente a pergunta feita pelo psicólogo Shigehiro Oishi e seus colegas da Universidade de Virgínia.1 Esses cientistas estavam menos interes­sados em encontrar uma resposta factual a essa questão do que em usá-la para avaliar as atitudes das pessoas. Os pesquisadores par­tiram do princípio de que, já que existe um único Jesus e uma narrativa [51] geral de sua vida (a narrativa bíblica), as diferenças de opi­nião em larga escala sobre a felicidade dele dariam uma espécie de teste de Rorschach cultural, em que as pessoas projetam suas predisposições mentais. Para essa investigação, eles pediram a de­zenas de pessoas nos Estados Unidos e na Coréia do Sul que escre­vessem tudo o que pensavam sobre Jesus. (O número de cristãos era praticamente o mesmo - cerca de 60% - nos dois grupos.)

Os norte-americanos mostraram acreditar muito mais que os sul-coreanos que Jesus era feliz. Além disso, descreveram Jesus como sendo muito mais extrovertido, aberto e agradável do que os sul-coreanos. Ainda mais interessante, os sul-coreanos menciona­ram mais desconforto com relação a Jesus. Escreveram muito mais - em muitos casos, cinco vezes mais - sobre sofrimento, sa­crifício, crucificação e sangue. Embora eventos desconfortáveis como a perseguição e a crucificação sejam centrais na narrativa da vida de Jesus, os norte-americanos mostraram uma tendência significativa a dizer que Jesus era maravilhoso, bom e gentil.

A tendência dos norte-americanos para o positivo não signifi­ca necessariamente desviar os olhos das adversidades. Será que não? Christie Napa Scollon, pesquisadora na Singapore Manage­ment University, e sua colega Laura King, da Universidade de Missouri, conduziram uma série de estudos inédita.2 Em vez de seguir a metodologia habitual, usando sofisticados modelos esta­tísticos de felicidade para determinar onde as pessoas se situam numa escala, os pesquisadores que colaboravam com elas pergun­taram a várias pessoas em que medida a riqueza, a felicidade, e o trabalho árduo contribuíam para o “bem viver”, que incluía bem-estar e sentido da vida. Os norte-americanos atribuíram maior valor à felicidade, e preferiam uma vida fácil a uma vida de traba­lho árduo, principalmente quando o trabalho árduo foi quantificado [52] em horas de trabalho. Os pesquisadores constataram tam­bém que os norte-americanos tendiam a considerar um relaciona­mento satisfatório mais importante para o bem viver do que um trabalho satisfatório. De fato, constataram que os participantes ti­nham opinião muito severa sobre pessoas, hipotéticas, que não tinham bons relacionamentos e achavam o trabalho compensador; muitos disseram que elas eram imorais e alguns chegaram a classificá-las de amaldiçoadas.

O anseio norte-americano por uma vida feliz e confortável não é apenas um assunto de interesse acadêmico abstrato. Vemos isso claramente em seu comportamento, especialmente enquanto con­sumidores. Desde a Segunda Guerra Mundial, os norte-america­nos têm vivido um período de riqueza sem precedentes. Mesmo no atual contexto econômico, em que vivem à sombra de uma cri­se do mercado imobiliário, de um alto nível de desemprego e falências em larga escala, a maioria está se saindo melhor que nunca em termos materiais. A aquisição de casa própria está ab­surdamente em alta nos Estados Unidos, assim como o consumo de aparelhos eletrônicos, automóveis e aparelhos de ar-condicionado. A população corre em busca de conforto e conveniências.3 Segundo Juliet Schor, autora de The Overspent American, atual­mente as pessoas sonham com viagens de luxo, casas melhores e mais conforto.4 Ela cita um estudo longitudinal da Universidade de Connecticut em que as pessoas deviam indicar os itens básicos que consideram como necessidade. Nos anos 1970, 13% apro­varam ar-condicionado no carro, e 25% precisavam de ar-condicionado em casa. Em meados dos anos 1990, as atitudes tinham mudado para incluir mais conforto pessoal, com 41% precisando de ar-condicionado no carro, e 50% precisando de ar-condiciona­ do em casa. [53]

Esse súbito desejo de ar-condicionado é particularmente inte­ressante no contexto da hierarquia de necessidades de Maslow.5 Lembremos que, em 1954, Maslow sugeriu que as pessoas satisfa­zem primeiro suas necessidades básicas, como alimento e abrigo, depois satisfazem necessidades sociais, e só então passam a se preocupar com autoestima e criatividade. Muitos cometem o en­gano de julgar que Maslow estava dando uma prescrição do bem viver. Sua proposta era descrever o funcionamento básico da mo­tivação humana.

À luz do nosso apego atual ao conforto, é interessante conside­rar o que realmente significa a palavra “básica” na expressão “ne­cessidade básica”. É fácil entender que o acesso à água limpa é uma necessidade básica para a sobrevivência. É ainda mais fácil entender que a termorregulação - a manutenção da temperatura normal da pessoa em todas as circunstâncias - é uma necessidade básica. Mas enquanto os humanos precisam de agasalhos para protegê-los contra o perigo da hipotermia, é difícil justificar que o ar-condicionado no carro seja uma necessidade básica, princi­palmente sabendo-se que um carro já é um luxo de proporções quase miraculosas.

Se o desejo das pessoas continuar a seguir essa trajetória, em breve o ar-condicionado no carro já não será suficiente. Haverá a necessidade de assentos aquecidos ou zonas separadas, aquecidas ou refrigeradas, para motorista e passageiros. Ah, e tem mais, nes­se exato momento, está surgindo um novo padrão nos novos car­ros! Seria interessante saber o número de pessoas que já consideram uma tela de vídeo no carro uma necessidade.

Aqui chegamos à tese deste capítulo. A medida que as pessoas vão se tornando mais capazes de satisfazer o desejo de conforto, mais restrita vai se tornando sua gama de experiências, e elas vão [54] perdendo a prática de lidar com as dificuldades da vida. Colocan­do de maneira mais linear: 1) o conforto material e os artigos de conveniência levam a 2) uma compulsão a usar objetos externos para se sentir bem, o que leva a 3) menor imunidade psicológica a circunstâncias menos confortáveis e mais inconvenientes. Não se engane: o conforto material afeta sua capacidade de se adaptar psicologicamente ao ambiente e lidar com dificuldades. O confor­to associado ao ar-condicionado induz, ao longo do tempo, uma situação em que estados internos como raiva, dúvida, desistência, incerteza e mindlessness se tornam esmagadores, ou vistos como reprováveis. É unicamente o vício do conforto que nos divide en­quanto indivíduos e nos impede de desfrutar de toda a gama de bem-estar psicológico.

Enquanto nossos avós podiam suportar poeira, chuva, sol a pino, as pessoas de hoje parecem ser menos capazes disso. Segun­do estatísticas do US Department of Health and Human Services, a taxa de crianças com alergia a alimentos nos Estados Unidos su­biu mais de 40% entre 1997 e 2011, e a prevalência de alergias de pele subiu quase 70% nesse grupo no mesmo período.6 A asma afeta hoje 17% das crianças norte-americanas, e vale notar que a taxa é mais elevada entre crianças que vivem 200% acima da li­nha de pobreza. Uma possibilidade é a chamada “hipótese de hi­giene”, em que as condições da vida moderna na classe média são limpas demais e dão muito poucas oportunidades de exposição e aquisição de resistência a agentes infecciosos.

O que aconteceu? Como a sociedade norte-americana e, em menor grau, a de seus primos culturais em outras sociedades oci­dentais modernas mudaram tão drasticamente? O que aconteceu entre o tempo dos homens das cavernas, que labutavam diaria­mente para manter uma existência frugal, e hoje, quando comerciais [55] de televisão ou cinco minutos de engarrafamento no trânsito parecem intoleráveis? Quando foi que perdemos a imunidade ao desconforto?

As origens do vício do conforto

Conforto e desconforto são temas tão antigos quanto as pessoas. É fácil imaginar o primeiro homem das cavernas que pegou a pedra que lhe servia de travesseiro dizendo: “Ugh! Quero mais macio!”, e pousando a cabeça sobre um monte de agulhas de pi­nheiro. O mesmo impulso de se manter aquecido (ou de evitar o calor), de relaxar os músculos doloridos, de ter contato com textu­ras macias, tem sido uma motivação universal através dos séculos.

Até a famosa frase de Hamlet: “Ser ou não ser”, da obra de Shakespeare, trata basicamente de tentar ou não superar a adversidade.7 Vejam bem:

Ser ou não ser, eis a questão:

Se ao espírito é mais nobre suportar
O disparo das flechas da fortuna infame
Ou pegar em armas contra um mar de dores.*

A pergunta do jovem príncipe fictício da Dinamarca é seme­lhante à de pessoas deprimidas que vivem hoje em Pensacola, To­ ronto ou Manchester: devo escolher a vida ou a morte? A resposta é baseada em graus de desconforto. Hamlet concluiu pela adesão à vida - apesar de todos os contratempos -, não porque fosse aventuroso [56] ou destemido, mas porque a alternativa - o desconhecido reino do além - causava ainda mais ansiedade do que os percalços da vida cotidiana! Vejamos mais uma vez o príncipe em ação:

Mas o pavor de algo após a morte, Desconhecido reino de cujo rio
Viajante algum retorna, refreia a vontade, E faz preferir sofrer os males que já temos.*

Em 1930, Sigmund Freud, a figura mais importante na histó­ria da psicologia, escreveu sobre o perigo do canto da sereia do conforto. Ele disse: “Isso significa colocar o prazer à frente da realidade e logo receber a punição.” Freud não tinha nada contra o prazer de dormir num travesseiro macio ou de sentir a brisa no rosto, e sim contra o prazer como motivador primário da ação. Ele dizia que a busca do conforto, e não o conforto propriamente dito, pode levar a decisões autocentradas e ter conseqüências sociais negativas.

Ainda mais incisivo foi o filósofo alemão Hegel, que disse: “O que os ingleses chamam de ‘conforto’ é algo inexaurível e ilimitável.” Hegel concluiu que “a necessidade de cada vez mais con­forto não surge diretamente na pessoa, mas é sugerida por aqueles que esperam tirar proveito de sua criação”.9 Vafle notar que, tal como Freud, Hegel enfatizou não o conforto em si, mas a “neces­sidade de conforto”. Hegel sugeriu que a necessidade de conforto é uma ilusão, do tipo alimentado hoje pelos gurus da propaganda das grandes lojas. Assim como o vício de tomar café, por exemplo, *Tradução livre. (N. da T.) [57] para Hegel, um desejo pode ser inócuo, mas não é natural nem saudável.

Em nossa era, mais moderna, a industrialização traz conforto e conveniência em proporções sem precedentes. Em um estudo do ritmo de vida, o psicólogo Robert Levine e seus colegas encontra­ram uma relação entre o PIB e o ritmo de vida acelerado.10 Levine mediu a rapidez com que as pessoas andam, a rapidez com que os carteiros cumprem sua tarefa básica, e o grau de exatidão dos re­lógios públicos para avaliar o ritmo relativo de vida de socieda­des. Não só a riqueza nacional está associada a um ritmo de vida mais rápido, como o ritmo de vida mais rápido está associado a uma taxa mais alta de consumo de energia. Pensemos em carros, eletrodomésticos, aquecedores de água - todos são artigos relacio­nados à conveniência e ao conforto. Mas aí vem o outro lado: um ritmo de vida mais acelerado está relacionado a taxas menores de empreendimentos e poupança financeira. Quanto mais artigos de conveniência as pessoas têm, menos se dão ao trabalho de ter autocontrole nos gastos. Vejamos o exemplo da frustração. Em lu­gares onde tudo é feito com rapidez, as pessoas acham intolerável a espera numa fila ou no trânsito. Em outras palavras, quanto mais confortável é sua vida, menos paciente você é diante do que julga ser um problema.

Embora este livro seja basicamente sobre conforto psicológi­co, vamos nos deter um momento para dizer que existe uma rela­ção direta entre conforto físico básico (em psicologia, chamamos de “sensações confortáveis”) e confortos psicológicos mais com­plexos (que seriam o que chamamos de “estados emocionais”). Afi­nal, estamos todos presos a essa existência física pelo corpo. O corpo é uma membrana, por assim dizer, entre os eventos do mundo e a pessoa que entendemos [58] como “si mesmo”. O corpo age como uma espécie de termos­tato - muitas vezes, literalmente - por meio do qual vivenciamos os confortos e desconfortos do mundo. Pesquisadores observaram que todo mundo tem uma gama específica de adaptação às condi­ções do ambiente, o que inclui odores, ruídos, temperatura. É por isso que você não nota como seu escritório é refrigerado até sair em pleno calor do verão lá fora. O impulso para ter conforto físico é normal, e sua capacidade natural de se adaptar é parte desse impulso.

Talvez você se surpreenda ao saber que a repugnância fornece um exemplo perfeito de como as sensações físicas e psicológicas podem se entrelaçar. O nojo é uma sensação que nos leva a evitar coisas nocivas, como alimentos estragados. Pesquisadores usam testes extremamente criativos para medir a sensibilidade à repug­nância. Já fizeram os participantes assoarem o nariz em um rolo de papel higiênico, tomar suco de laranja num urinol, e obser­varam se conseguiam chegar perto de uma cabeça de porco decepada. Há também um tipo mais psicológico de repugnância, conhecido como “repugnância moral”. As pessoas tendem a evitar se deitar numa cama em que dormiu um assassino, da mesma for­ma que evitam uma poça de vômito. Têm tanta relutância em vestir um suéter que pertenceu a Hitler quanto a comer um cho­colate com formato de cocô de cachorro. Vê-se que a sensibilidade à repugnância está diretamente relacionada ao senso de conforto, principalmente quando se trata do mundo natural.

Os pesquisadores Robert Bixler e Myron Floyd ficaram curio­sos para investigar sua hipótese de que a gama de conforto das pes­soas foi se tornando mais restrita ao longo dos anos.12 Quando perguntaram a centenas de crianças em idade escolar como se sen­tiam em relação à natureza, crianças medrosas e com repugnâncias [59] disseram preferir passar a hora do recreio em ambiente fechado ou, se um adulto detestável as obrigasse a ir para o ar livre, prefe­riam passear em parques bem cuidados. Em seguida, apresenta­ram às crianças frases com uma escala do quanto sentiriam falta de conforto se passassem uma semana inteira ao ar livre, numa “simulação” de acampamento de pioneiros na colonização do Te­xas. “Eu não sentiria nenhuma falta” teve zero na escala. “Eu não poderia viver sem conforto” obteve 4. A média para banho de chu­veiro ou banheira foi 3; descarga no banheiro, 2,63; água quente, 2,69; e ar-condicionado, 2,66. É claro que os verdadeiros colonizadores do Texas viviam muito bem sem ter nada disso. Fomos ficando gradualmente mais frouxos desde o tempo em que os pioneiros atravessavam os Estados Unidos em carroções até o advento de poltronas reclináveis e jogos Playstation. O que consideramos conforto se tornou cada vez mais limitado.

Vale notar que esse estudo das atitudes de crianças com rela­ção ao conforto foi publicado em 1997, e foi nos anos 1990 que o vício do conforto deslanchou. Não se questiona que a geração que enfrentou a Grande Depressão de 1929 e a Segunda Guerra Mun­dial - chamada de Greatest Generation - foi capaz de lidar com adversidades. Apesar do progresso da economia nos anos após a Segunda Guerra Mundial, as décadas de 1950,1960 e 1970 foram definidas basicamente pelo movimento de direitos civis, com hip­pies protestando contra o sistema e questionando a Guerra do Vietnã. Quando Ronald Reagan assumiu a presidência, em 1981, o clima social e econômico amainou, culminando com a passagem do governo para Bill Clinton, em 1990. Aqui começamos a ver o drástico aumento da classe confortável, e ouviu-se pela primeira vez a expressão comfort food, numa indicação óbvia de que nossa relação com as necessidades básicas estava mudando. [60]

Hoje, décadas depois, no contexto da Primavera Árabe e das guerras no Iraque e Afeganistão, é difícil recordar o quanto os anos 1990 foram uma época singular. Para quem viveu os tempos dos movimentos de protesto dos anos 1960, da crise de gasolina e dos reféns nos anos 1970,1980 e especialmente os 1990, foi uma época muito diferente. Havia um sentimento de que o mundo es­tava ficando melhor. Após décadas de injustiça institucionaliza­da, o apartheid na África do Sul ruiu. A União Soviética, rival por excelência dos Estados Unidos no palco mundial, espatifou. Co­mo se fosse preciso ter mais provas de seu poderio militar, os Es­tados Unidos derrubaram a máquina militar de Saddam Hussein em uma semana. A bolsa de valores norte-americana subia à estratosfera, e a internet se tornava um novo motor global da criati­vidade e das finanças. Em suma, tudo parecia muito confortável nos Estados Unidos, como nunca se vira em toda a história da humanidade.

As expectativas subiram na mesma medida da maré econômi­ca e política. A felicidade passou a ser vista, não como um objeti­vo desejável, mas como um imperativo moral. Até Shigehiro Oishi - do estudo sobre Jesus, já mencionado - e seus colegas usaram o Google para buscar exemplos da pessoa feliz em livros norte-ame­ricanos de 1800 a 2008.13 Como se pode imaginar, os autores de 1800 e início de 1900 ignoravam essa expressão. Só depois, nos Loucos Anos 20 (the Roaring Twenties), os livros começaram a fa­lar da pessoa feliz, um fenômeno que veio num crescendo e che­gou ao auge na década de 1990, quando dificilmente alguém saía de uma livraria sem comprar um livro que tivesse essa expressão. Nos anos que se seguiram, o uso do termo pessoa feliz não caiu mui­to. De 1990 a 2008, o número de referências à “pessoa feliz” foi [61] igual ao dos cinqüenta anos precedentes. As normas sociais estavam claramente a caminho.

Foi no início dos anos 1990 que a primeira lei de “morte com dignidade” foi promulgada nos Estados Unidos. Em essência, a lei admite a morte planejada de pessoas com enorme desconforto físico ou perda de dignidade, o que é também uma forma de des­conforto mental. Essa lei, independentemente do que você pensa a respeito, reflete uma sociedade que chegou a tal extremo para satisfazer as necessidades básicas que é possível marcar a hora e o modo da morte de uma pessoa. Foi também no início dos 1990 que ouvimos pela primeira vez a expressão zona de conforto - uma ga­ma de experiências muito familiares, que geram a sensação de estar à vontade - no contexto do mundo dos negócios. Um texto sobre negócios aconselha explicitamente os empresários a manterem seus empregados fora da zona de conforto.

A cereja do bolo de conforto é possivelmente a maior invenção confortável de todos os tempos. Nos anos 1960, cientistas da NA­SA criaram uma tecnologia para diminuir o desconforto dos as­tronautas no lançamento e no espaço. Mas somente em 1991 essa tecnologia foi colocada no mercado, ao alcance dos civis: a espu­ma de memória foi lançada na forma dos colchões, almofadas e travesseiros mais confortáveis na face da Terra. Especialistas em marketing concluíram que, durante os anos 1990, as pessoas estavam dispostas a pagar preços exorbitantes por uma cama que se adaptava perfeitamente às suas dimensões: a última palavra em termos de sono confortável. Como se colchões de mola ou de água não fossem confortáveis o suficiente, tínhamos agora um mate­rial que se amoldava de maneira a nos sentirmos repousados até nos menores contornos do corpo. Após 200 mil anos, os humanos [62] podiam finalmente dormir do modo como - supostamente - me­reciam.

Pesquisadores observam que, à medida que ficamos mais con­fortáveis, há uma queda em nossa saúde psicológica. A ansiedade, especialmente, parecia estar em ascensão. Em 1996, pela primeira vez na história, as clínicas das faculdades começaram a receber alunos queixando-se de ansiedade com maior frequência do que de depressão e problemas relacionados, e essa tendência perma­nece até hoje.14 Em consonância, os anos 1990 viram uma peque­na alta de agressão no trânsito nos Estados Unidos. Em estatísticas coletadas para a AAA Foundation for Traffic Safety, o número de incidentes agressivos no trânsito passou de 1.129 em 1990 para 1.708 em 1995, um aumento de 50%.15 A capacidade dos norte-americanos para tolerar pequenas frustrações nas horas de rush e entender que uma fechada no trânsito não era um insulto pes­soal estava diminuindo. Durante os anos 1990 foram registrados mais de 10 mil incidentes agressivos em que duzentas pessoas morreram e 12 mil foram feridas. Nos anos 1990, a vida era tão boa que as pessoas às vezes não sabiam o que fazer quando algu­ma coisa saía dos trilhos.

Mais importante ainda, em meados dos anos 1990 surgiu um termo agourento relativo ao conforto psicológico. A medida que as pessoas dormiam melhor, desfrutando de mais objetos de con­veniência e contando com uma felicidade cada vez maior, iam se adaptando a uma vida sem muitas provações e dificuldades. Foi então que o termo evitação experiencial entrou no léxico da psico­logia.16 A evitação experiencial pode ser definida como a tentativa de recalcar pensamentos e sentimentos indesejados, de se escon­der deles tão ativamente que sobra pouca energia para estar pre­sente no correr da vida. Sim, foi a primeira vez que as pessoas tiveram [63] escolhas, liberdade e possibilidades suficientes para evi­tar as coisas - muitas coisas. E evitaram. Principalmente as emo­ções. O crescente desconforto diante de dúvidas, tédio e emoções negativas produziu mudanças mensuráveis. Uma estratégia de escape comum, por exemplo, é ver televisão. O entretenimento proporcionado pela televisão é inquestionável, mas se alia à fun­ção de nos afastar das questões do cotidiano. Entre os anos 1950 e 1970, a média de tempo de assistir à televisão numa casa era de cinco a seis horas por dia. Nos anos 1980 e 1990, esse número su­biu para sete horas e meia por dia.17

É possível evitar o que está dentro de você?

O recurso principal de profissionais de saúde mental para diag­nóstico e tratamento é o Diagnostic and Statistical Manual of Men­tal Disorders, mais conhecido como DSM. Em 1980, o DSM era um livro de peso, com 494 páginas e 265 doenças mentais adicio­nadas. Em 1994, era um monstro com o dobro do tamanho, 886 páginas e mais 32 doenças mentais classificadas. Os profissionais de saúde pareciam concordar que sentir muita tristeza, muita an­siedade, raiva muito freqüente ou muito intensa, e se defrontar com pensamentos complicados eram sinais de doença. O DSM classifica muitos problemas legítimos, como a esquizofrenia, mas é difícil aceitar a noção de que sentir tristeza durante duas semanas ou mais num grau que interfere com o trabalho ou os relacionamentos é um problema clinicamente significativo. Mas a população em geral captou a mensagem: o sofrimento é ruim, e os profissionais de saúde mental podem ajudar a evitar. Mas como evitar o que está dentro de você? [64]

Os líderes da American Psychological Association tiveram boas razões para eleger dr. Albert Ellis o “segundo psicólogo mais im­portante no século XX” (um lugar à frente de Sigmund Freud e atrás somente de Carl Rogers).18 Ellis lançou a ideia de que alguns comportamentos não podem ser controlados pelo pensamento racional. Fundador da terapia cognitivo-comportamental (TCB), Ellis identificou três crenças disfuncionais importantes na cons­trução direta do sofrimento e do comportamento destrutivo:

  1.  “Preciso fazer tudo bem e obter a aprovação dos outros para ser aceito. ”
  2. “Os outros precisam fazer ‘o que é certo’, se não, não são bons.”
  3. “A vida tem que ser fácil, sem desconforto e inconveniências.”

Nos anos 1950 e 1960, essas idéias eram revolucionárias. Em vez de atribuir a conflitos não resolvidos na infância ou a eventos traumáticos as causas de dificuldades psicológicas, Ellis propu­nha que os problemas se originam nas crenças adotadas pelas pes­soas sobre si mesmas, os outros e o mundo ao seu redor. Ellis não só articulou o problema, mas criou um sistema em que o terapeu­ta pode ajudar o cliente a identificar e questionar suas crenças pessoais. Seu método é eficaz, reprodutível, e teve grande desta­que na psicoterapia durante décadas. Renomeada em 1990 como “otimismo aprendido” pelo dr. Martin Seligman, fundador da psi­cologia positiva, a ideia de Ellis é ensinar as pessoas a reduzir o sofrimento emocional que sabota a felicidade.19 Apesar de todo o seu mérito, essa é uma extensão lógica do vício do conforto fí­sico. Se as condições físicas não são do nosso agrado, tentamos modificá-las até que o sejam. Da mesma forma, se nosso ânimo [65] e nossas lembranças nos deixam infelizes, devemos modificá-los até que sejam menos incômodos.

Essa ideia enfrentou desafios durante trinta anos. Depois, al­guns hippies expostos ao movimento do potencial humano e a fi­losofias orientais nos anos 1960 cresceram, se tornaram psicólogos e lançaram uma nova forma de terapia conhecida como terapia da aceitação e compromisso, ou ACT20. Os doutores Steven Hayes, Kelly Wilson, Elizabeth Gifford, Victoria Follette e Kirk Strosahl trouxeram questões novas e provocativas. E se os terapeutas esti­vessem usando o critério errado para determinar o que é normal e anormal? E se o foco na intensidade e negatividade dos pensa­mentos, sentimentos e comportamentos não fosse o melhor indi­cador de saúde mental? E se, em vez disso, víssemos o que as pessoas fazem com esses pensamentos, sentimentos e comporta­mentos? Esse grupo de pesquisadores observou que, quando as pessoas têm um sofrimento psicológico, elas agem da mesma for­ma que as pessoas que têm um sofrimento físico. Quando você torce o tornozelo, por exemplo, tende a restringir o uso da perna. O mesmo se aplica a uma adversidade mental. Quando um amigo ou namorado fere seus sentimentos, você restringe a amizade, in­teragindo menos. Quando as emoções se intensificam, você as evi­ta assistindo à televisão, dormindo ou tomando cerveja.

A alternativa a mudar ou evitar pensamentos, lembranças, sensações e sentimentos dolorosos é aprender que você pode su­portar o desconforto psicológico, da mesma maneira que suporta o desconforto físico de dar uma caminhada numa tarde de chuva. Pode não ser a sua preferência, mas não há dúvida de que você po­de. Imagine como será libertador aproveitar a vida sem que pensa­mentos e sentimentos indesejáveis sejam inimigos contra os quais temos que lutar, e conseguir vencer. Imagine que esses pensamentos [66] e sentimentos sejam como uma música de fundo tocando no rádio. Eles estão sempre lá, mas podemos prestar muita ou pouca atenção. A premissa central da ACT é que você carrega os pensa­mentos e sentimentos difíceis lá dentro. Você os observa, mas eles e você não são a mesma coisa.

Vale repetir: você não é suas experiências psicológicas, ainda que elas possam afetar você. Pode soar esquisito - até mesmo ra­dical - sugerir que você não é a mesma coisa que seus pensamen­tos e sentimentos. Você não é os pensamentos desconfortáveis em sua cabeça - nem os sentimentos que eles despertam - justamente porque você pode observá-los. Seja quem ou o que for o observa­dor - o self, a personalidade, a alma, chame como quiser - está, por definição, separado desses sentimentos, e o fato de que você pode observá-los é prova disso. Quando você reconhece que esse observador está separado do sofrimento, pode conseguir tolerar melhor o sofrimento.

A maioria dos nossos problemas não advêm dos pensamentos e sentimentos indesejáveis, como Ellis sugeriu, mas da relutância em abordá-los. Vale dizer que, quando se trata da ansiedade, há um só problema subjacente: a evitação.21 Um rápido olhar no mais recente DSM mostra que existem vários tipos de distúrbios de ansiedade, desde a ansiedade social até a ansiedade pós-traumática e ao distúrbio de pânico. Cada um desses tipos é uma forma legítima de sofrimento, mas todos têm um denominador comum. Quando você acha que está sendo rejeitado ou que suas falhas de caráter poderão ser expostas, é compreensível que tente evitar a ansiedade. Infelizmente, em vez de acalmar, evitação da ansieda­de tem o efeito oposto, e só a intensifica no correr do tempo.

Muitos terapeutas bem sabem que os clientes geralmente têm problemas emocionais secundários. A pessoa pode se sentir culpada, [67] por exemplo, e se culpar por se sentir culpada! Ou se sentir deprimida e ter raiva de estar deprimida. A mesma coisa acontece com a ansiedade. A pessoa se sente ansiosa com certas situações, e a tensão é agravada pelo medo de ficar ansiosa. Imagine como a vida seria mais fácil se a pessoa conseguisse remover essa segunda camada de problema mental simplesmente se sentindo forte o su­ficiente para suportar a ansiedade.

Essa noção, de ter uma atitude mais rija a respeito de estados internos, é importante. Desenvolver a tolerância a estados psico­lógicos mais desafiadores não só nos ajuda enquanto indivíduos, mas também, em longo prazo, é bom para a sociedade. Isso porque o vício do conforto não é um incômodo apenas individual. Em termos coletivos, é um legado para nossos filhos.

Vício do conforto: o legado para nossos filhos 

Na sociedade moderna muito se tem escrito sobre os vários males que podem afetar nossos filhos. Obesidade. Bullying. Videogames. Mensagens eróticas enviadas por celular. Uso de drogas. Gravidez indesejada. Doenças sexualmente transmissíveis. Violência. Não passar de ano. Piruetas de skate. A lista de perigos cai nos ouvidos dos pais como uma avalanche e, num surto de protecionismo bem-intencionado, corremos a salvá-los como nunca antes. Em meados da década de 1980, as pessoas começaram a colocar o ade­sivo de Bebê a Bordo nos carros, como aviso para outros motoris­tas e um modo de evocar um mundo mais seguro. Não vivemos mais numa era centrada nos adultos, em que as crianças deviam ser vistas, mas não ouvidas. Atualmente, as crianças são o ponto [68] focal, e os pais agem como uma espécie de segurança privada para assegurar seu bem-estar.

De fato, nos últimos trinta anos os pais vêm ficando cada vez mais preocupados com segurança. Hoje usamos ameaças e recom­pensas, por exemplo, o que era raro nos anos 1950, 60 e 70 nas relações com os filhos. Pesquisadores de atitudes parentais obser­varam que hoje em dia os pais tendem muito mais a organizar as atividades dos filhos e a direcioná-los para essas atividades. As pesquisadoras australianas Trine Fotel e Thyra Thomsen se inte­ressaram em saber se essas taxas mais altas de direcionamento seriam devidas a outros fatores, como distâncias mais longas para a escola.22 Elas constataram que aproximadamente 55% a 60% do aumento da prática de levar os filhos de carro para a escola estão diretamente relacionados ao receio de riscos. Apesar de estatísti­cas mostrarem uma diminuição de acidentes envolvendo bicicletas de crianças, os pais têm mais medo de deixar os filhos dividirem as ruas com os carros.23 Após se queixar das condições perigosas do trânsito, uma mãe concluiu:

Foi um problema para ele eu não ter ensinado como proceder [de bicicleta] no trânsito. Somente quando vi o quanto os co­legas riam dele porque sempre chegava à escola de carro, foi que percebi como isso o afetava. Precisei tomar uma atitude, e ele se revelou muito bom na bicicleta.24

Uma das mudanças mais óbvias nas atitudes dos pais ocorreu nos playgrounds. Poucas décadas atrás, os playgrounds das esco­las eram cheios de brinquedos de madeira, mas tábuas apodreci­das e farpas em abundância levaram pais e diretores de escolas a trocá-los por brinquedos de metal e plástico.

Em um estudo recente [69] sobre segurança em playgrounds, Anita Bundy e seus cole­gas colocaram na área do play objetos soltos, sem finalidade, como caixas de papelão, tambores de plástico, fardos de feno, pneus de carros e pedaços de canos.25 Na coleta de dados sobre as atitudes das crianças e dos professores-supervisores, os pesquisadores vi­ram que o equipamento menos estruturado provocou uma série de mudanças. Primeiro, as crianças demonstraram um aumento sig­nificativo de atividades físicas vigorosas. Segundo, os supervisores se preocuparam mais. Os professores-supervisores elogiaram mui­to o aumento substancial de brincadeiras criativas, de socializa­ção, e a diminuição da agressividade. Sendo assim, se os materiais dos playgrounds das escolas antigas trouxeram tantos benefícios tangíveis, por que eles ficaram preocupados? Os pesquisadores relataram que a preocupação maior foi com o risco de as crianças se machucarem e eles sentiam ter a responsabilidade de impedir.

O ambiente das escolas parece ser tão aterrorizante que pais adentram as salas de aula para ajudar a proteger os filhos contra perigos psicológicos em potencial, como bullying, problemas de autoestima, de aceitação, ou ficar para trás nos estudos. A isso, a socióloga Catharine Warner chama de “salvaguarda emocional”, mas nós chamamos de “helicóptero parental”.26 É interessante no­tar que essas intromissões são mais comuns entre pais de classe média, ou seja, são mais freqüentes entre aqueles que estão mais confortáveis. Numa análise dessa tendência parental, Warner con­clui que pais bem-intencionados têm desejos conflitantes com rela­ção aos filhos. Por um lado, querem que os filhos tenham desafios intelectuais e, por outro lado, querem que sejam felizes, popu­lares, compreendidos, psicologicamente confortáveis. É como se nós, pais, coletivamente, não pudéssemos ver que esses mesmos desafios, frustrações e fracassos aceitos por nós como estimulantes [70] para o crescimento acadêmico de nossos amados rebentos são também necessários ao desenvolvimento psicológico deles.

Aqui está a atitude de conforto, muito bem resumida num co­mentário feito pela mãe de uma aluna do primeiro ano que parti­cipou do estudo de Warner:

Queremos que ela esteja num lugar onde sinta segurança, on­de sua autoestima seja realmente estimulada, e não espezi­nhada. Penso que essa é nossa maior preocupação. E também, é claro, queremos que ela esteja num lugar em que seja bem acolhida e educada, mas que ao mesmo tempo seja devidamente exposta a desafios.

Se você tem 30 anos ou mais, temos certeza de que seus pais jamais disseram algo parecido com isso numa reunião de pais e professores. Em vez disso, devem ter olhado nos olhos da profes­sora e perguntado algo do tipo: “Como ela está em matemática?” Não que o jeito antigo fosse áspero, ou que somente agora tenha­mos aberto os olhos para o bem-estar das crianças. Acontece que os pais modernos entenderam muito mal a diferença. Vemos peri­go em toda parte. Aqui está o outro lado da história, visto por uma professora do primeiro ano, muito elogiada por pais de alunos, que também participou da pesquisa de Warner:

Os pais vivem dizendo: “Ah, meu filho fica muito ansioso quando vem à escola, ele não quer vir à escola.” Mas, na ver­dade, quando a criança chega aqui, fica ótima. Eu acho que talvez os pais é que fiquem ansiosos quanto a alguma coisa, e a criança adota esse sentimento. [71]

Ela resumiu a situação. O mundo parece perigoso. Sem dúvi­da, existem perigos reais à nossa volta, mas adotamos uma visão de mundo coletiva que amplifica os perigos reais. No que concerne aos nossos filhos, se insistirmos numa criação muito antisséptica, eles estarão mal preparados para as intempéries da adolescência e da idade adulta. Em vários aspectos, os pais modernos estão cegos para os diversos benefícios dos desafios. Não se preocupe, não es­tamos apontando o dedo para você; estamos prontos a reconhecer nossa parte da culpa. Pode ser tão fácil aceitar a ideia de que o de­safio intelectual é uma parte vital da educação quanto pode ser difícil aceitar o fato de que o desafio é igualmente benéfico para o desenvolvimento social e emocional.

Qual é a alternativa?

Para conhecer de perto uma realidade alternativa - um mundo em que estados negativos são tolerados - você tem de viajar para a Ásia. Pessoas de origem asiática são frequentemente chamadas de “coletivistas”, porque sua unidade social básica é o grupo e não o indivíduo.27 Os coletivistas tendem mais a refrear seus próprios desejos, se isso contribuir para o bem do grupo. Tendem mais a querer se adaptar do que se destacar. Tendem mais a se ver como seres de identidade fluida, e não de características estáveis trans­feridas de uma situação a outra. O lendário psicólogo social Ro­bert Wyer resumiu da seguinte maneira:

O individualista acha que, se alguém o convida para jantar, ele deve retribuir, convidando a pessoa para jantar algum tempo [72] depois. O coletivista, por sua vez, pode achar que, se uma pes­soa o convida para jantar, ele deve convidar alguém, qualquer pessoa, para jantar algum tempo depois. [28]

Correndo o risco de certo exagero, dizemos que os asiáticos têm uma relação com suas experiências emocionais de um modo muito diferente do ocidental. Por exemplo: se você perguntar a um caucasiano norte-americano ou canadense “Você está feliz?”, ambos farão um rápido cálculo interno. Provavelmente, estarão vasculhando seu próprio estado de espírito momento a momento, e uma olhadela no estado interior produzirá uma resposta preci­sa. Se essa mesma pergunta for feita a uma mulher sul-coreana, por exemplo, ela provavelmente colocará o mesmo peso em sua experiência interna e nas normas culturais para saber como ela deve se sentir naquela determinada situação. [29]

Pesquisadores descobriram diferenças culturais interessantes no modo como as pessoas preferem se sentir.30 Os asiáticos, por exemplo, tendem mais a desejar emoções positivas de baixa in­tensidade, como paz, harmonia, contentamento e calma. Em con­traste, os ocidentais tendem mais a desejar emoções positivas de alta intensidade, como entusiasmo, alegria e orgulho. Ou seja, os norte-americanos gostam de estar agitados e essa tendência emo­cional é autoestimulante. Num estudo conduzido por nós, exami­namos as experiências emocionais de pessoas de várias culturas.31 Vimos que a intensidade do prazer afeta as recordações que os norte-americanos têm de suas experiências emocionais; eles asso­ciam lembranças de sensações mais prazerosas às ocasiões em que tiveram sensações mais intensas. Essa particularidade não se apli­ca aos japoneses em suas recordações. [73]

As diferenças entre orientais e ocidentais são especialmente pronunciadas quando se trata de experiências psicológicas negati­vas, e a maior diferença entre as relações emocionais se refere à re­pressão. Em termos psicológicos, a repressão tem raízes na teoria freudiana de mecanismos de defesa, uma manobra mental que as pessoas empregam para manter o sofrimento emocional afastado. Reprimir (esquecer) experiências más e recorrer ao humor para rir da adversidade são exemplos de mecanismos de defesa. Re­primir significa recalcar, ou empurrar para baixo, a experiência. Muitos ocidentais se prendem ao estereótipo do asiático reprimi­do porque, tipicamente, é difícil saber o que eles estão pensando. Isso acontece porque, em geral, as culturas coletivistas preconizam o hábito de manter uma expressão impassível para atuar no meio social. Mas se os asiáticos são mais propensos a reprimir a expres­são da emoção, não é assim que reagem à verdadeira experiência da emoção. O fato é que os asiáticos tendem a tolerar muito bem as experiências emocionais desagradáveis. Estudos mostram que, ao contrário dos ocidentais, quando eles têm períodos de tristeza ou rompantes de irritação, não tentam buscar uma distração ou apelar para o humor.

Essa tendência pode ser vista na maneira como os norte-ame­ricanos e as pessoas de cultura asiática diferem quando estão de­primidos. Você, como praticamente todo mundo que conhece, tem uma noção intuitiva do que é a depressão. Talvez você já tenha estado deprimido. Seja como for, você sabe que a depressão inclui tristeza, falta de energia, incapacidade de aproveitar a vida, e às vezes problemas de sono, falta de cuidados corporais e de concen­tração. Em casos extremos pode apresentar pensamentos de suicí­dio e sentimento de desesperança. Muitos ocidentais lidam com esses sentimentos opressivos usando alguma estratégia de amortecimento [74] para evitá-los, que pode incluir abuso de drogas ou exces­so de sono. Os asiáticos não costumam adotar essa estratégia.

Em um estudo, os pesquisadores exibiram um trecho de um filme engraçado a norte-americanos e a descendentes de asiáticos, todos deprimidos.32 Os asiáticos riram e sorriram diante das cenas cômicas, e os norte-americanos, não. Em outro estudo, norte-ame­ricanos deprimidos reagiram apenas com mutismo diante de um filme triste. Os asiáticos deprimidos mostraram mais tendência a chorar. Ao que parece, os norte-americanos desligaram um botão de sentimento, enquanto os asiáticos sentiram fortemente a emo­ção. Em suma, os asiáticos parecem ficar mais confortáveis com sentimentos desagradáveis, e é aqui que talvez possamos nos be­neficiar de examinar mais detidamente esse fenômeno.

Vê-se que a tendência cultural a se aproximar ou se afastar de estados psicológicos negativos é aprendida. É estranho pensar que seus sentimentos lhe foram ensinados da mesma maneira que a língua materna, mas é exatamente o que acontece. Esse ponto foi ilustrado brilhantemente numa série de estudos conduzidos por Jeanne Tsai, da Universidade de Stanford, e seus colegas.33 Os pes­quisadores listaram os livros infantis mais vendidos publicados nos Estados Unidos e em Taiwan em 2005. Uma análise detalhada das ilustrações mostrou que os livros norte-americanos apresenta­vam sorrisos mais largos, expressões faciais mais animadas e mo­vimentos mais exuberantes. Em um estudo de acompanhamento, Tsai e colegas leram separadamente para crianças norte-america­nas e taiwanesas, e logo após as crianças foram escolhidas aleato­riamente para ouvir a versão agitada, americana, de uma história sobre nadar numa piscina (mergulho bala de canhão!) ou a versão mais calma, taiwanesa, da mesma história (boiando suavemente). [75]

Depois, apresentaram às crianças uma série de atividades lú­dicas, cada qual com uma versão agitada e outra mais calma. Uma das perguntas foi: “Você prefere tocar um tambor rápido, BUM-BUM-BUM, ou um tambor lento e suave, tap-tap-tap?” Independentemente da origem cultural, as crianças que haviam sido expostas à história agitada preferiram as atividades mais agita­das. Quantas histórias você leu para seus filhos mostrando a capa­cidade de um personagem tolerar emoções negativas? Devemos reconhecer que o dr. Seuss abordou esse tema em vários livros, in­clusive I Had Trouble in Getting to Solla Sallew, mas ele parece ser exceção. Livros sobre tolerância à negatividade são muito mais comuns na Ásia. Os norte-americanos, em contraste, brindam as crianças com aniversários animados, refeições alegres e finais fe­lizes, mas não há tristeza e pesar nos intervalos. Pais e educadores interessados podem ver aqui uma oportunidade de usar materiais educativos e interações sociais do cotidiano para ensinar os filhos a tolerar o desconforto.

Não pretendemos romantizar a cultura asiática. De fato, várias pesquisas sugerem que os asiáticos tendem a evitar saborear expe­riências positivas.34 Talvez vejam as condições num fluxo contínuo e portanto tenham mais cautela, ao invés da avidez dos norte-ame­ricanos pelos momentos positivos. Seja qual for a dinâmica psi­cológica envolvida, os asiáticos parecem sacrificar um pouquinho da felicidade e tolerar melhor as emoções desagradáveis. Nossa intenção aqui é enfatizar a real possibilidade de que os norte-ame­ricanos e outros povos ocidentais consigam largar o vício do con­forto e a intolerância psicológica que o acompanha.

Se as sociedades ocidentais puderem se abrir para um pouqui­nho mais de perigo, uma lasquinha a mais de risco, um tiquinho a mais de adversidade e até um bocadinho de fracasso, poderão [76] recuperar um pouco da robustez mental que anda de mãos dadas com essas experiências. É claro que não estamos recomendando que você jogue seu ar-condicionado pela janela, atire longe seu smartphone e arranque as descargas dos banheiros. Não estamos encorajando ninguém a deixar os filhos brincarem em lugares pe­rigosos, nem a sair correndo para comprar livrinhos taiwaneses a fim de estimular a tolerância dos filhotes aos estados negativos. Ainda assim, algumas mudanças são necessárias se quisermos criar pessoas mais firmes, mais preparadas psicologicamente. Sa­bendo que é sempre difícil empreender uma mudança importan­te, encorajamos você a dar um pequeno passo de cada vez para conhecer os benefícios do desconforto emocional, os resultados positivos de estados cognitivos complicados, e aprender a expan­dir os horizontes, por meio da tolerância, ao lidar com situações sociais mais exigentes.

O Santo Graal da Psicologia

É tentador pensar na psicologia moderna como sinônimo de psicoterapia. Os filmes que mostram psicólogos geralmente os re­tratam como terapeutas e raramente, se é que alguma vez, como pesquisadores. Existe alguma verdade nesse estereótipo: dos 175 mil psicólogos nos Estados Unidos, bem mais da metade são tera­peutas com mestrado ou doutorado. Os demais são, mais ou menos, pesquisadores, professores ou consultores. Dado que uma parte tão grande da psicologia é hoje voltada para o estudo e tratamento de depressão, ansiedade e outros problemas mentais prevalentes, é fácil ignorar o simples fato de que a ciência da psicologia se con­centra há muito tempo em otimizar o funcionamento humano. [77]

A psicologia é uma ciência relativamente jovem. Em seus primórdios, tentando se firmar como uma ciência empírica legítima, médicos como Hermann von Helmholtz trabalharam no sentido de uma compreensão confiável das funções humanas básicas. Ele conseguiu, por exemplo, computar a velocidade de impulsos elé­tricos nervosos atravessando o corpo (27,43 metros por segundo).35 Na virada do século XX, os psicólogos mudaram o foco: em vez de tentar entender como as pessoas funcionam, passaram a tentar en­tender o que as faz funcionar bem. Muitos dos maiores intelectos do século XX se concentraram em descobrir como o ser humano evolui. Sigmund Freud e William James, para tomar dois exemplos proeminentes, abusaram de palavras como integração, desenvolvi­mento e salutar. Eles acreditavam que os humanos são diferentes dos animais, dado que, coletivamente, podemos transcender nos­sa natureza e fazer planejamentos para um futuro que podemos alcançar (e nos distanciar de situações muito incômodas).

Depois da Segunda Guerra Mundial, a psicologia desviou o foco da saúde psicológica para a doença psicológica. Palavras co­mo “potencial” foram substituídas por “sintoma” e “distúrbio”. Em vista de legiões de soldados retornando do front com depres­são e traumas, era de esperar que a psicologia criasse tratamentos mais eficazes contra esses males. Essa tendência permanece - mais ou menos - até hoje. Mesmo assim, houve quem conduzisse aos aspectos positivos da psicologia, acadêmicos muito enamora­dos de tópicos positivos como generosidade, resiliência, confiança e perdão, em vez de focalizar apenas a doença mental. Nos anos 1950, 60 e 70, Abraham Maslow, Carl Rogers e outros humanistas reacenderam o interesse pelo potencial humano. Mais recente­mente, psicólogos - nós entre eles - voltamos a atenção para aspectos mais solares da natureza humana. [78] O momento de retomada desses tópicos se encaixou muito bem numa nova onda de prosperidade. O desenvolvimento econô­mico dos anos 1970, 80 e 90, como já mencionamos, gerou nos norte-americanos uma mudança de foco, elegendo o conforto e o sucesso. O excesso de conforto debilitou o vigor norte-americano, mas o objetivo geral de ser bem-sucedido impulsionou as crescen­tes pesquisas da psicologia positiva. Sugerimos que esses dois pon­tos do interesse - o potencial humano e o manejo do lado obscuro da humanidade - não precisam ser conflitantes. A fusão desses dois temas nos dá um acesso pleno à complexidade do que significa ser humano.
 

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Agradecendo aos seus heróis

Era o ano de 1972, e eu acabara de assumir um emprego de professor assistente na Universidade do Kansas. Houve uma pessoa que sacrificara sua vida inteira para possibi­litar que eu chegasse a esse ponto. Ela trabalhava em seu emprego regular e em outros em meio-expediente para garantir que eu pudesse ir para a faculdade. Era uma heroína em todos os sentidos, doando-se para que eu pudesse ter uma vida melhor do que ela tinha tido.

Essa heroína era minha mãe. Ela me disse que minha vida de acadêmico seria sua melhor recompensa. Ela planejava visitar Lawrence naquele mesmo ano, mas essa visita nunca aconteceu. Diagnosticada com uma forma de câncer que se espalhava rapidamente, ela passou seus últimos meses acamada em Dallas, no Texas.

Fiz todas as visitas que pude, e falávamos sobre as coisas que eram importantes para ambos. Infelizmente, nunca lhe disse que ela era minha heroína. Quase todos os dias dos últimos 30 anos, lamentei essa omissão. Se você ainda tiver a chance de transmitir essa mensagem a um importante herói em sua vida, faça isso imediatamente.

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Social - Escolar, Educação
4/2/2021 12:32:55 PM | Por Charles Richard Snyder
Escolarização positiva

Considerando-se que as escolas cumprem um papel central na promoção dos precei­tos da psicologia positiva, incluímos um capítulo inteiro sobre escolarização. A escolarização, uma palavra menos utilizada para “educação”, transmite a importância da comunidade toda no ensino das crian­ças, e por isso a usamos no título deste ca­pítulo. Começamos tratando das visões in­felizmente negativas que algumas pessoas têm sobre os professores e seu trabalho, e investigamos as características daqueles poucos professores que são realmente ruins. A seguir, descrevemos o apoio que se dá (ou se deixa de dar) à educação nos Estados Unidos. Sendo assim, dedicamos grande parte do capítulo a um exame dos seis componentes das escolas eficazes. Após, resumimos a aplicação educacional desenvolvida por Donald Clifton, pioneiro da psicologia positiva, e damos um pano­rama de alguns professores impressionan­tes, que são exemplos de ensino positivo. Por fim, expomos idéias com relação a agra­decer aos professores que fizeram diferen­ças positivas na vida de seus alunos.

"Quem é professor é porque não consegue emprego de verdade"

A própria existência desse sentimen­to sugere que os professores não são reco­nhecidos por seus esforços (Buskist, Benson e Sikorski, 2005). Não apenas os professo­res recebem salários relativamente baixos por seu trabalho profissional, como tam­bém são alvo de comentários depreciati­vos. Sobre esse último aspecto, eu (C.R.S.) estava na fila do correio para comprar se­los quando um senhor na minha frente reclamou com seu amigo, em voz alta: “Es­ses professores preguiçosos”. Sendo um desses “professores preguiçosos”, fiquei quieto, só esperando para pegar os selos. Foi então que esse mesmo homem anun­ciou para que todos que estavam no saguão ouvissem: “Esses professores não estariam lecionando se fossem bons o suficiente para conseguir empregos de verdade!”. E com­pletou com a declaração impressionante: “Todo mundo sabe que quem não conse­gue arrumar emprego de verdade é que [341] acaba lecionando!”. Não consegui mais morder a língua, e se seguiu uma interação ríspida.

Embora não haja mérito nenhum em declarações do tipo “quem não sabe ensi­na” (como “quem sabe faz, quem não sabe ensina” ou “quem não sabe ensinar ensina os professores”), é provável que todos já tenhamos aguentado maus professores. Entretanto, também tivemos alguns profes­sores maravilhosos. Nesse sentido, muitas das idéias deste capítulo vêm de professo­res premiados que usaram princípios da psicologia positiva em suas iniciativas de sala de aula (vide Snyder, 2005b). Esses professores são talentosos..., poderiam se sair bem em muitas esferas da vida, além da sala de aula. Por isso, dedicamos este capítulo aos que “sabem e ensinam”!

Psicologia negativa: "quem não sabe fazer não deveria estar ensinando"

Concordamos que alguns professores são tão ruins que não deveriam chegar per­to de salas de aula. Esses são aqueles que, “quando recebem o privilégio de lecionar, entediam em lugar de inspirar, contentam-se com o mínimo denominador comum em lugar de aspirar ao máximo numerador, consideram o trabalho como algo fácil em lugar de se maravilhar permanentemente com a benção - pecados contra todas as mentes que eles fecharam, desinformaram e alienaram da educação” (Zimbardo, 2005, p. 12).

O fato de que esses maus professores podem causar danos é mais do que espe­culação. As pesquisas sobre o assunto mos­tram repetidamente que os maus profes­sores têm efeitos negativos sobre os alu­nos (para uma visão geral do tema, vide o livro influente de Jennifer King Rice, de 2003, Teacher quality). Na verdade, con­cluiu-se que a baixa qualidade dos profes­sores é o mais influente de todos os fatoresnrelacionados à escola em termos de preju­dicar a aprendizagem dos alunos e suas ati­tudes em relação à educação como um todo (Rice, 2003). Além disso, os efeitos dos maus professores são aditivos e cumulativos com o passar do tempo (Sanders e Rivers, 1996), sendo que a qualidade dos profes­sores responde por 7,5% da variância no desempenho dos estudantes (Hanushek, Kain e Rivkin, como é relatado em Goldhaber, 2002).

Quais os fatores que determinam a qualidade dos professores? Das várias ma­neiras de avaliar as qualidades, a forma­ção escolar de um professor e suas notas são duas das fontes mais influentes quan­do se trata de aumentar a aprendizagem dos estudantes (Monk e King, 1994; Rowan, Chiang e Miller, 1997). Igualmen­te, Darling-Hammond e Youngs (2002) in­formaram que os índices de desempenho e preparação adequada dos professores fo­ram indicadores sólidos do desempenho dos alunos nas áreas de matemática e lei­tura. Para concretizar o impacto da quali­dade dos professores, consideremos a con­clusão de que a diferença entre ter um mau professor e um bom professor reflete todo um nível de notas em termos de desempe­nho dos alunos (Hanushek, 1994). Em ter­mos gerais, portanto, os maus professores deixam atrás de si trilhas de tédio intelec­tual e desrespeito.

Obviamente, há razões legítimas para que alguns professores “saiam ruins”. A mais óbvia é o burnout, ou esgotamento, em que o educador perde entusiasmo após encontrar obstáculos constantes e falta de apoio para seus esforços (vide Maslach, 1999). Entretanto, não há desculpas para um professor que não faz qualquer coisa para tratar desse burnout. É difícil ter sim­patia pelos professores que continuam sim­plesmente “tocando em frente” quando se trata de entusiasmo e preparação de seus alunos. Mais do que não conseguir ensinar mentes jovens em formação quando elas estão mais abertas ao entusiasmo da apren­dizagem, eles também desligaram essas [342] mentes para toda a vida (vide Zimbardo, 1999).

Embora os professores negativos se­jam relativamente raros, só um deles já é demais. Já seria ruim o suficiente se esses maus professores apenas prejudicassem a aprendizagem de seus alunos, mas eles também podem causar sofrimento e dano psicológicos. Tragicamente, os estudantes podem se tornar participantes involun­tários de profecias autorrealizáveis nas quais eles fracassam nas esferas acadêmi­ca e pessoal. Dessa forma, por mais que possamos ser apaixonados por garantir que a psicologia positiva preencha as mentes e as salas de aula de nossos professores e seus alunos, também somos inflexíveis em rela­ção a querer que os maus professores se­jam identificados muito precocemente em suas carreiras e sejam ensinados a mudar ou saiam das salas de aula.

"Nenhuma criança deixada para trás" e além disso

Em uma carta a John Adams (incluí­da em Barber e Battistoni, 1993, p. 41), Thomas Jefferson expôs sua visão sobre a mudança da aristocracia de “privilégio por herança” dos Estados Unidos para um tipo de aristocracia mais baseado no talento. Desde aqueles tempos longínquos, o ideal norte-americano tem sido o de que a edu­cação pública deveria fazer com que o des­fecho da vida das pessoas dependa menos de situação familiar e mais do uso da edu­cação pública. Dessa forma, as escolas fo­ram idealizadas para fazer uma diferença enorme na vida de nossas crianças.

Infelizmente, essa visão romantizada das escolas dos Estados Unidos tem sido mais sonho do que realidade. É irônico que o presidente Lyndon Johnson acreditasse na força das escolas como as “grandes equalizadoras” (uma expressão populari­zada pelo filósofo e líder da educação do século XIX, Horace Mann) das pessoas. Nessa linha, ele encomendou um estudo enorme, cujos resultados ele (e outros) acreditava que mostrariam de uma vez por todas que a qualidade dos recursos esco­lares (como as instalações, os currículos, os livros) era responsável pelos resultados educacionais superiores dos cáucaso-estadunidenses, comparados com os das pes­soas de cor. Ao contrário dessas expectati­vas, contudo, a publicação do Relatório Coleman Report (tecnicamente chamado de Equality of Educational Opportunity Report) em 1966 (Coleman et al., 1966) levou à conclusão de que “as escolas não fazem muita diferença” nos rumos da vida dos estudantes (vide Fritzberg, 2001, 2002).

Essa foi uma referência extrema­mente perturbadora para os educadores, assim como para o presidente Johnson.

As conclusões do relatório de Coleman e colaboradores (1966) significam que nada pode ser feito em termos de ensino escolar para melhorar a aprendizagem dos alunos? Felizmente, a resposta é não, e já mencio­namos o fator que parece, sim, render me­lhor aprendizagem: a qualidade dos profes­sores. Antes de tratarmos do que se pode fazer para melhorar a qualidade de nossos professores, contudo, descrevemos o atual ambiente da educação nos Estados Unidos.

Com a aprovação da lei No child left behind (Nenhum criança deixada para trás), em 2001, a ênfase tem estado cada vez mais nas responsabilidades dos profes­sores e dos sistemas escolares para produ­zir aprendizagem direcionada e objetivos de desempenho. Para um excelente [343] panorama dessa abordagem, sugerimos o volu­me No child left behind? The politics and practice of accountability, de Peterson e West (2003).

Como observamos, a pesquisa mos­tra que a qualidade dos professores é fun­damental para gerar resultados relaciona­dos à aprendizagem (Monk e King, 1994; Rice, 2003; Rowan et al., 1997). De que forma, então, pode-se aumentar o número de professores qualificados em nossas es­colas? Assim como acontece com muitas escolas, o dinheiro parece cumprir um pa­pel importante. Ou seja, a pesquisa rele­vante mostra que os distritos escolares com salários mais altos e melhores instalações provavelmente atrairão e manterão profes­sores de maior qualidade (Hanushek, Kain, O’Brien e Rivkin, 2004). Além disso, uma competição entre escolas eleva a qualida­de dos professores, bem como melhora a qualidade da educação como um todo (Hanushek e Rivkin, 2003). (Deve-se ob­servar, contudo, que os professores não são totalmente movidos por salários e que a raça, ou etnicidade, e o desempenho dos estudantes em determinadas escolas tam­bém são importantes [Hanushek e Rivkin, 2004].)

Parece que a legislação voltada a ele­var impostos para pagar por escolas e pro­fessores não está recebendo muito apoio entre os eleitores dos Estados Unidos. De­tectamos duas implicações negativas nes­sa tendência. Em primeiro lugar, apenas os distritos escolares mais afluentes terão condições de pagar os altos salários necessá­rios para atrair os melhores professores. Obviamente, isso perpetua o problema da falta de professores excelentes nos distri­tos escolares pobres. Em segundo, as famí­lias ricas estão mandando seus filhos para escolas privadas, de forma que as públicas são deixadas para os professores de mais baixa qualidade.

Em função dessas tendências, vislum­bramos importantes desafios às contribui­ções da psicologia positiva à escola do sé­culo XXI nos Estados Unidos, desafios es­ses que são ampliados pelo fato de que aproximadamente 3 milhões de professo­res, desde a educação infantil até o ensino médio, precisarão ser substituídos na pró­xima década por causa de aposentadorias (Goldhaber, 2002). [345]

Os componentes da escolarização positiva

Antes de examinar os componentes da escolarização positiva (que é uma abordagem à educação que consiste em um alicerce de cuidado, confiança e respeito pela diversidade, em que os professores ajustam os objetivos para que cada aluno engendre a aprendizagem e, a seguir, tra­balham com ele para desenvolver os pla­nos e a motivação para atingir esses obje­tivos), citamos brevemente alguns dos prin­cipais educadores que abriram caminho para essa abordagem. Filósofos de desta­que, como Benjamin Franklin, John Stuart Mill, Herbert Spencer e John Dewey, trata­ram dos recursos dos estudantes (Lopez, Janowski e Wells, 2005). Alfred Binet (Binet e Simon, 1916) costuma ser considerado o pai do conceito de idade mental, mas também destacou o aprimoramento das habilidades dos estudantes em lugar de prestar atenção apenas na solução das fragilidades.

Da mesma forma, Elizabeth Hurlock (1925) acentuou o estímulo como sendo mais influente do que a crítica, como determinante dos esforços dos estudantes. Lewis Terman (Terman e Oden, 1947) tam­bém passou toda a sua carreira exploran­do o pensamento de alunos realmente brilhantes, e Arthur Chickering (1969) bus­cou entender a evolução dos talentos dos estudantes. Mais recentemente, Donald Clifton identificou e depois aprofundou os talentos específicos dos estudantes, em lu­gar de se concentrar em suas fragilidades (vide Buckingham e Clifton, 2001; Clifton e Anderson, 2002; Clifton e Nelson, 1992; Rath e Clifton, 2004).

A seguir, tratamos dos principais com­ponentes da escolarização positiva (vide Buskist et al., 2005; Lopez et al., 2005; Ritchel, 2005). Para o leitor interessado em um currículo real de uma semana para in­serir idéias da psicologia positiva no ensi­no médio, recomendamos a unidade de Amy Fineburg (2002), além de detalhes de vários currículos universitários para ensi­no positivo, os quais podem ser acessados em http://www.positivepsychology.org/ teachingpp.htm.

Figura 16.1

A Figura 16.1 é uma representação visual das lições que são comuns na escola­rização positiva. A referida figura mostra o prédio onde funciona a escola da psico­logia positiva construído em seis partes, desde as bases. Começamos com o alicer­ce, onde descrevemos a importância do cuidado, da confiança e da diversidade. A seguir, o primeiro e o segundo andares de nossa escola positiva representam os obje­tivos de ensino, planejamento e motivação dos alunos. O terceiro andar detém a es­perança, e o telhado representa as contri­buições da sociedade e as compensações geradas pelos alunos egressos de nossa es­cola baseada na psicologia positiva.

Cuidado, confiança e respeito pela diversidade

Começamos com um alicerce que en­volve o cuidado, a confiança e o respeito pela diversidade. É absolutamente crucial ter uma atmosfera de apoio, baseada em cuidado e confiança, porque os estudantes prosperam nesse tipo de ambiente. Ao par­ticipar de cerimônias de homenagem para professores de destaque, observamos que tanto os professores quanto seus alunos comentam sobre a importância de uma sen­sação de cuidado. Os estudantes precisam, como modelos de referência, de professo­res que os atendam e estejam disponíveis permanentemente. Esse cuidado e essas emoções positivas por parte dos professo­res proporcionam a base segura que pos­sibilita que os jovens explorem e encontrem formas de atingir seus próprios obje­tivos acadêmicos e de vida (Shorey, Snyder, Yang e Lewin, 2003). [346]

Talvez uma história pessoal ajude a mostrar a importância de os professores cuidarem dos alunos. Eu (C.R.S.) sempre pensei que queria ser professor, e sabia dis­so já quando entrei na universidade. No outono de 1963, eu estava no primeiro se­mestre da Southern Methodist University, e o início de minha carreira universitária estava indo bem. Então, em 22 de novem­ bro de 1963, a menos de 15 quilômetros da minha faculdade, o presidente John F. Kennedy foi assassinado no centro de Dallas, estado do Texas. Como eu havia feito campanha para ele, sua morte foi tão devastadora que disse a meus professores que iria deixar a faculdade. Eu não conse­guia ir às aulas e, quando ia, estava tão perturbado que não conseguia anotar nada. Em resposta a meu anúncio, meus profes­sores passaram um tempo considerável conversando comigo e me disseram que precisava passar pelo luto. Suas reações de cuidado impediram que abandonasse a fa­culdade, e provavelmente eu não teria [347] conseguido me tornar professor universitário anos depois se esses professores não ti­vessem me ajudado naquele momento crucial. Os bons professores sabem quando ser solidários e ajudar alunos que estejam en­frentando crises.

A confiança em sala de aula recebeu atenção considerável entre os educadores, e o consenso é que ela rende benefícios psicológicos e de desempenho para os es­tudantes (Bryk e Schneider, 2002; Collins, 2001). A confiança é fundamental já des­de as primeiras séries. Por exemplo, em seu influente livro de 2003, Learning to trust: transforming difficult elementary classrooms through developmental discipline, Marilyn Watson (psicóloga educacional) e Laura Ecken (professora do ensino fundamental) tratam do espinhoso problema da adminis­tração da sala de aula e da disciplina nas escolas fundamentais. Sua proposta é es­tabelecer relacionamentos de confiança com os alunos mais difíceis, com a lógica de que isso terá efeitos cascata que se es­palharão para o resto da turma.

Watson e Ecken (2003) defendem o que chamam de disciplina do desenvol­vimento. Essa noção deriva dos princípios da teoria do vínculo (vide o Capítulo 13), que defende ajudar aqueles alunos que têm vínculos inseguros com seus cuidadores. As autoras escrevem que “a construção de re­lacionamentos baseados no cuidado e na confiança passa a ser o objetivo mais im­portante na socialização dessas crianças. Obviamente, enquanto estamos construin­do esses relacionamentos, devemos encon­trar formas não-punitivas de impedir que as crianças agressivas e controladoras cau­sem danos a outras e de estimular a auto­nomia e a autoconfiança nas que são re­traídas e dependentes” (p. 12). Para o leitor interessado em como estabelecer a con­fiança em salas de aula de ensino médio com estudantes em situação de risco, tam­bém sugerimos o volume de 1998, Empo­wering discipline, de Vicki Phillips.

Os professores devem se certificar de que há uma sensação de confiança em suas salas de aula. Eles devem evitar se tornar cínicos em relação aos alunos, pois isso so­lapa a confiança que é tão crucial à apren­dizagem. Muitas vezes, os alunos preferem se comportar mal (e sofrer qualquer puni­ção) do que parecer burros na frente dos colegas. Em suas interações com alunos, contudo, os professores positivos tentam encontrar maneiras de fazer que seus pu­pilos acabem parecendo bem. A menos que sintam que há respeito por parte do pro­fessor, os estudantes não correrão os ris­cos que são tão importantes à aprendiza­gem. As vezes, o melhor ensino acontece quando o professor fica em silêncio e es­cuta as visões dos alunos em uma aula. A premiada professora Jeanne Stahl, do Morris Brown College, comentou: “O silên­cio é a melhor postura quando não se sabe de onde um aluno vem ou para onde está indo” (Stahl, 2005, p. 91).

Uma parte importante do cuidado com os alunos está relacionada a passar grandes quantidades de tempo com eles. Quando se perguntou a alunos de gradua­ção o que eles consideravam os aspectos mais importantes de ser professor univer­sitário (por exemplo, pesquisa, preparar aulas e provas, reuniões de comissões), informaram repetidamente que a disposi­ção dos professores de passar tempo com eles foi a característica mais importante (Bjomesen, 2000).

Outro aspecto do alicerce da psicolo­gia positiva para as escolas é a importância da diversidade das origens e das opiniões dos estudantes na sala de aula. Isso come­ça se estimulando que eles sejam sensíveis às idéias de pessoas que não pertencem à sua coorte étnica ou etária, e pode ser obti­do se revelando aos alunos que eles têm muito em comum com os que são diferentes deles. Também é fundamental se certificar de que as visões de todos os públicos em uma turma tenham voz na sala de aula. A premissa da psicologia positiva é estimular um ponto de vista “NÓS/EU”, ou seja, um ambiente apropriado para o coletivo. (A perspectiva “NÓS/EU” é discutida mais [348] profundamente no Capítulo 18.) Um meio visual interessante para ajudar os alunos a pensar além de seus próprios pontos de vista (EU) é fazer com que pensem sobre as visões refletidas de outros (NÓS).

Uma abordagem excelente para de­senvolver uma atmosfera “NÓS/EU” é im­plementar “a sala de aula quebra-cabeça,” projetada pelo professor emérito da Univer­sidade da Califórnia, em Santa Cruz, Elliot Aronson (Aronson e Patnoe, 1997). Nesse enfoque, os estudantes e os professores usam objetivos baseados em grupos, e os alunos que têm origens diferentes são colocados em unidades de trabalho em que devem compartilhar informações para que o gru­po - e, portanto, cada um de seus mem­bros - tenha êxito. Na sala de aula quebra-cabeça, cada aluno tem parte da informa­ção que é vital para o sucesso do grupo como um todo, e assim há uma forte moti­vação para incluir as contribuições de cada um deles. A sala de aula quebra-cabeça en­sina a cooperação em lugar da competi­ção. Pesquisas sobre o tema mostram que os estudantes aprendem o assunto, junto com respeito por seus colegas. Ela também impede que os alunos se tornem “caçadores de notas” que querem ter sucesso por meio de competição hostil e comparações sociais uns com os outros (Aronson, 2000; Aronson, Blaney, Stephin, Sikes e Snapp, 1978).

Antes de sairmos desta seção sobre diversidade, enfatizamos o quanto é fun­damental ter programas compensatórios voltados a estudantes que possam ter difi­culdades de aprendizagem. Discutimos es­ses programas em detalhe no Capítulo 15, sobre interceder para ajudar as pessoas. Uma questão que não foi destacada neste capítulo, e que deve ser parte da escolarização da psicologia positiva, é que deve­mos ter programas para estimular nossos alunos verdadeiramente talentosos. Mui­tas vezes, prevalece uma atitude infeliz de que esses alunos já têm vantagens tão im­pressionantes que deveríamos simplesmen­te “deixá-los em paz”. Aplaudimos as pala­vras de Martin Seligman (1998d):

Antes da Segun­da Guerra Mun­dial, o talento superior era uma missão da psico­logia. À medida que o nosso cam­po se voltou ca­da vez mais para populações clíni­cas, o gênio foi esquecido com­pletamente. No entanto, é fun­damental ao te­ma principal da psicologia positiva - a psicologia dedicada às melhores coisas da vida, bem como a curar as piores - a busca e a construção da expressão integral do talento de alto nível.

Não foi apenas a psicologia que negli­genciou as crianças superdotadas e ta­lentosas. [A negligência] é encontrada em toda a sociedade, mesmo nos mais impor­tantes formuladores de políticas no go­verno. Tive um encontro impressionante com um alto funcionário do Ministério da Educação dos Estados Unidos, em uma reunião do Conselho de Presidentes da Science Society, recentemente. Ele havia feito uma exposição sobre a política do governo Clinton, de difícil implemen­tação, mas elogiável, de tentar elevar as notas médias de todas as crianças do país em ciências e em matemática.

“O futuro das ciências e da matemáti­ca nos Estados Unidos depende não ape­nas de uma cidadania que tenha conheci­mento de ciências, mas, mais fundamentalmente, dessas próprias pessoas de pou­ca idade que irão se tornar nossos futu­ros cientistas e matemáticos”, comentei. “O que vocês estão fazendo para ajudar essas crianças?” “As crianças talentosas sabem se cui­dar”, ele respondeu.

Essa visão, muito difundida é, ao mes­mo tempo, equivocada e perigosa. Ela condena um número muito grande de crianças talentosas a ser deixadas de lado, em desespero e frustração. O talento in­telectual surge em muitas formas, e os pais, colegas e escolas muitas vezes não [349] conseguem reconhecer ou apoiar esses ta­lentos superiores e, o que é pior, rejeitam-nos à mediocridade. Essa negligência não é benigna, ela desperdiça um recurso na­cional precioso e insubstituível sob uma bandeira do “anti-elitismo”. A psicologia deve assumir de novo essa causa (p. 3).

Tendo dito isso, sobre o estímulo aos alunos mais inteligentes, fecharíamos esta seção observando que o alicerce da escolarização da psicologia positiva reside em uma atmosfera na qual professores e estu­dantes têm respeito e cuidado com vários pontos de vista e origens. Esse respeito flui dos professores aos alunos e dos alunos aos professores.

Objetivos (conteúdo)

O componente dos objetivos é re­presentado pelo se­gundo piso do pré­dio escolar baseado nas qualidades (vide a Figura 16.1). Ex­plorando as respostas dos alunos des­de a educação in­fantil até a facul­dade, a professora da Universidade de Stanford, Carol Dweck, montou um programa de pesquisa impres­sionante mostrando que os objetivos proporcionam um meio de tratar dos esforços de aprendizagem dos estudantes. Além dis­so, esses objetivos são especialmente úteis se forem um consenso entre professor e alu­nos (Dweck, 1999; Locke e Latham, 2002). Talvez os alvos mais úteis sejam os objeti­vos ampliados, nos quais o aluno busca um objetivo de aprendizagem um pouco mais difícil do que o atingido anteriormente. Objetivos razoavelmente desafiadores ge­ram aprendizagem, especialmente se puderem ser ajustados a estudantes específi­cos (ou grupos deles).

É importante que os alunos sintam al­guma sensação de contribuição em rela­ção à condução das aulas por parte de seus professores. É claro que estes estabelecem os objetivos da aula, mas, ao fazê-lo, têm a sabedoria de levar em consideração as re­ações de seus alunos anteriores. O sucesso dos objetivos de aula de­manda que se tome, sempre que possível, o material relevante em relação às expe­riências da vida real dos alunos (Snyder e Shorey, 2002). Isso aumenta a probabilida­de de que eles venham a se envolver com o material e aprendê-lo (vide Dweck, 1999).

Não recomendamos dar um destaque muito rígido às notas, uma vez que se te­nham estabelecido os objetivos de apren­dizagem. Cumprir metas, por exemplo, pode transformar os alunos em caçadores de notas, mais fascinados com seus desem­penhos e com se sair melhor do que seus colegas do que com aprender. De fato, esse tipo de cenário já foi associado a níveis mais baixos de esperança (Shorey et al., 2004) e mais ansiedade relacionada a fazer pro­vas (Dweck, 1999).

Também ajuda fazer com que os ob­jetivos sejam compreensíveis e concretos, assim como dividir um objetivo de apren­dizagem mais amplo em subobjetivos que possam ser cumpridos em etapas. Igual­mente, como observamos com relação às questões de diversidade na seção anterior, a definição de objetivos é facilitada quan­do os professores permitem que parte das notas dos alunos seja determinada por ati­vidades coletivas, nas quais a cooperação com outros alunos seja essencial. Mais uma vez, o paradigma da “sala de aula quebra-cabeça” (www.jigsaw.org), de Aronson, é muito útil para estabelecer objetivos.

Planos

Na Figura 16.1, o primeiro andar da escola das qualidades se divide em planos e [350] motivação, ambos interagindo com os ob­jetivos educacionais no segundo andar (e com o conteúdo). Assim como a construção da ciência a partir da acumulação de idéias, o ensino necessita de um processo cuidadoso de planejamento por parte dos educadores. Uma outra abordagem com relação ao planejamento é defendida pelo conhe­cido psicólogo social Robert Cialdini, da Arizona State University (vide Cialdini, 2005). Depois de estabelecer um objetivo de aprendizagem com relação a um deter­minado conteúdo psicológico, o professor Cialdini apresenta histórias de mistério aos alunos. Ao resolver o mistério, o aluno aprendeu o conteúdo específico. (A neces­sidade inerente de fechamento [vide Kruglanksi e Webster, 1996] com relação aos mistérios também motiva os alunos; a motivação é a companheira do planejamen­to, que discutimos na seção seguinte. Da mesma forma, como as estórias de misté­rio têm início, meio e fim, há um interesse inerente por parte dos alunos de chegar à conclusão [vide Green, Strange e Brock, 2002, sobre a motivação para se chegar ao fim de uma narrativa].)

Outro aspecto a ser levado em consi­deração ao se aumentar a motivação dos alunos é tornar o material relevante a eles (Buskist et al., 2005). No nível mais bási­co, quando as informações da disciplina são relevantes, os alunos têm mais probabili­dades de ir à aula, de prestar atenção e de fazer comentários durante as exposições (Lowman, 1995; Lutsky, 1999). Para au­mentar a relevância do material, os educa­dores podem desenvolver demonstrações de sala de aula e trabalhos para fazer em casa com vários fenôme­nos aplicáveis a situações com que os alu­nos se deparam fora da sala de aula.

Alguns educadores fazem levanta­mentos no início do semestre, quando pe­dem que os alunos descrevam os eventos positivos e negativos que aconteceram em suas vidas. Depois, podem utilizar os even­tos citados com mais frequência para construir demons­trações em sala de aula (Snyder, 2004). Ou, quando o educa­dor descreve um fe­nômeno, pode-se pe­dir que os alunos deem exemplos de suas próprias experi­ências. 

Antes de sair do tema da relevância, alertamos os educadores de mais idade para que não tentem cooptar as manifes­tações dos estilos de vida de alunos muito mais jovens. Essa é uma forma certeira de anular a motivação dos alunos. Nas pala­vras de Snyder (2004, p. 17-18),

Você já viu um professor de mais de 50 ou 60 anos de idade que se esforça tudo o que pode para ser tão “bacana” quanto seus alunos de 21? Não sei o que é mais digno de pena nesse fantasma. Seriam as roupas jovens do velho professor que pa­recem tão fora de lugar? É o corte de ca­belo rebelde, deslocado, feito em uma ca­beça com cabelos já insuficientes? Ou são as tentativas desajeitadas do professor gri­salho de tomar emprestada a linguagem dos universitários? É tolice, em minha opi­nião, que um educador de mais idade tente permanecer “na moda” e fazer parte da turma mais jovem. Na verdade, acho que esses professores acabam fazendo um papel ridículo e de mau gosto. Deixem disso, eu lhes digo, pois só quando somos jovens - porque é o que realmente somos nesse momento - é que é adequado. Além disso, a verdade é que nossos alunos não querem um parceiro de rock como pro­fessor.

Motivação (e mais: dando vida ao conteúdo da disciplina para os alunos)

Os professores devem estar entusias­mados em relação a seus conteúdos para [351] que consigam aplicar as aulas que prepa­raram (vide a seta interativa entre planos e motivação, no primeiro piso da Figura 16.1). Os professores são modelos de en­tusiasmo para seus alunos, de modo que, quando tornarem os objetivos e os planos de aula interessantes para si mesmos, os alunos facilmente captarão essa energia.

Os professores motivados são sensí­veis às necessidades e às reações de seus alunos. Professores que se baseiam em qua­lidades também levam muito a sério as perguntas de seus alunos, e fazem todos os esforços para lhes dar as melhores res­postas. Se o professor não sabe a resposta à pergunta de um aluno, será um estímulo para a turma se ela for informada de que, embora o professor não saiba a resposta naquele momento, fará todos os esforços para encontrá-la. A seguir, o professor passa a localizar a resposta à pergunta e a apre­senta na próxima aula.

Os alunos em geral gostam muito dessa capacidade de respon­der às suas demandas.

Os professores também aumentam o nível motivacional quando assumem riscos e experimentam novas abordagens em aula (Halperin e Desrochers, 2005). Quando esses riscos resultam em um exercício de sala de aula que não funciona, o professor pode rir de si mesmo. O humor gera ener­gia para o próximo exercício, junto com o nível de esforço do professor. Um lema do ensino baseado em qualidades é: “Se você não rir de si mes­mo, não entendeu a maior das piadas” (Snyder, 2005a).

Qualquer coi­sa que um professor possa fazer para que os alunos assumam mais responsabili­dade também pode elevar sua motiva­ção (Halperin e Des­ rochers, 2005). Nes­sa mesma linha, os alunos que esperam ser chamados em aula para responder a perguntas geralmente estão preparados para cada aula, tendo lido o material e acompanhado a exposição (McDougall e Granby, 1996).

Lembre-se de que a abordagem discu­tida anteriormente, da sala de aula “que­bra-cabeça”, estimula a aprendizagem e o planejamento de objetivos coletivos e que, ao fazê-lo, também gera motivação dos alunos à medida que eles trabalham jun­tos. De fato, ser parte de uma iniciativa co­letiva pode gerar uma sensação de energia.

Por fim, o elogio é muito motivador, mas é melhor fazê-lo em privado, porque um aluno pode se sentir desconfortável quando é individualizado na frente de seus colegas. O elogio público também pode aumentar a propensão dos alunos a com­petir entre si. Uma visita à sala do profes­sor ou uma reunião com o aluno fora da sala de aula podem ser bons momentos para apontar seu bom trabalho ou seus avanços (ou elogiá-lo por fazer boas per­guntas). Além disso, o correio eletrônico é um veículo adequado para dar feedback po­sitivo em privado, que pode ser motivador. As oportunidades para interagir bem com os alunos e os motivar são muitas, e os pro­fessores da psicologia positiva muitas ve­zes tentam transmitir esse feedback energizante.

Esperança

Se as lições mencionadas antes com relação a objetivos, planejamento e moti­vação forem aplicadas em uma sala de aula, haverá um espírito de investigação que os alunos captarão (Ritschel, 2005). Como disse o premiado professor da Auburn University, William Buskist (2005, p. 116),

Um aspecto essencial de nosso ensino é passar a tocha - compartilhar nossos va­lores acadêmicos, nossas curiosidades e nosso entusiasmo voltado à disciplina, e estimular os alunos a assumir esses [352] valores e qualidades e se apropriar deles. Ensinar não é emitir fatos e números sem nenhuma paixão. Ensinar é influenciar. E se preocupar profundamente com as idéias e com a forma como essas idéias são transmitidas, entendidas e expressa­das. É se preocupar profundamente com o conteúdo e com os alunos a quem o estamos comunicando. E é por meio des­se cuidado apaixonado que inspiramos os alunos.

Quando os alunos adquirem esse es­pírito, sua aprendizagem se amplia para aumentar sua sensação de fortalecimento. Dessa forma, eles são fortalecidos para se tornar solucionadores de problemas para toda a sua vida. Essa “aprendizagem de como aprender” se baseia em pensamento voltado a objetivos, baseado em caminhos, bem como na motivação do tipo “eu sou capaz”. Sendo assim, a escolarização da psicologia positiva não apenas transmite os conteúdos das disciplinas, como também produz uma sensação de esperança nos alunos. (Vide o Capítulo 9 para uma dis­cussão detalhada sobre a esperança.) A esperança é mostrada na cobertura do pré­dio da escola positiva da Figura 16.1. Um estudante esperançoso acredita que conti­nuará aprendendo muito tempo depois que já tiver saído da sala de aula. Ou talvez seja mais acertado dizer que o pensamen­to esperançoso não conhece limites na vida de um estudante que nunca parou de aprender.

Contribuições da sociedade

Uma última lição da psicologia posi­tiva é que os alunos entendam que fazem parte de um esquema social mais amplo, no qual compartilham aquilo que apren­deram com outras pessoas. Como mostra­do na nuvem potencialmente fomentadora acima da escola metafórica da Figura 16.1, essas contribuições da sociedade represen­tam as compensações duradouras que uma pessoa educada dá aos que estão ao seu redor, seja ensinando crianças a pensar positivamente, seja compartilhando visões e entusiasmo com a multidão de outras pessoas com as quais ela tem contato du­rante toda a sua vida. Portanto, a educa­ção positiva transforma os estudantes em professores que continuam a compartilhar aquilo que aprenderam com outras pessoas. Dessa forma, os benefícios do processo de aprendizagem são retransmitidos a uma ampla gama de outras pessoas. Na escolari­zação positiva, contudo, os alunos se tor­nam professores de outros.

Um exemplo de escolarização positiva: O programa StrenghtsQuest

O StrengthsQuest é um programa vol­tado a desenvolver e a engajar estudantes do ensino médio e universitários para que possam ter sucesso em seus empreendimen­tos acadêmicos em particular e em sua vida em geral. Esse programa deve sua existên­cia ao psicólogo positivo Donald Clifton, que começou seu trabalho com esse enfoque da psicologia da educação na Universidade de Nebraska-Lincoln, na década de 1950. An­tes de nos aprofundarmos em sua teoria e no programa educacional relacionado a ela, saudamos esse homem admirável. Don Clifton foi homenageado pela American Psychological Association como o “pai” da abordagem baseada em qualidades na psi­cologia, além de “avô” da psicologia positi­va (McKay e Greengrass, 2003). Ao contrá­rio das correntes intelectuais e aplicadas dos anos de 1950 até os de 1990, que nadaram nas águas turvas da psicologia voltada aos defeitos, o professor Clifton sempre pare­ceu ter uma questão crucial e diferente: “O que aconteceria se estudássemos o que está certo nas pessoas, em lugar de o que há de errado com elas?”.

Essa pergunta está no centro do pro­grama StrengthsQuest (vide Clifton e Anderson, 2002). É claro que esse enfoque [353] contrasta com a abordagem tradicional à educação, na qual os alunos são ensinados explícita e implicitamente que devem “con­sertar” suas deficiências e, se não o fize­rem, são reprovados (Anderson, 2005). Em termos da esperança e das motivações re­lacionadas a ela discutidas na seção ante­rior, o programa StrengthsQuest energiza os alunos. Isso acontece quando eles se dão conta de que são vistos como alguém que tem os talentos cognitivos naturais para ter sucesso na escola.

O programa StrengthsQuest começa fazendo com que os alunos realizem o Clifton StrengthsFinder, uma avaliação computadorizada, via internet, das cinco áreas de seus maiores talentos naturais. A avaliação envolve 180 itens. Em cada um deles, os respondentes selecionam o descritor mais aplicável de um par (por exem­plo, “Leio instruções com atenção” versus “Gosto de passar diretamente para o que interessa”). O aluno também classifica o grau em que a declaração escolhida é me­lhor do que aquela à qual está associada no par. Há 34 temas possíveis. e o estudante aprende quais cinco temas são mais aplicáveis a ele.

Até o momento, mais de 100 estudos já usaram o enfoque de avaliação do StrengthsFinder para predizer com preci­são uma série de indicadores de resulta­dos (Schmidt e Rader, 1999). Além disso, essa técnica passou por uma razoável vali­dação empírica de constructo (Lopez, Hodges e Harter, 2005).

A seguir, os estudantes completam (pela internet ou em formato impresso) o caderno de exercícios StrengthsQuest: discover and develop your strengths in academics, career, and beyond (Clifton e Anderson, 2002). Esse caderno ajuda os estudantes (assim como os professores, orientadores, coordenadores de residências estudantis e outras pessoas que trabalham com os estudantes) a entender e a cons­truir suas qualidades principais naquilo a que estejam se dedicando na escola naque­le momento. Por fim, os estudantes reali­zam uma formação mais profunda se ins­crevendo na página do StrengthsQuest (www. strengthsquest.com).

Na segunda e na terceira etapas des­sa abordagem educacional, os estudantes trabalham em suas qualidades principais, reveladas nos cinco temas mais consisten­tes do StrengthsFinder. Clifton e colabora­dores, incluindo pesquisadores da organi­zação Gallup (propriedade da família Clifton, que a opera), basearam essa se­gunda fase em suas conclusões de pesqui­sa de que as pessoas com os melhores de­sempenhos e os melhores estudantes

  1. claramente reconhecem seus talentos e os desenvolvem;
  2. aplicam qualidades naquelas áreas em que há boas associações com talentos e interesses naturais e
  3. geram formas de aplicar seus recursos na busca de objetivos desejados.

Essa parte do programa é semelhan­te aos elementos de objetivos e caminhos discutidos na seção anterior, sobre escolarização positiva (Anderson, 2005).

Paralelamente a esses três passos na abordagem Clifton, os alunos parecem pas­sar por três etapas distintas (o que se re­flete em artigos escritos por estudantes que participam do programa; Clifton e Harter, 2003). Na primeira etapa, parece que os estudantes identificam seus talentos; na segunda e na terceira etapas, respectiva­mente, eles têm revelações sobre como in­tegrar essas áreas de talento em suas autoconceituações e, após, fazem mudanças de comportamento (Buckingham e Clifton, 2001). À medida que o programa avança, os estudantes participantes observam exem­plos de coisas que estão fazendo que refli­tam suas predileções e talentos naturais (por exemplo, assumir papel de liderança em situações difíceis, dar instruções a ou­tros, aprender determinadas habilidades novas em determinadas áreas, com muita facilidade). Os alunos não apenas [354] reconhecem seus talentos, como também cada vez mais começam a “se apropriar” deles.

O programa StrengthsQuest está re­cebendo mais atenção nas escolas de ensi­no médio e nas faculdades em todos os Estados Unidos. Os estudos de resultados disponíveis sugerem que o programa tem efeitos positivos sobre os estudantes (vide Hodges e Harter, 2005). Por exemplo, em um estudo realizado com 212 alunos da UCLA que passaram pelo programa, por exemplo, eles relataram aumentos impor­tantes em altruísmo, autoconfiança, eficá­cia e esperança (Crabtree, 2002; Rath, 2002). Da mesma forma, um estudo reali­zado em outra grande universidade esta­dual concluiu que a esperança como esta­do dos estudantes (ou seja, motivação [355] voltada a objetivos, vinculada a um determi­nado tempo e situação, vide Snyder et al. [1996]) aumentou em fun­ção de seu envolvimento no programa StrengthsQuest (Hodges e Clifton, 2004). O que vale a pena destacar sobre essas con­clusões, tomadas em seu conjunto, é o grau em que as atividades envolvidas no pro­grama correspondem aos componentes re­lacionados à esperança (agência, caminhos e objetivos) descritos anteriormente neste capítulo e mostrados na Figura 16.1.

O ensino como vocação 

Assim como os professores negativos prejudicaram esse processo, os professores positivos desencadearam o entusiasmo e a alegria de aprender. Esses professores da escolarização positiva consideram seus es­forços como uma vocação em lugar de um trabalho (Wrzesniewski, McCauley, Rozin e Schwartz, 1997). Uma vocação se defi­ne como uma forte motivação na qual a pessoa repetidamente assume uma atitu­de intrinsecamente satisfatória (vide Buskist, Benson e Sikorski, 2005). Quando os preceitos da psicologia positiva são apli­cados ao ensino, acreditamos que os ins­trutores se comportam como se tivessem vocações nas quais demonstram um amor profundo e intenso por ensinar.

Alguns exemplos de mestres do ensi­no podem dar ao leitor uma sensação me­lhor de sua dedicação. Wilbert McKeachie, da Universidade de Michigan, que é muito aclamado por ter escrito o “manual” sobre ensino positivo em nível universitário, está chegando ao seu 60º ano na atividade de lecionar. Sobre sua atividade como professor, Mc­ Keachie (2002, p. 487) declara que o que quer é estar “pre­parando as aulas da semana seguinte, co­ordenando discussões, apresentando de­monstrações, trabalhando com monitores, interagindo com alunos de diversas ori­gens, lendo os diários dos alunos e, inclusive, comentando e dando notas a provas”.

Outro patriarca do ensino universitá­rio é Charles Brewer, da Universidade Fur­man. Ele retrata seu ensino como “praze­roso, revigorante, misterioso, frustrante, apaixonado, precioso e sagrado”. O pro­fessor Brewer (2002, p. 507) chega a ad­mitir que “lecionar proporciona mais diver­são do que a maioria das pessoas deveria ter”.

David Worley (2001, p. 279) retrata sua atividade de professor como “um so­nho que se tornou realidade” que ele dei­xa “viver a cada dia”. Worley também diz a seus alunos: “Eu fiz pós-graduação e pas­sei pelo trabalho difícil e desafiador, por uma única razão: queria estar aqui com vocês, hoje”.

Todos esses mestres do ensino consi­deram sua vocação como um privilégio, isto é, a chance de influenciar positivamente a vida de seus alunos (Buskist et al., 2005). O estudante e o professor, juntos, realizam uma jornada surpreendente, ilustrada na Figura 16.2.

Figura 16.2

Retribuindo aos professores

Nossa observação final com relação à escolarização positiva diz respeito ao pa­pel que você pode cumprir para melhorar [356] os professores. Há várias coisas que você pode fazer para ajudar os professores em particular e o sistema escolar em geral. Em primeiro lugar, pode trabalhar com os pro­fessores para ajudar, de qualquer maneira possível, a melhorar a aprendizagem de seus próprios filhos. A aprendizagem obviamente acontece fora da escola, e recomen­damos que você experimente várias ativi­dades com seus filhos, para reforçar e pra­ticar as lições que são ensinadas na escola. Da mesma forma, ofereça-se como volun­tário para ajudar em várias atividades es­colares. Seus filhos, assim como outras crianças, ficarão impressionados com o fato de que aprender não é uma coisa com a qual só os professores se preocupam.

Você pode também fazer visitas aos professores de suas escolas locais, tanto de nível fundamental quanto de nível médio, e lhes perguntar do que eles precisam para tornar seu ensino mais eficaz. As necessi­dades dos professores podem variar segun­do a disciplina, mas os computadores cos­tumam ser presentes úteis para a maioria das salas de aula. Se forem necessários computadores novos, ou outros materiais escolares, talvez uma atividade promovi­da por pais e membros da comunidade possa arrecadar o dinheiro necessário. Veja de que outros materiais os professores po­dem precisar para suas salas de aula. Tal­vez seus livros velhos possam ser doados para a biblioteca da escola.

Faça o que pu­der para que esses itens ou serviços sejam obtidos. Se você tem habilidades especi­ais, ofereça-se para ir às aulas e fazer de­ monstrações aos alunos. Você pode querer iniciar uma atividade política para elevar os impostos para a educação, com vistas a aumentar os salários dos professores e seus benefícios, ou construir novas salas de aula. Você é parte da solução da psicologia posi­tiva para melhorar as escolas em sua co­munidade.

Se houver professores em seu siste­ma escolar local que fizeram um trabalho maravilhoso quando lhe ensinaram, des­cubra quando esses professores planejam se aposentar. Eles dedicaram suas vidas a educar as crianças de sua comunidade, então por que não se reunir com outros ex-alunos? Ou ajude a organizar uma festa de despedida para o professor estimado. [359]

Psicologia - Psicologia positiva
Saúde - Prevenção, Prevenção primária
1/19/2021 5:26:08 PM | Por Charles Richard Snyder
Intercedendo para prevenir o que é ruim e potencializar o que bom

Ávida para começar, uma nova clien­te de psicoterapia anunciou apaixonadamente: “Quero fazer que as coisas ruins parem de acontecer, mas não só isso... que­ro mais coisas boas!”. Suas palavras dão conta das duas categorias amplas de inter­venção que exploramos neste capítulo. A primeira categoria, interromper o que é ruim, envolve esforços para prevenir que coisas negativas ocorram posterior­mente, e pode ser dividida em prevenções primárias e secundárias. As prevenções pri­márias reduzem ou eliminam os problemas físicos ou psicológicos antes que eles sur­jam. As prevenções secundárias reduzem os problemas após seu surgimento. Esse se­gundo processo costuma ser chamado de psicoterapia.

A segunda categoria, produzir mais coisas boas, significa potencializar aquilo que as pessoas querem de suas vidas; ela também pode ser dividida em tipos primá­rio e secundário. As potencializações primá­rias estabelecem um bom funcionamento e uma boa satisfação. As potencializações secundárias vão ainda mais longe, contu­do, partindo de funcionamento e satisfa­ção já bons para chegar a experiências máximas. As potencializações primárias tornam as coisas boas (criam experiências ótimas), ao passo que as secundárias si­tuam as coisas no melhor que elas podem ser (criam experiências máximas).

Se cada uma dessas abordagens pri­márias e secundárias à prevenção e potencialização tivesse que ter um slogan, suge­riríamos os seguintes:

  • Prevenção primária: “parar o que é ruim antes que aconteça”.
  • Prevenção secundária (psicoterapia): “consertar o problema”.
  • Potencialização primária: “tomar a vida boa”.
  • Potencialização secundária: “fazer da vida o melhor possível”.

Prevenção primária: interromper o que é ruim antes que aconteça 

Definição

Como mostrado na extrema esquer­da da Figura 15.1, as prevenções primá­rias refletem as ações que as pessoas rea­lizam para reduzir ou eliminar a probabi­lidade de ter dificuldades psicológicas (Heller, Wyman e Allen, 2000) ou proble­mas físicos (Kaplan, 2000) subsequentes. Com as prevenções primárias, as pessoas ainda não estão manifestando quaisquer problemas, e é só mais tarde que esses [312] problemas vão aparecer, se não forem dados passos para proteção, ou profiláticos (Snyder, Feldman, Taylor, Schroeder e Adams, 2000). Quando a prevenção pri­mária é dirigida à população de uma co­munidade inteira, chama-se de prevenção universal (por exemplo, vacinações em crianças); quando visam a uma determi­nada população em risco, chama-se pre­venção seletiva (como visitas aos domicí­lios em busca de crianças que nascem abai­xo do peso; Munoz e Mendelson, 2004).

Figura 15.1

As atividades de prevenção primária se baseiam na esperança em relação ao futuro. Como expressam Snyder e colabo­radores (2000, p. 256), “sugeriríamos que a prevenção é, em seu âmago, um ato de esperança, uma visão positiva, fortalecida, sobre a capacidade da pessoa de agir com vistas a conquistar melhores amanhãs”. Como um exemplo intrigante (descrito em Munoz e Mendelson, 2004) do fato de que a prevenção não precisa implicar um en­tendimento completo de um determinado problema ou doença, consideremos o sur­to de cólera em Londres, no século XIX. Embora John Snow ainda não soubesse qual era o verdadeiro fator causal em ní­vel bioquímico, ele sabia o suficiente para conseguir interromper a epidemia ao re­mover a alavanca da bomba de água na Rua Broad! O palpite de Snow era de que a cólera era transmitida por alguma coisa na água que vinha da bomba desse local.

De fato, ele conseguiu impedir a difusão da cólera ao cortar essa fonte.

A prevenção primária pode ocorrer em nível governamental. Ao estabelecer e aplicar as leis que permitem que as pesso­as tenham sucesso em função de seus mé­ritos e seus esforços, por exemplo, um go­verno pode reduzir as conseqüências ne­gativas para seus cidadãos (Snyder e Feldman, 2000). Havendo uma legislação contra práticas contratuais danosas, como racismo e sexismo, os cidadãos individuais provavelmente permanecerão satisfeitos porque percebem que têm oportunidades iguais de obter os empregos que desejam. Da mesma forma, quando os cidadãos per­cebem que as leis possibilitam oportunida­des iguais de ir em busca de atividades vol­tadas a objetivos, eles deveriam

  1. sentir-se menos frustrados a agressivos (um aspecto da hipótese de frustração-agressão [Zillman, 1979]);
  2. continuar a fazer esforços em seus am­bientes profissionais e pessoais (o re­sultado negativo, nesse caso, foi cha­mado de desamparo aprendido [Peter­son, Maier e Seligman, 1993]); e
  3. ter menos probabilidades de cometer suicídios (Rodriguez-Hanley e Snyder, 2000).

Sobre esse último aspecto, em um estudo realizado em diversos países, Krauss [313] e Krauss (1968) examinaram o grau em que os cidadãos consideravam que seus governos os bloqueavam em suas diversas atividades voltadas a objetivos. Os pesqui­sadores concluíram que os maiores blo­queios percebidos tinham uma correlação significativa com taxas de suicídio mais ele­vadas entre os diversos países.

O que quer que se possa fazer para aumentar os níveis educacionais, em ter­mos locais e nacionais, servirá a propósi­tos de prevenção primária ao reduzir as chances de que os cidadãos venham a ter má saúde e ser psicologicamente infelizes (Diener, 1984; Veroff, Douvan e Kulka, 1981). Além disso, quaisquer ações reali­zadas para promover o emprego devem impedir que as pessoas incorram em desa­justes psicológicos e físicos (Mathers e Schofield, 1998; Smith, 1987).

Aprevenção primária é eficaz?

Em termos gerais, as intervenções pri­márias são bastante eficazes (Albee e Gullotta, 1997; Durlak, 1995; Durlak e Wells, 1997; Mrazek e Haggerty, 1994; Yoshikawa, 1994). Para entender a magni­tude dos efeitos das iniciativas de preven­ção primária, considere os resultados de uma meta-análise (uma técnica estatística que possibilita que os pesquisadores com­binem resultados de vários estudos para descobrir tendências comuns) realizada por Durlak e Wells (1997). Durlak e Wells examinaram a eficácia dos programas de prevenção para problemas comportamentais e sociais de crianças e adolescentes, concluindo que a prevenção dava resulta­dos eficazes semelhantes em magnitude (e, em alguns casos, superiores) aos procedi­mentos médicos, como quimioterapia para câncer ou cirurgia para implantação de ponte de coronária.

Além disso, os autores observaram que, com relação a participan­tes de grupos de controle, os que partici­param de programas de prevenção estavam em algum ponto entre 59 e 82% melhores em termos de redução de problemas e au­mento de competências.

Componentes das prevenções primárias eficazes

Heller e colaboradores (Heller et al., 2000, p. 663-664) apresentaram cinco su­gestões para implementar prevenções pri­márias com sucesso. Em primeiro lugar, as populações-alvo devem receber informa­ções sobre o comportamento de risco a ser prevenido. Em segundo, o programa deve ser atraente, devendo motivar os partici­pantes potenciais a aumentar os compor­tamentos desejados e reduzir os indesejados. Em terceiro, o programa deve ensi­nar habilidades de solução de problemas e como resistir a retomar aos padrões con­traproducentes anteriores. Quarto, deve mudar quaisquer normas ou estruturas so­ciais que reforcem comportamentos con­traproducentes. Sobre esse último aspecto, são necessários o apoio e a aprovação social para superar as qualidades gratificantes dos comportamentos problemáticos. Quinto, devem-se coletar dados para possibilitar a avaliação das conquistas do programa. Es­ses dados de avaliação podem ser usados posteriormente para argumentar em nome da implementação de programas de pre­venção primária em outros ambientes.

O programa Head Start: um exemplo de prevenção primária

Talvez o exemplo mais destacado de prevenção primária seja o programa Head Start, que teve início na década de 1960, como parte da guerra contra a pobreza, do presidente Lyndon Johnson. O programa foi implementado em resposta a amplas preo­cupações de que crianças pobres dos Esta­dos Unidos não estivessem recebendo [314] estimulação cognitiva e intelectual suficientes para ter os benefícios adequados de seus estudos. Infelizmente, algumas crianças eram reprovadas com frequência, desde o momento em que ingressavam na escola.

O objetivo era dar às crianças pobres um nível de preparação que refletisse aquele de seus colegas economicamente mais privilegiados. Além de seus componentes educacionais, o Head Start acrescentou refeições nutritivas, triagens médicas e for­mação para os pais. Esta se revelou especi­almente eficaz, com os resultados tendo mostrado que, quando as crianças freqüen­tavam o programa por pelo menos três dias por semana, durante dois anos ou mais, e quando os pais estavam envolvidos, os be­nefícios em termos de desempenho esco­lar eram sólidos e duradouros (Ramey e Ramey, 1998). O Head Start também mos­trou a crianças e seus pais que eles não precisavam retomar comportamentos con­traproducentes anteriores; além disso, esse programa mostrou que era possível uma vida melhor para as crianças. Por fim, com­parado a vários outros programas de pre­venção, o Head Start foi testado exaustiva e repetidamente para mostrar que funcio­nava. Talvez o resultado mais fundamental tenha sido que as crianças que participa­ram do programa tiveram melhores resul­tados acadêmicos do que seus colegas que não participaram (Ramey e Ramey, 1998).

Prevenções primárias para minorias étnicas

Em uma versão modificada dos pro­gramas de redução de risco para crianças da área rural, de Bierman (1997), Alvy (1988) desenvolveu um programa eficaz de formação de pais voltado a afro-americanos. Esse programa enfatizava o orgu­lho, as habilidades de estudo e a obediên­cia às autoridades. Da mesma forma, ensi­nou-se aos pais a importância de dar apoio familiar a seus filhos. Alvy teve o cuidado de usar funcionários de diversas origens raciais, tanto em nível local quanto nacio­nal, com especialistas afro-americanos. Um programa igualmente eficaz foi implemen­tado para a formação de mães mexicano-americanas (D. L. Johnson, 1988).

O fato de membros da família e da comunidade terem sido abordados de for­mas culturalmente sensíveis parece ter sido um importante fator para o sucesso desses programas. Além disso, todos os programas destacam que o apoio da comunidade de inserção é crucial para a adoção de novas atitudes (orgulho, estudo, disciplina, etc.) Por fim, embora tenha havido alguma testagem empírica da eficácia desses pro­gramas, devem-se continuar as análises para examinar suas utilidades, dentro e fora das culturas das minorias envolvidas.

Prevenções primárias para crianças

Vários programas de prevenção pri­mária visavam a crianças e jovens em situa­ção de risco. O trabalho de Shure e Spivak (Shure, 1974; Shure e Spivak, 1988; Spivak e Shure, 1974) é exemplar para ensinar ha­bilidades de solução de problemas a crian­ças que tinham probabilidades de usar res­postas impulsivas e inadequadas ao se de­parar com problemas interpessoais. Projetavam-se vidas infelizes para essas crian­ças, nas quais elas recorreriam ao crime e a comportamentos agressivos. Como antí­doto a esses problemas previstos, as crian­ças aprenderam a produzir outras soluções para seus problemas, que não as explosões agressivas. Esses exitosos programas de prevenção primária com base na solução de problemas foram ampliados a turmas de 5a a 8a séries (Elias, Gara, Ubriaco, Rothbaum, Clabby e Schuyler, 1986) e a adolescentes identificados com probabili­dades de usar drogas (Botvin e Torn, 1988), engravidar (Weissberg, Barton e Shriver, 1997) ou contrair o HIV (Jemmot, Jemmot e Fong, 1992).

Discutimos agora um programa que teve bastante êxito em ajudar crianças em [315] risco de depressão. Usando o modelo de otimismo aprendido de Seligman (vide o Capítulo 9), Gillham, Reivich, Jaycox e Seligman (1995) implementaram um pro­grama de prevenção primária de 12 sema­nas, para crianças de 5a a 6a séries. O pro­grama de prevenção ajudou as crianças a identificar visões negativas de si mesmas e a mudar suas atribuições para outras, mais otimistas e realistas. Em relação a um gru­po de controle de crianças que não recebe­ram esse pacote de prevenção, as que par­ticiparam do grupo experimental tiveram depressão significativamente mais baixa. Essas conclusões estavam diretamente liga­das a sua aprendizagem de atribuições mais otimistas. (Para conclusões análogas com estudantes do ensino médio, vide Clarke, Hawkins, Murphy, Sheeber, Lewinsohn e Seeley [1995].) O programa de Seligman é especialmente elogiável porque tem ava­liado sua eficácia permanentemente em termos de resultados positivos das crian­ças participantes que, caso contrário, estariam em risco de depressão grave.

Prevenções primárias para idosos

Os programas de prevenção destina­dos a idosos podem se concentrar em mui­tos objetivos diferentes, incluindo a tria­gem para reduzir a probabilidade de pro­blemas de saúde física e doenças posterio­res (Ory e Cox, 1994), a verificação das condições de moradia para remover riscos físicos que podem levar a quedas e outros acidentes (Stevens et al., 1992) e tentati­vas de maximizar o envolvimento profis­sional, social e interpessoal dos idosos (Payne, 1977). Um desses intrigantes pro­gramas de prevenção, chamado Grandma Please, faz que as crianças telefonem para seus avós depois da escola (Szendre e Jose, 1996). Embora tenham sido variados, os resultados desse programa se baseiam na premissa contundente de que manter os idosos envolvidos e participando ativamen­te em suas famílias os impede de entrar em uma espiral de vida marcada pelo iso­lamento e a depressão. Infelizmente, esses programas para idosos não geraram ne­cessariamente resultados uniformes. Por exemplo, Baumgarten, Thomas, Poulin de Courval e Infante-Rivard (1988) partiram do pressuposto de que fazer com que os adultos mais velhos ajudassem seus vizi­nhos debilitados seria benéfico para os pri­meiros, mas acabaram não encontrando re­sultados positivos. Em relação a essa últi­ma ausência de resultados esperados, pode ser o caso de que passar tempo com a fa­mília seja mais importante para os idosos nessas atividades de prevenção do que passá-lo com novos amigos (Thompson e Heller, 1990). Obviamente, é necessário fa­zer mais pesquisas para entender quais ti­pos de prevenção realmente funcionam para os idosos, e isso se tornará mais importante à medida que a grande coorte de nascidos na explosão demográfica posteri­or à Segunda Guerra Mundial tenha uma idade mais avançada.

Advertências com relação à prevenção primária

Vários fatores dificultam a implemen­tação de programas de prevenção primá­ria. Em primeiro lugar, as pessoas tendem a acreditar que o futuro resultará em coi­sas boas que acontecerão a elas, enquanto as coisas ruins acontecerão aos outros. Esse fenômeno foi chamado de ilusão da sin­gularidade (Snyder e Fromkin, 1980) ou invulnerabilidade singular (Snyder, 1997). Uma forma de redução dessas vi­sões falsas é proporcionar às pessoas in­formações estatísticas sobre o quanto é tí­pico se deparar com problemas. Isso faz que pareça mais “normal” ter o problema, e os receptores dessa informação ficam mais dispostos a buscar ajuda antes que o problema cresça a um tamanho tal que seja difícil de tratar.

Em um teste empírico dessa aborda­gem, Snyder e Ingram (1983) disseram a [316]  estudantes universitários, metade dos quais tinha ansiedade elevada em testes, que havia alta prevalência de ansiedade entre universitários. Os resultados mostraram que apenas os estudantes com alta ansie­dade passaram a percebê-la como normal e tiveram mais probabilidades de procurar tratamento. Uma abordagem parecida é mostrar anúncios de televisão curtos ou es­trelas de filmes contando que buscaram tra­tamento e agora estão melhores (Snyder e Ingram, 2000b). Resumindo, ao normali­zar o problema, as pessoas que o têm po­dem estar mais dispostas a buscar ajuda para tratá-lo.

Outra força que sabota as atividades de prevenção é a dificuldade de convencer as pessoas de que esses programas são efi­cazes e valem o esforço. As pessoas ten­dem a permanecer passivas e a acreditar que “as coisas vão acabar dando certo”. Além disso, as instituições de financiamen­to podem não enxergar o ganho, ou seja, que fazer alguma coisa agora vai ter bene­fícios anos mais tarde. Uma maneira de corrigir essa percepção equivocada é reali­zar pesquisas para mostrar os ganhos dire­tos em termos de aumento de produtivida­de e dinheiro economizado por essas instituições onde se podem ampliar as preven­ções (empresas, organizações governamen­tais, etc.) (Snyder e Ingram, 2000b). Se as pesquisas mostrarem a uma empresa que iniciativas de prevenção primária podem economizar seu dinheiro no longo prazo, ela provavelmente investirá dinheiro nes­sas atividades.

Por fim, ainda que tenha havido avanços na área de prevenção, é necessário um tempo considerável até que essas conclu­sões sejam publicadas e se tornem parte da base de conhecimento da psicologia (Clark, 2004). Embora tenhamos bastante conhecimento sobre como intervir contra as psicopatologias (em função da aplica­ção ampla do modelo anterior de patolo­gias), temos muito menos entendimento de prevenção para promover a saúde e redu­zir futuros problemas entre populações identificadas (Holden e Black, 1999). Mes­mo assim, a prevenção primária pode ser aplicada com eficácia a comportamentos-alvo relacionados à saúde psicológica e fí­sica. A prevenção primária pode ajudar a manter as enfermidades físicas contidas e aumentar a qualidade psicológica da vida nos anos seguintes (Kaplan, 2000; Kaplan, Alcaraz, Anderson e Weisman, 1996; Ka­ plan e Anderson, 1996).

Prevenção secundária (psicoterapia): "consertar o problema"

A prevenção secundária trata de um problema quando ele começa a surgir. Comparada com a prevenção primária, portanto, ela ocorre mais tarde na seqüên­cia temporal do problema que se desen­volve (vide a Figura 15.1). Snyder e cola­boradores (2000, p. 256) descreveram a prevenção secundária como algo que ocorre quando “o indivíduo produz ensina­mentos ou ações para eliminar, reduzir ou conter o problema uma vez que este apa­receu”. Sendo assim, o tempo em relação ao problema é um fator de diferenciação fundamental nesses dois tipos de preven­ção, com a prevenção primária envolven­do ações iniciadas antes do problema se de­senvolver e a secundária, ações realizadas depois que o problema apareceu.

A prevenção secundária é sinônimo de intervenções psicoterápicas. Embora a maioria das pessoas provavelmente se dê conta de que há muitas formas de psicoterapia, muitos se surpreendem ao saber que os profissionais atualmente estão pratican­do mais de 400 tipos diferentes de inter­venção (Roth, Fonagy e Parry, 1996).

Consideramos a psicoterapia como um excelente exemplo de prevenção secun­dária porque as pessoas que vêm a esse tipo de tratamento sabem que têm [317] determinados problemas que estão além de suas ca­pacidades de enfrentamento, e é isso que as leva a buscar ajuda (Snyder e Ingram, 2000a). De fato, a literatura relacionada revela que os problemas específicos dos fatores de estresse na vida desencadeiam a busca de ajuda psicológica (Norcross e Prochaska, 1986; Wills e DePaulo, 1991). É claro que, quando a psicoterapia é bem sucedida, ela também pode produzir a ca­racterística de prevenção primária de re­duzir ou prevenir a recorrência de proble­mas semelhantes no futuro.

A prevenção secundária é eficaz?

Desde as sínteses mais antigas sobre a eficácia da psicoterapia (por exemplo. Smith, Glass e Miller, 1980) às mais con­temporâneas (vide Ingram, Hayes e Scott, 2000), há evidências constantes de que ela melhora a vida de adultos e crianças. Quan­do dizemos que a psicoterapia “funciona”, queremos dizer que há uma redução da gravidade e/ou frequência dos problemas e sintomas do cliente. Em média, por exem­plo, uma pessoa que fez psicoterapia me­lhorou na magnitude de 1 desvio-padrão (ou seja, está cerca de 34% melhor) em vários indicadores de resultado, em rela­ção à que não fez (Landman e Dawes, 1982; Shapiro e Shapiro, 1982). Sendo assim, existe sustentação científica consistente para a eficácia do que chamamos de tratamentos baseados em evidências para adultos (Chambless et al., 1998; Chambless e Hollon, 1998; Chambless et al., 1996), crianças (Casey e Berman, 1985; Kasdin, Siegel e Bass, 1990; Roberts, Vemberg e Jackson, 2000; Weisz, Weiss, Alicke e Klotz, 1987), idosos (Gallagher-Thompson et al., 2000; Woods e Roth, 1996) e para mino­rias étnicas (Malgady, Rogler e Costantino, 1990). Além disso, os clientes que passa­ram por tratamentos psicoterápicos infor­mam estar muito satisfeitos com suas experiências (Seligman, 1995).

Para o leitor interessado em panora­mas de tratamentos eficazes para depres­sões, transtornos bipolares, fobias, trans­tornos de ansiedade generalizada, agorafobias, transtornos obsessivo-compulsivos, transtornos alimentares, esquizofrenia, transtornos de personalidade, dependência e abuso de álcool e disfunções sexuais, recomendamos o livro de 1996, What works for whom? A critical review of psychotherapy research, organizado por Anthony Roth e Peter Fonagy. As intervenções eficazes para problemas específicos são resumidas no Anexo A, dispostas nas páginas 334-335.

Componentes comuns das intervenções secundárias

Sobre a eficácia da psicoterapia, o renomado psiquiatra e estudioso da psico­terapia Jerome Frank (1968, 1973, 1975) sugeriu que a esperança seria o processo subjacente comum a todos os enfoques bem-sucedidos da psicoterapia. Partindo das idéias pioneiras de Frank, Snyder e colaboradores (Snyder, Ilardi, Cheavens, et al., 2000; Snyder, Ilardi, Michael e Chea­ vens, 2000; Snyder, Parenteau, Shorey, Kahle e Berg, 2002) usaram a teoria da es­perança (vide o Capítulo 9) para demons­trar como o pensamento dirigido a objeti­ vos, baseado em caminhos e em agência, facilita os bons resultados na psicoterapia. Aprofundamos, a seguir, a discussão sobre a aplicação desses processos de agência e caminhos a processos de psicoterapia.

Os efeitos placebo na pesquisa em psicoterapia representam o quanto os clien­tes iriam melhorar se fossem motivados a acreditar que as mudanças iriam aconte­cer. Portanto, se o tamanho do efeito de resultado terapêutico do placebo for com­parado com o tamanho do efeito terapêutico para clientes que não recebem ex­pectativas motivacionais, podemos produ­zir aquilo que eqüivale a um efeito-agência (ou motivação). Igualmente, se [318] tomar-mos o efeito de resultado total do trata­mento (incluindo agência e mais os cami­nhos do tratamento) e subtrairmos o efei­to placebo (agência), permanece havendo um efeito de tipo caminhos. Já se mostrou que o tamanho do efeito da agência típico é de 0,47 desvios-padrão em magnitude (isto é, os clientes ficam 16% melhores do que estariam se não tivessem recebido tra­tamento), e o efeito de caminhos foi de 0,55 desvios-padrão em magnitude (isto é, os clientes ficam 19% melhores do que es­tariam se não tivessem recebido tratamen­to; dados de Barker, Funk e Houston, 1988). Somando-se esses efeitos de agência e caminhos, tem-se o tamanho geral do efeito da esperança, de 1,02 desvios-padrão (isto é, os clientes ficam cerca de 35% melhores do que estariam se não tivessem recebido tratamento). Como é mostrado na Figura 15.2, podemos ver que cerca de me­tade do importante efeito de resultado da psicoterapia está relacionado à motivação de agência, e a outra metade do efeito da psicoterapia está relacionada aos caminhos aprendidos em intervenções específicas.

Programas de prevenção secundária para adultos

A maioria dos enfoques de psicote­rapia usou o que Berg e de Shazer (1992) chamam de “discurso do problema” em lugar do “discurso da solução”. Ou seja, o foco tradicional tem estado na redução dos pensamentos e comportamentos negativos em lugar de se concentrar na construção de pensamentos e comportamentos positi­vos (Lopez, Floyd, Ulven e Snyder, 2000). Embora o enfoque do comportamento hu­mano com base na patologia ainda seja o modelo predominante, nos últimos anos muitos terapeutas têm começado a prestar atenção às qualidades dos clientes. Igual­mente, às vezes é necessário que um clien­te desaprenda pensamentos e comporta­mentos negativos antes de aprender os positivos.

Figura 15.2

Antes de tratar de exemplos de abor­dagens terapêuticas mais novas da psico­logia positiva, seria interessante descrever abordagens anteriores que se mostraram eficazes para reduzir os problemas dos [319] clientes. Nesse sentido, algumas interven­ções de psicoterapia envolvem a autogestão (Rokke e Rehm, 2001). Uma delas é o modelo de autoeficácia de Bandura, dis­cutido anteriormente, no Capítulo 9. Se­gundo esse modelo, um cliente pode apren­der visões de eficácia por meio de

  1. conquistas reais em termos de desem­penho na área problemática;
  2. seguir o modelo de outra pessoa que está enfrentando de forma eficaz;
  3. persuasão verbal por parte do profissio­nal da ajuda e
  4. controle de processos cognitivos nega­tivos ao aprender a implementar humo­res positivos (Forgas, Bower e Moylan, 1990).

É importante observar que existem comportamentos-alvo específicos nessas abordagens baseadas na autoeficácia.

Um segundo tipo de autogestão en­volve a formação autodidática de Meichenbaum (1977), que geralmente se destina a tratar problemas de ansiedade. A etapa inicial dessa abordagem é coletar informa­ções sobre o problema, incluindo cognições mal-adaptativas. Isso se consegue quando o profissional pede que o cliente imagine o problema e descreva o diálogo interno que está ocorrendo. Na segunda etapa da abordagem de tratamento de Meichenbaum, ensinam-se diálogos internos mais adaptativos ao cliente. Por fim, o cliente pratica esses novos diálogos de enfrentamento para fortalecer a probabilidade de vir a usá-los de verdade.

Uma terceira abordagem baseada na autogestão é o modelo de autocontrole em três etapas, de Kanfer (1970), que costuma ser usado com problemas de ansiedade. Na primeira etapa, de automonitoramento, o cclente observa o comportamento problemá­tico no contexto de seus antecedentes e con­seqüências. Na segunda, de autoavaliação, o cliente aprende a comparar o comporta­mento problemático atual com o padrão melhorado de desempenho que se deseja, e entende que está ficando abaixo dele. Na terceira etapa, a de autorreforço, o cliente aprende a se reforçar (com recompensas ou punições) para o controle do comportamen­to indesejado. Além disso, o cliente deve es­tar comprometido a mudar e deve perceber que os comportamentos em questão estão sob seu controle.

Não podemos descrever todas as prin­cipais abordagens psicoterapêuticas em detalhes aqui. Para revisões das várias abor­dagens, vide o 2000 handbook of psycholo­gical change: psychotherapy processes & practicesfor the 21stcentury, organizado por C. R. Snyder e R. E. Ingram, e o 2004 handbook of psychotherapy and behavior change, organizado por M. J. Lambert. Os principais modelos de psicoterapia incluí­ram abordagens psicodinâmicas, técnicas comportamentais, estratégias cognitivo-comportamentais, modelos humanistas e abordagens do sistema de família, junto com o possível uso de medicações psicotrópicas (Plante, 2005).

Voltemos agora às abordagens de pre­venção secundária que são descritas den­tro do novo campo da psicologia positiva. Para uma revisão dessas abordagens da psicoterapia, recomendamos 2004 positive psychology in practice, organizado por E A. Linley e S. Joseph.

Seligman usou sua teoria do otimis­mo aprendido como uma estrutura de retreinamento de atribuições para desen­volver uma abordagem terapêutica à de­pressão. Para visões gerais de sua terapia de adultos, sugerimos o livro de 1991 de Seligman, Learned optimism e Authentic happiness, de 2002.

O retreinamento de atribuições para adultos de Seligman começa por ensinar às pessoas os ‘ABCs” relacionados a even­tos negativos em suas vidas. Especificamen­te, A é de adversidade, B para crença (belief) em relação à razão por trás do even­to negativo e C é de conseqüências em ter­mos de sentimentos (geralmente negativos ou deprimidos). A seguir, o autor ensina o adulto a acrescentar o D à seqüência ABC. [320]

Esse D representa a aprendizagem por par­te do cliente de confrontar e questionar a crença anterior, contraproducente e que gera depressão, com evidências contunden­tes e precisas. Por exemplo, na seqüência a seguir, considere um cliente hipotético, cha­mado Jack:

Adversidade = A percepção de Jack de que seu amigo Bob o tem ignorado.
Belief (a crença de Jack) = Bob não gosta dele porque Jack “não é divertido”.
Conseqüência = Jack se sente mal.

Com o treinamento para questionar com vistas a aprender outras explicações para o comportamento de Bob, Jack con­seguirá se sentir melhor consigo mesmo. Por exemplo, observe a seqüência a seguir, na qual se acrescenta o questionamento:

Adversidade = Bob não fala com Jack du­rante toda a tarde, no trabalho.
Belief (a crença de Jack) = Bob não gosta de Jack.
Conseqüência = Jack se sente mal.
Questionamento = Jack invoca a atri­buição mais otimista de que Bob também tem estado silencioso com outras pessoas no trabalho. Jack observa que, na verdade, Bob havia falado com ele no intervalo do café, pela manhã. Sendo assim, tendo feito essas atribuições mais otimistas, Jack con­segue se sentir muito melhor com a situação.

Além de aprender a terapia do oti­mismo, prestou-se um pouco de atenção à implementação do que se chamou de “te­rapia da esperança” em cenários de conta­to individual (Lopez et al., 2000; Lopez et al., 2004; McDermott e Snyder, 1999), com casais (Worthington et al., 1997) e em gru­pos (Klausner et al., 1998). Por exemplo, Klausner e colaboradores (Klausner et al., 1998; Klausner, Snyder e Cheavens, 2000) desenvolveram uma intervenção grupal válida para adultos mais velhos deprimi­dos. Especificamente, em uma série de 10 sessões de grupo, aprender as atividades direcionadas a objetivos que são inerentes à teoria da esperança reduziu a depressão e levantou os níveis de atividade física para pessoas mais velhas deprimidas. Além dis­so, essas melhorias baseadas no tratamen­to por meio da esperança foram superio­res às obtidas por um grupo de compara­ção que se submeteu à terapia grupal das reminiscências de Butler (1974), que im­plica que os idosos relembrem épocas ante­riores de suas vidas, mais prazerosas.

Também usando a teoria da esperan­ça como base, Cheavens e colaboradores (Cheavens, Feldman, Gum, Michael e Snyder, no prelo; Cheavens et al., 2001) desenvol­veram uma intervenção eficaz de oito ses­sões, para adultos deprimidos.

Em mais uma aplicação terapêutica da esperança, pacientes que faziam consultas em um centro de saúde mental comunitá­rio receberam uma preparação terapêutica pré-tratamento com base na teoria da espe­rança (isto é, aprenderam os princípios bá­sicos dessa teoria) e receberam as interven­ções psicoterápicas normais que são aplica­das nessa instituição. Os resultados mostra­ram que as pessoas que receberam instruções pré-tratamento na teoria da esperança melhoraram mais nos tratamentos subse­quentes do que as que não receberam essas preparações prévias (Irving et al., 2004). Deve-se enfatizar que todos os clientes nes­se estudo receberam tratamentos reais com­paráveis, mas o grupo que recebeu forma­ção pré-tratamento na teoria da esperança aproveitou melhor suas intervenções. Em mais uma intervenção com base na espe­rança, Trump (1997) formulou um trata­mento gravado em videoteipe usando nar­rativas esperançosas de mulheres que ha­viam sobrevivido ao incesto na infância. Os resultados mostraram que assistir a essa fita aumentava os níveis de esperança dessas mulheres em relação aos que assistiram a uma fita de controle.

Como mostrado no Anexo B (página 336), que é uma planilha para se usar na implementação da teoria da esperança com adultos, o cliente que passa pela terapia [321] da esperança é investigado em relação a seus objetivos em diferentes áreas da vida. A seguir, pede-se que escolha um domínio da vida específico, para nele trabalhar. Nas sessões seguintes, o terapeuta ajuda o clien­te a esclarecer os objetivos ao apontar referências concretas que sejam visíveis, para avaliar o progresso em atingir esses objeti­vos. Várias vias para se atingir os objetivos são ensinadas a seguir, junto com formas de motivar a pessoa para usar realmente essas vias. Os impedimentos aos objetivos desejados são previstos, e os clientes rece­bem instruções sobre como instituir rotas alternativas para os objetivos. À medida que diferentes objetivos são praticados ao longo do tempo, os clientes aprendem como aplicar a terapia da esperança natu­ralmente, em suas buscas cotidianas de objetivos. O propósito geral é ensiná-los a usar os princípios da terapia da esperança para atingir objetivos de vida atuais, espe­cialmente quando se encontram obstácu­los (Cheavens, Feldman, Woodward e Snyder, no prelo).

Prevenções secundárias para minorias étnicas

Os comentários a seguir, sobre psicoterapia para clientes que sejam membros de minorias étnicas, devem ser considera­ dos à luz do fato de que as pessoas de cor tendem a não buscar tratamento. Por exem­plo, enquanto os membros de grupos minoritários representam cerca de 30% da população dos Estados Unidos, eles perfa­zem apenas 10% dos que buscam psicoterapia (Vessey e Howard, 1993). Esse pro­blema é aumentado pelo fato de que mem­bros de grupos minoritários que entram em psicoterapia têm mais probabilidades do que os caucasianos de encerrar o tratamen­to antes (Gray-Little e Kaplan, 2000).

Mencionamos esses fatos para desta­car que o sistema não é eficaz para chegar às pessoas de cor e ajudá-las. Além disso, foi feita tão pouca pesquisa com clientes de psicoterapia que sejam de origem afri­cana, hispânica ou asiática, que atualmen­te não se podem fazer declarações em re­lação às melhores abordagens para tais tra­tamentos. Ao comentar a falta de amos­tras suficientes de clientes de minorias, Gray-Little e Kaplan (2000, p. 608) escre­veram: “Nossa revisão nos fez sentir como o convidado para jantar que comentou que a comida foi decepcionante e que ‘as por­ções eram muito pequenas!”’. Obviamen­te, uma das missões da psicologia positiva deveria ser entender as razões para a subutilização dos profissionais de saúde mental por membros de grupos minori­tários, bem como aumentar suas propensões a buscar esses serviços e se manter em tratamento.

Prevenção secundária para crianças

Para panoramas de prevenções secun­dárias para crianças, consulte as duas pá­ginas na internet http://www.state.hi.us/ doh/camhd/index.html e http://www.clinicalchildpsychology.org. Trataremos ago­ra de intervenções de psicologia positiva específicas para crianças. Anteriomente, neste capítulo, discutimos a abordagem de Seligman para o otimismo e seu uso como programa de prevenção primária para de­pressão em alunos de 5a série (vide, tam­bém, Jaycox, Reivich, Gillham e Seligman, 1994). Ém seu livro de 1995, The optimistic child, Martin Seligman mostra a professo­res e pais como educar as crianças para atingir as habilidades de vida necessárias de forma a diminuir a depressão. Esse pro­grama também melhora a autoconfiança, o desempenho escolar e a saúde física.

Usando a teoria da esperança como a desenvolveram Snyder e colaboradores, também tem havido programas explora­tórios para elevar a esperança de crianças. Nesses programas de treinamento para a esperança, as crianças aprendem a estabe­lecer objetivos claros e a encontrar várias rotas viáveis para chegar a eles. A seguir, ]322]  aprendem a se motivar para usar as rotas que levem aos objetivos desejados. Em seu livro Hope for the journey, Snyder, McDer­mott, Cook e Rapoff (2004) usam histórias para implantar pensamentos e comporta­mentos esperançosos nas crianças. Além disso, os programas iniciais nas escolas de ensino fundamental (McDermott et al., 1996) e nas de ensino médio (Lopez, 2000) usaram histórias para promover modestos aumentos na esperança. Da mesma forma, McNeal (1998) informou que a esperança das crianças aumentou após seis meses de psicoterapia, e Brown e Roberts (2000) concluíram que uma colônia de férias de seis semanas resultou em melhoras signi­ficativas nos escores de esperanças das cri­anças (essas mudanças se mantiveram após quatro meses). (Para mais um panorama das intervenções com base em esperança voltadas a crianças, leia The great big book of hope, de McDermott e Snyder [2000].)

Prevenções secundárias para idosos

A depressão é o problema mais fre­qüente entre pessoas mais velhas que vêm à psicoterapia. Nas palavras de Blazer (1994), a depressão é como o resfriado na vida psicológica dos idosos. A abordagem terapêutica mais predominante com os ido­sos é a cognitivo-comportamental (Thomp­son, 1996), embora a psicodinâmica (Newton, Brauer, Gutmann e Grimes, 1986), a interpessoal (enfatizar as habilidades de comunicação; Klerman, Weissman, Roun- saville e Chevron, 1984) e a das reminiscências (Butler, 1974) também tenham sido usadas com eficácia. Como os idosos ge­ralmente enfrentam eventos negativos qua­se inevitáveis (redução de renda e saúde, perda de amigos e cônjuge, etc.), o desen­volvimento de visões mais adaptativas em relação às próprias circunstâncias e a si mesmos é especialmente aplicável (Galla- gher-Thompson et al., 2000). Nessa abor­dagem, é importante se certificar de que o cliente idoso:

  1. tem expectativas apropriadas daquilo que virá à tona no tratamento;
  2. consegue ouvir e ver claramente nas sessões; e
  3. tem sessões estruturadas para avançar com a calma necessária para que as lições sejam absorvidas.

Embora a abordagem usual seja con­duzir esse tratamento em um setting indi­vidual, os formatos grupais também podem funcionar. Nesse sentido, a abordagem psicoeducacional com adultos de mais ida­de será cada vez mais importante no futu­ro. (Para um manual sobre como conduzir uma aula dessas, vide Thompson, Gallagher e Lovett, 1992).

Uma advertência sobre intervenções secundárias

Infelizmente, há um estigma relacio­nado a consultar um profissional de saúde mental para fazer psicoterapia. Embora a maioria das pessoas não tenha problemas em consultar outros profissionais de saú­de, como oftalmologistas ou cirurgiões, elas ficam reticentes em relação a ver um psi­quiatra ou um psicólogo profissional. Um exemplo claro desse estigma ocorreu na eleição presidencial de 1972 nos Estados Unidos, quando o candidato democrata George McGovern escolheu o senador Thomas Eagleton como seu candidato a vice-presidente. Quando o público norte- americano descobriu que o senador Eagleton havia feito tratamento para depressão clí­nica com terapia eletroconvulsiva de cho­que, houve uma preocupação de que uma pessoa depressiva pudesse estar a “a um passo da presidência” se alguma coisa acon­tecesse a McGovern (caso ele fosse eleito presidente). O estigma associado à depres­são acabou fazendo que McGovern retiras­se Eagleton da chapa.

Outro exemplo vem da ex-primeira dama Rosalynn Carter (Carter, 1977), que escreveu, [323] 

Quando eu era criança em Plains, no Es­tado da Geórgia, eu não ouvia falar em “saúde mental” e “doença mental”. Com os anos, escutei que um vizinho nosso teve um “colapso nervoso” e outro amigo “não estava muito bem”, e que um primo dis­tante havia sido colocado em uma instituição do Estado na qual, supus, todo mundo era louco. Lembro-me claramen­te de quando meu primo veio para casa uma vez visitar a família. Acho que me lembro da ocasião com tanta clareza por­que ele correu atrás de mim pela rua - e eu nunca me senti tão apavorada. Eu não sabia porque deveria fugir... Como nação, ainda estamos fugindo de pessoas que ti­veram ou ainda têm transtornos mentais e emocionais. E o estigma ligado à sua sina é uma desgraça não merecida... Em suma, a doença mental ainda não é acei­tável em nossa sociedade” (p. D4).

Os meios de comunicação tocam nes­ses assuntos em programas de televisão ocasionais, como The Bob Newhart Show e Frasier, em que rimos do humor inerente ao comportamento de psicoterapeutas es­quisitos. Esse tipo de televisão nada faz para reduzir o estigma, contudo, e pode muito bem alimentar os estereótipos ne­gativos. De fato, restam poucas dúvidas de que esse estigma persiste na sociedade dos Estados Unidos, pois a maioria das pessoas ainda evita falar de seu cuidado com a saú­de mental. A tragédia, nesse caso, é que esse estigma impede muitas pessoas de buscar o tratamento de que necessitam. Além disso, se as pessoas conseguirem pro­curar tratamento nas primeiras fases de seus problemas psicológicos, a probabili­dade de que tenham resultados eficazes no tratamento aumenta. Entretanto, elas po­dem esperar até que o problema psicológi­co se torne tão grave que seja extremamen­ te difícil intervir de forma eficaz. Talvez a psicologia positiva possa trabalhar para re­duzir esse pensamento preconceituoso fa­zendo com que as pessoas pensem em psicoterapia não apenas como uma solução para problemas, mas também como o for­talecimento das qualidades da pessoa e seus talentos, para que ela se torne mais produtiva e mais feliz. Em outras palavras, com o crescimento da psicologia positiva, o estigma associado à psicoterapia pode se reduzir, pois as pessoas passariam a ver o tratamento como algo que envolve proces­sos para aumentar seus recursos.

Potencialização primária: "tornar a vida boa" 

A potencialização primária é o es­forço para estabelecer funcionamento e sa­tisfação ótimos. Como mostrado no lado es­ querdo da Figura 15.3, a potencialização primária envolve tentativas de aumentar o bem-estar hedônico ao maximizar o que é agradável ou aumentar o bem-estar eudaimônico ao estabelecer e atingir objetivos (Ryan e Deci, 2001; Waterman, 1993). En­quanto as potencializações primárias hedônicas visam à indulgência no prazer e à satisfação de apetites e necessidades, as potencializações primárias eudaimônicas enfatizam o funcionamento eficaz e a feli­cidade, como resultado desejável do proces­so de busca de objetivos (Seligman, 2002; Shmotkin, 2005). Nesse aspecto, deve-se observar que a pesquisa de análise fatorial sustentou a distinção entre motivações hu­manas hedônicas e eudaimônicas (Compton, Smith, Cornish e Qualls, 1996; Keyes, Shmotkin e Ryff, 2000).

Figura 15.3

Antes de descrever as várias rotas para a potencialização primária, são necessários alguns comentários sobre o papel da evolu­ção. Em um sentido evolutivo, determina­das atividades são biologicamente predis­postas a produzir satisfação (Buss, 2000; Pinker, 1997). Uma premissa evolutiva é que as pessoas vivenciam o prazer sob circuns­tâncias favoráveis à propagação da espécie humana (Carr, 2004). Assim, a felicidade é resultado de laços interpessoais íntimos, es­pecialmente os que levam ao acasalamento e à proteção da prole. De fato, as pesquisas mostram que a felicidade vem: [324]

  1. de uma unidade de vida segura e que proporcione apoio, com pessoas que tra­balham juntas;
  2. de um ambiente que seja fértil e produ­tor de alimentação;
  3. da ampliação dos limites de nosso cor­po por meio do exercício e da busca de objetivos dotados de senti­do no trabalho (Diener, 2000; Kahne- man, Diener e Schwartz, 1999; Lykken, 1999).

Mais uma advertência cabe aqui. Muitas das experiências que estão na cate­goria de potencialização primária também se encaixam na de potencialização secun­dária, envolvendo experiências de pico. A divisão entre uma experiência ótima e uma experiência de pico pode ser muito sutil.

Potencialização primária: saúde psicológica

Muitas pessoas em seus leitos de mor­te podem pensar: “Eu queria ter passado mais tempo com minha família”. Isso su­gere que nossos relacionamentos são cru­ciais para a satisfação na vida. De fato, para maioria das pessoas, os relacionamentos interpessoais com parceiros amorosos, pa­rentes e bons amigos são as fontes mais poderosas de bem-estar e satisfação na vida (Berscheid e Reis, 1998; Reis e Gable, 2003).

Realizar atividades compartilhadas que sejam agradáveis aumenta o bem-es­tar psicológico (Watson, Clark e Tellegen, 1988), especialmente se essa participação conjunta gera excitação e atividades novas (Aron, Norman, Aron, McKenna e Heyman, 2000). Igualmente, é benéfico para ambas as partes enfrentar atividades intrinsecamente motivadas, nas quais podem com­partilhar aspectos de suas vidas deixando-se absorver pelo flow atual de seus com­portamentos (Csikszentmihalyi, 1990).

Para além do relacionamento com o parceiro amoroso, as satisfações da poten­cialização primária também podem advir de outras relações, por exemplo, com ami­gos e parentes. As circunstâncias de vida para estar em proximidade física com a família também podem produzir os apoios sociais que são tão cruciais para a felicida­de. A rede formada por alguns amigos ín­timos também pode gerar contentamento. Por fim, há argumentos evolutivos contun­dentes (Argyle, 2001) e pesquisa empírica (Diener e Seligman, 2002) para sustentar as razões pelas quais esses relacionamen­tos com parentes e amigos são fundamen­tais para a felicidade.

Outro relacionamento que gera feli­cidade é o envolvimento em questões de [325] religião e espirituais (Myers, 2000; Pied­ mont, 2004). Em parte, isso pode ser um reflexo do fato de que a religiosidade e a oração estão relacionadas à esperança ele­vada (Laird, Snyder, Rapoff e Green, 2004; Snyder, 2004c). Da mesma forma, parte da satisfação com a religião provavelmente provém dos contatos sociais que ela proporciona (Carr, 2004). A felicidade tam­bém pode resultar da espiritualidade oriun­da dos relacionamentos de uma pessoa com uma força superior. Sobre esse aspecto, há evidências de um possível vínculo genéti­co com as necessidades espirituais das pes­soas (vide Hamer, 2004).

O trabalho gratifícante também é uma importante fonte de felicidade (Argyle, 2001). Se as pessoas estiverem satisfeitas com seu tra­balho, elas também ficarão mais felizes (uma correlação geral de 0,4 entre estar empregado e o nível de felicidade; Diener e Lucas, 1999). A razão para essa conclu­são é que, para muitas pessoas, o trabalho proporciona uma rede social e também pos­sibilita testar talentos e habilidades. Para adquirir esse tipo de satisfação no traba­lho, contudo, é fundamental que os em­pregos ofereçam bastante variedade nas atividades realizadas. Além disso, as tare­fas devem ser adequadas às habilidades e aos talentos do trabalhador. Também aju­da ter um chefe que apoie e estimule a au­tonomia (Warr, 1999) e, ao mesmo tem­po, possibilite ao trabalhador individual en­tender e assumir como sendo seus os obje­tivos mais amplos da empresa (Hogan e Kaiser, 2005).

As atividades de lazer também podem gerar prazer (Argyle, 2001). Relaxar, des­cansar e fazer uma boa refeição têm todos o efeito de curto prazo de fazer que as pes­soas se sintam melhor. As atividades recre­ativas, como praticar esportes, dançar e escutar música, possibilitam às pessoas es­tabelecer contatos prazerosos com as ou­tras. Embora possa parecer incoerente com o termo lazer, as pessoas costumam ser muito ativas ao participar de atividades desse tipo. Portanto, às vezes a felicidade vem da estimulação e de uma sensação de excitação positiva, ao passo que, em ou­tras vezes, ela reflete um processo tranqüilo e de repor as energias.

Sejam quais forem as atividades es­pecíficas de potencialização primária, as ações totalmente absorventes são as mais agradáveis. Csikszentmihalyi e colaborado­ res (Csikszentmihalyi, 1990; Nakamura e Csikszentmihalyi, 2002) estudaram as cir­cunstâncias que levam a uma sensação de envolvimento total. Essas atividades cos­tumam ser intrinsecamente fascinantes por levar os talentos a níveis satisfatórios, nos quais as pessoas se deixam levar e perdem a noção do tempo. Esse tipo de potencia­lização primária já foi chamado de expe­riência de flow, e artistas, cirurgiões e ou­tros profissionais relatam ter esse tipo de flow em seu trabalho (vide o Capítulo 11, para mais discussão sobre flow).

Uma outra via para se atingir uma sensação de contentamento é a contempla­ção, no momento presente, do ambiente externo e interno da pessoa. Uma linha comum no pensamento oriental é a de que se tem imenso prazer por meio de “ser” ou vivenciar. Mesmo nas sociedades ociden­tais, contudo, a meditação sobre as expe­riências internas ou pensamentos ganhou muitos seguidores (Shapiro, Schwartz e Santerre, 2002). A meditação foi definida como “uma família de técnicas que têm em comum uma tentativa consciente de con­centrar atenção de forma não analítica e uma tentativa de não se manter no pensa­mento discursivo, ruminativo” (Shapiro, 1980, p. 14). Por exemplo, a meditação mindfulness (Langer, 2002) envolve uma atenção sem julgamento, que possibilita uma sensação de paz, serenidade e prazer. Kabat-Zinn (1990) propôs as sete qualida­des a seguir em relação à meditação mind­fulness: não-julgar, aceitar, abrir-se, não lutar, ter paciência, ter confiança e desvencilhar-se (vide o Capítulo 11). Igualmente, naquilo que se chama de meditação con­centrada, a consciência é restringida por [326]  meio da concentração em um único pen­ samento ou objeto, como um mantra pes­ soal, a própria respiração, uma palavra (Benson e Proctor, 1984), ou mesmo um som (Carrington, 1998).

Outro processo que se assemelha à meditação em sua forma de operação é a apreciação (savoring), que envolve pensa­mentos e ações que visam apreciar e, tal­vez, amplificar, uma experiência positiva de algum tipo (vide Bryant, 2004; Bryant e Veroff, 2006). Segundo Fred Bryant (2005), psicólogo que cunhou esse termo e que produziu as principais pesquisas e teorias a respeito, a apreciação pode assu­mir três formas temporais:

  1. Antecipação, ou o prazer por um even­to positivo vindouro.
  2. Estar no momento, ou pensar e fazer coisas para intensificar e, talvez, pro­longar um evento positivo à medida que ele ocorra.
  3. Reminiscência, ou se lembrar de um evento positivo para resgatar os senti­mentos e pensamentos favoráveis.

Além disso, a apreciação pode assu­mir a forma de:

  • Compartilhar com outras pessoas.
  • Tirar “fotografias mentais” para cons­truir a própria memória.
  • Congratular-se.
  • Comparar com o que se sentiu em ou­tras circunstâncias.
  • Afiar os sentidos por meio da concen­tração.
  • Ser absorvido pelo momento.
  • Expressar-se por intermédio do compor­tamento (rir, gritar, dar socos no ar).
  • Dar-se conta do quão fugaz e preciosa é a experiência.
  • Contar as próprias bênçãos.

Como exemplo de apreciação, veja os comentários (retirados de seu diário), de Bertrand Piccard (1999), quando este con­templava a última noite de sua viagem de balão ao redor do mundo, quando que­brou recordes

Na última noite, saboreei mais uma vez o rela­cionamento ínti­mo que estabele­cemos com nos­so planeta. Sen­tindo calafrios no assento do piloto, tenho a sensação de ter saído da cápsula para voar sob as estrelas que engoliram nosso ba­lão. Sinto-me tão privilegiado que quero desfrutar cada segundo deste mundo aé­reo... Em seguida, ao clarear do dia, [o balão] aterrissará na areia do Egito... [e eu] precisarei imediatamente encontrar palavras para satisfazer a curiosidade do público. Mas agora, silenciado dentro de minha japona, deixo que a mordida fria da noite me lembre de que ainda não ater­rissei, de que ainda estou vivendo um dos momentos mais bonitos da minha vida... a única maneira por meio da qual posso fazer que este instante dure é compar­tilhá-lo com outras pessoas (p. 44).

Ainda há mais que as pessoas podem fazer, para além da apreciação. Nesse sen­tido, a psicóloga Barbara Fredrickson (2002), da Universidade da Carolina do Norte, desenvolveu seu pioneiro modelo “ampliar e potencializar” (vide o Capítulo 7, para uma discussão mais detalhada do modelo) após observar que as emoções negativas, como a raiva e a ansiedade, ten­dem a limitar o repertório de pensamento e ação de uma pessoa. Ou seja, quando sentem emoções negativas, as pessoas se interessam por proteção - e seus pensa­mentos e ações passam a estar limitados a umas poucas opções restritas, que visam a se manter “em segurança”. Por outro lado, Fredrickson propôs que, ao experimentar emoções positivas, as pessoas se abrem e se tornam flexíveis em seus pensamentos e em seus comportamentos. Dessa forma, [327] as emoções positivas ajudam a produzir uma mentalidade voltada a “ampliar e potencializar”, na qual acontece um carros­sel positivo de emoções, pensamentos e ações subsequentes. Portanto, qualquer coisa que a pessoa possa fazer para vivenciar alegria, talvez por meio de diver­são ou outras atividades, pode render be­nefícios psicológicos.

Em sua pesquisa, Fredrickson (1999, 2001, 2002) induziu emoções positivas, fa­zendo que os participantes se lembrassem de um evento alegre, ouvissem uma música favorita, assistissem a um bom filme e rece­bessem avaliações positivas acerca de si mesmos, para citar alguns exemplos. Essas induções emocionais positivas, por sua vez, tornam as pessoas mais felizes, mais perceptivas, melhores na solução de problemas, com mais facilidade nas interações sociais, e assim por diante. O ciclo de “am­pliar e potencializar” é mostrado no Capí­tulo 7, na Figura 7.3. As emoções positivas abrem a pessoa às circunstâncias em que ela está inserida, bem como às importantes pistas que são relevantes às tarefas nessas circunstâncias. Além disso, as emoções po­sitivas lembram a pessoa de outros episódios de sucesso em sua vida, elevando, assim, a possibilidade percebida de se sair bem nas condições atuais. Portanto, o modelo de “ampliar e potencializar”, de Fredrickson, põe em movimento um carrossel positivo.

O psicólogo Steve Ilardi e colabora­dores da Universidade do Kansas, inicia­ram um novo tratamento para a preven­ção da depressão e para o aumento da feli­cidade pessoal, chamado de Mudança te­rapêutica de estilo de vida, Therapeutic Lifestyle Change ([TLC], Ilardi e Karwoski, 2005; para mais informações sobre o programa, consulte a página na internet www.psych.ku.edu/TLC). O preceito básico do TLC é o de que o desenvolvimento de determinadas postu­ras em relação ao estilo de vida, especial­mente as atividades que eram parte natu­ral da vida de nossos ancestrais que vive­ram há muito tempo, gera uma redução da depressão e um aumento da felicidade.

Os componentes do TLC são o exer­cício, suplementos de ácidos graxos ômega- 3, exposição à luz, menos ruminação e pre­ocupações, apoio social e bom sono. Inicial­mente, são recomendados 35 minutos de exercício aeróbico ao menos três vezes por semana. A ideia é fazer que o batimento cardíaco da pessoa chegue entre 120 e 160 por minuto. Segundo, os suplementos de ácidos graxos ômega-3 (óleos de peixe, vendidos sem prescrição médica) podem ser comprados em farmácias. Parece que nossos ancestrais consumiam quantidades mais altas de peixe do que nós consumi­mos hoje. Em terceiro, tente obter pelo menos 30 minutos de luz do sol por dia. Pode-se fazer isso naturalmente, ficando ao sol ou se sentando próximo a uma caixa de luz especial que emite luz muito bri­lhante (10.000 lux). Quarto, pare de rumi­nar. Entre as coisas que funcionam para re­duzir essa preocupação estão telefonar a um amigo, exercitar-se, colocar os pensa­mentos negativos em um diário ou reali­zar outras atividades prazerosas. Em quin­to lugar, certifique-se de estar com outras pessoas. Isso também ajuda a distraí-lo da ruminação. Sexto, durma ao menos 8 ho­ras por noite. Faça isso assumindo um ritu­al para a hora de dormir e evite cafeína e álcool muitas horas antes de deitar. Em sín­tese, o TLC parece ser uma nova aborda­gem promissora (com base em ações hu­manas muito antigas) que pode aumentar nossa felicidade. Além disso, deve-se regis­trar que o TLC envolve inerentemente vá­rios processos já discutidos nesta seção e cobre a potencialização primária da saúde psicológica.

Martin Seligman e colaboradores rea­lizaram um programa de pesquisa voltado a encontrar intervenções que fossem [328] eficazes para potencializações primárias (vide Seligman, Steen, Park e Peterson, 2005). Especificamente, Seligman recrutou 577 adultos que visitaram a página na internet de seu livro Authentic happiness (Seligman, 2002). A maioria dessas pessoas era de origem caucasiana, com alguma instrução universitária, entre 35 e 40 anos de idade, e 58% eram mulheres. Antes e depois de passar pela intervenção de potencialização primária, cada participante realizou medi­das de autoavaliação da felicidade. (Em­bora os participantes tenham sido desig­nados aleatoriamente a condições diversas, tratamos de uma condição de controle e três condições de intervenção para poten­cialização primária.)

A condição de controle para compa­ração era um exercício placebo no qual os participantes escreviam durante uma sema­na sobre suas memórias mais antigas. Os participantes colocados na intervenção de gratidão receberam uma semana para “entregar pessoalmente uma carta de gra­tidão a alguém que tivesse sido especial­mente gentil com eles, mas que nunca hou­vesse recebido os devidos agradecimentos (Seligman et al., 2005, p. 416). Os partici­pantes designados à condição que envol­via três coisas boas na vida deveriam es­crever, durante uma semana, sobre três coisas que foram bem a cada dia, junto com as causas por trás de cada uma delas. Por fim, pediu-se que um grupo de partici­pantes examinasse suas qualidades de ca­ráter de uma nova maneira, durante uma semana.

Os resultados mostraram que cada uma dessas três intervenções de potencia­lização primária teve efeitos positivos consistentes para revelar os níveis de feli­cidade dos participantes em relação aos que estavam na condição de controle/placebo. A visita de gratidão gerou os maiores aumentos em felicidade, mas eles duraram apenas por um mês. Além disso, escrever sobre três coisas boas que tivessem acontecido, junto com o uso de qualidades pessoais aplicados de uma nova maneira, tornou as pessoas mais fe­lizes, e essas mudanças positivas duraram até 6 meses.

Tomadas em seu conjunto, essas con­clusões sugerem que os psicólogos podem ajudar a desenvolver e a implementar in­tervenções de potencialização primária que elevem a felicidade das pessoas. Em seus comentários finais sobre essas descobertas pioneiras, Seligman e colaboradores (2005, p. 421) concluíram que “a psicoterapia é, há muito tempo, o lugar aonde se vai para falar dos problemas... Sugerimos que a psicoterapia do futuro também possa ser o lugar aonde se vai falar das próprias quali­dades”.

Antes de encerrarmos esta seção so­bre potencialização primária na saúde psi­cológica, a observação a seguir pode surpreendê-lo: um objetivo que não parece se adequar à potencialização primária é a busca de saúde financeira pessoal. Além de garantir as necessidades básicas da vida, o dinheiro pouco faz para melhorar o bem-estar (Diener e Biswas-Diener, 2002; Myers, 2000). Pense nas pessoas que você conhe­ce. É provável que as que se dedicam a obter riqueza provavelmente não sejam tão felizes. Na verdade, como apontamos em nosso capítulo anterior sobre os anteceden­tes da felicidade (Capítulo 7), adquirir muito dinheiro não é o caminho das pe­dras para a satisfação na vida.

Potencialização primária: saúde física

O exercício é um caminho comum para se obter uma sensação de condicio­namento físico, boa forma e força. Um as­pecto importante do exercício e da boa for­ma é dar às pessoas maior segurança de suas capacidades de realizar as atividades que formam suas rotinas cotidianas. Mais do que as melhorias fisiológicas que resul­tam dos exercícios, a segurança que eles geram também aumenta a felicidade e o bem-estar (Biddle, Fox e Boutcher, 2000). Embora os exercícios elevem os humores [329] positivos no curto prazo, é no longo prazo que eles produzem maior felicidade (Argyle, 2001; Sarafino, 2002). Nesse sentido, pode-se acrescentar o exercício à seção anterior sobre potencialização primária e saúde psicológica.

Parte da motivação para o exercício pode ser ter boa aparência e obter uma imagem física melhor (Leary, Tchividijian e Kraxberger, 1994). Outra razão por trás disso pode ser o desejo de ter boa saúde física. Sobre isso, algumas pessoas encon­tram prazer em ingerir vitaminas e alimentação nutritiva.

Atividades físicas regulares produzem benefícios psicológicos e físicos. Por exem­plo, a atividade física está relacionada aos seguintes benefícios (de Mutrie e Faulkner, 2004, p. 148):

  1. menores chances de morrer prematu­ramente;
  2. menos probabilidade de morrerprema­turamente de doenças cardíacas;
  3. menos riscos de diabete;
  4. menos probabilidade de desenvolver pressão sanguínea elevada;
  5. menos chances de desenvolver câncer de colo;
  6. perda e controle do peso e 
  7. ossos, músculos e articulações saudáveis.

Uma advertência sobre a potencialização primária

As pessoas devem tomar cuidado, em potencializações primárias, para não exa­gerar nessas atividades. Quando são se­duzidas pelos prazeres que derivam da po­tencialização de suas qualidades, as pes­soas podem perder a noção de equilíbrio nas atividades de sua vida. Assim como ocorre com qualquer atividade, pode ser necessária moderação.

Potencialização secundária: "Fazer da vida o melhor possível"

Em comparação com a potencializa­ção primária - na qual a pessoa busca um desempenho ótimo e uma satisfação por meio da busca de objetivos na potencialização secundária o objetivo é aumen­tar níveis já positivos para chegar ao máximo em termos de desempenho e satisfação (vide o lado direto da Figura 15.3). Em um sentido temporal, as atividades de potencialização secundária acontecem após terem sido atin­gidos níveis básicos de desempenho e satis­fação com a potencialização primária.

Potencialização secundária: saúde psicológica

A potencialização secundária da saú­de psicológica permite que as pessoas ma­ximizem seus prazeres partindo de sua saú­de mental positiva pré-existente. Momen­tos psicológicos de pico muitas vezes en­volvem importantes conexões humanas, como o nascimento de um filho, um casa­mento, a formatura de uma pessoa queri­da ou, talvez, o amor apaixonado e com­panheiro em relação ao parceiro.

Existem experiências psicológicas co­letivas cujo propósito é ajudar as pessoas a atingir prazeres extremos por meio do re­lacionamento profundo com outras. Já na década de 1950, por exemplo, os grupos de treinamento, ou grupos T, como eram chamados (Benne, 1964), enfatizavam a forma como as pessoas poderiam se juntar para vivenciar integralmente suas emoções positivas (Forsyth e Corazinni, 2000). (Por vezes, esses grupos eram chamados de “treinamento para a sensibilidade” [F. Johnson, 1988].)

A contemplação existencialista do sentido da vida é mais uma abordagem [330] para se chegar a uma experiência trans­cendentemente gratificante. Viktor Frankl (1966, 1992), ao analisar a questão de “qual é a natureza do sentido”, concluiu que o máximo em termos de vivenciar o sentido da vida vem de pensar sobre nos­sos objetivos e nossos propósitos. Mais do que isso, especulamos que a satisfação maior vem de contemplar nossos propósi­tos em tempos nos quais estamos sofren­do. Os pesquisadores da psicologia positi­va relataram que esse sentido na vida está relacionado à esperança muito elevada (Feldman e Snyder, 2005). Para o leitor interessado em instrumentos de autoapoio relacionados ao sentido na vida, reco­mendamos o Teste do propósito da vida (Purpose in life test, Crumbaugh e Maholick, 1964; Crumbaugh e Maholick, 1981), o índice de Interesse na Vida (Life Regard Index, Battista e Almond, 1973) e a Escala de sensação de coerência (Sense of cohe­rence scale, Antonovsky e Sagy, 1986).

Às vezes, ocorrem potencializações psicológicas secundárias em contextos em que as pessoas conseguem competir umas com as outras. Essas “competições normais” (vide Snyder e Fromkin, 1980) estão rela­cionadas ao envolvimento em disputas competitivas. Há regras para essas dispu­tas, e com o tempo uma ou mais pessoas surgem como vencedores. O elevado nível de prazer que esses vencedores sentem é descrito muitas vezes como “pura alegria”.

Ocasionalmente, os níveis máximos de prazer são resultado de maior envolvi­mento do que qualquer pessoa pode atin­gir sozinha (Snyder e Feldman, 2000). Tra­balhando juntas, as pessoas conseguem lutar por conquistas que seriam impensá­veis para qualquer indivíduo (vide Lemer, 1996). Depois, como parte dessa unidade coletiva, elas podem experimentar uma sensação de sentido e emoções que fazem parte dessa escala mais grandiosa. A histó­ria está cheia desses casos de triunfo cole­tivo diante da adversidade. Da mesma for­ma, a literatura costuma detalhar o inten­so êxtase vivenciado por pessoas que tra­balharam juntas para superar obstáculos difíceis e desafiadores para atingir seus objetivos coletivos. Alguns psicólogos já deram início a experiências com enfrentamento de ambientes selvagens, nas quais um pequeno grupo de pessoas aprende o júbilo supremo de cooperar como grupo para conseguir realizar diversas tarefas em ambientes difíceis e naturais (mergulho, canoagem, rafting, escaladas, etc.).

Ajudar os outros também faz com que as pessoas se sintam muito bem consigo mesmas. Outra experiência transcendente é ver outra pessoa fazendo algo que seja tão es­pecial que inspire admiração ou eleve. Nes­sas circunstâncias, é como se tivéssemos tido a dádiva de testemunhar o que de melhor há nas pessoas, e assistir a isso pro­duz um estado de profunda admiração (vide Haidt, 2000, 2002). Considere um exemplo real dessa admiração que (C.R.S.) tive o privilégio de testemunhar. O que aconteceu foi o seguinte: eu tinha tido um dia muito ruim. Não apenas as coisas ti­nham ido mal no trabalho (tinham-me dito que minha solicitação de bolsa havia sido negada), como também eu estava me sen­tindo mal fisicamente. Fui almoçar com meus colegas na associação dos estudan­tes apenas para descobrir que eles, tam­bém, não estavam em um bom momento. De repente, um jovem que vestia um abri­go da Universidade do Kansas correu até uma mesa do outro lado do corredor e ad­ministrou a manobra de Heimlich em um homem mais velho que estava se engas­gando. A cantina imediatamente ficou em [331] silêncio enquanto as pessoas assistiam a esse ato heroico que pode ter salvado a vida do homem. Quando a comida foi retirada da garganta dele, rompeu-se o silêncio à medida que as pessoas aplaudiam o ato do jovem. Com uma aparência um pouco constrangida, ele sorriu e foi saindo. Senti uma tremenda elevação que durou o resto do dia (e os vários dias que se seguiram). Foi um dos eventos mais comoventes em [332] que jamais estive envolvido, e meu único papel foi o de testemunhar essa ação im­pressionante e altruísta. Sem sombra de dúvida, observar um ato como esse, ver­dadeiramente excepcional, pode gerar um tipo de potencialização secundária.

Finalmente, por meio das artes, como a música, a dança, o teatro e a pintura, são proporcionados grandes prazeres às mas­sas. Assistir a apresentações artísticas im­portantes pode elevar públicos aos mais altos níveis de satisfação e prazer (Snyder e Feldman, 2000). Podemos estimular adul­tos de mais idade a resgatar algumas das alegrias e prazeres que vêm com a explo­ração e com as conquistas de novas habilidades quando somos mais jovens. 

Potencialização secundária: saúde física

A potencialização secundária da saú­de física diz respeito aos níveis de pico da saúde física, níveis esses que estão além daqueles das pessoas em boa condição. As pessoas que buscam potencialização secun­dária lutam por níveis de condicionamen­to físico que ultrapassam em muito os que geralmente são atingidos por pessoas que simplesmente realizam exercícios. Não per­ca de vista, contudo, que essas pessoas não precisam ser atletas de nível olímpico que competem contra outros atletas de elite com o objetivo de chegar ao máximo de­ sempenho em um esporte. Em lugar disso, os atletas que buscam os níveis mais ele­vados de competição podem ver a forma física como meio de aumentar as probabi­lidades de vencer. Por outro lado, as pes­soas que tipificam a potencialização secun­dária da saúde física são motivadas para atingir os níveis mais altos de proeza física por si só. Esse último nível superior de for­ma física reflete aquilo que Dienstbier (1989) definiu como robustez (toughness').

Advertências com relação à potencialização secundária

Por mais estranho que possa soar, as pessoas podem se tornar quase viciadas nas experiências de pico que refletem a poten­cialização secundária. Há uma força de equilíbrio natural, contudo, no fato de que as atividades mundanas da vida necessi­tam que as pessoas prestem atenção a elas, o que as deixa com pouco tempo para ir em busca de potencialização primária e secundária.

Também temos uma preocupação sé­ria com o desenvolvimento potencial de ins­trutores pessoais para ajudar as pessoas a atingir experiências de pico em termos de potencialização secundária. Nossa preo­cupação é que apenas os ricos tenham con­dições de pagar esses instrutores, o que se­ria antiético em relação ao espírito de igual­dade que acreditamos que deva guiar o cam­po da psicologia positiva. A proliferação de instrutores pessoais de psicologia positiva deve acontecer de tal forma que as pessoas de todos os grupos étnicos e socioeconômicos possam ter acesso a eles. Como já dis­ semos em outros momentos, a psicologia positiva deve ser para muitos, e não para uns poucos (Snyder e Feldman, 2000).

O equilíbrio entre sistemas de prevenção e potencialiação

Neste capítulo, descrevemos separa­damente as intercessões de prevenção e potencialização. As prevenções primárias e secundárias implicam esforços para ga­rantir que os resultados negativos não aconteçam, ao passo que as potencializações primárias e secundárias refletem iniciativas para garantir que os resultados positivos aconteçam. Libertas de seus pro­blemas por meio de prevenções primárias e secundárias, as pessoas podem dar aten­ção a potencializações primárias e secun­dárias com vistas a atingir experiências e [333] satisfação na vida em níveis ótimos ou até mesmo de pico (Snyder, Thompson e Heinze, 2003). Juntas, prevenções e potencializações formam uma díade podero­sa para o enfrentamento e a excelência.

Note-se que a prevenção e a potencialização têm um paralelo com as duas maio­res motivações da psicologia. A prevenção reflete processos voltados a evitar resulta­dos prejudiciais, enquanto a potencialização reflete os processos que tratam de atin­gir resultados benéficos. A justaposição dos sistemas de evitação e aproximação tem uma longa tradição na psicologia, incluin­do as primeiras idéias sobre defesas, na teoria psicanalítica de Freud (1915/1957), a pesquisa comportamental (Miller, 1944), a pesquisa fenomenológica (Lewin, 1951) sobre o tema do conflito humano e, mais recentemente, a psicologia da saúde (Carver e Scheier, 1993, 1994).

Embora o sistema de evitação tenha sido retratado como contraproducente (para uma revisão, vide Snyder e Pulvers, 2001), essas primeiras visões ignoraram a possibilidade de que, por meio do pensa­mento de evitação, as pessoas estejam pen­sando e se comportando de maneira pró-ativa para evitar um resultado ruim mais tarde. Essa última definição está no centro das abordagens de prevenção primária e secundária, as quais têm benefícios eviden­tes. Em lugar de sugerir que a evitação é sempre “ruim”, fechamos este capítulo su­gerindo que os processos de evitação e aproximação (ou, como são chamados às vezes, processos aversivos e apetentes) fun­cionam, ambos, para ajudar a pessoa a enfrentar. Dessa forma, as intercessões de potencialização proporcionam desafios que as pessoas devem equilibrar em suas vidas cotidianas. [334]

Psicologia - Psicologia positiva
Personalidade - Forças de caráter, Forças de assinatura
12/3/2020 12:19:34 PM | Por Ryan Niemiec
Forças de assinatura, pesquisa e prática

Na publicação Character strengths and virtues (Peterson & Seligman, 2004), que articulou o critério, o desenvolvimento e o enquadramento para a classificação VIA, houve mais de 2 mil referências acadêmicas e 800 páginas de discussão das 24 forças de caráter, porém não mais que duas frases abor­daram o tema das “forças de assinatura”. Entretanto, aquelas poucas palavras foram o suficiente, pois inúmeros estudos sobre forças de assinatura surgiram desde 2004, articulando os benefícios e o valor das forças de assinatura. Os estudos têm examinado a correlação, a causalidade, os mediadores, os mo­deradores, as populações, a avaliação e as intervenções na tentativa de com­preender esse robusto tema. Este capítulo revisa os achados de pesquisas e oferece estratégias práticas para trabalhar com as forças de caráter.

Por que as forças de caráter são importantes?

A importância das forças de assinatura pode ser rapidamente defendida, não apenas pela ciência que surgiu durante as últimas duas décadas, mas também pela perspectiva do problema do desengajamento crônico em muitas organizações, relacionamentos e indivíduos. Eis um resumo de ambos.

  • Desengajamento de indivíduos - falta de florescimento. As pesquisas mos­tram que menos de 25% da população dos EUA está florescendo (Keyes, 2003), e resultados semelhantes são encontrados na Nova Zelândia (Hone, Jarden, Duncan, & Schofield, 2015). Isso significa que as pessoas não estão funcionando com um alto nível de bem-estar, social e psicologicamente. [65]
    • Apoio para as forças Um estudo mostrou que as pessoas que as pessoas que utilizam muito suas forças são 18 vezes mais propensas a florescer do que as quo não as utilizam (Hone et al., 2015). Cada um dos elementos essenciais do florescimento - emoções positivas, engajamento, significado, relacionamentos positivos e realização (Seligman, 2011) - está significativamente associado às forças de caráter.
  • Desengajamento de indivíduos - desconhecimento geral das forças. As pesquisas demonstram que dois terços das pessoas desconhecem suas forças (Linley, 2008). Dessa forma, se as pessoas não sabem quem são e do que são capazes, como se pode esperar que tenham um bom desempenho no trabalho e na vida?
    • Apoio para as forças. Uma amostra representativa de trabalhadores na Nova Zelândia revelou que aqueles que conheciam bem suas forças eram nove vezes mais propensos a florescer do que aqueles que as desconhe ciam (Hone et al., 2015). As forças de caráter têm sido associadas ao engajamento em vários estudos (por exemplo, Peterson et al., 2007).
  • Desengajamento de casais. Os relacionamentos estão sofrendo com altas taxas de divórcio para novos casamentos.
    • Apoio para as forças. Pesquisas crescentes apontam não apenas para o valor da apreciação, mas também em particular para a apreciação das forças. Em estudos com casais, aqueles que relatam que seu parceiro reconhece e aprecia suas forças de assinatura têm maior satisfação no relacionamento, são mais comprometidos com o relacionamento, e re­latam que suas necessidades básicas estão sendo satisfeitas (Kashdan et al., 2017). Diversos estudos fazem conexões entre as forças de cará­ter e a saúde do relacionamento (por exemplo, Lavy, Littman-Ovadia, & Bareli, 2014a, 2014b).
  • Desengajamento de funcionários. As taxas de desengajamento dos trabalha­dores estão acima de 79%, segundo a Organização Gallup, e há um desalinhamento entre as forças de caráter exigidas dos indivíduos e as forças de caráter que são naturais deles (Money, Hillenbrand, & Camara, 2008).
    • Apoio para asforças. A utilização das forças de assinatura está associa­da a engajamento no trabalho, produtividade, satisfação na vida e tra­balho como um chamado (por exemplo, Harzer & Ruch, 2015, 2016; Lavy & Littman-Ovadia, 2016; Littman-Ovadia & Davidovitch, 2010). [66] Uma análise de três anos do engajamento dos funcionários mostrou que as forças de assinatura eram um dos motivadores mais cruciais (Crabb, 2011). A Organização Gallup constatou que os funcionários que têm a oportunidade de utilizar suas forças são seis vezes mais propensos a se engajar em seu trabalho (Sorenson, 2014).

O desengajamento parece ser extremamente alto em muitos domínios de nossa vida. Isso exige uma nova ação. As forças de assinatura estão surgindo em domínios não apenas como uma fonte importante de engajamento, mas também como um caminho central. 

Conceitos centrais

As forças de assinatura são um dos conceitos mais pesquisados e praticados na psicologia positiva. Trabalhar com as forças de assinatura tem muitos dos diferenciais do sucesso:

  • É muito fácil de fazer: os praticantes não precisam mudar seu estilo ou abordagem.
  • Os clientes encontram benefícios imediatos.
  • Há suporte científico.
  • É diferente e único para os clientes que estão acostumados a focar no que está errado com eles.

As forças de assinatura têm sido bastante discutidas em fóruns acadêmicos e de consumidores. A publicação original sobre a classificação VIA, Character Strengths and Virtues, discute as forças de assinatura como traços pessoais po­sitivos que um indivíduo possui, celebra e exercita frequentemente (Peterson [67] & Sclignwn, 2004). Desta forma, as forças de assinatura estão associadas à Identidade da pessoa e ao conceito de quem são, e essas não podem ser con­sideradas à parte do contexto.

Seligman (2002) propôs diversas formas de pensar sobre as forças de as­sinatura, sugerindo que uma força de assinatura satisfaria a maioria, se não a todos esses critérios:

  • Um senso de apropriação e autenticidade (“Este sou eu de verdade”).
  • Um sentimento de entusiasmo ao demonstrar a força.
  • Uma rápida curva de aprendizagem quando a força é primeiramente em­pregada.
  • Um senso de anseio por encontrar novas maneiras de utilizar a força.
  • Um sentimento de inevitabilidade para utilizar a força (“Tente me parar”).
  • Revigoramento, em vez de exaustão após empregar a força.
  • Criação e busca de projetos pessoais que girem em torno da força.
  • Alegria, entusiasmo e até êxtase ao empregar a força.

A convenção entre os pesquisadores da psicologia positiva tem sido focar nas cinco forças do topo do perfil do indivíduo como suas forças de assinatura. Pesquisas iniciais sugerem que os indivíduos têm entre três e sete forças de assinatura (Peterson & Seligman, 2004). O Instituto VIA de Caráter investi­gou o construto com profundidade e conduziu quatro estudos, examinando o conceito inicial conforme discutido nos dois textos anteriores, em uma ten­tativa de compreender a quantidade de forças de assinatura nos indivíduos (Mayerson, 2013). Foram empregadas diferentes estratégias, juntamente com níveis variáveis de rigor no critério utilizado para determinar uma força de assinatura. As forças de assinatura mostraram ter pontuações VIA significati­vamente mais altas que as demais forças, desse modo, destacando as forças de assinatura como uma categoria distinta de forças. Alguns anos mais tarde, Ro­bert McGrath conduziu três estudos para desenvolver e validar o Questionário de Forças de Assinatura (Signature Strenghts Survey, SSS). O primeiro estudo examinou as diferenças da média entre as forças nos dados do Questionário VIA de quase meio milhão de pessoas, e o segundo estudo envolveu admi­nistrar o SSS preliminar e, depois, entrevistar os participantes sobre seus pa­drões de resposta. Quando foi pedido que fornecessem uma justificativa para [68] suas escolhas de forças de assinatura, a resposta mais comum foi que a força é "parte de quem sou". Esses estudos informaram uma iteração final do SSS, que foi administrado (terceiro estudo) em 41.31 pessoas e levou à identifcação de 5,5 forças de assinatura, em média. Esses resultados apoiam o construto das forças de assinatura que as pessoas acham que têm é consistente com o que os pesquisadores de psicologia positiva propuseram anteriormente, embora os critérios sejam mais rigorosos do que originalmente hipotetizados. O critério para determinar uma força de assinatura que parece ser a mais importante, o qual tem sido corroborado por outras pesquisas, é se a força é ou não vista como central ou essencial para quem a pessoa é.

Outra estratégia para pensar as forças de assinatura. que esclarece sua importância central em nossa vida, é engajar-se em um exercício de subtração mental. Considere como seria a vida se você não tivesse uma de suas forças de assinatura. Você pode imaginar como seria sua vida se não pudesse expressar sua força da criatividade? E se a força da curiosidade fosse tirada de você? Ao conduzir esse exercício experimental em milhares de pessoas, descobri que muitos respondem a ele com uma reação de “ah-ha”, e não é incomum ouvir suspiros de choque e horror com o pensamento de eles não terem suas forças centrais. Aqui estão algumas respostas típícas:

  • “Seria como se estivesse sufocado sem minha criatividade. Como se esti­vesse ofegante tentando respirar*.
  • “Prudência e cautela são quem eu sou. Isso é o que faço. Como você tiraria isso de mim?*
  • "Não ter minha curiosidade na vida seria como estar minimamente sobrevivendo".
  • “Sem minha inteligência social, não sei como iria interagir com as pessoas". [68]

As forças são apresentadas e exibidas por toda parte ao nosso redor, especialmente na mídia. Meu colega, Danny Wedding, e eu escrevemos sobre mais de 1.500 exemplos de filmes que exibem cada uma das forças de caráter da classificação VIA (Niemiec & Wedding, 2014). Nos filmes, aprendemos sobre as forças de assinatura de cada personagem, e com frequência vemos nossas próprias forças de assinatura refletidas de volta para nós. Podemos também voltar-nos para livros, shows de televisão, websites, blogs e redes sociais, e observar as forças de assinatura dos indivíduos sendo demonstradas ou fazendo a criação.

Ao ler um livro, pergunte-se: Quais são as forças de assinatura do narrador e dos personagens coadjuvantes? Quais são as forças de assinatura das celebridades na televisão? Dos líderes no governo ou na empresa? Para onde quer que olhemos, podemos identificar forças e nomear as forças de assinatura dos indivíduos ou personagens. Esse tipo de abordagem tem recebido crescente atenção nas escolas (por exemplo, White & Waters, 2014), Considere o ganhador do Oscar de Melhor Filme, O discurso do rei (2010), Este filme apresenta a metáfora perfeita para ilustrar o que as forças de assinatura realmente significam - ser autêntico e expressar nosso verdadeiro eu. No filme o rei George VI, da Grã-Bretanha (Colin Firth), sofre de um severo transtorno de gagueira, sendo incapaz de falar com clareza para ajudar a Informar e amenizar o pânico do povo na iminência da Segunda Guerra Mundial, o rei começa a trabalhar com um treinador de discursos (Geofrey Rush), que utiliza um alto grau de criatividade, curiosidade, bondade e perspectiva para ajuda-Io a encontrar sua voz. O “encontrar sua voz” é uma metáfora para a expressão das forças de assinatura. Lionel encoraja o rei a “ter fé em sua própria voz", e uma interação comovente, na qual o rei supera a gagueira e expressa-se claramente, acontece assim:

Rei: Escute-me!

Lionel: Escutar você? Com que direito?

Rei: Pelo direito divino se quer mesmo saber, eu sou seu rei.

Lionel: Não, você não é, você mesmo disse-me. Você não queria isso, Por que perderia meu tempo escutando?

Rei: Por que tenho o direito de ser ouvido. Eu tenho voz!... [pausa]  

Lionel: Sim, você tem... Você tem tanta perseverança, Bertie, você é o homem mais valente que conheço. [70]

 É nessa conversa que o rei encontra sua voz (seu eu autêntico, essencial); ela é clara, contundente e genuína. Lionel utiliza uma variedade de abordagens no papel de “treinador” - intervenção paradoxal, confrontação, resistência, conselheiro e apoiador - que ajuda o rei a reconhecer que seu verdadeiro eu é importante e que ele pode expressá-lo. No diálogo anterior, o telespectador pode observar a afiada percepção de Lionel para identificar e valorizar duas das forças de assinatura do rei - bravura e perseverança.
Podemos perceber as forças de assinatura dos indivíduos em praticamente qualquer situação. Considere o seguinte obituário:
Infelizmente, a própria Mary sofreu muitas tragédias durante sua vida. tanto exterior como interiormente. Suas forças de caráter foram a determinação e a vontade de supe­rar a adversidade. Com frequência, sua compaixão por outros tinha mais importância que sua doença (Pocono Record, 2012).

Essas três frases no obituário informam que Mary era uma mulher com as forças de assinatura da perseverança e bondade - ela superou obstáculos internos e externos e continuou lutando, além disso, emanava um senso de cuidado pelos outros ao longo do caminho.

Pesquisas sobre forças de assinatura

Forças de assinatura de novas maneiras

Na atual pesquisa sobre intervenção mais citada na psicologia positiva, Seligman et al. (2005) conduziram um estudo duplo-cego, de atribuição randomizada, controlado por placebo - um estudo padrão-ouro em termos de boa pesquisa. O estudo consistiu na participação de 577 adultos distribuídos [71] aleatoriamente em um dos cinco grupos, ou no grupo de placebo. Aqui estão os grupos e a tarefa principal de intervenção:

  • Visita da gratidão. Escreva e entregue em mãos uma carta de gratidão para alguém que foi especial para você, mas a quem você não agradeceu adequadamente.
  • Três coisas boas. Escreva sobre três coisas que foram boas e explique a causa, todas as noites.
  • Você no melhor de si. Escreva a respeito de um momento que você estava expressando o melhor de si e reflita sobre as forças demonstradas na histó­ria; revise essa história e as forças uma vez por dia.
  • Utilizando as forças de assinatura de uma nova maneira. Responda ao Questionário VIA, revise as cinco forças do topo e utilize uma dessas for­ças de uma maneira nova e diferente a cada dia.
  • Identificando as forças. Responda ao Questionário VIA de Forças, revise suas forças do topo e utilize-as mais durante a semana.
  • Placebo. Escreva sobre uma memória antiga a cada noite.

Embora tenha havido benefícios iniciais para cada grupo de intervenção, os benefícios duradouros foram observados em dois grupos: o grupo das “três coisas boas” (também chamado “contando as bênçãos” ou “praticando a grati­dão”), e o grupo de “utilizando as forças de assinatura de uma nova maneira”. Esses dois grupos tiveram aumentos significativos de felicidade e diminuição da depressão com efeitos duradouros por mais de seis meses. Os efeitos não apenas são fantásticos, mas também é impressionante notar que as interven­ções foram realizadas on-line e sem a assessoria pessoal de um praticante oferecendo apoio e orientação. Se essas intervenções fossem pinturas, seriam consideradas “minimalistas”.

As intervenções duraram apenas uma semana; no entanto, Seligman et al. (2005) verificaram que aqueles que apresentaram os resultados mais eficazes decidiram continuar a intervenção por si mesmos por um período de tempo. Isso mostra como pode ser intrinsecamente gratificante trabalhar com as forças de as­sinatura, assim como é preciso tempo e persistência para se criar novos hábitos.

A intervenção de utilizar as forças de assinatura de novas maneiras, com­parada a grupos de controle e a outras intervenções, tem sido replicada ou [72] parcialmente replicada em diversos ambientes, populações e culturas. Os benefícios em longo prazo (seis meses) da utilização das forças de assinatura foram replicados em uma amostra europeia (Gander, Proyer, Ruch, & Wyss, 2013), e benefícios foram encontrados em outros países, como Canadá (Mongrain & Anselmo-Matthews, 2012), Austrália (MHcheft, Stanimtrovíc, Klein, & Vella-Brodrick, 2009), RU (Linley, Nielsen, Gtflett, & Bsfwas-Diener, 2010), e China (Duan & Bu, 2017; Duan, Ho, Tang, Lí, ScZhang, 2013). Outro estudo mostrou que as três intervenções e o placebo tiveram efeitos positivos (por exemplo, elevações significativas de felicidade), com a intervenção em forças de assinatura melhorando o máximo em uma margem substancial, e o grupo de placebo de forma compreensível melhorando o mínimo após seis meses. O estudo, no entanto, sofreu uma alta taxa de desistência, no qual menos de um quarto dos sujeitos que iniciaram o estudo o completou (Woodworth, O’Brien-Malone, Diamond, & Schüz, 2017).

Populações de jovens a adultos mais idosos têm focado nas forças de as­sinatura com sucesso. Por exemplo, jovens que trabalharam suas forças de assinatura juntamente com definição de metas de significado experimentaram um aumento no engajamento e na esperança (Madden et aL, 2011). Em uma população de adultos mais idosos (de 50 a 79 anos), o grupo designado para trabalhar com uma força de assinatura de uma nova maneira teve a interven­ção mais eficiente de forma geral, e isso levou tanto ao aumento da felicidade como à diminuição da depressão. Outras intervenções foram parcialmente
eficazes comparadas ao placebo; por exemplo, conduzir a visita de gratidão e lembrar-se de três coisas boas beneficiaram os níveis de felicidade, enquanto lembrar de três coisas engraçadas reduziram os níveis de depressão (Prover, Gander et al., 2014a).
Outro estudo controlado e randomizado designou indivíduos para (1) um grupo instruído a utilizar duas forças de assinatura, (2) um grupo instruído a utilizar uma força de assinatura e uma força de baixo, ou 3) um grupo de controle. Os resultados revelaram ganhos significativos em satisfação com a vida para ambos os grupos de tratamento (Rust, Diessner, & Reade, 2009). Os participantes dos dois grupos de tratamento escreveram sobre um evento ou ocorrência no passado em que utilizaram suas forças de caráter de maneira bem-sucedida. A cada semana, eles também escreveram sobre um plano ou situação para a semana seguinte, em que poderiam aplicar a força. De [73] maneira semelhante, em um estudo não randomizado, Rashid (2004) observou que os grupos de estudantes que trabalharam com as forças de assinatura ou com ouras forças experimentaram aumento significativo de bem-estar, comparado ao grupo de controle. Uma pesquisa com estudantes de direito mostrou que a utilização das forças do topo levou à diminuição da depressão e do estresse, bem como ao aumento da satisfação dos estudantes (Peterson & Peterson, 2008). Outro experimento randomizado mostrou que o grupo de intervenção que trabalhoucom as forças e outros exercícios de gratidão e bondade melhorou o equilíbrio do afeto positivo e negativo ao longo do tempo, comparado ao grupo de controle (Drozd, Mork, Nielsen, Reader, & Bjiorkli, 2014). Em um estudo longitudinal, a utilização das forças em geral (não as forças VIA de caráter) mostrou ser um importante preditor do bem-estar e levou a menos estresse e aumento do afeto positivo, vitalidade e autoestima aos três meses e aos seis meses de acompanhamento (Wood, Linley, Matlby, Kashdan, & Hurling, 2011).

As forças de assinatura em diversos contextos

As intervenções com torças de assinatura tem sido aplicadas de maneira bem sucedida em uma variedade de contextos psicológicos com efeitos positivos; por exemplo, em uma unidade de internação para pessoas com depressão e comportamentos suicidas (Huffman et al.2014), em uma unidade de neuropsicologia para pessoas com traumatismo cranioencefalico (Andrew Walker. & O'Neill. 2014), em uma unidade ambulatorial para adultos com psicose (Riches, Schrank. Rashid. & Slade. 2016), em uma Administração de Reabilitação de Veteranos em que os veteranos colocaram um aviso para não [75] se esquecerem de utilizar as forças (Kbau et al. 2011), e em um contexto de aconselhamento de carreira (Littman-Ovadia, Lazar-Butbul, & Benjamin, 2014). No último estudo, o aconselhamento de carreira baseado nas forças foi comparado ao aconselhamento de carreira convencional, e os dois grupos de clientes tiveram um aumento na utilização diaria das forças, mas apenas o primeiro teve melhora na autoeatima. Em trés meses de acompanhamcmo, o grupo de aconselhamento de carreira baseado nas lorças teve uma taxa mais alta de emprego (81%) do que o grupo de aconselhamento convencional da carreira (60%).

A psicoterapia positiva é uma abordagem de terapia que foca na construção de emoções positivas, forças e significado na vida dos clientes paia promovera felicidade. Experimentos preliminares constataram que essa abordagem é superior ao tratamento convencional para depressão (Rashld & Anjum, 2008; Seligman, Rashid. & Parks, 2006). Tayyah Rashid notou que bem mais de 50% da psicoterapia positiva gira em torno da utilização e da prática das forças de caráter (Rashid, comunicação pessoal, 2011). As sessões focam nas intervenções gerais de forças de caráter (por exemplo, duas sessões para identificar e cultivar as forças de assinatura; duas sessões sobre a “árvore de forças da família” e “presente do tempo" para promover significado), forças específicas (por exemplo, uma sessão sobre perdão; uma sessão sobre gratidão), e promoção de um tema central da psicologia positiva (por exemplo, amor para cultivar engajamento; esperança para cultivar prazer).

Resultados bem-sucedidos associados ao foco nas forças (não as forças de caráter) têm também sido mostrados nas pesquisas do Minhas (2010) e Cox (2006); o último autor mostrou que a abordagem baseada nas forças (quando também validada e praticada pelo terapeuta) levou à redução na pontuação de vários comportamentos sociais e emocionais problemáticos.

As intervenções com forças de caráter são com frequência integradas em programas mais abrangentes que focam na construção do bem estar, resiliência, realização e outras áreas dentro do campo da psicologia positiva. Com frequência, a abordagem adotada nesses programas envolve ajudar os participantes a identificar suas forças de assinatura e então entrar em ação de alguma maneira com essas forças. Esses programas têm incluído uma variedade de contextos, como o educacional, organizacional e o serviço militar. Embora os resultados dessas iniciativas de programas sejam muito encorajadores e, em [75]  alguns casos, revolucionários e altamente influentes, os pesquisadores geral­mente não separam as contribuições feitas pelas forças de assinatura e outros componentes das forças de caráter de outras intervenções da psicologia posi­tiva. Apesar de as forças de assinatura serem, com frequência, descritas como “centrais” em muitos desses programas, perguntas como as seguintes perma­necem: Qual o elemento mais crucial desses programas abrangentes? Quanto valor os componentes das forças de caráter trazem para esses programas?
O que se segue são domínios comuns em que as forças de caráter, espe­cialmente o trabalho com as forças de assinatura, estão sendo aplicadas. Re­sultados de pesquisas são apresentados aqui e mencionados por todo o livro.

Organização

O contexto organizacional/local de trabalho tem sido um domínio par­ticularmente robusto de estudo para a ciência do caráter (veja Mayerson, 2015). Claudia Harzer e Willibald Ruch têm conduzido vários estudos no ambiente de trabalho. Eles constataram que os funcionários que utilizaram quatro ou mais de suas forças de assinatura no trabalho tiveram mais expe­riências positivas no trabalho e o trabalho como um chamado, do que os que utilizaram menos de quatro forças (Harzer & Ruch, 2012), e que as forças de assinatura estão conectadas às experiências positivas de trabalho, indepen­dentemente de quais sejam as forças mais altas (Harzer & Ruch, 2013). Em outros estudos, eles observaram que as forças de caráter estavam conectadas ao desempenho no trabalho (Harzer & Ruch, 2014), e ao enfrentamento do estresse (Harzer & Ruch, 2015). Finalmente, em um estudo de intervenção, eles descobriram que o alinhamento das forças de caráter dos funcionários com suas tarefas levou ao aumento da visão do trabalho como um chamado (Harzer & Ruch, 2016).

Um estudo sobre apoio supervisionado mostrou que os funcionários que receberam apoio do supervisor (mas não o apoio de colegas) aumentaram a utilização de suas forças no dia seguinte (Lavy, Littman-Ovadia, & Boiman-Meshita, 2016). Esses mesmos pesquisadores publicaram outro estudo sobre o ambiente de trabalho mostrando que a utilização de todos os tipos de forças (forças de assinatura, forças de felicidade, forças menores) estava associada com resultados positivos. Por exemplo, as forças de assinatura foram o maior contribuidor para o desempenho no trabalho, comportamentos de cidadania organizacional, e menos comportamentos contraprodutivos no trabalho; e as forças de felicidade foram o maior contribuidor para o significado, engaja­mento e satisfação no trabalho (Littman-Ovadia, Lavy, & Boiman-Meshita, 2016). Um estudo qualitativo examinou a utilização das forças de caráter por mulheres no local de trabalho e constatou que, em todos os casos, as forças levaram a um círculo virtuoso no qual a utilização das forças as ajudou a superar barreiras que haviam impedido o emprego das forças (Elston & Boniwell, 2011). Todos os sujeitos obtiveram benefícios de valor único utilizando as forças de caráter no trabalho. Outro estudo com funcionários mostrou que empregar as forças de assinatura de novas maneiras combinado a uma reunião estruturada de dez minutos foi benéfico para aumentar a utilização das forças e o número de metas traçadas, comparado ao grupo que utilizou apenas for­ças de assinatura de novas maneiras (Butina, 2016).

Recomenda-se que as organizações encontrem formas de ajudar seus co­laboradores a utilizar suas forças mais frequentemente no trabalho, pois a utilização das forças, em geral (não respondendo ao Questionário VIA), tem sido associada a níveis de autoeficácia e comportamento proativo dos colabo­radores (van Woerkom, Oerlemans, & Bakker, 2016), a afeto positivo e capital psicológico (Meyers & van Woerkom, 2016), e a absentismo reduzido (van Woerkom, Bakker, & Nishii, 2016). O clima de uma organização pode tam­bém apoiar os colaboradores a empregar suas forças. Em um estudo com 442 colaboradores de 39 departamentos em oito organizações, o clima psicológico baseado nas forças estava associado ao afeto positivo e ao desempenho no trabalho (van Woerkom & Meyers, 2014). A Organização Gallup tem focado suas pesquisas nas forças no local de trabalho e constatou que os dois previsores mais importantes da retenção dos colaboradores e da satisfação são; (1) relatar a utilização das forças do topo no trabalho e (2) relatar que um supervi­sor próximo reconheça as forças do topo do funcionário. Infelizmente, o Gal­lup observou que apenas 20% dos colaboradores acham que seus supervisores conhecem suas forças e um terço dos colaboradores diz ter a oportunidade de fazer o que faz melhor todos os dias. Quando a liderança de uma organização não foca nas forças do indivíduo, as chances de o colaborador estar engajado são de 9%; no entanto, quando a liderança foca nas forças do colaborador, essas chances aumentam para 73% (para mais detalhes, ver Asplund et al., 2007; Clifton & Harter, 2003; Hodges & Clifton, 2004). [77]  

Educação

Os achados mostram que as forças de caráter não foram apenas uma importante fonte de bem-estar entre estudantes (Gillham et al., 2011), mas tambem têm sido o grande foco dos programas de educação positiva ao redor do mundo. Em um artigo seminal, que argumenta sobre a integração das forças de caráter na educação, Linkins, Niemiec, Gillham e Mayerson (2015) desta­cam por que as abordagens educacionais tradicionais sobre caráter nos EUA e em outros países deveriam mudar todas as abordagens monilíticas e unifor­mizadas (a autoridade escolar escolhe algumas forças para todos os estudantes construírem), em vez de abordagens individualizadas que funcionam com as forças únicas de assinatura dos estudantes.

Embora as forças de caráter desempenhem um papel importante para criar bem-estar positivo (Oppenheimer, Fialkov, Ecker, & Portnoy, 2014) e resulta­dos positivos na sala de aulas (Weber e Ruch, 2012b; Weber et al., 2016), elas têm sido incorporadas a todos na escola, envolvendo colaboradores, professo­res, estudantes e líderes dos programas. Alguns programas empregam as forças de caráter como o único foco (ver Fox Eades, 2008; Proctor & Fox Eades, 2011), assim como o foco principal (ver Yeager, Fisher, & Shearon, 2011). A Academia das Forças (Strentghs Gym), criada por Carmel Proctor e Jennifer Fox Eades, é um exemplo de programa de intervenção em psicologia positiva baseado nas forças no qual crianças e adolescentes participam de várias atividades envolvendo forças de caráter aplicadas diretamente aos estudantes e Integradas na grade curricular da escola. Um estudo avaliou o impacto da Aca­demia das Forças em adolescentes e descobriu que os que participaram dos exercícios com forças tiveram satisfação na vida significativamente mais alta do que os adolescentes que não participaram (Proctor et al., 2011). Em um contexto educacional chinês, uma intervenção de treinamento com as forças (que envolvia perceber quando, onde e como as forças do topo são utilizadas, e escrever sobre isso), foi eficaz para promover a satisfação na vida em curto e longo prazo. Os pesquisadores excluíram o efeito placedo, informando a alguns participantes o propósito do estudo e não a outros, e saber/não saber o propósito não teve efeito em longo prazo na satisfação com a vida (Duan et al, 2013).

Os programas de educação positiva demonstraram aumentar as notas aca­dêmicas, as habilidades sociais, a apreciação e o engajamento na escola, assim [78] como melhorar as forças de caráter da curiosidade, do amor ao aprendizado e da criatividade (Seligman, Ernst, Gillham, Reivich, & Linkins. 2009). Resultados preliminares de acompanhamento de três anos de um programa de educação positiva (Gillham, 2011) mostraram que a educação positiva teve um impacto no engajamento e realização, mas não no bem-estar subjetivo. Programas extensivos de educação positiva têm sido implementados em diver­sas escolas, como a Escola Primaria Geelong e a Faculdade St. Peter, ambas de muito prestigio na Austrália, e isso têm resultado em muitas descrições de treinamentos, utilização criativa das forças de caráter e outros métodos de im­plementação da psicologia positiva (ver Norrish. 2015; White & Murray, 2015, respectivamente), O trabalho com as forças de caráter é geralmente visto como o fundamento desse programa, em geral ensinado nas primeiras sessões, e envolve identificar as forças de caráter, escrever narrativas sobre momentos do melhor eu, entrevistar membros da família sobre forças, aprender como utilizar as forças para superar desafios, desenvolver as forças mais baixas e identificar professores e líderes no campus, os quais os alunos acreditam ser modelos de uma força específica. O trabalho com as forças de caráter está integrado mais profundamente na grade e atividades escolares, e inclui identificar forças na literatura clássica (por exemplo, A morte de um caxeiro viajante, Macbeth e Me­tamorfose) e infundir as forças nos esportes. White e Waters (2014) descrevem a abordagem na Faculdade St. Peter e detalham exemplos de cinco iniciativas em que as forças de caráter foram integradas nas áreas de esporte, liderança dos estudantes, aconselhamento e grade curricular de inglês.

Trabalhos muito estimulantes estão surgindo também no domínio das escolas públicas. O Instituto VIA fez parceria com a Academia Mayerson, que começou a integrar o programa das forças de caráter em mais de 40 escolas públicas (Bates-Krakoff, McGrath, Graves, & Ochs, 2016), em Cincin­nati, região de Ohio, envolvendo treinamentos de estudantes e professores, aprendizagem com videogames on-line por meio do Happify e coaching dos professores. A avaliação desse programa, chamado Comunidades de Aprendi­zagem do Florescimento (Thriving Learning Communities), mostra resultados preliminares promissores, como aumento da aprendizagem de competências socioemocionais), autoconsciência das forças, capacidade de apreciar a escola, taxas mais baixas de absentismo e disciplina, e ponto médio de classificação mais alto (grade point average, GPA, uma escala de até 4) (Darwish, comuni­cação pessoal, 26 de setembro, 2016). [79]

Serviço militar

As forças de caráter têm sido avaliadas e/ou utilizadas nas várias forças armadas em todo o mundo, como Noruega. Suécia, Argentina, Austrália e índia, entre outras (ver Banth & Singh. 2011; Consentino & Castro, 2012; Gayton & kehoe, 2015; Matthews, Bid, Kelly. Bailey, & Peterson, 2006). O Exército dos EUA é um exemplo de organização que incorporou as forças de caráter como componente central de seu treinamento de psicologia positiva e resiliência, denominado Comprehensive Soldier Fitness Program (Cornum, Matthews, & Seligman, 2011; Reivich, Seligman, & McBride, 2011). As forças de caráter estão entre as principais áreas avaliadas pelo Global Assessment Tool implemen­tado nesse programa (Peterson, Park, & Castro, 2011; Vie, Scheier, Lester, &
Seligman. 2016). Um dos módulos centrais do programa de treinamento inclui a identificação das forças de assinatura, a prática de procurar as forças nos outros e a prática de utilizar as forças individuais e de equipe para superar um desafio ou alcançar uma meta. Após responder ao Questionário VIA, os solda­ dos exploram as seguintes perguntas (Reivich et al., 2011):

  • O que você aprendeu sobre si mesmo?
  • Que forças você desenvolveu durante seu serviço no exército?
  • Como suas forças contribuem para você realizar uma missão e alcançar suas metas?
  • Como você está utilizando suas forças para construir relacionamentos fortes?
  • Quais são os lados obscuros de suas forças e como você pode minimizá-los?

Os soldados engajam-se, então, em exercícios individuais e de equipe envol­vendo revisão das experiências individuais e de equipe sobre superar barreiras e alcançar sucessos, revisar estudo de casos, escrever histórias sobre “força nos desafios” e realizar uma missão em equipe que exige a utilização das forças de caráter de equipe.

Os pesquisadores do serviço militar também têm escrito sobre os benefí­cios de identificar as forças de caráter, como a coragem (Hannah, Sweeney, & Lester, 2007), e sobre a importância do caráter com “C grande” na liderança (Hannah & Jennings, 2013). [80]

Outros domínios e populações

As forças de caráter são importantes em uma infinidade de contextos e em uma variedade de populações. As forças de caráter/forças de assinatura estão sendo estudadas e aplicadas para avaliar e/ou tratar jovens e adultos com va­rias deficiências. Alguns desses incluem jovens com deficiências intelectuais/de desenvolvimento (Biggs & Carter, 2015; Carter et aL, 2015; Shogren, Wehme­yer, Lang, & Níemiec, 2017; Shogren, Wehmeyer, & Niemiec. 2017), interesses vocacionais em adolescentes (Proyer, Stdler, Weber, Sc Ruch, 2012), pais de crianças com deficiências (Fung et al., 2011; Woodard. 2009), adultos com deficiências intelectuais/desenvolvimento (Samson & Antonelli, 2013; Tomasulo, 2014), adultos com deficiências físicas (Chan, Chan, Ditchman, Phillips, & Chou, 2013), pessoas com dislexia (Kannangara, 2015; Kannangara, Griffiths, Carson, & Munasinghe, 2015), e adultos com autismo sem deficiência intelectual (Kirchner, Ruch, & Dziobek, 2016). As aplicações das pesquisas e práticas das pesquisas em forças de caráter têm sido delineadas com adapta­ções sugeridas para pessoas com deficiências intelectuais/de desenvolvimento (Niemiec, Shogren, & Wehmeyer, 2017).

As forças de caráter foram aplicadas ao se examinar as várias dimensões da saúde física, como alimentação saudável, condicionamento físico, higiene pessoal, prevenção do uso de substância e estilo de vida ativo (Proyer, Gander, Wellenzohn, & Ruch, 2013). Em experimentos randomizados e controlados que envolveram milhares de meninas da índia vivendo na pobreza, as meni­nas que receberam uma grade curricular que incorporou as forças de caráter (identificação e utilização das forças de assinatura e exemplos concretos de ou­tras forças) exibiram saúde física significativamente melhor e benefícios de saúde psicossocial, em comparação com aquelas que não receberam nenhuma grade curricular (controles) (Leventhal et aL, 2015,2016).

Uma análise quali­tativa também revelou e explicou como as meninas perceberam que construir as forças de caráter as ajudou a melhorar seu engajamento escolar e evitar matrimônio infantil, violência baseada no gênero, assédio e abandono esco­lar (DeMaria, Andrew, & Leventhal, 2016). Um experimento randomizado e controlado, com crianças gravemente doentes, mostrou que a intervenção de “realizar um desejo” reduziu a náusea e aumentou a satisfação na vida, as emoções positivas e as forças, comparado ao grupo de controle (Chaves, Vazquez, & Hervas, 2016). Em outro estudo, esses pesquisadores constataram [81] que aumentos nas forças de caráter gratidão e amor) e descobertas de benfícios previram satisfação na vida ao longo do tempo em crianças portadoras de doença com risco de morte (Chaves, Hervas, Garcia, & Vasquez, 2016), Com relação a outras populações únicas analisadas, muitos estudos têm examinado as dinâmicas das forças de assinatura e/ou forças de caráter, en­tre as quais: docência (McGovern & Miller, 2008), professores (Chan, 2009; Gradisek, 2012), sobreviventes de abuso (Moore, 2011), moradores de rua (Tweed, Blswas-Diener, & Lehman, 2012), dependências (Krentzman, 2013; Logan, Kilmer, & Marlatt, 2010), tratamento clínico com diferentes populaçóes (Smith & Barros-Gomes, 2015), crianças muito pequenas pela descrição dos pais (Park & Peterson, 2006c), músicos (Güsewell & Ruch, 2015), funcionários de centrais de atendimentos (Moradi, Nima, Ricciardi, Archer, & Garcia, 2014), casais (Goddard, Olson, Galovan, Schramm, & Marshall, 2016; Guo, Wang, & Liu, 2015), experiências de lazer (Coghlan & Filo, 2016), liderança de serviço (Shek & Yu, 2015), adultos que praticam sua religião (Berthold & Ruch, 2014), resultados de torneios esportivos (Proyer, Gander, Wellenzohn, & Ruch, 2014b), pais envolvidos na adaptação escolar dos filhos (Shoshani & ílanit Aviv, 2012), as forças de caráter desejadas em parceiros ro­mânticos adolescentes (Weber & Ruch, 2012a), e estudantes de direito (Kern & Bowling, 2015), para mencionar apenas algumas. 

Amplificar uma força do topo ou remediar uma fraqueza?

O campo da psicologia passou mais de um século focando em remediar deficiências, examinando os problemas e ajudando outros a aliviar o sofrimento. Essa abordagem de “consertar” o que está errado tem permeado muitas [82] disciplinas, incluindo organizações, educação e saúde. Portanto, pedir a um cliente, estudante ou colaborador que passe um tempo refletindo sobre suas forças é uma mudança substancial. É uma pergunta que faz o indiví­duo pensar duas vezes: Você tem certeza? Você não quer que eu fale sobre meu estressor mais recente ou dificuldade? Apesar de décadas de sucessos em pesquisas que apoiam as abordagens baseadas nas deficiências, utilizadas na terapia cognitivo-comportamental (Beck, Rush, Shaw, & Emery, 1979), Cheavens et al. (2012) decidiram colocar a noção de “fraquezas versus for­ças” à prova. Eles designaram, de forma randomizada, adultos com depressão grave (transtorno depressivo maior), para terapeutas treinados que focaram em suas “forças únicas de TCC” ou para terapeutas treinados que focaram em suas “fraquezas únicas de TCC” (as duas primeiras forças do topo, ou as duas últimas forças, respectivamente). As áreas das forças ou fraquezas foram avaliadas em quatro aspectos - habilidades comportamentais, habilidades cog­nitivas, habilidades interpessoais e habilidades de atenção plena - todas im­portantes para a gestão dos sintomas da depressão. Os resultados mostraram que o grupo das forças teve mudanças mais rápidas nos sintomas de depressão e manteve melhora por 16 semanas de tratamento. Comparado ao grupo das fraquezas, o grupo das forças teve melhoras maiores e mais duradouras. Esse estudo, embora precise ser replicado, desafia a sabedoria convencional sobre remediar problemas e deficiências. Ele nos desafia a mudar nossa abordagem, aprimorar e focar no que há de melhor no cliente.

Essa abordagem de focar nas forças do cliente é citada nos estudos de Cheavens como “capitalização”, em outras palavras, capitalizar o que já está funcionando. Um estudo de pesquisadores holandeses também mos­trou os benefícios do modelo da capitalização, em que os participantes que focaram no desenvolvimento das forças demonstraram aumentos mais fortes no crescimento pessoal do que aqueles com foco nas deficiências (Meyers, van Woerkom, de Reuver, Bakk, & Oberski, 2015). O grupo do desenvolvimento das forças envolveu os participantes que receberam feedback de cinco a sete pessoas sobre suas forças (mencionado como exer­cício do melhor eu refletido; Spreitzer, Stephens, & Sweetman, 2009) e pensaram sobre suas forças e as discutiram com um pequeno grupo. Além disso, eles desenharam um pôster destacando como utilizam suas forças na vida diária, compararam seus perfis de forças aos perfis de vagas de [83] emprego, consideraram o ajuste entre as forças e a função do trabalho, e desenvolveram uma descrição em 30 segundos, enfatizando suas forças para um trabalho imaginado. Em outro estudo, o apoio organizacional percebido dos colaboradores para a utilização das torças e  o comportamento da utilização das forças estavam significativamente correlacionados à autoclassificação e à classificação do gestor sobre o desempenho do trabalho, enquanto o apoio organizacional percebido para a correção da deficiência e o comportamento de correção da deficiência não estavam relacionados ao desempenho (van Wocrkom Mostert et ah, 2016).

Esses estudos se associam a algumas das perguntas mais comuns formu­ladas pelos praticantes que estão aprendendo sobre forças: Deve ser dada atenção às forças de assinatura ou às forças mais baixas? Embora as forças mais baixas no perfil de forças de caráter do cliente não sejam vistas como fraquezas, a sabedoria desses estudos sobre capitalizar as melhores qualidades
pode ser acatada. Isso não significa que não há valor em se trabalhar as forças mais baixas, pois as pesquisas têm oferecido algum apoio para isso também (por exemplo. Rust et al., 2009), Um estudo examinou mais de perto algumas das diferenças entre os que focam nas forças do topo versus as forças de baixo. Esse experimento randomizado e controlado dividiu os participantes em três grupos: adultos que focaram em suas cinco forças do topo, adultos que focaram em suas cinco forças de baixo e um grupo de placebo. Os dois grupos de intervenções mostraram benefícios em felicidade por até três meses, assim como benefícios em depressão. Aqueles participantes com níveis inicialmente mais altos de forças tenderam a se beneficiar mais trabalhando com as forças mais baixas, ao passo que aqueles com níveis inicialmente mais baixos tende­ram a se beneficiar mais trabalhando com as forças mais altas (Proyer, Gander, Wellenzohn, & Ruch, 2015).

Atualmente, a partir de pesquisas, concluiu-se que trabalhar com qualquer força é benéfico quando o indivíduo pratica ações positivas para melhorar a si mesmo. Embora isso não tenha sido muito estudado, é razoável acreditar que trabalhar com as forças de assinatura seja superior a trabalhar com as forças mais baixas em longo prazo. pois as forças do topo são mais reforçadoras e energizantes e levam o indivíduo a sentir-se mais autêntico do que tentar construir uma força que pode esgotar a energia ou não ser tão motivadora internamente. [84]  

Porque e como as forças de caráter funcionam?

Após determinar o sucesso de uma prática, uma próxima pergunta natural, é adquirir um melhor entendimento das razões pelas quais a prática foi bem-sucedida. Em termos práticos, é provavelmente óbvio para a maioria que, se uma pessoa torna-se impossibilitada de expressar suas forças de assinatura, em breve, sentirá um sentimento de vazio (por exemplo, Escandón, Martinez & Flaskerud, 2016), mas é importante compreender também essa questão da perspectiva científica. Quais são os mecanismos de ação que ajudam a explicar o sucesso da intervenção? Alex Linley e sua equipe levaram adiante essa investigação e encontraram evidência inicial para apoiar as razóes por que a utilização das forças de assinatura está associada ao bem estar (Linley et al, 2010). Eles constataram que empregar as forças de assinatura está relacionado ao progresso das metas da pessoa e à satisfação das necessidades psicológicas básicas de autonomia, afinidade e competência, ou seja, os elementos essen­ciais da teoria da autodeterminação (Deci & Ryan, 2000). Isso cria um sentido bom e prático: as forças de assinatura surgem naturalmente em nós e são a expressão de quem somos. Portanto, quando permitimos que nossa parte es­sencial seja expressa, estamos satisfazendo as necessidades básicas humanas que têm a ver com fazer conexões em nossos relacionamentos e realizar, tanto quanto podemos, nessa vida. O sucesso com as metas flui naturalmente com isso. Como resultado, experimentamos maior felicidade. Essa explicação, en­tretanto, é apenas parcial.

Em outro estudo, a utilização das forças de assinatura elevou os indivíduos a uma “paixão harmoniosa”, que se refere a indivíduos que realizam atividades escolhidas livremente e sem limitações, as quais são altamente importantes e parte da identidade do indivíduo. A paixão harmoniosa levou, então, a maior bem-estar (Forest et al., 2012). A autoestima tem sido outro mecanismo que
vincula as forças de caráter com a satisfação na vida (Douglass & Duffy, 2015). Quinlan, Swain e Vella-Brodrick (2011) sugerem uma variedade de outros mecanismos pelos quais as forças de caráter podem influenciar o bem-estar.

Eles observam a distinção dos efeitos que estão “entre nós” (isto é, sociais), dos que estão “em nós” (isto é, pessoais), e criam hipóteses sobre os seguintes mecanismos:

  • As forças aumentam nosso esforço e perseverança, portanto, aumen­tam o bem-estar (Dweck, 1986). [85]
  • As forças aumentam a satisfação nos relacionamentos (Gable, Reis, impett, & Asher, 2004).
  • As forças ajudam os indivíduos a superar a adaptação hedônica (Diener. Lucas, & Scollon. 2006).

A autoconcordância é outra explicação ou mecanismo envolvido. Os cien­tistas constataram que há muitos benefícios em se traçar e alcançar metas e ter progresso em direção às metas (Miller & Frisch, 2009; Sheldon & Elliot, 1999; Sheldon & Houser-Marko, 2001). Mais especificamente, quando traça­mos uma meta que está alinhada com nossos valores e interesses, isso é cha­mado de metas autoconcordantes. As pesquisas mostram que experimentamos maior felicidade quando alcançamos uma meta autoconcordante, em vez de alcançarmos uma meta que não seja consistente com quem somos (Sheldon & Kasser, 1998). Valorizamos claramente nossas forças de assinatura e senti­mos energia e alegria ao expressá-las, portanto, alinhar metas e forças é uma maneira de ter mais sucesso ao criar a vida que queremos viver.

Em outro estudo, que constatou benefícios significativos para a utilização das forças de assinatura de novas maneiras, comparado ao placebo padrão, Mongrain e Anselmo-Matthews (2012) sugerem que o acesso do indivíduo à informação autorrelevante e positiva pode ser o mecanismo que explica os benefícios dessa intervenção. Wellenzohn, Proyer e Ruch (2016b) examinaram a força de caráter do humor em um estudo de intervenção que mostrou um aumento da felicidade e diminuição da depressão e estudaram alguns mecanis­mos diferentes: eles constataram que houve mudança da atenção em direção ao positivo nas intervenções voltadas para o presente e o futuro, e houve savoring das emoções positivas nas intervenções voltadas para o passado e o presente.

No contexto organizacional, o afeto positivo foi um mediador que explicou a conexão entre a utilização das forças de assinatura e uma variedade de resul­tados no ambiente de trabalho, tais como engajamento, significado, satisfação e desempenho no trabalho, comportamento de cidadania organizacional e comportamentos contraprodutivos no trabalho (Littman-Ovadia et al. 2016). Em outro estudo, o afeto positivo mostrou ser um mediador para a utilização das forças de caráter e bem-estar no trabalho (Meyers & van Woerkom, 2016).

De modo semelhante, em outro estudo, as emoções positivas e o engajamento explicaram a conexão entre a utilização das forças de caráter no trabalho e a [86] produtividade, comportamento de cidadania organizacional e satisfação no trabalho (Lavy & Littman-Ovadia, 2016). Esse mecanismo de afeto positivo, assim como outros mecanismos discutidos anteriormente, como o acesso às qualidades positivas internas e a definição de metas, tem forte associação com a teoria de expandir e construir de Barbara Fredrickson (2001), conforme originalmente aplicada às emoções positivas. Essa teoria afirma que as emo­ções positivas expandem o repertório de potenciais de ações no presente e constroem recursos para o indivíduo no futuro. Esse processo cria uma espiral ascendente de bem-estar (Fredrickson & loiner, 2012). Talvez as forças de caráter, especialmente se vistas pela perspectiva dos traços como distribuições de densidade dos estados emocionais (Fleeson, 2001), possam ser considera­das do ponto de vista da teoria do expandir e construir. Isso significa que as forças estão conectadas ao bem-estar porque expandem as possibilidades para a ação ótima no momento e, simultaneamente, constroem nossos recursos pessoais para ação posterior.

Em um estudo que examinou as relações (moderadores) da utilização das forças de assinatura, nível das forças de assinatura, chamado na vida e satis­fação na vida, os indivíduos com baixo chamado e altos níveis de forças de caráter tiveram a conexão mais forte entre a utilização das forças de assinatura e satisfação na vida (Allan & Duffy, 2013). Um achado-chave nesse estudo foi que o emprego das forças de assinatura é particularmente importante para aqueles com baixo significado e propósito.

No estudo de intervenção mais longo já realizado na psicologia positiva, Proyer, Wellenzohn et al. (2014) examinaram as conexões entre várias inter­venções positivas (por exemplo, forças de assinatura de novas maneiras, três coisas boas) e o tipo de intervenção adequado à pessoa, para predizer felicidade/depressão. Eles pretendiam examinar sob quais condições as forças de assinatura e outras intervenções positivas funcionam melhor em longo prazo. Com base no conceito de Lyubomirsky e Layous (2013) do melhor ajuste en­tre pessoa-atividade, Proyer e colegas constataram que os quatro elementos seguintes foram particularmente importantes como preditores da felicidade/depressão três anos e meio depois da intervenção:

  • Prática continuada. A continuação voluntária da prática além do tem­po designado (como observado de modo fortuito por Seligman et al., 2005). A prática continuada ajuda a facilitar o desenvolvimento de um hábito (Lyubomirksy, Sheldon, & Schkade, 2005). [87] 
  • Esforço. Como as pessoas trabalham com a intervenção, se completam mais, ou se menos, no tempo orientado.
  • Preferência. Se a pessoa gosta ou percebe os benefícios da intervenção (uma importante variável encontrada em um estudo de preferências de Schueller, 2010).
  • Reatividade precoce. Como as pessoas reagem à intervenção. Elas mostram uma resposta rápida, como um aumento imediato das emoções positivas?

Eles constataram que a combinação desses quatro indicadores foi muito bem-sucedida para prever a felicidade e a depressão em longo prazo. Eles explicaram que “a maneira como as pessoas pensam sobre as intervenções de psicologia positiva, a maneira como trabalham com elas, e a maneira como rea­gem a elas desempenha um papel na predição do bem-estar, posteriormente"
(Proyer, Wellenzohn et al., 2014, p. 14). São esses elementos do ajuste entre a pessoa e a intervenção que contribuem para os benefícios em longo prazo.

Como está provavelmente claro, há um número de fatores que explica a relação entre forças de caráter e bem-estar. Cada um desses nos fornece expli­cações mais profundas sobre a razão de a utilização das forças, especialmente das forças de assinatura, ser uma intervenção bem-sucedida. A medida que o mecanismo torna-se mais claramente compreendido, é provável que os achados alinhem-se à tendência natural que os seres humanos têm de desenvolver suas capacidades essenciais, de utilizar seus potenciais naturais e de se tornar tudo aquilo que podem ser (Buckingham & Clifton, 2001; Linley & Harring­ ton, 2006). Linley e Harrington (2006, p. 42), em seus argumentos para pro­moção do coaching baseado nas forças, resumem a base histórica substancial na qual as abordagens baseadas nas forças se apoiam:

E, mais fundamentalmente, uma abordagem baseada nas forças é solidamente alicer­çada no estabelecimento da aprendizagem e abordagens psicológicas que remetem à linhagem de Aristóteles, passando por Carl Jung, Karen Horney e Carl Rogers, até as abordagens do coaching moderno de Whitmore e Gallwey, integrando-se finalmente com a definição da psicologia do coaching, que agora sustenta os desenvolvimentos e a direção dessa nova disciplina.

Questões-chave no trabalho com as forças de assinatura

Esta seção analisa os importantes tópicos que os praticantes devem consi­derar com atenção, que estão relacionados à expressão das forças de caráter, [88] e começa a se aprofundar explorando o "como" do trabalho com as forças de aaainatura. Há multas formas de trabalhar com as forcas de carater, como você lerá a respeito em cada capitulo desta obra. Esta seção destaca algumas ideias essenciais para ajudá-Io a começar a explorar suas próprias forças de assinatura e aquelas de seus clientes.

Tipos do cegueira das forças

A fim de aprofundar a compreensão e apreciação das forças de assinatura, é importante primeiro considerar o conceito e o problema da cegueira das forças. ... Niemiec (2014a) apresentou quatro categorias de cegueira das forças, que são apresentadas em ordem de grau de desconhecimento, começando com o que é mais provável de representar ao menos conhecido.

  1. Desconhecimento geral dos forças

Essa categoria reflete uma falta generalizada de autoconsciência ou desconexão da pessoa com quem ela é (identidade). Muitas pessoas têm dificuldades de reconhecer suas forças (Linley & Harrington, 2006). Não é incomum encontrar  indivíduos que ficam atônitos, como um cervo sob a luz dos faróis, quando lhes perguntam quais são suas forças em uma entrevista de trabalho ou em uma primeira sessão de coaching ou psicoterapia. Alguns desses indivíduos não são reflexivos e não têm compreensão psicológica de si e de outros, enquanto outros simplesmente nunca pensaram sobre o assunto de “suas forças". Pessoalmente, continuo a sentir uma onda de tristeza quando pergunto a um cliente quais são suas forças e ele diz: “Não sei” ou “Não tenho nenhuma” e olha para baixo, para seus sapatos. Infelizmente, essa tem sido uma resposta muito comum.

  1. Desconexão com um significado

Pesquisas com questionários têm mostrado que apenas um terço das pessoas tem consciência significativa de suas forças (Linley, 2008), apesar de haver razões para acreditar que esse número cresça no contexto do trabalho (McQuaid & VIA Institute on Character, 2015). Alguns indivíduos apresentam uma resposta superficial à pergunta geral sobre nomear suas melhores forças, mas a resposta deles não é substanciosa. As respostas são vagas (por exemplo: “Tenho boas qualidades”), ou confundem forças de caráter com outros domínios de [89] forças, como um Interesse (por exemplo, "Gosto de ouvir música”), e talento/ habilidade (por exemplo, *Sou bom em futebol”). Uma pessoa pode dizer que tem desempenho melhor que a média em bascbol recreativo, no entanto, é o caráter que faz a conexão com o significado e a substância. Nesse exemplo, são as forças da perseverança, trabalho em equipe e autocontrole no campo de basebol que começam a nos dizer algo sobre as forças desse indivíduo.

  1. Ver as forças como ordinárias em vez de extraordinárias

As vezes, os indivíduos minimizam ou desvalorizam suas forças, ou são indi­ferentes sobre terem forças (Biswas-Dicner et al., 2011). Nesses casos, o indiví­duo responde ao Questionário VIA e reage com uma resposta do tipo “Sim, eu já sabia disso, não é nada demais”. Esse tipo de indiferença é uma bandeira ver­melha para a cegueira das forças. Pode ser verdade que a pessoa teria um palpite sobre quais são suas forças mais altas, mas esse não é o ponto. É provável que o indivíduo não esteja apreciando seu engajamento em algo que tem o potencial de ser um trampolim para muitos resultados positivos, como conhecer suas pró­prias metas pessoais. Em vez de ter um mindset de crescimento e curiosidade, eles veem a si mesmos com um mindset fixo. Eles passam por cima de seus tra­ços essenciais e não fazem conexões ativas entre as forças e suas experiências, não se engajam na conversa sobre forças no momento, e não fazem brainstorm para buscar ativamente maneiras de crescer com a expressão das forças.

A subutilização das forças é um fenômeno que provavelmente fundamenta cada uma das três categorias mencionadas. Acredito que todas as pessoas uti­lizam pouco suas forças periodicamente. Em outras palavras, 100% de nós te­mos pontos cegos sobre nosso autoconhecimento acerca das forças de caráter. Há sempre novas abordagens, ajustes, utilização e perspectivas que podem ser considerados quando se trata da utilização das forças, especialmente ao se incorporar o mindset de crescimento com as forças de assinatura (Dweck, 2006). Um dado indivíduo pode estar cego para utilizar uma de suas forças em certo contexto ou situação particular, cego a respeito de como uma força pode estar presente, mas disfarçada, ou não estar consciente de como suas forças se apresentam nas rotinas diárias, ao surgirem estressores, ou ao traba­lhar em direção a uma meta específica. Nesse sentido, é provavelmente justo dizer que a maioria das pessoas poderia beneficiar-se de maior mindfulness ao compreender e aplicar suas forças de caráter. [90] 

  1. A superutilizaçâo das forças

A superutilizaçâo das forças de caráter é um quarto tipo especial de ce­gueira. Ela ocorre quando um individuo emprega sua(s) força(s) de maneira muito forte em uma situação específica. Uma pessoa pode expressar tanta curiosidade que se torna intrometida, ou tanta liderança que parece contro­ladora. Frequentemente, a superutilizaçâo das forças tem um impacto nos relacionamentos, e o indivíduo que está superutilizando não está consciente (ou seja, cego) desse impacto ou pelo menos da extensão do impacto. Outras vezes, o indivíduo pode estar cego a respeito do que fazer sobre seu pesado es­forço de prudência no trabalho, ou da superutilizaçâo da humildade que deixa sua individualidade de lado.

Uma maneira de trabalhar com cada um dos tipos de cegueira das forças é integrar mindfulness e forças de caráter. O cultivo de mindfulness para melho­rar a utilização das forças de caráter é chamado de “utilização consciente das forças”, e a utilização das forças de caráter para promover uma prática de mind­fulness é referida como “mindfulness forte” (Niemiec, 2012; Niemiec, Rashid, & Spinella, 2012). O programa personalizado, chamado prática das forças ba­seada em mindfulness (mindfulness-based strengths practice - MBSP), para in­tegrar e melhorar ambos os fenômenos, tem mostrado resultados promissores (Ivtzan, Niemiec, & Briscoe, 2016; Niemiec, 2014a; Niemiec & Lissing, 2016).

A principal ideia desta seção é que a cegueira das forças pode ser disse­minada. Aqui está um exemplo: um de meus filhos apresenta alguns atrasos no desenvolvimento e está muito atrás de seus colegas para engatinhar e an­dar. Ele foi a vários especialistas e praticantes de intervenção precoce para receber auxílio. Passei muitas horas conversando com esses ajudantes, com membros da família e outros sobre o que deveríamos fazer e as estratégias para chegar lá. Expressei preocupação, de forma rotineira, sobre os atrasos no desenvolvimento e o impacto potencial em seu cérebro em desenvolvimento e relacionamentos sociais. Em uma de minhas discussões com a colaboradora de uma creche, a respeito da minha agenda para a equipe manter uma série de estratégias na tentativa de fazê-lo engatinhar, ela fez o seguinte comentário: “Ele está se movimentando para todos os lugares! Ele está conseguindo chegar onde precisa ir. Apesar de não engatinhar, ele está se movendo muito bem! Ele vê um brinquedo ou um grupo de crianças do outro lado da sala onde [91] quer chegar e vai até tá”. Foi aí que percebi. Meu filho já estava expressando diversas forças e enfrentando as dificuldades no desenvolvimento relacionadas a exploração, curiosidade e mobilidade de causa e efeito, indo do ponto A ao ponto B. Eu não estava sabendo - ou pelo menos valorizando - esse fato, que estava bem à minha frente! Estava mais entrincheirado em uma abordagem de deficiência, gastando meu tempo e recursos no que ele não estava fazendo ou no que ele deveria estar fazendo, em vez de estudar e celebrar o que ele estava fazendo (e fazendo muito bem). Seus deslocamentos - embora muito menos tradicionais do que os da maioria das crianças - foi algo que ele construiu. Essa conversa levou-me imediatamente para o modo savoring. Saboreei seus deslocamentos, sabendo que ele iria em breve superar esse estágio interes­sante e maravilhoso. Criei oportunidades para ele praticar esses movimentos, o que encheu meu coração de alegria (e meu celular de vídeos). Não ignorei os aspectos baseados no problema, em vez disso construi sobre eles, em vez de paredes os problemas tornaram-se um trampolim. Naquela situação, essa colaboradora ajudou-me a interromper minha cegueira das forças. [92]

O paradoxo das forças

Existe um paradoxo interessante no trabalho com as forças. Por um lado, os indivíduos tendem a não estar muito sintonizados com suas melhores qua­lidades na maior parte do tempo. Portanto, as forças são facilmente ignoradas, esquecidas e tratadas como comuns. Por outro lado, quando os indivíduos estão dispostos a explorar suas melhores qualidades, rapidamente encontram as forças em suas histórias e conversas com outros. Em geral, é fácil falar sobre forças de caráter e identificar-se com elas, e até mesmo as complexida­des sobre as forças são facilmente compreendidas se aos indivíduos é dada a oportunidade. Isso foi mostrado em um estudo que explorou as forças de caráter VIA com estudantes do ensino médio (Steen, Kachorek, & Peterson, 2003). Até mesmo crianças muito pequenas podem facilmente compreender cada uma das 24 forças quando se dedica tempo para ensiná-las (Fox Eades, 2008). E os praticantes que lideram discussões sobre forças com os clientes - mesmo aqueles muito deprimidos ou desengajados - percebem que esses se interessam e se engajam. É como se uma nova porta fosse aberta, permitindo ao cliente ver as coisas de uma nova maneira.

Denomino essa discrepância, entre o desconhecimento das forças e o alto potencial para sua utilização, de “paradoxo das forças”. Os praticantes po­dem aprender a utilizar o paradoxo das forças em seu favor. Nossas forças de assinatura parecem ser, em grande parte, pré-conscientes (para roubar um termo de Freud de um século atrás). É como se nossas forças de assinatura e as conversas sobre forças estivessem esperando para serem exploradas bem abaixo do conhecimento consciente. Isso significa que há um grande potencial para todo cliente romper com seus pontos cegos, mover-se além da superfície de sua consciência e deixar a qualidade positiva fluir.

Tenho me referido às forças de assinatura como um verdadeiro “divisor de águas”, especialmente quando trabalho com clientes (Niemiec, 2014a). As forças de assinatura ajudam os praticantes a preencher a lacuna do paradoxo das forças. Em todo evento esportivo há, com frequência, um momento em que a dinâmica muda em favor de um time, mobilizando a energia, o traba­lho em equipe, a liderança e impulsionando aquele time rumo à vitória. Isso pode ser um grito arrebatador de um jogador, um roubo defensivo, um gol de placa, ou um esforço abrupto. As forças de assinatura podem ser esse divisor [93] cegos. Portanto, quando as forças são trazidas para a atenção deles, há com frequência uma reação do tipo "Ah sim, é claro!",

Além da consciência dos forças de caráter

Não há praticamente discordância entre nenhum dos líderes da psicologia das forças e do couching de forças de que conhecer as próprias forças de as­sinatura seja importante e necessário para o bem-estar (Biswas-Diener et al., 2011; Buckingham & Clifton, 2001; Cooperrider & Whitney, 2005; Duttro, 2003; Forster, 2009; Kauffman, Silberman, & Sharpley, 2008; Linley, 2008; Lopez, 2008; Madden et al., 2011; Niemiec, 2012; Peterson, 2006a; Proctor & Fox Eades, 2011; Rashid, 2009; Rath, 2007; Seligman et al., 2005). E é notável que alguns têm relatado benefícios em apenas identificar suas forças de caráter com o Questionário VIA, em uma variedade de populações (por exemplo, Kobau et al., 2011; Seligman et al., 2005; Sims, Barker, Price, & Fornells-Ambrojo, 2015).

Todavia, conhecer as próprias forças é provavelmente necessário, mas não é o suficiente para resultados particularmente importantes, tal como o florescimento humano. É a expressão das forças de caráter que parece promover benefícios substanciais. E está se tornando mais claro que as forças de caráter podem ser desenvolvidas deliberadamente (por exemplo, Biswas-Diener et al., 2011; Louis, 2011; Seligman et al., 2005).

As pesquisas têm corroborado importantes benefícios da utilização das forças de caráter como diferentes de apenas ter consciência (Littman-Ova- dia & Steger, 2010). Isso tornou-se mais claro em um estudo que mencionei anteriormente - com uma amostra representativa de colaboradores da Nova Zelândia, de Lucy Hone e colegas (2015), que examinaram a consciência das forças, a utilização das forças e os níveis de florescimento. Esses pesquisa­dores constataram que os colaboradores que estavam altamente conscientes de suas forças foram nove vezes mais propensos a florescer do que os que não estavam conscientes delas, mas aqueles que relataram alta quantidade na utilização das forças foram 18 vezes mais propensos a florescer do que os que relataram quantidade muito baixa na utilização das forças. Embora esses números não signifiquem que o conhecimento ou a utilização das forças cause o florescimento nessas taxas, é interessante ver as distinções não apenas entre a consciência das forças e o desconhecimento das forças, mas também entre a consciência das forças e sua utilização. [94] 

Muitas pessoas que respondem ao Questionário VIA reconhecem isso ao examinar seu perfil de forças de caráter e, ao acumular alguma autoconsciência sobre suas forças, deparam-se com a utilidade prática de seu uso, dizendo: “Tudo bem, respondi ao Questionário VIA, e agora o que faço?"

Muitos praticantes caem na armadilha da abordagem simplista do trabalho com as forças e “pulam” imediatamente do “identificar” para o “utilizar", o que é geralmente insuficiente como abordagem (Biswas-Diener et al., 2011). Niemiec (2013) notou que há um passo básico, mas crucial, que tais pratican­tes perdem, e que ocorre depois de identificar as forças e antes de estabelecer um plano de ação - ajudar o cliente a explorar suas forças.

Dois conceitos gerais são cruciais quando se trabalha com as forças de caráter: a) priorizar as forças de assinatura e b) todas as 24 forças importam. Ajudar o cliente a focar, sintonizar-se e dominar suas forças de assinatura em vários contextos provavelmente lhe dará mais benefícios e mais flexibilidade para alcançar suas metas. Ao mesmo tempo, os clientes preci­sam ser lembrados de que têm muitas forças que podem ser desenvolvidas e utilizadas. Para um cliente novo no mundo das forças ou novo em colocar os “óculos das forças”, pode ser intimidante - se não impossível - tentar focar ou construir todas as 24 forças. Dessa forma, é geralmente melhor começar por onde eles sentem-se energizados e entusiasmados e podem expressar-se natu­ralmente (forças de assinatura), e, depois, partir desse ponto. Considerando isso, muitas pessoas ao longo dos tempos têm sistematicamente passado pelas principais virtudes ou forças tentando construí-las uma a uma. O estadista norte-americano do século XVIII, Benjamin Franklin (1962), escreveu sobre como monitorou, manteve um diário, discutiu e tentou melhorar várias virtu­des, focando em uma virtude diferente a cada semana.

As pessoas às vezes acham surpreendentemente desafiador descobrir novas maneiras de utilizar uma de suas forças de assinatura. Isso acontece porque não temos prática em utilizar nossas forças e, quando as utilizamos, fazemos isso sem muita conscienciosidade. Por exemplo, você tem prestado bastante atenção em sua força de autocontrole enquanto se veste? Em seu nível de prudência ou bondade ao dirigir? Em sua humildade durante uma reunião de equipe? [95]

Como utilizar as forças de assinatura de novas maneiras

À medida que as pesquisas sobre a utilização das forças de assinatura de novas maneiras tornam-se sólidas e continuam a expandir-se, os praticantes e clientes ficam ansiosos para empregá-las. Por isso, apresento aqui quatro estratégias: comportamentos simples, ancoragem, mapeamento dos contextos e mapeamento holistico.

Essas dicas práticas, algumas das quais menciono na obra Character streng­ths matter (Polly & Britton, 2015), ajudarão você e seus clientes a desenvolver suas forças de caráter e tornarão esse exercício mais prático, fácil de fazer e até mesmo revigorante. Os leitores podem desejar retornar à Tabela 1.2 no Capítulo 1 para revisar exemplos de “pequenos" usos das forças no dia a dia que ofereci para cada uma das 24.

 

Comportamentos simples

Para iniciar, muitos praticantes e clientes acham útil começar com uma lista dos comportamentos das forças de assinatura. A Tabela 2.1 inclui duas idéias para a utilização de cada força de caráter de uma nova maneira. [96]

Tabela 2.1 - Utilizando as forças de assinatura de novas maneiras

Ancoragem

Ancore as forças de assinatura a uma atividade diária que você já faz. O que você faz todos os dias que faz parte de sua rotina? Dirigir, preparar o almoço, participar de uma reunião, de escrita criativa, brincar com seus filhos, relaxar com seu cônjuge, enviar e-mails para amigos. Comece escolhendo uma dessas atividades de rotina, e comprometa-se a utilizar uma ou mais de suas forças de assinatura durante aquela atividade. Por exemplo, se você ancorar a imparciali­dade à conversa com seu cônjuge, poderá, conscientemente, assegurar-se de lhe permitir uma quantidade igual de tempo para que ele compartilhe sobre seu dia e que escolha a atividade relaxante para vocês dois realizarem juntos. Se você an­corar a bondade ao dirigir, poderá, de forma deliberada, encontrar uma ou duas maneiras em cada viajem de ser sensível às necessidades potenciais de outros mo­toristas, e sair de seu caminho para sorrir/acenar para eles e dirigir com cuidado.

Mapeamento do contexto

Quando considerar os principais domínios de sua vida - trabalho, escola, família, relacionamentos, comunidade - tome nota do grau em que você ex­pressa, confortavelmente e regularmente, todas as suas forças de caráter em cada domínio. Muitas pessoas acham que há uma lacuna no grau em que expressam uma força em um ou dois domínios, em comparação a outros domí­nios. Gere alguns exemplos da expressão de suas forças de caráter, escrevendo sobre como você utiliza suas forças do topo em cada domínio. Em que domí­nios sua escrita é mais fluida e rica? Em que domínios você tem dificuldades de pensar em exemplos? Permita a cada domínio informar outros ao gerar mais e mais idéias sobre como utilizar suas forças de assinatura de novas maneiras. [99]

Mapeamento holístico

Originalmente baseadas no modelo de dois fatores de Peterson (2006a), as forças de caráter foram mapeadas em duas continuas (VIA Institute. 2014): forças que são do coração (por exemplo, sentimento, corpo, emoção, intuição), ou da cabeça (por exemplo, lógica, análise, raciocínio), e forças que são mais in­terpessoais (com outros), ou intrapessoais (quando se está sozinho). A Figura 2.1 retrata o gráfico circumplexo da classificação VIA, denominado “gráfico do equilíbrio de dois fatores” dos dados analisados por Robert MacGrath, em 2014 (veja também um relatório de amostra com o mapeamento circumplexo em http://www.viacharacter.org/www/ Portals/O/VIA%20Pro%20Report,pdf).

Mapear cada força de assinatura em quatro aspectos é ainda outra maneira de expandir seus pensamentos e ações sobre como você pode utilizar suas forças de assinatura. Isso permite uma visão mais completa e holística de si mesmo e serve para acionar a potencialidade de cada força de caráter. Veja a Tabela 2.2 para um exemplo da utilização da força de gratidão. [100]

Tabela 2.2 - Mapeamento holístico da força de gratidão.

 

Psicologia - Psicologia positiva
Intervenção - Psicoterapia, Psicoterapia positiva
11/11/2020 12:43:52 PM | Por Ana Clara Gonçalves Bittencourt
Psicologia positiva e psicoterapias

As fronteiras da Psicologia estão constantemente em um processo de mudança e a sua expansão historicamente, deu-se de forma contundente por época da inserção dessa ciência no mercado de trabalho após a Segunda Guerra Mundial. A Psicologia tinha como um dos seus pilares cuidar das doenças mentais, fazer diagnósticos e estabelecer meios para tratar os transtornos mentais, sendo essa, en­tão, uma das suas três importantes missões. As outras duas missões da Psicologia - tornar boa a vida das pessoas e elencar os talentos superiores dos indivíduos - ficaram negligenciadas por longos anos (SNYDER & LO­ PEZ, 2009).

A Psicologia Positiva instaura um novo paradigma no que se refere ao entendimento sobre as potencialidades humanas, a felicidade e o bem-es­tar. (SELIGMAN, 2011). Esses estudos se encontram em expansão no Brasil e estão ganhando notoriedade cada vez maior ao serem propagados em diversos segmentos nos quais suas aplicabilidades são possíveis. A Psicolo­gia Positiva que é composta portrês pilares - o nível subjetivo, relacionado aos estudos dos conteúdos sobre felicidade e bem-estar; o nível indivi­dual, que diz respeito aos traços e características individuais positivas e o nível coletivo, voltado para as virtudes cívicas e instituições com funciona­mento positivo (SELIGMAN & CSIKSZENTMIHALYI, 2000) - vem ganhando espaço também no contexto da Psicologia Clínica.

Inúmeros estudiosos da Psicologia Positiva apontam os aspectos sau­dáveis - potencialidades, virtudes, forças de caráter, pontos fortes, emoções positivas, felicidade, otimismo, esperança, resiliência, dentre tantos outros aspectos funcionais - como sendo fatores preditivos da saúde mental e física (SNYDER & LOPEZ, 2009), além de serem verdadeiras molas pro­pulsoras para o alcance de mudanças positivas na vida. [59]

O movimento científico da Psicologia Positiva foi retratado na edição especial de 2000 do periódico American Psychologist, mostrando que esse movimento é uma "tentativa de levar os psicólogos contemporâneos a adotarem uma visão mais aberta e apreciativa dos potenciais, das motiva­ções e das capacidades humanas". (SHELDON & KING, 2001, p. 216).

Psicologia Positiva e seu crescimento no Brasil

Encontramos relatos dos avanços da Psicologia Positiva e de suas apli­cações no Brasil quer seja no contexto individual ou coletivo, desenhando um novo panorama onde os psicólogos mostram interesse em conhecer essas abordagens científicas com a intenção de usá-las para tornar melhor a vida das pessoas. No Brasil, a porta de entrada para a Psicologia Positiva, aplicada ao contexto clínico, ocorreu com os estudos sobre resiliência, em função dos fatores de vulnerabilidade e das situações de risco existentes no contexto brasileiro, destacando sua importância para a determinação de novos horizontes para pesquisas nas áreas das ciências humanas e so­ciais. (YUNES, 2003).

A expansão da Psicologia Positiva no Brasil foi retratada através de um estudo realizado por Paludo e Koller no ano de 2007. À época, já conside­ravam que a Psicologia Positiva estava em processo de expansão dentro da ciência psicológica, ganhando mais relevância no Brasil apenas mais recentemente. De acordo com o entendimento dessas estudiosas, acima referenciadas, é importante compreender o surgimento da Psicologia Po­sitiva no Brasil para que exista uma maior e melhor apropriação dos seus princípios pelos psicólogos em âmbito nacional. De acordo com Pureza et al. (2012), foi realizada uma pesquisa de re­visão sistemática da literatura científica em Psicologia Positiva no Brasil. Essa pesquisa considerou o período das primeiras publicações (anos 90) até 2012. Os fundamentos psicológicos que receberam destaque nessa pesquisa foram: o bem-estar, a felicidade, os pontos fortes e as virtudes humanas. O descritor utilizado foi "Psicologia Positiva" e a revisão foi rea­lizada com base nos dados de publicações nacionais SciELO, BVS e BDTD.

Através dessa pesquisa, no que se refere aos construtos teóricos, ob­servou-se que o bem-estar continua sendo o tema central da maioria dos [60] estudos e, também, foram identificados sete diferentes instrumentos de pesquisa utilizados para avaliação de diferentes construtos da Psicologia Positiva. Como o leitor pode perceber, a Psicologia Positiva vem fazendo um caminho promissor no Brasil, a partir de investigações sobre as potencialidades humanas com suas aplicações, também, no contexto da Psicologia Clínica.

Contribuições da Psicologia Positiva e sua interface com a Psicologia Clínica

Entre as principais contribuições da Psicologia Positiva para a Psicolo­gia Clínica destacam-se a construção de instrumentos de avaliação, métodos preventivos, aprimoramento de técnicas de avaliação psicológica destinadas a identificar as virtudes e os aspectos positivos humanos. (SELIGMAN, 2002).

Esse saber científico pode ser estendido a diversas áreas do conheci­mento, tendo em vista que abrange as potencialidades humanas em qual­quer segmento da vida do indivíduo e, por esse motivo, há que se falar da multidisciplinaridade desse saber. Uma multidisciplinaridade legitimada não somente no tocante ao campo da Psicologia, mas, também, em outras tantas áreas. Essa multidisciplinaridade contribuiu para a dimensão da Psi­cologia Positiva tanto no contexto de pesquisa quanto da prática dos seus preceitos, demarcando a proposta de desenvolver um campo da ciência voltado para uma "vida que vale a pena". (CORRÊA, 2016).

E, de acordo com Pureza et al. (2012), as investigações apontam a efe­tividade de intervenções através dos construtos propostos pela Psicologia Positiva, sugerindo a aproximação desta com as áreas da Psicologia Clínica, da Saúde e da Educação. (PUREZA et al, 2012).
No que se refere ao campo da Psicologia Clínica, a Psicologia Positiva pode ser empregada para a prevenção e a promoção de saúde focando a melhora da qualidade de vida. Portanto, as contribuições desse novo sa­ber científico para a Psicologia Clínica são significativas, pois possibilitam a identificação e o desenvolvimento dos aspectos positivos e preservados do indivíduo no contexto psicoterapêutico. Esses aspectos, uma vez potencia­lizados, tornam-se um fator de proteção para o próprio indivíduo e levam à ampliação da sensação de bem-estar e à conquista de uma vida mais feliz. [61]

Em um sentido mais completo, a aplicação da Psicologia Positiva na Psicoterapia tem como objetivos principais: abordar os recursos positivos dos clientes, por exemplo, as emoções positivas; possibilitar a mudança de estruturas cognitivas pessimistas para pensamentos otimistas; estimular o aumento da resiliência para o enfrentamento; desenvolver e fortalecer as forças de caráter, além de tratar as queixas apresentadas pelos clientes (SELIGMAN, RASHID & PARKS). 

Seligman, Rashid e Parks (2006) desenvolveram a Psicoterapia Positiva elaborada a partir de atendimentos para pacientes deprimidos. E de acordo com esses estudos a Psicoterapia Positiva agrada um conjunto de técnicas que possuem mais eficácia se utilizadas assomadamente com os princípios terapêuticos básicos propostos pelas abordagens teóricas da Psicologia (Seligman, 2011). 

Nesse sentido, imbuído do desejo de mostrar aos indivíduos a importância de se viver bem, Seligman (2011) propõe que o bem-estar depende de uma busca constante de viver com mais emoções positivas, ser engajado naquilo que se faz, ter relacionamentos significativos, encontrar sentido na vida e ter realização. A proposta da Teoria de Seligman sobre o Bem-Estar se adequa e pode ser perfeitamente funcional no trabalho psicoterápico, uma vez que conduzir os clientes para a descoberta de suas próprias potencialidades, sem claro, negligenciar as difuncionalidades e fraquezas, favorece experiências positivas e transformadoras uma vez que se cria, nesse sentido, um círculo virtuoso onde a vivência de emoções positivas no Setting terapêutico tende a aumentar o grau de comprometimento do cliente em tornar-se uma pessoa melhor e mais saudável.

De acordo com Paludo & Koller (2007), a Psicoterapia Positiva visa fortalecer os aspectos saudáveis dos indivíduos. Nesse sentido, focar nas virtudes e forças de caráter é uma das propostas que se aplica perfeitamente a esse contexto, pois, segundo esses estudiosos, ao ampliar as forças pessoais dos clientes possibilita a eles a busca por mudanças mais saudáveis na vida. Como se pode perceber, alavancar esses recursos internos positivos nos clientes, no contexto da Psicoterapia, é de total relevância, uma vez que funcionam como fatores de proteção para problemas futuros, para a saúde e o bem-estar (SCORSOLINI-COMIN & POLETTO, 2016). [62]

A relação das descobertas do movimento científico da Psicologia Po­sitiva com a Psicologia Clínica encontra-se no cerne dos objetivos da Parte II desta obra. Objetivamos mostrar aos psicoterapeutas: que os princípios desse "novo olhar" podem ser aplicados no processo de Psicoterapia para ajudar os seus pacientes a se desenvolverem e se fortalecerem para lidar com o momentos adversos da vida tornando-os mais resilientes; que ao identificarem, maperarem e aprimorarem os aspectos positivos dos seus pacientes estão instrumentalizando-os, de forma mais palpável, para que se tornem pessoas mais felizes; que os pacientes ao edificarem uma visão mais positiva de si mesmos estarão facilitando a construção de uma vida com mais sentido; e que estarão proporcionando experiências com maior bem-estar.

Como o leitor pode perceber, o campo investigativo acerca das con­tribuições da Psicologia Positiva para que as pessoas alcancem uma vida melhor vem crescendo e ganhando um espaço que, aos poucos, está con­solidando-se. E, no contexto da Psicoterapia, essas contribuições mostram que são crescentes as possibilidades dessas aplicações com o intuito de ajudar os clientes a se desenvolverem e se fortalecerem não somente para enfrentarem os transtornos pelos quais são acometidos, mas também para buscarem viver com maior bem-estar e ter uma vida mais satisfatória e plena.

O espaço da Psicoterapia é um contexto no qual os princípios da Psicologia Positiva podem ser empregados, de forma contun­dente, contabilizando resultados significativos favorecedores do desen­volvimento de pessoas mais felizes. Mostrar aos clientes que todos nós somos dotados de características positivas que nos tornam mais funcio­nais e proativos, proporciona o aumento do otimismo, da esperança, da motivação e de vários outros sentimentos positivos, além de estimular o comprometimento desses para buscarem os resultados na Psicoterapia e, consequentemente, a evolução satisfatória das queixas. [63]

Psicologia - Psicologia positiva
Emoções positivas - Emoções positivas, Emoções positivas
11/6/2020 2:29:27 PM | Por Mattieu Ricard
Altruism and happiness

This paper will first explain the close connection between altruism and happiness and then consider the scientific evidence pointing out the interdependence of these two important aspects of human society. Altruism is a factor that will determine the quality of the current and future existence of all. It must not be regarded only as a utopian thought created by a few individuals with big hearts. Altruism can be defined as, ―The wish and determination to attain the well-being of others.‖ As far as possible, this state of mind will lead to behavior that strives to realize this objective.

Why happiness cannot be separated from altruism

Modern life confronts us with a number of unique challenges, each with its own temporality and priority. We can view them as three different categories based on preoccupations and time scales: the economy in the short-term, life satisfaction in the mid-term, and the environment in the long-term.

Stock markets soar and crash overnight; the economy and financial world are evolving at an ever-faster pace. Life satisfaction is measured by a life project, a career, a family, or a generation. The evolution of the environment is measured by a century, millennium, or era, even though ecological upheavals are accelerating the rhythm of these changes. We are now in the era called ―anthropocene‖, the first era where humans have a global impact on the earth‘s ecosystem.

How can we work with these three-time scales simultaneously? How do we reconcile them? We know how difficult it is to change our habits. Investors are not prepared to put their money in treasury bonds that will only mature in 100 years. Those who are well off don‘t feel like sacrificing their lifestyle for the benefit of others, much less for the sake of future generations. Those who live in need naturally aspire to more prosperity and economic growth in order to better their own situation and catch up with the richest nations. Those who profit the most from exploiting natural resources do not want to minimize their earnings. Individualism keeps us from adopting a global vision of these problems, from drawing the necessary conclusions, and from implementing the corresponding measures.

There is, however, a vital thread that links these three-time scales and harmonizes their priorities - Altruism. Altruism is not just a noble, somewhat [156] naive ideal or a luxury only the affluent can afford. Now, more than ever, altruism is a necessity for the wellbeing of all.

If we were more altruistic, if we were more considerate of others, we would not indulge in wild speculations with the savings of investors who placed their trust in us.

If we were more considerate of the quality of life of those around us, we would make sure that working conditions, family life, and many other aspects of society were improved.

Finally, if we were more considerate of future generations, we would not blindly sacrifice the environment they are inheriting from us in favor of our short-lived wants and needs.

Altruism is a factor that will determine the quality of the current and future existence of all. It must not be regarded only as a utopian thought created by a few individuals with big hearts. We must have the insight to recognize its essential role and have the audacity to say so.

Economists have based their theories on the assumption that human beings exclusively follow their own personal interests. Although this hypothesis is mistaken, it is the foundation of the current economic systems. They are based on the principle of free exchange of goods and services as posited by Adam Smith. They neglect to take into account the need for each individual to care for the wellbeing of others. This omission created a society that cannot function harmoniously. Adam Smith himself wrote about this need in his The Theory of Moral Sentiments, a work that is often overlooked by economists: ―To restrain our selfish, and to indulge our benevolent affections, constitutes the perfection of human nature; and can alone produce among mankind that harmony of sentiments and passions in which consists their whole grace and propriety (Smith 1759). Modern economists are now increasingly calling for acknowledging the role of altruistic propensities in every aspect of human life, including the economy. For example, Dennis Snower the founder of the GES (Global Economic Symposium) has stressed that along the ―voice of reason, economists, politician, and individuals alike must now also speak with the ―voice of care‖ (Snower 2012).

Evolutionists also remind us that we should not forget the emphasis placed by Darwin on the vital importance of cooperation in the world of living beings. Martin Nowak, among others, reminds us: ―Cooperation is the architect of creativity throughout evolution, from cells to multicellular creatures to anthills to villages to cities. Without cooperation, there can be neither construction nor [157] complexity in evolution. Cooperation—not competition—underpins innovation (Nowak 2011)

Exploring altruism

Altruism can be defined as, ―The wish and determination to attain the well-being of others. As far as possible, this state of mind will lead to behavior that strives to realize this objective. Altruism can be considered to be authentic only if achieving somebody else‘s well-being is the primary motivation and the ultimate aim of a particular behavior.

Goodness is not a doctrine or a principle, It is a way of living, wrote historian Phillip Hallie (Hallie 1978). Altruism can be a momentary state of mind, or grow into a lasting way of being. In its essence, altruism is a benevolent state of mind that is fueled by the feeling of concern for the fate of all those around us and wishing them well strengthened by our determination to act accordingly.

The link with happiness is obvious. In Buddhism altruistic love is defined as ― the wish that all beings find happiness and the causes of happiness. These altruistic wishes must be accompanied by a determination to do everything in our power to make them come true. This determination will drive the activity, but it must be enlightened and empowered by discernment and wisdom.

Compassion is the form altruistic love takes when it is confronted with suffering. Buddhism defines compassion as ― the wish that all beings be freed from suffering and its causes.

Empathy is the capacity to enter into resonance with the other person, to resonate with his feelings and become aware of his situation. The word empathy is a translation of the German word Einfühlung, which means, 'to feel in‘. Psychologist Edward Tichtener used the term for the first time in English at the beginning of the 20th century. Empathy happens spontaneously when we witness other people‘s situations and their emotions as manifested by their facial expressions, looks, the sound of their voices, and their behavior. Empathy conveys to us the nature and the intensity of their suffering. We may consider it as the catalyst that transforms altruistic love into compassion. There are different modalities of empathy, some are emotional, others cognitive.

Psychologist Daniel Batson, one of the most eminent contemporary specialists in altruism, distinguishes up to eight kinds of empathy (Batson, C.D. 2009). In order to be altruistically concerned by another person‘s situation, we have to begin by adopting their point of view. Philosopher Jean-Jacques Rousseau wrote, ― The rich person has only a little compassion for the poor because he [158] cannot imagine himself to be poor. The next step is to value others since it is not enough to merely imagine oneself in someone else‘s place or feel what they feel. Sympathetic joy consists of celebrating and rejoicing from the bottom of one‘s heart in the achievements and virtues of someone else, or in people who shower humanity with good deeds and whose beneficial projects have been successful.

Impartiality is another essential component of altruism. The wish that all beings be delivered from suffering must not depend on our personal biases or on the way others treat us. Impartiality is exemplified by the mindset of a compassionate physician who rejoices when others are in good health and who is concerned with the healing of all sick people, whomever they may be, without being influenced by moral judgments and personal preferences.

Biological altruism is inherited from evolution. It is based on parental care and is inherent to our nature and needs no instruction. But it is limited and partial since it depends on our ties of kinship or on the way others behaved towards us. It is extended to strangers with difficulty, and even more so to enemies. Conversely, extended altruism that is directed to all beings is free from such bias. However, for most of us, this is not instinctive and requires some instruction and training. Though it is based on biological altruism, it transcends its limits.

Momentary states of mind and durable dispositions

Psychologist Daniel Batson defines altruism as: ― a motivational state with the ultimate goal of increasing another‘s welfare. Altruism can be juxtaposed to egoism, which is a motivational state with the ultimate goal of increasing one‘s own welfare. (Batson 2011) For Batson, altruism is not so much a way of being as a motivational force oriented towards a goal that disappears once the goal has been achieved. He prefers to speak of altruism rather than altruists because the same person may have an altruistic motivation at one moment and an egotistic motivation at another moment or with regard to another person.

It seems appropriate, however, to speak also of altruistic or egotistic dispositions, depending on the mindsets habitually prevalent in a person in varying degrees between genuine altruism and blind egoism.

Such an inner disposition seems to go together with a particular world vision. According to Kristen Monroe of Irvin University, ― Altruists simply have a different way of seeing things. Where the rest of us see a stranger, altruists see a fellow human being. While many disparate factors may contribute to the existence and development of what I will identify as an altruistic perspective, it is the perspective itself that constitutes the heart of altruism. (Monroe 2009) [159] Fundamentally, to the extent that altruism permeates our mind, it will express itself as soon as it is faced with another‘s need, be it a need for help, care, or affection. As stated by philosopher Charles Taylor, ― Much contemporary moral philosophy ... has focused on what is right to do rather than on what is good to be (Taylor 1989) This way of seeing things puts altruism in a more vast perspective and allows the possibility of cultivating it as a way of being.

Altruism and happiness: A win-win or a lose-lose situation

According to Buddhism, there is a direct relationship between altruism and happiness. Joy and satisfaction are closely tied to love and affection. Misery, on the contrary, goes hand in hand with selfishness and hostility. Altruistic love and compassion are attuned to reality insofar as they recognize and appreciate the interdependent nature of all beings. This naturally brings more empathic concern for others (Batson 2011) through the recognition that we are all the same in wanting to avoid suffering (Dalai Lama 1999). As they are attuned to reality, altruistic love and compassion are ―functional‖. Someone who sees phenomena as interdependent cultivates compassion and then acts accordingly, will feel a sense of harmony. This is a win-win situation.

The research in neuroscience and psychology also indicates that loving- kindness and compassion are among the most positive of all positive emotions or mental states. As Barbara Fredrickson, a pioneer from the University of Maryland in the field of positive psychology, writes about altruistic love, which she defines as ―positive resonance:

I want to emphasize, though, that love isn‘t simply one of the many positive emotions that sweep through you from time to time. It‘s bigger than joy, amusement, gratitude, or hope. It has special status. I call it our supreme emotion. First, that‘s because any of the other positive emotions – joy, amusement, gratitude, hope, and so on – can be transformed into an instance of love when felt in close connection with another. Yet casting love as shared positive emotion doesn‘t go nearly far enough.Second, whereas all positive emotions provide benefits – each, after all, broadens your mindset and builds your resourcefulness – the benefits of love run far deeper, perhaps exponentially so. Love is our supreme emotion that makes us come most fully alive and feel most fully human. It is perhaps the most essential emotional experience for thriving and health. (Fredrickson 2013)

At the opposite end, a selfish individual who has little regard for another‘s welfare and is primarily, or even exclusively, concerned with the pursuit of his [160] personal interest as an ultimate goal will consider others as a tool to achieving his own wellbeing. The problem is that such a person will usually fail to achieve both his own happiness and that of others.
Psychologist Michael Dambrun and myself (Dambrun and Ricard 2011) have argued that lasting happiness is associated with selflessness rather than self-centeredness. The scientific literature reviewed by these two authors indicates that highly self-centered people are more focused on enjoying hedonic pleasure than on cultivating eudemonic happiness and that, consequently, only a fluctuating well-being will result. Conversely, people who reduce their self-centered tendencies seem to enjoy the quality of a life filled with inner peace, fulfillment, and serenity, as opposed to a life filled with inner conflicts and afflictions.

There are two reasons for this. First, on an emotional level, selfishness is not a pleasant state of mind. By attempting to build happiness within the bubble of self-centeredness while considering that the happiness of others is not our job, we usually make ourselves miserable while making everyone around us miserable as well. Being constantly centered on yourself leads to endless ruminations and hopes and fears that are detrimental to well-being. As the French writer Romain Rolland said, ― If the only goal of your life is selfish happiness, your life will soon be without any goal. (Rolland 1952) It is a lose-lose situation.

Second, such an attempt - ― I will build up my happiness on my side; take care of yours: it‘s none of my business - is by nature dysfunctional since it assumes that the world is made of separate entities which is not the case. All beings and phenomena are by nature interdependent. This was also the view expressed by Einstein:  

A human being is part of a whole, called by us the Universe, a part limited in time and space. He experiences himself, his thoughts and feelings, as something separated from the rest - a kind of optical delusion of his consciousness. The striving to free oneself from this delusion is in the one issue of true religion. Not to nourish the delusion but to try to overcome it is the way to reach the attainable measure of peace of mind (Einstein 1950)

The two-fold accomplishment of the happiness of others and of one‟s own

People often claim that to be truly altruistic an action must imply a ― sacrifice for oneself. One should keep in mind however that what seems like a sacrifice for someone else, might be experienced as deep fulfillment for the person who accomplishes the action. Someone, for instance, who forsakes a promising career to devote himself to a humanitarian cause, might be seen as doing a ― sacrifice by friends and relatives who value a high-flung career above everything else. But for the person who is devoting himself to efficiently removing suffering, [161] activities are much more meaningful and fulfilling than the career he was promised. Such activities actually bring about the two-fold accomplishment of others‘ happiness and one‘s own happiness. It is a win-win situation. An altruistic act is not less altruistic because it also brought happiness as a bonus to the person who performed that deed. As long as the initial motivation and ultimate goal were to benefit others, it can be deemed to be an altruistic action.

Conversely, selfishness cannot be considered to be an efficient way to love oneself since it is one of the main causes of misery. This is a fundamental point according to Buddhist psychology, which is also expressed by psychologist Erich Fromm:

The love of my own self is inseparably connected with the love of any other-self. Selfishness and self-love, far from being identical, are actually opposites. The selfish person does not love himself too much but too little; in fact he hates himself. (Fromm 1947)

Generosity, the natural outcome of altruism, has also been found to accomplish the twofold benefit of others and oneself. Social psychologist Elizabeth Dunn of the University of British Columbia (UBC) in Vancouver, Canada, found that people who reported spending money on others were happier than those who spend all their resources on themselves. (Dunn, 2008 and 2011, Aknin, 2009).

The science of altruism and happiness

Many studies have highlighted the link that exists between altruism and well-being (Myers 2000; Diener & Seligman 2002). Research done by Martin Seligman, in particular, indicates that the joy of undertaking an act of disinterested kindness provides profound satisfaction (Seligman 2002). In this study, some students were given a sum of money and asked to go out and have fun for a few days, while others were told to use this money to help people in need (elderly, sick patients, etc.) All were asked to write a report for the next class. The study has shown that the satisfactions triggered by a pleasant activity, such as going out with friends, seeing a movie, or enjoying a banana split, were largely eclipsed by those derived from performing an act of kindness. When the act was spontaneous and drew on humane qualities, the entire day was improved; the subjects noticed that they were better listeners that day, more friendly, and more appreciated by others.

From a social perspective, altruism is obviously beneficial for others, but there are also benefits for the person expressing them. Several works support the idea that pro-social behavior affects health in a positive way. Various studies (Caprara 2005; Dovidio 2001; Post 2005) have found that generosity toward others is associated with higher levels of well-being. According to McCullough (2002) and Watkins (2003), grateful thinking improves positive affects and well-being. Participating in volunteer activities, membership in non-profit [162] organizations, and the ability to use one‘s skills to help others goes hand in hand with a high level of wellbeing.

Psychologist Allen Luks assessed the subjective wellbeing of thousands of Americans who regularly participated in volunteer activities. He found that they were generally in better health than others of the same age, they showed more enthusiasm and energy, and they were less prone to depression than the average population (Luks A. & Payne 1991and Post 2011) Adolescents who spend part of their time to volunteering are less likely to be involved with substance abuse, teenage pregnancy, and school dropout (Johnston Nicholson 2004). People who are going through periods of depression after tragic events such as loss of a spouse recover faster if they spend time helping others (Brown 2008).

Having reviewed six investigations that have taken into account more carefully other factors that could influence the results, Doug Oman concluded that volunteering not only enhances the quality of life of older people, but also its duration (Oman 2007).

Training altruistic happiness

The collaborative research involving neuroscientists and Buddhist contemplatives began in earnest fifteen years ago. These studies led to numerous publications that have established the credibility of research on meditation and on achieving emotional balance, an area that had not been taken seriously until then. In the words of the American neuroscientist Richard Davidson, ―the research on meditation demonstrates that the brain is capable of being trained and physically modified in ways few people can imagine (Kaufman,2005).

While meditating on loving-kindness and compassion (Lutz 2004), most experienced meditators showed a dramatic increase in the high-frequency brain activity called gamma waves in areas of the brain related with positive emotions and with empathy.

Twenty years ago it was almost universally accepted by neuroscientists that the brain contained all its neurons at birth, and that their number did not change with experience and time. We now know that new neurons are produced up until the moment of death and we speak of neuroplasticity, a term which takes into account the fact that the brain changes continuously in relation to our experience. For example, a particular training such as learning a musical instrument or a sport can bring about a profound change. Mindfulness, altruism, compassion, and other basic human qualities that contribute to [163] happiness can be cultivated through meditation in the same way, and we can acquire the 'know-how' to enable us to do this.

In Buddhism, to meditate means 'to get used to‘ or 'to cultivate‘. Meditation consists of getting used to a new way of being, of perceiving the world and mastering our thoughts. Meditation is a matter not of theory, but of practice. Cultivating loving-kindness and compassion is, according to Buddhism, central to happiness (Ricard 2010).

Barbara Fredrickson tested the effects of learning on self-generated positive emotions through loving kindness meditation. She tested 140 volunteers with no previous experience in meditation and randomly assigned 70 of them to practice loving-kindness meditation 30 minutes a day for seven weeks. She compared the results with the 70 other subjects who did not follow the training. The results were abundantly clear. In her words, ―When people, completely new to meditation, learned to quiet their minds and expand their capacity for love and kindness, they transformed themselves from the inside out. They experienced more love, more engagement, more serenity, more joy, more amusement – more of every positive emotion we measured. And though they typically meditated alone, their biggest boosts in positive emotions came when interacting with others. Their lives spiraled upwards. The kindheartedness they learned to stoke during their meditation practice warmed their connections with others (Fredrickson 2008). Later experiments confirmed that it was these connections that most affected their bodies, making them healthier (Kok 2010).

At Emory University, Atlanta, a team led by Chuck Raison has shown that short-term meditation on loving-kindness reinforces the immune system and diminishes the inflammatory response (Pace 2009).

The contrary forces

Selfishness, excessive self-centeredness, exacerbated individualism, and narcissism are obvious contrary forces to altruism and, consequently, to happiness. Individualism has a constructive aspect that has led to the notion that every person deserves respect and cannot be used as a mere instrument for the interests of others. This concept has led to the recognition of basic human rights and is allowing people to make choices about how they want to spend their lives without being constrained by authoritarian norms imposed upon them.

However, there is another, more harmful aspect of individualism that has increased significantly in the last few generations. It is a form of egocentricity that aims at distancing oneself from any sense of responsibility towards others [164] and encourages the individual to simply follow his desires and inclinations without much consideration for society. Such individualism has led, particularly in highly developed countries, to negative effects described by psychologist Jean Twenge in The Narcissism Epidemic (Twenge 2011). Twenge‘s research has shown that: ―Understanding the narcissism epidemic is important because its long-term consequences are destructive to society According to the Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM-IV-TR, 2000) one of the characteristics of narcissism is a lack of empathy.
Individualism and a selfish lack of concern for others and for global issues such as the environment, is a characteristic that American psychologist Tim Kasser found among people who give priority to external values and consumerism. Kasser and his colleague at the University of Rochester discovered through studies spanning two decades and within a representative sample of the population that individuals who focused their lives on wealth, image, social status, and other materialistic values promoted by the consumer society are less satisfied with their lives (Kasser 2003 and 2008).

Consumerist beliefs are not only associated with higher levels of suffering, but also with lower levels of happiness. They report fewer pleasant emotions such as being happy, pleased, joyous, and content. They are more depressed and anxious and prone to headaches and stomach pains. They drink more alcohol and smoke more cigarettes.

They prefer competition to cooperation, contribute less to the public interest as they are primarily focused on themselves, and they give little attention to environmental issues. Their social ties are weakened and they have fewer true friends. They show less empathy and compassion towards those who suffer, are manipulative, and tend to exploit others according to their interests. Even their health is poorer than that of the rest of the population. They are also less interested in solutions that require an overview of problems and a spirit of cooperation.

Similar results have been reported in North America, Europe, and Asia. To summarize, this body of research suggests that a set of beliefs central to consumerism seems to promote, rather than to reduce, personal suffering and works against healthy, compassionate human interactions. For example, the cross-cultural research of Schwartz (1992) reveals that to the extent people value goals such as wealth and status, they tend to care less about values such as 'protecting the environment,‘ 'attaining unity with nature,‘ and having 'a world of beauty.‘
[165]

Conclusion

In this preliminary essay, we have attempted to show that altruism, and its main components, loving-kindness, empathic concern, and compassion, not only promote other‘s happiness, but also is an important cause for flourishing for those who cultivate these values in their minds and express them in their behavior. Altruism, thus, appears to be the most direct way to accomplish both the happiness of others and one‘s own. This concept is not only central to Buddhist philosophy and practice, but has been corroborated in recent years by extensive research in psychology and neurosciences. It, therefore, seems that promoting altruism and compassion not only in one‘s personal life, but also within education and in society at large is a much needed and direct way to address the challenges of the modern world. [166]

Psicologia - Psicologia positiva
Temas gerais - Temas gerais, 
11/2/2020 2:36:49 PM | Por Andréa Perez Corrêa
O que é Psicologia positiva?

Falar sobre um campo científico, sem destacar o devido valor que os questionamentos de mentes brilhantes e reflexivas produzem, é simplesmente não falar sobre ciência. A inquie­tação, o incômodo e o descompasso que pesquisadores brilhantes devolvem diante da observação da realidade à sua volta é que dá origem ao desenvolvimento do conhecimento humano ao longo da história da Humanidade. Abrir esta parte da obra com a pergunta de Donald Clifton, na minha concepção, revela o âmago do estudo da Psicologia Positiva, à medida que busca o entendimento dos indivíduos em sua totalidade, res­gatando o olhar sobre nossos aspectos positivos, menos destacados ao longo do tempo, diante de nosso instinto de sobrevivência, que reservou a indiscutível necessidade de relevância de aspectos e emoções negativas.

Partindo dessa premissa, fica mais fácil entender a importância e a premência que o estudo científico da felicidade e das qualidades humanas positivas apresenta. Isso porque estamos vivendo diante de um momen­to social, não apenas no Brasil - que quase se desfigura diante de tantas impropriedades, violência, crise política, desonestidade e desequilíbrio socioeconômico - mas também em muitos outros lugares do mundo, as­solado por conflitos civis desumanos, por desrespeito às circunstâncias de gênero, sexo, idade, religião, condição econômica, raça, entre outros, por violência desmedida, pela fome e pela incompreensão sobre a essencialidade de um olhar sobre o desenvolvimento sustentável para as próximas gerações.

Desde que conheci a Psicologia Positiva, sempre percebi, ou, acima de tudo, senti que, com base em seus estudos científicos sólidos, seria possível favorecer: a compreensão de que podemos produzir mudanças sociais positivas; o desenvolvimento individual a partir do [27] "autoconhecimento para colocá-la em prática e o máximo que ele conseguia chegar próximo era um tema sobre "prevenção". (SELIGMAN, 2009).

Foi quando, num momento com sua filha Nikki de cinco anos, chegou mais próximo da visão do que seria a sua missão e do tema na gestão da APA. E entre vários questionamentos que o envolveram, destaca-se: "Pode haver uma ciência psicológica que se concentre nas melhores coisas da vida?" (SELIGMAN, 2009).

Impulsionado por desvendar a resposta a essa questão, Seligman, num plano audacioso, que emergiu em poucos anos mundialmente, começou a reunir estudiosos que estavam trabalhando com o estudo de forças hu­manas, mais que focando exclusivamente em problemas humanos, o que gerou a atenção de muitos outros pesquisadores. (DIENER, 2011).
Desde essa época, Seligman dedicou intensamente seus esforços para promover conferências e campanhas de financiamento para pesquisas e para as aplicações da Psicologia Positiva, cuja espinha dorsal seria: ser uma boa ciência. (SNYDER & LOPEZ, 2009).

Apesar de Seligman ser considerado o pai da Psicologia Positiva, quem inicialmente cunhou a expressão Psicologia Positiva foi Abraham Maslow, usando-a num título de um dos capítulos de seu livro "Motivação e Perso­nalidade", em 1954. (SNYDER & LOPEZ, 2009; LOPEZ & GALLAGHER, 2011). Contudo, como já afirmado, é a Seligman que é dada a notoriedade sobre o início do uso do termo.

E essa origem da Psicologia Positiva, com ênfase em aspectos positi­vos da vida humana, reflete-se em estudos desenvolvidos por humanis­tas como Maslow, mas que acabaram por tratar as temáticas sem o rigor científico necessário para que a academia reconhecesse a pertinência dos resultados do uso de suas temáticas. (CSIKSZENTMIHALYI & SELIGMAN, 2000).

No ano 2000, em continuidade aos esforços de Seligman, aos quais Snyder e Lopez (2009) afirmam que devemos ter uma dívida de gratidão, é publicada a edição "Special Issue on Happiness, Excellence, and Optimal [29] Human Functioning - da American Psychologist", revista da American Psy­chology Association, tendo como editores convidados Martin E. P. Seligman e Mihaly Csikszentmihalyi e como tema a Psicologia Positiva.

E é nessa edição exemplar que a Psicologia Positiva se configura no campo acadêmico, sendo apresentada com sua definição, proposta, pila­res, situando-a no contexto da Psicologia onde se deu o seu surgimento, o que será apresentado no item a seguir.

Definindo a Psicologia Positiva

Conceituar a Psicologia Positiva, necessariamente, perpassa por um longo caminho e, neste momento, a intenção é oferecer uma exposição clara sobre as missões da ciência da Psicologia, para então compreender como surge esse estudo.

A Psicologia, anteriormente à Segunda Guerra Mundial, tinha três mis­sões distintas, a saber:

  • curar doenças mentais;
  • tornar a vida das pessoas mais produtiva e cheia de satisfação; e
  • identificar e desenvolver talentos. (CSIKSZENTMIHALYI & SELIGMAN, 2000) .

Após a Segunda Guerra Mundial, dois eventos mudaram o cenário da Psicologia: a fundação, em 1946, da Veterans Administration, levando inú­meros psicólogos a se dedicarem ao tratamento de doenças mentais; e a fundação, em 1947, do National Institute of Mental Health, quando os aca­dêmicos consideraram que poderiam obter recursos para suas pesquisas em doenças mentais. (SELIGMAN, 1998; CSIKSZENTMIHALYI & SELIGMAN, 2000).

Essa concentração trouxe um avanço grandioso na reparação dos da­nos das doenças psíquicas e para o entendimento das terapias dos trans­tornos mentais, mas as duas outras missões da Psicologia foram pratica­mente esquecidas (CSIKSZENTMIHALYI & SELIGMAN, 2000) e aspectos sobre o que está certo nas pessoas e do que favorece uma vida boa foram absolutamente negligenciados. (PETERSON, 2006).

Nesse contexto, a Psicologia Positiva surge tendo como intenção [30] coloca ao lado desses três pilares de pesquisa e aplicabilidade apontados como base da Psicologia Positiva, de acordo com o que indicam Solano e Solano e Perugini (2010; 2014), no First World Congress on Positive Psycho­logy em 2009, Seligman propôs em sua apresentação um quarto pilar da Psicologia Positiva: RELACIONAMENTOS POSITIVOS, com origem nas pes­quisas sobre o bem-estar psicológico das pessoas extremamente sociáveis como as mais felizes. Contudo esse pilar apresenta raríssimos estudos e indicações e não está tão sistematizado como os pilares preliminares (SO­LANO & PERUGINI, 2010; 2014).

Como definição, Gable e Haidt (2005, p. 104) afirmam que a Psicolo­gia Positiva é "o estudo das condições e processos que contribuem para o florescimento e o funcionamento ótimo das pessoas, dos grupos e das instituições".

De acordo com o site Authentic Happiness (2013), a Psicologia Positiva é um ramo da Psicologia que foca o estudo empírico de certas coisas, por exemplo: emoções positivas, forças de caráter e instituições saudáveis e é definida como: "O estudo científico das forças e virtudes que permitem aos indivíduos e às comunidades prosperarem".

Acrescentam ainda que:

O campo se fundamenta na crença de que as pessoas querem conduzir uma vida significativa e de realizações, para cultivar o que há de melhor nelas mesmas e para elevar suas experiências de amor, trabalho e diversão. (AUTHENTIC HAPPINESS, 2013).

De forma a concluir este item, considerando que a amplitude da Psi­cologia Positiva extrapola, já no momento, as fronteiras da ciência da Psi­cologia, em função de sua transdisciplinaridade, e inspirada por Linley e colegas (2009), que indicam que restringir a Psicologia Positiva apenas à Psicologia seria restringir a condição de poder mudar o mundo e a vida das pessoas, apresento, a seguir, uma nova definição reformulada da apresen­tada por Corrêa (2013): [32] 

"A Psicologia Positiva é a ciência da felicidade que contempla o estudo das características, aspectos e emoções humanas, com foco em teoria, medição, intervenções e práticas que potencializem, no âmbito individual e coletivo, o bem-estar."

A Psicologia Positiva e sua contribuição nas intervenções de prevenção e de potencialização

Neste item, o leitor será apresentado a duas significativas contribui­ções da Psicologia Positiva, Tratando-se o foco da presente obra a Psicologia Clínica, é essencial destacar as contribuições da Psicologia Positiva na abordagem sobre prevenção de potencialização de Snyder e Lopez (2009).

Para os autores, as prevenções, que afirmam ser "interromper o que é ruim" (SYNDER & LOPEZ, 2009, p. 313), envolvem esforços para prevenir que coisas ruins aconteçam posteriormente. Essas são divididas em:

PREVENÇÃO PRIMÁRIA - "Interromper o que é ruim antes que aconteça" (SNYDER & LOPEZ, 2009, p. 303):
- ações que reduzem ou eliminam os problemas físicos ou psicológi­cos antes que aconteçam. Essas prevenções podem acontecer em nível governamental por meio de campanhas, a exemplo de campanhas de vaci­nação; (SNYDER & LOPEZ, 2009), e

PREVENÇÃO SECUNDÁRIA - "Consertar o Problema" (SNYDER & LO­ PEZ, 2009, p. 303):
- ações que reduzem o problema após já ter surgido, sendo chamado de Psicoterapia. (SNYDER & LOPEZ, 2009)
No campo das prevenções secundárias, temos as abordagens da Psi­cologia Positiva, tais como a teoria do otimismo apreendido de Seligman, uma estrutura de retreinamento de atribuições para desenvolver uma abordagem terapêutica à depressão e a teoria da esperança que se propõe [33] a ensinar a buscar objetivos na vida atual, especialmente quando se encon­tram obstáculos. (SNYDER & LOPEZ, 2009).

De acordo com os autores, a categoria das potencializações, que se­riam "produzir mais coisas boas" (SNYDER & LOPEZ, 2009, p. 303), significa potencializar tudo que as pessoas querem de suas vidas e podem ser divi­didas em:

POTENCIALIZAÇÃO PRIMÁRIA - "Tornar a Vida Boa" (SNYDER & LO­ PEZ, 2009, p. 324):
- ações que geram um bom funcionamento e uma boa satisfação; é o esforço para estabelecer funcionamento e satisfação ótimos; (SNYDER & LOPEZ, 2009), e

POTENCIAUZAÇÃO SECUNDÁRIA - "Fazer da Vida o Melhor Possível" (SNYDER & LOPEZ, 2009, p. 330);
- ações que partem do que já é um funcionamento e satisfação bons para se chegar a experiências máximas. (SNYDER & LOPEZ, 2009).

Constata-se, a partir das prevenções ou potencializações, o enriqueci­mento das intervenções e propostas que podem ser aplicadas para o favorecimento do bem-estar na vida das pessoas. Atualmente, com a Psicologia Positiva, se pode identificar o que gera maior felicidade nas pessoas, a fim de poder colaborar com clientes, no sentido de intensificar as atividades que lhes favoreçam a cura e o bem viver.

Já como dizia Martin Seligman (2002) em seu capítulo Positive Psycho­logy, Positive Prevention, and Positive Therapy: "Como um efeito colateral do estudo dos traços humanos positivos, a ciência vai aprender como tra­tar melhor e prevenir doenças mentais, assim como as físicas" (p. 67) e "Como um efeito principal, nós aprenderemos como construir as qualida­des que ajudam os indivíduos e as comunidades, não apenas a suportar e sobreviver, mas também a florescer" (p. 67). [34]

Só teoria não basta, é preciso aplicar

A prática da Psicologia Positiva é sobre facilitar a boa vida ou sobre possibilitar que as pessoas sejam o seu melhor. É uma abordagem de um determinado domínio de investigação. (LINLEY et ai, 2009).

A Psicologia Positiva tem aplicações que abrangem quase todas as áreas da Psicologia aplicada e outras. Além do alívio da psicopatologia, a Psicologia Positiva aplicada também tem visto o desenvolvimento de feli­cidade por meio do aumento de intervenções específicas. (LINLEY et ai, 2009).

Transitando em áreas e abordagens tais como: Jornalismo, Psiquiatria, Educação, Coaching, organizações, tecnologia, Economia, políticas públi­cas, Psicologia, recursos humanos, mentoria, Medicina, entre tantas ou­tras, a Psicologia Positiva renova-se com resultados de inúmeras pesquisas, o que é extremamente construtivo e favorecedor a toda a sociedade, pois permite atalhos para atingir de forma positiva e significativa a vida de mais pessoas.

Complementando essas indicações iniciais, Warren e Donaldson (2017) destacam a orientação da Psicologia Positiva se estendendo longe da Psi­cologia, em campos díspares como: Sociologia, Filosofia, Ciências Políticas, Engenharia, legislação, criminalidade, Forças Armadas, Oncologia, Farma­cologia, Epidemiologia, religião. Antropologia, Lingüística, design, trabalho social, sem mencionar todos.

Quem, pela primeira vez, depara-se com essa temática da Psicologia Positiva, talvez como você, leitor, espanta-se e com razão diante de tama­nha dimensão de aplicação. E isso considerando um estudo científico que acabou de sair da "maioridade". O que quer dizer isso? Quer dizer que suas temáticas permeiam a nossa vida, quem somos, o que desejamos, o que vislumbramos de significado e sentido em nossa existência, o que fazemos e, acima de tudo, o nosso direito de sermos todos felizes, independente­mente de qualquer aspecto que nos iguale ou diferencie uns dos outros.

Joseph (2014) afirma que, por ter a Psicologia Positiva capturado o interesse sobre o que a Psicologia pode oferecer tanto academicamente [35] como profissionalmente, isso promoveu a atenção sobre as aplicações no "mundo real". Para ele: "Ao contrário de muitas áreas tradicionais da Psico­logia, a Psicologia Positiva tem aplicação clara e direta na vida cotidiana". (JOSEPH, 2015, p. 2).

Apesar de sua origem nos Estados Unidos, vem crescendo e se popu­larizando em trabalhos desenvolvidos por acadêmicos e profissionais em países como Austrália, Canadá, França, Alemanha, Israel, Suécia, Suíça e Reino Unido. (JOSEPH, 2014).

Conforme aponta Corrêa (2016), no segmento de clínica, aconselha­mento, terapia da saúde e Psicoterapia existem práticas com uso da Psico­logia Positiva, a saber: (LINLEY et a i, 2009)

  • Well-being Therapy: é uma Psicoterapia de curto prazo com aproxi­madamente oito sessões de 30 a 50 minutos cada uma, que enfatiza a auto-observação. (LINLEY et a i, 2009).
  • Mindfulness-Based Cognitive Therapy: baseada na abordagem da prática dos mindfulness em função dos benefícios que promove e há cres­cente evidência para apoiar a eficácia dessa abordagem. (LINLEY et ai, 2009).
  • Quality of Life Therapy: fornece uma coleção de técnicas terapêuti­cas cognitivas que o terapeuta pode usar para ajudar os clientes a move­rem-se em direção a uma felicidade maior. Os clientes são encorajados a mudar suas circunstâncias, pensar diferentemente, estabelecer novos pa­drões, mudar suas prioridades sobre o que é importante na vida e pensar sobre outras áreas da vida. (LINLEY et ai, 2009).
  • Positive Psycotherapy: utiliza os principais dogmas e princípio da Psicologia Positiva. Apoia-se na premissa central de que a construção de emoções positivas, forças e significado são eficientes no tratamento psicopatológico. Trabalho preliminar indicou que é ao menos tão eficaz para a depressão como um tratamento farmacológico tradicional. (LINLEY et ai, 2009).

Um ponto interessante ao leitor é destacar que a Psicologia Positiva tem aplicação tanto na Psicoterapia como no Coaching, tendo sido [36] consi derado este último como o processo mais bem casado com a proposta da Psicologia Positiva. (SELIGMAN, 2011).

Dessa forma, destaca-se a prática do Life Coaching com uso da Psico­logia Positiva. Segundo Linley et al. (2009), a área que a Psicologia Positiva achou como uma casa pronta e bem-vinda é o Coaching, destacando algu­mas razões: ambos são explicitamente preocupados com o aprimoramento do bem-estar e da performance; ambos implicitamente desafiaram os pro­fissionais a questionar as premissas fundamentais que detêm sobre a na­tureza humana; a Psicologia Positiva provocou um interesse na Psicologia das forças humanas, uma área que proporciona potencial significativo para coaches em aproveitar o potencial dos clientes a serviço de suas metas e desejos e houve muitas cobranças para uma base de evidências para sus­tentar o Coaching e, nesse sentido, a Psicologia Positiva está bem colocada para fornecer apoio às intervenções do Coaching. (LINLEY et a i, 2009).

Ratificando a multidisciplinaridade da aplicação da Psicologia Positiva, deve-se dar importante destaque a quem é delegável o uso dos estudos e intervenções da Psicologia Positiva. Segundo Linley et al. (2009), a Psico­logia Positiva não é restrita nem deve vir a ser apenas para a Psicologia. Tratando-se de uma abordagem de questões relacionadas ao ser humano e ao bem viver, transpassa por várias outras instâncias.

E isso significa também que as aplicações da Psicologia Positiva não devem restringir-se apenas às esferas acadêmicas ou ficar nas mãos dos profissionais da Psicologia. Preferencialmente, os avanços progressivos das suas aplicações virão por meio da parceria e da colaboração com áreas nas quais possamos ter as maiores diferenças e atingir um grande número de vidas, no trabalho, na educação, por meio da saúde, tanto quanto através da política, e das abordagens populacionais. (LINLEY et al., 2009).

Para concluir este item, destaco o que afirma Corrêa (2013):

Com certeza, muitos são os avanços, integrações e parcerias pelas quais as aplicações da Psicologia Positiva ainda passarão no futuro, conside­rando ainda o alicerçamento necessário de sua maturidade, mas é im­portante que cada pessoa, acadêmica ou não, profissional ou não, da área, mas conhecedora dos benefícios que as intervenções da Psicologia [37] Positiva podem produzir, faça a sua parte, não apenas aplicando-se es­sas intervenções, mas, acima de tudo, vivendo congruentemente com esses princípios, de forma a envolver positivamente nessas práticas ou­tras pessoas pelo mundo afora e gerando benefícios para toda a huma­nidade. (CORRÊA, 2013, p. 60).

Concluída essa exposição sobre a aplicação da Psicologia Positiva de forma breve, destacam-se a seguir as principais teorias produzidas no cam­po, que permitirão uma compreensão das temáticas abordadas pelos au­tores em seus capítulos.

Teorias e estudos principais da Psicologia Positiva

A escolha pelas teorias que serão apresentadas neste item justifica-se pela disseminação que essas concepções apresentam em inúmeros estu­dos e desdobramentos, inclusive em outras ciências, em especial as que se enquadram de forma ajustada à proposta do pilar das instituições posi­tivas, cujas teorias e estudos bebem da fonte dos outros dois pilares, das emoções positivas e das qualidades humanas positivas.

Teoria Ampliar-e-Construir

Publicado em 2009, o livro "Positividade", de Fredrickson, apresenta a Teoria Ampliar-e-Construir ao público, em geral, abordando a temática das emoções positivas. Nesse momento, a teoria recebe uma ampla divul­gação, mas, no contexto acadêmico, porém, para chegar nesse ponto, Fre­drickson já vinha há muitos anos se dedicando aos estudos das emoções positivas, inclusive com diversos artigos publicados, que trazem muitas informações e dados sobre pesquisas, bem como a própria teoria ampliar-e-construir, criada inicialmente por Fredrickson no final de 1998. (FREDRI­CKSON, 2009).

Conforme resume Corrêa (2016), a positividade, segundo Fredrickson (2009), apresenta algumas características importantes de serem [38] destacadas. A positividade é boa; é a centelha de sentir-se bem que desperta a motivação para mudar; ela muda a forma como a sua mente trabalha: ela muda o conteúdo de sua mente trocando pensamentos maus por bons e ainda aumenta o raio de alcance ou os limites da sua mente; a positivi­dade transforma o seu futuro: enquanto as suas emoções se acumulam, elas constroem reservas; a positividade coloca um freio na negatividade: funciona como um botão de "reset" para a negatividade; a positividade obedece a um ponto de equilíbrio: com a sucessão de cada momento bom, você sente-se para cima, para fora, não para baixo e para dentro; você pode aumentar a sua positividade: você pode pender a sua balança e liber­tar seu potencial para florescer.

Fredrickson (2009) afirma que, devido a sua transitoriedade, é preciso gerar sempre mais positividade, destacando a importância do que chama de quociente de positividade, definido como: "O seu quociente de positi­vidade é a frequência de felicidade em um dado espaço de tempo dividida pela frequência de negatividade durante o mesmo espaço de tempo", (p. 23). Partindo de um ponto de equilíbrio que cada pessoa possui, Fredrick­son (2009) aborda as espirais: a espiral descendente, quando a negativida­de puxa o quociente para baixo e do outro, o defendido em sua teoria, a espiral ascendente, quando decolamos numa espiral energizada pela po­sitividade.

Mesmo sendo imensamente respeitado o trabalho de Fredrickson e de sua argumentação teórica sobre as emoções positivas, como aponta­do por ícones como Daniel Gilbert, Daniel Goleman e Martin Seligman, por exemplo (BARLETT, 2013), sua concepção acabou sofrendo críticas (BROWN, SOKAL; FRIEDMAN, 2013; BROWN, SOKAL & FRIEDMAN (2014), consideradas pertinentes, gerando a exclusão - digamos assim, matemá­tica - de um aspecto de sua teoria, o quociente de positividade de 3 para 1, o que quer dizer: para cada emoção negativa que aconteça ou que você viva em sua vida, produza ao menos três emoções positivas sinceras. É esse o quociente de equilíbrio que descobriu ser o ponto de equilíbrio e que demonstra se as pessoas murcham (espirais descendentes) ou florescem (espirais ascendentes). [39]

Fredrickson (2013) mantém sua concepção sobre os benefícios de mais emoções positivas e menos emoções negativas, mesmo descartando a proporção original da razão, e estudos estão sendo realizados para per­mitir que seja identificado o quociente de positividade.

Não se limitando seu trabalho apenas ao quociente de positividade, suas descobertas são amplamente aplicadas em diversos contextos.

Fredrickson (2009) propôs que, ao contrário das emoções negativas que limitam a ideia de ações possíveis, as emoções positivas ampliam o julgamento sobre elas, abrindo nossa consciência para uma ampla gama de pensamentos e ações, surgindo assim o que ela chama de primeira ver­dade: "a positividade nos abre", (p.28). Concluiu que as emoções positivas e negativas eram importantes em momentos diferentes para os nossos an­tepassados. As atitudes oriundas das emoções negativas eram importantes nas situações ameaçadoras à sobrevivência e as atitudes inovadoras e cria­tivas das emoções positivas eram importantes em longo prazo, por cons­truir recursos, encorajando o desenvolvimento da versatilidade, habilida­des e características úteis, funcionando esses como o que a autora chama de reservas. E aí surge a segunda verdade: "a positividade nos transforma para melhor", (p.31). Com esses pressupostos define-se a teoria ampliar- -e-construir de Fredrickson (2009).

Firmada a concepção da teoria sobre a positividade, Fredrickson (2009) discorre sobre as dez formas de positividade: alegria, gratidão, se­renidade, interesse, esperança, orgulho, diversão, inspiração, admiração e amor, tendo sido identificadas para a abordagem em função da quanti­dade de pesquisas sobre cada uma delas. (FREDRICKSON, 2009).
É importante destacar que é bastante relevante a teoria ampliar-e-construir de Fredrickson para o campo da Psicologia Positiva, podendo afirmar que se trata de uma concepção de imensa contribuição para des­dobramento de novos estudos, conceitos, pesquisas e teorias. Isso é per­ceptível claramente nas 11.900 indicações somente do Google Acadêmico que mencionam a temática, ao lado de 61.500 links na plataforma Google em 2017. [40]

A Ciência da Felicidade

Em 2007, a Teoria A Ciência da Felicidade foi divulgada ao público em geral pelo livro "A Ciência da Felicidade - Como atingir a felicidade real e duradoura", de Sonja Lyubomirsky. Contudo, os estudos a respeito dos aspectos em torno dessa teoria já vinham sendo feitos ao longo de vários anos, não apenas por Lyubomirsky, como também por outros estudiosos.
Apesar de constar também no livro publicado em 2007, já em 2005, no artigo Pursuing Happiness: The Architecture of Sustainable Change, Son­ja Lyubomirsky, Ken M. Sheldon e David Schkade identificaram os fatores mais importantes que determinam a felicidade, conforme ilustra a figura abaixo (LYUBOMIRSKY et a i, 2005; LYUBOMIRSKY, 2008).

Figura 10.1

A Teoria da Ciência da Felicidade está alicerçada, se assim podemos dizer, no que a autora chama de Solução dos 40%, como detalhado na ima­gem.

Segundo os autores, as circunstâncias variam nossos níveis de felicidade [41] em apenas 10% e o ponto decisivo, que se refere à nossa carga genética, definirá, num percentual de 50%, o quanto poderemos ser felizes ou não ao longo de nossas vidas. (LYUBOMIRSKY, 2008).

Lyubomirsky (2008) destaca como sendo o melhor é que se chegou à conclusão de que 40% de nossa felicidade está em nossas mãos, por meio da promoção de atividades intencionais que recaem em nosso comporta­mento, na nossa forma de agir e de pensar. (LYUBOMIRSKY, 2008).

No que tange às ações intencionais a serem produzidas com o percen­tual da Solução 40%, a partir de estudos e pesquisas com comportamentos de pessoas felizes, chegou-se à conclusão de que determinadas estratégias são comprovadamente eficazes para o aumento da felicidade para as pes­soas. (LYUBOMIRSKY & LAYOUS, 2013).

Merece destaque que a eficiência dessas estratégias pode variar de pessoa para pessoa e, por isso, torna-se essencial que cada um possa iden­tificar o que funciona melhor para elevar a sua felicidade, levando em con­sideração aqui que cada pessoa tem suas necessidades, interesses, valores, recursos e inclinações singulares que nos predispõem a nos empenharmos mais ou menos em determinadas estratégias de ação. Nesse sentido, um ponto que a autora coloca como uma exigência vital é fazer escolhas sen­satas na hora de formular um programa individual de felicidade. (LYUBO­ MIRSKY, 2008).

No contexto da Psicologia Clínica, foco desta obra, de igual forma, psicoterapeutas devem dar atenção significativamente à identificação de quais práticas geram resultados mais positivos para seus clientes, reser­vando grande atenção sobre o momento de substituição de alguma prática por outra que venha trazer mais melhoria de bem-estar ou remissão de sintomas.

Na proposta apresentada pela autora, a fim de dar início a uma es­tratégia de ações intencionais de sua teoria, Lyubomirsky (2008) apresen­ta como proposta alguns passos: Autoaplicação da Escala de Felicidade Positiva; Análise dos Pontos Possíveis de Ajustes de acordo com o perfil [42] da pessoa; Aplicação de Ajuste de Diagnóstico de Atividades às Pessoas; Questionário Oxford de Felicidade e Aplicação das Ações Intencionais, as quais são as seguintes, e que se relacionam de forma harmoniosa com as indicadas entre parênteses.

  1. Expressar gratidão (4 e 7)
  2. Cultivar o otimismo (9 e 7)
  3. Evitar cismar e fazer comparações sociais (6 e 10)
  4. Praticar gestos de cortesia (9 e 8)
  5. Cultivar as relações sociais (4 e 12)
  6. Desenvolver estratégias de superação de dificuldades (10 e 7)
  7. Aprender a perdoar (6 e 2)
  8. Aumentar as experiências de fluxo (flow12) (9 e 10)
  9. Saborear as alegrias da vida (8 e 10)
  10. Comprometer-se com seus objetivos (9 e 6)
  11. Praticar a religião e a espiritualidade (12 e 6)
  12. Cuidar do corpo e da alma (10 e 9)

Outro artigo com indicações favorecedoras para que psicoterapeutas possam ajustar de forma adequada as ações intencionais a seus clientes foi publicado em 2013, intitulado “How Do Simple Positive Activities Increase Well-being?" de autoria de Lyubomirsky e Layous, no qual são apresenta­ dos estudos e pesquisas recentes sobre a análise de condições ideais sob as quais as atividades intencionais positivas aumentam a felicidade e os mecanismos pelos quais funcionam. (LYUBOMIRSKY & LAYOUS, 2013)

O "Positive-Activity Model" (Modelo de Atividade Positiva), que tem como objetivo explicar como e porque realizar atividades positivas torna as pessoas mais felizes, é apresentado nesse artigo e se baseia em evidências teóricas e empíricas para descrever: uma visão global das características das atividades e das pessoas que tornam uma atividade positiva otimamen­te efetiva; e os mecanismos que fundamentam a melhoria do bem-estar [43] das atividades positivas. Além disso, em que medida que qualquer carac­terística de uma atividade positiva, que gera sucesso, depende da ligação entre a pessoa (exemplo: sua personalidade ou cultura) e as característi­cas da atividade (exemplo: dosagem ou suporte social; que representam ajuste pessoa-atividade). (LYUBOMIRSKY & LAYOUS, 2013). Acrescenta-se ainda que as características de atividades positivas (por exemplo, a dosa­gem e variedade) e da pessoa (por exemplo, de motivação e de esforço) influenciam o grau em que as atividades melhoram o bem-estar. Desta­ca-se ainda a identificação das condições em que as atividades positivas são mais eficazes e os processos pelos quais elas trabalham. Além disso, o modelo também revela lacunas na evidência empírica (por exemplo, sobre o papel do apoio social) e os resultados conflitantes (por exemplo, sobre o papel do próprio estado afetivo inicial) que esperam por novas pesquisas, e ainda pode ser estendido para prever a extensão da persistência dos que praticam atividades positivas para poder continuar a colher os benefícios. (LYUBOMIRSKY & LAYOUS, 2013).

Os autores afirmam também que, como os pesquisadores começam a entender o como, o quê, quando e o porquê das estratégias de aumento de felicidade, eles poderão fornecer conselhos com base empírica para os milhões de pessoas em diversos segmentos que anseiam por serem mais felizes. (LYUBOMIRSKY & LAYOUS, 2013).

Em consonância com a teoria de Lyubomirsky, outro artigo que traz contribuições aos psicoterapeutas é o "Positive Activities as Protective Fac­tors Against Mental Health Conditions", de Kristin Layous, Joseph Chancel­lor e Sonja Lyubomirsky, de 2014, onde os estudiosos propõem que ati­vidades positivas possam servir como fatores de proteção que atenuem fatores de risco, descrevendo exemplos de como elas podem mitigar dois fatores de risco, as ruminações e a solidão, e contrariar desencadeadores ambientais (ou seja, moderadores) que possam ampliá-los. E incluem ain­da a argumentação de que as atividades positivas podem ser ensinadas aos jovens para desenvolver padrões positivos de conceitos, pensamentos e comportamentos que podem vir a servir como fatores de proteção ao longo de suas vidas, além de proporem outras atividades que possam ser adequadas para certos indivíduos e fatores de risco específicos. [44]

Teoria Felicidade Autêntica

Divulgada por meio da publicação do livro "Felicidade Autêntica - Usan­do a Psicologia Positiva para a Realização Permanente" a teoria da Felici­dade Autêntica foi apresentada ao público no ano de 2002, por Martin E. P. Seligman. Toda a investigação nessa teoria concentra-se na felicidade que é feita por meio de três elementos: Emoções Positivas; Engajamento (flow); e Sentido. (SELIGMAN, 2002; SELIGMAN, 2011).

Como critérios para cada um dos três elementos, o autor destaca: es­colhemos cada elemento por eles mesmos e esses podem ser definidos e devidamente medidos.

O primeiro elemento, a emoção positiva, representa o que sentimos, a saber: prazer, entusiasmo, êxtase, calor, conforto e sensações afins. Uma vida conduzida com êxito acerca desse elemento é o que Seligman cha­ma de "vida agradável" (pleasant life). (SELIGMAN, 2011). Estão ligadas ao presente (prazeres físicos, prazeres maiores, como enlevo e conforto), ao passado (satisfação, contentamento, orgulho e serenidade) e ao futuro (otimismo, esperança, confiança e fé).

O segundo elemento, o engajamento, está ligado a uma posição de entrega: entregar-se completamente sem se dar conta do tempo transcor­rido, e ocorre quando se perde a consciência de si mesmo numa atividade envolvente. Seligman (2011) afirma que no engajamento é como se nos fundíssimos com o objeto. Destaca que, para esse engajamento, é essen­cial utilizarmos nossas forças pessoais. As pessoas que vivem com esse objetivo têm o que o autor chama de "vida engajada"(good life). (SELIG­ MAN, 2011).

O terceiro elemento, o sentido, significa que é essencial vivermos com sentido e propósito com vistas a pertencer e servir a algo maior que nós mesmos. Através de algumas instituições criadas pela humanidade pode-se vivenciar isso: a religião, o partido político, a família, movimento ecoló­gico, entre outros. (SELIGMAN, 2011). Nesse sentido, Seligman (2009) defi­ne a "vida significativa" (meaningful life), que considera como a "utilização [45] das suas forças e virtudes pessoais a serviço de algo maior". (SELIGMAN, 2009, p. 384).

Na Teoria Felicidade Autêntica, o tema é a felicidade, o objetivo da Psi­cologia Positiva é aumentar a quantidade de felicidade na vida das pessoas e do planeta e o padrão de mensuração é a satisfação com a vida que é fei­ta a partir de um relato subjetivo e, dessa forma, o seu objetivo é aumentar essa satisfação. (SELIGMAN, 2011).

Teoria do Bem-Estar

A Teoria do Bem-Estar foi divulgada no ano de 2011, com a publicação do livro "Florescer (Flourish) - Uma nova Compreensão sobre a Natureza da Felicidade e do Bem-Estar" de Martin E. P. Seligman. Diferentemente do tema felicidade, foco de sua primeira teoria, na Teoria do Bem-Estar o tema passou a ser o bem-estar (SELIGMAN, 2011) e esse é considerado um construto, sendo composto por diversos elementos, todos eles mensurá­veis. Cada um desses elementos é real e contribuem para o bem-estar, mas não o definem. (SELIGMAN, 2011). O autor utiliza a sigla PERMA, formada pelas iniciais dos nomes dos cinco elementos:

Figura 2

Segundo a Teoria do Bem-Estar, seus elementos, cada um deles, pre­cisam apresentar as seguintes propriedades: contribuição para a [46] formação do bem-estar; os indivíduos buscam o próprio elemento, e não apenas para obter algum dos outros quatro. (SELIGMAN, 2011).

Quanto aos elementos das emoções positivas, do engajamento e do sentido, Seligman (2011) não aponta diferenciações com reiação ao que apresenta na Teoria Felicidade Autêntica.

O quarto e novo elemento, a realização, que é buscada por ela própria, consiste em perseguir o sucesso, a vitória, a conquista e o domínio por eles mesmos, ainda que não gere emoção positiva, sentido ou relacionamentos positivos. Seligman (2011) menciona o termo "vida realizadora" na forma ampliada da realização.

O quinto e novo elemento, os relacionamentos, refere-se ao fato de que "as outras pessoas são o melhor antídoto para os momentos ruins da vida e a fórmula mais confiável de bons momentos". (SELIGMAN, 2011, p. 31).

Na Teoria do Bem-Estar, o tema é o bem-estar, o objetivo é aumentar o florescimento humano pelo aumento das emoções positivas, do enga­jamento, do sentido, dos relacionamentos positivos e das realizações. E o padrão de mensuração é de cada um dos elementos separadamente. (SELIGMAN, 2011).

Neste ponto, destaco que o entendimento preciso da Teoria do Bem-Estar pode possibilitar ao psicoterapeuta a identificação de rotas de florescimento humano e bem-estar de seus clientes, favorecendo a indica­ção e criação de estratégias e ações intencionais que mais sejam produti­vas à potencialização dos elementos que melhor representam a felicidade do cliente.

Flow

Na obra "Flow - The Psychology of Optimal Experience", Mihaly Csikszentmihalyi (1990) define a experiência ótima baseada no conceito de Flow como o estado no qual as pessoas estão envolvidas numa atividade em que nada parece importar; a experiência por ela mesma é tão agradável que as pessoas irão fazer isso mesmo a qualquer custo pelo simples fato de fazer isso. (CSIKSZENTMIHALYI, 1990). [47]

Segundo o autor, o nosso cotidiano é formado por atividades que rea­lizamos ao longo do dia, e que absorvem toda a nossa energia psíquica, as quais divide em três categorias:

  • Atividades Produtivas: a primeira e maior, que inclui aquelas atividades que objetivam a sobrevivência e o conforto (exemplo: trabalho, estudo);
  • Atividades de Manutenção: manter o corpo em forma (exemplo: comer, descansar, cozinhar, limpar);
  • Atividades de Lazer: o tempo livre estaria enquadrado nestas atividades e seria dividido em três tipos de atividade: 
    • a primeira, o consumo de mí­dia (a maioria em ver televisão, pinceladas no jornal e leitura de revistas);
    • a segunda, a conversa; e
    • a terceira, que é o uso mais ativo do tempo livre, que seriam as atividades como hobbies, fazer música, prática de esportes e exercícios.

O autor destaca que essas atividades fornecem as informações que vão à nossa mente ao longo do dia, dia após dia e que, na essência, nossa vida consiste dessas experiências. (CSIKSZENTMIHALYI, 1997).

Um ponto importante é que Csikszentmihalyi (1997) aponta a concen­tração como essencial para adquirir controle sobre a sua vida psíquica, que é o combustível básico do pensamento e acrescenta que concentrar a atenção é fundamental para executar operações mentais com algum tipo de profundidade. O que é comum nesses momentos de imersão é que a consciência é cheia de experiências e essas estão em harmonia umas com as outras. E é a esses momentos excepcionais que o autor dá a definição de Flow. (CSIKSZENTMIHALYI, 1997). Nesses momentos, nós nos sentimos no controle de nossas ações e mestres de nosso próprio destino; sentimos um senso de hilaridade, um profundo senso de prazer; é a esses momentos excepcionais, a que ele se refere como experiência ótima, que denomina como experiência de Flow. (CSIKSZENTMIHALYI, 1990; CSIKSZENTMIHALYI, 1997).

As atividades que propiciam o Flow apresentam os seguintes compo­nentes:

  • Metas: o Flow acontece quando as pessoas encaram determinadas me­tas claras e compatíveis que requeiram respostas apropriadas. [48]
  • Feedback: a atividade deve fornecer feedback imediato. Elas deixam cla­ro o quanto você vai bem no que está fazendo; e
  • Habilidade: o Flow tende a acontecer quando as habilidades da pessoa estão inteiramente envolvidas na superação de um desafio. (CSIKSZENTMIHALYI, 1997).

As experiências ótimas usualmente envolvem um bom equilíbrio en­tre a habilidade para agir e as oportunidades disponíveis para a ação, os desafios. E é quando ambos, habilidade e desafios, são altos que se dá a experiência de Flow, conforme demonstra a figura a seguir.

Figura 3

Além disso, trata-se necessariamente de uma experiência compensadora e requer concentração na sua execução. Inclui, ainda, uma perda da consciência do tempo, e a ausência da autoconsciência, com perda [49] momentânea do ego, desaparecendo o autorreconhecimento, transformando a pessoa em parte da atividade. Edurante a atividade dá-se o paradoxo do controle, ou seja, a atividade envolve um senso de controle; existe uma despreocupação com a perda do controle, já que há elementos que podem ou não ser controlados. Acrescenta-se que há a fusão da ação e da consciência, à medida que a pessoa está tão envolvida que a realiza no automá­tico, tornando-se espontânea. (CSIKSZENTMIHALYI, 1997).

As atividades que induzem o estado de Flow são chamadas de ativi­dades de Flow, já que elas favorecem que esse aconteça. (CSIKSZENT­ MIHALYI, 1997). O autor elenca em suas obras diversas atividades que po­dem propiciar o estado de Flow, tais como: fazer música, escaladas, dançar, caminhar, ler, artes, velejar, jogar, entre outras. Destaca que o importante é identificar as atividades que compõem o nosso dia e elencar aquelas que nos colocam em estado de Flow, pois estas elevarão nossas vidas.

Virtudes e Forças de Caráter

A primeira tentativa de definir um conjunto de virtudes humanas está contida nos ensinamentos de Confúcio, que datam de 500 a.e.c. e, até os dias de hoje, ainda nenhuma classificação de qualidades ou resultados positivos humanos conseguiu utilização ou aceitação mundial. (SNYDER & LOPEZ, 2009). Contudo, grandes esforços e resultados já vêm sendo alcançados para se obter um inventário para definir as qualidades humanas. (SNYDER & LOPEZ, 2009). Esses esforços sustentaram-se relevantemente com a iniciativa do dr. Neal H. Mayerson que, em 1999, procurou Martin Seligman com o seguinte questionamento: "Podemos manter a esperança de que a Psicologia Positiva será capaz de ajudar as pessoas a evoluir em direção ao seu maior potencial?" Mayerson e Seligman chegaram rapida­ mente à conclusão de que duas questões prioritárias deveriam ser respon­ didas e essas acabaram por moldar o projeto do início até o final: "Como podemos definir os conceitos de forças e de potencial máximo? Como se pode saber que um programa de desenvolvimento positivo de jovens atin­giu seus objetivos?" (PETERSON & SELIGMAN, 2004).

Figura 4

Para responder a essas perguntas por meio de pesquisas e estudo, em [50] 2001, a Fundação Manuel D. e Rhonda Mayerson criou o Value in Action (VIA) Institute, uma organização sem fins lucrativos dedicada ao desen­volvimento de uma base científica do conhecimento das forças humanas. (PETERSON & SELIGMAN, 2004; VIA INSTITUTE ON CHARACTER, 2013a).

À frente do projeto, Seligman foi designado diretor científico do VIA Institute e convidou Christopher Peterson para ser seu diretor de Projeto. Em três anos, a partir do ano 2000 e com a participação de mais de 150.000 pessoas que participaram das medições, Seligman e Peterson, com a as­sistência de diversos prestigiosos acadêmicos e profissionais, conceberam uma classificação de forças de caráter e virtudes e os meios de medi-las. (PETERSON & SELIGMAN, 2004; VIA INSTITUTE ON CHARACTER, 2013).

Essa classificação foi apresentada no livro "Character Strengths and Virtues - A Handbook and Classification", em 2004, de autoria de Seligman e Peterson, não traduzido para o Português, e o VIA Classification on Cha­racter Strengths serve como antítese do DSM e é promissora para estimu­lar e entender as qualidades psicológicas. A classificação proporciona uma linguagem comum para descrever as qualidades humanas e estimula um enfoque ao diagnóstico e ao tratamento voltados a potencializar as quali­dades. O inventário VIA identificou 24 forças de caráter, organizadas sob seis virtudes. (SNYDER & LOPEZ, 2009). As virtudes, segundo os autores, são as características fundamentais valorizadas por filósofos e religiosos e as forças de caráter são os ingredientes psicológicos que definem as virtu­des. (PETERSON & SELIGMAN, 2004). [51]

Para a medição deste sistema de virtudes e forças de adultos, foi cria­do o Values In Action Inventory of Strengths (VIA-IS) ou VIA Inventory of Strengths, ou ainda conhecido mais popularmente como VIA Survey (In­quérito VIA) que é uma avaliação de forças cientificamente validada. (VIA INSTITUTE ON CHARACTER, 2013b). O VIA Survey foi postado na internet sem nenhum custo para as pessoas, e atualmente já conta com mais de 5 milhões de respondentes ao assessment das forças de caráter. (VIA INS­TITUTE ON CHARACTER, 2017).

Trata-se o VIA-IS do único levantamento de forças no mundo que é gratuito, online e psicometricamente válido, e, além da versão original com 240 itens, dez para cada uma das forças de caráter, na atualidade, encontra-se disponível uma nova versão da avaliação original VIA-IS chamada *New* VIA Survey-120 que leva em torno de 15 minutos para ser preenchi­da com 120 itens apenas. (VIA INSTITUTE ON CHARACTER, 2013b).

Conforme destaca Niemiec (2017), devido a problemas que foram identificados na versão do VIA Survey que vem sendo utilizada, estudos sobre o assessment começaram a ser desenvolvidos desde 2014, para me­lhorar, substancialmente, a medição das forças de caráter e para algumas outras adequações. Isso inclui uma revisão profunda do VIA-IS com análise de todas as escalas, com dois formulários curtos (The Signatures Strengths Survey e o Virtues Survey), e um punhado de outras medições de forças de caráter, num estudo desenvolvido por McGrath (2017), indicados a seguir. A essa série de pesquisas, para atualização do VIA-IS, como parte de um conjunto de assessments, foi dado o nome de VIA Assessment Suite for Adults e o uso desses novos instrumentos são gratuitos e direcionados a uso por pesquisadores com propósito de pesquisas, as quais devem ser submetidas ao VIA formalmente. (MCGRATH, 2017). Além disso, itens das escalas foram adequados de forma a extrair com maior precisão, o que efe­tivamente contemplam as descrições de algumas forças - exemplo: para a Espiritualidade/Senso de Significado foram retirados-os itens relacionados à religiosidade, mantendo apenas itens relacionados a crenças sobre uma realidade não-física. (MCGRATH, 2017).

O VIA-IS tem opções de diferentes tipos de relatórios que podem ser escolhidos pelos respondentes. Ao preencher o questionário, o respondem [53] te tem acesso a uma lista/relatório gratuito com o ranking de suas forças em ordem de classificação. O seu relatório de feedback destaca as cinco forças que são chamadas de forças principais, mas também apresenta as demais forças de caráter em ordem decrescente de pontuação. (SNYDER & LOPEZ, 2009). Já estão disponíveis no site há algum tempo o VIA®Me! Character Strengths Profile, o VIA PRO Character Strengths Profile e o VIA PRO Team Report. Novos relatórios encontram-se disponíveis, atualmente, para aquisição ao lado do VIA PRO Character Strengths Profile, como o Peer Comparison Report, que faz um comparativo do resultado do respondente com o público de características demográficas semelhantes e o Lesser Character Strengths Report, que apresenta uma revisão aprofundada das forças que pontuaram mais baixo, com uma análise de como as pesquisas interpretam esses resutados e que intervenções podem ser favorecedoras para sua potencialização. (VIA INSTITUTE ON CHARACTER, 2017).

Além da versão de inventário para adultos, foi criado o Value In Ac­tion (VIA) Inventory of Strengths For Youth (VIA-Youth), popularmente co­nhecido como Youth Survey VIA, que mede forças do respondente através de uma pesquisa, atualmente com 96 itens. Ele leva aproximadamente 15 minutos para ser concluído e é projetado para jovens entre 11-17 anos de idade, sendo oferecido em 20 línguas e em Português (Portugal). (VIA INS­TITUTE ON CHARACTER, 2017). Assim como o VIA Survey, o VIA-Youth gera uma lista "rank" de suas forças de caráter em ordem de classificação, sen­do gratuito. (VIA® ME, 2013). Só que não para por aí. Ao lado dos relatórios principais (VIA-IS 120 para adultos e VIA-96 para a juventude), oferecidos para o público em geral, o VIA também oferece outros instrumentos dis­ poníveis para pesquisadores como um meio para avançar a ciência sobre as forças de caráter. São eles: o VIA Youth-198; VIA-IS; VIA-72; VIA-IS-R; VIA-IS-M; VIA-IS-P; VIA-IS-V6; VIA-IS-V3, para uso em pesquisas; os Global Assessment of Character Strengths - 24 (GACS-24); Global Assessment of Character Strengths-72 (GACS-72); Signature Strengths Survey (SSS), de domínio público, dos quais pode ser feito o download no site da versão, em Inglês, para aplicação como pesquisa; e o Overuse, o Underuse & Opti­mal-Use (OUOU) of Character Strengths, este último em pesquisas iniciais para uma aplicação específica. (VIA INSTITUTE ON CHARACTER, 2017). [54]

A temática das forças de caráter tem imensa aplicabilidade e é consi­derada a espinha dorsal da Psicologia Positiva. Com a proposta da strengths-opproach, as forças de caráter são utilizadas em contextos organizacio­nais, da Educação, do Coaching e da Psicoterapia.

Considerando a temática desta obra concentrada na Psicologia Clíni­ a, a título de observação, destaco um trabalho inacabado de Christopher Peterson, o qual considero que traria imensa significância à melhoria de diagnósticos e tratamento de clientes no contexto psicoterapêutico. No Terceiro Congresso Mundial da Associação Internacional de Psicologia Po­sitiva de 2013, Seligman lançou um desafio aos presentes, com vistas ao desenvolvimento e conclusão de uma proposta de estudo, não finalizada por Peterson, sobre a teoria de que a saúde psicológica é a presença de resistência e que ser mentalmente doente significa a ausência, o excesso de, ou oposição a uma ou mais das forças de caráter. (NEWS DAILY, 2013).

Nessa proposta de estudo, parte-se da premissa de que as 24 forças de caráter existentes poderiam ter 72 patologias relacionadas. Parte do desafio desse estudo é o de considerar como essas 72 patologias se rela­cionariam com os transtornos e patologias elencados no DSM. Algumas perguntas foram apresentadas que talvez pudessem ser respondidas a par­tir da conclusão do estudo. Por exemplo, o Desespero pode ser tratado com terapia cognitiva? Solidão com o treinamento antitimidez? Será que a compreensão dos transtornos mentais dessa forma pode levar a escolhas mais efetivas de terapias? Poderia o fortalecimento de forças de caráter oferecer proteção contra os transtornos mentais? Seligman concluiu que Peterson havia deixado o seu maior projeto desfeito. (NEWS DAILY, 2013).

Conforme narra Niemiec (2017), em 2009 e 2010, com apoio de Peter­son, foi sugerida por ele uma linguagem sobre essa temática a um grupo de estudiosos e profissionais das forças de caráter, o que foi considera­ do incipiente para a aplicação prática, sendo difícil para usos com alunos, clientes e empregados. Com a ajuda de estudiosos renomados, a partir desse momento, Niemiec (2014), tentando manter-se o mais próximo da concepção de Peterson (2006), concebe uma abordagem para um modelo [55] de um continuum entre overuse (uso em excesso), uso ideal e underuse (subutilização), para cada uma das forças de caráter. Além de ser uma pro­posta abraçada por inúmeros estudiosos, já é considerada uma aborda­ gem útil e apurada para predizer desordens psicológicas, especialmente transtorno de ansiedade social, como apontam Freidlin e colegas (2017), conforme indicado por Niemiec ( 2017).

Considerando as explanações acerca desses estudos, é importante destacar que as forças de caráter, para serem consideradas moralmente apreciáveis, precisam manifestar-se em seu âmago, em sua manifestação ideal e apreciável. Contudo, cada uma delas apresenta significados distin­tos quando se apresentam com overuse (uso excessivo) ou underuse (su­butilização) dessa medida ideal. Fora isso, as forças de caráter apresentam maiores similaridades com algumas das demais forças de caráter. (NIEMIEC, 2017). Destacam-se esses pontos, pois é essencial que o psicoterapeuta que deseje atuar com a Psicologia Positiva aprofunde-se na compreensão da totalidade de aspectos que envolve a temática das forças de caráter, com vista a favorecer o entendimento de seus clientes, quanto a suas qualidades humanas e a como potencializá-las em prol de seu bem-estar ou melhoria de seus quadros emocionais.

Esta explanação apresenta, de forma ínfima, informações sobre essa temática, sem pretender de forma alguma sugerir que um psicoterapeuta possa atuar com forças de caráter apenas a partir desta breve leitura.

Neste ponto, conclui-se a Parte I desta obra, cumprindo sua proposta de subsidiar o entendimento mais claro das temáticas que serão indicadas nos capítulos das Partes II, III e IV. [56]

Psicologia - Psicologia positiva
Pesquisas - Pesquisas relacionadas, 
10/27/2020 2:59:59 PM | Por Gregory J. Feist
Pesquisas relacionadas à Teoria holístico-dinâmica

Um dos aspectos mais notáveis da teoria da personalidade de Maslow é o conceito de hie­rarquia de necessidades. Algumas necessidades, como as fisiológicas e de segurança, são de ordem mais baixa, en­quanto necessidades como estima e autorrealização são de ordem mais alta. Em linhas gerais, de acordo com a teoria de Maslow, as necessidades de ordem mais baixa devem ser satisfeitas no início da vida, enquanto as de ordem mais alta, como autorrealização, tendem a ser satisfeitas mais tarde na vida.

Recentemente, pesquisadores testaram esse aspecto da teoria de Maslow medindo a satisfação das necessida­des em uma amostra de 1.749 pessoas de todas as faixas etárias (Reiss & Havercamp, 2006). Nesse estudo, os par­ticipantes responderam a um questionário acerca da satisfação de suas necessidades. Tais necessidades foram divi­didas em dois tipos de motivação: motivação mais baixa (p. ex., comer e exercício físico) e motivação mais alta (p. ex., honra, família e ideais). Os resultados corroboraram a teoria de Maslow. Os pesquisadores evidenciaram que os motivos mais baixos eram mais fortes em pessoas mais jo­vens, enquanto os motivos mais altos eram mais intensos em indivíduos mais velhos. Lembre-se de que, para focar a satisfação das necessidades de ordem mais alta, como es­tima e autorrealização, as pessoas precisam, primeiro, ter satisfeitas as necessidades de ordem mais baixa. Assim, como teorizou Maslow e conforme encontraram Reiss e Havercamp (2006), se as pessoas conseguem assegurar as necessidades mais básicas no início da vida, elas têm mais tempo e energia para focar em alcançar as camadas mais altas da existência humana posteriormente.

Necessidades de suprir uma deficiência, valores B e autoestima

Ainda que a psicologia tenha estudado o construto da autoestima por décadas, existe pouca concordância na literatura sobre exatamente o que é, de fato, esse [185] sentimento elusivo. A teoria de Maslow de motivação por dé­ficit versus motivação de crescimento conduziu a hipóte­ses interessantes em relação à autoestima. É importante lembrar que Maslow argumentou que a autoestima é um aspecto da necessidade (conativa) por “estima". Depois que essa necessidade é satisfeita, argumenta ele, ela pára de ser motivadora. Além disso, satisfazer as necessidades de deficiência proporciona prazer, mas não felicidade pro­funda e duradoura. Aqueles indivíduos raros que avançam além das necessidades de estima para a autorrealização fazem isso porque adotam os valores B. A busca das ne­cessidades de crescimento, da parte dessas pessoas autorrealizadas, proporciona satisfação contínua e duradoura. Isso levanta questões interessantes acerca da relação entre as necessidades de suprir uma deficiência relacionadas a estima, os valores B e nosso sentimento de nós próprios como seres humanos de valor.

Pesquisadores procuraram examinar na Europa a re­lação entre os valores das pessoas e sua autoestima por meio da teoria de Maslow, no intuito de compreender essa relação (Lõnnqvist, Verkasalo, Helkama, Andreyeva, Bezmenova, Rattazzi, Niit, & Stetsenko, 2009). Quando os valores dos indivíduos refletem as necessidades de su­prir uma deficiência de Maslow, deve ser porque eles realizaram objetivos nessas áreas. Essa é a definição de ne­cessidade de suprir uma deficiência. Ela só é sentida quan­do somos privados de satisfação. Uma vez que a falha em realizar os objetivos foi associada a autoestima reduzida (Crocker & Wolfe, 2001), esses pesquisadores pondera­ram que a autoestima baixa pode ser explicada, em parte, pela atribuição de importância a valores que representam necessidades de suprir uma deficiência, como poder, segu­rança e conformidade. Em contraste, as necessidades de crescimento associadas à autorrealização são motivações duradouras, e os valores associados a elas aumentam em importância quanto mais a pessoa atinge os objetivos para os quais esses valores estão direcionados. Portanto, valo­rizar aspectos como autodireção, universalismo e estimu­lação deve predizer autoestima mais alta. Essas foram as hipóteses que guiaram Lõnnqvist e colaboradores (2009) em seu exame de mais de 3 mil pessoas da Finlândia, da Rússia, da Suíça, da Itália e da Estônia.
A autoestima foi avaliada com o uso da Escala de Autoestima de Rosenberg (1965), a qual consiste em 10 itens, cada um dos quais classificado em uma escala de 4 pontos. Um exemplo de item é “Assumo uma atitude posi­tiva em relação a mim mesmo”. Os valores foram medidos usando o Inventário de Valores de Schwartz (1992). Esse questionário abrange 56 itens, os quais os participantes classificam desde 1 (oposto a meus valores) até 9 (de su­prema importância para mim). Os itens se agrupam para formar 10 tipos de valores: benevolência, tradição, conformismo, segurança, poder, realização, hedonismo, esti­mulação, autodireção e universalismo. Amostras de estu­dantes pré-profissionais, do ensino médio e adultos foram pesquisadas nos cinco países.

Os resultados desse estudo foram fascinantes, um tanto inesperados e corroboraram moderadamente a teo­ria de Maslow. Conforme previsto, a abertura à mudança de valores (autodireção e estimulação) estava associada a autoestima mais alta e a valores de conservação (confor­mismo e tradição) com autoestima mais baixa. Contudo, contrário às expectativas, os valores de autocrescimento (poder e realização) estavam positivamente relacionados a autoestima, enquanto os valores de autotranscendência (benevolência e universalismo) estavam relacionados de modo negativo a autoestima. Portanto, os objetivos pessoais eram preditivos de autoestima elevada, enquanto aqueles relacionados a aceitação não eram.

O que poderia explicar esses achados? Lõnnqvist e co­ laboradores (2009) apontaram para uma possibilidade de enviesamento de medida. Os itens na Escala de Autoestima de Rosenberg, a avaliação da autoestima mais amplamente usada na literatura, enfatizam a comparação do self com os outros (p. ex., “Sou capaz de fazer as coisas tão bem quanto a maioria das outras pessoas” e “Acho que sou uma pessoa de valor, pelo menos em um plano igual aos outros”). Essa forma de conceitualizar a autoestima parece tendenciosa quanto aos objetivos autofocados relacionados ao poder, e, assim, faz sentido que aqueles que valorizam tais objetivos tenham apresentado escores mais altos.

Uma possibilidade mais interessante é que esses achados colocam em questão as muitas formas como definimos autoestima e o valor supremo que nela depo­sitamos na cultura ocidental. Talvez a ciência meça esse construto de maneira limitada. Talvez autoestima envolva mais do que se sentir relativamente tão bom ou melhor na comparação com os outros. Mas talvez essa não seja uma questão de medida; em vez disso, é o valor que de­positamos na autoestima como índice de uma vida bem vivida que precisamos questionar. Conforme sugere a hierarquia de Maslow, autoestima é uma necessidade de suprir uma deficiência, não uma necessidade de cresci­mento. É interessante observar que as pesquisas sugerem que somos menos felizes quando estamos pensando sobre o self, enquanto ser capaz de perder o self em total imer­são em uma atividade (como as experiências culminan­tes de Maslow) está conectado a sentimentos de alegria (Csikszentmihalyi, 1988). Talvez, então, a busca dos valo­res B não leve a melhor autoestima. Como Maslow conce­bia esses valores, eles podem não ajudar a nos sentirmos melhor em relação a nós mesmos. Ao contrário, eles podem nos capacitar a nos transcendermos e a nos conectarmos de modo mais significativo aos outros e a nosso mundo. Fazer isso pode até afetar nossa autoestima (conforme medida por escalas como a de Rosenberg), e essa humil­dade pode ser exatamente o que nos possibilita viver bem, indo além do princípio do prazer. [186]

Psicologia positiva

A psicologia positiva é um campo relativamente novo da psicologia que combina a ênfase na esperança, no otimis­mo e no bem-estar com a pesquisa e a avaliação científica. Muitas das questões examinadas pelos psicólogos positi­vos provêm diretamente de teóricos humanistas, como Abraham Maslow e Carl Rogers. Como Maslow e Rogers, os psicólogos positivos são críticos da psico­logia tradicional, que resultou em um modelo do ser huma­no como carecendo de características positivas que tornam a vida valer a pena ser vivida. Esperança, sabedoria, cria­ tividade, determinação futura, coragem, espiritualidade, responsabilidade e experiências positivas são ignoradas (Seligman & Csikszentmihalyi, 2000).

Uma área da psicologia positiva na qual as idéias de Maslow foram particularmente influentes é o papel das experiências positivas na vida das pessoas. Maslow se re­feriu a experiências extremamente positivas que envolvem um sentimento de respeito, espanto e reverência como experiências culminantes. Ainda que tais experiências sejam mais comuns entre os autorrealizados, elas podem ser ex­perimentadas, em vários graus, também por outras pessoas. Recentemente, pesquisadores investigaram os benefícios potenciais que provêm de reexperimentar, por meio da es­crita ou do pensamento, tais experiências positivas. Em um desses estudos, os participantes foram instruídos a escrever acerca de uma experiência ou experiências positivas durante 20 minutos todos os dias, por três dias consecutivos (Bur­ ton & King, 2004). As instruções dadas aos participantes an­tes de começar foram derivadas diretamente dos escritos de Maslow sobre experiências culminantes, e elas pediam aos participantes que escrevessem acerca de seus "momentos mais felizes, momentos de êxtase, momentos de arrebatamento, talvez por estarem apaixonados, por ouvirem uma música ou repentinamente ‘serem tocados' por um livro ou uma pintura ou por algum grande momento criativo” (p. 155). Experimentar tais eventos positivos que inspiram res­peito sem dúvida aumentará a emoção positiva e, conforme esse estudo testou, talvez apenas relembrar tais eventos do passado escrevendo sobre eles também possa aumentar a emoção positiva. A experiência da emoção positiva costuma ser uma coisa boa e foi associada a melhora nos recursos de enfrentamento, melhor saúde e comportamentos pró-sociais (Lyubomirsky, King, & Diener, 2005). Portanto, Burton e King prognosticaram que escrever acerca dessas experiências culminantes ou intensamente positivas estaria associado a melhor saúde física nos meses seguintes ao exer­cício de escrita. De fato, Burton e King (2004) constataram que aqueles que escreveram sobre experiências positivas, comparados com aqueles em uma condição de controle que escreveram sobre tópicos não emocionais, como uma des­crição de seu quarto, consultaram com um médico menos vezes por doença durante os três meses após a escrita.

Outros pesquisadores acompanharam os efeitos sobre a saúde de escrever acerca de experiências extremamente positivas. Sonja Lyubomirsky e colaboradores investiga­ram se pensar acerca de experiências positivas passadas teria ou não ganhos comparáveis ou até mesmo maiores do que os ganhos derivados de escrever acerca de tais expe­riências (Lyubomirsky, Sousa, & Dickerhoof, 2006). Mes­mo não tendo encontrado benefícios na saúde física para o pensamento acerca de experiências positivas, constatou-se que aqueles que foram instruídos a simplesmente pensar sobre essas experiências por 15 minutos durante três dias consecutivos relataram maior bem-estar um mês mais tar­de do que aqueles que escreveram sobre tais experiências durante o mesmo período de tempo. Esses resultados su­gerem não ser preciso superanalisar ou separar experiên­cias positivas para obter benefícios. Ao contrário, relem­brar casualmente a experiência em sua mente e recordar o quanto a experiência fez se sentir bem é suficiente para experimentar maior bem-estar.

Tais estudos demonstram a importância de refletir e reviver as experiências mais positivas ou "culminantes” em nossas vidas. Lembre-se do início do capítulo, em que Abraham Maslow previu que as experiências culminantes com frequência têm um impacto duradouro na vida das pessoas. As pesquisas recentes na área da psicologia positi­va examinadas nesta seção certamente apoiam tal aspecto da teoria de Maslow. [187]

Psicologia - Teoria holístico-dinâmica
Personalidade - Psicopatologia, Sintomatologia
10/23/2020 1:53:48 PM | Por Tayyab Rashid
Psicopatologia, sintomas e forças

O conceito principal de psicopatologia em psicoterapia positiva (PPT) reside na noção de que os aspectos positivos (p. ex., forças de caráter, emoções positivas, significado, relações posi­tivas e realizações) são tão centrais quanto os sintomas na avaliação e no tratamento da psicopatologia. Este é um afastamento significa­tivo da visão tradicional da psicopatologia, em que os sintomas ocupam a posição central. Um sistema de classificação puramente baseado nos sintomas é inadequado para compreender as vidas ricas e complexas dos clientes. Antes de apresentarmos nossos argumentos, gostaría­mos de esclarecer que compreendemos as ra­zões por trás do foco exclusivo nos sintomas. De fato, sintomas perturbadores se destacam e são mais prontamente abordados e avaliados em um contexto clínico do que os aspectos po­sitivos.

Experiências negativas geralmente são um convite a um discurso clínico mais comple­xo e mais profundo - para clientes e clínicos. Portanto, não é de causar surpresa que os clientes que procuram serviços clínicos facil­mente se recordem de acontecimentos nega­tivos, reveses e fracassos, ou que os clínicos prontamente avaliem, elaborem e interpretem histórias de conflito, ambivalência, engano e déficits pessoais ou interpessoais. Devido ao seu valor informativo aparentemente maior, os clínicos prestam mais atenção aos aspectos negativos e se engajam em processamento cog­nitivo complexo (p. ex., Peeters & Czapinski, 1990). Assim, a avaliação clínica é tipicamente conduzida para explorar sintomas e transtor­nos. Entretanto, um foco quase exclusivo nos sintomas limita a avaliação clínica de formas importantes, conforme será discutido a seguir.

Sintomas

Os Ingredientes Centrais

Os sintomas são avaliados com um pressupos­to subjacente de que são os ingredientes cen­trais do discurso clínico. Assim, os sintomas justificam uma exploração séria, enquanto os aspectos positivos são considerados subprodu­tos do alívio sintomático que não precisam ser avaliados. Esse pressuposto está tão arraigado que atributos tradicionalmente positivos são frequentemente considerados como defesas. Por exemplo, a ansiedade foi teorizada como uma força propulsora por trás de um trabalho ético que caracterizou a Reforma Protestante (Weber, 2002). Foi teorizado que a depressão se desenvolve como um mecanismo de defesa para afastar sentimentos de culpa, e a compai­xão resulta como compensação por esses senti­mentos (McWilliams, 1994). Na PPT, as forças humanas são tão reais quanto os pontos fracos humanos, tão velhas como o tempo, e valoriza­das em todas as culturas (Peterson & Seligman, 2004). As forças são tão essenciais na avaliação e no tratamento da psicopatologia quanto são os sintomas. As forças não são consideradas como defesas, subprodutos ou compensações. Elas são valorizadas e avaliadas independentemente dos pontos fracos no procedimento de avalia­ção. Por exemplo, humildade não é necessaria­mente um traço utilizado para obter coopera­ção de outras pessoas refreando-se a si mesmo. [25]

Ser útil não é necessariamente uma tentativa de dispersar ou neutralizar uma situação estressante, e criatividade não é apenas aproveitar a ansiedade para a inovação.

Perfis Tendenciosos e Estruturação

A tradicional avaliação e abordagem terapêu­tica orientada para o déficit rotula os clientes dentro das categorias artificias do Manual diagnóstico e estatístico de transtornos men­tais (DSM; American Psychiatric Association, 2013). Rotular não é, por si só, algo indesejá­vel; rótulos classificam e organizam o mundo (Maddux, 2008). No entanto, reduzir ou objetificar os clientes com um rótulo de psicopatologia pode despojá-los de sua rica complexidade (Boisvert & Faust, 2002, Szasz, 1961). Quando ocorre esse foco excessivo no diagnóstico, os diagnósticos baseados no DSM produzem um perfil de personalidade do cliente que descre­ve predominantemente déficits, disfunções e transtornos. A avaliação clínica da personalida­de deve ser um processo híbrido que explore as forças e as fraquezas (Suldo & Shaffer, 2008). Depois que a avaliação clínica estrutura a ques­tão presente como um problema, a redução dos problemas apresentados é vista como uma medida do sucesso da intervenção. No entanto, problemas psicológicos são complexos e multidimensionais e frequentemente têm apresenta­ção idiossincrásica (Harris & Thoresen, 2006). Além disso, a melhora dos sintomas psiquiá­tricos não assegura que os clientes atingiram o bem-estar. O real estado clínico, em termos de tempo e recursos alocados, é finito. Se a maior parte desse estado real for ocupada pela me­lhoria dos sintomas, não restará muito tempo e esforço para a amplificação dos pontos fortes, significado ou propósito.

Estigma

A prática clínica atual é, em grande parte, dire­cionada para a descoberta de traumas infantis, a avaliação dos pensamentos distorcidos e a análise das dificuldades interpessoais e do caos emocional. As pessoas evitam procurar serviços clínicos porque temem ser estigmatizadas caso seus problemas sejam formulados dentro de um diagnóstico psiquiátrico (Corrigan, 2004). As representações de indivíduos com doenças mentais na mídia popular mantêm o estigma contra a saúde mental (Bearse, McMinn, See- gobin, & Free, 2013). Além disso, indivíduos cada vez mais diversos e cosmopolitas nem sempre se encaixam nos rótulos diagnósticos eurocêntricos (Zalaquett et al., 2008).

Psicopatologia como desregulação das forças

Judith Johnson e Alex Wood (2017) defende­ram que a maioria dos construtos estudados pela psicologia positiva e clínica existe em contínuos que oscilam entre positivo e negativo (p. ex., gratidão e ingratidão, calma e ansie­dade), e, portanto, não faz sentido falar de um ou outro campo estudando o “positivo” ou o “negativo”. A psicologia tradicional baseada no déficit se beneficiaria com a integração da psicologia positiva porque

  • Construtos da psicologia positiva, como as forças de caráter e emoções positivas, po­dem de forma independente prever o bem-estar quando contabilizam fatores clínicos tradicionais, tanto transversalmente quanto prospectivamente.
  • Os focos principais dos psicólogos positivos, como as forças e as emoções com valência positiva, interagem com fatores de risco para prever os resultados, dessa forma atribuindo resiliência.
  • As intervenções em psicologia positiva (como a PPT) tipicamente usadas para am­pliar o bem-estar também podem ser usadas para aliviar os sintomas.
  • A pesquisa clínica em grande parte eurocêntrica pode ser adaptada para aplicações transculturais por meio da incorporação de construtos da psicologia positiva.

A luz desses argumentos, convidamos os clínicos a reconceitualizar os transtornos psi­cológicos baseados no DSM. Mais de duas décadas atrás, Evans (1993) postulou que comportamentos ou sintomas negativos têm formas positivas alternativas. Até certo ponto, [26]  essa reciprocidade é uma questão de semân­tica. Os sintomas são definidos na linguagem cotidiana, que sempre pode ser traduzida em opostos simples, embora nem todos os sinto­mas ou transtornos se prestem naturalmente a essa reciprocidade. Por exemplo, coragem pode ser conceituada como a antítese de ansiedade, mas nem todos os indivíduos ansiosos não têm coragem. Evans argumentou que a maioria dos construtos em psicopatologia pode ser escalo­nada em duas dimensões paralelas. Primeiro, o atributo patológico ou indesejável partindo do desvio grave, passando por algum ponto neu­tro até sua não ocorrência positiva. Segundo, o atributo antitético partindo da não ocorrência, passando por algum ponto neutro até sua forma desejável.

De acordo com o mesmo princípio, Peterson (2006) propôs que os transtornos psicológicos podem ser considerados como uma Ausência da força, o Oposto da força ou o Excesso da força (AOE). Peterson argumenta que a ausência de forças de caráter não necessariamente se aplica a transtornos como esquizofrenia e transtorno bipolar, os quais apresentam claros marcadores biológicos. Muitos transtornos de base psicológica (p. ex., depressão, ansiedade, problemas de atenção e conduta e transtornos da persona­lidade) podem ser mais compreendidos holisticamente, tanto em termos da presença de sinto­mas quanto da ausência, oposto ou excesso de forças de caráter. Usando a abordagem AOE de Peterson, conformidade se deve à ausência de originalidade, especialmente quando um grupo inteiro adere à conformidade. A ausência de curiosidade seria desinteresse. O desinteresse que impõe limites ao que uma pessoa pode sa­ber é indesejável. O oposto da curiosidade seria o tédio. Curiosidade exagerada pode ser igual­mente prejudicial, especialmente se alguém é curioso em relação a violência, sexo ou drogas ilícitas. Levar em conta as sensibilidades e as sutilezas clínicas, aplicando-se uma abordagem AOE em um contexto clínico, pode ser desa­fiador. Conceituar os clientes com uma total ausência de forças (p. ex., coragem, otimismo ou gentileza), com opostos das forças (p. ex., banalidade para criatividade, falsidade para ho­nestidade ou preconceito para justiça) ou com exagero das forças (promiscuidade emocional para inteligência emocional, chauvinismo1 para cidadania ou bufonaria2 para humor) pode ser desanimador tanto para os clínicos quanto para os clientes e pode até mesmo não ser teorica­mente plausível. Mas é difícil imaginar que al­guém possa não ter um pingo de gentileza ou que lhe falta coragem completamente. Portan­to, propomos uma visão ligeiramente modifica­da de AOE em relação às forças.

Propomos que os transtornos baseados no DSM sejam revisados em termos de falta ou excesso de forças. Por exemplo, a focalização nas faltas pode resultar em depressão, em parte devido à falta de esperança, otimismo ou entusiasmo, entre outras variáveis; da mesma forma, falta de coragem e paciência pode ex­plicar alguns aspectos de ansiedade; e falta de imparcialidade, equidade ou justiça pode estar subjacente a transtornos da conduta. Inúmeros transtornos psicológicos podem plausivelmente ser conceituados como um excesso de forças específicas. Por exemplo, a depressão pode ser, em parte, um excesso de humildade (relutân­cia em mostrar as próprias necessidades), um excesso de gentileza (em relação aos outros, à custa do autocuidado), um excesso de pers­pectiva (uma visão da realidade restritamente construída) e um excesso de significado (o que leva a um foco excessivo e a um comprome­timento inflexível).

A falta de forças isoladamente é insuficiente para justificar um diagnóstico. No entanto, linhas de pesquisa emergentes feitas por Alex Wood, na Universidade de Sterling, Reino Unido, estão mostrando que a ausência ou a falta de aspectos positivos representa um risco para uma condição clínica. Em um estudo longitudinal com 5.500 participantes, Wood e Joseph (2010) constataram [27] que indivíduos com poucas características posi­tivas— como autoaceitação, autonomia, propósi­to na vida, relações positivas com outras pesso­as, domínio do ambiente e crescimento pessoal – tinham até sete vezes mais probabilidade de experimentar sintomas depressivos na diversida­de clínica. A ausência de características positivas consistia, independentemente, em um fator de risco para transtorno psicológico, ultrapassan­do a presença de inúmeros aspectos negativos, inclusive depressão atual e prévia, neuroticismo e doença-saúde física. Além disso, pessoas com alto nível de características positivas estão pro­tegidas do impacto de acontecimentos negativos na vida, inclusive problemas clínicos (Johnson et al, 2010; Johnson, Gooding, Wood, & Tarrier, 2010).

Como, exatamente, uma falta ou excesso de forças pode atuar segundo uma perspectiva da PPT? Consideremos um exemplo clínico. A Escala de Depressão do Centro para Estudos Epidemiológicos (CES-D; Radloff, 1977) é uma das medidas mais frequentemente usadas de sintomas depressivos. Com 16 itens nega­tivos e 4 positivos, acreditava-se amplamente que essa medida examinava dois fatores sepa­rados – depressão e felicidade (Shafer, 2006). Analisando-se os dados de 6.125 adultos, Alex Wood e colaboradores demonstraram que uma estrutura bidimensional da CES-D é, mais pro­vavelmente, um artefato estatístico: depressão e felicidade podem, em grande parte, ser si­nônimos, e a medida existente pode alcançar diferentes extremidades do mesmo continuum (Wood, Taylor, & Joseph, 2010). Ou seja, de­pressão e felicidade fazem parte do mesmo continuum, e estudá-las separadamente duplica de forma desnecessária o esforço da pesquisa. Igualmente, o Inventário de Ansiedade Traço-Estado (Spielberger et al., 1983) pode ser con­ceituado em um continuum de ansiedade até relaxamento.

Diferenças Individuais

Na PPT, nossa escolha dos traços para des­crever uma falta ou excesso de forças é uma mescla de forças definidas e bem pesquisadas (como gratidão, curiosidade e perdão) e tra­ços que são expressos em experiências na vida cotidiana (como despreocupação, serenidade, reflexão e flexibilidade). Uma forma de reconceituar sintomas é considerar seus opostos – isto é, suas forças – como em falta ou em excesso nas experiências cotidianas. Embora os termos cotidianos que utilizamos para des­crever a falta ou o excesso de forças possam ter diferenças individuais discerníveis e men­suráveis, muitos deles não têm sido foco de exame empírico.

Falta e Excesso de Forças

Percebemos que inúmeros termos usados para descrever uma falta ou excesso de forças podem implicar que sua falta ou excesso é indesejável, tornando as forças normativas. Por exemplo, a falta de perspectiva, moderação e coragem é geralmente considerada um estado indesejável, enquanto excesso de entusiasmo, perseveração e assunção de riscos é geralmente considerado um estado desejável. Nossa abordagem e esfor­ço são para oferecer uma compreensão menos [35] subjetiva e mais científica. Evidências mostram que mais quantidade de gratidão, gentileza, curiosidade, amor e esperança está fortemen­te relacionada a satisfação com a vida (Park, Peterson, & Seligman, 2004), enquanto uma falta de inteligência social, moderação, autorre-gulação e perseverança está associada a proble­mas psicológicos (Aldao, Nolen-Hoeksema, & Schweizer, 2010; Bron et al., 2012).

Dinâmica Situacional

Transtornos psicológicos e sintomas relaciona­dos podem ser mais bem percebidos pela com­preensão de situações complexas e meios culturais nos quais os clientes estão inseridos e dos quais eles frequentemente têm pouco controle para mudar essas dinâmicas. Apresentamos dois exemplos:

Um de nossos clientes, Michel, tinha sintomas de an­siedade social. Ele evitava situações sociais porque era excessivamente cauteloso por medo de dizer algo errado ou inapropriado porque inglês não era sua pri­meira língua. Michel tornou-se socialmente ansioso quando inadvertidamente disse algo inapropriado, o que ofendeu um de seus amigos, que o acusou de discriminá-lo. Examinar os sintomas em termos de uma falta ou excesso de pontos fortes também requer compreensão das características contextuais. Michel não mostrava sinais de ansiedade social en­quanto interagia com amigos que falavam sua língua nativa; nessa situação, ele se sentia confiante, fazia piadas e demonstrava empatia. Uma abordagem orientada para o sintoma provavelmente descreveria a situação como:"o cliente não exibe sintomas de an­siedade social quando interage na sua língua nativa". Uma abordagem baseada nas forças provavelmente descreveria a mesma situação como: "o cliente é ale­gre, socialmente à vontade e empático quando inte­rage na sua língua nativa".

Outra cliente, Sharon, tinha dois empregos de meio período - um em uma loja de luxo e o ou­tro em uma clínica psiquiátrica na qual trabalhava com crianças com problemas de desenvolvimento. Na loja, Sharon precisava ser muito profissional e vigi­lante e prestar atenção aos mínimos detalhes na hora de uma venda. Ela dizia que era muito cautelosa em seu trabalho na loja e gradualmente foi ficando preo­cupada com a possibilidade de cometer erros ou se esquecer de alguma coisa. No outro emprego, apesar de ter a tarefa desafiadora de envolver as crianças em atividades terapêuticas, Sharon se percebia relaxada, alegre e social. Uma abordagem voltada para o sin­toma provavelmente descreveria a situação como: "a cliente experimenta níveis moderados de ansie­dade antecipatória em seu trabalho na loja. Ela não experimenta um nível similar de ansiedade em seu trabalho na clínica psiquiátrica". Uma abordagem baseada nas forças provavelmente descreveria a mes­ma situação como: "a cliente na posição de vendedo­ra é cautelosa e vigilante - algumas vezes mais do que deveria. Assim, ela não é capaz de usar algumas de suas outras forças, como criatividade e alegria. Na instituição psiquiátrica, no entanto, ela é mais capaz de usar suas forças. Ela é alegre, relaxada e se conecta genuinamente com os outros".

É importante levar em conta a dinâmica si­tuacional e como as forças desempenham um papel com muitas nuanças na compreensão das vidas complexas e ricas dos clientes.

Ter Forças versus Desenvolver Forças

Ter uma constelação específica de sintomas que causam acentuado sofrimento e deficiência funcional geralmente produz um diagnóstico clínico. Esse foi o caso com uma de nossas clientes, Yasmin, que chegou à terapia depois de ser diagnosticada com transtorno da personalidade borderline por vários profissionais de saúde mental.

Nos primeiros 10 minutos do nosso tempo juntos, Yasmin narrou seus sintomas quase literalmente conforme listado no DSM. Tudo o que ela via em si mesma era desregulação emocional, dificuldades de relacionamento e impulsividade autodestrutiva. Depois de ter concluído uma avaliação abrangen­te das forças, sem desvalorizar seus sintomas, nós a descrevemos como alguém que basicamente é uma pessoa afetuo­sa a quem faltam competências para expressar amor apropriadamente e como alguém que poderia se beneficiar de compreender e então adquirir as com­petências de construção de empatia, gentileza e pru­dência. Embora Yasmin tenha sido capaz de identifi­car muitos domínios nos quais tendia a demonstrar mau julgamento, também conseguia compartilhar momentos em que exercitava um bom julgamento. Ela compartilhou um incidente em que sua reação espontânea e oportuna salvou a vida de um amigo. Uma avaliação de suas forças a fez perceber que tinha [36]  forças específicas e que, embora essas qualidades se­jam de fato forças, um uso excessivo delas a deixou com problemas. Ao mesmo tempo, ela não tem forças específicas, como prudência, autorregulação e uso adaptativo de entusiasmo, as quais poderia usar para resolver seus problemas.

O mero conhecimento dos sintomas ou for­ças, segundo nossa visão, é insuficiente para estimular a mudança. Pode ocorrer mudança terapêutica quando o clínico ajuda o cliente a desenvolver um uso adaptativo e diversificado de suas forças. A mudança acontece quando o clínico destaca sucessos passados do cliente para lidar com as dificuldades presentes, quan­do é suficientemente proficiente para identifi­car mesmo um pequeno ou breve exemplo de uso ou exibição de forças, quando comunica a autovalorização do cliente por meio de exem­plos concretos das forças e quando não desiste de procurar essas forças.

Grau ou Extensão

O clínico deve averiguar se um cliente apresen­ta quantidade suficiente de uma força particular para que possa aplicá-la efetivamente (Ajzen & Sheikh, 2013). Por exemplo, Julia, uma cliente de meia-idade, estava experimentando sintomas de transtorno de ansiedade generalizada marcados por preocupação excessiva, inquietação e dificuldades de concentração. Se seus sintomas pudessem ser tratados pelo desenvolvimento de forças, então em que medida Julia precisaria ter, por exemplo, pensamento crítico, perspectiva e saborear? Existe um pareamento específico ou constelações de forças que poderiam ser terapeuticamente efetivas? Pesquisas demonstraram que trabalhar em nossas forças de assinatura ou trabalhar em menos forças é igualmente efetivo para aumentar a satisfação com a vida (Gelso, Nutt Williams, & Fretz, 2014; Rashid, 2004; Rust, Diessner, & Reade, 2009). [37]

Psicologia - Psicologia positiva
Temas gerais - Temas gerais, 
10/21/2020 2:18:45 PM | Por Charles Richard Snyder
Tornando-se positivo

Começamos este capítulo final descreven­do um cliente de psicoterapia com uma agenda que refletia um preceito fundamen­tal da psicologia positiva: o desejo de acen­tuar o bom da vida. A seguir, discutimos um enigma para os psicólogos positivos: por que as informações negativas parecem ter mais poder sobre as pessoas do que as positivas (ou seja, “por que o que é ruim tem mais força do que o que é bom”)? Após, avaliamos as atenções dadas à psicologia positiva na mídia e no campo da própria psicologia, seguido de um chamamento que fazemos para que a psicologia positiva seja um fenômeno de alcance mundial. Afirma­mos que ela deve ser para todos, e não para uns poucos. Também examinamos até onde os jovens foram recrutados para o estudo do tema. Em uma importante seção a seguir, vários líderes nesse novo campo apresentam idéias so­bre o futuro da psicologia positiva. Por fim, encerramos com duas histórias que ilus­tram vividamente o poder de se concen­trar no positivo.

Trocando o que é ruim po rum pouco do que é bom: O caso de Molly

As mudanças que descrevemos como resultado da iniciativa da psicologia posi­tiva são semelhantes aos processos pelos quais as pessoas passam na psicoterapia bem-sucedida, isto é, são capazes de subs­tituir alguns pensamentos e ações negati­vos por outros, mais positivos. Considere­mos, por exemplo, o caso de Molly, uma mulher de 75 anos e de língua afiada, que veio a um dos autores (C.R.S.) em busca de psicoterapia. A declaração inicial de Molly foi: “Eu quero trocar alguns dos meus maus hábitos por outros, melhores!”. No final das contas, esse caso não era tão sim­ples quanto suas palavras sugeriam, mas esse tipo raramente é.

Em primeiro lugar, Molly disse que queria deixar de ser tão desagradável. Quando se perguntou o que ela poderia ganhar sendo tão irritada e difícil, ela pa­recia confusa. “Você quer dizer que eu faço isso por alguma razão?”, perguntou. Pen­sando em suas possíveis motivações para [423] ser irritada, Molly fez uma pausa e depois afirmou: “Eu quero estar mais no contro­le”. Ela também disse que não gostava de como sua família parecia prestar mais aten­ção quando ela reclamava de suas dores e sofrimentos.

Sugeri que ela começasse a fazer tra­balho voluntário em um hospital. Essa ideia tinha várias vantagens, sendo que a mais importante era que seus amigos e paren­tes, em lugar de prestar atenção a suas re­clamações, iriam elogiá-la por ajudar aos outros. Molly gostou desse plano porque lhe proporcionou uma forma positiva de ter uma sensação de controle. Quando co­meçou a fazer o trabalho voluntário, ela também passou a entender que suas dores e seus problemas eram bem menores em relação às dos pacientes internados no hos­pital. Sendo assim, a primeira compensa­ção de Molly foi encontrar uma forma mais positiva de obter uma sensação de contro­le em sua vida.

A segunda troca de Molly envolvia seu desejo de manter o peso. A medida que en­velhecia, ela queria evitar o que chamava de “a marcha da gordura”. Embora Molly adorasse comer, ela estava tão preocupa­ da com ficar gorda que acabava comendo muito pouco. Regulando-se pelo modelo da magricela de 20 anos que aparece nas revistas, Molly não estava gostando de seu sistema de controle do peso baseado em quase passar fome. Após discutir a ques­tão do peso, decidiu que um corpo saudá­ vel, fisicamente em forma, era um objeti­vo mais agradável, que ela queria para seus anos de maturidade. Isso fez que ela co­meçasse a praticar exercícios e se permi­tisse ganhar peso, que era músculo. Sua “troca” positiva foi um peso mais realista que lhe permitia desfrutar de comer, mais um programa de exercícios físicos que a ajudava a se sentir mais forte e mais capaz fisicamente.

Nossa razão para descrever o caso de Molly é mostrar como os objetivos das pes­soas às vezes podem estar distorcidos e acabar gerando mais danos do que benefí­cios. Para essas pessoas, geralmente há outras formas mais positivas de atingir os objetivos. Assim, a psicologia positiva não é radical nas soluções baseadas em quali­dades que oferece às pessoas. Nos muitos casos que apresentamos neste livro, há um padrão semelhante, no qual as pessoas aprendem a trocar seus estilos de vida menos saudáveis por outros, mais positi­vos. Para que Molly e outros como ela se­jam ajudados para aumentar o positivo em suas vidas, deve-se tratar da questão de como as pessoas muitas vezes prestam atenção às coisas ruins em suas vidas, em lugar das boas. O fato de “o que é ruim ter mais força do que o que é bom” é um dile­ma central aos psicólogos positivos, do qual tratamos a seguir.

Enfrentando um dilema fundamental: o que é ruim é mais forte do que o que é bom

No artigo, de 2001, “O que é ruim é mais forte do que o que é bom” (“Bad is stronger than good”)”, o psicólogo social Roy Baumeister e colaboradores apresen­tam um dos problemas mais espinhosos para a psicologia positiva. Como sugere o provocativo título dessa revisão, as coisas na vida que podem ser caracterizadas como “ruins” parecem exercer mais poder sobre a vida humana do que as que são “boas”. Mais especificamente, Baumeister e cola­boradores sugerem que o maior poder do que é ruim em relação ao que é bom pode ser testemunhado em muitas áreas da vida e atividades, incluindo as relações inter­pessoais, os desfechos de relacionamentos íntimos, traumas e vários processos de aprendizagem. Eles revisam a literatura mostrando que o ruim - seja nos pais, nas emoções, seja em avaliações de nós mes­mos - tem mais impacto do que o bom. Para complicar ainda mais as coisas, as in­formações ruins parecem ser processadas mais completamente do que as boas. [424] Também temos mais probabilidades de formar impressões más do que boas; e os estereóti­pos ruins formam-se mais rapidamente e são mais resistentes à refutação. Da mesma forma, podemos ser mais motivados a ficar longe de autoavaliações ruins do que ir em busca das boas. Baumeister e colaborado­res concluem observando que as exceções ao preceito de que “o que é ruim é mais forte do que o que é bom” são muito raras.

Tratamos dessa importante questão usando a esperança como exemplo do que é bom e o medo como exemplo do que é ruim. Como sistemas opostos, a esperança e o medo são análogos a outros processos dialéticos, como aquisição versus proteção, aproximação versus retraimento e ação versus conservação. Ao fazer esses pares de processos opostos, é interessante pensar na esperança como uma atividade um tanto deliberativa, que é acompanhada por emo­ções positivas, enquanto o medo é uma emoção mais automática que aparece em circunstâncias de muito estresse.

O medo e a esperança operam em níveis diferentes no cérebro. Sobre isso, LeDoux (1986) relatou que as excitações límbicas (entre o tálamo e a amígdala) ocorrem com interferência cortical, suge­rindo, portanto, que as cognições da espe­rança são independentes do medo, o qual emana dos sistemas afetivos. LeDoux (1995) também concluiu que a codificação afetiva do medo no cérebro muitas vezes não che­ga à consciência. Assim, como o medo não é necessariamente refletido nas percepções conscientes, ele não tem que passar por qualquer processo de “atualização”. Na mesma linha, LeDoux (1996) sugeriu que há dois caminhos pelos quais os impulsos viajam para evocar emoções. O caminho inferior envolve conexões relativamente curtas entre receptores e o sistema nervo­so central (o tálamo e a amígdala). Esse caminho inferior gera reações de medo a estímulos ameaçadores, e o processo se dá abaixo do nível da consciência. Em segun­do, o caminho superior envolve ligações de pensamento esperançoso (o tálamo e a amígdala com o córtex) que ocorrem den­tro da consciência.

O medo visa proteger a vida e preser­var as coisas da forma que são (homeostase). Além disso, como o medo tem diver­sas conexões a partir do sistema límbico (afetivo) às estruturas corticais, é poten­cialmente mais poderoso do que o pensa­mento direcionado ao futuro. Para aumentar o poder do medo, ele pode ser evocado por várias memórias humanas. As expe­riências prolongadas de medo ampliam as redes mentais associativas, resultando em superestimação de sua prevalência e sua importância. Como tal, o medo limita o processamento cognitivo e geralmente am­plifica nossas tendências humanas a evitar o risco. Dessa forma, o medo é protetor e defensivo, e nos torna menos abertos a novas perspectivas.

Diferentemente do medo, o pensa­mento direcionado ao futuro entra em cena quando formulamos um objetivo concre­to. Esse pensamento acarreta visualizações e expectativas, e as emoções que fluem dele via de regra nos fazem sentir bem. Ao con­trário do medo, no qual as emoções são centrais, no pensamento direcionado ao fu­turo as emoções que são vivenciadas são secundárias no sentido de refletir diagnósticos cognitivos de como estamos nos sain­do em nossas atividades de busca de obje­tivos. Obviamente, então, as emoções po­sitivas cumprem um papel mais importan­te no pensamento direcionado ao futuro do que no medo, no qual o comando é das emoções negativas.
Tanto o pensamento direcionado ao futuro quanto o medo têm implicações para a seleção natural em um sentido evolutivo. Nossa sobrevivência inicial como espécie pode ter dependido mais da transmissão aos filhos dos processos de pensamento baseados no medo do que do pensamento direcionado ao futuro. Com o passar dos anos, contudo, o medo pode ter se torna­do menos essencial, talvez até mesmo irracional e mal-adaptativo em ambientes em que não era justificado. A medida que a [425] evolução humana continua, o pensamen­to direcionado ao futuro pode muito bem ser a abordagem mais racional de enfrentamento e pode ter vantagens em relação ao medo. É aqui que apresentamos nossa res­posta à persuasiva questão de Baumeister e colaboradores, “O que é ruim é mais forte do que o que é bom”, a qual, por razões evolutivas iniciais, fazia sentido. À medida que evoluímos como espécie, nosso progresso de hoje pode demandar uma ênfase diferente, em que alimentemos cuidadosamente a espe­rança em lugar de permitir que o medo go­verne nossa vida. Por analogia, então, de­ vemos promover o que é bom em lugar de deixar que o que é ruim controle nossa vida.

É exatamente aqui que a psicologia positiva oferece uma solução para desatar o nó de “o que é ruim é mais forte do que o que é bom”. Se escolhermos, poderemos pensar e sentir de forma que o que é bom ganhe ascendência sobre o que é ruim em nossa vida. Essa não será uma tarefa fácil, mas os defensores da psicologia positiva nunca afirmaram que essa mudança se daria sem esforço. Pelo contrário, seria di­fícil, mas a psicologia positiva oferece pla­nos para ver que o que é bom triunfa sobre o que é ruim. Parte do sucesso dos proces­sos positivos, tais como a esperança, resi­dirá na maior atenção da sociedade a ques­tões que envolvam as qualidades humanas. Nossa avaliação da questão do reconheci­mento das qualidades humanas é apresen­tada a seguir.

A Psicologia positiva está conquistando atenções

Quanta atenção a mídia está dando às idéias da psicologia positiva? Com que seriedade os jornalistas estão tratando as descobertas psicológicas relacionadas a esse campo? Em um tempo relativamente curto, a psicologia positiva começou a cha­mar mais atenção, dentro e fora da psico­logia (vide Seligman, Steen, Park e Pe­terson, 2005), mas é importante repetir nossas conclusões do primeiro capítulo: os pesquisadores da psicologia positiva não estão denegrindo o campo com seu traba­lho, como alguns lamentaram (por exem­plo, Lazarus, 2003). Parece, contudo, que o trabalho que tem sido feito na psicologia positiva captou a atenção das pessoas dentro e fora da área. Outro sinal estimu­lante é que em janeiro de 2006, o The Journal of Positive Psychology, editado por Robert Emmons, começou a publicar arti­gos que se concentram unicamente no es­tudo das qualidades humanas e das emo­ções positivas.

A atenção da mídia ao positivo vai contra a velha máxima que diz que “as más notícias vendem jornal”. Por essa razão, a disposição da mídia impressa e visual de discutir as conclusões da psicologia positi­va merece ainda mais destaque. Quando os autores deste texto perguntaram a jor­nalistas de jornais impressos, revistas e te­levisão acerca desse fenômeno, eles expres­saram a opinião de que o público está far­to das constantes más notícias. Como tal, a psicologia positiva oferece um antídoto para se sentir bem diante das marcas da tragédia deixadas por atos da natureza e pelas mãos humanas. Esses mesmos jorna­listas também observaram que a base cien­tífica sólida da psicologia positiva torna as conclusões ainda mais relevantes. Isto é importante, e os pesquisadores da psicolo­gia positiva deveriam ser cuidadosos em relação às afirmações que fazem sobre con­clusões de pesquisa. Como escreveu Snyder (2000c),

Ao construirmos uma nova psicologia de como a mente pode funcionar para o bem das pessoas, devemos aderir a práticas corretas de amostragem, delineamentos de pesquisas causais sempre que for pos­sível e aplicações rígidas da inferência es­tatística. Devemos ter critérios para nos­sas afirmações, ter presente que declara­ções superzelosas prejudicam a defesa da psicologia positiva. E devemos ter pa­ciência com o fato de que a ciência da [426] psicologia se constrói sobre evidências acu­muladas. Nesse meio-tempo, os que bus­cam testar vários preceitos da psicologia positiva fariam bem em se manter céticos (p. 24).

Não apenas a mídia tem fome de vi­sões positivas sobre as pessoas, como tam­bém a pessoa média pode ser atraída para a abordagem baseada em qualidades. Du­rante anos, quando viajavam, os autores deste livro se deparavam com a pergunta: “Então, em que você trabalha?”. Nossa re­posta inicial, de que éramos psicoterapeutas de clínica ou aconselhamento, tendia a interromper as conversas, de forma que mudamos nossa resposta para “somos pro­fessores universitários”. Agora, contudo, anunciamos que somos psicólogos positi­vos, e isso desencadeia conversações ani­madas e agradáveis. As pessoas querem aprender sobre o tema, e nós queremos falar dele para outras. Tais reações podem refletir o fato de que as pessoas realmente se cansaram das abordagens anteriores baseadas nas patologias e nos defeitos, ou talvez haja reações intrínsecas favoráveis à abordagem geral das qualidades. Em qualquer um dos casos, indica uma postu­ra aberta por parte das pessoas leigas aos preceitos da psicologia positiva.

A Psicologia positiva como fenômeno mundial 

Como observamos no primeiro capí­tulo, o ímpeto moderno para o surgimento da psicologia positiva veio por intermédio da liderança de Martin Seligman durante seu mandato como presidente da American Psychological Association. O Dr. Seligman conclamava a psico­logia a tratar do positivo nas pessoas. Des­de aquela época, ele tem trabalhado incan­savelmente para ver a psicologia positiva criar raízes.

Como ele é um renomado psicólogo norte-americano, não é de surpreender que, em princípio, suas iniciativas se concentras­sem nos Estados Unidos. Para seu crédito, contudo, ele estabeleceu contato com os muitos estudiosos da psicologia positiva em todo o planeta. Por exemplo, na terceira Cúpula Anual Internacional de Psicologia Positiva (Third Annual International Positi­ve Psychology Summit) em Washington, D. C. (patrocinado pela Organização Gallup e pela Universidade Toyota), participaram psicólogos de 23 países; estudantes e adul­tos de todo o mundo estavam lá, nas con­dições de participantes e palestrantes. Mais do que isso, os lugares para apresentação da pesquisa e aplicações da psicologia po­sitiva estão cada vez mais situados em di­versos países. Em julho de 2004, na Itália, por exemplo, a Rede Européia de Psicolo­gia Positiva promoveu sua segunda confe­rência (Seligman et al., 2005).

A psicologia positiva deve dar conti­nuidade à sua abordagem mundial, pois suas idéias e suas descobertas são funda­mentais para todas as pessoas. É importan­te que os líderes acadêmicos incluam vo­zes de todo o planeta em livros de psicolo­gia positiva. Em nosso levantamento de li­vros importantes recentemente publicados sobre o tema, a porcentagem de estudio­sos de fora dos Estados Unidos variou de meros 7 a elevados 37%, com uma moda de 21%. Se a psicologia positiva quiser se tornar verdadeiramente um fenômeno mundial, devemos conseguir incluir ainda mais pesquisadores e profissionais de todo o mundo em nossos livros principais. O mesmo se aplica a artigos veiculados em nossas publicações acadêmicas. Elas não podem ser um clube com membros de ape­nas alguns países (vide Snyder e Feldman, 2000). Em lugar disso, devem acolher muitas pessoas de diversas culturas e paí­ses em todo o mundo. Discutimos essa questão na próxima seção, na qual sugeri­mos que os benefícios da psicologia positi­va deveriam estar disponíveis às pessoas de todo o mundo. [427] 

Para muitos, e não apenas para uns poucos

Como tem sido o caso da psicologia em geral, a ênfase da psicologia positiva até agora tem estado no indivíduo em vez de na comunidade. Na verdade, o final do século XX tem se caracterizado como a era da geração “eu”. Sendo assim, como geral­mente há ciclos em relação a essas ques­tões, está na hora de o pêndulo oscilar de volta em direção ao coletivo e ao que é bom para muitos, em vez de apenas para um.
Entretanto, determinados eventos po­tenciais podem limitar os efeitos da psico­logia positiva a uns poucos escolhidos, e isso nos preocupa, como cientistas e pro­fissionais. Especificamente, algumas pes­soas acreditam que a psicologia aplicada deveria se transformar em uma profissão de “coaches” pessoais. O problema dessa mudança, em nossa avaliação, é que os ri­cos conseguirão pagar os altos custos dos “coaches” pessoais. Já estamos testemu­nhando uma ampliação em nível mundial do abismo entre os que são financeiramente afluentes e os pobres (Ceei e Papierno, 2005), e parece antitético em relação aos preceitos da psicologia positiva que ela deva contribuir a esse perturbador distan­ciamento entre os que têm e os que não têm. Nas palavras de John F. Kennedy em seu discurso de posse, em 20 de janeiro de 1961, “Se não for capaz de ajudar os mui­tos que são pobres, a sociedade não pode­rá salvar os poucos que são ricos”.

Uma maneira de se garantir que os benefícios da psicologia positiva estejam disponíveis a mais pessoas é valorizar e honrar os diferentes objetivos que existem atualmente em sociedades em todo o mun­do. Da mesma forma, devemos aumentar o número de objetivos que são valorizados dentro de cada uma dessas sociedades. Tra­dicionalmente, entre eles estão o dinhei­ro, as conquistas (intelectuais e atléticas) e a aparência física. Como já afirmamos em outro momento (Snyder e Feldman, 2000, p. 391), deve-se pesar mais em:

  1. preocupar-se com os outros;
  2. produzir produtos duráveis e confiáveis;
  3. inventar novos produtos;
  4. realizar pesquisas básicas e aplicadas; e
  5. promover a segurança no local de tra­balho e em outros lugares.

Ao estimular novas oportunidades pa­ra as pessoas terem objetivos, estamos pos­sibilitando que uma quantidade maior de­las experimente os benefícios relacionados a atingir esses cobiçados objetivos.

Outra forma de aumentar as oportu­nidades de muitos é dar mais ênfase a ob­jetivos de longo prazo. Infelizmente, os objetivos de curto prazo muitas vezes são autocentrados (por exemplo, “O que eu levo nisso?”, vide Lerner [1996]). A psico­logia positiva para muitos também pode auxiliar no adiamento da gratificação em lugar de “receber o que é meu agora”. Além disso, objetivos de longo prazo e grande porte podem precisar de que várias pesso­as se unam em um coletivo.

Uma outra meta da psicologia positi­va para muitos é mudar nossas atitudes e nosso comportamento em relação a pes­soas mais velhas e idosos. Em lugar da vi­são extremamente comum de que as pes­soas mais velhas são como alguém que foi colocado para descansar, devemos dar mais oportunidades para sua contribuição per­manente e suas atividades mentais rigoro­sas. Pensemos nas imensas perdas de ta­lentos que ocorrem quando não usamos as muitas habilidades adquiridas pelas pesso­as mais velhas! Qualquer coisa que se pos­sa fazer para garantir que os mais velhos contribuam, desde o nível social até o fa­miliar, será útil a nós. São necessários pro­gramas nas escolas e talvez, até mesmo, nos meios de comunicação de massa, para mudar os estereótipos negativos em rela­ção ao envelhecimento. Afinal de contas, as pessoas devem se lembrar de que esse é [428] o único grupo minoritário para o qual to­dos entraremos com o passar dos anos. Mais do que tudo, a psicologia positiva para muitos deveria contra-atacar as profecias autorrealizáveis relacionadas à perda per­cebida de capacidades quando se envelhe­ce. Isso preveniria o que se chamou de recessão psicológica, a deterioração desne­cessária das faculdades mentais com a ida­de avançada (vide Snyder, no prólogo a Williamson, Shaffer e Parmalee, 2000).

Para muitos, um último objetivo da psicologia positiva seria o de preservar o que é de todos, o commons, em inglês. Essa noção vem de tempos antigos, nos quais os povoados tinham áreas de pastagem cen­trais que eram compartilhadas por todos os proprietários de gado. Com o passar do tempo, o termo passou a estar relacionado a recursos ambientais, como a água, a ma­deira, o solo, os minerais e o petróleo, que possam beneficiar muitas pessoas. O pro­blema, claro, é que os recursos naturais são limitados, e - se não fizermos algo para limitar os desejos individualistas de usá-los - eles serão esgotados (vide Edney e Harper, 1978). A psicologia positiva ensi­naria as pessoas a como trabalhar conjuntamente e a agir coletivamente para pre­servar nossos recursos naturais. Trabalhan­do juntos em unidades menores, as pesso­as têm mais probabilidades de cooperar e assumir responsabilidades por suas ações individuais (vide Dawes, 1980), garantin­do assim que os preciosos recursos natu­rais ainda estejam disponíveis para nossos filhos.

Os jovens e a educação em Psicologia positiva

Ainda é muito cedo para avaliar se a psicologia positiva está atraindo novas coortes de estudantes para que usem essa abordagem como base de suas carreiras acadêmicas e aplicadas. A educação será crucial para essa futura migração de estu­dantes em direção à abordagem que a psicologia positiva tem da pesquisa e da prá­tica. Os livros-texto e os professores de in­trodução à psicologia já estão incluindo a cobertura do campo. Igualmente, cerca de 100 universidades e faculdades instituíram cursos de graduação e pós-graduação que apresentam aos alunos os princípios da psicologia positiva. A existência deste e de outros livros-texto sobre o tema é um sinal do crescimento desses cursos.

À medida que esses alunos de gradua­ção avançarem na faculdade, também irão ler vários livros com conteúdo de psicolo­gia positiva como parte de disciplinas opcionais nos temas de personalidade, di­ferenças individuais, saúde, psicologia anormal e psicologia clínica, para citar ape­nas alguns. Na verdade, na última década, houve uma explosão de livros dedicados a vários tópicos em psicologia positiva.

Os professores também usarão filmes como recurso auxiliar no ensino de psico­logia positiva. Por exemplo, estão disponí­veis dois filmes de meia hora sobre a ciên­cia das qualidades humanas, nos quais renomados estudiosos da psicologia posi­tiva apresentam suas visões em conversas com leigos que vão desde adolescentes até pessoas de 90 anos. Os filmes se concen­tram em tópicos importantes, como encon­trar as próprias qualidades principais, es­colher trabalhos que sejam adequados aos talentos da pessoa, preservar a saúde e en­velhecer bem. Os títulos dos filmes são Introducing positive psychology: personal well-being, Social support, Health, and aging well e Introducing positive psychology: signature strengths, flow, and aging well.

Em nível de pós-graduação, os prin­cípios da psicologia positiva estão nas ba­ses de todas as ofertas da Universidade Gallup e estão aparecendo em programas de doutorado em orientação, psicologia clínica, saúde, psicologia social, psicologia infantil e educação especial. Mais do que isso, o primeiro programa de pós-gradua­ção voltado totalmente à psicologia positi­va é o mestrado em Psicologia Aplicada, que foi iniciado na Universidade da Pensilvânia. Esse programa aplicado se destina a ajudar as pessoas que estão tra­balhando em tempo integral a aprender a usar a abordagem baseada em qualidades para beneficiar várias clientelas. Se você tem interesse em aprender mais sobre esse programa pioneiro, visite a página na in­ternet www.sas.upenn.edu/CGS/graduate/mapp.

Para aprender mais sobre psicologia positiva, você pode visitar outras páginas na internet. As principais são as seguintes:

  • www.positivepsychology.org/
  • www.apa.org/science/positivepsy.html
  • www. authentichappiness.org
  • www.bus.umich.edu/Positive/
  • www.divl7.org/positivepsychology

Além disso, você pode participar de uma lista de discussão sobre psicologia positiva em http://www.ppc.sas.upenn.edu/listservsignup.htm.
Para os jovens pesquisadores que de­sejam aprender mais sobre a abordagem experimental a partir de líderes experien­tes no setor, o Positive Psychology Institute acontece todos os verões. Além disso, a [431] Positive Psychology Network financia mais de 150 acadêmicos de todo o mundo. Por fim, estão surgindo centros de psicologia positiva, e atualmente já existem nos se­guintes lugares: Filadélfia, Pensilvânia; Urbana-Champaign, Illinois; Claremont, Califórnia e Ann Arbor, Michigan.

Embora as informações discutidas nes­ta seção certamente sugiram que estão apa­recendo novas oportunidades para estudan­tes interessados na psicologia positiva, ain­da não sabemos se o número dos que são atraídos para esse enfoque está crescendo. Pode passar uma década antes que consiga­mos avaliar se há aumentos confiáveis na quantidade de alunos que buscam a psico­logia positiva de uma forma ou de outra.

 

Visões de especialistas sobre a Psicologia positiva do século XXI

Se a psicologia positiva irá verdadei­ramente prosperar no século XXI depen­de, em nossa avaliação, de como ela [433] tratará diversos desafios potenciais, explorados anteriormente neste capítulo. Para apresen­tar outras visões do desafio que temos à nossa espera, contatamos vários especia­listas e lhes pedimos que nos apresentas­sem suas visões sobre questões fundamen­tais. Nesta seção, apresentamos as visões desses especialistas. [434]

A Força da atitude: as histórias de Johnsy e Jerry

Neste livro, mostramos numerosos exemplos da força intensa da mente hu­mana para melhorar a vida das pessoas. No que talvez seja um dos contos mais bo­nitos da literatura inglesa, A última folha, O. Henry (1945) fala dessa força, assim como das muitas páginas de pesquisas que citamos. Na história, uma jovem chamada Johnsy contrai pneumonia, e em pouco tempo a situação piora a ponto de colocar sua vida em risco. É inverno, e Johnsy fica mais doente a cada dia que passa. Fora de seu quarto, ela enxerga pela janela uma hera na parede e se convence de que essa planta vai prever sua morte iminente. Johnsy conclui que, quando a hera perder sua última folha, ela também perecerá e por isso passa as horas em que está acor­dada olhando pela janela, vendo as folhas caírem uma a uma.

Para sua surpresa, uma folha perma­nece na planta mesmo quando o inverno se aprofunda. Certamente, isso é um pressá­gio, um sinal de milagre, pois essa única fo­lha teimosa se agarra à vida. Vendo isso, Johnsy se convence cada dia mais de que ela também foi escolhida para viver. E ela vive, trocando um prognóstico ruim por um bom. Quando está totalmente recuperada, Johnsy descobre que um artista amigo seu havia pintado essa última folha na parede em que a hera cresceu! Mas isso não é im­portante para ela nesse momento, pois ela se dá conta de que foi a força de sua mente que alimentou sua vitória sobre a pneumonia.

O. Henry entendeu o poder das ex­pectativas que podem se formar na mente humana. Da mesma forma, a moderna psi­cologia positiva nos ensina que aquilo que acreditamos que irá acontecer muitas ve­zes acontece. Pense e sinta coisas boas, e essas coisas terão mais probabilidades de acontecer. É claro que isso não significa que você pode simplesmente sentar inerte e esperar pelo que é bom; em lugar disso, você pode ter que trabalhar duro, muito duro. No entanto, ao pensar que pode sobreviver, como Johnsy e sua folha, você tem mais probabilidades de viver, e de vi­ver bem. Não importava que a folha não fosse “real”, pois no lugar mais importan­te, na mente de Johnsy, ela o era. E o amor e o carinho de seu amigo artista também eram reais.

Semelhante à boa atitude de Johnsy, examine a atitude de Jerry [443] (Baltazar Schwartz, http://pr.erau.edu/—madler/atttitude.html). Sempre de bom humor, Jerry conseguia dizer algo positivo em qua­se qualquer situação. Sua resposta favori­ta, quando lhe perguntavam como ele ia, era: “Se melhorar, estraga”.

Para Jerry, a vida era uma questão de escolhas. Sua visão era que é possível op­tar por se sentir bem ou mal. Como geren­te de um restaurante, sua atitude foi testa­da um dia em que ladrões armados entra­ram no restaurante e atiraram nele. Leva­do às pressas ao pronto-socorro, ele viu os rostos sombrios de médicos e enfermeiros. As expressões deles diziam: “Esse cara está morto”. Naquele momento, a enfermeira-chefe perguntou se ele era alérgico a algu­ma coisa. Jerry disse que era, e a sala ficou em silêncio enquanto todos esperavam por uma resposta. Jerry gritou: “Sou alérgico a BALAS!”. As pessoas na sala explodiram em risos, e Jerry lhes disse que estava es­colhendo viver. E, depois de horas de ci­rurgia minuciosa, ele realmente viveu.

As histórias de Johnsy e Jerry mos­tram a força das atitudes positivas. Não apenas podemos viver, como também po­demos viver bem se acreditarmos. Na ver­dade, a história contada pela psicologia positiva e a ciência sobre a qual ela é construída nos deixam com uma atitude fortalecedora: “Podemos!”.

Anexo: Ciências sociais positivas 

Dr. Martin E. P. Seligman

Em sua biografia de Franklin e Eleanor Roosevelt, uma destacada cientista política analisa a busca incansável de Eleanor pela justiça para pobres e negros como uma tentativa de compensar o alcoolismo de seu pai e o narcisismo de sua mãe. A possibili­dade de que Eleanor estivesse simplesmen­te em busca da virtude não é cogitada. As pesquisas em psicologia passaram meio século documentando os muitos efeitos mentais negativos do isolamento, do trau­ma, do abuso, da doença física, da guerra, da pobreza, da discriminação, da morte precoce dos pais e do divórcio. Mas esse foco permanente no negativo deixou a psi­cologia cega para os muitos casos de cres­cimento, superioridade, força e visão que se desenvolvem a partir de eventos inde­ sejáveis e dolorosos.

De que forma as ciências sociais pas­saram a ver as qualidades e as virtudes hu­manas (altruísmo, coragem, honestidade, dever, alegria, saúde, responsabilidade e ânimo) como ilusões reativas, defensivas ou simples enganos, em que os defeitos e as motivações negativas (ansiedade, cobiça, egoísmo, paranoia, raiva, transtorno e tristeza) são considerados autênticos?

Quando enfrenta ameaças militares, pobreza, revolta social ou falta de merca­dorias, uma cultura se preocupa mais com questões relacionadas ao lado negativo da vida. As ciências que ela sustenta estarão ligadas à defesa e ao dano. A psicologia moderna, dessa forma, tem se preocupado com a cura. Em termos gerais, entende o funcionamento dentro de um modelo ba­seado na doença, e seu principal modo de intervenção tem sido consertar o dano. Teoricamente, tem sido uma vitimologia em que os seres humanos são vistos como passivos, “respondendo” a estímulos externos, ou consumidos por conflitos não-resolvidos ditados por traumas de infância, ou movidos por necessidades de pele, pulsões e instintos, ou como vítimas inde­fesas de forças culturais e econômicas opressivas.

Nos poucos momentos na história em que as culturas foram prósperas, viveram [444]  em paz e tiveram estabilidade, algumas delas redirecionaram suas atenções, das preocupações com a defesa e o dano à pro­moção das mais elevadas qualidades na vida. Ao fazê-lo, essas culturas têm dado contribuições monumentais ao progresso humano. A Atenas do século V a.e.c., a In­glaterra vitoriana e a Florença do século XV são exemplos disso.

A prosperidade de Atenas estimulava a filosofia, que fez nascer uma nova forma de política, a democracia. A Inglaterra vitoriana, sustentada por um império ge­neroso, cultuava a honra, a disciplina e o dever. Os negócios de lã e bancos de Flo­rença fizeram dela a cidade-estado mais rica e mais estável da Europa. Florença decidiu dedicar grande parte de seu exce­dente não a se tornar a cidade mais pode­rosa da Europa, e sim à criação da beleza.

Acredito que os Estados Unidos de hoje estão entrando em um momento como esse em termos de história do mundo. Não estou propondo que construamos um mo­numento estético, e sim um monumento científico humano, ou seja, que as ciências sociais, trabalhando em nível individual, assumam como sua missão a definição, medição e promoção da realização e da vontade humanas; trabalhando em nível coletivo, assumam a virtude cívica como seu tema específico. Minha visão é de que as ciências sociais irão finalmente enxer­gar além do corretivo e escapar do sensacionalismo que as tem marcado, que irão se tornar uma força positiva para se en­tenderem e promoverem as mais elevadas qualidades da vida cívica e pessoal.

A psicologia corretiva teve suas vitó­rias, especialmente como ciência da doen­ça mental. Como resultado disso, as cau­sas de pelo menos 10 das principais doen­ças mentais foram esclarecidas e esses transtornos podem ser aliviados em mui­to, atualmente, por meio de intervenções farmacológicas e psicológicas. Todavia, tris­temente, enquanto sondava as profundezas daquilo que a vida tem de pior, a psicolo­gia perdeu a conexão com o lado positivo, isto é, o conhecimento sobre o que faz com que a vida humana valha a pena ser vivi­da, seja mais gratificante, mais agradável e mais produtiva.

Essa ciência é possível. As principais teorias psicológicas mudaram para dar sus­tentação às qualidades humanas e à res­ponsabilidade. Nem todas as teorias domi­nantes continuam vendo o indivíduo como passivo; em vez disso, os indivíduos são considerados agora como tomadores de de­cisões, com opções, preferências e a pos­sibilidade dé se tornarem superiores, efi­cazes ou, em circunstâncias negativas, in­defesos e desesperançosos. Temos um cam­po de medição no qual os estados negati­vos de depressão, medo, anomia, agressão e desespero podem ser avaliados de ma­neira confiável e válida. Temos um campo que é capaz de investigar os estados cere­brais relevantes e a neurofarmacologia.

Nosso campo desenvolve métodos experi­mentais engenhosos e sofisticados mode­los causais para investigar como a expe­riência molda esses estados e como eles se desenvolvem no decorrer da vida. E fomos pioneiros nas intervenções que se mostra­ram eficazes para desfazer esses estados indesejáveis. Agora, podemos nos servir desses mesmos métodos para medir e en­tender como construir qualidades huma­nas e virtudes cívicas.

Esse tipo de atividade científica não é uma quimera. Há corpos empíricos viá­veis de conhecimento sobre o flow e sobre o otimismo, por exemplo, mas eles repre­sentam apenas uma pequena fração do corpus das ciências sociais. A investigação minuciosa das qualidades pessoais e da virtude cívica não acontecerá de forma fácil ou barata. Ela pode ser o “projeto da bom­ba atômica” no campo das ciências sociais, mas, para tanto, serão necessários recur­sos substanciais.

As ciências sociais do século XXI te­rão como efeito colateral útil a possibili­dade de prevenção de doenças mentais [445] graves, pois há um conjunto de qualidades humanas que provavelmente protege con­tra as doenças mentais: coragem, otimis­mo, habilidade interpessoal, ética profissi­onal, esperança, responsabilidade, mente voltada para o futuro, honestidade e per­severança, para citar algumas. E isso terá como efeito direto um entendimento cien­tífico da prática da virtude cívica e da bus­ca pelas melhores coisas na vida. [446]

Psicologia - Psicologia positiva
Comportamento - Interação social, comunidades
10/20/2020 2:47:16 PM | Por Charles Richard Snyder
O equilíbrio Eu-Nós - construindo comunidades melhores

Neste capítulo, usamos como base duas motivações humanas importantes. A primeira é o foco individualista, no qual se busca ser especial em relação aos outros. Uma segunda motivação é o foco coletivista, no qual se tenta maximizar o vínculo com os outros (Bellah, Madsen, Sullivan, Swidler e Tipton, 1985, 1988; Snyder e Fromkin, 1980). Inicialmente, exploramos o foco in­dividualista em uma pessoa - o EU - segui­do de um foco coletivista em muitas - o NÓS. Por fim, propomos uma mescla de um com muitos - o NÓS/EU, ou, mais simples­mente, o coletivo. Essa postura representa uma entremescla na qual indivíduo e grupo são considerados essenciais para vidas satisfatórias e produtivas. Em nossa visão, a perspectiva do coletivo reflete uma reso­lução viável, baseada na psicologia positi­va, para o futuro da humanidade.

Individualismo: a Psicologia do Eu

Nesta seção, mencionamos a história dos Estados Unidos, marcada pelo indivi­dualismo bruto (também discutido no Ca­pítulo 2), junto com as ênfases central e secundária que definem uma pessoa como individualista. A seguir, discutimos um as­ pecto do individualismo, a necessidade de singularidade, e mostramos como isso pode ser avaliado e manifestado em diversas ati­ vidades.

Uma breve história do individualismo nos Estados Unidos

Desde a publicação Democracia na América, Alexis de Tocqueville (1835/ 2003), os Estados Unidos têm sido conhe­cidos como a terra do “individualismo ru­de”. A essência dessa visão é que qualquer pessoa com uma boa ideia, por meio do trabalho esforçado, pode atingir seus objetivos pessoais. Nas palavras de Tocque­ ville, os norte-ame­ricanos “formam o hábito de pensar em si mesmos isolada­mente e imaginar seu destino todo em suas próprias mãos” (p. 508). Esse indi­vidualismo estava relacionado à ênfa­se norte-americana [397] em direitos iguais e liberdade (Lukes, 1973), bem como à sua economia de cará­ter capitalista e às suas fronteiras abertas (Curry e Valois, 1991). Desde o estabeleci­mento da independência dos Estados Uni­dos em 1776, esse individualismo rude se transformou na “geração do eu” que do­minou dos anos 1960 até o início dos anos de 1990 (Myers, 2004).

infases do individualismo

Quando a preocupação com o indiví­duo é maior do que a preocupação com o coletivo, diz-se que a cultura é individualista, mas, quando cada pessoa está muito preocupada com o grupo, a sociedade é coletivista. Como se pode ver na Figura 18.1, quando uma pessoa média de uma sociedade está posicionada para a indepen­dência individual, essa sociedade é consi­derada individualista (vide a curva em for­ma de sino, desenhada com uma linha tracejada).

Figura 18.1

Entases centrais

Usamos os termos ênfases centrais e ênfases secundárias para captar os aspec­tos mais ou menos centrais das sociedades individualistas e coletivistas. Também pre­paramos o Quadro 18.1 para ajudar o lei­tor a entender as ênfases centrais e secun­dárias dentro das perspectivas individua­ listas e coletivistas.

Quadro 18,1

Como se vê na parte superior do Qua­dro 18.1, as três ênfases centrais do indi­vidualismo são o sentido de independên­cia, o desejo de se destacar em relação aos outros (uma necessidade de singularida­de) e o uso de si ou do indivíduo como unidade de análise ao pensar sobre a vida. Discutimos cada uma dessas ênfases cen­ trais a seguir.

Subjacente a cada cultura, há um con­junto de expectativas e memórias em rela­ção ao que se considera adequado para os membros de cada sociedade. Em socieda­des individualistas como os Estados Uni­dos, os padrões sociais lembram o de um tecido de trama frouxa, e a norma é que cada pessoa se considere independente do grupo ao seu redor (Triandis, 1995). So­bre isso, as pesquisas que envolvem mui­tos estudos sustentam a conclusão de que o individualismo norte-americano reflete um sentido de independência, em lugar de dependência (vide Oyserman, Coon e Kem- melmeier, 2002).

Uma segunda ênfase central do indi­vidualismo é o fato de a pessoa querer se [398] destacar da população como um todo. Em sociedades individualistas, portanto, as pessoas seguem suas próprias motivações e preferências em lugar de ajustar seus de­sejos para acomodá-los em relação aos do grupo (às vezes chamado de conformar-se'). Sendo assim, a pessoa individualista esta­belece objetivos pessoais que podem não estar em sintonia com os do grupo ao qual pertence (Schwartz, 1994; Triandis, 1988, 1990). Em função da propensão individu­alista a manifestar o caráter especial da pessoa, acoplada com apoio social a ações que demonstrem essa individualidade, os cidadãos das sociedades individualistas como os Estados Unidos têm uma grande necessidade de singularidade. As pesqui­sas relacionadas a essa questão sustentam a consistência dos pensamentos e ações em busca da singularidade entre os norte-ame­ricanos (por exemplo, Snyder e Fromkin, 1977, 1980).

Investigamos mais essa mo­tivação fascinante em maiores detalhes, posteriormente. Uma terceira ênfase central do indivi­dualismo é que o próprio eu, ou a pessoa, é a unidade de análise para se entender como as pessoas pensam e agem em uma sociedade. Ou seja, as explicações para os eventos provavelmente estarão relaciona­das à pessoa em lugar de ao grupo. Por­ tanto, as várias definições de individualis­mo se baseiam em visões de mundo nas quais os fatores pessoais são enfatizados em detrimento de forças sociais (Bellah et al., 1985; Kagitcibasi, 1994; Triandis, 1995).

Ênfases secundárias

Várias ênfases secundárias fluem do foco individualista no eu em vez de no gru­po. Elas estão listadas no Quadro 18.1. Os objetivos estabelecidos pelos cidadãos para uma sociedade individualista geralmente estão voltados à própria pessoa, e o suces­so e as satisfações relacionadas a ele tam­bém funcionam em nível individual. Dito [399] de forma simples, as compensações acon­tecem no plano pessoal em lugar do cole­tivo. A pessoa individualista busca aquilo que lhe agrada, em contraste com a pes­soa coletivista, que deriva seus prazeres de coisas que promovam o bem-estar do gru­po. É claro que o individualista, às vezes, pode seguir normas coletivas, mas isso ge­ralmente acontece quando ele deduziu que é pessoalmente vantajoso.

Como já pode ter ficado óbvio, os in­dividualistas se concentram no prazer e em sua própria autoestima quando se trata de relacionamentos interpessoais e em outras áreas. Eles também pesam as desvantagens e as vantagens dos relacionamentos antes de decidir se investem neles (Kim, Sharkey e Singelis, 1994). A pessoa individualista realiza análises de benefícios para deter­minar o que pode lucrar a partir deles, ao passo que os coletivistas têm mais proba­bilidades de dar seu apoio incondicional a seu grupo e pensar, acima de tudo, em seus deveres para com ele. Ao contrário dos in­dividualistas, os coletivistas têm menos pro­babilidades de se comportar de forma es­pontânea em função de suas preocupações com seu grupo de pares. Os individualistas tendem a ter um pensamento de curto prazo, ao passo que os coletivistas têm padrões de mais longo prazo. Por fim, como mos­trado no Quadro 18.1, as pessoas nas so­ciedades individualistas muitas vezes são um tanto informais em suas interações com as outras, enquanto as das sociedades cole­tivistas são mais formais, já que seguem normas esperadas e importantes que de­terminam esses comportamentos. (Para uma discussão minuciosa de todas essas ênfases secundárias, recomendamos o ar­tigo de Oyserman et al., 2002.)

Exemplos pessoais de individualismo

Em algum ponto de minha caminha­da rumo à vida adulta, eu (C.R.S.) assumi o individualismo rude e passei a acreditar que pedir ajuda não era uma boa opção.

Durante a minha infância, devo ter recebi­do o conselho de não recorrer aos outros. Por alguma razão, eu estava pensando so­bre essa minha máxima orientadora en­quanto escrevia este capítulo hoje, domin­go, 26 de dezembro de 2004, quando com­pleto 60 anos.

A medida que vamos crescendo, todos recebemos muitas mensagens da comu­nidade em que estamos inseridos. Algumas têm sentido, mas muitas não o têm. Embo­ra essa lição que diz para não pedir ajuda esteja na segunda categoria, entendo seu poder de sedução. Talvez ela possa estar relacionada a nosso enraizamento no indi­vidualismo rude, no qual aprendemos as recompensas de realizar alguma coisa to­talmente por conta própria. Entretanto, isso pode ser realmente absurdo, pois, mesmo quando pensamos que estamos fazendo alguma coisa totalmente “por conta pró­pria”, na verdade estamos usando idéias e invenções de nossos ancestrais para che­gar a nossos objetivos. Outras vezes, é simplesmente tolo não se dirigir aos demais e fazer a simples pergunta: “Você pode me dar uma mão aqui, por favor?”.

Há muitos exemplos de minha tola adesão a essa regra de não pedir ajuda, mas um será suficiente. Quando fazia pós-gra­duação, eu me orgulhava de carregar o maior número de sacolas de compras que conseguia agarrar. Com duas sacolas de papel em cada braço, caminhava com difi­culdades até a porta do meu edifício. Nes­se momento, eu me deparava com um di­lema: como destrancar e depois abrir a enorme porta de entrada enquanto segu­rava as quatro sacolas. Embora vários vizi­nhos passassem por mim, e alguns até se oferecessem para ajudar, eu não aceitava. Colocar as sacolas no chão também repre­sentava uma outra violação distorcida da regra de não pedir ajuda. Em lugar disso, passava por uma sessão de equilíbrio na qual tentava tirar as chaves do bolso das calças, achar a chave certa, colocá-la na fechadura e abrir a porta, tudo isso enquan­to equilibrava as sacolas de compras. [400] 

É claro que você consegue imaginar o que acontecia, às vezes: eu derrubava as sacolas. Outras vezes, os sacos de papel se rasgavam e as coisas caíam no chão. Uma vez, isso aconteceu durante uma rara tem­ pestade de neve em Nashville. Depois de cair de costas, com minhas compras espa­lhadas à minha volta, fiquei na neve, rin­do. Foi então que mudei minha política de não pedir ajuda e desde então não me arrependi. Nem uma única vez.

Desde aqueles tempos de pós-gradua­ção, descobri que as pessoas estão mais do que dispostas a ajudar quando peço. Ajudar os outros faz que as pessoas se sintam bem.

Uma síntese do individualismo

A perspectiva individualista parece estar centrada nos três elementos funda­mentais mostrados no Quadro 18.1 - in­dependência, singularidade e o eu como unidade de análise. Em relação a se os nor­te-americanos têm elevado individualismo, a conclusão baseada no corpo de pesquisa reunido parece ser um sim qualificado. Na análise mais sofisticada dessa questão ge­ral, Oyserman e colaboradores (2002) con­cluíram que os euro-americanos eram mais individualistas do que os membros de ou­tros países, no sentido de valorizar a inde­pendência pessoal. Oyserman e colabora­dores também concluíram, contudo, que os euro-americanos não eram mais individua­listas do que os afro-americanos ou os nor­te-americanos de origem latino-americana.

A necessidade de singularidade

Olhemos mais uma vez a Figura 18.1. Embora seja verdade que as normas das sociedades individualistas enfatizam a pes­soa (vide a linha tracejada com uma seta na parte de baixo), você observará que al­gumas pessoas se situam mais próximas ao extremo coletivo do contínuo e outras se aproximam do extremo individual. A esse respeito, examinamos agora o desejo de manifestar um caráter especial em relação a outras pessoas.

A busca de objetivos individualistas para produzir uma sensação de ser espe­cial foi chamada de necessidade de sin­gularidade (vide Lynn e Snyder, 2002; Snyder e Fromkin, 1977,1980). Diz-se que essa necessidade teria algum apelo univer­sal, à medida que as pessoas buscam man­ter algum grau de diferenciação em rela­ção às outras (assim como manter um laço com outras pessoas). Na década de 1970, os pesquisadores Howard Fromkin e C. R. Snyder (vide Snyder e Fromkin, 1977, 1980) participaram de um programa de pesquisa baseado na premissa de que a maioria das pessoas tem um desejo de ser especial em relação às demais. Eles cha­maram essa motivação humana de necessi­dade de singularidade. Mais do que estabe­lecer que a maioria das pessoas em suas amostras de norte-americanos desejava ser especial de alguma forma, tais pesquisa­dores também argumentaram que algumas pessoas têm uma elevada necessidade de singularidade, ao passo que outras a têm baixa. Resumindo, há diferenças indivi­duais na necessidade de singularidade.

Codificação da informação sobre semelhança

As pessoas definem a si mesmas se­gundo uma série de dimensões de identi­dade. Uma dimensão de identidade é “um conjunto de atributos da pessoa que têm em comum um núcleo de sentido” (Miller, 1963, p. 676). Em sua teoria da singulari­dade, Snyder e Fromkin (1980) propuse­ram que as pessoas pensam sobre sua se­melhança percebida com outras e usam uma dimensão (em suas mentes) na qual elas avaliam o quanto qualquer feedback em relação a sua semelhança com outras pessoas parece correto (tecnicamente, isso é codificado em um esquema de identidade da singularidade). Em poucas palavras, as pessoas avaliam a aceitabilidade de ter graus variados de semelhança com outras pessoas. Essas codificações hipotéticas da dimensão de identidade de singularidade são mostradas na Figura 18.2.

Figura 18.2

Como se pode ver na Figura 18.2, a informação sobre semelhança é codificada cada vez mais alta em termos de aceitabi­lidade, desde a muito leve, passando por leve, até a moderada a altos níveis de [403] semelhança percebida com outros. Dessa forma, a sensação de semelhança moderada a alta é classificada como a mais confortável e mais precisa para as pessoas, porque elas enten­dem que a maioria das outras é, em algum grau, semelhante a elas (vide Brown, 1991) e que as pessoas desejam ser especiais de alguma forma. Em outras palavras, em ter­mos da realidade como as pessoas realmente aperceberam e como elas queriam que fosse, elas preferem a faixa moderada a alta em termos de semelhança (os pontos C e D na Figura 18.2). Por fim, as pessoas não ficam confortáveis com os extremos de baixa se­melhança (ponto A da Figura 18.2) ou alta (ponto E da Figura 18.2).

Reações emocionais e comportamentais às informações sobre semelhança

Quando lhe são apresentados os di­versos graus de semelhança percebida que produzem as codificações de aceitabilidade da Figura 18.2, as pessoas devem ter as reações emocionais mais positivas quando percebem que são altamente semelhantes às outras (o ponto D da Figura 18.2). Coe­rente com essa hipótese, a pesquisa de Bryne (1969,1971; Bryne e Clore, 1970) e as iniciativas de Snyder e Fromkin (1980;vide, também, Lynn e Snyder, 2002) deram sustentação às reações emocionais mostra­ das na Figura 18.3. Mais especificamente, as reações emocionais das pessoas se tor­nam mais e mais positivas à medida que os níveis de semelhança aumentam de muito leve a leve, chegando a moderado e a alto, tomando-se negativos quando o ní­vel de semelhança entra na faixa de muito alto. (Para predições e conclusões seme­lhantes, vide as pesquisas da psicóloga Marilyn Brewer [1991], da Universidade Estadual de Ohio, e de Brewer e Weber[1994].) Observe que as reações emocio­nais mais positivas ocorrem quando as pes­soas percebem que têm um grau de seme­lhança relativamente moderado a alto, [404] mostrando assim, o prazer maior que deri­va dos laços humanos.

Figura 18.3

Pode ser interessante dar um exem­plo de como a semelhança moderada com outra pessoa é emocionalmente satisfató­ria. O autor principal (C.R.S.) trabalhou certa vez com uma jovem chamada Molly, que estava tendo dificuldades em seus na­moros na faculdade. Inicialmente, ela disse que seria muito divertido e excitante que os rapazes fossem muito diferentes dela em termos de interesses. Ela era filha de pro­fessores universitários e, rebelando-se con­tra a formação de seus pais, suas primei­ras tentativas de namoro na faculdade fo­ram o que ela depois chamou, pejorativa­mente, de “fase da caminhonete” (ou seja, ela saía com gente que as possuía). Esses rapazes não levavam a faculdade a sério e passavam muito tempo bebendo e mexen­do no motor de suas caminhonetes. Depois de um ano na faculdade, ela se estabele­ceu em um padrão - passou a sair com homens que compartilhassem alguns de seus interesses e valores com relação a um bom desempenho na faculdade, mas que estavam estudando outras coisas. Esses jo­vens deram a ela uma sensação de seme­lhança moderada a alta, e ela contou estar muito mais feliz do que havia sido com os “caras das caminhonetes”, os quais não se pareciam muito com ela.

A aceitabilidade das reações que re­sultam do grau de semelhança percebida com outras pessoas (vide a Figura 18.2) também podem fazer que se mudem os comportamentos reais para se tornar mais ou menos semelhantes a outra pessoa. Mais especificamente, a aceitabilidade mais positiva (ou seja, alta semelhança) não [405] apenas produz as reações emocionais mais positivas, mas também deve resultar na inexistência de necessidades de quaisquer mudanças comportamentais em relação a outras pessoas. Por outro lado, o nível de semelhança muito leve com outros gera bai­xa aceitabilidade, e as pessoas deveriam mu­dar para se tornar mais parecidas. Além dis­so, o nível muito alto de semelhança com outras pessoas é baixo em aceitabilidade, de forma que as pessoas devem mudar para se tornar menos semelhantes às outras. Nesse último sentido, como a necessidade que as pessoas têm de singularidade não está sendo satisfeita, elas precisam se esfor­çar para restabelecer suas diferenças.

Coe­rente com essas reações comportamentais previstas, os resultados de vários estudos (vide a Figura 18.4) sustentaram esse pa­drão proposto (Snyder e Fromkin, 1980). Para ilustrar como as pessoas podem realmente mudar em função do feedback de que são extremamente semelhantes a outras, veja as reações de uma jovem cha­mada Shandra. Depois de entrar para uma irmandade no início da faculdade, ela de­veria usar as mesmas roupas de suas irmãs sempre que participava de viagens coleti­vas. Desde o início, Shandra reagiu negati­vamente ao que chamava de “requisitos de uniforme” que lhe estavam sendo impostos.

Figura 18.4

Em uma tentativa ousada de romper e afirmar sua singularidade, Shandra co­meçou a usar roupas que diferiam de suas colegas de irmandade. As “irmãs” tentavam fazer com que ela se enquadrasse, mas ela resistiu em seu desejo de se vestir de for­ma distinta. Na verdade, ela acabou se desligando dessa irmandade em função da re­ação delas a seu desejo de se vestir de ma­neira diferente.

Tomadas em seu conjunto, essas con­clusões sugerem que as pessoas são atraí­das por níveis moderados a altos de [406] semelhança percebida com os outros seres hu­manos, mas há limites máximos para esse desejo de vínculo humano. Além disso, parece haver um desejo de equilibrar a se­melhança percebida, de forma que ela se mantenha em nível elevado. As pesquisas mostram que as pessoas são motivadas por uma necessidade de singularidade quan­do se sentem muito semelhantes, e que lutarão por semelhança quando se senti­rem diferentes demais. A maioria de nós tem um equilíbrio entre as motivações do “eu” e do “nós”, de forma que, assim como um desejo extremo de singularidade pode levar a uma disfunção no relacionamento com outros e à potencial exclusão social, um desejo extremo de semelhança pode le­var a uma tal imersão em “estar sozinho” que se perca a força nos relacionamentos interpessoais.

O desenvolvimento da escala da necessidade de singularidade

Com base nas predições teóricas e nas descobertas discutidas anteriormente so­bre o comportamento relacionado à singu­laridade, Snyder e Fromkin (1977) propu­seram que deve haver diferenças individu­ais na necessidade de singularidade medi­da por autoavaliação. Portanto, eles desen­volveram e validaram a Escala da Necessi­dade de Singularidade (Need for Uniqueness Scale, Snyder e Fromkin, 1977). Essa esca­la de autoavaliação consta do Anexo, e - se você quiser ter uma ideia de seu próprio desejo de ser especial por meio da escala - consulte esse anexo.
A escala de necessidade de singulari­dade já foi traduzida em várias línguas e administrada a milhares de pessoas ao lon­go dos anos. Um escore médio está em torno de 100; os escores mais altos do que isso refletem níveis cada vez mais elevados de necessidades de singularidade (Snyder e Fromkin, 1977, 1980). As pessoas com escore mais alto nessa escala também têm autoestima mais elevada e menos ansieda­de, especialmente em relação a questões interpessoais.

Ao pensar sobre a escala de necessi­dade de singularidade, contudo, é impor­tante ter em mente que esses escores ava­liam a necessidade de ser especial, mas, em muitos casos, essa necessidade se tra­duz em comportamentos e ações concre­tos que representam essa especialidade. Por exemplo, em discussões subsequentes so­bre atributos de singularidade, você sabe­rá que as pessoas com alta necessidade de singularidade, medida por seus escores nessa escala, realmente manifestam com­portamentos que representam esse caráter especial.

Atributos da singularidade

Tendo explorado a necessidade pes­soal de singularidade, descrevemos agora os processos sociais aceitáveis pelos quais nossas necessidades de singularidade são atendidas. As pessoas são punidas quando se desviam dos comportamentos normais ou esperados em uma sociedade (Goffman, 1963; Schachter, 1951). Sendo assim, os comportamentos incomuns podem rapida­mente gerar desaprovações e rejeições por parte da sociedade (vide Becker, 1963; Freedman e Doob, 1968; Goffman, 1963; Palmer, 1970; Schur, 1969). Por outra pers­pectiva, seguir as regras (comportamento normal) geralmente não gera muitas rea­ções em outras pessoas.

De que forma, portanto, as pessoas vão demonstrar seu caráter especial? Felizmen­te, cada sociedade tem alguns atributos acei­táveis por meio dos quais os cidadãos po­dem mostrar suas diferenças, que são chamados de atributos de singularidade. Sobre isso, Snyder e Fromkin (1980, p. 107) es­ creveram: “Há uma série de atributos (físi­cos, materiais, informacionais, vivenciais, etc.) que são valorizados porque definem a pessoa em sua diferença com relação a seu grupo de referência e que, ao mesmo tem­po, não desencadeiam as forças da rejeição [407] e isolamento em função do desvio. Apre­sentamos exemplos desses atributos de sin­gularidade nas seções que seguem.

As mercadorias como atributos de singularidade

William James (1890), um dos primei­ros e mais famosos psicólogos, afirmou que as pessoas muitas vezes definem a si mes­mas segundo o que possuem. Portanto, não deve ser surpre­sa saber que somos atraídos por mer­cadorias incomuns. É por isso que consi­deramos o anúncio “corra enquanto du­ra o estoque” tão se­dutor. Especialmente importante, contu­do, é o fato de que as pessoas com alta necessidade de singularidade (e não baixa), medida pela escala da necessidade de sin­gularidade, são mais atraídas por mercado­rias raras (vide Lynn e Snyder, 2002).

Várias mercadorias podem ser usadas para definir uma pessoa como singular, como roupas, carros, joias, férias e até par­ceiros especiais (vide Walster, Walster, Pi- liavin e Schmidt, 1973). É claro que os anun­ciantes estão cientes do apelo das merca­dorias especiais, já que o promovem em suas iniciativas para vender produtos. Por exem­plo, uma agência de viagens usa a mensa­gem “cada macaco não precisa estar no seu galho” para seduzir clientes potenciais a ti­rar um determinado tipo de férias; uma em­presa que produz sapatos anuncia que “as botas não vão chegar para todos os clien­tes” e um perfume é anunciado como “uma flagrância tão individual quanto você”.

Naquilo que se chamou de “catch-22 carousel”, uma situação em que “se correr o bicho pega, se ficar, o bicho come” (Snyder, 1992), os anunciantes usam os apelos da singularidade para persuadir as pessoas a comprar produtos e, depois, fazendo mu­danças anuais neles (estilos de roupas, car­ros, etc.), motivam os clientes a comprar a versão mais recente. A ironia é que, após o último anúncio baseado em singularidade ter persuadido as pessoas a comprar, elas observam que o que compraram agora é bastante comum, e outras pessoas o têm. É claro que as mudanças anuais no estilo mantêm as pessoas no impasse”.

O papel dos produtos como atributos de singularidade tem recebido atenção e sus­tentação suficiente para que os pesquisado­res desenvolvessem e validassem medidas específicas de autoavaliação voltadas a me­dir a necessidade de singularidade das pes­soas quando elas compram produtos. Por exemplo, Lynn e Harris (1997a, 1997b) ela­boraram a Escala do Desejo de Produtos Únicos (Desire for Unique Products Scale) e Tian, Bearden e Hunter (2001; vide Tian e McKenzie, 2001) validaram a Escala da Ne­cessidade de Singularidade dos Consumido­res (Consumer’s Need for Uniqueness Scale).

Os nomes próprios como atributos de singularidade

O renomado psicólogo da personali­dade Gordon Allport (1961, p. 117) escre­veu que o nome próprio pode ser “a ânco­ra mais importante de nossa identidade”. Nosso nome define nossa individualidade em um oceano de outras pessoas. Nesse sentido, você já observou que as pessoas geralmente ficam incomodadas se alguém não se lembra de seu nome após terem sido apresentadas? Da mesma forma, as pessoas se incomodam de descobrir que outra pes­soa tem o mesmo nome que elas.

Nos grandes centros urbanos, onde as pessoas se sentem desindividualizadas por­ que muita gente mora próximo, faz senti­do que os grafítes com nomes proliferem nas laterais de prédios e trens. É como se as pessoas estivessem atacando para afir­mar que são especiais ao escrever seus [408] apelidos em letras imensas. Coerente com isso, Snyder, Omens e Bloom (1977) afirmaram que pessoas com uma necessidade de singularidade mais alta devem ter um desejo maior de “mostrar seus nomes”. Sendo as­sim, esses pesquisadores fizeram que as pessoas passassem pela escala da necessi­dade de singularidade e depois assinassem seus nomes. Confirmando a hipótese, as que tinham escores mais elevados de ne­cessidade de singularidade escreveram seus nomes em tamanho maior (ou seja, a área de assinatura medida nas dimensões de comprimento e altura, controlando o nú­mero de letras em seus nomes). Em um estudo similar, Zweigenhaft (relatado em Snyder e Fromkin, 1980) submeteu a es­cala de necessidade de singularidade a um grande número de universitárias e concluiu que as que tinham escores mais elevados também tinham nomes que eram estatisti­camente incomuns.

Atitudes e crenças como atributos de singularidade

As atitudes e as crenças também ofe­recem meios para definir o self especial de uma pessoa. Na verdade, os universitários muitas vezes percebem suas atitudes e suas crenças como sendo suas características mais especiais e seus comportamentos como muito menos especiais (Fromkin e Demming, 1967, relatado em Snyder e Fromkin, 1980). Além disso, as pesquisas mostram que, quanto mais quisermos que nossas atitudes sejam diferentes, mais pen­saremos que elas realmente são diferentes (Weir, 1971). Ironicamente, contudo, quan­do se verifica se tais atitudes realmente diferem das dos pares, as pesquisas mos­tram que as atitudes supostamente espe­ciais das pessoas não são diferentes (Brandt e Fromkin, 1974, relatado em Snyder e Fromkin, 1980). Essa conclusão é análoga a um fenômeno anterior chamado de ig­norância pluralista, ou seja, a noção equi­vocada que as pessoas têm de que suas pró­prias crenças são não-conformistas (Katz e Schanck, 1938).

Obviamente, há algo satisfatório em se pensar que as atitudes e crenças são especiais, mesmo que isso seja uma ilusão (para uma demonstração des­sa ilusão, vide Snyder, 1997, 1999b).

Desempenhos como atributos de singularidade

Nossos desempenhos na sociedade também podem servir como atributos de singularidade. Nesse sentido, a busca indi­vidualista de singularidade por meio do desempenho geralmente assume uma en­tre três formas, que discutimos a seguir (vide o Capítulo 9 de Snyder e Fromkin [1980], para uma exposição completa so­bre esses tipos de desempenho).

Um primeiro tipo de desempenho é o que chamamos de competição individualis­ta normal, ou “entrar no jogo”. Como se pode ver na Figura 18.5, a pessoa inicialmente começa em um grupo no qual há regras para competir. Jogando segundo as regras, surge um vencedor, que vende mais carros, tira notas melhores, arremessa o dardo mais longe ou algo do tipo. Em ge­ral, esse vencedor deve passar a outro gru­po, no qual a competição é mais acirrada. Essa “competição normal” é muito difun­dida em sociedades ocidentais, espe­cialmente as individualistas e capitalistas. Se você é estudante universitário, por exemplo, com que frequência suas notas se basearam em uma curva (ou seja, al­guns A, B, C, D e F)?

Figura 18.5

Um segundo tipo de desempenho é a diferenciação individualista bem-sucedida, ou “virar o jogo”. As vezes, a pessoa se en­contra em um grupo em que há regras ou enunciados claramente definidos sobre a natureza da realidade. Como mostrado na Figura 18.6, a pessoa tem uma nova ideia ou maneira de jogar e decide se separar do grupo e assumir uma nova perspectiva ou ideia. Se tem êxito, com o tempo essa pes­soa poderá atrair seguidores, junto com [409] grupos contrários que podem combater essa perspectiva. É provável que cada ideia que atualmente consideramos estabelecida reflita o esforço de alguém que, em algum momento do passado, rompeu com um mo­delo ou perspectiva mais antigo.

Figura 18.6

Portanto, seja a invenção da lâmpada elétrica, a des­coberta do DNA ou a visão de que o mun­do é redondo, a civilização tem uma dívi­da de gratidão para com esses diferenciadores bem-sucedidos, porque eles nos de­ram idéias novas e melhoradas. [410] Um terceiro tipo de desempenho é o desvio individualista, ou “você não pode jo­gar”. Como mostra a Figura 18.7, isso re­sulta quando uma pessoa poderosa no grupo decide excluir um determinado mem­bro e o expulsa. Tendo sido retirada do grupo, essa pessoa é diferente, mas não de maneira positiva, como é o caso de diferenciadores bem-sucedidos que têm suas vi­sões especiais aceitas. Em lugar disso, o desviante perde o respeito dos outros, e - mesmo que possam ter alguns seguidores - a história mostra que essas pessoas são marginalizadas, sem qualquer impacto so­bre o pensamento da maioria das pessoas. Não podemos dar um exemplo histórico de pessoas que sejam exemplos de “você não pode jogar”, porque elas não tiveram qual­quer impacto com suas visões e não foram lembradas. Esse tipo de sucesso em ser re­conhecido sugere que as visões dessas pessoas não atraem muitos seguidores.

Figura 18.7

Analisamos a teoria e a medida da ne­cessidade de singularidade, que talvez seja a quintessência da motivação norte-ame­ricana. Tratamos agora de uma motivação diferente: o coletivismo.

Coletivismo: a Psicologia do nós

Nesta seção, comentamos a história do coletivismo (vide o Capítulo 3) e depois descrevemos suas ênfases principal e se­cundária. Um comentário sobre o histórico do coletivismo: agrupamo-nos por necessidade.

Há milhares de anos, nossos ances­trais caçadores-coletores se deram conta de que havia vantagens, em termos de [411] sobrevivência, em ser originários de gru­pos que se juntam com objetivos e inte­resses comuns (Chency, Seyforth e Smuts, 1986; Panter- Brick, Rowley-Conwy e Layton, 2001). Es­ses grupos contribu­íram para um senti­do de pertencimento, estimularam as identidades pessoais e os papéis de seus membros (McMillan e Chavis, 1986) e ofereceram laços emoci­onais compartilhados (Bess, Fisher, Sonn e Bishop, 2002). Além disso, os recursos de pessoas em grupos as ajudaram a re­chaçar ameaças por parte de outros seres humanos e animais. Dito de forma simples, os grupos proporcionaram po­der a seus membros (Heller, 1989). As pessoas nesses gru­pos se protegiam, cuidavam umas das outras e formavam unidades sociais que eram contextos efe­tivos para a propa­gação e a criação dos filhos. Reunidos em grupos, os seres humanos colheram os benefícios da co­munidade (Sarason, 1974).

Pelos padrões de hoje, nossos pa­rentes caçadores-coletores eram mais primitivos em suas necessidades e aspirações, mas será que eram tão diferentes das pessoas em termos das satisfações e dos benefícios que deri­vam de seu pertencimento a grupos? Acre­ditamos que não, porque os seres huma­nos sempre tiveram as características com­partilhadas daquilo que o psicólogo Elliot Aronson (2003) chamou de “animais so­ciais”. A respeito disso, uma de nossas mo­tivações humanas mais fortes é pertencer, isto é, sentir que temos conexoes dotadas de sentido com outras pessoas (Baumeister e Leary, 1995). Os psicólogos sociais Roy Baumeister e Mark Leary (1995) e Donelson Forsyth (1999; Forsyth e Corazzini, 2000) afirmaram que as pessoas prosperam quando se juntam em unidades sociais e vão em busca de objetivos compartilhados.

Ênfases do coletivismo

Voltemos à Figura 18.1, na página 398. Como mostrado ali, quando a pessoa média em uma sociedade tem uma dispo­sição favorável à interdependência grupal, essa sociedade é chamada de “coletivista” (vide a curva em forma de sino desenhada com uma linha contínua). A essas alturas, você pode estar curioso sobre qual país adere mais marcadamente a valores coletivistas. Em resposta a essa pergunta, os pesquisadores sugerem que a China é o mais coletivista de todos os países do mun­do (vide Oyserman et al., 2002).

Ênfases principais

Como é mostrado no Quadro 18.1, na página 399, as três ênfases principais do coletivismo são a dependência, a confor­midade, ou o desejo de se enquadrar, e a percepção do grupo como unidade funda­mental de análise. Em primeiro lugar, a de­pendência dentro do coletivismo reflete uma tendência verdadeira a derivar o pró­prio sentido e a própria existência do fato de ser parte de um importante grupo de [412] pessoas. No coletivismo, a pessoa segue com as expectativas de grupo, está muito preocupada com o bem-estar desse grupo e é muito dependente dos outros membros do grupo ao qual pertence (Markus e Kitayama, 1991; Reykowski, 1994).

Com relação ao desejo de se enqua­drar, Oyserman e colaboradores (2002, p. 5) escreveram: “O elemento central do co­letivismo é o pressuposto de que os grupos ligam e obrigam mutuamente os indiví­duos”. Como tal, o coletivismo é uma abor­dagem inerentemente social, na qual o movimento se dá em direção a grupos aos quais se pertence e para longe daqueles aos quais não se pertence (Oyserman, 1993).

Sobre a terceira ênfase central, o gru­po como unidade percebida de análise, os padrões sociais das sociedades coletivistas refletem ligações muito próximas nas quais as pessoas se veem como parte de um todo mais amplo e mais importante. Resumin­do, a preocupação coletivista é com o gru­po, com o todo e não com seus membros (Hofstede, 1980).

Ênfases secundárias

O coletivista se define em termos das características dos grupos aos quais perten­ce. Sendo assim, as pessoas de orientação coletivista prestam muita atenção às regras e aos objetivos do grupo, e muitas vezes podem submeter suas necessidades pesso­ais às dele. O sucesso e a satisfação tam­bém vêm de o grupo atingir seus objetivos e de a pessoa sentir que cumpriu os deveres socialmente prescritos como membro daquele esforço coletivo voltado a objeti­vos (Kim, 1994).

As pessoas coletivistas obviamente se envolvem muito nas atividades e objetivos de seu grupo, e pensam cuidadosamente sobre as obrigações e os deveres dos grupos aos quais pertencem (Davidson, Jaccard, Triandis, Morales e Diaz-Guerrero, 1976; Miller, 1994). As interações entre as pes­soas dentro da perspectiva coletivista são caracterizadas por generosidade mútua e equidade (Sayle, 1998). Para essas pessoas, as relações interpessoais podem ser busca­das mesmo quando não há benefícios ób­vios nelas (vide Triandis, 1995). Na verda­de, em função da grande ênfase que os coletivistas dão aos relacionamentos, eles podem querê-los mesmo quando essas interações são contraproducentes.

Por causa de suas atenções às diretri­zes estabelecidas pelo grupo, os membros individuais de uma perspectiva coletivista podem ser bastante formais em suas in­terações. Ou seja, há maneiras de se com­portar, seguidas cuidadosamente e defini­das por papéis. Além disso, as pessoas den­tro da perspectiva coletivista monitoram o contexto social cuidadosamente para for­mar impressões de outros e tomar decisões (Morris e Peng, 1994).

Lembre-se de nossa discussão anterior sobre a necessidade de singularidade re­fletindo o individualismo. Sobre isso, Kim e Markus (1999) afirmaram que os anún­cios de propaganda na Coréia devem acen­tuar temas coletivistas relacionados à con­formidade, ao passo que os dos Estados Unidos devem ser mais baseados em temas de singularidade. Coerente com essa pro­posta, as pesquisas de Kim e Markus mos­tram que a necessidade de singularidade é menor em sociedades coletivistas do que nas individualistas (Yamaguchi, Kuhlman e Sugimori,1995).

As sociedades coletivistas parecem ter elementos centrais de dependência, con­formidade (baixa necessidade de singula­ridade) e definição da existência em ter­mos do grupo importante ao qual se per­tence. A pesquisa também corrobora o fato de que o coletivismo se baseia em um sentido fundamental de dependência, assim como uma obrigação ou um dever para com o grupo ao qual se pertence e um de­sejo de manter a harmonia entre as pesso­as (Oyserman et al., 2002). Antes de fina­lizar esta seção, parabenizamos Daphne Oyserman e colaboradores do Instituto de Pesquisas Sociais da Universidade de [413] Michigan por sua revisão acadêmica seminal das características do individualismo e do coletivismo.
Aspectos demográficos relacionados ao coletivismo.

Os psicólogos positivos devem levar em consideração o que o futuro trará em relação ao coletivismo. Por exemplo, pes­quisas sobre isso sugerem que o abismo entre ricos e pobres em sociedades de todo o mundo está se ampliando à medida que avançamos no século XXI (vide Ceei e Papierno, 2005). As pesquisas revelam que as pessoas em classes sociais mais baixas, comparadas com as mais altas, têm mais probabilidades de ser coletivistas em suas perspectivas (Daab, 1991; Kohn, 1969; Marjoribanks, 1991). Com relação ao pa­pel do envelhecimento como mais uma questão demográfica relacionada ao cole­tivismo, parece que as pessoas se tomam mais coletivistas à medida que envelhecem (Gudykunst, 1993; Noricks et al., 1987).

Equilíbrio eu/nós: a Psicologia do coletivo

Tanto a perspectiva individualista quanto a coletivista são válidas.

Os cientistas sociais muitas vezes con­ceituam o individualismo e o coletivismo como opostos (Hui, 1988; Oyserman et al., 2002), e essa polaridade via de regra tem sido aplicada quando se compara o indivi­dualismo dos euro-americanos com o co­letivismo de pessoas com origem no Leste da Ásia (Chan, 1994; Kitayama, Markus, Matsumoto e Norasakkunkit, 1997). Essa visão baseada na polaridade não nos pare­ce boa ciência, nem uma estratégia neces­sariamente produtiva para estimular inte­rações saudáveis entre pessoas de etnicidades variadas dentro de sociedades e entre elas. Na revisão geral desse tópico, Oyserman e colaboradores (2002) concluí­ram que os norte-americanos tinham individualismo realmente alto, mas não tinham coletivismo necessariamente mais baixo do que outras pessoas. Sendo assim, encon­trou-se sustentação apenas para metade do estereótipo.

Ver o individualismo e o coletivismo como opostos tem potencial para provocar disputas nas quais os membros de cada campo tentem demonstrar a superiorida­de de sua visão. Esse conflito entre as duas perspectivas parece especialmente proble­mático devido ao fato de não se ter comprovado distinções com limites claros en­tre individualismo e coletivismo. Por exem­plo, Vandello e Cohen (1999) concluíram que, mesmo dentro das sociedades indivi­dualistas como os Estados Unidos, a forma do individualismo difere na região nordes­te, no Meio-Oeste, no Sul profundo e no Oeste. As culturas também são extrema­mente diversificadas, cada uma com seus sistemas dinâmicos e variáveis, que estão longe das simplicidades monolíticas suge­ridas pelos rótulos “individualista” e “cole­tivista” (Bandura, 2000). Da mesma for­ma, pode haver diferenças geracionais no grau em que se manifestam o individualis­mo e o coletivismo (por exemplo, Matsu­ moto, Kudoh e Takeuchi, 1996). E, quan­do diferentes grupos de referência ganham mais destaque, as propensões a uma ou outra postura variam (Freeman e Bordia, 2001). Ademais, uma inclinação aparen­temente individualista pode, na verdade, contribuir para o coletivismo. Por exem­plo, consideremos que um sentido de efi­cácia pessoal forte pode contribuir para a eficácia coletiva de uma sociedade (Femandez-Ballesteros, Diez-Nicolas, Caprara, Barbaranelli e Bandura, 2002).

Baseando-se em conclusões como es­sas, Oyserman e colaboradores (2002) su­geriram que deveríamos avançar para além da visão bastante estática de individualis­mo e coletivismo como categorias [414] separadas, e assumir visões mais dinâmicas em relação à cultura para saber quando, onde e por que essas configurações mentais ope­ram. Eles defenderam um entendimento de como o individualismo e o coletivismo podem operar juntos para beneficiar as pes­soas. Nós também acreditamos que tanto a perspectiva individualista quanto a coletivista tem vantagens para as pessoas, e que a melhor solução é aprender a assu­mir aspectos de ambas.

Uma característica de uma vida feliz e produtiva é uma sensação de equilíbrio en­tre opiniões e ações. Acreditamos que uma postura psicológica positiva em relação a essa questão equilibra as ênfases em EU e NÓS. A perspectiva EU/NÓS possibilita que a pes­soa preste atenção a ela mesma e ao grupo. De fato, é isso que se descobriu caracterizar as perspectivas de pessoas de alta esperan­ça em relação a suas vidas e suas interações com outros (Snyder, 1994/2000, 2000b). Ou seja, em sua criação, as crianças de alta esperança aprenderam a importância de outras pessoas e de suas perspectivas, e o papel da consideração pelos outros na bus­ca eficaz de objetivos pessoais. Assim como os portadores de altas esperanças pensam em objetivos do tipo “EU”, eles simultanea­mente conseguem vislumbrar os objetivos do tipo “NÓS” de outras pessoas. Dessa for­ma, EU e NÓS se tomam reflexos um do outro. As pessoas com alta esperança, portanto, pensam automa­ticamente nos objetivos EU e nos objetivos NÓS. Lembre-se, também, de que são os muito esperançosos que parecem colher as maiores recompensas em termos de desem­penhos exitosos e satisfações na vida.

Pensando em sua própria vida

Agora que você explorou várias ques­tões relacionadas às perspectivas indivi­dualista e coletivista, pode ser instrutivo dar uma olhada mais de perto em sua pró­pria vida. Você alguma vez já pensou so­bre todas as atividades que realiza, para ver se preferiria fazê-las por contra pró­pria ou com outras pessoas? As vezes, avan­çamos em nossa vida no “piloto automáti­co” e não pensamos muito sobre como gos­taríamos de passar nosso tempo. O que que­remos aqui é ajudá-lo a formular uma ideia melhor de suas preferências por fazer as coisas sozinho ou com outros. Por isso, de­senvolvemos um exercício curto para aju­dá-lo a entender melhor seus próprios de­sejos de ir em busca de objetivos indivi­dualmente ou em grupo.

Na verdade, outras pessoas podem ser muito úteis quando se trata dos objeti­vos que consideramos mais importantes. Muitos de nós, sobretudo se somos [415] individualistas, consideramos a nós mesmos ra­zoavelmente independentes ao lidar com nossa vida. Mas será que é mesmo assim? Ao ir em busca de nossos objetivos, tam­bém podemos estar implícita e explicita­mente interligados com outras pessoas que nos ajudam a atingi-los. Sendo assim, nos­sas tendências coletivistas podem ser mui­to mais fortes do que pensamos. Uma con­clusão a que geralmente chegam as pes­soas ... é de que são coletivistas e indivi­dualistas. Esses pensamentos e ações coleti­vistas e individualistas também podem variar segundo as circunstâncias e as pessoas à nossa volta.

Sugestões para pessoas do tipo "nós" (coletivistas)

Agora você já deve ter idéias melho­res acerca de suas tendências individualis­tas e coletivistas. Nesta seção e nas seguin­tes, portanto, apresentamos algumas suges­tões para ajudá-lo a navegar de forma mais eficaz em ambientes em que as pessoas têm perspectivas que diferem daquelas indivi­dualistas ou coletivistas que você geralmen­te tem. Nesta seção, oferecemos orienta­ções para coletivistas que vão interagir com individualistas de vez em quando. (Para uma análise profunda de como os indivi­dualistas e coletivistas podem se integrar de forma mais eficaz, recomendamos o artigo de 1988 de Triandis, Brislin e Hui, “Cross-cultural training across the individua­lism-collectivism divide”.)
Os coletivistas muitas vezes conside­ram os individualistas demasiado compe­titivos. Uma lição interessante nesse caso é entender que os individualistas enxergam seu status com base em realizações pes­soais, em lugar de seu pertencimento a gru­pos. Além disso, quanto mais recentes fo­rem as realizações, mais poder elas dão em termos de status. Sendo assim, os coleti­vistas não devem se chocar quando os individualistas não parecerem se impressio­nar com sucessos coletivos que são basea­dos em linhagem, nomes de família, ida­de, sexo. Pode ser interessante ao coletivista usar realizações recentes para ganhar status aos olhos dos individualistas com quem interage.

Os coletivistas também consideram seu relacionamento com outros membros de seus grupos como algo dado, natural, de forma que provavelmente não agrade­cerão ou cumprimentarão outras pessoas por suas contribuições relevantes. Sendo assim, para proporcionar um “lubrificante social” para as interações entre as pessoas (Triandis, 1995), os coletivistas devem se lembrar de que os individualistas têm uma necessidade considerável de elogios.

A dependência que os coletivistas têm de soluções conjuntas para os dilemas pode não funcionar quando eles estão lidando com individualistas. Na verdade, o coleti­vista deve ser capaz de levar em conta a perspectiva baseada em “o que ele tem a ganhar” do individualista para entender as reações deste durante negociações. Da mesma forma, a argumentação normal dos individualistas não deve ser interpretada pelos coletivistas como um comportamen­to com intenção de prejudicar, e sim ape­nas como os individualistas fazem as coi­sas. Portanto, enquanto um coletivista in­teragindo com outro coletivista pode inter­pretar a expressão “vamos almoçar” como um convite verdadeiro, muitas vezes ela é simples interação social quando enuncia­ da pelo individualista.

As pessoas de culturas coletivistas que se mudam para sociedades mais individua­listas podem ter dificuldades com contra­tos e acordos entre as pessoas. O proble­ma, nesse caso, é que os coletivistas po­dem assumir uma postura mais informal em relação aos contratos. Por exemplo, um estudante de outro país diz ao proprietá­rio de um imóvel de uma cidade universi­tária dos Estados Unidos que está pensan­do em alugar um apartamento. O estudante de fora dos Estados Unidos vê essa [416] declaração ao proprietário como algo que lhe dá tempo de contatar seus parentes em seu país de origem e discutir o assunto. Infelizmente, para o proprietário norte-ameri­cano, o estudante pode ter dito a mesma coisa a vários proprietários diferentes. É claro que o locador pensa que fez negócio, enquanto o estudante de outro país não pensa assim.

Sugestões para pessoas do tipo "eu" (individualistas)

Nesta seção, oferecemos aconselha­mento para individualistas interagirem de forma mais eficaz com os coletivistas. Para começar, os individualistas muitas vezes percebem os coletivistas como demasiado “relaxados” e sem competitividade. Nesse sentido, ajuda entender que os coletivistas derivam seu sentido de status de seu pertencimento a grupos e não de suas realiza­ções pessoais.

Os individualistas devem entender que os coletivistas tendem a considerar como dados os seus relacionamentos com outros membros de seus grupos e, assim, não veem necessidade de elogiar os outros. Os individualistas que rotineiramente espe­ram agradecimentos quando interagem com outros individualistas devem aprender a não interpretar a ausência desse tipo de cortesia por parte dos coletivistas como si­nais de desrespeito. Apesar de os coletivis­tas não praticarem os agradecimentos so­ciais, os individualistas devem levar em conta as normas coletivistas para fazer ne­gócios. Ou seja, enquanto um individua­lista pode querer ir imediatamente ao pon­to quando está negociando, os coletivistas muitas vezes esperam alguma brincadeira de aquecimento para preparar o terreno. Nesse sentido, os coletivistas querem res­peito e paciência entre as pessoas (Cohen, 1991). Quando é necessário resolver pro­blemas, os coletivistas preferem que isso seja feito em nível de grupo, ao passo que os individualistas desejam mais uma ne­gociação entre duas pessoas. Obviamente, há diferenças sutis, incluindo importantes gestos e sinais não-verbais, que devem ser honrados quando individualistas e coleti­vistas interagem.

Os individualistas devem entender que os coletivistas querem harmonia pes­soal e, portanto, esforçam-se muito para evitar situações que envolvam conflitos (Ting-Toomey, 1994). Nessas circunstân­cias, os individualistas podem considerar os conflitos como meios úteis de limpar o terreno de forma que as pessoas avancem para outras questões, mas devem se dar conta de que os coletivistas estão muito preocupados com preservar sua imagem após esse conflitos. Dessa forma, os indivi­dualistas podem ajudar resolvendo os pro­blemas antes que eles cresçam e se tornem enormes confrontos. Do mesmo modo, o individualista não deveria pressionar o coletivista querendo saber “os porquês” conflitivos diante dos quais o coletivista terá que defender sua posição. Além disso, se o conflito for necessário, o individualis­ta deve tentar, sempre que for possível, aju­dar o coletivista a manter seu orgulho.

Considerações finais

Recuando um pouco e visualizando o quadro mais amplo de como as pessoas de várias partes de nosso planeta se relacio­nam umas com as outras, fica óbvio que nosso histórico não é dos melhores. Pense na ironia do fato de que os historiadores tendem a considerar os períodos de paz como anomalias entre grandes conflitos de culturas. Até onde o período bélico ante­rior entre nações teria refletido as dificul­dades de individualistas e coletivistas de se entender e se relacionar bem (vide Hun­ tington, 1993)?

Há uma lição cada vez mais impor­tante nesse ponto para cidadãos dos Esta­dos Unidos. A saber, os que têm perspecti­vas individualistas devem entender que suas visões não são amplamente [417] compartilhadas no mundo. Estímou-se que 70% dos atuais cerca de 5,6 bilhões de habitantes sobre a Terra assumem uma visão coletivista das pessoas e de suas interações (Triandis, 1995). Façamos as contas: isso significa cerca de 4,5 bilhões de coletivistas e 2 bilhões de individualistas. Por mais que os cidadãos dos Estados Unidos prezem a perspectiva individualista, os norte-ameri­canos individualistas são a minoria em um mundo habitado por coletivistas.

O entendimento de que as pessoas fa­zem parte de um todo mais amplo pode cres­cer no século XXI. Estamos nos tomando cada vez mais interdependentes, e o lugar onde isso é mais visível é na operação dos mercados globais que influenciam muitos países (Keohane, 1993). A rápida mudança em nossas tecnologias de telecomunicações também levou a uma globalização que au­mentou nossa consciência sobre outros po­vos no planeta (Friedman, 2005; Holton, 2000; Robey, Khoo e Powers, 2000).

Ao pensar sobre relacionamentos uns com os outros, nossos futuros residirão so­bre uma disposição de cooperarmos e nos unirmos. Embora a busca da felicidade cer­tamente possa produzir benefícios para a humanidade, se uma quantidade exagera­da de pessoas age na busca de sua própria individualidade, perderemos nossa chance de trabalhar juntos para construir culturas compartilhadas. Como afirmou Baumeister (2005) de forma contundente em seu livro, The cultural animal, há uma necessidade fundamental de diretrizes morais compar­tilhadas para que nossas sociedades pos­sam funcionar efetivamente. Essas moralidades compartilhadas no futuro irão limi­tar o grau em que as pessoas são contraproducentes ao seguir seus caprichos pes­soais. Sendo assim, a moralidade pode ser­vir como o próprio meio pelo qual a cultura consiga afirmar sua precedência em relação a individualismo extremo (Baumeister).

Estamos no topo de uma grande mu­dança no equilíbrio entre individualismo e coletivismo, um equilíbrio entre as neces­sidades do indivíduo e do coletivo (Newbrough, 1995; Snyder e Feldman, 2000). Como tal, a psicologia positiva do NóS pode estar dobrando a esquina. [418]

Psicologia - Psicologia positiva
Social - Organizacional, 
10/18/2020 12:48:44 PM | Por Charles Richard Snyder
Bom trabalho, a psicologia do emprego gratificante

Essas linhas de abertura foram escri­tas pelo autor principal deste livro (C.R.S.) em meu primeiro mês na função de pro­fessor assistente. Naquela época, como hoje, cerca de 33 anos mais tarde, sentia-me bastante privilegiado e feliz de ter esse meio de vida (essa expressão parece sem­pre tão adequada). Esse sentimento posi­tivo capta a essência do emprego gratifi­cante, que exploramos neste capítulo.
Sigmund Freud foi o primeiro a fazer a forte declaração de que vida saudável é aquela na qual a pessoa consegue amar e trabalhar (O’Brien, 2003). Nas muitas dé­cadas desde que Freud apresentou essas idéias, a literatura psicológica reforçou a importância dos relacionamentos interpes­soais e do emprego positivos. Após revisar um corpus crescente de literatura sobre o trabalho das pessoas para gerar uma vida saudável, procuramos uma frase que cap­tasse a essência dos muitos benefícios que podem fluir do trabalho. Acabamos [364] decidindo usar a expressão emprego gratificante.

Embora muitas pessoas despertem apavoradas por terem que sair da cama e ir trabalhar, quem está empregado de for­ma gratificante quer de fato que chegue a hora. O emprego gratificante é o traba­lho que se caracteriza pelos oito benefícios a seguir:

  1. Variedade de tarefas realizadas.
  2. Ambiente de trabalho seguro.
  3. Renda para a família e para a própria pessoa.
  4. Propósito derivado do fato de fornecer um produto ou prestar um serviço.
  5. Felicidade e satisfação.
  6. Engajamento e envolvimento positivos.
  7. Sensação de estar desempenhando bem e atingindo objetivos.
  8. Companheirismo e lealdade de colegas de trabalho, chefes e empresas.

Neste capítulo, exploramos o crescen­te corpo de conclusões da psicologia posi­tiva e examinamos o emprego proveitoso da perspectiva do empregado, do chefe e da empresa. Começamos com a perspecti­va de uma funcionária, no caso Jenny.

"Há vaga": Jenny perde um emprego e encontra uma profissão

Na primeira vez que eu (C.R.S.) vi Jenny, ela tinha vindo fazer tratamento psi­cológico porque estava deprimida. Como mulher solteira de 32 anos, ela havia feito o primeiro ano e meio de faculdade antes de desistir. Sendo normalmente uma pes­soa expansiva, ela informava que seu hu­mor havia mudado para pior quando per­deu o emprego de assistente-executiva do presidente do Departamento de Inglês na universidade estadual local. Cortes de ver­bas na universidade haviam feito que ela perdesse o emprego. Ela passava a maior parte de seus dias e noites na cama, con­templando “o quanto aquilo tudo era in­justo”.

Os amigos de Jenny trabalhavam no Departamento de Inglês ou eram estudan­tes de pós-graduação ali. Foi somente quan­do perdeu o emprego que ela se deu conta do quanto seu mundo estava relacionado a esse ambiente de trabalho. Pouco depois de ser demitida, ela costumava aparecer no Departamento e tentar engrenar con­versas com os colegas. Contava que era muito estranho, e que simplesmente não era a mesma coisa do que quando ela tra­ balhava lá. Após algumas visitas, Jenny parou de voltar àquele lugar. Sua estraté­gia de enfrentamento inicial foi encontrar outro trabalho. Embora nunca se cansasse de se candidatar a empregos semelhantes ao seu antigo cargo, essas posições de as­sistente com alto salário eram praticamen­te inexistentes porque toda a universidade estava sofrendo com problemas financei­ros. Em nossas sessões, discutimos como todos os amigos de Jenny eram de seu ambiente de trabalho, o que aprofundava sua sensação de desespero à medida que ela se dava conta de como havia ficado sem amigos. Seus pensamentos ruminativos tampouco ajudavam a melhorar as coisas. Ela estava preocupada com a possibilida­de de que seus antigos amigos só gostas­sem dela porque ela era assistente do pre­sidente. Será que eles estavam tentando se aproximar do chefe por intermédio dela? Jenny tinha um talento evidente, contudo, sobre o qual todos concordavam: as pessoas apreciavam sua capacidade de se lembrar delas depois de terem sido apresentadas.

No início de uma sessão, Jenny con­tava um sonho que havia tido por três noi­tes consecutivas na semana anterior. Nele, os professores que chefiavam as várias uni­dades da universidade lhe telefonavam e imploravam que ela se candidatasse a car­gos em seus departamentos. No início de cada telefonema, o chefe de departamen­to anunciava entusiasmado: “Temos uma [365] vaga em nosso departamento que é perfei­ta para você!”. Pasma por estar recebendo toda essa atenção de uma hora para outra, Jenny (ainda em seu sonho) perguntava aos chefes por que eles estavam ligando. Eles respondiam: “Você não sabe?”. A isso, Jenny dizia que não tinha ideia. Cada um dizia, então, como adorava o fato de ela se lembrar de seus nomes. Nesse momento do sonho, Jenny acordava.

Esse sonho proporcionou uma vira­da para Jenny. Sua interpretação era que essa capacidade de se lembrar de nomes era um recurso importante que ela deve­ria colocar a seu serviço ao buscar um novo emprego. Quando lhe foi pergunta­do, na sessão, como ela poderia fazer isso, seguiu-se uma discussão produtiva sobre empregos que não de secretária. Outra parte de sua descoberta foi que ela come­çou a olhar empregos com salários iniciais mais baixos que o de seu antigo cargo de assistente executiva.

Como você já deve ter imaginado a essas alturas, essa história tem final feliz. Seguindo seu palpite sobre usar suas habi­lidades de se lembrar de nomes das pes­soas, Jenny decidiu aceitar um emprego de salário bastante baixo, atendendo no bal­cão de uma lavanderia. Os clientes só pre­cisavam ir à lavanderia uma vez para que Jenny se lembrasse de seus nomes. Sem­pre que o cliente voltava à lavanderia, Jenny o cumprimentava pelo nome: “Bom dia, seu Parker”, “Como vai, dona Davis”, “Alice Marshall..., tudo bem?”. A dona da lavanderia adorava que Jenny conseguisse se lembrar dos nomes de todo e qualquer cliente. Na verdade, os clientes lhe disse­ram que essa era a razão pela qual gosta­vam de fazer o serviço ali. O negócio da lavanderia também prosperou. Como re­compensa por esse imenso aumento de novos clientes, o proprietário aumentou o salário de Jenny. Assim ela também cres­ceu nesse emprego, e sua depressão aca­bou. Resumindo, ela ficou extremamente feliz com seu novo trabalho e com sua vida em geral.

A lição que se tira da história de Jenny

O caso de Jenny tem diversas implica­ções para este capítulo sobre o papel do tra­balho na vida das pessoas. Talvez mais im­portante, ele nos dá uma ideia do imenso poder do trabalho na vida de uma pessoa. Mais especificamente, mostra a importân­cia do trabalho para determinar como uma pessoa se sente consigo mesma. Ele revela uma necessidade de envolver os talentos do trabalhador no ambiente do emprego e nos conta como os amigos de uma pessoa mui­tas vezes vêm do local de trabalho. Embora o novo emprego de Jenny proporcionasse uma renda, sua história também ilustra como estar “atrás do dinheiro” e querer um alto salário inicial podem ser um tiro pela culatra. Seu novo trabalho também lhe deu um ambiente no qual pudesse ampliar seus talentos e sua capacidade ao trabalhar com pessoas, sendo essa uma de suas qualida­des principais. Junto com seu crescimento em áreas de talento, seu trabalho fazia que se lembrasse todos os dias de que estava ajudando as pessoas ao prestar um serviço. Por fim, como havia acontecido com o em­prego no Departamento de Inglês, a nova profissão de Jenny lhe deu uma sensação de vínculo, companheirismo e lealdade para com seus clientes, seus colegas de trabalho e seu chefe. A questão fundamental era que ela estava se sentindo muito produtiva e sa­tisfeita em sua profissão nova. Essa e outras mensagens de emprego gratificante surgem da história de Jenny. Trabalharemos com es­ses vários temas durante o transcorrer do capítulo.

Emprego gratificante: felicidade, satisfação e algo mais

Como se vê na Figura 17.1, oito be­nefícios derivam do emprego gratificante. Situamos felicidade e satisfação no centro [366] em função de seu papel fundamental (vide Amick et al., 2002; Kelloway e Barling, 1991).

A centralidade que o trabalho tem para o bem-estar não surpreende quando você pensa no número de benefícios que ele oferece, especialmente: uma identidade, oportunidades para interação e apoio so­ciais, propósito, preenchimento do tem­po, desafios envolventes e possibilidade de status, além de proporcionar renda (p. 270).

Não surpreende que haja uma enor­me literatura sobre satisfação no emprego. Consideremos, por exemplo, a estimativa de Locke, feita em 1976, de que haviam sido publicados mais de 3.330 artigos sobre o tema. Além disso, uma busca feita em PsycINFO, entre 1976 e 2000, resultou em 7.855 artigos sobre satisfação no emprego (Harter, Schmidt e Hayes, 2002).

Se uma pessoa está feliz com seu tra­balho, é provável que sua satisfação geral com a vida também seja maior (Hart, 1999; Judge e Watanabe, 1993). A correlação entre satisfação no trabalho com felicida­de geral é de cerca de 0,40 (Diener e Lucas, 1999). Pessoas empregadas informam cons­tantemente ser mais felizes do que as que estão sem emprego (Argyle, 2001; Warr, 1987, 1999).

Por que o trabalho, a felicidade e a satisfação deveriam andar de mãos dadas? Nas seções seguintes, examinamos os vá­rios fatores relacionados ao trabalho que parecem estar ligados à maior felicidade. Embora reconheçamos o forte papel que a [367] felicidade e a satisfação cumprem no em­prego gratificante em geral, urge acrescen­tar que muitas vezes há uma relação recí­proca, no sentido de que um ou mais fatores podem se influenciar para produzir uma sensação de emprego proveitoso. Por exem­plo, como explicaremos na próxima seção, um bom desempenho no trabalho aumen­ta a sensação de satisfação, mas a sensa­ção de satisfação também contribui para um melhor desempenho de um emprega­do na área profissional.

Ter bom desempenho e atingir objetivos

Com que frequência um amigo seu ou seu parceiro já comentou: “Você está de mau humor. Teve um dia ruim no traba­lho?”. Ou pode ser o contrário: “Puxa, você está de ótimo humor. As coisas estavam boas no escritório?” Sem dúvida, isso acon­tece à medida que o trabalho influencia vários outros aspectos de nossa vida.

Relacionado às interações hipotéticas anteriores, uma linha de pensamento so­bre o trabalhador feliz diz que esse empre­gado tem um sentido de eficácia e eficiên­cia ao realizar suas atividades profissionais (Hertzog, 1966). Para testar a noção de que o desempenho no trabalho está relaciona­do à satisfação, Judge, Thoresen, Bono e Patton (2001) realizaram uma meta-análise (um procedimento estatístico para tes­tar a consistência de resultados entre mui­tos estudos) de 300 amostras (cerca de 55 mil trabalhadores) e encontraram um re­lacionamento estável de cerca de 0,30 en­tre desempenho e satisfação geral.

De longe, a maior parte da pesquisa relacionada à sensação de bom desempe­nho surgiu do influente constructo de autoeficácia de Bandura (vide o Capítulo 9; para uma revisão sobre o papel da autoeficácia na promoção da felicidade no traba­lho, vide O’Brien [2003]; vide, também, Bandura, Barbaranelli, Vittorio Caprara e Pastorelli [2001]). A autoeficácia profis­sional, que é definida como a segurança que a pessoa sente para dar conta de ativi­dades de desenvolvimento profissional e objetivos relacionados ao trabalho, tem sido relacionada ao sucesso e à satisfação com os esforços e as decisões profissionais da pessoa (Betz e Luzzo, 1996; Donnay e Borgen, 1999).

O bom desempenho no trabalho tem mais probabilidades de ocorrer quando os trabalhadores têm objetivos claros. Como mostra a literatura sobre o tema (como Emmons, 1992; Snyder, 1994/2000), os objetivos lúcidos oferecem satisfação quan­do são atingidos. Nessa linha, quando os objetivos profissionais são definidos clara­mente e os empregados conseguem atin­gir padrões estabelecidos, os resultados são mais prazer pessoal e uma sensação de rea­lização. Nesse sentido, quando o líder com altas esperanças estabelece objetivos cla­ros e tem uma comunicação fluida, têm-se objetivos lúcidos para o grupo, de curto e longo prazos. Um chefe desse tipo também consegue proporcionar mais satisfação no trabalho. A seqüência se desenrola da se­guinte maneira: o chefe com esperanças elevadas identifica claramente subobjetivos de trabalho viáveis, o que aumenta a moti­vação dos trabalhadores e suas chances de atingir objetivos maiores, em nível organi­zacional (Snyder e Shorey 2004). Nesse processo, o líder esperançoso também fa­cilita a disposição dos trabalhadores de assumir os objetivos gerais da empresa (Hogan e Kaiser, 2005).

Derivando propósito a partir do fornecimento de um produto ou da prestação de um serviço

O trabalho é uma importante fonte potencial de propósito na vida de uma pes­soa. Uma grande força subjacente que move esse propósito é a sensação de for­necer produtos ou prestar serviços neces­sários aos clientes. Os trabalhadores [368] querem, às vezes de formas muito triviais, sen­tir que estão dando uma contribuição a outras pessoas e à sociedade.

Embora falemos sobre sua importan­te pesquisa em um momento posterior des­te capítulo, observamos aqui que Amy Wrzesniewski e colaboradores (como Wrzesniewski, McCauley, Rozin e Schwartz, 1997) descreveram como os trabalhadores, do mais elevado status organizacional ao mais inferior, podem perceber seu traba­lho como uma vocação à qual o emprega­do traz paixão, um compromisso com o trabalho em si.

Engajamento e envolvimento

O engajamento é o envolvimento do empregado com seu trabalho, ao passo que a satisfação é o que podemos chamar de entusiasmo do empregado no trabalho (Harter et al., 2002). Diz-se que o engaja­mento ocorre quando os empregados con­cluem que suas necessidades estão sendo atendidas. Especificamente, o engajamento reflete aquelas circunstâncias na vida em que os empregados “sabem o que se espe­ra deles, dispõem do que precisam para fa­zer seu trabalho, têm oportunidades de sentir algo importante com colegas de tra­balho em quem confiam e têm chances de melhorar e se desenvolver” (Harter et al., 2002, p. 269). Da mesma forma, Warr (1999) relatou que os empregos que mais engajam são aqueles que têm tarefas espe­ciais e nos quais há um bom equilíbrio das atividades demandadas com as habilidades e a personalidade dos empregados. Por exemplo, uma meta-análise de cerca de 300.000 empregados em mais de 50 em­presas, que responderam positivamente à questão sobre engajamento (“Tenho opor­tunidade de fazer aquilo que faço melhor”), apresentou uma relação confiável com pro­dutividade e sucesso no trabalho (Harter e Schmidt, 2002). Além disso, em sua análi­se geral, Harter e colaboradores (2002) en­contraram uma correlação confiável de 0,37 entre desempenho de empregados e várias questões que mediam engajamento no trabalho.

O envolvimento engajado no traba­lho tem semelhanças com o conceito de flow, que acarreta quaisquer circunstânci­as nas quais as habilidades de uma pessoa facilitam o sucesso em tarefas desafiado­ras (Csikszentmihalyi, 1990; Csikszentmihalyi e Csikszentmihalyi, 1988; vide o Ca­pítulo 11). No estado de fluxo, o trabalha­dor pode ficar tão absorto e envolvido nas tarefas de trabalho que perde a noção do tempo. O que é especialmente importante para nossa discussão atual é que essas ex­periências de flow têm mais probabilida­des de acontecer no trabalho do que du­rante atividades de lazer ou relaxamento em casa (Haworth, 1997). (Isso não impli­ca, contudo, que o flow não possa ocorrer em áreas de fora do trabalho, já que as pes­quisas mostram que isso pode acontecer [Delle Fave, 2001].)

Variedade nas tarefas de trabalho

Se as tarefas realizadas no trabalho fo­rem suficientemente variadas, as satisfações vêm com mais facilidade. Na verdade, o té­dio no trabalho pode ser um elemento negativo. As pessoas devem manter o máxi­mo possível de variedade e estimulação em suas atividades profissionais (Hackman e Oldham, 1980). Uma prática bastante co­mum para se manter a variedade nas tare­fas dos trabalhadores em ambientes indus­triais e tecnológicos é a célula de produção. Nesse sistema, grupos de trabalhadores com múltiplas habilidades assumem responsabi­lidade por toda uma seqüência no processo de produção (Henry, 2004). A seguir, essas equipes de trabalho colocam suas insígnias identificadoras no produto ou na parte em questão. A célula de produção vem sendo usada com algum sucesso na construção de automóveis por equipes de trabalho (mas têm havido preocupações com a possibili­dade de esse sistema custar mais, o que tem [369] reduzido sua popularidade entre algumas empresas).

Ao faltar variabilidade no trabalho, o empregado pode cair naquilo que se cha­mou recentemente de presenteísmo (em contraste com absenteísmo). No presen­teísmo, o empregado pode estar fisicamen­te no trabalho, mas, em função de proble­mas de saúde mental que muitas vezes são resultado de experiências profissionais aversivas ou repetitivas, é improdutivo ou infeliz (como relatado por Dittmann [2005] ao citar as visões de Daniel Conti, diretor para atendimento aos funcionários do ban­co J. R Morgan Chase). Diante de tarefas repetitivas e tediosas e horários inflexíveis, os empregados podem perder o ânimo e a motivação.

Ao procurar um emprego novo, pode ser aconselhável assumir um cargo que ofe­reça mais variedade com salário menor, em lugar de uma posição bem paga que en­volva atividades imutáveis e repetitivas. Sendo assim, a velha máxima que diz que “a variedade é o tempero da vida” é mais aplicável em ambientes de trabalho do que em qualquer outro cenário.

Renda para si e para a família

Sem dúvida, um mínimo de renda é necessário para atender às necessidades da pessoa e de sua família, mas, como se dis­cutiu no Capítulo 7, o dinheiro é superesti­mado como fonte de felicidade. De fato, dois estudos mostram que as pessoas pare­cem entender que a felicidade e o sentido da vida não estão muito relacionados à quantidade de dinheiro que elas ganham (King e Napa, 1998).

Resta saber se essa abordagem “racio­nal” em relação às recompensas monetá­rias e ao trabalho é praticada concretamente (King, Eells e Burton, 2004). Por exem­plo, ganhar dinheiro já foi considerado mais importante do que ter uma filosofia de vida coerente (Myers, 1992, 2000). Além disso, embora as relações inter­pessoais tenham sido valorizadas acima do trabalho (Twenge e King, 2003), os estadunidenses ainda podem pensar em quali­dade de vida em termos de quanto dinhei­ro ganham. A atual geração de trabalha­dores dos Estados Unidos está passando mais tempo no trabalho do que seus pais passaram (Schor, 1991). Em muitos re­lacionamentos, por exemplo, as duas pes­soas têm empregos (talvez isso também seja diferente da geração de seus pais). Além disso, ao tomar decisões importan­tes na vida, as pessoas têm mais probabili­dades de citar razões financeiras (Miller, 1999). É como se tivéssemos duas visões com relação a adquirir saúde financeira, e essa ambivalência se manifestasse em nos­so trabalho.

Uma tendência promissora nessa área é o desenvolvimento do Programa de Paternidade/Maternidade Positivos (Positive Pa­renting Program, Triple P). Esse programa consiste em pequenas sessões em grupo, nas quais os pais aprendem a equilibrar a vida familiar com a busca de dinheiro por meio do trabalho (Dittmann, 2005). O psi­cólogo australiano Matthew Sanders (San­ders, Markie-Dadds e Turner, 2003; Sanders, Mazzucchelli e Studman, 2004; Sanders e Turner, no prelo) criou o Triplo I] e sua in­tenção era reduzir os efeitos negativos que as longas jornadas de trabalho dos pais têm sobre os filhos. Os trabalhadores devem se certificar de que a busca por dinheiro não prejudique prazeres e obrigações familia­res importantes. Se ambos os pais traba­lham furiosamente para ganhar dinheiro e não dão atenção a seus filhos, o resultado negativo pode ser que as crianças acabem por se comportar da mesma forma quando tiverem filhos. A ironia, nesse caso, é que o mesmo trabalho que visa a gerar recur­sos para sustentar a família pode vir a ser como um câncer e causar problemas na família que pretende sustentar. [370] 

Companheirismo e lealdade para com colegas de trabalho e chefes: amigos no trabalho

Outra razão pela qual o trabalho pode estar associado à felicidade é vista no caso de Jenny, cuja rede de amizades estava si­tuada completamente dentro do ambiente de trabalho. O trabalho dá às pessoas uma oportunidade de sair de casa e interagir com outras. Como os trabalhadores podem compartilhar experiências, incluindo obs­táculos e triunfos no ambiente profissio­nal, há razões para as pessoas estabelece­rem laços entre si.

Nos últimos 30 anos, a chamada “Amé­rica corporativa”, ou seja, o mundo empre­sarial dos Estados Unidos, tem desestimulado a criação de amizades no trabalho. Essa prática se baseou no pressuposto de que a convivência entre colegas, especialmente relações fraternas entre um trabalhador e um chefe, levaria a baixa produtividade. Esse pressuposto não havia sido examinado por pesquisas sistemáticas até que Tom Rath e colaboradores, na Organização Gallup, de­ senvolveram o Diagnóstico Amigos Vitais (Vital Friends Assessment) e pesquisaram 1.009 pessoas com relação aos efeitos das amizades sobre a felicidade, a satisfação e a produtividade (Rath, 2006). O trabalho dos pesquisadores da Gallup, apresentado no livro Vital friends, confirmou que o sentido de comunidade em um determinado local de trabalho contribui para a felicidade e a satisfação no trabalho (Mahan, Garrard, Lewis e Newbrough, 2002; Royal e Rossi, 1996). Rath também descobriu que, tendo um “melhor amigo” no trabalho, você tem menos probabilidades de ter acidentes, au­menta a segurança, tem mais clientes e mais desempenho e produtividade. Essas conclu­sões podem ser atribuídas ao fato de que as pessoas que trabalham junto com um me­lhor amigo têm sete vezes mais probabili­dades de ser psicológica e fisicamente engajadas no trabalho (Rath, 2006).

Ambientes de trabalho seguros

Parte da felicidade no trabalho resi­de em um ambiente físico seguro e saudá­vel, em que fica claro que a administração está preocupada com o bem-estar dos tra­balhadores. No relatório meta-analítico discutido anteriormente, de Harter e cola­boradores (2002), a segurança percebida do local de trabalho foi um dos mais con­sistentes fatores de predição de satisfação de trabalhadores.

Há razões para se estar preocupado com o trabalho e com a saúde física real? A resposta para essa pergunta é um sono­ro sim. Muitas lesões físicas ocorrem no trabalho; além disso, há profissões de alto risco, em que prevalecem os acidentes gra­ves. Manter os trabalhadores fisicamente seguros e livres de lesões leva a melhor saúde física em outros contextos (Hofmann e Tetrick, 2003). Não deixamos a dor e o sofrimento de um problema físico gerado pelo local de trabalho na porta da fábrica quando pedimos demissão.

Em suma, a boa notícia é que vários fatores no contexto de trabalho podem con­tribuir para uma maior sensação de felici­dade e satisfação em particular, e para o emprego gratifícante em geral. Igualmente importante é o fato de que a infelicidade com o trabalho não é inevitável. Aprofundamos esse tema no restante deste capítulo.

Avaliando o emprego gratificante

Nesta seção, apresentamos um instru­mento que desenvolvemos para ajudar as pessoas a concretizar suas visões sobre tra­balho. Esse sistema possibilita que se atri­buam classificações de importância às oito categorias de emprego gratifícante, para classificar nosso desempenho em cada uma delas e produzir uma nota geral para o pró­prio emprego. Descrevemos agora esse [371] instrumento e como ele funciona, e depois da­mos exemplos de dois clientes com os quais o exercício foi usado.

Seu emprego

Ao trabalhar com pessoas sobre ques­tões relacionadas a seus empregos, sugeri­mos o sistema de notas mostrado na Figu­ra 17.2. Essa abordagem mostra de forma vivida onde a pessoa está se saindo bem no trabalho e onde as coisas andam mal.

Figura 17.2

Também ajuda o trabalhador a entender o que lhe é importante no ambiente de tra­balho. Desenvolvemos essa técnica para ajudar a pessoa a classificar a importância das oito categorias de emprego gratificante e ter uma boa maneira de avaliar o su­cesso em cada uma delas.

Examinemos o sistema de notas do emprego gratificante para ter uma ideia de como funciona.

Em primeiro lugar, pede-se ao cliente que dê notas à importância que tem para si cada uma das oito categorias de empre­go gratificante, segundo uma escala de 5 pontos (O= Nenhuma; 1 = Muito pouca; 2 = Alguma; 3 = Muita; 4 = Extrema), e que escreva sua nota no espaço em branco correspondente na coluna da esquerda cha­mada “Importância”. A seguir, pede-se que pense sobre seu próprio emprego em ter­mos de cada categoria e atribua uma nota que reflita como vão as coisas (F = 0; D = 1; C=2; B=3; A=4); essa nota se es­creve na coluna em branco do meio, cha­mada “Nota”. A seguir, os números nas duas primeiras colunas são multiplicados por cada categoria de emprego proveitoso, e o resultado é colocado na terceira coluna branca, chamada “I x N”. O cliente, então, soma os oito números na coluna “Impor­tância”, e o total é dividido por oito para se chegar à importância média das catego­rias de emprego gratificante. Esse número médio pode ser usado para ajudar a pes­soa a ver até onde ela acha que o emprego preenche necessidades relacionadas à im­portância, e os escores em cada quadro dão à pessoa visões sobre aqueles aspectos do trabalho que lhe são mais ou menos im­portantes.

Somando os números da terceira co­luna (“I x N”) e dividindo pelo escore total de importância da primeira, o indivíduo determina a nota média para seu trabalho. Esse é o melhor número geral para o quan­to um emprego está atendendo às necessi­dades de emprego gratificante do trabalha­dor. Interpreta-se como uma média de no­tas na escola, com o 0 eqüivalendo a F; 1,0 a D; 2,0, uma nota média, C; 3,0, uma boa nota, B; e qualquer coisa próxima a 4,0 quer dizer que o emprego tem uma exce­lente nota A em termos de emprego grati­ficante. Agora que você sabe como funcio­na o sistema, experimente com seu empre­go (se tiver).

De volta ao caso de Jenny

Voltando ao caso descrito anterior­mente neste capítulo, a nota do emprego gratificante de Jenny é mostrada na Figu­ra 17.3. Essa figura mostra as classifica­ ções de Jenny para seu novo emprego na lavanderia. A classificação de importância média dela foi de 3,38, o que quer dizer que ela considera que seu emprego preen­ che suas necessidades com relação à im­ portância percebida. Mais do que isso, sua nota média para emprego gratificante foi de 3,74, ou seja, ela via seu emprego em termos extremamente positivos nas oito ca­ tegorias de emprego gratificante. Resumin­ do, nessas categorias de emprego grati­ ficante às quais atribuiu classificações de importância muito altas, ela também con­ siderou, em termos gerais, que seu desem­ penho era extremamente bom.

Figura 17.3

O professor assistente que não foi efetivado

Outro cliente do autor principal (C.R.S.) chegou para tratamento quando se deu conta de que não ia ser promovido em sua posição de professor assistente. Como não havia publicado coisa alguma de suas pes­quisas, esse cliente estava para ser demiti­do depois de 7 anos no emprego. Suas autoclassificações para o trabalho estão na Figura 17.4. O que deve ser destacado é que a classificação de importância média foi de 3,50, refletindo sua percepção de que as tarefas de um professor assistente eram muito importantes. Observe, contudo, que, ao contrário dessas classificações de muita importância, ele atribuiu notas baixas a todas as categorias de seu emprego, com exceção de companheirismo e lealdade. Por fim, observe que essa média de emprego gratificante foi baixa, de 2,13. Se a cate­goria de companheirismo e lealdade tives­se sido omitida, suas notas para emprego gratificante teriam sido ainda mais baixas.

Figura 17.4

Esse exercício revela as percepções desse jovem professor sobre seu trabalho e suas capacidades. Na categoria de enga­jamento e envolvimento e na de sensação de estar desempenhando bem e atingindo objetivos, parece haver uma desconexão [373] em suas respostas. Embora ele tenha clas­sificado ambas as categorias em uma po­sição muito alta (com 4s) em termos de importância, as notas de desempenho re­lacionadas (Os) estavam mal. Infelizmente para ele, essas duas categorias de engaja­mento e envolvimento e de sensação de estar desempenhando bem e atingindo ob­jetivos foram consideradas muito impor­tantes por seu chefe de departamento e seu reitor quando avaliaram sua promoção a professor associado.

Após explorar suas notas de empre­go gratificante por meio desse exercício, nosso professor assistente desempregado foi orientado em uma experiência com re­dação expressiva, na qual ele escreveu por 30 minutos sobre seus sentimentos e pen­samentos com relação à perda de seu em­prego. Ele fez isso em cinco ocasiões diferentes. Pesquisas realizadas pelo psicólogo social Jamie Pennebaker testaram os efei­tos positivos da redação expressiva (nar­ração emocional de histórias). Os resultados de vários experimentos mos­traram que ela proporciona benefícios em termos de reduzir o número de consultas a médicos, aumentando o desempenho acadêmico, melhorando o funcionamento do sistema imunológico e fazendo que as pes­soas se sintam melhor, apenas para citar alguns exemplos de resultados positivos (Pennebaker, 1990; Smyth e Pennebaker, 1999).

O que gerou meu (C.R.S.) atual uso da técnica, contudo, foram resultados mos­trando que a experiência da redação ex­pressiva reduzia o absenteísmo por parte dos empregados e aumentava a probabili­dade de que pessoas desempregadas con­seguissem trabalho (Spera, Buhrfeind e Pennebaker, 1994). Como havia aconteci­do com pesquisas anteriores usando esse sistema, quan­do esse ex-professor assistente experi­mentou a técnica da redação expressiva, ela pareceu desenca­dear entusiasmo pa­ra buscar uma outra posição acadêmica. E essa história tem, sim, um final feliz! Esse mesmo homem, [375] mais tarde, conseguiu outro cargo de pro­fessor assistente em uma faculdade menor.

Em seu novo ambiente de trabalho, ele usou o que havia aprendido a partir de seus problemas em seu primeiro emprego aca­dêmico. Ele teve sucesso nessa nova faculda­de e foi promovido a professor associado. Como não estava mais em tratamento, con­tudo, não houve nota de emprego gratificante para esse novo emprego, mais favo­rável. Supõe-se que sua nota média seja maior nessa segunda vez.

Ter ou ser um bom chefe

O chefe é um recurso crucial para aju­dar os empregados a ter experiências pro­fissionais produtivas e satisfatórias. Obser­ve que incluímos ser um bom chefe no tí­tulo de nossa seção, pois muitos leitores vão se encontrar no papel de chefe em al­gum momento de suas carreiras, se já não estiverem nele. Os supervisores que dão de­finições de cargo e tarefas claras, bem como apoio aos empregados, estimulam a satis­fação no emprego e a produção (Warr, 1999). Administradores e líderes que se concentram nas qualidades dos emprega­ dos (Buckingham e Clifton, 2001) são bons em comunicar os objetivos da empresa e conseguem dar feedback que contribui para as experiências positivas dos empregados. Os chefes que têm alto nível de esperança também desfrutam de suas interações sociais com empre­gados, além de mui­tas vezes assumir um interesse ativo em como eles vão, tanto no trabalho quanto fora dele (Snyder e Shorey, 2004).

Também é in­teressante para um chefe ser verdadeiro e autêntico em interações com os empre­gados (Avolio, Luthans e Walumbwa, 2004; Gardner e Schermerhorn, 2004; George, 2003; Luthans e Avolio, 2003), mas o quê, exatamente, é autenticidade? Nas palavras de Avolio e colaboradores (2004), os che­fes autênticos são aquelas pessoas que são profundamen­te cientes de como pensam e se compor­tam, e são percebidas por outras como cientes de sua perspectiva sobre valores/moral, seus conhecimentos e suas quali­dades, assim como das dos outros; são cientes do contexto em que operam, e são autoconfiantes, esperançosos, otimis­tas, resilientes e têm elevado caráter moral (p. 4).

Os chefes autênticos estimulam a con­fiança e as emoções positivas entre seus funcionários, junto com engajamento e motivação elevados para atingir objetivos comuns. Os líderes autênticos têm valores pessoais profundos e convicções que gui­am seus comportamentos. Os funcionários, por sua vez, respeitam e acreditam neles, e essas visões positivas são reforçadas à medida que o chefe autêntico estimula vi­sões distintas e interage em colaboração com os trabalhadores. Sendo assim, os che­fes autênticos valorizam a diversidade em seus funcionários e querem identificar e potencializar os talentos e as qualidades destes (Luthans e Avolio, 2003). O chefe autêntico estabelece padrões elevados para seu comportamento e se coloca como mo­delo de integridade e honestidade para os funcionários. Por meio dessa referência, o autêntico líder no trabalho consegue esta­belecer um sentido de trabalho em equipe entre os funcionários. Da mesma forma, o chefe autêntico define objetivos claros e estimula a esperança nos funcionários (Snyder e Shorey, 2004). Como observado anteriormente, um bom chefe também es­timula os funcionários a trabalhar em equi­pe (Hogan e Kaiser, 2005). Em suma, a autenticidade nos chefes parece estar as­sociada ao emprego gratificante e a uma [376] série de resultados positivos no local de trabalho.

Em nosso trabalho de consultoria com diversas organizações no decorrer dos anos, temos observado essas dez caracte­rísticas principais, que são comuns aos melhores chefes:

  • Dão aos funcionários objetivos e tare­fas profissionais claras.
  • Não são apenas amigos dos funcioná­rios, mas também conseguem dar feed­back corretivo de forma que sejam es­cutados.
  • São verdadeiros e autênticos em suas interações com todos.
  • São éticos e demonstram valores mo­rais em suas interações com as pessoas.
  • São honestos e dão exemplo de integri­dade.
  • Encontram os talentos e as qualidades dos funcionários e os potencializam.
  • Confiam nos trabalhadores e facilitam que os trabalhadores confiem neles.
  • Estimulam visões diversificadas por par­te dos trabalhadores e conseguem acei­tar avaliações de si mesmos.
  • Estabelecem padrões elevados, mas ra­zoáveis, para os funcionários e para si.

O que intriga com relação a essas qua­lidades é o grau em que os funcionários parecem concordar em que elas sejam, tam­bém, importantes para eles próprios. Eles atribuem essa concordância de visões ao fato de falarem entre si sobre o que gos­tam e não gostam em seus superiores. Além disso, quando um chefe tem essas caracte­rísticas, isso parece ter um papel impor­tante na produtividade e na felicidade dos funcionários no trabalho.

Os sentidos de engajamento, produ­tividade e satisfação parecem todos andar juntos em um local de trabalho positivo. Sem dúvida, o chefe cumpre um papel crucial para fazer que tais resultados posi­tivos aconteçam. Pense nessas característi­cas de um bom chefe e depois as aplique a seu ambiente de trabalho. Essas caracte­rísticas se aplicam a seus supervisores? Você acha que tem muitas dessas qualida­des? Embora você possa não ser chefe ago­ra, possuir essas características principais pode determinar se você o será, bem como se terá sucesso nesse papel.

A Abordagem do trabalho beseada em qualidades

Nesta seção, descrevemos uma ousa­da e nova abordagem para associar as ta­refas dos funcionários a suas qualidades e a seus talentos, que foi lançada pela Orga­nização Gallup. A seguir, exploramos os vários aspectos dessa abordagem baseada em qualidades, que está definindo tendências. Uma pioneira de longa data da abor­dagem baseada em qualidades tem sido a Organização Gallup, na qual líderes prati­cam a “busca de qualidades” em relação a contratar e cultivar os funcionários. Em lugar de gastar milhões de dólares para reparar ou “consertar” deficiências nas ha­bilidades de seus funcionários, os líderes da Organização Gallup sugerem que esse dinheiro e essa energia seriam mais bem gastos em descobrir as qualidades e os ta­lentos dos funcionários, e depois encontrar tarefas de trabalho que tenham uma boa relação com esses talentos (Hodges e Clifton, 2004). O foco não está em mudar os defeitos e as deficiências dos funcioná­rios, e sim em potencializar seus recursos. Como disseram Buckingham e Coffman (1999, p. 57), não perca tempo tentando colocar dentro o que ficou de fora. Tente trazer para fora o que ficou dentro. Isso já é difícil o suficiente.

Combine as pessoas, não as "coserte"

A premissa da abordagem baseada em qualidades em relação ao trabalho é sim­ples: em lugar de “consertar” todos os em­pregados, de forma que cada um deles [377] tenha o mesmo nível básico de habilida­des, descubra quais são os talentos de cada um e os desig­ne a tarefas em que esses talentos pos­ sam ser usados ou formule as ativida­des profissionais em relação aos talentos e habilidades dos trabalhadores. Por mais que essa postu­ra possa ser óbvia, quando a Gallup realizou uma pesquisa em diferentes países, a resposta foi surpreen­dente ao se perguntar aos respondentes: “O que o ajudaria a ser mais bem-sucedido em sua vida: saber quais são seus defeitos e tentar melhorá-los ou saber quais são suas qualidade se tentar potencializá-las?” (Hodges e Clifton, 2004, p. 256). Timothy Hodges e Donald Clifton, da Gallup, resu­miram as respostas a essas perguntas e con­cluíram que a maioria dos respondentes em diferentes países respondeu em favor de “melhorar seus defeitos”. Em termos de porcentagem de respondentes que favore­ceram a postura de potencializar as quali­dades, os pesquisadores encontraram o se­guinte: Estados Unidos = 41%; Grã-Bretanha = 38%; Canadá = 38%; França = 29%; Japão = 24%; e China = 24%. Obviamente, a maioria das pessoas ainda
prefere o modelo do “conserto”.

As etapas dessa abordagem

Segundo Clifton e Harter (2003), há três etapas na abordagem baseada em qualidades em relação ao emprego gratifícante. A primeira é a identificação de talentos, que envolve aumentar a cons­ciência dos empregados em relação a seus talentos naturais ou aprendidos. Se você está interessado em encontrar esses talen­tos em si mesmo, sugerimos o diagnóstico da Organização Gallup na internet (http://www.strengthsfinder.com). (Os autores deste texto reali­zaram a medida nessa página na internet e concluíram que os resultados são muito úteis. Observe que pode haver cobrança se você não comprou um livro que contenha um código do Clifton StrengthsFinder.)

A segunda etapa é a integração de ta­lentos à autoimagem do funcionário. A pessoa aprende a se definir segundo esses talentos. A Gallup desenvolveu livros vol­tados a ajudar grupos específicos de pes­soas a integrar seus talentos. Há um volu­me interessante para trabalhadores de di­ferentes áreas de emprego potencial (vide Buckingham e Clifton, 2001), um caderno de exercícios para estudantes (vide Clifton e Anderson, 2002), um livro para pessoas que trabalham em vendas (Smith e Ru- tigliano, 2003) e um para membros e líde­res de organizações baseadas na fé (vide Winseman, Clifton e Liesveld, 2003).

A terceira etapa é a mudança comportamental real, na qual o indivíduo aprende a atribuir qualquer sucesso a seus talentos especiais. Nessa etapa, as pessoas informam estar mais satisfeitas e produtivas, precisa­mente porque começaram a se apropriar de suas qualidades e a se aprofundar nelas.

Funciona?

A abordagem baseada em qualida­des funciona para melhorar os emprega­dos? A resposta parece ser um sólido sim. Em uma pesquisa com 459 pessoas que haviam realizado o diagnóstico com o Clifton StrengthsFinder por meio da pá­gina na internet citada (Hodges, 2003), 59% concordaram, ou concordaram em muito, com a questão “Aprender sobre minhas qualidades me fez fazer escolhas melhores em minha vida”; 60% concor­daram, ou concordaram em muito, com “Concentrar-me em minhas qualidades me [378] ajudou a ser mais produtivo”; e 63% con­cordaram em muito com “Aprender sobre minhas qualidades aumentou minha autoconfiança”.

Para além desses benefícios informa­dos por autoavaliação, a abordagem base­ada em qualidades também produziu re­sultados positivos no local de trabalho em relação a indicadores “concretos”. Por exemplo, em um estudo na Toyota North American Parts Center California (Connelly, 2002], os trabalhadores dos armazéns re­alizaram o Clifton StrengthsFinder e par­ticiparam de sessões na hora do almoço que visavam responder a qualquer questão re­lacionada. Além disso, os gerentes da em­presa fizeram um curso de quatro dias so­bre essa abordagem. Em relação aos três anos anteriores, nos quais a produtividade por pessoa aumentou ou diminuiu em me­nos de 1%, o ano seguinte à intervenção desse tipo teve um aumento de 6%.

Outros exemplos de avanços reais no trabalho resultantes dessa abordagem ba­seada em qualidades podem ser vistos em Hodges e Clifton (2004). Por exemplo, quando implementada em ambientes de trabalho, a abordagem resultou em maior engajamento dos funcionários (Black, 2001; Clifton e Harter, 2003) e engaja­mento entre membros de uma congrega­ção religiosa (Winseman, 2003). Além dis­so, a educação na abordagem baseada em qualidades gerou aumentos na confiança dos estudantes em si mesmos e nos resul­tados futuros (Clifton, 1997; Rath, 2002). Em suma, a abordagem obteve sustenta­ção considerável na última década.

O exercício dos recursos

Um exercício que temos usado ao tra­balhar com as pessoas quando elas cogitam novas profissões ou empregos tem seme­lhanças com a abordagem baseada em qua­lidades usada pela Gallup. Nossa técnica é muito mais simples. Começamos pedindo que nosso cliente faça duas colunas em uma folha de papel em branco, intitulando a pri­meira coluna como “Recursos” e a segunda, “Débitos”. Nesse caso, citamos o caso real do autor principal (C.R.S.) para ilustrar como o profissional da ajuda pode avançar daqui. Eu estava atendendo a um homem de cerca de 30 anos. Ele era diskjockey, mas não sentia mais qualquer satisfação com esse tipo de trabalho. O que ele queria era vol­tar a estudar e ser assistente social. Para ajudá-lo e saber quanto essa nova linha de estudos e trabalho era adequada a ele, pedi-lhe que tirasse alguns minutos para pensar sobre suas qualidades e defeitos em relação a essa mudança. Uma vez tendo pensado um pouco nisso, pedi-lhe que listasse todos os seus recursos relacionados a se tornar as­sistente social na primeira coluna e seus dé­bitos em relação a essa mesma atitude, na segunda. O que ele fez está disposto na Fi­gura 17.5.

Figura 17.5

Observe que a lista de recursos de nosso candidato a assistente social é mui­to mais longa do que a sua lista de débitos. Esse é um bom sinal. Além disso, pode-se ver que ele tinha várias qualidades que o ajudariam nessa transição. Em primeiro lugar, tinha os interesses e talentos bási­cos necessários para o trabalho social - ele tinha habilidades interpessoais, gostava na­turalmente de ajudar e as pessoas se abri­am a ele. Sua motivação estava alta, ele tinha certeza do que queria e estava dis­posto e pronto para mudar. Ele também tinha uma sólida base de apoio social, o que é um bom recurso para uma pessoa que vai passar por uma mudança de gran­de porte, potencialmente estressante. No outro lado da contabilidade, seus dois débitos não eram fatais, ele poderia apren­der a se planejar para voltar à escola, e suas notas, embora variassem de Ds a As, ainda estavam acima do requisito mínimo. Em termos gerais, esse exercício com recursos mostrou que nosso candidato a assistente social tinha os recursos necessários e as qualidades adequadas à sua nova profissão. [379]

Capital no trabalho

O psicólogo positivo Fred Luthans, da Universidade de Nebraska, propôs uma nova maneira pensar sobre recur­sos ou capital, que se pode aplicar à força de trabalho. Essa visão do capi­tal dá maior ênfase ao trabalhador in­dividual. Como dis­se Carly Fiorian, da Hewlett-Packard (em Luthans e Youssef, 2004, p. 143), “O ingrediente mais im­portante na paisa­gem transformada são as pessoas”. No espírito da pesquisa e aplicações da psicologia positiva, Luthans começa com a visão tradicional de capital econômico e, a seguir, amplia-a para no­vas fronteiras do pensamento psicológico positivo. Apresentamos essa evolução de seu pensamento nas próximas seções.

Capital econômico tradicional

Como mostrado na Figura 17.6, o ca­pital econômico tradicional envolve a reposta de uma organização à pergunta: “O que você tem?”. A resposta tem sido geralmente uma lista de instalações con­cretas que tornam uma determinada em­presa singular. Esse caso incluiria os pré­dios ou as fábricas, o equipamento, os dados, as patentes, a tecnologia, e assim por diante. Obviamente, esse tipo de ca­pital é muito caro em termos de despesas financeiras. Muitas vezes, um indicador de sucesso em uma organização é o fato de outras empresas tentarem copiar essas fontes de capital (eufemisticamente cha­mado de benchmarking). Como a tecnolo­gia moderna agora possibilita que os pro­dutos de uma empresa líder no setor se­jam copiados por meio de engenharia reversa, contudo, as vantagens tradicionais desfrutadas por uma empresa que desen­volve um produto novo foram reduzidas em muito. Historicamente, esses recursos físicos do capital econômico têm recebido a maior parte da atenção em análises de cenários de trabalho (Luthans, Luthans e Luthans, 2004), mas isso está mudando no século XXI.

Figura 17.6

Capital humano

A expressão capital humano se refere aos empregados em todos os níveis de uma organização. Nesse sentido, o fenômeno empresarial Bill Gates comentou que os [380] recursos mais importantes de sua empresa “saíam pela porta todas as noites”. Ao fa­zer esse comentário, ele está enfatizando a forma como as habilidades, o conheci­mento e as capacidades de seus emprega­dos refletem os recursos maiores que posicionaram a Microsoft acima de seus con­correntes. Portanto, no modelo de capital econômico antigo, a questão orientadora para uma organização era: “O que você tem?”. A pergunta fundamental para a perspectiva do capital humano, por sua vez, é “O que você sabe?”. A resposta para a segunda interrogação implica recursos re­lacionados aos empregados, que se baseiam em capital humano, como experiência, educação, habilidades, talentos, conheci­mento e novas idéias (Luthans et al., 2004). O conhecimento inerente ao capital huma­no é formado pelas habilidades explícitas dos trabalhadores. Essas habilidades e co­nhecimentos tácitos são específicos de cada organização. Por exemplo, a Nike tem sido caracterizada como soberba no gerencia­mento de marca, a General Electric, em cooperação global, e a Microsoft tem sido elogiada por ter empregados excelentes em experimentar novas idéias (Luthans e Youssef, 2004).

Na força de trabalho dos Estados Uni­dos, o capital humano cada vez mais envol­ve trabalhadores de diversas origens étni­cas. Nas palavras de John Bruhn (1996),

Uma organização saudável é aquela em que se faz um esforço visível para ter pes­soas de diferentes origens, habilidades e capacidades para trabalhar conjuntamen­te pelos objetivos ou propósitos da orga­nização. Embora ainda não tenhamos con­quistado isso em nível social, é possível em nível organizacional (p. 11).

A necessidade de diversidade cultu­ral está sendo entendida em nível de ge­rentes e de empregados. O professor Taylor Cox (1994), da Universidade de Michigan, sugeriu quatro boas razões para essa di­versidade de capital social. Em primeiro lugar, origens diversas dentro de uma mes­ma organização melhoram o nível geral de energia e talento, aumentando o potencial para solução de problemas da organização. Em segundo, um valor central da socieda­de norte-americana é a igualdade de opor­tunidades, de forma que é correto, ética e moralmente, aumentar a diversidade en­tre os trabalhadores. Terceiro, a diversida­de cultural eleva o desempenho de todos os trabalhadores. Quarto, a legislação relacionada a remuneração igual, direitos civis, discriminação por gravidez e idade e aquela referente a portadores de deficiên­cias obriga à diversidade.

Capital social

Intimamente relacionado ao capital humano é o capital social, com relação ao qual a pergunta é “Quem você conhece?”. Em todos os níveis de uma organização, um importante conjunto de recursos está vinculado aos relacionamentos, rede de contatos e amigos (vide a Figura 17.6). Esse capital social faz que uma organização con­siga estabelecer objetivos e resolver quais­quer desafios que possam surgir. Como sa­bem com quem devem falar dentro e fora da empresa, os empregados podem atingir seus objetivos, mesmo em circunstâncias difíceis. Dessa forma, a orientação é uma mercadoria preciosa no capital social.

Capital psicológico positivo

A última e mais recente forma de ca­pital discutida pelos cientistas sociais é o capital psicológico positivo, o qual, para Luthans e colaboradores (Luthans et al., 2004; Luthans e Youssef, 2004), comporta quatro variáveis psicológicas positivas (vide a Figura 17.7). Essas quatro variáveis envolvem a eficácia de Bandura (1997), (a confiança na própria capacidade de atin­gir um objetivo;), a espe­rança de Snyder (2002a) (a capacidade de encontrar caminhos para objetivos [381] desejados, junto com a motivação ou a agência para usar esses caminhos), o otimismo de Seligman (2002) (capa­cidade de atribuir os bons eventos a cau­sas internas, estáveis e generalizadas) e a resiliência de Masten (2001) (capacidade de resistir e vencer diante da adversidade).

Figura 17.7

Luthans afirma que, à medida que avançamos no século XXI, é hora de as empresas reduzirem sua dependência das fontes tradicionais de capital (como o eco­nômico) (Luthans et al., 2004; Luthans e Youssef, 2004). Em lugar disso, ele sugere que há razões teóricas contundentes, jun­to com relatórios iniciais de programas de pesquisas (vide Luthans, Avolio, Walumbwa e Li, no prelo), para avançar a essas for­mas psicológicas de capital. Exploramos uma forma de capital psicológico positivo, a esperança, e mais detalhes, na próxima seção.

Esperança, um capital psicológico fundamental

Como discutimos em detalhe no Ca­pítulo 9, o pensamento esperançoso pode produzir benefícios em várias áreas da vida, sendo que uma das mais importantes é o trabalho (Peterson e Luthans, 2003). De fato, a esperança pode caracterizar o am­biente de trabalho produtivo ou a empresa, assim como o trabalhador bem-sucedi­do. Lembre-se de que a esperança, como a definiram Snyder e colaboradores (vide o Capítulo 9), envolve ter objetivos claramen­te definidos, junto com as capacidades per­cebidas para produzir rotas que levem a esses objetivos (chamado de pensamento de caminhos), e as energias necessárias para usar essas rotas (chamado de pensamento de agência). Em geral, usando os princípios da teoria da esperança, é adaptativo em ambientes de trabalho esclarecer os obje­tivos importantes, desmembrar objetivos maiores em outros, menores, que sejam mais fáceis de atingir, e aprender a produ­zir rotas alternativas a objetivos desejados, especialmente em circunstâncias estressantes (Luthans e Jensen, 2002).

Para explorar o papel da esperança nas empresas dos Estados Unidos, o autor principal deste livro-texto (C.R.S.) realizou uma pesquisa na revista Success, em 2001 (Snyder, 2004b). Essa pesquisa fez uma série de perguntas em relação a uma em­presa, e deveria ser respondida completamente e devolvida de forma independente por um empregado de cada nível da em­presa, desde o superior, ao intermediário e ao inferior. Em outras palavras, o diretor-executivo ou o presidente representava o nível superior, os gerentes, o intermediá­rio e os trabalhadores refletiam o escalão mais baixo. As respostas foram devolvidas ao investigador e tabuladas com vistas a classificar as 100 primeiras empresas em termos de esperança. Além disso, foram identificadas as dez principais do grupo todo de empresas. Essas empresas varia­vam desde operações familiares que tinham alguns poucos trabalhadores e rendimen­to bruto de 150 mil dólares por ano até organizações imensas, com milhares de empregados e receitas de mais de um bi­lhão de dólares. Apesar das diferenças des­sas organizações em termos de tamanho e formação, a pesquisa mostrou característi­cas muito semelhantes nas organizações com esperanças elevadas. Discutimos es­sas características a seguir.

As empresas com esperanças elevadas

Em termos gerais, as empresas com esperanças elevadas parecem ser muito bem-sucedidas em termos de seus lucros. Dessa forma, a esperança cumpre um papel positivo quando se trata de lucros finais. Também concluímos que os ambientes de trabalho onde há elevadas esperanças (em comparação com os de esperanças [383] reduzidas) compartilhavam as seguintes carac­terísticas:

  • Ninguém, incluindo a gerência, era mui­to temido pelos empregados.
  • Havia um terreno comum em que todos tinham a mesma chance de sucesso.
  • Os avanços e os benefícios estavam li­gados aos esforços feitos.
  • A pessoa de nível mais baixo na organi­zação era tratada com o mesmo respei­to que qualquer outro empregado, in­cluindo a gerência.
  • A primeira prioridade da gerência era ajudar os empregados a fazer o melhor trabalho possível.
  • Havia uma comunicação aberta e bidirecional entre empregados e gerência.
  • O feedback dos funcionários era solici­tado como forma de tornar a empresa melhor.
  • O maior número possível de decisões era dado aos funcionários que estives­sem fazendo o trabalho em questão.
  • Os funcionários participavam da defi­nição dos objetivos da empresa.
  • Os funcionários recebiam responsabili­dades por encontrar soluções para os problemas.
  • Fosse para resolver um problema ou experimentar uma ideia nova, dava-se aos funcionários a responsabilidade por implementar as mudanças.
  • O objetivo era estabelecer relaciona­mentos duradouros com os clientes, em lugar de atingir um determinado obje­tivo de vendas.

Os empregados com esperanças elevadas

Usando os mesmos dados de pesqui­sa (ou seja, Snyder, 2004), foram identifi­cados os empregados com esperança mais elevada. Também se deve observar que es­ses empregados de alta esperança tendiam a trabalhar nas empresas de esperança ele­vada. Os resultados mostraram que esses empregados (comparados com os de bai­xa esperança) compartilhavam as seguin­tes características:

  • Eram conscienciosos em relação a seus empregos.
  • Apresentavam atitudes prestativas em relação a outros trabalhadores e às co­munidades locais.
  • Eram corteses com colegas de trabalho e com clientes, especialmente durante discussões ou interações difíceis.
  • Reagiam bem quando colegas de tra­balho recebiam gratificações (aumen­tos, promoções, reconhecimento, etc.).
  • Não culpavam colegas, a administração ou clientes quando surgiam dificuldades.
  • Estabeleciam objetivos de trabalho claros.
  • Encontravam rotas boas e múltiplas para objetivos desejados.
  • Conseguiam se motivar sob circunstân­cias normais e eram especialmente di­nâmicos em circunstâncias difíceis.

Mobilizando a esperança no trabalho

Tomadas em seu conjunto, essas con­clusões com relação às características da es­perança elevada em empresas e emprega­dos possibilitam várias inferências. Para começar, há, pelo menos, quatro grandes conseqüências de ser empregado em um ambiente de baixa esperança (Snyder e Feldman, 2000). Em primeiro lugar, parece que os trabalhadores nesses ambientes têm baixa motivação. Isso se conclui porque eles não contribuem muito para definir suas ati­vidades. Em segundo, os trabalhadores po­dem não se sentir muito conscienciosos e, assim, teriam probabilidades de gerar pro­dução de baixa qualidade. Terceiro, geral­mente têm autoestima e ânimo para o tra­balho baixos. Quarto, parecem não ter res­peito pelos administradores e outros fun­cionários quando chegam a trabalhar, mas seu trabalho muitas vezes é irregular e eles têm altas taxas de absenteísmo. [384]

Esses resultados de pesquisa pintam um quadro diferente, contudo, para o am­biente de trabalho e para o empregado de elevada esperança. Possibilita-se a esses empregados ter voz na definição de seus próprios objetivos de trabalho. Como são conscienciosos e motivados em relação a vários aspectos de seus empregos, eles não têm que bater cartão-ponto e, em vez dis­so, confia-se neles para que informem suas horas de trabalho corretamente. Gostam de seu trabalho, e isso fica visível em sua cortesia com relação a colegas e clientes, e também são prestativos em suas interações com colegas de trabalho (ou seja, prova­velmente ajudarão outro empregado a atin­gir seus objetivos de trabalho, sem ser competitivos). Por fim, quando se trata dos lu­cros, os esperançosos são produtivos. Re­sumindo, os trabalhadores que têm pers­pectivas esperançosas têm probabilidades de ter bom desempenho em ambientes de trabalho (Snyder, 1994), e isso se aplica especialmente se o ambiente envolver estresse considerável (Kirke Koesk, 1995). (Para conclusões semelhantes sobre autoeficácia e desempenho no trabalho, vide Stajkovic e Luthans [1998].)

Pode-se aumentar a esperança no trabalho?

Uma pergunta que você pode estar fa­zendo a essas alturas é se um empregado pode aprender a aumentar sua esperança dentro do ambiente de trabalho. Em dois testes dessa pergunta, Hodges e Clifton (2004) examinaram se realizar o Clifton StrengthsFinder e passar por exercícios para aprimorar as qualidades resultava em qualquer aumento em esperança situacional da forma medida pela Escala da Es­perança como Estado (Snyder et al., 1996). Em um primeiro estudo, os estudantes re­ceberam a avaliação como parte de um curso que estavam fazendo, além de uma sessão de 30 minutos para cada um com um profissional, sobre os resultados do tes­te. Dois meses depois, eles refizeram a Es­cala da Esperança como Estado, e os esco­res aumentaram cerca de 12% (em termos estatísticos, 0,36 unidades de desvio-padrão). Em uma segunda pesquisa realiza­da em um hospital para reabilitação, os em­pregados inicialmente completaram a Es­cala da Esperança como Estado e depois receberam a avaliação StrengthsFinder. Os funcionários do hospital também poderiam se reunir com um instrutor para discutir suas qualidades se assim quisessem. Após um ano, 488 funcionários do hospital fo­ram submetidos mais uma vez à Escala da Esperança como Estado. Para os empregados que haviam buscado o instrutor, em comparação com o que não o fizeram, hou­ve um aumento significativo (p < 0,001) nos escores de esperança como estado. Juntos, esses estudos sugerem que a espe­rança pode ser aumentada no contexto de trabalho.

O lado escuro: viciados em trabalho, Burnouts e empregos perdidos

Nesta seção, analisamos os trabalha­dores que podem estar mais necessitados dos benefícios da psicologia positiva, ou seja, as pessoas que trabalham todo o tem­po, os que sofreram burnout no trabalho e os que perderam o emprego.

Viciados em trabalho

Algumas pessoas, conhecidas como workaholics, tornam-se obcecadas com seu trabalho, a ponto de não conseguirem as­sumir responsabilidades com seus amigos e sua família. Esse vício também faz que a pes­soa fique no trabalho por muitas horas após os outros terem ido embora, e trabalhando muito mais do que os outros, quase ao pon­to de buscar o perfeccionismo (McMillan, O’Driscoll, Marsh e Brady, 2001). Para uma [385] pessoa viciada em trabalho, não há equilí­brio nas atividades da vida, e ela pode até começar a exibir padrão de comportamen­to de Tipo A, de supervigilância, com rela­ção a limites de tempo, e explosões de raiva para com colegas de trabalho (Houston e Snyder, 1988).

Burnout

Você já se sentiu como se trabalhasse cada vez mais em seu emprego e mesmo assim as coisas que precisa fazer simples­mente parecessem aumentar, independen­temente de seus esforços? Você se sente cansado no trabalho? Seu emprego não é nem um pouco gratificante? Talvez você tenha assistido a seus próprios pais traba­lharem muito e com muito esforço, e ado­tou sua postura workaholic para si. Se es­ses sentimentos parecem estar presentes, você pode estar sofrendo de burnout (Pines, Aronson e Kafry, 1981; Rodriguez-Hanley e Snyder, 2000).

O bumout é cíclico. Inicialmente, o empregado tem um alto nível de energia, mas isso começa a diminuir com o passar do tempo. Ele encontra graves limitações de tempo para conseguir cumprir as tare­fas, há impedimentos com relação aos ob­jetivos de trabalho, os chefes tendem a não recompensar e ainda assim pedem mais e mais do emprega­do porque ele está cumprindo as tare­fas. Paradoxalmen­te, para a pessoa que é eficaz e esfor­çada, pede-se mais. A medida que o ci­clo continua, o em­pregado fica totalmente exausto em corpo e mente, e o burnout prejudica de verdade sua ca­pacidade de realizar as tarefas necessá­rias ao trabalho. Quando sua energia ter­mina, o trabalhador precisa de tempo para se recuperar e recarregar (vide a teoria da exaustão do ego, de Baumeister, Faber e Wallace [1999]).

Os autores deste livro trabalharam com professores de escolas de ensino fun­damental e médio que sofreram burnout, e o aspecto surpreendente desses casos é que os professores novos que entram em sala de aula com o maior entusiasmo parecem ser os mais vulneráveis ao problema. Infelizmente, as pessoas em profissões volta­das a prestar assistência podem ser as mais inclinadas a sofrer burnout (Carpenter e Steffen, 2004). Por exemplo, em um estu­do realizado com assistentes sociais, mui­tos dos que se sentiam sofrendo de burnout também tinham cargas de trabalho pesa­das e excessivas, além de chefes que rara­mente elogiavam (Ngai, 1993). Da mesma forma, os enfermeiros podem sofrer bur­nout quando são submetidos a pressões no trabalho e quando sentem falta de estímu­lo, assim como os assistentes sociais. Não surpreende, então, que os enfermeiros que têm elevados escores no Inventário de Burnout de Maslach {Maslach Burnout Inventory, Maslach e Jackson, 1981,1986) também tenham nível de esperança redu­zido e se sintam bloqueados e incapazes de cumprir as muitas demandas de seus empregos (vide Sherwin et al., 1992). Para o leitor interessado nesse tópico, recomen­damos os artigos da psicóloga Christina Maslach, da Universidade da Califórnia, que produziu abordagens teóricas e de ava­liação excelentes com relação ao burnout.

Várias abordagens já foram usadas para reduzir o burnout em ambientes de trabalho (Godfrey, Bonds, Kraus, Wiener e Toch, 1990). Entre as técnicas que se mos­traram eficazes para reduzir o estresse no trabalho estão a definição de objetivos, a solução de problemas, o gerenciamento do tempo, os exercícios aeróbicos, as técnicas de relaxamento e o enfrentamento em ge­ral (Hudson, Flannery-Schroeder e Kendall, 2004). Ainda que descrevamos várias [386] técnicas de meditação no Capítulo 15 como parte da intercessão para gerar mudança, a meditação pode ser aplicada ao trabalho tão bem quanto em outras circunstâncias.

Uma questão final a ser considerada nesta seção é se os programas voltados a tratar do burnout são eficazes. Em poucas palavras, a resposta é sim. Em uma meta-análise de vários desses programas para reduzir o estresse em locais de trabalho, por exemplo, as intervenções de curto pra­zo tiveram efeitos consistentes (tecnica­mente, as magnitudes de efeito foram de 0,38 a 0,53) nos humores e saúde infor­mada pelos empregados; além disso, as in­tervenções de longo prazo produziram efei­tos ainda mais consistentes (Kaluza, 1997).

Perdendo o emprego

Infelizmente, uma realidade muito comum é o fato de as pessoas perderem o emprego. Ficar sem trabalho é um proble­ma muito grave, psicológica e fisicamente. Por exemplo, pesquisas recentes chegaram a relacionar o desemprego à morte preco­ce (Voss, Nylen, Floderus, Diderichsen e Terry, 2004). Em um programa de pesquisa de longo prazo com gêmeos idênticos, a Dra. Margaretha Voss, do Instituto Karo- linska, em Estocolmo, na Suécia, estudou mais de 20.600 homens e mulheres. Uma conclusão foi que os que informaram ter ficado desempregados tiveram mais pro­babilidades de morrer nos 10 a 24 anos seguintes do que os que não haviam ficado sem emprego. Essa conclusão, entre mulheres que informaram ter estado desem­pregadas, parecia estar ligada a suicídios, ao passo que, para os homens, a causa era indeterminada. A Dra. Voss havia concluí­do em suas pesquisas anteriores que a morte precoce (antes dos 70 anos) era mais provável para homens e mulheres que ti­vessem ficado desempregados em algum momento de suas vidas, mas as últimas conclusões mostraram que as mulheres com históricos de desemprego tinham qua­se quatro vezes mais probabilidades de cometer suicídio do que as que estavam empregadas.

Na pesquisa de Voss, também houve algumas evidências de que o desemprego entre homens está relacionado a mortes causadas por doenças relacionadas ao ál­cool e por cânceres. Escrevendo sobre es­sas últimas conclusões, a Dra. Voss argu­menta que o desemprego desencadeia um carrossel de eventos negativos que come­ça com a deterioração das circunstâncias e dos avanços econômicos da pessoa desem­pregada, por meio de uma redução da si­tuação social, relacionamentos interpes­soais desfeitos, aumento de comportamen­tos de risco, redução do bem-estar psicoló­gico e depressão, até a doença física mais grave. Como já ficou evidente neste capí­tulo, portanto, o emprego gratificante é crucial para que uma pessoa tenha uma perspectiva positiva e talvez até para sua saúde física.

O que você pode fazer para melhorar seu trabalho? 

Para ajudá-lo a pensar com um pou­co mais de profundidade sobre seu traba­lho, recomendamos que você estude a Fi­gura 17.8. Usamos os quadros dessa figura como auxílio aos passos necessários para melhorar seu trabalho.

Figura 17.8

Melhorando o trabalho

Em nossas interações clínicas com pessoas que estavam explorando questões relacionadas ao trabalho, julgamos interes­sante perguntar sobre os primeiros pensa­mentos que uma pessoa tem, cedo da ma­nhã, com relação a ir ao trabalho. Se você gosta de seu emprego e tem vontade de ir trabalhar, parabéns por essa simples situa­ção. Todavia, mesmo que goste de seu tra­balho, sugerimos que é bom estar sempre [387] buscando formas de melhorá-lo. Na Figu­ra 17.8, isso é representado pela rota à es­querda, chamada de “Melhorar o trabalho”.

Cabe discutir mais acerca dos vários pontos de decisão sobre o lado “Melhorar o trabalho”. Acreditamos que os empre­gados muitas vezes têm muito mais po­der e espaço do que eles se dão conta, para fazer mudanças positivas em seus empre­gos. Isso se aplica especialmente se você tem bom desempenho no trabalho. Seu valor para com seu chefe pode ser muito maior do que você pensa. Uma mudança, contudo, pode ser traiçoeira, e você pode pensar que um aumento de salário eleva­ria em muito sua satisfação no emprego, mas, como já discutimos, o dinheiro não é tão importante quanto geralmente se acredita.

Se o aumento não é uma panaceia, haveria outras mudanças em seu emprego que tornassem sua vida mais agradável? Talvez você pudesse pedir uma sala maior, férias mais longas ou mais freqüentes, tem­po para passar com sua família, um limite de despesas maior, um assistente, um car­ro da empresa ou benefícios de aposenta­doria maiores e mais variados. Horários de trabalho flexíveis são muito importantes para a saúde mental e o bem-estar dos tra­balhadores (Dittmann, 2005). Outra pos­sibilidade é trabalhar em casa. So­bre flexibilidade e trabalho em casa, Dittmann (2005) escreveu, A IBM introduziu horários de trabalho fle­xíveis, por exemplo, dando a muitos em­pregados a opção de trabalhar em meio expediente ou em casa, com base em ou­tra de suas conclusões de pesquisa segun­do a qual esse tipo de horário contribui para melhorar a satisfação dos trabalha­dores. Atualmente, um terço dos funcio­ nários da IBM não trabalha em um escri­tório tradicional. De fato, os pesquisadores da empresa concluíram que os empre­gados que trabalham em casa têm menos dificuldades com motivação e retenção e são mais dispostos a fazer um esforço ex­tra em seu trabalho. Mais: 55% dos fun­cionários pesquisados concluíram que tra­balhar em casa ao menos um dia por semana é aceitável, e 64% disseram que é provável que trabalhem em casa nos pró­ximos cinco anos (p. 37).

Um bom guia para melhorar sua situação profissional é refletir sobre os di­versos fatores que discutimos anteriormen­te como elementos que contribuem para o emprego gratificante (vide a Figura 17.1). Busque maneiras de conseguir o seguinte em seu emprego:

  1. variedade nas tarefas realizadas;
  2. um ambiente de trabalho seguro;
  3. renda suficiente;
  4. um sentido de propósito;
  5. felicidade e satisfação pessoais;
  6. engajamento positivo;
  7. uma sensação de que está tendo bom desempenho e atingindo objetivos e
  8. companheirismo e amizade.

Algumas dessas oito características do emprego proveitoso podem ser mais im­portantes para você do que outras. Assim, você deve tentar maximizar o atendimen­to de suas necessidades nas áreas mais im­portantes.

Outro passo que consideramos útil é que os trabalhadores falem com seus cole­gas de trabalho sobre formas por meio das quais o ambiente profissional pode ser melhorado. Seus colegas podem ter boas idéias de mudança nos aspectos físicos de seu emprego, ou dicas sobre como lidar de forma mais eficaz com outros trabalhado­res e chefes.

Uma última estratégia que vem do lado “Melhorar o trabalho” da Figura 17.8 é aprender a desfrutar do que você tem. Apreciar e saborear (Bryant, 2005; Bryant e Veroff, 2006) são atributos importantes da psicologia positiva, e você pode querer tirar mais tempo para simplesmente enten­der e desfrutar do que tem. [389]

Candidatando-se a um novo emprego

Como se pode ver na Figura 17.8, se sua resposta para a pergunta sobre acor­dar e querer ir trabalhar for não, vá ao lado direito do guia, chamado de “Encontrar um trabalho novo”, e siga os passos delinea­ dos ali.

Pode ser necessária coragem para ini­ciar uma busca por um novo emprego. Um elemento central para esse processo é per­manecer flexível ao considerar várias op­ções. Nesse sentido, você já pensou sobre de onde tirou suas atitudes com relação ao trabalho, bem como seus interesses em ti­pos específicos de trabalho? Descobrimos [391] que pais, membros da família e colegas são fortes influências.

Você pode pensar em uma amostra ainda mais ampla de pessoas potencialmen­te influentes com relação a suas atitudes diante do trabalho. Acreditamos ser impor­tante pensar sobre essas influências por­ que, em nossa experiência, refletir sobre essas fontes ajuda as pessoas a mudar suas atitudes. Leitores anteriores consideraram que “De onde tirou seus interesses profis­sionais?” é o mais útil para se certificar dos fatores que influenciaram suas atitudes em relação ao trabalho.

O próximo passo na Figura 17.8 é fa­ zer um teste vocacional/de interesses (se você ainda não o fez) para ver se seus inte­resses estão em sintonia com várias traje­tórias profissionais. Em nossa experiência, o problema para algumas pessoas é que elas vêm tendo trabalhos que não são ade­quados a seus padrões de interesse. Nossa sugestão, especialmente se você é um es­tudante universitário que está lendo este livro como parte de uma disciplina, é ir até o centro de atendimento aos estudantes e perguntar como pode receber orientação profissional. A noção fundamental nesse caso é que você deveria ter uma profissão na qual as atividades sejam adequadas a seus interesses (e qualidades, como obser­vado anteriormente). A maioria das facul­dades tem um ou mais profissionais com formação para administrar testes vocacio­nais e depois orientar os alunos em rela­ção aos resultados. Tenha em mente que os testes vocacionais não lhe dizem qual emprego é bom para você, mas proporcio­nam dicas excelentes sobre profissões nas quais você deve se sentir mais satisfeito, em função de seus interesses. Esses testes podem ter um custo ou podem ser parte dos serviços oferecidos a todos os alunos.

Recomendamos que você faça, não apenas porque é muito útil na tomada de decisões em relação à sua profissão, mas também será um bom negócio se comparado com as várias centenas de dólares que você te­ria gasto nesses serviços no setor privado.

Esses testes vocacionais foram cuida­dosamente validados para lhe dar uma ideia de seus interesses profissionais, bem como a relação entre seus interesses espe­cíficos e os das pessoas que são felizes e bem-sucedidas em várias profissões (para panoramas, vide Harmon, Hansen, Borgen e Hammer [1994] e Swanson e Gore [2000]; para discussões específicas sobre questões interculturais e étnicas, vide Day e Rounds [1998] e Fouad [2002]). O orientador fa­lará com você sobre seu padrão de interes­ses e, embora talvez ache que sabe quais são eles, poderá se surpreender. Você tam­bém receberá feedback útil em relação à adequação de seus interesses às várias pro­fissões. A decisão sobre qual direção tomar continuará a ser sua, mas será uma deci­são informada, diferente daquela do es­tudante universitário típico que escolhe seu curso e, portanto, delimita seus empregos posteriores, em um processo de ir acu­mulando casualmente créditos naquela área de conhecimento. Essa é a melhor maneira de planejar um dos aspectos mais importantes de toda a sua vida? Achamos que não.

Supondo que você realmente saiba quais empregos lhe são adequados com base em seus interesses e talentos, realizar entrevistas informativas com pessoas que estejam se saindo bem nessas profissões pode ajudar. Descubra o que seus empregos realmente acarretam e depois receba seus conselhos com relação a encontrar empregos na mesma área. Nessa etapa você pode se dar conta de que precisa voltar a estudar para ter um diploma novo ou dife­rente que abra portas nos empregos que gostaria de ter.

Se você tem a formação adequada, o próximo passo é preparar um currículo e dar para outras pessoas lerem, e ver se está [392] o melhor possível. Pode ser interessante ir a uma agência de empregos em busca de ajuda para procurar trabalho, mas, fazen­do isso ou não, o próximo passo é levar sua inscrição e seu currículo ao maior nú­mero de empregadores possível.

A próxima etapa envolve entrevistas. Prepare-se cuidadosamente para elas. An­tes de uma entrevista, pratique com pessoas que você pode confiar que lhe darão um feedback sincero. Descubra tudo o que pode sobre a empresa e seu pessoal antes da entrevista. Vista-se adequadamente para o ambiente. Durante a entrevista, demons­tre entusiasmo pelo emprego. Ouça o que seus entrevistadores estão dizendo, e preste atenção. Se você não tiver a resposta para alguma pergunta, não tente fingir que a tem - admita que não sabe, mas que irá aprender! E conheça suas qualidades, pois a maioria dos entrevistadores lhe pergun­tará sobre elas.

Parabéns! Estão lhe oferecendo um emprego. E nessa etapa que você tem o maior poder de influenciar o conteúdo de sua oferta de trabalho. Pense em outras coisas além do dinheiro. Preste atenção aos fatores de emprego gratificante mostrados na Figura 17.1 ao negociar com seu poten­cial novo empregador (para um panorama do processo de se candidatar, ser entrevis­tado e negociar, vide Snyder, 2002b). Por fim, escolha o trabalho que quer assumir, ou seja, o que melhor atende às suas ne­cessidades de emprego gratificante.

O poder para mudar

Ao ajudar pessoas que estavam me­nos que felizes com sua situação profissio­nal, descobrimos que, quase sem exceção, elas acabavam por se dar conta de que ti­nham mais opções e alternativas do que imaginavam inicialmente. Sendo assim, à medida que você avança neste guia, entenda que pode fazer coisas para melhorar seu emprego. Um princípio importante da psi­cologia positiva é que podemos efetivamen­te mudar nossa vida para melhor, e o tra­balho é um aspecto crucial dela.

Quando o trabalho se torna um avocação: história de uma auxiliar de hospital 

Uma questão que surge muito clara é que a pessoa não precisa ter um alto salá­rio e um cargo importante para obter uma satisfação enorme de seu trabalho. Um exemplo pode ajudar a dar vida a esse ar­gumento. Em 1999, o autor principal des­ te livro (C.R.S.) submeteu-se a uma complexa operação no Centro Médico da Uni­versidade do Kansas. Fiquei no centro por duas semanas e, durante esse tempo, tive o prazer de interagir com muitas pessoas que tiveram uma conduta maravilhosa no trabalho. Havia um cirurgião importante, com sua equipe de “filhotes” que o segui­am a todos os lugares, assim como meu gastroenterologista de primeira classe. Pe­quenos exércitos de outros médicos e en­fermeiros também tornaram minha vida mais suportável. No entanto, por mais ma­ravilhosos e bem-sucedidos que tenham sido, esses profissionais não me causaram a mesma impressão como uma pessoa que se pode dizer que tinha a posição mais in­ferior na hierarquia. Tenho vergonha de di­zer que não me lembro do nome dessa pes­soa, mas me lembro claramente daquilo que ela colocava em seu trabalho.

Essa mulher impressionante era uma auxiliar, que trabalhava no turno entre meia-noite e 8 da manhã. Era nessas horas que meu medicamento contra a dor mui­tas vezes não funcionava bem, a cama pa­recia especialmente dura e desconfortável e eu tinha muita vontade de escapar do sofrimento. Foi nessas horas difíceis que essa auxiliar, uma mulher fisicamente pe­quena, amaciava meu travesseiro e falava comigo sobre como as coisas iam melho­rar. Eu lhe perguntei sobre seu trabalho, que parecia ser principalmente esvaziar [393] comadres, dar conta da bagunça e trocar roupas e cobertores sujos.

Tendo imigrado do Irã, ela tinha mui­to orgulho de seu trabalho, e me disse isso! Contou que seu trabalho era se certificar de que os pacientes em período pós-ope­ratório estivessem confortáveis durante a madrugada. Quando eu queria gritar por causa da dor, ela falava de minha família, que viria ao nascer do sol.

Fazendo coisas que os outros podem considerar degradantes, essa auxiliar ex­pressava prazer nas tarefas que faziam par­te de seu trabalho. Muitas vezes, lembro-me de lhe agradecer por sua ternura e, na próxima vez que eu acordava, sua profecia havia se cumprido, e ali estavam minha mulher, meus familiares e amigos, e eu me sentia melhor.

Essa auxiliar também tinha orgulho do que fazia. Muito orgulho. Ela se consi­derava como parte importante da equipe de saúde, e era. A cada noite, ela trazia flores recém-cortadas em um vasinho e colocava na mesa ao lado da minha cama. Eu lhe perguntava sobre as flores, e ela dizia que ia a um mercadinho próxi­mo quando vinha trabalhar, à noite. O mercadinho ia jogar fora essas flores cor­tadas que não usa­va, de forma que ela as trazia para o tra­balho para fazer pe­quenos arranjos pa­ra “seus” pacientes. Eu olhava essas flo­res nas primeiras ho­ras da manhã, e sua
beleza ficou maior quando eu soube da his­tória que as acompanhava.

A razão para eu contar a história des­sa auxiliar é mostrar como qualquer traba­lho, mesmo que pareça ter status inferior, pode ser uma fonte de dignidade e respei­to próprio. Qualquer tarefa, quando bem feita, pode dar prazer ao trabalhador e aos que ele atende. Eu nunca me esquecerei dessa auxiliar.

Como observa o pioneiro da psicolo­gia positiva Martin Seligman (2002), eles não se consideram como alguém que tem um emprego; em lugar disso, têm vocações. Deve-se dar crédito a Amy Wrzesniewski, da Universidade de Nova York, por sua pes­quisa inovadora sobre a noção de vocação (vide Wrzesniewski, McCauley, Rozin e Schwartz, 1997; Wrzesniewski, Rozin e Bennett, 2001). Mais uma vez, nas pala­vras de Seligman (2002),

As pessoas que têm uma vocação consi­deram que seu trabalho contribui para o bem maior, para algo maior do que elas, e assim a conotação religiosa é totalmen­te adequada. O trabalho é gratificante por si só, independentemente de dinheiro ou promoção. Quando o dinheiro termina e as promoções se esgotam, o trabalho con­tinua. Tradicionalmente, as vocações eram reservadas a trabalhos de prestígio ou refinados - padres, juizes de tribunais superiores, médicos e cientistas, mas hou­ve uma descoberta importante no cam­po: qualquer trabalho pode se tornar uma vocação, e qualquer vocação pode se tor­nar um trabalho (p. 168).

Uma nova contabilidade: um olhar para as pessoas em vez do dinheiro 

Dinheiro é importante, mas, eviden­temente, não tanto quanto sugere o este­reótipo comum. É isso que concluímos ao fazer uma revisão de literatura quando nos preparávamos para escrever este capítulo sobre trabalho. Se o dinheiro não é tão importante, então que dizer de nossa fon­te - nosso trabalho - para ganhá-lo? Nesse aspecto, ficamos impressionados com a força potencial do trabalho. Depois de nos­sos relacionamentos interpessoais, o tra­balho provavelmente é a fonte mais [394] importante para melhorar nossa vida. Pense nis­so em relação a sua própria vida.
A mensagem de psicologia positiva que surge deste capítulo é forte e coeren­te: faça do seu trabalho o melhor que ele pode ser. Ou busque um novo trabalho que tenha as características do emprego gratificante discutido no capítulo. Se tiver su­cesso no século XXI, a psicologia positiva terá ajudado empregadores e empregados a criar e a encontrar um trabalho que sus­tente as pessoas não apenas financeiramen­te, mas também psicologicamente. Sendo assim, junto com o atual sistema de cálcu­lo que destaca as baixas porcentagens de pessoas desempregadas, tratamos de ter porcentagens de pessoas gratificantemente empregadas. Essa última abordagem iria engajar produtivamente os talentos de mais trabalhadores e, ao mesmo tempo, elevar sua sensação de satisfação. Esses são obje­tivos relacionados ao trabalho que valem a pena para a psicologia positiva. [395]
 

Psicologia - Psicologia positiva
Personalidade - Psicopatologia, 
10/9/2020 3:19:30 PM | Por Shane J. Lopez
Conceituações equilibradas sobre saúde mental e comportamento

Na década de 1950, a psicologia tratou de todo o espectro do comportamento hu­mano e assim o fez, por meio de seu co­nhecimento acadêmico e de sua prática. Em 1955, Erich Fromm explorou a “sociedade sã”, definindo a saúde mental como “a ca­ pacidade de amar e criar” (Fromm, p. 69). No mesmo período, a psicóloga social Marie Jahoda (1958) caracterizou a saúde mental como sendo a condição positiva movida pelos recursos psicológicos e dese­jos que a pessoa tem de crescimento pes­soal. Ela descreveu as seis características, a seguir, para uma pessoa mentalmente saudável.

  1. Uma atitude pessoal em relação a si que inclua autoaceitação, autoestima e uma autopercepção verdadeira.
  2. A busca dos próprios potenciais.
  3. Pulsões direcionadas, integradas à per­sonalidade.
  4. Identidade e valores que contribuam a uma sensação de autonomia.
  5. Percepções de mundo verdadeiras, em lugar de distorcidas em função de ne­cessidades subjetivas.
  6.  Domínio do ambiente e alegria no amor, no trabalho e na atividade lúdica.

Além disso, Fromm e Jahoda escre­veram obras sobre suas visões de saúde positiva e bem-viver. Juntas, essas várias iniciativas para propor idéias com relação à saúde mental positiva aconteceram du­ rante a mesma época geral em que os psi­ quiatras escreveram um livrinho do ta­ manho de um livro de bolso, chamado Manual diagnóstico e estatístico (Diagnostic and statistical manual, DSM, American Psy­chiatric Association, 1952).

No início do século XXI, está claro que o foco no positivo ficou para trás em rela­ção à atenção que se presta ao negativo. Só recentemente o trabalho de Fromm e Jahoda foi redescoberto, contextualizado e incorporado às conceituações refinadas de saúde mental positiva. Ao mesmo tem­ po, o DSM cresceu enormemente nas últi­ mas décadas, a ponto de a versão mais re­ cente ser um livro impressionante e influen­ te, de 943 páginas, cobrindo os sintomas de saúde mental (American Psychiatric As­ sociation, 2000).

Por que os esforços para conceituar a saúde mental positiva e o funcionamento humano ideal ficaram para atrás em rela­ção ao trabalho em doença mental? Uma explicação é que a conquista da saúde men­ tal positiva é um processo passivo, ao pas­ so que a cura da doença mental é um pro­cesso ativo, que exige mais recursos. Ou­ tra explicação é que a manutenção da saú­de mental não demanda a mesma atenção cuidadosa (de teóricos e de profissionais) que o alívio do sofrimento. Nesse aspecto, fica fácil entender por que nossos sentimen­tos de compaixão são ativados na [293] presença de alguém com grandes vulnerabilidades (Frankl, 1959; Leitner, 2003).

Essa atenção ao sofrimento humano profundo tem cativado os filósofos orien­tais (vide o Capítulo 3) há milhares de anos e definiu o sentido da vida para alguns pensadores ocidentais pela maior parte do século XX. Portanto, a saúde mental posi­tiva das outras pessoas não evoca esses sen­timentos fortes em nós. Embora essas se­jam razões plausíveis para nosso foco in­tenso na doença mental e para as atenções limitadas associadas à saúde mental posi­tiva, uma explicação mais parcimoniosa é que somos fascinados por comportamen­tos anormais.

Neste capítulo, exploramos nossa apa­rente preocupação com o comportamento anormal e como isso contribuiu para um entendimento limitado do funcionamento positivo. Oferecemos recomendações para desenvolver conceituações mais equilibra­das de comportamentos que tratam de ca­racterísticas psicológicas positivas e nega­tivas da forma como são influenciadas por contextos relacionados ao ambiente, ao desenvolvimento e à cultura. Resumindo, acreditamos que as conceituações de com­portamentos precisam ser mais equilibra­das e tratamos dos obstáculos a esse equi­líbrio, apresentando recursos que podem ajudar no desenvolvimento de um pensa­mento clínico mais abrangente.

Avançando em direção à conceituações equilibradas

Todos os clínicos, incluindo nós dois, lutam para entender a complexidade do comportamento de nossos clientes. Os clí­nicos iniciantes nos relatam que o grande volume de informações que coletam em uma sessão de 50 minutos os sobrecarre­ga. Esse desafio é intensificado pelo fato de que essas informações clínicas geral­mente são compartilhadas em um inter­câmbio interpessoal carregado de emoção. Tanto os clínicos novatos quanto os expe­rientes desenvolvem estratégias para co­letar, organizar e interpretar os dados clí­nicos que coletam. Podemos nos concen­trar demais ou muito pouco em aspectos e determinantes específicos dos compor­tamentos de nossos clientes. Ao conceituar um caso, realizar um diagnóstico e desen­volver e implementar um plano de trata­mento, devemos chegar a um equilíbrio entre o tipo e a quantidade de informa­ções que coletamos e processamos. Espe­cificamente, enfatizamos a necessidade de abordar as seguintes questões que contri­buem para uma saúde mental abaixo da ideal:

  • O comportamento anormal parece cha­mar atenção do clínico com mais facili­dade, e aspectos do comportamento normal e do funcionamento saudável (ou seja, aquilo que está dando certo na vida da pessoa) podem não ser con­siderados importantes no processo de diagnóstico e tratamento.
  • As atribuições de razões para o com­portamento podem superestimar as ca­racterísticas internas de uma pessoa, enquanto as influências do ambiente so­bre o comportamento não são tratadas de forma adequada.
  • Os defeitos e as emoções negativas cos­tumam ser considerados mais importan­tes para o processo de diagnóstico e tra­tamento do que as qualidades e as emo­ções positivas.
  • O comportamento atual pode não ser considerado à luz do histórico e dos marcos do desenvolvimento. Especifi­camente, podemos não responder bem à pergunta: “O comportamento dessa pessoa é coerente com as expectativas de seu histórico de desenvolvimento e de sua idade?”.
  • Os comportamentos são interpretados sem que se preste atenção às informa­ções sobre os contextos culturais que [294]  poderiam influenciar se eles são con­siderados adaptativos ou mal-adaptatívos.

Ao resolver esses desafios, podemos produzir visões mais equilibradas das pes­soas e de como elas mudam. Apresenta­mos aqui nossas idéias sobre como melho­rar a conceituação do comportamento hu­mano, mas antes tentamos explicar a fas­cinação humana em relação aos compor­tamentos anormais.

Nossa fascinação em relação ao comportamento anormal

Estudantes de todos os cursos com­petem por vagas na disciplina de psicolo­gia anormal, que irá explicar por que seus colegas de quarto têm medo de sair do dormitório ou por que a tia Nita nunca toma banho! Como você, esses estudantes também se perguntam em silêncio: “Isso é normal, e como posso ter certeza?”. Por que essa pergunta da normalidade é feita com tanta frequência? E como pode ser respon­dida com algum grau de confiança?

Como profissionais da psicologia, te­ríamos ganhado muito dinheiro se tivésse­mos recebido um dólar cada vez que nos perguntaram: “Isso é normal?”. Essa per­gunta foi feita tantas vezes que tentamos entender a motivação por trás da interro­gação. Estas são nossas reflexões: uma pe­quena porcentagem de pessoas tem muito interesse em todos os comportamentos que se desviam da norma. Elas querem experi­mentar, entender e discutir esses compor­tamentos. Esse desejo natural de conhecer aparece sempre que tentamos entender um fenômeno, seja ele psicológico, seja ele de outra natureza. Mais do que isso, por ve­zes os comportamentos anormais nos dei­xam com dúvidas sobre o bem-estar de outra pessoa, ou mesmo sobre o nosso. Por exemplo, se passar por alguém que está gritando obscenidades a plenos pulmões, você pode ficar curioso sobre por que a pessoa está fazendo isso ou nervoso de entrar em contato com ela. Há uma dança de ambivalências em relação a essas inte­rações, todavia acreditamos que a fascina­ção subjacente pelo anormal seja parte de nossas tentativas saudáveis de entender nosso mundo e garantir o bem-estar de outras pessoas e de nós mesmos.

Para responder se “isso é normal” e examinar mais a fundo o comportamento anormal, devemos definir os critérios para a anormalidade. Imediatamente, contudo, temos um problema, porque não há uma definição amplamente aceita de anormal. Não obstante, três critérios costumam ser­vir como indicadores de comportamento anormal em um contexto social. Em pri­meiro lugar, o comportamento é atípico ou aberrante, o que significa que se desvia do que é considerado padrão ou esperado. Em segundo, o comportamento é considerado mal-adaptativo, ou seja, geralmente não leva a objetivos socialmente aceitos. Ter­ceiro, o comportamento costuma ser acom­panhado de desconforto psicológico - preocupação, ruminação e pensamentos e sentimentos desconfortáveis.

Dessa forma, em resposta à pergunta “Isso é normal?”, devem-se levar em conta a frequência, a função e os efeitos do com­portamento específico. Além disso, o con­texto do comportamento deve ser cuida­dosamente examinado. Consideremos, por exemplo, um homem adulto que esteja beijando o chão em um aeroporto. Certa­mente, esse comportamento é atípico, mas, se for um soldado voltando a seu país de origem após uma batalha em um país es­trangeiro, seu comportamento pode pare­cer perfeitamente razoável e normal. De fato, esse gesto pode ser adaptativo no sen­tido de que mostra amor pelo próprio país, bem como alívio ao chegar em casa. Dito de forma simples, a conclusão de normali­dade depende do contexto da ação da pes­soa. Consideremos outro exemplo: [295] estudantes universitários tiram a roupa e correm nus pelo campus. Na década de 1970, esse tipo de comportamento estava bastan­te na moda e à equipe de segurança da universidade muitas vezes se somava ou­tros observadores desse tipo de espetácu­lo. Três décadas depois: uma mulher nua passa correndo por você no caminho da aula de amanhã. E provável que a segu­rança a esteja perseguindo e os observa­dores rapidamente riam ou abanem a cabe­ça, não acreditando nesse comportamen­to. Nesse exemplo, o contexto temporal é crucial para determinar se o rótulo “anor­mal” seria aplicado.

Outro determinante para o rótulo de anormalidade é se há uma pessoa podero­sa e influente no contexto social que esteja disposta a criticar e banir uma determina­ da ação de outra pessoa. Nesse sentido, Becker (1963) apresentou o importante ar­gumento de que um comportamento não é necessariamente desviante porque viola uma regra, e sim, muitas vezes, é a reação de uma ou mais pessoas que acaba por de­terminar o rótulo. Ocasionalmente, tam­bém pode não haver qualquer violação de regra ou norma, mas o fato de uma pessoa influente na sociedade iniciar um proces­so de “exclusão” pode rotular de anormal qualquer pessoa. Sendo assim, devemos considerar o contexto situacional, o momento da ação e o aplicador potencial do rótulo de “anormal” (Snyder e Fromkin, 1980). Esses exemplos sugerem que a iden­tificação coerente do comportamento anor­mal pode se mostrar bastante difícil, mas, ainda assim, seguimos tentando categori­zar esses comportamentos.

Nossa preocupação com os compor­tamentos anormais pode cumprir funções positivas tais como promover o entendi­mento do mundo e ajudar a manter as pes­soas seguras. Entretanto, essa preocupação raramente leva a uma resposta clara à per­gunta: “Isso é normal?”. Com frequência, nossa resposta a essa pergunta é: “Depen­de”. De fato, como recém discutido, depen­de do contexto do comportamento. Depen­de também de outros fatores que são dis­cutidos nas próximas seções deste capítu­lo: gravidade do comportamento, fatores evolutivos que definem o repertório comportamental da pessoa e os contextos ambientais e culturais em que o comporta­mento está inserido. Deixar de levar em consideração as diversas qualidades do comportamento pode fazer com que ele pa­reça mais ameaçador do que precisa ser. Igualmente importante para o tema do pre­sente livro, nossa propensão a categorizar o comportamento como anormal pode con­tribuir para a atenção insuficiente que se presta a esses fatores de qualificação que podem levar à aplicação do rótulo no lado positivo do espectro. Acreditamos que o lado positivo da experiência humana tam­bém merece atenção considerável, pois es­sas qualidades e emoções positivas são os ingredientes básicos da saúde mental.

Negligência para com o ambiente positivo

O desejo de entender o comportamen­to leva muitas vezes a perguntar coisas co­mo: “Por que ele fez isso?” No entanto, em busca da resposta, infelizmente, muitas ve­zes deixamos de perguntar diretamente ao ator e, em vez disso, tentamos responder à pergunta a partir de nossa posição de ob­servadores. Quando fazemos isso, expomos nós mesmos a erros potenciais de pensa­mento que podem levar a uma consideração limitada de importantes influências do ambiente. Da mesma forma, as falhas de pensamento associadas ao erro de atribui­ção fundamental e ao viés de atribuição ne­gativa contribuem para nossa tendência a superpatologizar o comportamento e a vê-lo de maneira que não é abrangente nem valoriza as qualidades potenciais.

Ao tentar explicar o comportamento de outros em situações sociais, tendemos a ignorar os fatores situacionais ou os ambientais externos e atribuímos o [296] comportamento a características internas da pessoa (como personalidade ou capacida­des). Isso ocorre mesmo quando o clínico que está fazendo o diagnóstico sabe pouco sobre a pessoa e sobre como ela vê o am­biente. Essa tendência distorcida é chama­da de erro de atribuição fundamental (Nisbett, Caputo, Legant e Maracek, 1973). Por outra perpectiva, quando explicamos nosso próprio comportamento, somos mais abrangentes na conceituação, no sentido de que provavelmente levamos em conta as variáveis ambientais. Por exemplo, você já recebeu uma nota baixa na escola? En­quanto um observador externo pode con­cluir que você se saiu mal porque é burro, você saltaria para tirar conclusões mais baseadas na situação, como uma má expli­cação do conteúdo por parte do professor ou a formulação da prova com palavras difíceis e enganosas.

O viés negativo fundamental envol­ve a saliência (destaca-se versus não se des­taca), o valor (negativo versus positivo) e o contexto (vago versus bem-definido) de qualquer comportamento dado (Wright, 1988). Especificamente, ao se salientar, o comportamento é considerado negativo e ocorre em um contexto vago, o fator prin­cipal que orienta a percepção a seu respei­to é sua qualidade negativa. (Imagine que uma amiga lhe conta que seu namorado foi grosseiro com sua família, em uma visi­ta de fim de semana.) Com essa pequena quantidade de informações, você sabe que o comportamento é atípico - que se salien­ta - e negativo. Com pouca informação contextual, sua atenção é atraída pelo va­lor do comportamento, e você pode ficar pensando que o namorado de sua amiga é um sujeito hostil. (O mesmo se aplica a comportamentos que se destacam em um contexto esparso e é considerado positivo; a qualidade positiva irá definir e determi­nar as reações ao comportamento.)

Ao abordar esses vieses em nossas vi­sões de comportamento, podemos criar um entendimento da influência dos fatores ambientais de estresse sobre nosso funcio­namento. Com nossa maior atenção ao ambiente, podemos também ficar mais conscientes dos recursos ambientais que podem interagir com as qualidades e re­sultar em um funcionamento positivo.

Fazendo perguntas: a abordagem das quatro frentes

Há evoluções recentes muito promis­soras na classificação integral do funcio­namento humano. Em sua abordagem de quatro frentes (1991; Wright e Lopez, 2002) ao desenvolvimento de uma concei­tuação abrangente sobre os defeitos e as qualidades de uma pessoa, bem como à influência dos fatores de estresse e recur­sos ambientais, Beatrice Wright recomen­da que os observadores coletem informa­ ções sobre as quatro frentes de comporta­mento que seguem:

  1. Deficiências e características prejudi­ciais da pessoa.
  2. Qualidades e recursos da pessoa.
  3. Carências e fatores destrutivos no ambiente.
  4. Recursos e oportunidades no ambiente.

Podem-se usar métodos múltiplos e complexos para coletar essa informação, mas um trabalho conjunto com o ator (a pessoa que está sendo observada) pode revelar as respostas a estas quatro per­guntas:

  1. Com que deficiências a pessoa contri­bui para seus próprios problemas?
  2. Que qualidades ela traz para lidar efe­tivamente com sua vida?
  3. Quais fatores ambientais servem como impedimentos para um funcionamento saudável? e
  4. Que recursos ambientais acentuam o funcionamento humano positivo?

Essa abordagem equilibrada à concei­tuação, refinada pelos autores deste texto [297] (Lopez, Snyder e Rasmussen, 2003; Snyder e Elliott, 2005; Snyder, Ritschel, Rand e Berg, 2006), recomenda a busca de quali­dades pessoais, assim como recursos do ambiente.

O caso de Michael

No restante deste capítulo, um dos au­tores (S.J.L.) contar-lhe-á acerca de Michael, um cliente de 41 anos, de origem caucasiana, que ele atendeu na terapia du­rante quatro anos. Michael, que foi envia­do por um médico que o estava tratando por AIDS, informou ter depressão mode­rada. Essa depressão não apenas gerava tristeza, como também causava problemas para manter relacionamentos e cooperar com as pessoas que o cuidavam. Ele come­çou nosso longo relacionamento com a se­guinte declaração: “Preciso desesperadamente de ajuda com a minha vida”. Eu res­pondi: “De que tipo de ajuda você preci­sa?”. Cerca de 100 sessões mais tarde, a história de vida de Michael continuava intrigante e eu aprendia alguma coisa nova a seu respeito a cada encontro. Apresento, aqui e em três outros pontos deste capítu­lo, um pouco da vida dele.

Michael me disse que precisava de ajuda com “tudo”. Eu lhe pedi que fosse mais específico, e ele colocou as mãos no bolso das calças e tirou duas páginas de anotações feitas à mão sobre suas dificul­dades. Ele era muito descritivo em relação a cada preocupação e seus efeitos. Estava claro que achava que o mundo estava con­tra ele. Seu carro havia sido destruído, ele tinha efeitos colaterais graves em função da medicação, a calefação não estava fun­cionando em seu apartamento, e assim por diante. Embora sua depressão estivesse bastante complicada (devido ao seu histó­rico familiar, à sua doença e aos efeitos colaterais do tratamento), estava claro que aspectos de sua situação e, em algum ní­vel, a qualidade de seu ambiente, estavam exacerbando seus sintomas.

Próximo à metade de nossa primeira sessão, eu disse: “Esses problemas seriam avassaladores para qualquer pessoa. Como você os enfrenta?”. Ele me olhou como se não tivesse certeza de como responder. Então lhe perguntei como ele lidava com um problema específico de sua lista. Ele foi tão descritivo ao narrar sua história de enfrentamento quanto havia sido ao con­tar suas lutas. Bem no final da sessão, eu disse: “Na próxima vez, falaremos de suas qualidades”. Algo me dizia que ele traria uma lista de qualidades na próxima ses­são, e ele trouxe. Com páginas de anota­ções sobre as qualidades de Michael, suas lutas e seus fatores de estresse e recursos ambientais, comecei a entender a base de sua depressão, sua batalha contra a AIDS e a vitalidade que o mantinha em movi­mento em direção a um futuro positivo.

A falta de uma ênfase no desenvolvimento

Os psicólogos do desenvolvimento se concentram nas origens e nas funções do comportamento (vide o Capítulo 6, para mais discussão sobre desenvolvimento hu­mano). Seus esforços específicos esclare­cem processos normais de desenvolvimen­to, como as operações cognitivas (Piaget, 1932), o julgamento moral (Gilligan, 1982; Kohlberg, 1983) e a personalidade (Allport, 1960; Mischel, 1979). A maioria daquilo que sabemos sobre as origens do compor­tamento do dia-a-dia se deve às descober­tas dos psicólogos do desenvolvimento (e evolutivos). Além disso, nos últimos 25 anos, os estudiosos da psicopatologia do desenvolvimento (como Sameroff, Lewis e Miller, 2000; Wenar e Kerig, 1999) come­çaram a revelar o mistério de por que al­gumas pessoas desenvolvem alguns trans­tornos e outras, não.

Embora as pesquisas sobre o desen­volvimento tenham respondido a muitas perguntas relacionadas a aprendizagem e [298] crescimento com o passar do tempo, alguns aspectos do desenvolvimento permanecem inexplicados e demandam mais estudos. Por exemplo, sabemos muito pouco sobre como as pessoas amadurecem em ambien­tes muitos específicos (por exemplo, uma moradia estudantil) ou como crescem durante períodos de suas vidas (por exem­plo, um semestre ou quatro anos de vida universitária). Nesse aspecto, uma teoria sobre o desenvolvimento adolescente/adul­to durante a faculdade (desenvolvida por Chickering, 1969) contextualiza os com­portamentos normais e anormais no ambiente único de um campus universitário.

Embora as pessoas leigas possam se fascinar com questões como “o que acon­tece quando ocorrem coisas ruins a pesso­ as boas”, as teorias do desenvolvimento muitas vezes não conseguem tratar desse tipo de questão básica. Essas coisas ruins, ou “ofensas”, como as descrevem, às ve­zes, os profissionais do campo, podem in­cluir fatores de estresse traumático, como abuso, ou eventos aparentemente menos importantes, como ser reprovado em uma prova ou romper um relacionamento. Vale a pena destacar aqui a abordagem de orien­tação ao desenvolvimento e terapia de Allen Ivey e Mary Bradford Ivey (1998, 1999), que procura entender os eventos da vida que poderiam mudar positiva ou negativamente os processos básicos de desenvolvi­mento.

Normalizando o comportamento negativo e positivo

Na teoria sobre desenvolvimento de estudantes universitários, de Chickering (1969; Chickering e Reisser, 1993), o foco está em um período de tempo limitado (anos de faculdade, para alunos tradicio­nais e não-tradicionais) e em um ambien­te específico (o ambiente acadêmico e so­cial da universidade). Para além da sobre­vivência, Chickering propôs que o objetivo humano básico envolve o estabelecimento de uma identidade, o refinamento de uma forma única de ser (chamada de individuação). Dentro do modelo de Chickering, os estudantes avançam para esses objeti­vos por meio de sete vias, ou vetores; mais do que isso, o autor afirma que o movi­mento em múltiplas vias simultâneas é muito provável. O desenvolvimento da competência (avançar da competência de baixo nível em domínios intelectuais, físi­cos e interpessoais para alta competência em cada área) é identificado como o prin­cipal motor do desenvolvimento para os jovens. (A aquisição de competência e o desenvolvimento de qualidades humanas são intercambiáveis e servem como alicer­ces para o futuro crescimento.) Com mais confiança em suas capacidades, os estudan­tes podem ir em busca dos outros seis ob­jetivos comportamentais de Chickering, que são:

  1. Administrar as emoções, ou passar de pouca consciência dos sentimentos e controle limitado das emoções desagregadoras a um entendimento maior dos sentimentos e um controle flexível e emoção construtiva.
  2. Passar pela autonomia em direção à independência, ou da falta de orienta­ção própria e de dependência emocio­nal à dependência instrumental e à ne­cessidade limitada de segurança.
  3. Desenvolver relacionamentos inter­pessoais maduros, ou passar da into­lerância das diferenças e de poucos re­lacionamentos a uma apreciação e a re­lacionamentos saudáveis.
  4. Estabelecer identidade, ou passar da confusão pessoal e da baixa autoconfian­ça a um autoconceito esclarecido por meio de estilo de vida e autoaceitação.
  5. Desenvolver propósito, ou fazer a transição de objetivos vocacionais va­gos e interesses difusos a objetivos cla­ros e atividades mais públicas.
  6. Desenvolver integridade, ou passar de crenças e valores vagos para valores cla­ros e humanizadores. [299]

Os vetores de desenvolvimento de Chickering (1969) descrevem os caminhos e os objetivos associados ao crescimento que ocorrem durante um período específi­co em um ambiente bastante determina­do. O entendimento do funcionamento ide­al nesse período pode revelar habilidades generalizáveis que podem ser usadas em outros períodos e cenários. Recomendamos uma pergunta básica a ser feita a colegas estudantes universitários com vistas a des­cobrir quais recursos eles têm para o futu­ro: “O que o tornou pronto para a univer­sidade?”. Consideremos as questões investigativas de Chickering e Reisser (1993) para determinar em que ponto você está em seu caminho de desenvolvimento:

Descreva em poucas palavras a mudança que ocorreu com você que teve um gran­de impacto na forma como você vivia sua vida. Qual é a forma “antiga” de pensar e de ser em comparação com a “nova”? De onde você avançou, e para onde? Como você sabe que ocorreu uma mudança im­portante? Quais foram as coisas (ou as pessoas) importantes que ajudaram no processo? O que a pessoa fez? Qual foi a experiência que catalisou essa mudança? Houve algum sentimento que acompa­nhou o processo ou ajudou nele? (p. 45)

Quadro 14.1


Ao refletir sobre as circunstâncias po­sitivas e negativas das experiências e dos ambientes de cada pessoa, que possam ter contribuído a sua atual adaptatividade e disfuncionalidade, o trabalho de Ivey e Ivey (1998, 1999) pode ser bem interessante. Nesse sentido, a orientação e a terapia do desenvolvimento dos Ivey oferecem conceituação, referente ao momento pre­sente, de quais comportamentos patológi­cos são considerados como respostas ao evento da vida. (Aspectos do foco no de­senvolvimento e um sistema de diagnósti­co tradicional estão justapostos no Quadro  14.1.) Além disso, Ivey e Ivey postularam que há muitas categorias para a compreen­são acerca do comportamento e da expe­riência humanos, e conclamam os clínicos a chegar a entendimentos mais precisos ao considerar cada pessoa como um todo.

Ao definir sua abordagem, os Ivey (1999) declaram que “o self contextual in­clui as dimensões relacionais do histórico de desenvolvimento pessoal e familiar, as questões comunitárias e multiculturais e a fisiologia” (p. 486). Sendo assim, para en­tender o indivíduo, é necessário obter in­formações a seu respeito em diversas di­mensões contextuais. A conceituação do comportamento de uma pessoa dentro des­se sistema envolve a construção de uma estrutura de informações gerais. Por exem­plo, ao trabalhar com alguém que passou por traumas na infância, os Ivey coletariam informações sobre ofensas ambientais ou biológicas (Masterson, 1981). Os Ivey, a seguir, recomendam examinar as conexões entre essa ofensa e outros estresses e sofri­mentos, junto com a forma como as expe­riências subjetivas de estresse e sofrimen­to se relacionam com a tristeza e a depres­são. Esse tipo de exame enfatiza as origens e a gravidade do sofrimento de uma pes­soa. A seguir, nesta abordagem, são exa­minadas as estratégias que podem ser usa­das para combater um humor negativo. Do ponto de vista dos Ivey, a forma como um estilo de personalidade ajuda a pessoa a se mover em relacionamentos interpessoais atuais está ligada, em última análise, ao bem-estar psicológico da pessoa.

O caso de Michael

As qualidades de Michael de “ser amoroso” em relacionamentos e “perseverar” diante da doença e de uma avalan­che de obstáculos no dia-a-dia foram fun­damentais durante todo o tratamento. Essas qualidades tendem a ser produtos da adversidade que ele vivenciou duran­te sua infância e sua adolescência ou, no mínimo, foram galvanizadas durante essa época.

Sobre a qualidade de “ser amoroso”, Michael afirmou: “Acho que nasci com ela”. Ele se agarrava a essa postura amorosa como se fosse um patrimônio de grande valor, mesmo que, de sua perspectiva, não houvesse reciprocidade a esse amor por parte de algumas das pessoas mais impor­tantes em sua vida (sua madrasta, seu ir­mão e a primeira pessoa por quem ele se apaixonou). No decorrer da terapia, Michael descobriu que poderia ser amoroso com pessoas que não correspondiam a sua afei­ção e, ainda assim, encontrar alguma sa­tisfação na vida. Foram necessários 41 anos para que ele entendesse que essa qualida­de não era atrapalhada pelo comportamen­to de outros.

Sua perseverança assumia muitas for­mas, mas eu tendia a descrevê-la como coragem vital. Diante de ameaças a seu bem-estar psicológico e sua doença grave, Michael se deu conta. Lembro-me de lhe perguntar quando ele havia descoberto sua coragem vital. A pergunta visivelmente trouxe à tona uma memória tocante. Com o passar dos anos, ele me contou a história dos esforços repetidos de sua madrasta para “[o] desumanizar e fazer que [se] sen­tisse como se nunca fosse [ser] alguma coi­ sa na vida”. Os muitos insultos que Michael vivenciou o tornaram mais determinado a produzir bem-viver para si próprio. Quan­do ele foi diagnosticado com AIDS, lem­brou-se de seu compromisso consigo mesmo. Com isso em mente e um histórico de uso de suas qualidades, ele prometeu a si próprio e a todos os que lhe davam atendi­mento: “Vou vencer essa coisa”.

Dificuldades de entender o comportamento em um contexto cultural

O relatório do surgeon general, Men­tal health: culture, race, ethnicity [301] (U.S. Department of Health and Human Services, 2001), sublinha a importância de reconhe­cer que há síndromes determinadas pela cultura, que a cultura influencia as estra­tégias de enfrentamento e os apoios, e que os indivíduos têm identidades culturais múltiplas. De fato, “a cultura é importan­te”, pois cumpre um papel crucial na de­ terminação dos pensamentos e ações de uma pessoa (vide o Capítulo 5, para uma discussão ampliada do desenvolvimento de qualidades e de bem-viver em um contex­to cultural). Os clínicos que realizam diag­nósticos devem prestar muita atenção ao contexto cultural ao formar impressões de uma pessoa. Essa visão, que endossamos muito, vai contra o pressuposto da uni­versalidade, que diz que o que se consi­dera verdadeiro para um grupo deve ser considerado verdadeiro para outros, inde­pendentemente das diferenças culturais.

Apesar da orientação do surgeon ge­neral para contextualizar todos os compor­tamentos, junto com o clamor dos psicólo­gos multiculturais para que levem em con­sideração os fatores culturais associados ao funcionamento humano, psicólogos e lei­gos podem sustentar o pressuposto da uni­versalidade. Com relação a isso, os psicó­logos do Teacher’s College, da Universida­de Columbia, Madonna Constantine e Deraid Wing Sue afirmam que as noções de desesperança e sofrimento podem não ser universais. Constantine e Sue (2006) escreveram,

[Alguns] budistas (muitos dos quais po­dem ter uma origem cultural asiática), por exemplo, tendem a acreditar que a de­ sesperança é a natureza do mundo e que a vida se caracteriza pelo sofrimento. Além disso, o sofrimento dos dias de hoje é considerado como a retribuição por [302]  transgressões de vidas passadas. Sendo assim, a forma de superar a desesperan­ça e o sofrimento do mundo é por meio da meditação, que levará ao estado final do nirvana, ou a um plano mais elevado de existência (Obeysekere, 1995). Pode-se supor que não é nem o otimismo nem o “otimismo realista” (Schneider, 2001) que resultam em satisfação na vida para os budistas. Em lugar disso, as percepções ocidentais de afeto depressivo nos budis­tas, na verdade, podem ser a “psicologia da norma” para indivíduos que aderem à filosofia budista, e um estado ideal de bem-estar seria equivalente a um estado mais elevado de existência (p. 229).

Os dados empíricos do psicólogo da Universidade de Michigan Edward Chang (1996a; 1996b; Chang, Maydeu-Olivares e D’Zurilla, 1997) questionam diretamen­te o pressuposto da universalidade e de­monstram que agir com base nessa falsa crença pode ter conseqüências bastante negativas. (Vide os capítulos 5 e 9, para uma discussão sobre as pesquisas do Dr. Chang.) Suas pesquisas demonstram que o otimismo, o pessimismo, a solução de problemas e, possivelmente, os sintomas físicos e psicológicos são conceituados de forma distinta e se comportam de manei­ras diferenciadas entre culturas distintas. Dadas essas descobertas, as intervenções que beneficiam um grupo podem ser be­nignas ou danosas a outro.

Determinando como "a cultura é importante"

A consciência das nuanças culturais ajuda a entender a forma como as pessoas de várias origens geram bem-estar psico­lógico. Além disso, talvez o exame de como experiências adversas podem promover um funcionamento psicológico adaptativo em todas as pessoas ofereça pistas vitais sobre como se desenvolve o bom funcionamento humano.

Os valores cul­turais proporcionam o contexto no qual comportamentos, pensamentos e sen­timentos são consi­derados normais ou anormais (Banerjee e Banerjee, 1995; Constantine, Myers, Kindaichi e Moore, 2004); esses valores e sua influência na produção de sentido em relação às experiências contribuem para o funcionamento humano ideal (Sue e Constantine, 2003). Por exemplo, as de­monstrações explícitas de fé religiosa são consideradas normais em muitas culturas. Nas paróquias predominantemente católi­cas do Sul do estado norte-americano da Louisiana, onde vive um enclave étnico de cajuns, as pessoas colocam crucifixos em todas as portas para afastar o mal. Na cul­tura cajun, essa prática é considerada co­mum e uma postura normal para se colo­car a própria fé a serviço de proteger a fe­licidade pessoal e garantir o bem-estar.

Tratando especificamente do funcio­namento de pessoas de cor nos Estados Unidos, Constantine e Sue (2006) identifi­caram duas grandes classes de variáveis (vide o Quadro 14.2), discutidas na litera­tura anteriormente (por exemplo, Helms e Cook, 1999; Sue e Sue, 2003), que interagem em ambientes complexos e contri­ buem para o bem-estar psicológico e so­cial de pessoas de cor. Constantine e Sue afirmaram que essas dimensões devem ser incluídas nas conceituações psicológicas pertinentes a pessoas de cor.

Quadro 14.2

O caso de Michael

“Estou buscando apoio fora de minha família e longe de meus médicos.” Foi as­sim que Michael começou uma de nossas [303] sessões no terceiro ano de trabalho. Na­ quele momento, já havíamos desenvolvi­do uma espécie de código em nossas ses­sões. Michael escorregava suas anotações feitas à mão para mim assim que a sessão começava. Ele sempre as tinha, e eu sem­pre as lia ao iniciarmos nossos encontros.

“O que você já tentou?”, perguntei, e Michael listou suas muitas tentativas de construir sua rede social. “Acho que já ten­tei tudo, menos ir à igreja!”, ele disse, com alguma rispidez. Michael e eu havíam os discutido suas crenças religiosas e sua espi­ritualidade profundamente com os anos. Sua espiritualidade era uma fonte de for­ça, mas sua religião e, mais precisamente, sua religião de infância eram uma fonte de muito sofrimento, já que ele se sentiu excluído após se assumir como homosse­xual na adolescência. “Por que você men­cionou a igreja?”, perguntei.
Soube que o novo responsável pelo caso de Michael havia insistido muito em relação ao apoio social de companheiros de paróquia. Em resposta, Michael ficou justificadamente com raiva em relação a essa recomendação “de tamanho único”. Após falar sobre sua frustração com relação a essa pessoa, ele retomou a seus planos de en­contrar mais conexão social. Em seguida, a discussão se concentrou na cultura gay de sua cidadezinha. Assim como qualquer cul­tura, a “comunidade gay” de sua cidade, como Michael a chamava, tinha normas de comportamento, e as pessoas tinham expec­tativas em relação a como homens solteiros pediam apoio. Nossas próximas duas ses­sões foram dedicadas a revisar os esforços de Michael para criar uma rede social mais saudável em sua comunidade.

Os limites do sistema de diagnóstico categorico

Uma vez que se tenham coletado da­dos de forma equilibrada, os clínicos de­vem se voltar à tarefa de realizar um diag­nóstico que descreva o comportamento do cliente. Na prática de saúde mental de hoje em dia, os clínicos resumem esses dados valiosos na forma de um diagnóstico cate­górico. Nesta seção, examinamos as limi­tações de um sistema de diagnóstico cate­górico e recomendamos que as dimensões sejam usadas para descrever de forma mais abragente nossos semelhantes.

Temos agrupado comportamentos nas categoriais de “anormal” e “normal” desde [304] que as pessoas adquiriram capacidades lin­güísticas, mas isso não necessariamente sig­nifica que estejamos fazendo uma distin­ção confiável e precisa entre as duas. Por exemplo, análise fatorial de dados feita re­centemente com dados de indivíduos que foram diagnosticados com transtornos de personalidade e uma amostra de indivíduos com personalidade “normal” revelou que as personalidades refletidas nos dois gru­pos eram mais semelhantes do que dife­rentes (vide Maddux e Mundell, 1999, para uma revisão). Igualmente, Oatiey e Jenkins (1992) revelaram que experiências emo­cionais “normais” e “anormais” não eram classificadas de forma distinta. Especifica­mente, o desconforto associado a estresses do cotidiano é difícil de distinguir dos cri­térios de transtornos emocionais.

Com relação ao desafio real de se fa­zerem diagnósticos categorizando os com­portamentos dos clientes, há evidências de uma falta de constância e precisão entre profissionais da psicologia. Nesse sentido, McDermott (1980) concluiu que, quando 72 estudantes de pós-graduação em psico­logia e psicólogos (24 novatos, 24 estagiá­rios, 24 especialistas) depararam-se com os mesmos estudos de caso, a concordân­cia dos diagnósticos não foi melhor do que o que seria predito pelo acaso. Um total de 370 diagnósticos foi realizado, e não hou­ve padrão específico de concordância den­tro dos grupos participantes ou entre eles.

Barone, Maddux e Snyder (1997) re­conheceram as dificuldades de categorizar o funcionamento humano. Esses estudio­sos ainda observam que, apesar do fato de que todas as pessoas passam por proble­mas, essas dificuldades pessoais são mais bem representadas como algo que ocorre em um contínuo que inclui nenhuma, le­ves, moderadas, até graus extremos. A ine­vitável variabilidade dos problemas dos clientes não pode ser explicada facilmen­te, contudo, usando-se categorias distintas. Sobre esse aspecto, é impossível criar uma verdadeira dicotomia entre funcionamento normal e anormal, dado que quase to­das as orientações teóricas da psicologia reconhecem que é o grau de comportamen­to disfuncional que define em muito a dis­tinção entre normal e anormal. Mesmo Freud, que costuma ser criticado por patologizar os comportamentos, deixou claro que as conceituações dependem do grau em que um conflito ou desejo inconsciente interfira no funcionamento normal, e não com a simples presença ou ausência desse conflito ou desejo.

Também pode haver problemas so­cialmente importantes associados ao siste­ma categórico do Manual diagnóstico e es­tatístico (DSM) (1994, 2000), da American Psychiatric Association. Ou seja, como pro­fissionais de saúde mental, podemos nos preocupar com forçar as pessoas a se en­caixar em categorias negativas e, assim, fazer pouco ou nenhum esforço para en­tender a pessoa de maneira mais abran­gente. Para complexificar mais o proble­ma, os rótulos atribuídos às categorias ne­gativas servem depois como uma cunha social entre as pessoas que os recebem e as que não os recebem. Os rótulos negativos podem gerar expectativas estereotipadas que podem influenciar a forma como os profissionais conceituam outros indivíduos e interagem com eles, e também podem influenciar a forma como esses indivíduos pensam sobre si mesmos.

Uma vez que se aplique o rótulo do grupo diagnosticado, a percepção de dife­renças intragrupo tende a ser reduzida, ao passo que a percepção de diferenças entre grupos aumenta (Wright, 1991). Você se lembra da história dos Sneetches, de Dr. Seuss (1961)? No início da história, os jovens leitores provavelmente consideravam os Sneetches (os de “barriga estrelada” e os de “barriga lisa”) como um grupo, como sendo quase idênticos uns aos outros, como era sugerido no verso da canção, de Dr. Seuss:

“Barriga de estrela tinham os ‘Barriga-estrelada.’
Os ‘Barriga-lisa’ não tinham nada. [305] Cada estrela nem era; era bem pequeni­ninha.
Era de se pensar que importância isso ti­nha.” (p. 3)

Em pouco tempo, a história revela que a pequena característica, a estrela, era bas­tante importante na sociedade dos Sneetches. Os “Barriga-estrelada” se consideravam muito semelhantes entre si, mas muitos diferentes, e superiores, em relação aos Sneetches “Barriga-lisa”. Os leitores de pouca idade também ficavam intrigados em seguida com a diferença sutil entre grupos, geralmente tornando a estrela uma característica mais saliente dos Sneetches e apontando que o grupo (qualquer um que tivesse a estrela em um dado momento) parecia ser mais feliz do que o outro. Mui­tas vezes, os clínicos e os leigos se compor­tam como o público-alvo de Dr. Seuss. Exa­geramos o significado de um rótulo, acen­tuamos as semelhanças entre os membros do grupo que o possuem e superestimamos as diferenças entre os membros do grupo rotulado e outro grupo de pessoas.

Como os rótulos resultantes de diag­nósticos geralmente são negativos, os clí­nicos podem ignorar as características ideográficas e potencialmente positivas das pessoas. Wright (1991; Wright e Lopez, 2002) afirma que as informações coeren­tes com o rótulo-diagnóstico serão lembra­das com mais facilidade do que as que não o forem. Dessa forma, ao se aplicar um rótulo negativo, os profissionais prestam atenção e buscam informações sobre déficits individuais, em lugar de qualida­des, reduzindo assim a precisão e a ampli­tude ao conceituar a formação psicológica completa de uma pessoa.

Considerando novas dimensões de personalidade

Dadas as limitações gerais de um sis­tema categórico e a negligência em relação a comportamentos positivos nos atuais sis­temas desse tipo, as conceituações alter­nativas podem ajudar a avançar nosso co­nhecimento dos fenômenos psicológicos. Nesse sentido, a abordagem dimensional situa o comportamento humano em um contínuo, possibilitando o exame das dife­renças individuais em comportamentos positivos e negativos. É importante escla­recer que ver o comportamento psicológi­co não implica justapor “bem” e “mal” no mesmo contínuo. Esse uso dos sistemas dimensionais só pode levar de volta à categorização de comportamentos. Uma visão diz que é mais informativo conside­rar o grau em que os comportamentos são adaptativos ou mal-adaptativos. Outros usos do sistema de dimensões são exami­nar comportamentos negativos e positivos em dimensões separadas. De fato, essa abordagem é sustentada por pesquisas re­lacionadas. Os escores de medidas de comportamentos positivos (como satisfação na vida) e escores em medidas de comporta­mentos negativos (como depressão) têm correlação negativa e modesta, de cerca de -0,40 ou -0,50 (vide Frisch, Cornell, Villa­ nueva e Retzlaff, 1992). Igualmente, um relatório do surgeon general dos Estados Unidos (U.S. Department of Health and Human Services, 1998) indicou que saúde mental e doença mental não são extremos opostos no mesmo contínuo.

Em seu livro de 1995, New personality self-portrait, Oldham e Morris (1995) des­crevem uma abordagem dimensional à conceituação dos transtornos de persona­lidade que são muitas vezes considerados como as formas mais intratáveis de trans­tornos mentais. Eles afirmam que cada um dos 14 transtornos de personalidade lista­dos no DSM-IV (APA; 1994) podem ser si­tuados em seu próprio contínuo de adap­tação. Em um extremo desse contínuo, es­tão as apresentações menos agudas e mais adaptativas desses tipos ou estilos de per­sonalidade; no outro, encontramos as ma­nifestações reais, menos adaptativas, dos transtornos de personalidade (como limí­trofe, paranoide, histriônico). Oldham e [306]  Morris postulam que, em qualquer momen­to, um indivíduo pode se movimentar ao longo desse contínuo, dependendo dos fa­tores de estresse ambientais ou endógenos em sua vida. Nessa conceituação, uma pes­soa pode apresentar comportamentos disfuncionais que sejam mais indicativos do transtorno real em momentos de estresse elevado, ao passo que uma apresentação clínica pode se caracterizar por uma sinto­matologia mais adaptativa em momentos de menos estresse. Dessa forma, uma pes­soa pode cumprir os critérios para o trans­torno de personalidade histriônica durante períodos de estresse extremo, mas ser des­crita simplesmente como “dramática” em momentos de baixo estresse em sua vida.

Em outro exemplo, alguém com trans­torno de personalidade obsessivo-compulsiva em situações de estresse pode ser des­crito como “consciencioso” no extremo in­ferior do contínuo (vide a Figura 14.2). Na verdade, essas características podem ser muito úteis para a pessoa que vive no extre­mo adaptativo do contínuo. A pessoa que é conscienciosa, na descrição de Oldham e Morris, pode descobrir que possuir essa qualidade lhe permite ser responsável e confiável. Uma pessoa com características de transtorno de personalidade narcisista pode descobrir que alguns aspectos desse comportamento lhe permitem ser autoconfiante e, assim, capaz de funcionar em um nível mais elevado. Uma questão impor­tante a ser lembrada é que apenas quando essas características se tornam extremas é que elas deixam de ser benéficas à pessoa.

Figura 14.2

Esse contínuo de personalidade pode ser usado para estabelecer diferenças en­tre indivíduos que possuem sintomatologias menos ou mais intensas em sua vida cotidiana. Com a atual conceituação do [307] DSM-IV contudo, para ser diagnosticado como “tendo” o transtorno, deve-se pos­suir a maioria dos critérios delineados. Um indivíduo que possua um a menos do que o número especificado de critérios pode estar vivenciando um nível bastante alto de estresse, mas ainda assim pode não re­ceber cuidados porque não cumpriu o nú­mero necessário. A conceituação de Oldham e Morris (1995) deixa espaço para que os indivíduos sejam diagnosticados segundo o grau de disfunção, bem como o grau de uso positivos dos recursos. Além disso, ela pode proporcionar uma terminologia mais favorável ao cliente para discutir os diag­nósticos de transtornos de personalidade durante as sessões, bem como possibilitar que os clínicos os ajudem a identificar qua­lidades e defeitos em seu conjunto de com­portamentos.

O caso de Michael

Durante os quatro anos de trabalho, Michael me ensinou muito sobre o sentido e a falta de sentido dos rótulos. Tecnica­mente, ele poderia ser descrito “homosse­xual masculino pauperizado, sofrendo de AIDS e depressão”, mas isso não contava a história da existência de Michael. Na ver­dade, suas qualidades o definiam muito mais do que seus defeitos. Além disso, como ele mesmo disse, os termos dos di­agnósticos não o ajudaram a fazer mudan­ças positivas em sua vida cotidiana. “Eu não sou pobre. Outras pessoas não podem me classificar como pobre”, Michael me disse quando o responsável por seu caso reco­mendou que ele alegasse empobrecimen­to e solicitasse ajuda para pagar as contas. Michael certamente não tinha uma renda muito alta - cerca de 9 mil dólares por ano -, todavia achava que tinha direito de de­finir suas próprias circunstâncias. Em rela­ção à sua identidade como homossexual masculino, ele costumava se perguntar em voz alta por que sua sexualidade recebia mais atenção do que a de seus companhei­ros heterossexuais. Não obstante, reconhe­ceu que a “cultura gay” tinha afetado a for­ma como ele se via.

Com relação aos termos sofrimento, AIDS e depressão, em um momento ou ou­tro, ele proclamou: “O diagnóstico não se encaixa”. “O sofrimento é subjetivo”, ele me lembrava, e “e eu me sinto sofrendo há muito tempo”. Sobre a AIDS, seus exames médicos trimestrais costumavam nos dei­xar pensando: “Será que a AIDS pode en­trar em remissão?”. Muitas de nossas dis­cussões sobre os diagnósticos tratavam da classificação de depressão (registros de te­rapias anteriores, antes de contrair o HIV indicavam que Michael tinha um histórico de profunda depressão, com episódios re­correntes) . “Mas estou enfrentando minha depressão muito melhor; isso não significa nada no diagnóstico desses exames?” Essa foi uma de suas muitas perguntas que não consegui responder bem.

De vez em quando, ligo para Michael para fazer “sessões de reforço”. A cada vez, fico impressionado com o quanto ele está enfrentando bem desafios que poderiam to­mar conta de outras pessoas. Geralmente, falamos sobre como ele está usando suas qualidades e construindo uma rede mais forte de amigos.

Meu trabalho com Michael, que foi realizado em um momento inicial de mi­nha carreira, ensinou-me sobre a necessi­dade de ir além dos relatos dos clientes em relação aos sintomas e testar os limites da estrutura de diagnóstico existente. Um dia, o bom tratamento da saúde mental irá demandar que levemos em consideração os recursos dos clientes e que contextualizemos seus comportamentos quando emitir­mos diagnósticos e aplicarmos planos de tratamento.

Indo além da estrutura do DSM-IV

Tradicionalmente, as conceituações de comportamento se têm concentrado na [308] sintomatologia e na disfunção, ou seja, nas coisas que não estão “funcionando” na vida de uma pessoa. Esse foco nos aspectos ne­gativos ocorreu à custa da identificação de qualidades, e não ajudou as pessoas em sua busca do bom funcionamento. Essa visão limitada de psicologia solapa o objetivo maior de qualquer sistema de diagnóstico: entender as necessidades e os recursos da pessoa para facilitar a implementação de in­tervenções terapêuticas úteis. Nessa linha, Maddux (2002) aponta que a utilidade de um sistema de classificação está intima­mente ligada à sua capacidade de levar seus defensores a desenvolver e a escolher trata­mentos eficazes. Esse aspecto dos DSM foi questionado repetidas vezes (vide Raskin e Lewandowski, 2000; Rigazio-DiGilio, 2000). Além disso, o sistema do DSM não explica conexões entre ambiente, cultura, comportamento, pensamentos, emoções, apoios externos e funcionamento. Sendo assim, só consegue “sugerir de forma um tanto vaga o que deve ser mudado, mas não consegue proporcionar diretrizes so­bre como facilitar a mudança” (Maddux, 2002, p. 20).

Para ir além da estrutura do DSM, é necessário que os clínicos implementem as diversas estratégias descritas neste capítu­lo (por exemplo, usar a abordagem de qua­tro frentes, inserir dados de desenvolvimen­to em conceituações, levar em conta os efei­tos da cultura sobre a saúde mental e dimensionar o comportamento antes de categorizá-lo). Com o tempo, a prática do diagnóstico pode evoluir para um proces­so que incorpore dados mais significativos em um sistema consistente de descrição de comportamento e saúde mental. Até lá, os clínicos podem dar pequenos passos para explicar os aspectos positivos e negativos do funcionamento de uma pessoa. Por exemplo, Ivey e Ivey (1998) sugerem que um dos primeiros passos no sentido de transcender a patologia é mudar a lingua­gem que usamos para descrever o funcio­namento dos clientes. Isso inclui descobrir o que está funcionando na vida da pessoa e encontrar formas de capitalizar as quali­dades pessoais. A simples interrogação acerca das qualidades pode ter um efeito profundo sobre o cliente, como sugerido por Snyder e colaboradores (2003):

Ao perguntar sobre as qualidades, quem faz o diagnóstico está estimulando várias reações positivas no cliente. Em primeiro lugar, o cliente consegue ver que o profis­sional está tentando considerar a pessoa como um todo. Em segundo, mostra-se ao cliente que ele não está sendo iguala­do ao problema. Em terceiro, o cliente não é reforçado por “ter um problema”, e sim estimulado a olhar para seus recursos. Quarto, o cliente pode se lembrar e res­gatar um pouco do valor pessoal que pode ter sido esgotado antes de buscar um pro­fissional de saúde mental. Quinto, uma consideração das qualidades do cliente pode facilitar uma aliança de confiança e reciprocidade com os profissionais. O cliente, por sua vez, está se abrindo e for­necendo informações que podem poten­cializar ao máximo um diagnóstico pro­dutivo. Ao interrogar sobre as qualidades, uma avaliação positiva é, portanto, a um só tempo, curativa e “leve” em seu foco (p. 38).

Determinar “o que não está funcio­nando” e “o que está funcionando” para uma pessoa faz jus a suas experiências de vida e orienta os clínicos rumo a aborda­gens de tratamento que façam sentido. E, com o atual desenvolvi­mento das pesquisas e da prática em psi­cologia positiva, os clínicos serão capazes de relacionar conceituações equilibradas com aplicações que ajudarão os clientes a obter saúde mental ideal.

Prestando atenção a todo comportamento

Os profissionais que praticam a psi­cologia passam a conhecer as pessoas em níveis profundos e significativos. A nós são [309] confiadas histórias que começam com “eu gostaria que...” e as que começam com “fico feliz de ter feito isso ...”, sobre arrependi­mentos ocultos e sonhos secretos. Ouvimos falar de oportunidades perdidas e planos para os “próximos projetos”. Vemos e sen­timos profundos sofrimentos, e somos levados por exuberâncias incontidas. Desco­brimos não apenas que o comportamento anormal é fascinante, mas que todo com­portamento é intrigante.

Contextualizando o que você vê, consi­derar as influências dos processos de desen­volvimento, as condições ambientais e as nuanças culturais ajuda a criar um quadro mais equilibrado e preciso de uma pessoa e de suas dificuldades e seus triunfos. Sendo assim, na próxima vez que alguém lhe per­ guntar: “Isso é normal?”, responda, “Depen­de”. Faça mais algumas perguntas e se lem­bre de se colocar no lugar da pessoa que está sendo julgada. É isso que tentamos fa­zer quando trabalhamos com pessoas.

Psicologia - Psicologia positiva
Temas gerais - Temas gerais, 
9/23/2020 1:48:33 PM | Por Charles Richard Snyder
As implicações do altruísmo, da gratidão e do perdão para a sociedade

Nesta parte do capítulo, tratamos das repercussões do altruísmo, da gratidão e do perdão para a sociedade. Como você saberá aqui, esses três processos cumprem papéis fundamentais em ajudar grupos de pessoas a viver juntos com maior estabili­dade e concordância interpessoal. Empatia/egofismo e altruísmo - Dado que o sentimento de empatia parece pressionar os seres humanos em direção a ações “puramente” prestativas ou altruístas (ou seja, ações não-egotistas), essa motivação geralmente tem implica­ções positivas para pessoas que vivem em grupos. Isso quer dizer que, enquanto sen­tirmos empatia, devemos estar mais dispos­tos a ajudar nossos concidadãos.

Infelizmente, contudo, seja conscien­te seja inconscientemente, muitas vezes agimos de forma a calar nosso sentido de empatia em relação a outras pessoas. Con­sidere, por exemplo, os residentes de gran­des meios urbanos que caminham pela rua e nem parecem ver os moradores de rua deitados no pavimento ou na calçada. Deparando-se com essas visões diariamente, pode ser que os habitantes das cidades aprendam a calar suas empatias. Eles po­dem, assim, evitar contato visual ou atra­vessar a rua para minimizar suas interações com essas pessoas desfavorecidas.

Para complicar as coisas, os psicólo­gos sociais demonstraram que, ao vivermos em grandes centros urbanos, podemos di­luir qualquer sentido de responsabilidade pessoal por ajudar os outros, um fenômeno conhecido como o “efeito do observador ino­cente” (Darley e Latane, 1968; Latane e Darley, 1970). Sendo assim, por vezes, os resi­dentes de cidades podem racionalizar e se enganar, dizendo que se comportaram bem quando, na realidade, não prestaram ajuda a seus vizinhos (Rue, 1994; Snyder, Higgins e Stucky, 1983/2005; Wright, 1994).

Entenda, contudo, que mesmo os pro­fissionais cuja formação e descrição de car­go implicam ajudar os outros podem pas­sar por esse tipo de mutismo de suas sensi­bilidades. Por exemplo, enfermeiros e pro­fessores de escolas podem experimentar burnout quando se sentem bloqueados e repetidamente sentem que não são capa­zes de gerar as mudanças positivas que desejam em seus pacientes ou alunos
(Maslach, 1982; Maslach e Jackson, 1981; Snyder, 1994/2000). Segundo nossa esti­mativa, a psicologia positiva deve encon­trar formas de ajudar as pessoas a se man­ter empáticas de modo que possam conti­nuar ajudando os outros. Devemos, tam­bém, explorar caminhos para aumentar a empatia, com vistas a poder tratar de pro­blemas de grande porte, como a AIDS e a mendicância (Batson, Polycarpou et al., 1997; Dovidio, Gaertner e Johnson, 1999; Snyder, Tennen, Affleck e Cheavens, 2000).

Voltando nossa atenção ao papel dos benefícios baseados no egotismo, em ter­mos de sua implicação no processo de al­truísmo, nossa visão é que seria inteligen­te ensinar às pessoas que nada há de erra­do em derivar benefícios ou se sentir bem por ajudar os outros. Na verdade, não é realista esperar que as pessoas venham a ter sempre motivações puras, não-baseadas no ego, quando realizam suas ativida­des solidárias. Em outras palavras, se as pessoas realmente se sentirem bem ao pres­tar ajuda a outras, então deveríamos trans­mitir à sociedade a mensagem de que isso é perfeitamente legítimo. Embora certa­mente seja importante engendrar o desejo [258] de ajudar porque é a coisa certa a fazer, também podemos transmitir a legitimida­de ao ato de prestar ajuda com base em que isso seja um meio de derivar alguma sensação de gratificação. Devemos nos lem­brar tanto da primeira quanto da segunda lições ao educarmos nossas crianças em re­lação ao processo de ajudar os outros.

Na verdade, as práticas de educação de crianças que transmitem a mensagem de que qualquer coisa que não seja “puro” altruísmo é ruim, podem ser contraprodu­centes. O principal autor deste texto certa vez atendeu um cliente que era filho de um ministro religioso. Durante sua criação, seu desenvolvimento, esse jovem foi ensi­nado que quaisquer sentimentos de pra­zer ao ajudar os outros não eram realmen­te legítimos nem aceitáveis. De acordo com isso, ao descobrir que não gostava de aju­dar os outros, sentiu-se extremamente cul­pado. Parte da terapia, nesse caso, era fa­zer que ele falasse com dois outros religio­sos que lhe disseram que nada havia de “pe­caminoso” em se sentir bem em função de fazer esforços para ajudar os outros. Quan­do ele entendeu verdadeiramente essa nova perspectiva, tivemos uma interação entre esse jovem e seu pai sobre a questão. Como seu pai era falecido, fizemos o exer­cício usando a técnica da cadeira vazia da Gestalt, na qual o cliente imagina a outra pessoa sentada em uma cadeira vazia à sua frente e acontece uma discussão em que ele desempenha os papéis de ambos. Ao fazer o exercício, o jovem entendeu que seu pai não tivera má intenção ao lhe ensi­nar sobre ajudar, e sim visava à lição prin­cipal da importância de se preocupar com os outros. Ao se preocupar com outras pes­soas, o cliente também aprendeu que par­te do processo é se preocupar consigo e dar amor e apoio a si próprio. A sua ajuda a outras pessoas, por sua vez, serviu a ele próprio e a essas outras pessoas, e ele fi­cou muito mais feliz quando chegou a essa solução perspicaz. Além disso, o jovem ensinou essa lição sobre a legitimidade de
se sentir bem por ajudar os outros a seus próprios filhos, para que eles não caíssem no mesmo dilema que ele havia vivenciado.

Empatia/egotismo e gratidão

Desde que sejamos capazes de enten­der e assumir a perspectiva de outra pes­soa, é mais provável que venhamos a ex­pressar nossa gratidão pelas ações dessa outra pessoa. Talvez outro caso ajude a esclarecer essa questão. Um dos meus (C.R.S.) primeiros clientes de psicoterapia, há cerca de quatro décadas, era uma jo­vem (nomeada aqui como Janice) que nun­ca agradecia aos outros. Seu pai lhe havia ensinado que as pessoas só ajudavam a outras quando “levavam alguma coisa nis­so”. Em outras palavras, quando criança, ela aprendeu que a ajuda dada por outras pessoas não era verdadeira e, é claro, se essa ajuda não era verdadeira, não havia necessidade de ela agradecer às pessoas por isso. Quando veio para fazer terapia, Janice informou que as outras pessoas a conside­ravam grosseira porque ela não agradecia.
Mesmo antes de chegar às raízes des­se padrão mal-adaptativo de comporta­mento na infância, pedi simplesmente que ela mudasse de atitude e agradecesse quan­do alguém fizesse alguma coisa por ela. Ela concordou em tentar e imediatamente des­cobriu que isso facilitava seu relacionamen­to com as pessoas. Na verdade, com o tem­po, ela também passou a se sentir bem con­sigo mesma ao expressar gratidão. Depois, começamos a explorar várias formas de ajudar Janice a entender as perspectivas de outras pessoas e que elas podem ser, às vezes, muito verdadeiras, ou seja, que nem sempre estavam tentando “levar alguma coisa” ao lhe oferecer ajuda. É claro que isso ia contra as lições ensinadas na infân­cia por seu pai, mas, aos poucos, ela se deu conta de que nem sempre havia motivos ulteriores nos comportamentos prestativos das pessoas. Um ponto importante nesse caso foi quando Janice entendeu que ela [259] própria, às vezes, ajudava um amigo, e que, ao fazê-lo, não estava necessariamente “apenas tentando levar alguma coisa para si mesma”. Esse caso também demonstra que as perspectivas do egotismo e da empatia podem funcionar para melhorar a gratidão de uma pessoa.

Empafia/egotismo e perdão

A empatia também é um precursor do perdão aos outros (McCullough et al., 1998; McCullough, Worthington e Rachai, 1997; Worthington, 2005). Os autores deste livro trabalharam com clientes de psicoterapia para os quais a empatia e o egotismo servi­am como rotas para desencadear o perdão. Por exemplo, consideremos a pessoa que está cheia de raiva em relação a algo preju­dicial que uma outra lhe fez, e que deve aprender a ver as questões do ponto de vis­ta dessa outra pessoa (ou seja, empatizar) antes de chegar ao ponto de perdoá-la.

Ocasionalmente, a pessoa que reali­zou transgressão de algum tipo entendeu mal as circunstancias à sua volta. Em um caso relacionado a essa questão, uma jo­vem rompeu seu relacionamento e come­çou a sair com outros homens ao ver seu namorado sentado nos fundos da igreja com sua ex-namorada. Entretanto, revelou-se que a razão para esse encontro era bas­tante inocente: o pai da ex-namorada ha­via morrido e o jovem a estava consolan­do. Quando a jovem que rompeu o rela­cionamento se deu conta dessa circunstân­cia, conseguiu empatizar com seu namo­rado e perdoá-lo pelo que, na verdade, era um ato de gentileza. Na verdade, ela sou­be que a atitude do namorado nem era uma transgressão!

Sendo assim, também podemos nos desvencilhar de ruminações negativas em relação a outra pessoa ou a um evento para nos sentirmos bem com nós mesmos. Como exemplo desse tipo egotista de perdão, con­sidere jovens que se meteram em dificul­dades desrespeitando a lei nos primeiros anos de adolescência. Para se sentir me­lhor consigo mesmos quando chegaram à idade adulta, esses jovens podem se ofere­cer como voluntários para ajudar adoles­centes que tenham problemas com a lei. Esses adolescentes costumam querer e pre­cisar desesperadamente ser perdoados por suas transgressões, e adultos na casa dos vinte anos, que tenham passado por situa­ções parecidas, são fontes ideais de per­dão. Nessa última questão, esses adultos jovens não apenas conseguem empatizar com os adolescentes, como também se sen­tem bem consigo mesmos por proporcio­nar esse perdão.

Imperativos morais: altruísmo, gratidão e perdão

Como apontamos durante todo este capítulo, a empatia e o egotismo costumam ser precursores do altruísmo, da gratidão e do perdão em relação aos outros. Essa noção do portal empatía/estima é mostra­ da visualmente na Figura 12.1. Quando a pessoa expressou altruísmo, gratidão e per­dão em relação a um receptor, contudo, o ciclo não pára. Considere, por exemplo, as reações de quem recebe a gratidão. Quando ele expressa agradecimentos ou algum outro tipo de apreciação, quem dá esse comportamento benevolente é recompen­sado e, portanto, pode se comportar de forma pró-social no futuro (Gallup, 1998). Da mesma forma, é possível que algumas pessoas tenham comportamento pró-social, ao menos em parte, porque gostam do re­forço que recebem por ele (Eisenberg, Milíer, Shell, McNalley e Shea, 1991).

Nesse processo, mostrado na Figura 12.4, o receptor provavelmente responde­rá com altruísmo, gratidão e perdão e, ao fazer isso, pode muito bem experimentar empatia e estima em relação a quem dá. Quem recebe o altruísmo, a gratidão e o perdão provavelmente se comportará em maneiras morais em relação a outras [260] pessoas em geral (vide o lado direito da Figu­ra 12.4). Em outras palavras, quando o al­truísmo, a gratidão e o perdão são intercambiados, o receptor deve praticar as vir­tudes da psicologia positiva em interações interpessoais posteriores. Assim, há efeitos-cascata do altruísmo, da gratidão e do perdão. O sentimento subjacente, nesse caso, pode ser: “Quando for tratado com respeito, farei o mesmo com os outros”.

Figura 12.4

Em sua obra clássica, A teoria dos sen­timentos morais, Adam Smith (1790/1976) sugere que a gratidão e os constructos re­lacionados, como o altruísmo e o perdão, são absolutamente cruciais quando se es­tabelece uma sociedade moral. Como tal, a gratidão é um imperativo moral, no sen­tido de que promove interações sociais es­táveis que são baseadas em reciprocidade e respeito mútuo (vide, mais uma vez, a Figura 12.4). Usando a linha de raciocínio desenvolvida por Adam Smith, o sociólo­go George Simmel (1950) argumentou que a gratidão, em particular, lembra as pessoas de sua necessidade de ter atitudes recípro­cas e de seus relacionamentos inerentes umas com as outras. Sobre essa questão, Simmel formulou o bonito pensamento de que a gratidão é “se a memória moral da humanidade... e cada ação agradecida... fosse eliminada, a sociedade (pelo menos como a conhecemos) desagregar-se-ia” (1950, p. 388). Assim sendo, a gratidão e seus conceitos próximos, de altruísmo e perdão, facilitam a sociedade, dado que há uma sensação de coesão e a capacidade de continuar a funcionar quando coisas boas e ruins acontecem a seus cidadãos (para discussões relacionadas a isso, vide Rue [1994] e Snyder e Higgins [1997]).

"Eu tenho um sonho": Rumo a uma humanidade mais bondosa e digna

Este capítulo cobre uma trilogia de alguns dos melhores comportamentos das [261] pessoas - sua gratidão, altruísmo e perdão. A empatia, para a pessoa que é alvo dela, parece ser um precursor importante des­ses comportamentos. Quando sentimos empatia por outra pessoa, temos mais pro­babilidades de ajudá-la, de nos sentirmos agradecidos por suas ações e de perdoar quando ela transgredir. No entanto, ao sen­tir essa empatia, as pessoas também po­dem atender a suas necessidades egotistas. Dessa forma, não é preciso trabalhar com uma proposição do tipo “ou uma coisa ou outra” quando se trata das motivações da empatia e do egotismo que desencadeiam o altruísmo, a gratidão e o perdão.

Uma implicação, nesse caso, é a de que uma humanidade mais bondosa e dig­na será aquela em que cada um de nós possa entender as ações dos outros, com­preendendo suas dores e seus sofrimentos, e ainda nos sentindo bem com relação a nossas próprias motivações ao ajudarmos [262]  nossos vizinhos. Certamente, a empatia é uma lição crucial, que deveria ser acres­centada às lições cruciais ensinadas às crianças em termos de estima. Nossas crian­ças podem conseguir se sentir bem consi­go mesmas e se relacionar melhor com outros em função de sua compreensão e de sua compaixão. De fato, grande parte do futuro da psicologia positiva será construída com base em pessoas que sejam capazes de atender a suas próprias necessidades egotistas e também de se re­lacionar bem e respeitar umas às outras.

Os relacionamentos estão no centro da psi­cologia positiva, e nosso objetivo é uma hu­manidade mais “civilizada”, na qual o al­truísmo, a gratidão e o perdão sejam as reações esperadas, em vez de inusitadas, entre pessoas que interagem.

Naquilo que pode ser um dos mais fa­mosos discursos orais dos tempos moder­nos, a fala “Eu tenho um sonho”, de Martin Luther King Jr., seus pensamentos e senti­mentos sobre altruísmo/gratidão/perdão foram captados em seu chamado à irman­dade (King, 1968). Se a psicologia positi­va quiser comparti­lhar esse sonho, co­mo certamente aspi­ra, então devemos continuar nossa bus­ca de entender a ci­ência e as aplicações que fluem dos con­ceitos de altruísmo, gratidão e perdão. [263]

Psicologia - Psicologia positiva
Personalidade - Forças de caráter, Transcedência
9/19/2020 3:06:49 PM | Por
Espiritualidade, em busca do sagrado

Observar alguém envolvido em um comportamento cotidiano pode evocar [235] pensamentos sobre espiritualidade. Por exemplo, imagine uma imagem de uma mulher mais velha se ajoelhando com um olhar de total con­centração em seu rosto. Sua busca pe­lo sagrado (aquilo que é separado do comum e merecedor de veneração) pode ser deduzida a par­tir de seu comportamento; esse é o caso se, por trás da imagem da mulher, apare­cer um interior de igreja... ou se um jar­dim servir como pano de fundo. Essa bus­ca do sagrado pode acontecer em qualquer parte, em qualquer momento, porque, as­sim como o flow e o mindfulness, a espiri­tualidade é um estado mental, e é univer­salmente acessível.

A expressão busca do sagrado é uma descrição amplamente aceita de espiritua­lidade. (A religião e os comportamentos religiosos representam as muitas formas nas quais essa busca é organizada e [236] aprovada pela sociedade; por exemplo, pela participação em cultos religiosos e pela fre­quência e duração das orações.) Em 2000, Hill e colaboradores definiram a espiritua­lidade como sendo “os sentimentos, pen­samentos e comportamentos que surgem da busca do sagrado” Cp. 66). Pargament e Mahoney (2002) também definiram espiri­ tualidade como “uma busca do sagrado...” e aprofundaram, “as pessoas podem seguir um número praticamente ilimitado de ca­minhos em suas tentativas de descobrir e conservar o sagrado... os caminhos envol­vem sistemas de crenças que incluem os das religiões organizadas tradicionalmen­te (como a protestante, a católica romana, a judaica, a hindu, a budista, a muçulma­na), e os mais novos movimentos de espiri­tualidade (como o feminista, da deusa, eco­lógico, espiritualidades) e visões de mun­do mais individualizadas” (p. 647). Esses caminhos para o sagrado também podem ser descritos como lutas espirituais, que in­cluíam objetivos pessoais associados aos conceitos maiores de propósito, ética e reconhecimento do transcendente (Emmons, Cheung e Tehrani, 1998).

Os pesquisadores da psicologia con­cordam com a definição de espiritualidade a seguir, e há sustentação geral para a vi­são de que a espiritualidade é um estado mental positivo vivenciado pela maioria das pessoas. Peterson e Seligman (2004) afir­mam que a espiritualidade é uma qualida­de universal da transcendência, declaran­do que “embora o conteúdo específico das crenças espirituais varie, todas as culturas têm o conceito de uma força maior, trans­cendente, sagrada e divina” (p. 601). Da mesma forma, Pargament e Mahoney (2002) afirmam que a espiritualidade é uma parte vital da sociedade e da psicolo­gia dos Estados Unidos:

Em primeiro lugar, a espiritualidade é um “fato cultural” (cf. Shafranske e Malony, 1990): a ampla maioria dos norte-ameri­canos acredita em Deus (95%), acredita que Deus pode ser alcançado por meio da oração (86%) e acha que a religião lhe é importante ou muito importante (86%) (Gallup Organization, 1995; Hoge, 1996). Em segundo, em um corpo empírico de literatura que está aumentando, as impor­tantes implicações da espiritualidade para uma série de aspectos do funcionamento humano estão sendo observadas. Essa lis­ta inclui a saúde mental (Koenig, 1998), o uso de drogas e álcool (Benson, 1992), o funcionamento conjugal (Mahoney et al., 1999), a paternidade e a maternida­ de (Ellison e Sherkat, 1993), os resulta­dos de experiências estressantes na vida (Pargament, 1997) e a morbidade e a mor­talidade (Ellison e Levin, 1998; Hummer et al., 1999)... Resumindo, há razões mui­to boas pelas quais os psicólogos devem prestar mais atenção às dimensões espi­rituais da vida das pessoas (p. 646).

Apesar de sua natureza ubíqua e da concordância acadêmica sobre sua defini­ção, os pesquisadores da psicologia e o público em geral continuam a turvar as águas quando discutem espiritualidade. Por exemplo, a Classificação de Qualidades Valores em Ação, de Peterson e Seligman (2004), empilhou a espiritualidade junto com conceitos parecidos, mas diferentes, como religião e fé. E, em um grande grupo de participantes de pesquisa, quase 75% se identificaram como sendo espirituais e religiosos (Zinnbauer et al., 1997). A indefinição do constructo prejudica os es­forços para entender os efeitos reais da busca pelo sagrado sobre o funcionamen­to de uma pessoa.

Os verdadeiros benefícios da espiritualidade?

Muitos psicólogos positivos (como Peterson e Seligman, 2004; Snyder e Lopez, 2002) levantaram a hipótese de que nossa busca pelo sagrado aprimora um entendi­mento profundo de nós mesmos e de nos­sa vida. De fato, como observado anterior­mente, a espiritualidade é associada à saú­de mental, à administração do uso [237] excessivo de drogas, ao funcionamento conju­gal, à maternidade e à paternidade, ao enfrentamento e à mortalidade (resumido em Pargament e Mahoney, 2002; Thoresen, Harris e Oman, 2001). Um exame dos es­forços espirituais revela que esses caminhos em direção ao sagrado podem levar ao bem-estar (ou, pelo menos, estar associa­dos a ele) (Emmons et al., 1998). Outro exame dos esforços espirituais revela que a busca pelo sagrado pode levar ao que consideramos ser os verdadeiros benefícios da espiritualidade em nossa vida: pro­pósito e sentido (Mahoney et al., 2005). Apesar das conclusões que demonstram os benefícios de buscar o sagrado, os mecanis­mos pelos quais a espiritualidade leva a resultados positivos na vida não estão claros.

Psicologia - Psicologia positiva
Desenvolvimento - Ciclo vital, 
8/19/2020 4:39:01 PM | Por Shane J. Lopez
Vivendo bem em todas as etapas da vida

Diante da negligência de cada palestrante em relação ao lado positivo do funciona­mento humano, Paul Baltes se contorcia um pouco mais na poltrona. Por fim, chegou a oportunidade de o Dr. Baltes apresentar sua visão sobre a sabedoria (vide o Capítulo 10). No entanto, a essas alturas ele tinha outra coisa em mente. Relembrou educadamente ao grupo de psicólogos, a maioria com formação em especialidades sociais, de personalidade e clínicas, que havia um ramo da psicologia que nunca vacilara em seu compromisso com o estudo da adapta­bilidade e do funcionamento positivo. Esse ramo foi o da psicologia do desenvolvimen­to. Na verdade, os psicólogos do desenvol­vimento geralmente haviam abordado sua pesquisa com questões sobre o que estava funcionando, em vez de o que não estava. Os esforços dos psicólogos do desenvolvmento e de outros estudiosos do desenvol­vimento (outros que mantêm perspectivas voltadas ao transcurso da vida) produzi­ram conclusões que muitas vezes transcen­deram fronteiras históricas, geográficas, ét­nicas e de classe, para se concentrar nas tendências das pessoas à autocorreção.

Neste capítulo, analisamos as desco­bertas dos pesquisadores do desenvolvi­mento em relação “ao que funciona” no transcurso da vida. Para nossos propósitos, o transcurso da vida é descrito como in­fância (do nascimento aos 11 anos), juven­tude (dos 12 aos 25), idade adulta (26 a 59) e idade adulta avançada (dos 60 até a morte). Partimos do pressuposto de que seu conhecimento das teorias mais destacadas sobre o desenvolvimento (vide o Quadro 6.1) proporcionará um pano de fundo para discussões sobre resiliência na infância, de­ senvolvimento positivo na juventude, viver bem como adulto e envelhecimento bem-sucedido.

Pesquisadores da resiliência e es­tudiosos do desenvolvimento jovem posi­tivo têm interesses comuns nos traços e nos resultados positivos dos jovens. Como se discute mais adiante, os profissionais que estudam a resiliência identificam os recur­sos pessoais e ambientais “que ocorrem naturalmente” e ajudam as crianças e os adolescentes a superar os muitos desafios da vida. Os estudiosos do desenvolvimen­to jovem positivo põem em ação as con­clusões dos pesquisadores da resiliência e outros psicólogos positivos, e dão um im­pulso ao crescimento ao formular e reali­zar programas que ajudam os jovens a ca­pitalizar seus recursos pessoais e os recur­sos ambientais. [100]

Na primeira metade deste capítulo, destacamos o que os pesquisadores do de­senvolvimento descobriram sobre o cresci­mento saudável. Além disso, tratamos de algumas das limitações dessa linha de pes­quisa. Os estudiosos do desenvolvimento adulto geralmente conseguem proporcionar informações prospectivas sobre o desenro­lar gradual da vida das pessoas. Seu conhe­cimento profundo do passado e do presen­te os ajuda a predizer o futuro. Mais do que destacar momentos isolados da vida, os es­tudiosos do desenvolvimento que lidam com os adultos usam uma metodologia seme­lhante à fotografia por aceleração do tem­po (time-lapse) - milhares de imagens pa­radas da vida (ou entrevistas de pessoas) são ligadas para contar uma história con­tundente de desenvolvimento individual.

Na segunda metade do capítulo, ex­ploramos as tarefas de vida associadas à vida adulta e às características das pessoas que envelhecem com sucesso e discutimos também muitas das lacunas em nosso co­nhecimento sobre a idade adulta. Durante o capítulo, recomendamos que o leitor ana­lise os fatores ambientais associados à adaptação e ao bem-viver.

Resiliência na infância

Na década de 1970, um importante grupo de cientistas do desenvolvimento co­meçou a estudar crianças que tinham bom desempenho na vida apesar de obstáculos graves. Essas crianças que triunfaram di­ante da adversidade foram chamadas de “resilientes”, e suas histórias cativaram o interesse de clínicos, pesquisadores e lei­gos. Nesta seção sobre crianças resilientes, começamos apresentando um caso breve. A seguir, definimos o termo resiliência e questões relacionadas sobre as quais os es­tudiosos tiveram divergências. Depois, descrevemos o trabalho de Emmy Wemer e outros pesquisadores da resiliência (como Garmezy e Rutter). Por fim, discutimos os recursos internos (pessoais) e externos (ambientais) que protegem as crianças de agres­sões vindas do ambiente, junto com os pro­blemas dessa pesquisa sobre resiliência.

O caso de Jackson

Conhecemos muitas crianças resilien­tes em nosso trabalho como professores e clínicos. A história das lutas e dos triunfos de Jackson se destaca. Segundo todas as descrições, ele era encantador desde o nas­cimento. Suas risadinhas faziam as pessoas gargalhar. Elas eram atraídas para ele na­turalmente, que parecia estar confortável com todos os parentes e amigos, confian­do neles.

Quando entrou na escola, prosperou em termos sociais e acadêmicos, e parecia estar crescendo saudável e forte. Infelizmente, aos 8 anos, um parente abusou se­xualmente de Jackson, que rapidamente aprendeu a se proteger do autor do abuso, e tudo se limitou a um incidente, mas os efeitos foram importantes. Sua confiança nas pessoas ficou abalada. Algumas sema­nas depois do abuso, ele se retraiu, ficou gravemente ansioso e desenvolveu dores de estômago e de cabeça constantes. Seus pro­blemas psicológicos e físicos levaram a au­sências e a baixo desempenho escolar. Ten­do sido, um dia, uma criança confiante, com um olhar voltado para o futuro, ele agora parecia assustado e seus olhos sugeriam que ele estava perdido no passado.

Com o tempo, alguns adultos aten­ciosos na vida de Jackson se deram conta de que ele estava lutando. Os professores de sua escolinha viram que ele não era mais a criança de antes. Dois desses professores se dirigiram a ele, e um deles disse: “Não sabemos o que o está incomodando, mas, o que quer que seja, estamos aqui para aju­dar”. Embora ele não viesse a falar sobre o incidente do abuso até 20 anos mais tarde, Jackson conseguiu receber o apoio de que necessitava de seus professores. Ele che­gava à escola um pouco mais cedo todas [102]  manhãs e se sentava quieto na turma de um dos professores. Não falavam muito, mas os sorrisos discretos que trocavam co­municavam bastante.

Os dois professores do ensino funda­mental deram a Jackson um lugar seguro para se estabelecer e se curar. O apoio dis­creto o ajudou a abandonar seus medos. Com o tempo, ele começou a interagir mais confortavelmente com os adultos. Dentro de um ano, sua ansiedade havia cedido e suas notas, melhorado. Ele retomou às suas atitudes antigas, encantador, e construiu um grande círculo de amigos e mentores em sua juventude. Hoje em dia, é casado, está feliz e tem um emprego de que gosta muito. Jackson, como é o caso de outras crianças resilientes, é um sobrevivente.

O que é resiliência?

Talvez a definição mais simples de resiliência seja “recuperar-se”: os seguin­tes comentários sobre a resiliência de Masten e Reed (2002, p. 75) ilustram esse pro­cesso positivo. Especificamente, a resiliên­cia se refere a

... uma classe de fenômenos que se caracte­rizam por padrões de adaptação positiva no contexto de adversidade ou risco impor­tante. A resiliência deve ser inferida, por­ que são necessários dois julgamentos im­portantes para identificar indivíduos como pertencentes a essa classe de fenômenos. Em primeiro lugar, há um julgamento de que os indivíduos estão se “saindo bem”, ou melhor do que isso, com relação a um conjunto de expectativas de comporta­mento. Em segundo, há um julgamento de que houve circunstâncias atenuantes, que representaram uma ameaça aos bons resultados. Assim sendo, o estudo dessa classe de fenômenos requer a definição de critérios ou métodos para garantir a boa adaptação e a existência passada ou presente de condições que representem uma ameaça à boa adaptação.

Essa definição genérica é amplamen­te aceita. Os estudiosos concordam em que o risco ou a adversidade deve estar pre­sente para que uma pessoa seja considera­ da resiliente. Apesar desse consenso, toda­via, há um debate considerável sobre a universalidade dos fatores de proteção (Harvey e Delfabbro, 2004) e até onde as crianças estão se “saindo bem” segundo cri­térios de boa adaptação (Luthar, Cicchetti e Becker, 2000; Masten, 1999; Wang e Gordon, 1994). Portanto, ainda que se te­nha identificado uma lista de fatores de proteção (vide a discussão posterior, neste capítulo), há diferenças visíveis no quanto esses fatores “protegem” (isto é, no quan­to proporcionam resultados positivos), jun­to com variabilidade em como e quando as pessoas lançam mão de determinados recursos ao se deparar com riscos e des­vantagens (Harvey e Delfabbro, 2004). De fato, dado o estado da pesquisa sobre resiliência, os estudiosos sugerem o que pode funcionar, mas não conseguem des­crever uma fórmula para a operação da resiliência.

Os pesquisadores discordam com re­lação à resposta para a pergunta: “Recuperou-se para chegar onde?”. Ao deter­minar o nível de funcionamento posterior à ameaça em uma criança resiliente, os observadores estão em busca de um retor­no ao funcionamento normal (ou seja, atin­gir marcos do desenvolvimento) e/ou por evidências de excelência (funcionamento acima e além do que se espera de uma criança da mesma idade). Todavia, a maio­ria dos investigadores “estabeleceu o pata­mar no nível da faixa normal, sem dúvida porque seu objetivo é entender como os indivíduos mantêm ou recuperam níveis normativos de funcionamento e evitam problemas significativos apesar da adver­sidade - um objetivo compartilhado por muitos pais e sociedades” (Masten e Reed, 2002, p. 76). Certamente, os casos mais celebrados de resiliência costumam ser descrições de indivíduos que superam cir­cunstâncias muito desfavoráveis para se tornarem mais fortes. (Por exemplo, Mattie Lepanak, um poeta-criança, aparentemente [103] se tornou mais prolífico à medida que a doença neuromuscular que enfrentou foi ficando mais difícil de administrar.)

Uma importante consideração que pode passar despercebida na conceituação de resultados de resiliência é a cultura (Rigsby, 1994; vide o Capítulo 5, para uma discussão relacionada). A pergunta “Recuperou-se para chegar aonde?” deve ser res­pondida dentro do contexto dos valores predominantes na cultura e das expectati­vas que a comunidade tem em relação a seus jovens. As forças culturais ditam se os pesquisadores examinam resultados edu­cacionais positivos, funcionamento intrafamiliar saudável ou bem-estar psicológico - ou, talvez, todos os três. Embora seja de­sejável alguma constância no que os estu­diosos medem, é difícil avaliar até onde os membros da comunidade estimulam deter­minados resultados.

Com relação à “boa adaptação”, os pesquisadores da resiliência concordam que a adaptação externa (cumprir as ex­pectativas sociais, educacionais e ocupacionais da sociedade) é necessária para de­ terminar quem é resiliente, mas a rede de pesquisadores se divide quanto à necessi­dade, também, de uma determinação da adaptação interna (bem-estar psicológi­co positivo). Esse debate gera confusão porque algumas pessoas consideram a re­cuperação inexoravelmente ligada à adap­tação emocional e intrapsíquica.

As raízes da pesquisa sobre resiliência

Os estudos de caso são usados há muito tempo para contar histórias de pes­soas impressionantes e seus triunfos. His­tórias de jovens que transcendem circuns­tâncias de vida terríveis levaram as pessoas a descobrir mais sobre essas pessoas resilientes e sobre os processos de resiliência. Alguns pesquisadores (como Garmezy, 1993; Garmezy, Masten e Tellegen, 1984) fazem seu trabalho tratando das peças com que se constrói a resiliência e depois iden­tificando como tais peças se juntam e se manifestam em um grande grupo de pes­soas que estão em risco em função de um fator de estresse. Outros (como Werner e Smith, 1982) identificam subamostras de grupos maiores de pessoas que estão funcionando bem, apesar de ter vivenciado um fator recente desse tipo. A seguir, esses pes­quisadores estudam profundamente as pes­soas resilientes para determinar as seme­lhanças que elas compartilham entre si e com membros de grupos menos resilien­tes, bem como para identificar o que as diferencia das pessoas que não conseguem se recuperar.

A Dra. Emmy Werner, chamada, às ve­zes, de “mãe da resiliência”, pesquisa o te­ma com foco na pessoa. Ela identificou pessoas resilientes e passou a conhecê-las bem com o tempo. Em função de seu desta­que nessa área da psicologia positiva, dis­cutimos seu trabalho como um exemplo da pesquisa informativa em resiliência. Werner trabalhou em conjunto com sua colega Ruth Smith (Wemer e Smith, 1982, 1992) em um estudo que envolveu uma coorte de 700 crianças nascidas na ilha de Kauai (no Havaí) entre 1955 e 1995. A partir do nascimento, foram coletados dados psico­lógicos das crianças e dos cuidadores, mui­tos dos quais trabalhavam em atividades associadas às plantações de cana-de-açú­car que dominavam a ilha. Ao nascer, um terço dessas crianças era considerado em risco de problemas acadêmicos e sociais em função de seu déficit de apoio familiar e seus ambientes em casa (como pobreza, alcoolismo dos pais e violência doméstica).

Dos estudantes em situação de risco, um terço parecia ser invulnerável à deter­minação dos fatores de risco. Duas carac­terísticas básicas respondiam pela resiliên­cia dessas crianças:

  1. elas nasceram com disposições extro­vertidas e
  2. eram capazes de envolver várias fontes de apoio. (Melhor cuidado durante a infância, inteligência e percepções de [104] valor próprio também contribuíram para resultados positivos.)

Os outros dois terços das crianças no grupo de alto risco desenvolveram proble­mas importantes durante a infância e a adolescência. Entre os 20 e os 30 anos, a maioria dos participantes da pesquisa em Kauai informava (e os teste psicológicos e os relatórios da comunidade corrobora­vam) que eles haviam “se recuperado” dos obstáculos enfrentados anteriormente em suas vidas. Com o passar do tempo, mais de 80% do grupo original de alto risco ti­nha se recuperado. Em retrospecto, mui­tos dos que foram residentes atribuíram sua força ao apoio de um adulto que os cuidou (como um parente, um vizinho, um pro­fessor, um mentor).

Com essas conclusões, os pesquisado­res da resiliência nas três últimas décadas examinaram as disposições de crianças em situação de risco, junto com os recursos fí­sicos e sociais dos jovens que enfrentaram essas desvantagens. Nesse sentido, a con­clusão de que muitas pessoas que não tive­ram fatores de proteção (até sua quarta década de vida) recuperaram-se não foi explicada adequadamente.

Recursos de resiliência

Segundo Masten e Reed (2002), con­clusões tiradas a partir de estudos de caso, pesquisas qualitativas e projetos quantita­tivos de grande escala “convergem com uma regularidade impressionante a um conjunto de atributos individuais e ambien­tais associados ao bom ajuste e ao bom desenvolvimento sob uma série de condi­ções que ameaçam a vida em diferentes contextos culturais” (p. 82).

Esses fatores de proteção potentes no desenvolvimento foram identificados na pesquisa e em revisões nas décadas de 1970 e 1980 (Garmezy, 1985; Masten, 1999; Masten e Garmezy, 1985; Rutter, 1985; Werner e Smith, 1982), e alguns fatores de proteção continuam a surgir a partir de estudos em andamento. De fato, essa lista ampla nos ajudou razoavelmente no de­correr do tempo e entre grupos (vide o Quadro 6.2). (Tais fatores são tratados em outra parte deste livro. Por exemplo, a autoeficácia e uma perspectiva positiva da vida são discutidas no Capítulo 9.)
Embora concordemos que grande parte desses recursos da resiliência é posi­tiva para a maioria das pessoas em muitas situações, há poucas verdades universais na literatura sobre resiliência (com a pos­sível exceção de que um adulto atencioso pode ajudar uma criança ou um jovem a se adaptar). Por exemplo, D’Imperio, Dubow e Ippolito (2000) concluíram que muitos fatores de proteção identificados anterior­mente não fizeram distinção entre jovens que enfrentaram bem a adversidade e os que não o fizeram. A cultura e outros fato­res (por exemplo, experiências passadas com a adversidade) certamente influen­ciam a forma como os jovens se recupe­ram da adversidade.

Os recursos listados no Quadro 6.2 foram traduzidos em estratégias para au­mentar a resiliência. (Observe a coincidên­cia entre algumas dessas recomendações e as que são discutidas na próxima seção, sobre desenvolvimento positivo. Algumas dessas estratégias podem impedir simultaneamente o que é “ruim” e promover o que é “bom” nas pessoas.) Usando essas estratégias, os estudiosos do desenvolvi­mento desenvolveram milhares de progra­mas que podem ajudar os jovens a superar as adversidades e a construir competên­cias. Alguns estudiosos (como Doll e Lyon, 1998) afirmam que a proliferação dos pro­gramas de resiliência ocorreu na ausência de pesquisas rigorosas que examinassem o constructo e a eficácia dos programas que supostamente a estimulam. Doll e Lyon ob­servam, ainda, que muitos desses progra­mas ensinam habilidades de vida que não são reforçadas nas culturas em que tais jo­vens vivem. Em função dessas preocupa­ções sobre a implementação de programas, formuladores de políticas e pessoas que desenvolvem iniciativas de promoção de­ veriam tentar adotar os programas existen­tes que tenham efetivamente servido a jo­vens semelhantes (isto é, promovido as competências relacionadas à resiliência), ou avaliar a eficácia dos programas com pequenas amostras concentradas, em lu­gar de grandes grupos da comunidade. ('Vide o Quadro 6.3.)

Desenvolvimento jovem positivo 

Nesta seção, definimos o desenvolvi­mento jovem positivo e os resultados so­cialmente valorizados que foram identifi­cados pelos defensores da juventude e pes­quisadores do tema. Além disso, identifi­camos programas de desenvolvimento para jovens que funcionam. [106]

O que é o desenvolvimento positivo dos jovens?

Os professores, terapeutas e psicólo­gos comprometidos com o desenvolvimen­to positivo de jovens reconhecem o que é bom em nossa juventude e se concentram nas qualidades e nos potenciais de cada criança (Damon, 2004). A partir da defini­ção de Pittman e Fleming (1991, p. ii, pri­meira linha de nossa definição), formula­mos (Lopez e McKnight, 2002, p. 3) como os componentes do desenvolvimento inte­ragem com o passar do tempo, para possi­bilitar adultos saudáveis:

O desenvolvimento jovem positivo deve ser visto como um processo em andamen­to, inevitável, no qual todos os jovens estão engajados e do qual todos estão in­vestidos. Os jovens interagem com seu ambiente e com agentes positivos (como jovens e adultos que dão suporte ao de­ senvolvimento saudável, instituições que criam climas e cultivam recursos que le­vam ao crescimento, programas que esti­mulam a mudança) para atender a suas necessidades básicas e cultivar os recur­sos. Por meio de sua iniciativa (por vezes combinada com o apoio de agentes posi­tivos), ganha-se força e os jovens que são capazes de responder a necessidades bá­sicas desafiam a si próprios para atingir outros objetivos; os jovens usam os recur­sos para construir outros recursos psico­lógicos que facilitem o crescimento. Em termos ideais, o desenvolvimento jovem positivo gera competências físicas e psi­cológicas que servem para facilitar a tran­sição para a vida adulta ao se lutar pelo crescimento continuado.

As qualidades positivas de nossos jo­vens se combinam (de maneira intencio­nal) com os recursos do ambiente e dos agentes positivos (jovens e adultos que pro­porcionem cuidado) no contexto de um programa (vide as descrições a seguir) para promover o desenvolvimento adulto. O desenvolvimento saudável é marcado pela concretização de alguns dos nove resulta­dos positivos a seguir (Catalano, Berglund, Ryan, Lonczak e Hawkins, 1998) visados por programas positivos. (Todos esses re­ sultados positivos são tratados em outras partes deste livro.)

  1. Recompensar o vínculo.
  2. Promover competências sociais, emo­cionais, cognitivas, comportamentais e morais.
  3. Estimular a autodeterminação.
  4. Estimular a espiritualidade.
  5. Cultivar uma identidade clara e positiva.
  6. Construir crenças no futuro.
  7. Reconhecer comportamento positivo.
  8. Proporcionar oportunidades de desen­volvimento social.
  9. Estabelecer normas pró-sociais.

Programas de desenvolvimento jovem positivo que funcionam

O relatório sobre Desenvolvimento Jovem Positivo (Catalano et al., 1998) é um recurso valioso para as pessoas que acreditam que “estar livre de problemas não quer dizer estar totalmente prepara­do” (Pittman e Fleming, 1991, p. 3). Na verdade, alguns estudiosos do desenvolvimento concentram seus úteis esforços em jovens que não estão lutando contra gran­des problemas em suas vidas, mas não pos­suem os recursos pessoais ou ambientais necessários para atingir muitos dos seus objetivos ao realizarem a transição à vida adulta. Como tal, o desafio em relação àqueles que podem passar despercebidos é a construção da segurança e competên­cias nos jovens.

Os programas de desenvolvimento jo­vem positivo se apresentam de muitas for­mas (Benson e Saito, 2000), incluindo ati­vidades estruturadas ou semi-estruturadas (como Big Brothers e Big Sisters), organi­zações que oferecem atividades e relacio­namentos positivos (como Boy’s Club, ACM), sistemas de socialização que pro­movem o crescimento (como creches, es­colas, bibliotecas, museus) e comunidades que facilitem a coexistência de programas, organizações e comunidades. A solidez desses programas é determinada pelo grau em que eles promovem o que é “bom” e previnem o que é “mau” nos jovens de hoje.

Os programas que funcionam ajudam os jovens a avançar rumo às competências que tornam suas vidas mais produtivas e sig­nificativas. Uma breve lista de mais de uma dúzia de programas eficazes foi elaborada após uma revisão crítica de avaliações de programas publicadas e não-publicadas que incluiu, no mínimo, os seguintes (Catalano et al., 1998; Jamieson, 2005):

  • Formato e medidas de resultados que sejam adequados.
  • Descrição adequada das metodologias de pesquisa.
  • Descrição da população servida.
  • Descrição da intervenção e fidelidada de implementação.
  • Efeitos demonstrados em resultados comportamentais. [111]

Com relação à efetividade, Catalano e colaboradores (1998) escreveram: “Fo­ram incluídos programas que apresentas­sem resultados comportamentais em algum momento, mesmo que esses resultados de­caíssem com o tempo. Também foram in­cluídos programas que demonstrassem efeitos sobre parte da população estuda­da” (p. 26). Esses programas eficazes in­cluem alguns muito conhecidos e outros nem tanto. Com o propósito de ilustrar como eles envolvem os jovens e cultivam os recursos pessoais, descrevemos as ope­rações básicas e os efeitos de Big Brothers/ Big Sisters e Penn Resiliency Program. Des­crevemos, também, algumas das tarefas de desenvolvimento associadas a uma experi­ência universitária positiva.

Big Brothers e Big Sisters é um progra­ma de mentores de base comunitária (3 a 5 horas de contato por semana) iniciado em 1905. Sem cobrança, o programa estabele­ce o contato de crianças e adolescentes de baixa renda com voluntários adultos que estejam comprometidos com dar carinho e estabelecer relações de apoio. Em geral, os mentores passam por uma cuidadosa tria­gem e depois recebem algum tipo de forma­ção para influenciar positivamente os jo­vens. As atividades dos mentores são não-estruturadas ou semi-estruturadas e costu­mam acontecer na comunidade. Com rela­ção à eficácia do programa, Tierney e Grossman (2000) concluíram que esse programa consegue promover o que é bom (bom de­ sempenho escolar, relações de confiança com os pais) e prevenir o que é ruim (vio­lência, uso de álcool e drogas, falta às aulas).

O Penn Resiliency Program (Gillham e Reivich, 2004) é um programa altamente estruturado, voltado às habilidades de vida, oferecido a escolares por um determinado preço (ou como parte de um projeto de pes­quisa) . Um facilitador bem-treinado conduz as reuniões na sala de aula, segundo um roteiro. As doze sessões são focadas na cons­ciência acerca de padrões de pensamento e na modificação do estilo explicativo dos es­tudantes para alterar as atribuições em re­lação aos eventos, de forma que elas pos­sam se tornar mais flexíveis e precisas. A avaliação ampla do programa demonstrou sua eficácia na prevenção do que é mim (o desencadear e a gravidade dos sintomas depressivos) e na promoção do otimismo e melhoria da saúde física.

Faculdades e universidades, como sis­temas de socialização, também podem promover o desenvolvimento jovem po­sitivo. O trabalho de Chickering (1969; Chickering e Reisser, 1993) sobre educa­ção e identidade proporciona uma gama de tarefas de desenvolvimento que é o foco conjunto de estudantes universitários e agentes positivos (colegas estudantes, pro­fessores e funcionários). No modelo de Chickering, o desenvolvimento de compe­tências é identificado como um rumo ou objetivo básico de desenvolvimento para universitários em suas experiências educa­cionais. Tendo cada vez mais confiança em suas capacidades, os estudantes começam a trabalhar na tarefa de desenvolvimento voltada a administrar as emoções, avan­çando pela autonomia até a independên­cia, desenvolvendo relacionamentos in­terpessoais maduros, identidade, propósi­to e integridade. O avanço em direção a cada um desses objetivos capacita os estu­dantes para o sucesso na escola, no traba­lho e na vida em geral. Um foco mais in­tencional no desenvolvimento de faculda­des e universidades para que sejam siste­mas de socialização poderia melhorar o valor de uma educação universitária para os alunos e para a sociedade como um todo. Integrar os programas de desenvolvimen­to de qualidades à experiência universitá­ria também poderia melhorar os efeitos positivos da educação superior (Lopez, Janowski e Wells, 2005).
Agora que conhecemos os tipos de programas que promovem o desenvolvi­mento jovem positivo, nossa atenção se volta à seguinte questão: “Por que esse pro­grama funciona?”. Embora não se tenham analisado sistematicamente os componen­tes desses programas para determinar o  que funciona e o que não, há várias suges­tões sobre o que os torna benéficos, inclu­indo as idéias de que:

  1. mais é melhor (quanto mais tempo com­prometido com os jovens, melhores são os resultados);
  2. quanto mais cedo, melhor (quanto mais jovem for o participante do programa, mais probabilidades terá de desenvol­ver competência);
  3. o que é estruturado é melhor (os pro­gramas que são dirigidos e sistemáticos conseguem replicar aquilo que funciona com mais facilidade) (Jamieson, 2005).

As tarefas de vida da idade adulta

Alguns estudos longitudinais (como Werner e Smith, 1982) começaram em fun­ção do interesse de um pesquisador nas ex­periências da infância, mas continuaram por décadas) para revelar muito sobre as experiências adultas. Nesta seção, descre­vemos dois desses estudos prospectivos (o Life Cycle Study, com crianças superdotadas, de Terman, e o estudo, de Harvard, sobre "os melhores dos melhores”, conhecido como Estudo sobre Desenvolvimento Adul­to). Deve-se observar que muitos aspectos do desenvolvimento adulto são tratados nesta seção e em importantes teorias do desenvolvimento (vide o Quadro 6.1), mas ainda há muita coisa desconhecida com relação a como as pessoas crescem e mu­dam entre os 26 e os 59 anos.

As trajetórias de crianças precoces

Lewis Terman (Terman e Oden, 1947) passou a maior parte de sua vida estudan­do a inteligência, que ele considerava como sendo a qualidade adaptativa que levaria ao sucesso na vida e, mais especificamen­te, à liderança nacional. Na década de 1920, Terman deu início a um ambicioso
estudo com 1.500 crianças intelectu­almente talentosas (QI > 140) que eramindicadas por profes­sores das escolas da Califórnia. Os parti­ cipantes do estudo apelidaram a si mes­ mos de “térmitas”.

Esses participantes eram fisicamente fortes na infância e, em geral, mais saudáveis do que seus colegas e amigos. A maioria das crianças terminou o ensino superior e garantiu bons empregos. Embora muitas das térmitas tenham sido produtivas em seus empregos, poucas chegaram a ser lí­deres nacionais, que era a hipótese de Terman. Portanto, deve-se assinalar que o QI elevado na infância não garantiu suces­so como adultos e melhor saúde mental.

Embora as predições de Terman com relação às proezas adultas de crianças inte­ligentes não se tenham confirmado, sua amostra revelou informações sobre o de­senvolvimento adulto. No lado negativo do funcionamento humano, Peterson, Seligman, Yurko, Martin e Friedman (1998) es­tudaram as respostas das térmitas na in­fância a questões abertas e concluíram que um estilo explicativo caracterizado pelo catastrofismo (explicar maus eventos com causas globais) era um indicador de riscos de mortalidade nessa amostra de crianças saudáveis. Essa relação entre estilo explica­tivo e longevidade/mortalidade provavel­mente é mediada por opções de estilo de vida. Em função dessas conclusões, parece que um QI em nível de gênio e uma boa saúde na infância não protegem os indiví­duos de fazer escolhas equivocadas que levam à má saúde e à morte prematura.

Quais são as principais tarefas da idade adulta?

Um subconjunto da amostra de da­dos de Terman foi revisado por George [113] Vaillant, o responsá­vel por décadas de dados do estudo de Harvard (descritos em mais detalhes posteriormente). De forma específica, 90 mulheres na amos­tra de Terman foram entrevistadas por Vaillant para exa­minar a generabilidade de suas con­clusões sobre desen­volvimento adulto a partir de sua amostra composta somente por homens. O exame dos dados de Terman e a revisão dos da­dos do Estudo sobre desenvolvimento adul­to ajudaram a partir de teorias do desen­volvimento existentes e identificar as tare­fas associadas à vida adulta.

Orientado pela teoria do desenvolvi­mento em etapas de Erik Erikson (1950), Vaillant mapeou (1977) e refinou (2002) seis tarefas do desenvolvimento adulto: identidade, intimidade, consolidação pro­fissional, geratividade, guardião do signi­ficado e integridade. A identidade geralmente se desenvolve durante a adolescên­cia ou no início da idade adulta, quando as pessoas passam a ter visões, valores e inte­resses próprios, em lugar das visões de seus cuidadores (não desenvolver uma identi­dade pessoal pode impedir um envolvi­mento dotado de significado com pessoas e trabalho). Com o desenvolvimento da identidade, uma pessoa tem mais probabi­lidades de buscar um relacionamento independente e comprometido com outra pessoa e, assim, adquirir intimidade. Mui­tas das mulheres na amostra original de Terman identificaram amizades íntimas com mulheres como suas relações mais ín­timas, ao passo que os homens do estudo de Harvard invariavelmente identificaram suas relações com suas esposas como as conexões mais íntimas. Uma conclusão re­lacionada a essa, de Vaillant (2002, p. 13), foi que “não são as coisas ruins que nos acontecem que nos destroem, são as pes­soas boas que nos acontecem em qualquer idade que facilitam uma velhice agradável".

A consolidação profissional é uma tarefa de vida que requer o desenvolvimen­to de uma identidade social. O envolvi­mento com uma profissão se caracteriza pelo contentamento, pela compensação, pela competência e pelo compromisso. Para muitas pessoas, a consolidação profissio­nal, assim como outras tarefas, é “traba­lhada”, em lugar de adquirida. Isso signifi­ca que as pessoas podem consolidar suas profissões por décadas, mesmo quando ja avançam à aposentadoria. Na força de tra­balho de hoje em dia, a consolidação mui­tas vezes é comprometida pela necessidade de mudar de emprego. Como resulta­do, a adaptação profissional (Ebberwein, Krieshok, Ulven e Prosser, 2004; Super e Knasel, 1981) surgiu como um pré-requi­sito da consolidação profissional.

Com relação às tarefas associadas à geratividade, as pessoas podem se envol­ver na construção de um círculo social mais amplo ao “se doar”. Ao dominar as três primeiras tarefas, os adultos podem possuir a competência e o altruísmo ne­cessários para servir como mentores dire­tos para a próxima geração de adultos. De fato, à medida que as pessoas envelhecem, os objetivos sociais se tornam mais signi­ficativos do que os objetivos voltados às realizações (Carstensen e Charles, 1998; Carstensen, Pasupathi, Mayr e Nesselroa- de, 2000).

No contexto de um círculo social maior, algumas pessoas assumem a tarefa de se tornar guardiões do significado. O guardião do significado tem uma visão so­bre os mecanismos do mundo e das pessoas e está disposto a compartilhar esse conhe­cimento com os outros. Ele protege as tradições e os rituais que possam facilitar o desenvolvimento dos mais jovens. Em es­sência, liga o passado ao futuro. Por fim, a realização da tarefa de desenvolvimento de integridade traz paz à vida de uma pes­soa. Nessa etapa, uma espiritualidade mais [114] elevada muitas vezes acompanha mais con­tentamento com a vida.

O domínio dessas tarefas é o objeto da vida adulta. O trabalho intencional em cada uma dessas tarefas leva ao trabalho na próxima tarefa, e o domínio de todas as tarefas é a essência do bem-envelhecer.

O caso de Sarah

A capacidade de prever mudanças no trabalho, fazer planos em relação a opor­tunidades futuras, desenvolver novas habilidades e criar uma rede social que facili­te a transição no trabalho tem sido apre­sentada por dúzias de nossos clientes com o passar dos anos, mas a história de Sarah chama a atenção porque ela havia previsto a necessidade dessa flexibilidade em sua sexta década de vida. Esse é um momento em que muitos diriam que ela chegou à consolidação profissional.

Sarah havia trabalhado no mesmo emprego, para a mesma empresa, por 33 anos. Como designer gráfica de uma empresa na­cional de cartões de felicitações, ela sabia que seu cargo era valorizado, e também entendia que os programas de computador e as impressoras de alta qualidade estavam substituindo seus tradicionais métodos de lápis e papel. Ela aprendeu novas habilida­des de design por computador, mas não ti­nha a mesma satisfação criativa a partir dessa nova forma de trabalhar. Como poderia continuar se sentindo criativa para poder ter prazer no trabalho? Em primeiro lugar, ela tinha que identificar exatamente aquilo de que gostava no processo criativo, Após semanas de reflexão, ocorreu-lhe que gostava de pensar em design mais do que gostava do processo real de realizá-lo, seja em um bloco de papel, seja na tela de um computador. Ela poderia convencer o chefe de sua equipe a lhe pagar para “pensar sobre design” em lugar de produzir designs? No início de um dia de trabalho, quando estava se sentindo particularmente corajosa levou a ideia ao chefe de sua equipe, que pareceu ficar intrigado e aliviado. Acon­tece que o chefe estava tentando descobrir uma maneira de dizer a Sarah que alguns aspectos do trabalho de design iriam ser fei­tos por pessoas de outros grupos (que cus­tam muito menos por hora) e que se pedi­ria à pequena equipe de designers atuais que produzisse conceitos para os artistas mais jovens que trabalhavam em computadores. Sendo assim, nos últimos 10 anos de sua vida profissional, Sarah descobre que será paga por idéias em lugar de trabalhos concretos. Ela também tem o prazer de visi­tar jovens artistas gráficos de outras partes do mundo. Embora estivesse bastante con­fiante em seu futuro profissional, continua a prever mudanças no setor de cartões, que podem dar rumo ao seu trabalho e sua vida.

Bem-envelhecer

Com a incorporação dos nascidos na explosão demográfica do pós-guerra ao grupo de norte-americanos mais velhos, as histórias sobre bem-envelhecer estão ga­nhando mais destaque nos meios de comu­nicação de hoje em dia. As narrativas de adultos mais velhos oferecem lições valio­sas a todos nós. Esse foi o caso, certamen­te, de Morrie Schwartz (o foco do livro Tuesdays with Morrie, de Mitch Albom, pu­blicado em 2002), que viveu a vida em sua integralidade e encontrou muito sentido durante sua decadência física e sua morte.

O estudo dos aspectos positivos do en­velhecimento (chamados de envelhecimento positivo, bem-envelhecer e envelhecer com qualidade) começou a apenas algumas dé­cadas, mas se tornará um foco importante da ciência psicológica, em função das ten­dências na demografia dos Estados Unidos [e do Brasil] que demandarão a atenção dos cientistas e do público em geral. Nosso objetivo nes­ta seção é descrever o bem-envelhecer com base no MacArthur Study of Successful Aging e no estudo prospectivo de Vaillant (2002).

No que consiste o bem-envelhecer?

O termo bem-envelhecer (successful aging) foi popularizado por Robert Havighurst (1961) quando ele escreveu sobre “acrescentar mais vida aos anos” (p. 8) na primeira edição de The gerontologist. Havighurst também foi pioneiro do interes­se acadêmico nos aspectos saudáveis do envelhecimento. Rowe e Kahn (1998), resu­mindo as conclusões do MacArthur Study of Successful Aging, propuseram três com­ponentes do bem-envelhecer:

  1. evitar a doença;
  2. envolver-se com a vida e
  3. manter um alto funcionamento cognitivo e físico.

Esses três componentes são aspectos da “manutenção de um estilo de vida que envolve atividades normais, valorizadas e benéficas” (Williamson, 2002, p. 681). Vaillant (2002) simplifica ainda mais a de­finição caracterizando o bem-envelhecer como alegria, amor e aprendizado. Essas descrições, embora não sejam detalhadas, oferecem uma imagem adequada do bem-envelhecer (successful aging).

O estudo da Fundação MacArthur sobre o bem-envelhecer

O estudo sobre o bem-envelhecer rea­lizado pela Fundação MacArthur (McAr­thur Foundation Study of Successful Aging, que aconteceu entre 1988 e 1996) foi rea­lizado por John Rowe e por um grupo multidisciplinar de colaboradores. Eles in­vestigaram fatores físicos, sociais e psico­lógicos relacionados a habilidades, saúde e bem-estar. Uma amostra de 1.189 vo­luntários adultos saudáveis, com idade entre 70 e 79 anos, foi selecionada em um grupo de 4.030 participantes potenciais usando critérios físicos e cognitivos. Es­ses adultos com alto nível de funciona­mento participaram de uma entrevista pessoal de 90 minutos e, depois, foram acompanhados durante uma média de sete anos, período em que completaram entrevistas periódicas.

Como mencionado anteriormente, o estudo MacArthur revelou que os três com­ponentes do bem-envelhecer eram evitar a doença, envolver-se com a vida e manter o funcionamento físico e cognitivo (Rowe e Kahn, 1998). Aqui, tratamos do envolvi­mento com a vida porque é o componente que os psicólogos positivos têm mais pro­babilidades de abordar em suas pesquisas e em suas práticas. Na verdade, os dois componentes de envolvimento com a vida. apoio social e produtividade (Rowe e Kahn) têm um paralelo com os objetivos de amor, trabalho e atividade lúdica de que tratamos em muitos capítulos deste livro.

O apoio social é mais potente quan­do é mútuo, pois o apoio dado é contraba­lançado pelo apoio recebido. Dois tipos de apoio são importantes para o bem-enve­ lhecer: o apoio socioemocional (gostar e amar) e o apoio instrumental (auxílio quando alguém está em necessidades). Uma análise mais profunda dos dados do estudo MacArthur revelou que o apoio au­mentou com o tempo (Gurung, Taylor e Seeman, 2003). Os respondentes com mais vínculos sociais também demonstraram menos declínio do funcionamento com o passar do tempo (Unger, McAvay, Bruce, Berkman e Seeman, 1999). Mostrou-se que os efeitos positivos dos vínculos sociais va­riaram segundo o gênero e as capacidades físicas básicas do indivíduo (Unger et al.). O gênero também influenciou como os participantes casados (um subconjunto da amostra total que continha 439 pessoas) recebiam apoio social: “Os homens [116] recebiam apoio social principalmente de suas esposas, ao passo que as mulheres se baseavam mais em seus amigos e parentes, assim como nos filhos, para obter apoio emocional” (Gurung et al., p. 487).

Com relação à atividade produtiva na idade adulta avançada. Glass e colabora­dores (1995) examinaram padrões de mu­dança nas atividades de uma amostra com alto funcionamento, de pessoas entre 70 e 79 anos, em um grupo de 162 pessoas com funcionamento entre moderado e baixo, durante um período de três anos. A coorte de funcionamento mais elevado foi consi­derada significativamente mais produtiva do que o grupo de comparação. As mudan­ças em produtividade com o passar do tem­po foram associadas a mais internações hospitalares e derrames, ao passo que a idade, o casamento e um domínio maior de determinadas habilidades estavam re­lacionados a mais proteção contra declí­nios. Essas conclusões estão de acordo com o trabalho de Williamson (2002), que su­gere que a atividade física sustentada (um aspecto da atividade produtiva) ajuda a manter um funcionamento saudável. Da mesma forma, interrupções dos regimes de atividade física costumam precipitar de­ clínios no bem-estar geral.

O estudo de desenvolvimento adulto

Vaillant (2002) reconhece que a ava­liação subjetiva do funcionamento não é o enfoque mais rigoroso à identificação de quem envelhece bem. Ele se baseou em um sistema de avaliações independentes do funcionamento (como física, psicológica, ocupacional) dos participantes do Estudo sobre Desenvolvimento Adulto. Os 256 par­ticipantes originais, caucasianos e social­mente em vantagem, foram identificados no final da década de 1930 pelos reitores de Harvard (que consideravam esses alu­nos como saudáveis em todos os aspectos). Nos últimos 80 anos, esses participantes foram estudados por meio de exames físi­cos, entrevistas pessoais e surveys. Mais de 80% dos participantes do estudo passaram dos 80 anos, comparados com apenas 30% de seus contemporâneos que viveram até essa idade. O amplo estudo feito com es­ses adultos mais velhos (e membros de dois estudos prospectivos) identificou os seguin­tes fatores de predição do envelhecimento saudável no estilo de vida: não fumar ou parar de fumar ainda jovem, enfrentamento adaptativo, com defesas maduras, não usar álcool em excesso, manter um peso saudável, um casamento estável e fa­zer algum exercício, além de receber [117] educação escolar. Essas variáveis diferencia­vam as pessoas nos extremos do espec­tro de saúde: os felizes-sadios (62 in­divíduos que vivenciaram boa saúde em termos objetivos e subjetivos, biológi­cos e psicológicos) e os tristes-doentes (40 indivíduos que foram classificados como in­felizes em pelo menos uma dessas três di­mensões: saúde mental, apoio social ou sa­tisfação na vida). O fator de predição mais forte para estar no grupo feliz-sadio em re­lação ao triste-doente foi o nível em que as pessoas usavam estilos de enfrentamento psicológico maduros (como altruísmo e humor) no dia a dia.

Talvez a predição do bem-envelhecer não seja tão complexa quanto o estudo da MacArthur e Vaillant fazem que seja. O bem-envelhecer, ou no mínimo a longevi­dade, resume-se a vivenciar emoções no início da vida? Danner, Snowdon e Friesen (2001), em seu estudo das autobiografias de 180 freiras católicas escritas no início do século XX, demonstraram que o con­teúdo emocional positivo nos escritos es­tava inversamente correlacionado com o risco de mortalidade 60 anos depois. Essas freiras, que aparentemente tinham tido um estilo de vida que levaria ao bem-envelhecer, apresentavam mais probabilida­des de passar dos 70 ou 80 anos se tives­sem descrito histórias de suas vidas que fossem carregadas de emoções positivas muitas décadas antes.

O corpo de pesquisa sobre envelhe­cer bem está crescendo rapidamente, e as conclusões sugerem que as pessoas têm mais controle sobre a qualidade de suas vidas durante o processo de envelhecimen­to do que costumávamos acreditar. Mais além, em vários estudos, o apoio social é um dos fatores psicológicos que promovem o bem-envelhecer. Apesar desse aspecto em comum, à medida que se realizam e se publicam mais pesquisas intercultural parece que o envelhecimento e o bem-em velhecer podem variar segundo os países estudados. Sendo assim, o bem-envelhecer não deve ser medido segundo um padrão universal (Baltes e Carstensen, 1996). Isso sugere que os futuros trabalhos deverão levar em consideração aspectos de enve­lhecimento adaptativo ao buscar pistas que levem ao bem-viver na idade avançada.

Um foco mais voltado ao desenvolvimento na Psicologia postiva 

Enfrentamos dificuldades e adversidades diárias. Isso se aplica à infância, adolescência, à idade adulta e à idade adul­ta avançada. Ao envelhecer, espera-se, pas­samos a ter mais recursos e capacidade; de adaptação. Parece ser esse o caso, pois há diversos fatores de desenvolvimento positivo que ajudam as crianças e os adultos a se recuperar. As conclusões discutidas neste capítulo também sugerem que a psi­cologia positiva vai bem em sua maneira de identificar e compartilhar informações importantes com relação a viver uma vida melhor. Faça os miniexperimentos pessoais para dar vida a algumas dessas conclusões.

Embora se saiba muito sobre como prosperar durante cada década de nossas vidas, a próxima geração de psicólogos positivos (você e seus colegas) tem muitas perguntas a responder com relação a tópi­cos como desenvolvimento adulto positivo e a promoção do bem-envelhecer para mui­tas pessoas. Além disso, são necessárias mais teoria e pesquisa para nos ajudar a entender como cada qualidade humana se manifesta e descrever como a cultura mol­da uma determinada qualidade e sua [118] potência com o passar do tempo. Para que a psicologia positiva cresça como campo, acreditamos que é crucial entender os proressos de desenvolvimento que se desen­rolam da infância até a idade avançada. [119]

Psicologia - Psicologia positiva
Comportamento - Interação social, Comunidades
8/19/2020 4:37:35 PM | Por Charles Richard Snyder
Desenvolvendo as qualidades humanas e vivendo bem em um contexto cultural

David Satcher, o 16“ diretor de saúde dos Estados Unidos (cargo mais alto no sis­tema de saúde pública do país), que de­sempenhou a função entre 1998 e 2002, estava sentado em um palco pouco ilumi­nado em uma sala de convenções lotada. Junto ao corpo, trazia o calhamaço do relatório intitulado “Saúde mental: cultura, raça e etnicidade” (Mental health: culture, race, ethnicity, U.S. Department of Health and Human Services [DHHS], 2001), que estava sendo lançado oficialmente naque­le mesmo dia. Os psicólogos começavam a encher a sala de reuniões para ouvir a sínte­se do Dr. Satcher sobre o relatório, que vi­nha sendo elaborado há anos. Quando che­gou sua hora de falar, Satcher discorreu sobre as influências fundamentais da cul­tura na saúde mental. Este trecho do rela­tório resume alguns de seus comentários:

A cultura [grifos nossos] é definida, em termos gerais, como um legado ou con­junto de visões, normas e valores comuns (U.S. DHHS, 1999). Ela se refere aos atri­butos compartilhados de um grupo... A cultura influencia inclusive se as pessoas chegam a procurar ajuda para sua saúde, que tipo de ajuda elas procuram, de que estilos de enfrentamento e apoios sociais dispõem, bem como quanto estigma elas atribuem às doença mentais. Todas as cul­turas também têm qualidades, como a resiliência e formas adaptativas de en­frentamento, que podem proteger algu­mas pessoas de determinados transtornos. Os consumidores de serviços de saúde mental trazem naturalmente essa diver­sidade cultural para o setting terapêutico... A cultura do clínico e o sistema de aten­ção à saúde como um todo comandam a resposta dada a um paciente com uma doença mental. Eles influenciam muitos aspectos da prestação de cuidados, in­cluindo o diagnóstico, o tratamento e a organização e o reembolso dos serviços. Os clínicos e os sistemas de prestação dos serviços têm estado mal equipados para atender às necessidades de pacientes com diferentes origens e, em alguns casos, têm demonstrado preconceito na prestação de atendimento (U.S. DHHS, 2001).

Havia duas mensagens-síntese no re­sumo de Satcher. Em primeiro lugar, “a cultura é importante” na consideração da etiologia (a causa de algo, como uma doença), efeitos e tratamento de proble­mas educacionais e psicológicos. Em segun­do, os psicólogos necessitam incorporar questões culturais a suas conceituações dos problemas e tratamentos psicológicos.

A necessidade de reconhecer influên­cias culturais amplas também se aplica aos nossos esforços para entender eventos educacionais, qualidades psicológicas e a [85] própria natureza do bem-viver. Essa ne­cessidade, contudo, não tem sido atendi­da, segundo críticos da iniciativa da psicologia positiva. Esses críticos observaram que a maioria dos estudos voltados às qua­lidades não trata das influências culturais em nossos planos de pesquisa, prestação de serviços e avaliações de programas (Ahuvia, 2001; Leong e Wong, 2003; Sue e Constantine, 2003). Mais além, os crí­ticos demandam mais discussão sobre como a “cultura é importante” nas ativi­dades de pesquisa e na prática da psicolo­gia positiva.

Exortamos quaisquer futuros psicólo­gos positivos que estejam lendo este capí­tulo a levar em conta a cultura como uma importante influência sobre o desenvolvimen­to e a manifestação das qualidades e do bem-viver humanos. Esse objetivo é desafiador porque a psicologia, como disciplina, tem sido ineficaz para incluir as variáveis cul­turais no estudo da saúde e das doenças mentais. Da mesma forma, os psicólogos positivos parecem estar divididos sobre a questão de se a ciência e a prática são isen­tas da influência cultural (ou seja, têm uma postura neutra e objetiva no exame dos tra­ços e comportamentos humanos “univer­sais”) ou são carregadas de cultura (ou seja, reconhecem as influências dos valores cul­turais no exame das qualidades e do funcio­namento positivo).

Neste capítulo, descrevemos:

  1. as posturas históricas dos psicólogos com relação aos papéis da cultura so­bre os comportamentos positivos e ne­gativos;
  2. os enfoques dos psicólogos positivos à incorporação das perspectivas culturais em seu trabalho e
  3. o papel das influências culturais em nossas futuras explorações das qualida­des e do funcionamento positivo.

Inicialmente, tratamos das tentativas históricas (e, muitas vezes, fracassadas) do campo em entender os papéis das forças culturais na determinação de nossas [87] formações culturais. Em segundo, examina­mos as afirmações de que a psicologia po­sitiva é isenta de influências culturais ou de que é carregada de cultura. Em terceiro e último lugar, discutimos os passos neces­sários para posicionar a psicologia positi­va no contexto cultural. Ao final deste ca­pítulo, pode ser que tenhamos levantado mais perguntas do que respostas. Obvia­mente, consideramos essas perguntas como fundamentais para o futuro da psicologia positiva, e muitos dos leitores deste texto podem ser chamados a tratar dessas ques­tões em suas carreiras.

Entendendo a cultura: uma questão de perspectiva

A psicologia, no século XX, viveu um corpo-a-corpo com o tópico de diferenças individuais. Muitas das discussões sobre esse tema estavam relacionadas à cultura. Nos últimos 100 anos, por exemplo, a psi­cologia avançou, passando da identifica­ção das diferenças associadas à cultura para a identificação e apreciação da singulari­dade individual.

No final do século XIX e início do XX, antropólogos e psicólogos costumavam se referir à raça e à cultura como determi­nantes das características e comportamen­tos pessoais, positivos e negativos. Os paradigmas de pesquisa, influenciados pe­las forças sociopolíticas da época, produ­ziram conclusões que, em termos gerais, estavam em sintonia com a visão de que a raça ou a cultura dominante era superior a todos os outros grupos étnicos ou minori­tários dos Estados Unidos. Essas aborda­gens que destacavam a inferioridade de determinados grupos raciais ou culturais foram chamadas de perspectivas genética e culturalmente deficientes sobre a diversida­ de humana, ao passo que a perspectiva ge­neticamente diferente reconhece o potencial de cada cultura para engendrar qualida­des únicas (Sue e Sue, 2003).

A hipótese dos psicólogos que apoia­ram o modelo geneticamente deficiente era de que as diferenças biológicas expli­cavam lacunas percebidas nas capacidades intelectuais entre grupos raciais. Mais além, os proponentes desse modelo afirmavam que as pessoas que possuem inteligência in­ferior não poderiam se beneficiar das opor­tunidades de crescimento e, como tal, não contribuíam para o avanço da sociedade.

Usou-se a pseudociência para de­monstrar a suposta base genética da inte­ligência e destacar a “descoberta” da supe­rioridade intelectual de europeus e euro-americanos. Por exemplo, a craniometria, que é o estudo da relação entre as caracte­rísticas do crânio e a inteligência (às ve­zes, medindo-se a quantidade de semen­tes de pimenta necessárias para encher crâ­nios secos), era uma abordagem pseudo-científica para demonstrar a relativa supe­rioridade de um grupo sobre outro.

Tais noções de inferioridade genética constituíram um foco importante da pes­quisa em eugenia (o estudo dos métodos de redução da “inferioridade genética” por meio de procriação seletiva) liderada por psicólogos norte-americanos como G. Stanley Hall e Henry Goddard. Hall “acre­ditava firmemente em raças humanas ‘su­periores’ e ‘inferiores’” (Hothersall, 1995, p. 360). Goddard tinha visões semelhan­tes com relação à raça e inteligência, e no início do século XX, estabeleceu procedi­mentos de triagem (usando testes formais de inteligência semelhantes aos que se usam hoje em dia) na Ilha de Ellis, para aumentar os níveis de deportação de pes­soas “pouco inteligentes” (Hothersall, 1995). Assim, pessoas de todo o mundo recebiam testes de inteligência complexos, geralmente em uma língua que não a sua, no mesmo dia em que chegavam de uma longa viagem pelo oceano. Não surpreen­de que os resultados desses testes fossem uma estimativa ruim do funcionamento intelectual dos imigrantes.

Em meados do século XX, a maioria dos psicólogos havia abandonado a visão [88] de que a raça predeterminava as capacida­des cognitivas e os resultados que a pessoa obteria na vida. Na verdade, o foco foi redirecionado, passando da raça à cultura ou, mais especificamente, às “deficiências culturais” evidenciadas nas vidas cotidia­nas de algumas pessoas. Na abordagem culturalmente deficiente ao entendimen­to das diferenças entre as pessoas, os psi­cólogos (como Kardiner e Ovesey, 1951) identificavam uma série de fatores ambien­tais, nutricionais, lingüísticos e interpes­soais que supostamente explicariam o ra­quítico crescimento físico e psicológico de membros de determinados grupos. A hipótese era de que as pessoas careciam de determinados recursos psicológicos porque sua exposição aos valores e costumes pre­dominantes na época, ou seja, os dos euro-americanos, era limitada (vide a discussão de privação cultural em Parham, White e Ajamu, 1999). Muitos pesquisadores e pro­fissionais tentaram explicar os problemas e esforços das pessoas examinando cuida­dosamente a justaposição de culturas, es­pecificamente aquelas que eram conside­radas como marginais de alguma forma, quando comparadas às consideradas pre­dominantes (de classe média, suburbanas, socialmente conservadoras). Os desvios da cultura normativa eram considerados “de­ficientes” e motivo de preocupação. Em­bora desse mais atenção aos efeitos das variáveis externas do que ao modelo gene­ricamente deficiente anterior, esse modelo continuava aplicando uma-estrutura precon­ceituosa, negativa e simplista para avaliar es capacidades cognitivas dos membros de grupos minoritários (Kaplan e Sue, 1997).

Após décadas em que alguns psicólo­gos afirmavam que certas raças e culturas eram melhores do que outras (ou seja, que os euro-americanos eram superiores às minorias), muitos profissionais começaram a apoiar a perspectiva culturalmente di­ferente, na qual se reconheciam a singularidade e as qualidades de todas as cultu­ras. Recentemente, pesquisadores e profissionais começaram a considerar explica­ções da diversidade inerente em compor­tamentos humanos positivos e negativos que são culturalmente pluralistas (que re­conhecem entidades culturais distintas e adotam alguns valores norte-americanos tradicionais) e culturalmente relativistas (que interpretam os comportamentos den­tro do contexto da cultura). Muito embora as explicações pluralistas e relativistas se­jam amplamente aceitas, debate-se se a pesquisa e a prática em psicologia positiva são isentas da influência da cultura ou es­tão carregadas dela. Esse debate é situado e discutido na próxima seção.

Psicologia positiva: isenta ou carregada de influências culturais?

Os cientistas e os profissionais da psi­cologia positiva estão comprometidos com o estudo e a promoção do bom funciona­mento humano. Embora tenhamos esse ob­jetivo comum, vamos em busca dele por muitos caminhos diferentes. Observadores externos podem concluir que todos os pesquisadores do campo da psicologia positiva fazem perguntas semelhantes e usam mé­todos semelhantes. Tais observadores tam­bém podem observar que todos os profissio­nais da psicologia positiva se concentram nas qualidades dos clientes e ajudam as pes­soas a avançar em direção a resultados po­sitivos em suas vidas. Nossas especialidades educacionais (como a psicologia social, de saúde, da personalidade, do desenvolvimen­to, terapêutica e clínica), contudo, podem determinar aspectos específicos das ques­tões examinadas e das ferramentas de pesquisa utilizadas. Da mesma forma, nossas orientações teóricas para a terapia (como a humanista, a cognitivo-comportamental, focada em resultados) podem influenciar nossos esforços para ajudar as pessoas a fun­cionar melhor. Até que ponto consideramos a pesquisa e a prática da psicologia positiva como isentas ou carregada de influências [89] da cultura também pode ser um fator a moldar nossos focos e métodos.

Desde 1998, o debate sobre as in­fluências culturais na pesquisa e na práti­ca da psicologia positiva tem sido realiza­do formalmente em convenções e informal­mente em listas de discussões pela internet e em salas de aula. A maioria dos profis­sionais provavelmente tem confiança na objetividade de seus métodos. Eles também provavelmente reconhecem a necessidade de entender a impressionante diversidade da existência humana. Alguns deles ado­tam posições extremas (como “a psicolo­gia positiva é isenta de influências da cul­tura e NÃO ESTÁ carregada de cultura”, ou “a psicologia positiva ESTÁ carregada de cultura e NÃO ESTÁ isenta de influên­cias da cultura”) e defendem suas visões com muito vigor. Tendo testemunhado es­ses debates e participado de alguns deles, as três questões recorrentes parecem estar relacionadas:

  1. aos efeitos dos valores culturais dos profissionais em suas pesquisas e prá­ticas;
  2. à universalidade das qualidades hu­manas e
  3. à universalidade da busca da felicidade.

O Quadro 5.1 apresenta os extremos de cada uma dessas três posições. Nas se­ções que seguem, detalhamos as perspec­tivas dos proponentes de cada posição. Além disso, apresentamos miniexperimentos para provocar o leitor a pensar sobre a aplicação dessas perspectivas.

Quadro 5.1

Pesquisa e prática isentas de influências culturais na psicologia positiva

Os que defendem a abordagem “isen­ta de influências culturais” sustentam que a ciência social positiva é descritiva e objeti­va e que seus resultados “transcendem cul­turas e políticas específicas e abordam a universalidade” (Seligman e Csikszentmi- halyi, 2000, p. 5). Esses profissionais afir­mam que os valores culturais dos pesqui­sadores e dos profissionais não influenciam seu trabalho. A lógica subjacente é de que os cientistas rigorosos usam métodos bem-desenvolvidos e ferramentas validadas. Da mesma forma, os terapeutas consciencio­sos e eficientes utilizam avaliações e inter­venções validadas.

Com relação à universalidade de nu­merosas qualidades humanas, Peterson e Seligman (2004) detalham sua ampla bus­ca por virtudes e qualidades que são valo­rizadas por todas as pessoas em diferentes culturas (vide o Capítulo 4 para uma [90] discussão da Classificação de Qualidades VIA). As 24 características pessoais identificadas por Peterson e Seligman estariam presen­tes em todas as sociedades e seriam consi­deradas positivas em todos os grupos cul­turais. De fato, pesquisadores que foram aos quatro cantos do mundo para entre­vistar membros de tribos (como os Inuit, da Groenlândia, e os Maasai, no Quênia) informam evidências descritivas e quanti­tativas que sustentam a existência e a desejabilidade dessas Qualidades VIA em cul­turas específicas (Biswas-Diener e Diener, no prelo).

A ideia de que todo mundo quer ser feliz é o pressuposto orientador do livro de David Myers, A busca dafelicidade (The pursuit of happiness, 1993), e muitos psi­cólogos positivos concordam com essa vi­são. Sobre isso, pesquisadores do bem-es­ ar subjetivo (como Kahneman, Diener e Schwartz, 1999) fizeram levantamentos com pessoas de todo o mundo e concluí­ram que a felicidade define as experiên­cias emocionais das pessoas na maioria dos países.

Pesquisa e prática carregadas de cultura na psicologia positiva

A perspectiva culturalmente carrega­ da sobre a psicologia positiva está intima­mente associada a esforços para contextualizar todas as iniciativas de pesquisa e prática. Especificamente, as [91] recomendações sensíveis à cultura com relação à prá­tica, à pesquisa e à formulação de políticas (APA, 2003) estimulam os profissionais a desenvolver competências específicas para ajudar a levar em conta as influências cul­turais sobre a psicologia. Nessa linha, os apoiadores da posição culturalmente car­regada concordariam que a pesquisa e a prática são realizadas na intersecção entre as culturas dos profissionais e as dos parti­cipantes ou clientes. Sendo assim, afirma-se que os valores culturais do pesquisador e do profissional influenciam a psicologia positiva.

Embora reconheçam que pode existir um grupo principal de traços e processos positivos em todas as culturas, os profissi­onais que acreditam que todas as qualida­des são carregadas de cultura sustentam que a maioria deles se manifesta de for­mas muito diferentes, com propósitos dis­tintos, em culturas diferenciadas. Sandage, Hill e Vang (2003) apresentam um bom exemplo de como o perdão (uma das 24 qualidades VIA) é valorizado em diferen­tes culturas e, ainda assim, opera de forma muito distinta dentro de cada uma delas. Em sua análise do processo de perdão en­tre norte-americanos descendentes dos Hmong, na Ásia, Sandage e colaboradores descobriram que ele se concentra na res­tauração do respeito e na recuperação da relação, enfatiza um componente espiritual e é facilitado por um terceiro. Embora ou­tras conceituações do perdão enfatizem a recuperação da relação, os componentes espirituais e a necessidade da facilitação de um terceiro parecem ser raros.

Sobre a noção de felicidade como um estado humano desejado universalmente, os psicólogos (por exemplo, Constantine e Sue, 2006; Leong e Wong, 2003; Sue e Constantine, 2003) observaram que o so­frimento e a transcendência são os objeti­vos de alguns indivíduos que adotam uma perspectiva oriental sobre a psicologia po­sitiva (vide o Capítulo 3). Dessa forma, a felicidade pode ser simplesmente um sub­ produto do processo da vida. Ahuvia (2001, p. 77) narrou sua experiência com pessoas que não compartilhavam do dese­jo “universal” de ser felizes:

Há alguns anos, um indiano, meu aluno de doutorado, viu a contracapa do livro de Myers (1993), que dizia “Todos que­remos ser felizes...”. O aluno sim­plesmente disse: “Eu não”. Eu me lembro de outra conversa, com um jovem de Cingapura, que me contou que ia se ca­sar com sua noiva porque isso era espera­do dele socialmente, e não porque ele seria feliz no casamento... Da mesma for­ma, troquei longos e-mails com um aluno coreano que era muito explícito em rela­ção a escolher uma carreira para ficar rico, não para ser feliz, de forma que pudesse agradecer seus pais, comprando-lhes um Mercedes novo.

Os resultados de inventários subjeti­vos em nível nacional sobre bem-estar (Kahneman, Diener e Schwartz, 1999) tam­bém sugerem que há diferenças, com o passar das décadas, em relação aos níveis de felicidade entre países.

Isenta de cultura versus carregada de cultura: um debate em andamento?

A discussão dessa questão pode não ser necessariamente o melhor uso dos re­cursos profissionais. John Chambers Chris­ topher (2005), da Universidade de Mon­tana, nos Estados Unidos, argumenta que “a psicologia positiva requer uma filosofia das ciências sociais que seja consistente o suficiente para dar conta de questões ontológicas, epistemológicas e éticas/morais, indo além do objetivismo e do relativismo” (p. 3-4). O texto completo do artigo de Christopher, reimpresso aqui, detalha suas sugestões para dar à psicologia positiva uma estrutura conceitual mais forte. [92]  

Situando a psicologia positiva em um contexto cultural

As perspectivas passadas da psicolo­gia sobre a cultura, junto com o debate "isenta de cultura-carregada de cultura”, narram as ciladas e o avanço associados às tentativas profissionais de entender as in­fluências da cultura sobre a pesquisa e a prática da psicologia positiva. Apresenta­mos aqui recomendações para ajudar a entender o papel da cultura na psicologia positiva.

Examinando a equivalência dos "positivos" para determinar o que funciona

Estabelecer a aplicabilidade intercultural de constructos e processos vai além de se determinar se as qualidades e os me­canismos de enfrentamento existem e são valorizados por membros de diferentes grupos culturais. Além disso, demanda um conhecimento da psicologia específica do grupo (Sandage et al., 2003) que conte a história de como e quando a qualidade ou o processo passou a ser valorizado dentro da cultura e como ele funciona atualmen­te de forma positiva.

O estudo qualitativo do uso que uma pessoa faz de uma determinada qualidade em sua vida cotidiana poderia melhorar nosso conhecimento de como a cultura é importante no desenvolvimento e na ma­nifestação dessa qualidade; e estudos rigo­rosos, quantitativos e interculturais pode­riam revelar mais informações sobre como uma qualidade leva a um determinado re­sultado voltado na vida ou está associada a ele em uma cultura, mas a outro, em outra.

Outra forma de desvelar as nuanças culturais associadas a um constructo ou processo positivo é perguntar às pessoas como uma determinada qualidade ganhou força em suas vidas cotidianas. Por exem­plo, o “Teste de esperança: cabeça, coração, sagrado” se mostrou uma maneira eficaz de começar discussões (dentro e fora de sessões de terapia) e exposições sobre a es­perança possibilita que as pessoas reflitam sobre a história de como a esperança veio a ser importante em suas vidas e a fazer parte de sua cultura. Introduzimos esse tes­te da seguinte forma (Lopez, 2005, p. 1):

Hoje falaremos do poder da esperança em nossa vida. Antes de começar, preciso sa­ber como vocês entendem essa coisa cha­mada esperança. O que faremos é o se­guinte: levantem as duas mãos (o monitor levanta as mãos). Quando eu contar até três, quero que apontem de onde vem a SUA esperança. Em função da origem e de todas as experiências de vida de vocês, onde vocês acham que sua experiência se origina... em sua cabeça (o monitor apon­ta para a cabeça), essa parte pensante de vocês, em seu coração (o monitor aponta para o coração), do amor que vocês têm por outras pessoas e elas por vocês, ou do sagrado (o monitor aponta para cima e para tudo ao redor), sua vida espiritual? Agora, podem usar as duas mãos para apontar para um lugar se acharem que sua esperança vem daquele lugar, ou po­dem usar uma mão para apontar para um lugar e a outras para apontar para outro (o monitor demonstra). Alguma pergun­ta? Então, quando eu contar até três, apontem para o lugar de onde vem sua esperança... 1, 2, 3.

Inevitavelmente, há uma diversidade de gestos que captam as visões das pesso­as acerca de sua esperança. À medida que olham ao redor da sala, os participantes começam a fazer perguntas uns aos outros e, às vezes, iniciam histórias. Algumas des­sas histórias sobre a esperança são conta­das ao grupo mais amplo, e a base cultural da esperança de cada pessoa fica mais evi­dente. A esperança, como a entendem as pessoas leigas, está claramente baseada em visões, valores e experiências.

Chang (1996a, 1996b), em uma sé­rie de estudos quantitativos sobre [95] otimismo em asiático-americanos e caucasianos, destacou a importância de se entender a equivalência dos constructos entre grupos culturais. Em um estudo, Chang (1996a) examinou a utilidade do otimismo e do pessimismo para predizer comportamentos em relação a solução de problemas, sintomas depressivos, sintomas psicológicos gerais e sintomas físicos. Em geral, os resultados desse estudo revelam que os asiático-ame­ricanos foram muito mais pessimistas do que os caucasianos (segundo o Extended life orientation test; Chang, Maydeu-Olivares e D’Zurilla,1997), mas não muito diferentes dos caucasianos em seu nível de otimismo. Essas conclusões foram corrobo­radas quando se examinaram dados de uma mostra independente (Chang, 1996b). Chang aponta para o fato de que suas con­clusões podem sugerir que os asiático-ame­ricanos são geralmente mais negativos em sua afetividade do que os cáucaso-americanos, exceto pelo fato de que o autor não encontrou diferenças significativas nos sin­tomas depressivos informados entre os dois grupos. Na verdade, o otimismo teve corre­lação negativa com os sintomas psicológicos e físicos gerais para os ásio-americanos, mas não para os cáucaso-americanos. Além dis­so, a solução de problemas apresentou correlação negativa com sintomas depressivos para ásio-americanos, mas nenhuma rela­ção para os caucasianos. Por fim, foi reve­lado que, enquanto o pessimismo apresen­tou correlação negativa com os comporta­mentos de solução de problemas para os caucasianos, a correlação para os ásio-ame­ricanos foi positiva.

Até mesmo em casos em que pessoas de diferentes origens usam estratégias co­muns de formas semelhantes, os benefícios dessas estratégias muitas vezes não são os mesmos. Sendo assim, devemos ter caute­la ao prescrever determinadas estratégias de coping que, na superfície, parecem ser de beneficio universal. Consideremos ou­tro exemplo: Shaw e colaboradores (1997) concluíram que o uso de quatro estraté­gias de coping parecia transcender a cultu­ra (ou eram valorizadas da mesma forma nas culturas) para parentes que eram cuidadores (os participantes de Xangai, na China, e de San Diego, nos Estados Uni­dos) que cuidavam de um ente querido que enfrentava a doença de Alzheimer. Essas quatro estratégias envolviam:

  1. agir;
  2. usar o apoio social;
  3. reavaliar cognitivamente situações da vida; e
  4. negar os problemas de saúde e suas de­mandas ou evitar pensar a respeito.

Contudo, os benefícios dessas quatro estratégias não eram comuns entre dife­rentes grupos culturais. Os resultados eram coerentes com outras pesquisas que indi­cavam que as mesmas estratégias de coping têm efeitos específicos em cada cultura (Liu, 1986).

As discussões com clientes, junto com estudos quantitativos e qualitativos bem-delineados com participantes, podem ofe­recer bons dados sobre a equivalência dos constructos e processos positivos em dis­tintas culturas. Com esses dados na mão, seremos mais capazes de avaliar quais qualidades beneficiam a quem (em quais si­tuações) e quais intervenções positivas po­dem ajudar as pessoas a criar vidas melho­res para si.

A medida que os profissionais tentam aprimorar as qualidades em grupos cultu­ralmente diversificados de pessoas (vide o Capítulo 15, junto com Linley e Joseph [2004] para discussões sobre psicologia po­sitiva na prática), devemos nos fazer e res­ponder a seguinte pergunta: “O que funciona para quem?”.

Determinando as bases do bem-viver

Como foi sugerido na seção anterior, as visões culturais das pessoas em relação a perdão, esperança, otimismo, enfrentamento, independência, coletivismo, [96] espiritualidade, religião e muitos outros tópicos podem ter influência sobre como determi­nadas qualidades funcionam em suas vidas, como elas respondem a esforços para aprimorar qualidades pessoais e quais re­sultados na vida elas valorizam. Nossa ver­são de uma história comum, que chama­mos de “O sábio do golfo”, corporifica al­gumas dessas questões. 

As visões sobre o bem-viver são cons­truídas pessoalmente ao longo de nossa vida. No início, temos demandas naturais que persistem, como comer e dormir, e, à medida que nos tomamos mais cônscios de nosso entorno, vinculamos nossas deman­das naturais a outras, culturais, como co­mer determinados alimentos e adotar ri­tuais para dormir. Esse vínculo de nossas necessidades naturais com as influências culturais define os contornos de nosso dia a dia (Baumeister e Vohs, 2002). A partir das experiências de nosso cotidiano, cons­truímos nossas visões pessoais sobre o que é a vida e formamos visões de mundo (Koltko-Rivera, 2004), ou “forma[s] de des­crever o universo e a vida nele, tanto em termos do que é quanto do que deveria ser” (p. 4). Teoricamente, nossa visão pessoal do mundo define quais motivações e com­portamentos são desejáveis e quais são in­desejáveis e, em última análise, quais ob jetivos de vida deveriam ser buscados (Koltko-Rivera). Dado que nossas experiên­cias culturais podem estar intrinsecamente ligadas ao que consideramos como as bases do bem-viver, seria razoável crer que todas as pessoas (no mundo) desejam a fe­licidade (como a definem os psicólogos positivos norte-americanos; vide o Capítu­lo 7)? Ou há resultados na vida que são tão valorizados e valorizáveis quanto a fe­licidade? Essas são perguntas que podem ser exploradas em uma discussão casual entre amigos (recomendamos que você a faça), mas também devem ser examinadas empiricamente. Uma pesquisa mundial rea­lizada com rigor científico, como a que está atualmente sendo promovida pela Organi­zação Gallup, pode esclarecer as grandes esperanças das pessoas. O futuro trabalho e a pesquisa em psicologia positiva tam­bém devem levar em consideração a possi­bilidade de que as forças culturais influen­ciem aquilo que os indivíduos consideram como as bases do bem-viver.

Reflexões finais sobre a complexidade das influências culturais

A psicologia e os futuros psicólogos positivos continuarão a lutar para enten­der a complexidade das influências cultu­rais sobre o desenvolvimento e a manifes­ tação das características pessoais positivas e os resultados desejáveis na vida. A di­versidade cultural cada vez maior dos Estados Unidos, junto com rápidos avan­ços tecnológicos que facilitam nossa interação com pessoas de todo o mundo (Friedman, 2005), irá ultrapassar o ritmo de nossas descobertas sobre os papéis es­pecíficos que as culturas cumprem na psi­cologia. Dado que não se pode ter certeza em relação a questões como a universali­dade de determinadas qualidades ou ate onde a cultura modifica a forma como uma qualidade se manifesta, devemos fazer o melhor que pudermos para determinar se e como “a cultura é importante” em cada interação com um cliente ou participantes de pesquisa.

Os avanços em direção ao objetivo de levar em conta a cultura como influência básica no desenvolvimento e na manifes­tação das qualidades e do bem-viver hu­manos em nossas pesquisas e em nossa prática podem ser mais facilitados quando se tem consciência daquilo em que se acre­dita em termos da interação entre fenôme­nos culturais e psicológicos. Por meio de nossas experiências pessoais e profissionais, temos feito alguns progressos no sentide de situar o positivo em um contexto cultu­ral. Nossas atuais visões ou pressupostos se baseiam no que se sabe e no que não se sabe sobre qualidades e cultura humanas... e estão definitivamente abertas à análise crítica e ao debate. Em primeiro lugar, a qualidade psicológica é universal. Em di­versas épocas, lugares e culturas, a maio­ria das pessoas desenvolveu e refinou qua­lidades extraordinárias que promovem a adaptação e a busca de uma vida melhor. Em segundo, não há qualidades universais. Embora a maioria das pessoas as manifes­te, a natureza da manifestação difere sutilmente e nem tanto em diferentes épo­cas, lugares e culturas. Em terceiro lugar, os contextos afetam a forma como as qua­lidades são desenvolvidas, definidas, ma­nifestadas e aprimoradas, e nosso enten­dimento desses contextos contribui para uma apresentação diversificada da [98] capacidade humana. A história, a passagem do tempo, a cultura, as situações e os am­bientes, as perspectivas profissionais e as potencialidades humanas são determina­das reciprocamente. Quarto, a cultura é reflexo e determinante dos objetivos de vida que valorizamos e buscamos. O bem-viver está na mente de quem o vivência, e a visão daquilo que é importante será a força motriz de nossos objetivos na vida.

Psicologia - Psicologia positiva
Saúde - Prevenção, Prevenção primária
7/24/2020 7:00:30 PM | Por Richard O. Straub
Permanecendo saudável: Prevenção primária e psicologia positiva

Quando Sara Snodgrass encontrou um nôdulo em seu seio, seus primeiros pensamentos foram a tia e a mãe, que morreram após lutar contra o câncer de mama. Depois de ser diagnosticada com câncer, sua tia “foi para casa, fechou todas as cortinas, recusou­se a sair exceto para as quimioterapias e recebia pouquíssimas visitas. Ela esperou pela morte” (Snodgrass, 1998, p. 3). A biópsia de Sara foi seguida por uma lumpectomia (remoção do tumor maligno) e dois meses de radioterapia. Embora o médico e ela tivessem esperança de que tivesse se curado, menos de um ano depois, foram encontradas metástases em seu abdomem. Em suas palavras, ela havia "submergido no câncer" desde então, tendo passado por três cirurgias, cinco ciclos diferentes de quimioterapia, dois tipos de terapia hormonal, três meses de radioterapia, um transplante de medula e um transplante de células-tronco. No decorrer do tratamento, ela também sofria dores imprevisíveis e debilitantes de 10 a 14 dias por mês.

Todavia, ao contrário de sua tia. Sara continuou seu trabalho como professora universitária, enquanto fazia cirurgias, radioterapia e quimioterapia. Determinada a não deixar o câncer interferir em sua vida, também continuou a mergulhar, esquiar e fazer outras atividades que surgiam de seu otimismo, seu senso de domínio pessoal e sua confiança naturais. E ela assumiu o controle de seu tratamento, aprendendo tudo o que pudesse sobre ele, tomando suas próprias decisões e recusando-se a trabalhar com médicos que não a tratassem com respeito e aceitassem seu desejo de manter um sentido de controle sobre a vida.

Talvez o mais notável de tudo seja a convicção de Sara de que seu câncer levou a uma reorganizaçao de sua autopercepção, seus relacionamentos e sua filosofia de vida. Essa convicção a ensinou a viver mais no presente e a não ter preocupação com o futuro. Ela parou de se preocupar se encontraria o homem certo, se seus alunos lhe dariam boas avaliações e se teria dinheiro suficiente para viver de forma confortável durante a aposentadoria. Aprendeu também que os relacionamentos com amigos e familiares são a parte mais importante de sua vida. Quando pensa sobre morrer, ela diz: “Não vou dizer que queria ter escrito mais artigos. Porém, posso dizer que queria ter visto ou falado com mais amigos ou conhecidos com quem perdi contato" E é isso que ela está fazendo, se correspondendo, telefonando e viajando para renovar velhos relacionamentos e se divertindo em novas relações que ampliaram sua rede de apoio social por todo o país.

De uma perspectiva estatística, apenas 15% das pacientes com metástase do câncer de mama vivem cinco anos. Ainda assim, em oito anos, o câncer de Sara nâo se espalhou e cresceu deforma imperceptível. Igualmente importante, Sara acredita que está evoluindo [144] como pessoa e experimentando a vida de um modo mais positivo do que antes. Conforme sua própria descrição, sua experiência da adversidade trouxe benefícios inesperados que permitiram florescer psicologicamente.

A relação entre o estilo de vida e a saúde desencadeou grande esforço de pesquisa, visando a prevenir doenças e ferimentos. Às vezes, a doença não pode ser prevenida, como no caso de Sara. Ainda assim, mesmo nesses casos extremos, desenvolver nossas potencialidades humanas pode nos dar a capacidade de florescer. Iniciamos este capítulo considerando a conexão entre o comportamento e a saúde. Depois disso, exploramos de que maneira o foco biopsicossocial da psicologia da saúde em abordagens baseadas em potencialidades para  aprevenção, primeiro, da psicologia positiva, em segundo lugar, podem ajudar a formar indivíduos, famílias e comunidades saudáveis.

Saúde e comportamento

É difícil imaginar uma atividade ou um comportamento que não influenciem a saúde de alguma forma para melhor ou pior, direta ou indiretamente, de imediato ou a longo prazo. Os comportamentos de saúde são comportamentos das pessoas para melhorar ou manter sua saúde. Exercitar-se com regularidade, usar protetor solar, seguir uma dieta com baixo teor de gordura, dormir bem, praticar sexo seguro e usar o cinto de segurança são comportamentos que ajudam a "imunizar" você contra doenças e ferimentos.Exemplos menos óbvios incluem passatempos prazerosos, meditação, rir, férias regulares e até ter um animal de estimação. Essas atividades ajudam muitas pessoas a lidar com o estresse e manter uma perspectiva otimista sobre a vida.

Visto que os comportamentos de saúde ocorrem em um continuum, alguns deles podem ter tanto um impacto positivo quanto negativo sobre a saúde (Schocnborn et al., 2004). Por exemplo, praticar exercícios e fazer dieta podem ocasionar uma perda de peso benéfica; se levados ao extremo, contudo, pode ser desencadeado um “efeito sanfona” de perda e ganho de peso que pode ser prejudicial à saúde. De maneira semelhante, a classificação de uso “saudável” de álcool é problemática, pois, ainda que abundem estudos sobre os benefícios á saúde do uso leve ou moderado do álcool, exatamente o que constitui esse"leve" ou "moderado" parece depender do gênero e de outras características da pessoa (Green et al., 2004).

O abuso de álcool é exemplo de comportamento de risco para a saúde que tem impacto negativo direto sobre a saúde física. Outras atitudes influenciam a saúde diretamente por meio de sua associação com comportamentos que tenham impacto direto sobre a saúde. Beber muito calé, por exemplo, pode aumentar o risco de doenças cardíacas, pois muitas pessoas que tomam caté em excesso também fumam e praticam outros comportamentos de risco que podem aumentar a ameaça de cardiopatia (Cornelis et al., 2006).

Como parte de seu projeto Youth Risk Behavior Surveillance, o Centers For Disease Control and Prevention (2010) identificou os seguintes comportamentos de risco à saúde em geral com início na juventude que colocam as pessoas em situação de risco de morte prematura, deficiência e doenças crônicas: 

1.    Fumar e outras formas de uso de tabaco;

2.    Comer alimentos com alto teor de gordura e baixo de fibras;

3.    Não fazer atividades físicas suficientes;

4.    Abusar de álcool ou outras substâncias (incluindo as de prescrição);

5.    Não usar métodos médicos comprovados para prevenir ou diagnosticar doenças precocemente (p. ex., vacinas para gripe, decisões saudáveis relacionadas com o sexo, papanicolau, colonoscopias, mamogramas);

6.    Participar de comportamento violento ou que possa causar lesões involuntárias (p. ex., dirigir intoxicado).

Alguns comportamentos afetam imediatamente a saúde por exemplo, envolver-se em um acidente automobilístico sem usar cinto de segurança. Outros, como comer uma dieta com alto teor de gordura, tém efeito a longo prazo. E alguns comportamentos, como lazer exercícios ou fumar cigarro, apresentam um efeito imediato e a longo prazo sobre a saúde. Os comportamentos relacionados com a saúde interagem e frequentemente são inter-relacionados. Uma pessoa que fuma, por exemplo, também pode ingerir álcool e quantidades excessivas de café. O efeito combinado desses comportamentos sobre a saúde é mais forte do que se a pessoa realizasse apenas um deles. De modo semelhante, praticar exercícios, comer alimentos saudáveis e beber bastante água também tendem a ocorrer juntos, mas de modo positivo. Às vezes, a pessoa pode ter comportamentos saudáveis e insalubres – por exemplo, beber álcool e praticar exercícios. Nesses casos, um pode minimizar o efeito do outro. Finalmente, um comportamento de saúde pode substituir um insalubre. Por exemplo, muitos ex-fumantes verificam que a prática regular de exercícios aeróbicos proporciona um substituto saudável (e eficaz) para a nicotina.

Qual é o impacto potencial de adotar um estilo de vida mais saudável? Em um estudo epidemiológico clássico iniciado em 1965, Lester Breslow e Norman Breslow começaram a acompanhar a saúde e os hábitos do estilo de vida de homens residentes em Alameda County, na Califórnia. Durante os muitos anos desse estudo notável, os efeitos salutares de sete hábitos de saúde dormir de 7 a 8 horas diariamente, nunca fumar, estar próximo de seu peso ideal, beber álcool com moderação, fazer exercícios físicos com regularidade, comer desjejum e evitar comer entre as refeições mostraram-se surpreendentes. [145] 

Teorias sobre o comportamento de saúde

Os psicólogos da saúde desenvolveram diversas teorias para explicar por que as pessoas praticam ou não determinados comportamentos de saúde. Nesta seção, discutiremos algumas das teorias mais influentes.

O modelo de crença de saúde

Segundo o modelo de crença de saúde, as decisões relacionadas com o comportamento de saúde se baseiam em quatro fatores que interagem e influenciam nossas percepções a respeito de ameaças à saúde([Strecher e Rosenstock, 1997]):

§ Suscetibilidade percebida. Algumas pessoas preocupam-se constantemente com sua vulnerabilidade a ameaças à saúde, como o virus da imunodeficiência humana (HIV); outras acreditam que não estejam em perigo. Quanto maior a suscetibilidade percebida, maior a motivação para praticar comportamentos que promovam a saúde. Os adolescentes, especialmente, parecem viver suas vidas seguindo uma fábula da invencibilidade. Eles têm um falso senso de “invulnerabilidade” que fornece pouca motivação para mudar seus comportamentos de risco;

§ Gravidade percebida de ameaça à saúde. Entre os aspectos considerados estão o fato de que dor, deficiência ou morte podem ocorrer, assim como se a doença terá impacto para a família, os amigos e os colegas de trabalho. Sara Snodrass (da introdução do capítulo) reconheceu a gravidade de sua condição e dedicou-se a ter comportamentos e modos de pensar saudáveis;

§ Benefícios e barreiras percebidos ao tratamento. Ao avaliar os prós e os contras de determinado comportamento de saúde, a pessoa decide se seus benefícios percebidos como evitar uma doença potencialmente fatal excedem as barreiras como causar efeitos colaterais desagradáveis ou desencadear uma reação negativa de seus amigos. Por exemplo, alguém pode ignorar as enormes vantagens de parar de fumar por preocupação com engordar e perder a beleza;

§ Dicas para ação. Conselhos de amigos, campanhas de saúde nos meios de comunicação e fatores como idade, status socioeconômico e gênero também influenciam a probabilidade de que o indivíduo venha a agir de determinada maneira.

Em resumo, o modelo de crença de saúde é uma teoria lógica a qual propõe que as pessoas irão agir para afastar ou controlar condições que induzem doenças: [147]

1.    se considerarem que são suscetíveis à condição;

2.    se acreditarem que a condição possa trazer consequências pessoais sérias;

3.    se acreditarem que uma linhade ação disponível irá reduzir sua suscetibilidade ou a gravidade da condição;

4.    se acreditarem que os custos de agir dessa forma serão superados pelos benefícios ocasionados por fazê-lo; e

5.    se as influências ambientais incentivarem a mudança (Strecher e Rosenstock, 1997).

O modelo de crença de saúde foi o primeiro modelo de saúde submetido a pesquisas extensivas. Aprendemos que as pessoas têm mais probabilidade de fazer exames dentais regulares, praticar sexo seguro, comer de maneira saudável, fazer exames para câncer colorretal e outras formas de câncer e participar de outros comportamentos protetores da saúde se sentirem-se suscetíveis aos diversos problemas de saúde que poderiam advir de não fazê-lo (Deshpande, Basil e Basil, 2009; Manne et al., 2002), Estudos também mostram que intervenções educacionais visando a mudar as crenças de saúde aumentam os comportamentos de proteção à saúde. Por exemplo, mulheres que recebem mensagens educativas objetivando aumentar seu conhecimento dos benefícios de fazer mamografia têm quase quatro vezes mais probabilidade de realizar o exame do que mulheres de um grupo de controle (Champion, 1994).

Apesar desses sucessos, alguns estudos verificaram que as crenças de saúde apenas conseguem prever comportamentos relacionados com a saúde de forma modesta e que outros fatores, como a percepção de barreiras contra a prática de comportamentos saudáveis, são determinantes mais importantes (Janz et al., 1997). Por exemplo, em um importante estudo prospectivo, Ruth Hyman e colaboradores (1994) verificaram que a percepção de suscetibilidade ao câncer de mama não conseguiu prever o uso de serviços de mamografia pelas participantes do estudo, embora houvesse a percepção de benefícios e de barreiras (como o fato de ter uma clínica acessível e um médico que recomendasse o exame). O mesmo estudo verificou que a etnia de uma mulher era o melhor prognóstico de todos, havendo significativamente mais probabilidade de as afro-americanas obterem mamografias com regularidade do que as norte-americanas de origem europeia.

Outros críticos afirmam que o modelo de crença de saúde concentre-se demais em atitudes sobre o risco percebido, em vez de respostas emocionais, que podem prever o comportamento de forma mais precisa (Lawton, Conner e Parker, 2007). O modelo de crença de saúde representa uma perspectiva relevante, mas é incompleto. Vamos ampliar nosso pensamento com outra teoria que focaliza o importante papel que as intenções e a autoeficácia das pessoas desempenham em seus comportamentos de saúde.

A teoria do comportamento planejado

Assim como o modelo de crença de saúde, a teoria do comportamento planejado especifica relações entre atitudes e comportamentos (Ajzen, 1985) (Fig. 6.3). A teoria sustenta que a melhor maneira de prever se um comportamento irá ocorrer é medir a intenção comportamental da pessoa - a decisão de participar de determinado comportamento relacionado com a saúde ou de abster-se dele. As intenções comportamentais são moldadas por três fatores. O primeiro é nossa atitude em relação ao comportamento, que é determinada por nossa crença de que o comportamento levará a certos resultados. Por exemplo, podemos decidir que reduzir a quantidade de gordura saturada em nossa dieta é bom, pois acreditamos que diminuir a gordura levará a perda de peso e mais beleza pessoal.

O segundo determinante da intenção de agir é a norma subjetiva, que reflete nossa motivação para aderir às visões de outras pessoas com relação ao [148] comportamento em questão. Por exemplo, podemos ter dificuldade de mudar para uma dieta com pouca gordura se essa modificação não estiver de acordo com o comportamento de nossos amigos e parentes. Temos fortes intenções para agir quando nossas atitudes em relação ao comportamento em questão são positivas e acreditamos que as pessoas também o consideram apropriado.

O terceiro componente das intenções comportamentais é a percepção de controle do comportamento, que se refere a nossa expectativa de sucesso em realizar o comportamento de saúde esperado. Quanto mais recursos e oportunidades para efetuar uma mudança comportamental acretarmos ter, maior nossa crença de que possamos de fato mudar o comportamento. Se, ao mudar uma dieta com baixo teor de gordura, tivermos confiança de que seremos capazes de encontrar receitas saudáveis, comprar os ingredientes, ter tempo para preparar as refeições e ainda gostar do sabor mesmo com uma dieta mais restrita, teremos uma inteção comportamental mais forte do que algém que esteja em dúvida.

As atitudes e inteções autorrelatadas pelas pessoas preveem uma variedade de ações que promovem a saúde, incluindo fazer testes genéticos para doenças, tomar medicamento, perder peso, fazer exercícios, comer alimentos saudáveis, usar preservativo, não fumar, fazer autoexame dos seios ou dos testículos, realizar mamografias e fazer acompanhamento pré-natal, exames de câncer, consultas de acompanhamento para resultados anormais em exames de saúde e dispor-se a doar sangue.

Devido a sua ênfase no planejamento, não é de surpreender que o modelo do comportamento planejado seja mais preciso para prever comportamentos intencionais orientados para objetivos e encaixe-se em um modelo racional. Em alguns casos, como no consumo de substâncias tóxicas, no comportamento sexual pré-conjugal e ao dirigir alcoolizado, o modelo obteve menos sucesso. Talvez isso se deva em parte ao fato de que, para muitas pessoas, especialmente adolescentes e adultos jovens, esses comportamentos de saúde costumam ser reações a situações sociais. Por exemplo, jovens indo a festas em que outras pessoas fumem maconha ou bebam em excesso ou cedam às demandass de um(a) namorado(a) que queira sexo. Conforme observou Frederick Gibbons (1988), em tais cenários, a pergunta: “O que você está disposto a fazer?” provavelmente descreva o apuro em que se encontra o jovem (e prevê seu comportamento subsequente) de forma mais precisa do que: “O que você planeja fazer?”.

Disposição comportamentalrefere-se à motivação de uma pessoa em dado momento para envolver-se em um comportamento de risco. Assim como a intenção comportamental, a disposição comportamental é função de normas subjetivas. Uma maior disposição comportamental está associada a uma percepção de que outras pessoas afetivamente significativas, em especial amigos, participam e aprovam o comportamento em questão. Além disso, assim como a intenção comportamental, a maior disposição comportamental também esta ligada às nossas atitudes positivas para com o comportamento. Por fim, o fato de o comportamento já haver sido realizado em ocasião anterior está associado à maior intenção e disposição de realizá-lo novamente.

Disposição comportamental difere de intenção comportamental no sentido de que ela é reativa, em vez de deliberativa(Gibbons et al., 1998). Os comportamentos de risco e aqueles que comprometem a saúde com frequência são eventos sociais espontâneos, nos quais as pessoas seguem o líder do grupo, em vez de tomarem a decisão pessoal de seguir aquele comportamento. Por essa razão, os comportamentos de risco possuem imagens sociais claras que influenciam a disposição momentânea de uma pessoa de se comportar de certa forma. Uma quantidade substancial de pesquisas recentes corrobora o conceito de disposição comportamental em comportamentos relacionados com a saúde. Pesquisas realizadas com adolescentes sexualmente ativos, por exemplo, demonstram que a atividade sexual costuma ser reativa, em vez de planejada (Ingham et al., 1991). Parece que o mesmo ocorre com o ato de dirigir alcoolizado (Gerrard et al., 1996).

O modelo transteórico

Um tio obeso que tenho continuava a fumar e seguir uma dieta com alto conteúdo de gordura apesar da recomendação de seu médico para modificar esses comportamentos que comprometem a saúde. Quando o pressionaram para explicar por que não estava mudando seus maus hábitos de saúde, respondeu que estava ciente dos riscos e acreditava que devia melhorar seu estilo de vida mas que não estava “pronto”. Alguns meses mais tarde, depois de um ataque cardíaco quase fatal, ele declarou que estava pronto para largar o cigarro. E assim o fez. Infelizmente, também "desistiu" seis meses depois. Ele lutou para alcançar esse objetivo até o final de sua vida. Será que meu tio não lembra alguém que vocé conheça?

As teorias do comportamento de saúde que consideramos até aqui tentam identificar variáveis que influenciem atitudes e comportamentos relacionados com a saúde e combiná-los em uma formula que preveja a probabilidade de que determinado indivíduo aja de certa maneira em determinada situação. Por exemplo, a teoria do comportamento planejado poderia prever que meu tio continuaria a fumar porque tinha uma atitude positiva em relação ao cigarro, já que fumar era esperado entre seus amigos e dava um sentimento de controle sobre a vida. O modelo transteórico (também denominado modelo de estágios da mudança), entretanto, sustenta que o comportamento muda sistematicamente ao longo de cinco estágios distintos(Prochaska, 1994; Prochaska et al., 1992).

Esse modelo afirma que as pessoas progridem por meio de cinco estágios ao alterar comportamentos relacionados com a saúde. Os estágios são definidos em termos de comportamentos passados e intenções de ações futuras.

Estágio I: Pré-contemplação. Durante este estágio, as pessoas não estão pensando seriamente sobre mudar seu comportamento; podem até evitar reconhecer que o comportamento deva ser mudado.

Estágio 2: Contemplação. Neste estágio, as pessoas reconhecem a existência de um problema (como o hábito de fumar) e estão considerando seriamente a possibilidade de mudarem seu comportamento (parar de fumar) em um luturo próximo (em geral, em seis meses). [150]

Estágio 3: Preparação. Este estágio envolve pensamentos e ações. Ao prepararem-se para parar de fumar, por exemplo, as pessoas obtêm uma receita para um adesivo de nicotina, entram para um grupo de apoio, buscam suporte familiar e fazem outros planos específicos.

Estágio 4: Ação. No decorrer deste estágio, as pessoas já mudaram o comportamento e estão tentando manter os esforços.

Estágio 5: Manutenção. As pessoas nesta etapa continuam a obter sucesso em seus esforços para alcançar seu objetivo final. Embora este estágio possa manter-se indefinidamente, sua duração em geral é definida de forma arbitrária em seis meses.

O modelo de estágios da mudança reconhece que as pessoas mudam entre os estágios de maneira não linear, como em uma espiral(Velicer e Prochaska, 2008). Como meu tio, muitos ex-fumantes recentes têm recaída entre a manutenção e a preparação, seguindo um ciclo dos estágios 2 a 5 uma ou mais vezes até que concluam sua mudança comportamental.

Embora o modelo transteórico tenha mais êxito para prever certos comportamentos do que outros (Bogart e Delahanty, 2004; Rosen, 2000), a pesquisa costuma confirmar que pessoas em estágios mais elevados têm mais sucesso ao tentar melhorar seus comportamentos relacionados com a saúde, como adotar uma dieta saudável (Armitage et al., 2004), testagem domiciliar para nível de radônio (Weinstein e Sandman, 1992), prevenção da osteoporose (Blalock et al., 1996), vacinas contra hepatite B (Hammer, 1997), tabagismo (DiClemente, 1991), exames para câncer de mama e colorretal (Champion et al., 2007; Lauver et al., 2003; Manne et al., 2002), comportamentos sexuais seguros (Bowen e Trotter, 1995), prevenção do HIV (Prochaska et al., 1994) e dieta (Glanz et al., 1994).

Outras pesquisas mostram que as teorias de estágios, como o modelo transteórico, têm uma vantagem bastante prática: promovem o desenvolvimento de intervenções de saúde mais efetivas, proporcionando uma “receita” para a mudança comportamental ideal(Sutton, 1996). Isso possibilita aos psicólogos da saúde e a outros profissionais combinarem a intervenção com as necessidades específicas de [151] uma pessoa que esteja “presa” em determinado estágio (Perz et al., 1996). O modelo também reconhece que diferentes processos comportamentais, cognitivos e sociais podem assumir a dianteira quando tentamos alcançar nossos objetivos básicos de saúde. Entre eles, estão a conscientização (p. ex., procurar mais informações sobre um comportamento que compromete a saúde), contracondicionamento (substituir comportamentos alternativos pelo comportamento-alvo) e uso de reforço (recompensar-se ou ser recompensado pelo sucesso).

Vejamos um exemplo. É provável que tentar convencer uma pessoa obesa que esteja no estágio de pré-contemplação a perder peso fracasse, pois as pessoas que se encontram nesse estágio não acreditam que estejam com um problema de saúde. A intervenção mais efetiva nesse momento seria incentivá-la a considerar mudar seu comportamento, talvez fornecendo informações sobre os riscos da obesidade para a saúde. No entanto, uma pessoa no estágio de preparação ou ação não precisa de mais persuasão para mudar seu comportamento. Todavia, ela pode precisar de dicas específicas sobre como implementar um plano de ação efetivo.

Abordando os benefícios percebidos de comportamentos de risco elevado

Ainda que o modelo de crença de saúde, a teoria do comportamento planejado e o modelo transteórico incluam benefícios e riscos percebidos, a intenção desses modelos era, a princípio, explicar comportamentos preventivos motivados pelo desejo de evitar doenças e lesões. Consequentemente, esses modelos tendem a enfocar os riscos de comportamentos insalubres, em vez de quaisquer benefícios percebidos de comportamentos de alto risco para o indivíduo. Os pesquisadores observaram, contudo, que os benefícios percebidos são importantes preditores de certos comportamentos, como o ato de beber em adolescentes (Katz et al., 2000), o uso de tabaco (Pollay, 2000) e sexo desprotegido (Parsons et al., 2000).

Em uma pesquisa com estudantes do quinto, sétimo e nono anos, Julie Goldberg e colaboradores (2002) apresentaram aos participantes o seguinte cenário:

Imagine, agora, que vocé esteja em uma festa. Durante a festa, você toma algumas doses de bebidas alcoólicas (como duas taças de vinho, dois copos de cerveja ou duas doses de destilados). Mesmo que isso seja algo que você jamais faria, tente imaginar.

Depois de ler o cenário, os estudantes devem responder várias perguntas abertas sobre as coisas boas e ruins que poderiam ocorrer se bebessem em uma festa. Eles também devem falar de sua experiência verdadeira com o álcool e as consequência de beber. Seis meses depois, são questionados mais uma vez sobre seu comportamento com a bebida.

Os pesquisadores descobriram muito sobre os benefícios percebidos da bebida. Mais que os alunos do quinto e sétimo anos, os do nono ano perceberam que os benefícios físicos e sociais do álcool (p. ex., “Gosto do barato que dá quando bebo”; “Vou me divertir mais na festa”) são mais prováveis, e os riscos físicos e sociais (p. ex., “Vou passar mal”; “Vou fazer algo de que depois vou me arrepender”), menos prováveis de acontecer.

Esses resultados têm uma implicação profunda para campanhas de educação em saúde voltadas para adolescentes. Embora os pesquisadores muitas vezes concluam que os adolescentes são irracionais em suas decisões, pois se envolvem cm comportamentos de risco mesmo conhecendo os riscos, [152] esses resultados sugerem que os jovens, de fato, ponderam os prós e contras de seus comportamentos. Mensagens mais efetivas sobre a saúde poderiam se concentrar em como os adolescentes podem obter os benefícios percebidos de comportamentos de risco à saúde de formas mais seguras. Por exemplo, as mensagens poderiam identificar outras maneiras de se sentir mais maduro e ser mais sociável em festas do que por meio da bebida.

Prevenção

Geralmente, pensamos na prevenção apenas em relação aos esforços para modificar o risco da pessoa antes que a doença a atinja. De fato, pesquisadores diferenciaram três tipos de prevenção, que são realizados antes, durante e depois de uma doença atacar.

Prevenção primária refere-se a ações que promovem a saúde, que são realizadas para prevenir que uma doença ou lesão ocorra. Exemplos de prevenção primária são usar cinto de segurança, seguir uma boa nutrição, fazer exercícios, não fumar, manter padrões saudáveis de sono e fazer exames de saúde regularmente.

Prevenção secundária envolve ações para identificar e tratar uma doença no começo de seu curso. No caso de uma pessoa com pressão alta, por exemplo, a prevenção secundária envolveria exames regulares para monitorar sintomas, o uso de medicamentos para a pressão e alterações na dieta.

Prevenção terciária envolve ações para conter ou retardar danos uma vez que a doença já tenha avançado além de seus estágios iniciais. Um exemplo de preverição terciária é o uso de radioterapia ou quimioterapia para destruir um tumor. A prevenção terciária também busca reabilitar as pessoas ao maior nível possível.

Embora menos efetiva em termos de custos e menos benéfica do que as prevenções primária ou secundária, a prevenção terciária é, de longe, a forma mais comum de cuidado de saúde. O cuidado terciário é muito mais fácil de implementar, pois os grupos-alvo adequados (pessoas com doenças ou lesões) são facilmente identificados. Além disso, pacientes em tratamento terciário em geral têm mais motivação para aderir ao tratamento e a outros comportamentos que promovam a saúde.

Apesar disso, neste capítulo, enfocaremos as iniciativas de prevenção primária dos psicólogos da saúde. Esses profissionais incentivam os médicos e outros trabalhadores na área da saúde a aconselharem seus pacientes. Por mais que essa atenção personalizada possa parecer efetiva, muitos médicos têm dificuldade em usar medidas preventivas. Uma razão para essa dificuldade é que as faculdades de medicina tradicionalmente colocam pouca ênfase em medidas preventivas. Outra é a falta de tempo, devido ao número de pessoas que os médicos precisam atender a cada dia.

Os psicólogos também promovem a saúde incentivando a ação legislativa e realizando campanhas educativas na mídia. Esses esforços focalizam muitos níveis, do individual à comunidade e à sociedade como um todo. Conforme discutido no Capítulo 1, esses objetivos devem aumentar o tempo de vida saudável, diminuir as disparidades em saúde entre diferentes segmentos da população e proporcionar acesso universal a serviços preventivos.

Às vezes, somos nossos piores inimigos na batalha pela saúde. Na adolescência e no começo da idade adulta, quando estamos desenvolvendo hábitos relacionados com a saúde, normalmente somos bastante saudáveis. Fumar cigarros, comer muita gordura e não fazer exercícios nessa época são coisas que não parecem ter efeito algum sobre a saúde. Desse modo, os jovens têm poucos incentivos imediatos para praticar bons comportamentos e corrigir mais hábitos relacionados com a saúde. [153]

Muitos comportamentos que promovem a saúde, como fazer exercícios vigorosos e seguir uma dieta com baixo teor de gordura, são menos prazerosos ou mais difíceis do que alternativas menos saudáveis. Se um comportamento (como comer quando está deprimido) causar alívio ou gratificação imediata, ou se não apresentá-lo proporciona desconforto imediato, será difícil eliminar tal comportamento.

Os comportamentos sexuais de alto risco que podem resultar em infecção por HIV e aids são um exemplo trágico desse principio. No período de 3 a 6 semana após a primeira exposição, algumas pessoas soropositivas desenvolvem irritação na garganta, febre e um rash parecido com sarampo. Essa forma precoce de infecção por HIV geralmente desaparece e às vezes é tão leve que nem sequer é lembrada. Podem passar meses ou anos sem outros sintomas explícitos. No decorrer desse período, o HIV está sendo produzido ativamente e enfraquecendo o sistema imune. Não se sabe o tempo exato necessário antes que a aids se desenvolva em determinado indivíduo. Alguns pesquisadores acreditam que o período de incubação - o tempo entre a exposição ao vírus e a primeira aparição de sintomas da doença - pode ser de até 20 anos. Quando a aids completa aparece, a morte (se não prevenida por novos tratamentos) costuma ocorrer nos próximos dois anos. As consequências negativas remotas e potenciais do comportamento de risco muitas vezes são diminuídas pelos prazeres imediatos do momento.

Vida saudável

O mito da “fonte da juventude” está presente nas histórias de quase todas as culturas e encontra sua expressão atual nos elixires, cremes e dispositivos supostamente rejuvenescedores que são alardeados em comerciais, em websites de medicina alternativa e em vitrines de farmácias. Afirmações de que as pessoas logo chegarão a viver 200 anos devido a megadoses de antioxidantes, vitaminas, ervas ou alguma outra “bala mágica” resultam em confusão a respeito da longevidade. Por décadas, os cientistas investigaram de forma sistemática as alegações de pessoas que excederam muito o tempo de vida normal e, em cada caso, essas explicações não puderam ser verificadas. [154]

Mesmo sem uma “bala mágica”, as pessoas na atualidade podem esperar viver muito mais do que coortes anteriores. As principais doenças dos nossos ancestrais, como a pólio, a catapora, o tétano, a difteria e a febre reumática, foram quase totalmente erradicadas.

Quando se concentram na expectativa de vida saudável, os psicólogos da saúde buscam reduzir a quantidade de tempo que os idosos passam em morbidade (deficientes, doentes ou com dor). Para ilustrar isso, considere dois irmãos gêmeos que, mesmo geneticamente idênticos e expostos aos mesmos riscos de saúde enquanto cresciam, tiveram experiências muito diferentes em relação à saúde desde a adolescência. O primeiro irmão fuma duas carteiras de cigarros por dia, é obeso, jamais faz exercício, tem uma visão exasperada e pessimista em relação à vida e come alimentos com quantidades excessivas de gordura animal e açúcar. O outro irmão busca um estilo de vida muito mais saudável, evitando o tabaco e o estresse excessivo, fazendo exercícios regularmente, observando sua dieta e desfrutando do apoio social de um círculo íntimo de familiares e amigos. Embora os dois irmãos tenham as mesmas vulnerabilidades genéticas a doenças pulmonares, circulatórias e cardiovasculares, o estilo de vida insalubre do primeiro o condena a um longo período de morbidade na vida adulta, começando por volta dos 45 anos de idade. Em comparação, o estilo de vida mais saudável do segundo irmão posterga a doença até muito mais adiante em sua vida. Se ele contrair alguma das doenças, é provável que seja menos grave, e a recuperação será mais rápida. Em alguns casos, como o câncer de pulmão, pode ser “postergado” para além do fim de sua vida.

Exercícios

Praticar exercícios é o mais perto que podemos chegar de uma fonte da juventude. Isso torna-se ainda mais importante à medida que as pessoas envelhecem, pois promove o bem-estar físico e psicológico e pode ajudar a desacelerar ou até reverter muitos dos efeitos do envelhecimento. A prática regular de exercícios pode reduzir o risco de doenças cardiovasculares, diabetes, muitos tipos de câncer e outras condições relacionadas com o estresse. Pessoas fisicamente ativas também têm níveis mais baixos de ansiedade e menos depressão. O mais importante para manter a vitalidade é o exercício aeróbico, no qual o coração acelera para bombear quantidades maiores de sangue, a respiração é mais profunda e mais frequente, e as células do corpo desenvolvem a capacidade de extrair quantidades crescentes de oxigênio do sangue. Além disso, exercícios aeróbicos com uso de pesos, como caminhar, correr e jogar com raquetes, ajudam a preservar a flexibilidade dos músculos, bem como manter a densidade óssea.

Foi demonstrado que fazer exercícios protege contra a osteoporose, uma doença caracterizada por um declínio na densidade óssea devido à perda de cálcio. Isso é especialmente verdadeiro em indivíduos que foram ativos durante a juventude, quando os minerais dos ossos estavam se acumulando (Hind e Burrows, 2007). Embora a osteoporose seja mais comum em mulheres na pós-menopausa, também ocorre em homens, assim como o efeito protetor dos exercícios. Por volta de 1 em cada 4 mulheres com mais de 60 anos tem osteoporose, sendo que mulheres brancas e asiáticas estão em maior risco do que as afro-americanas. A osteoporose resulta em mais de 1 milhão de fraturas ósseas por ano apenas nos Estados Unidos, entre as quais as mais debilitantes são as nos quadris. Em um estudo retrospectivo, mulheres e homens idosos descreveram seu nível de exercício na adolescência, novamente aos 30 anos e mais [155] uma vez aos 50 (Greendale et al., 1995). Tanto homens quanto mulheres com níveis maiores de atividade apresentaram densidade bem maior de minerais ósseos do que seus correlates sedentários.

Além de aumentar a força física e manter a densidade óssea, a prática regular de exercícios reduz o risco da pessoa idosa de duas das condições crônicas mais comuns na idade adulta: doença cardiovascular e câncer. Em um estudo, pesquisadores investigaram fatores de risco coronariano em homens idosos, de 65 a 84 anos (Caspersen et al., 1991). Mesmo exercícios moderados, como jardinagem e caminhadas, resultaram em aumentos significativos nas lipoproteínas de alta densidade (colesterol HDL) - o chamado “bom colesterol”—e reduziram o colesterol sérico total. A prática regular de exercícios está ligada a níveis mais baixos de triglícerídeos, que foram implicados na formação de placas ateroscleróticas (Lakka e Salonen, 1992), assim como em níveis mais baixos de lipoproteínas de baixa densidade (colesterol LDL), o colesterol “ruim”, e níveis maiores de HDL (Szapary, Bloedon e Foster, 2003). Como veremos no Capítulo 9, os exercícios também são uma arma valiosa no controle do diabetes tipo I(Coim el al., 2008).

Vários estudos amplos relatam que a atividade física também oferece proteção contra cânceres de colo e reto, mama, endométrio, próstata e pulmão(Miles, 2008; Thune e Furberg, 2001). Enfocando as práticas de caminhar, andar de bicicleta, correr, nadar, jogar tênis e golfe, Goya Wannamethee e colaboradores (1993) encontraram uma relação inversa entre o nível de atividade física e mortes por todos os tipos de câncer. A atividade física regular pode reduzir o risco de câncer, influenciando citocinas proinflamatórias (Stewart et al., 2007), que, por sua vez, têm efeitos benéficos sobre o desenvolvimento e crescimento de células tumorais (Rogers et al., 2008). Além disso, a atividade física promove o funcionamento das células imunológicas, retardando alguns declínios relacionados com a idade nos glóbulos brancos do sangue. Por exemplo, atletas que fazem treinamento de resistência preservam o cumprimento dos telômeros em seus glóbulos brancos — que, de outro modo, diminui sistematicamente em adultos sedentários que envelhecem (LaRocca, Seals e Pierce, 2010).

Os benefícios de fazer exercícios estendem-se ao nosso bem-estar psicológico, embora as evidências científicas sobre isso sejam menos conclusivas(Larun et al., 2006). Mesmo assim, parece claro que a prática regular de exercícios está associada a melhoras no humor e no bem-estar após a mesma (Moti et al., 2005). Estudos mostram que, com o tempo, os exercícios atuam como uma proteção efetiva contra o estresse (Trivedi et al., 2006), aumentam a autoestima e a autoeficácia (McAuley et al., 2003) e oferecem proteção contra depressão (Daley, 2008) e ansiedade (Wipfli, Rethorst e Landers, 2008).

A boa forma física em homens e mulheres retarda a mortalidade e pode estender a vida em dois anos ou mais. Em última análise, as pessoas podem “lucrar” com os benefícios dos exercícios, com uma maior longevidade como seus dividendos (Paffen- barger et al., 1986). Todavia, durante a velhice, a intensidade dos exercícios deve ser ajustada para refletir declínios no funcionamento cardiovascular e respiratório. Para alguns adultos, isso significa que uma caminhada substituí a corrida; para outros, como o ex maratonista Bill Rodgers, agora com mais de 60 anos, isso significa treinar uma corrida de seis minutos por milha, em vez de cinco.

Como diretriz, o relatório Healthy People 2000 recomenda 150 minutos de exercícios totais a cada semana, dos quais pelo menos 60 minutos envolvem atividades aeróbicas rítmicas e contínuas. Para muitos adultos, desligar a televisão serve como trampolim para a prática de exercícios e uma saúde melhor. O Family Heart Study mostrou que pessoas que assistiam uma hora de televisão por dia se exercitavam mais e tinham índices de massa corporal e outros fatores de risco coronariano) significatívamente menores do que pessoas que assistiam três horas de televisão por dia (Kronenberg et al., 2000;. [156]

Pode ser tarde demais para começar a fazer exercícios?

Não. Em um estudo, indivíduos frágeis que residiam em lares para idosos, com idades entre 72 e 98 anos, participaram de um programa de 10 semanas de treinamento em resistência e fortalecimento muscular, três vezes por semana (Raloff, 1996). Depois de 10 semanas, os sujeitos do grupo que fez exercícios mais que dobraram sua força muscular e aumentaram sua capacidade de subir escadas em 28%. Em outro estudo, Maria Fiatarone e colaboradores (1993) dividiram aleatoriamente 100 sujeitos com idade média de 87 anos em quatro grupos. Os sujeitos do primeiro grupo fizeram exercícios regulares para treinamento de resistência. Os do segundo grupo tomaram um suplemento multivitamínico diário. Os do terceiro grupo tomaram o suplemento e fizeram o treinamento de resistência. Os do quarto grupo poderiam fazer três atividades físicas de sua escolha (incluindo exercícios aeróbicos), mas não poderiam fazer o treinamento de resistência. No decorrer do estudo, a força muscular mais que dobrou nos grupos da resistência, com um aumento médio de 113%, comparado com um aumento minúsculo, de 3%, nos sujeitos do segundo grupo. Curiosamente, o grupo que fez exercícios e tomou o suplemento não apresentou melhora maior do que os grupos que fizeram exercícios, mas não tomaram suplementos.

Outras evidências de que nunca é tarde para começar a se exercitar advêm de estudos demonstrando que exercícios, mesmo em um ponto avançado da vida, ainda podem ajudar a prevenir ou reduzir a taxa de perda na densidade óssea. Em comparação com um grupo de controle de mulheres sedentárias, mulheres de 50 a 70 anos que foram colocadas em um grupo de exercícios, apresentaram uma perda bastante reduzida no conteúdo de minerais ósseos (Nelson ct al., 1994). Como um benefício adicional, as mulheres do grupo de exercícios aumentaram sua massa e força musculares. Juntos, esses benefícios são associados a menor morbidade e mortalidade entre idosos fisicamente ativos (Everett, Kinser e Ramsey, 2007).

Por que mais idosos não fazem exercícios?

Apesar dos documentados benefícios físicos e psicológicos da prática de exercícios por toda a vida, a porcentagem de pessoas que se exercitam regularmente diminui com a idade(Phillips et al., 2001). Porcentagens estimadas de 32% dos homens e 42% das mulheres nos Estados Unidos descrevem-se como sedentários (USCB, 2009). Por quê? Uma razão é que alguns adultos mais velhos relutam e até temem fazer exercícios demais devido aos mitos associados à prática de exercícios. Esses mitos envolvem a ideia de que os exercícios podem acelerar a perda de densidade óssea, causar artrite e até aumentar o risco de morrer de ataque cardíaco.De fato, é muito mais provável que o corpo enferruje do que se desgaste. Como diz o ditado: “Use ou perca!"

O comportamento de fazer exercícios também está relacionado com as crenças do indivíduo sobre os benefícios para a saúde, a confiança em sua capacidade de desempenhar certas habilidades físicas corretamente(autoeficácia para o exercício) e a automotivação. Acreditar que os exercícios possam ajudar a pessoa a viver uma vida mais longa e mais saudável é um forte estímulo para iniciar a fazé-los. Muitas pessoas idosas podem não ter informações básicas sobre os benefícios de atividades físicas apropriadas e podem considerar os exercícios difíceis, inúteis ou perigosos (Lee, 1993). Ou podem sentir que é tarde demais para melhorar sua saúde com exercícios, pois acreditam que os declínios na saúde são inevitáveis e irreversíveis com o aumento da idade (O ’Brien e Vertinsky, 1991).

Existem várias razões para os idosos não possuírem autoeficácia para os exercícios. Por um lado, geralmente têm menos experiência com a prática de exercícios e menos modelos que os inspirem a praticá-los do que pessoas mais jovens. Por outro, os idosos também enfrentam estereótipos etaristas sobre o que constitui o comportamento apropriado; a prática de exercícios vigorosos, sobretudo para as mulheres, é contrária aos estereótipos da velhice. Por fim, muitos idosos consideram que a velhice é uma época de repouso e relaxamento e têm menos probabilidade de começar e manter a realização de exercícios regulares.

Para explorar por que alguns adultos decidem fazer exercícios e outros não, Sara Wilcox e Martha Storandt, da Washington University (1996), estudaram uma amostra aleatória de 121 mulheres entre as idades de 20 e 85, concentrando-se em três variáveis psicológicas: autoeficácia para exercícios, automotivação e atitudes para com a prática de exercícios. A amostra consistia em dois grupos: indivíduos que faziam exercícios e indivíduos que não faziam exercícios. As mulheres no grupo dos exercícios vinham fazendo atividades aeróbicas por pelo menos 20 minutos, três vezes ou mais por semana, por pelo menos quatro meses antes do estudo. As que não faziam exercícios relataram fazer pouco ou nenhum (menos de duas vezes por mês) nos quatro meses antecedentes ao estudo.

Os resultados revelaram que o desejo de fazer exercícios e a disposição para tal têm menos a ver com a idade do que com as atitudes em relação à prática de atividades físicas. A crença de que exercícios seriam prazerosos e benéficos diminuiu com a idade, mas apenas entre indivíduos que não os faziam. Aquelas que fizeram exercícios durante a idade adulta foram significativamente mais automotivadas, tinham mais autoeficácia em relação a eles e atitudes mais positivas a respeito deles do que as que não faziam exercícios. Esses resultados sugerem que a educação que enfatiza os benefícios e a frequência, duração e intensidade necessárias para que os exercícios alcancem esses benefícios deve ser um componente fundamental em intervenções com exercícios para idosos. Além disso, os estereótipos sobre a velhice como um tempo de declínio inevitável devem ser questionados. Os idosos terão menos probabilidade de começar um regime de exercícios se acreditarem que são incapazes de fazer mesmo atividades básicas, de modo que a intervenção deve incluir instruções fundamentais. Finalizando, os programas apropriados para a idade, como o tai chi, reduzem temores em relação a problemas que são comuns em idosos, especialmente o medo de cair (Zijlstra et al„ 2007).

Sono saudável

Se o exercício é a "fonte da juventude”, os hábitos saudáveis relacionados com o sono podem ser o “elixir da saúde"(Grayling, 2009). Infelizmente, por volta de 1 em cada 5 adultos não dorme o suficiente e experimenta privação do sono (AAS.Vl, 2010) (ver dicas de especialistas para higiene do sono, p. 159). Para cerca de 70 milhões de norte-americanos, um transtorno do sono, como a insônia, a narcolepsia, o sonambulismo ou a apneia, é a causa. Para outros, o estresse ou um horário pesado de trabalho ou estudo contribuem para seus maus hábitos de sono. Os adolescentes, que precisam de 8,5 a 9,5 horas de sono por noite, hoje dormem uma média abaixo de sete horas duas horas a menos do que seus avós quando eram adolescentes. Quase um terço dos estudantes do ensino médio que responderam a uma pesquisa recente admitiu pegar no sono rotineiramente na classe (Sleep Foundation, 2010).

O sono deficiente cobra um preço do bem-estar físico e psicológico. Considere alguns dos resultados de estudos sobre a privação crônica do sono:

§  A dívida crônica de sono promove um aumento no peso corporal. Crianças e adultos que dormem menos têm uma porcentagem maior de gordura corporal do que aqueles que dormem mais(Taheri,2004). O sono deficiente estimula um aumento no hormônio da fome, agrelina, e uma redução no hormônio supressor do apetite, a leplina. A perda do sono também eleva os níveis do hormônio do estresse, o cortisol, que promove o armazenamento de calorias na gordura corporal (Chen, Beydoun e Wang, 2008). Esse efeito pode ajudar a explicar por que universitários com privação crônica do sono costumam adquirir peso; [158]

§  A privação do sono suprime o funcionamento imunológico. As moléculas de sinalização imunológica, como o fator de necrose tumoral, a interleucina-1 e a interleucina-6, desempenham um papel importante na regulação do sono. Níveis elevados dessas citocinas, que podem ocorrer com o sono inadequado, também são associados a diabetes, doenças cardiovasculares e diversas outras condições crônicas (Motivala e Irwin, 2007). Idosos que não apresentam privação do sono podem, na verdade, viver mais tempo que pessoas que têm dificuldade para pegar no sono ou permanecer adormecidas (Dew et al., 2003);

§  A perda do sono tem um efeito adverso sobre o funcionamento metabólico, neural e endócrino de nosso corpo de maneira semelhante ao envelhecimento acelerado(Pawlyck et al., 2007). Outros efeitos do sono inadequado são dificuldades de concentração, memória e criatividade, bem como maior tempo de reação, erros e acidentes (Stickgold, 2009). Estudos sugerem que o cérebro usa o sono para reparar lesões, repor os estoques de energia e promover a neurogênese, ou seja, a formação de novas células nervosas (Winerman, 2006);

Especialistas têm algumas dicas para promover hábitos saudáveis para o sono, muitas vezes chamados de higiene do sono:

§ Evite qualquer forma de cafeína antes de dormir. (Isso inclui café, chá, refrigerantes, chocolate e nicotina.);

§ Evite o álcool, que pode perturbar o sono;

§ Faça exercícios regularmente, mas termine sua ginástica no mínimo três horas antes de deitar;

§ Estabeleça um horário consistente e uma rotina relaxante para deitar(p. ex., tomar um banho ou ler um bom livro);

§ Crie um ambiente que conduza ao sono, que seja escuro, silencioso e preferencialmente fresco e confortável.

Se você tiver problemas com sono ou sonolência durante o dia, considere manter um diário do sono, como o publicado pela National Sleep Foundation. Nesse diário, registre seus padrões de sono e o quanto dorme. O diário ajudará a examinar [159] alguns de seus hábitos de saúde e sono para que você e seu médico possam identificar possíveis causas de problemas com o sono (Sleep Foundation, 2010).

Promovendo famílias e comunidades saudáveis

O modelo biopsicossocial da saúde não se limita a indivíduos. A pesquisa sobre a psicologia da saúde preventiva tem-se concentrado cada vez mais nos diversos sistemas externos que influenciam a saúde do indivíduo. O principal entre esses sistemas é a família. Em uma pesquisa nacional com mais de 100 mil adolescentes do 7 ao 12 anos, Resnick e colaboradores (1997) observaram que o contexto social da família tinha uma forte influência sobre os comportamentos de risco. Nas palavras dos pesquisadores, as “conexões com pais-família” previram o nível de perturbação emocional de adolescentes na família, sua probabilidade de usar drogas e álcool e, até certo ponto, o quanto se envolviam em violência. Outros fatores importantes que afetaram os comportamentos desses adolescentes eram se seus pais estavam presentes em períodos cruciais do dia e se eles tinham poucas ou muitas expectativas em relação ao desempenho acadêmico de seus filhos.

Mais recentemente, Rena Repetti e colaboradores (2002) verificaram que certas características familiares produzem uma “cascata de riscos” que começa cedo na vida ao “criar vulnerabilidades (e exacerbar vulnerabilidades biológicas preexistentes) que formam a base para problemas de saúde física e mental a longo prazo” (p. 336). Essas características de risco familiares dividem-se em duas: conflitos familiares explícitos, manifestados em episódios frequentes de raiva e agressividade, e criação deficiente, incluindo relacionamentos de pouco apoio, distantes e até negligentes.

À maneira da teoria sistêmica, a psicologia da saúde comunitária concentra-se na comunidade como unidade de intervenção, reconhecendo que os indivíduos fazem parte de famílias, assim como de contextos culturais, econômicos e comunitários. Os psicólogos da saúde comunitários costumam defender políticas públicas que promovam a justiça socíal, os direitos humanos e a igualdade no acesso a tratamento de saúde e outros serviços humanos de qualidade (de La Cancela et al., 2004).

Barreiras familiares

Os hábitos de saúde costumam ser adquiridos dos pais e de outras pessoas que funcionam como modelos para comportamentos de saúde. Pais que fumam, por exemplo, têm uma probabilidade significativamente maior de ter filhos que fumam (Schulenberg et al., 1994). De maneira semelhante, pais obesos têm mais chance de ter filhos obesos, e os filhos de alcoolístas apresentam um risco maior de abusar do álcool (Schuckit e Smith, 1996).

Embora possa haver uma base genética para esses comportamentos, as crianças também podem adquirir expectativas sobre comportamentos de risco observando seus familiares. Em um estudo, Elizabeth D’Amico e Kim Fromme (1997) demonstraram, de maneira convincente, o impacto de irmãos maiores sobre o comportamento e as atitudes de irmãos adolescentes mais jovens. Seus resultados sugerem que a aprendizagem com um irmão mais velho seja um dos mecanismos pelos quais os adolescentes podem formar expectativas sobre comportamentos de risco à saúde. [160]

Barreiras da comunidade

A comunidade é uma força poderosa para promover ou desencorajar uma vida saudável. As pessoas têm mais probabilidade de adotar comportamentos que promovam a saúde quando eles são defendidos por organizações comunitárias, como escolas, agências governamentais e o sistema de saúde. Como exemplo, várias escolas em Minnesota mudaram o horário de início para mais tarde em resposta a estudos que demonstram que os adolescentes precisam dormir mais. Citando evidências de que a privação do sono em adolescentes está associada a deficiências no processamento cognitivo, ansiedade, depressão e acidentes de trânsito, os novos horários de início das aulas entraram em vigor durante o ano escolar de 1997 a 1998. Três anos de dados mostraram que os novos horários de início resultaram em maior possibilidade de que os estudantes fazerem o desjejum, melhoraram a frequência, reduziram os atrasos, aumentaram a atenção na classe, levaram a uma atmosfera escolar mais calma e demonstraram menos encaminhamentos ao diretor por indisciplina e menos idas dos alunos à orientação educacional e à enfermaria da escola por problemas relacionados com o estresse e outros problemas de saúde (National Sleep Foundation, 2010). Nos últimos anos, também tivemos um progresso significativo em mudar atitudes em relação a prática de exercícios e nutrição correta. Estamos muito mais informados sobre a importância de reduzir fatores de risco para o câncer, doenças cardíovasculares e outras condições crônicas graves. Todavia, ainda existem fortes pressões sociais que levam as pessoas a se envolverem em comportamentos que comprometem a saúde.

Considere o uso de álcool. Pesquisas nacionais indicam que o uso de álcool é mais prevalente entre universitários norte-americanos do que entre seus pares que não frequentam a faculdade (Adelson, 2006; Quigley e Marlatt, 1996). Outras pesquisas revelam que tomar bebedeiras entre universitários está associado a vários fatores de risco sociais, incluindo morar em certos dormitórios “festeiros”. Para alguns estudantes, a empolgação por estarem juntos em um ambiente pouco supervisionado pode desencadear esses comportamentos de risco (Dreer et al., 2004).

Felizmente, a maior parte dos comportamentos de risco inspirados pelos colegas representa um experimento efêmero que é abandonado antes de haver consequências irreversíveis e a longo prazo. Embora a frequência do consumo de álcool aumente significativamente na transição do ensino médio para o primeiro ano da faculdade, o consumo pesado diminui à medida que os estudantes ficam mais velhos, assumem mais responsabilidades e apresentam um padrão chamado de maturing out(Bartholow et al., 2003).

Psicologia da saúde comunitária e controle de lesões

Todos os anos, nos Estados Unidos, quase 120 mil pessoas morrem de ferimentos, incluindo 45 mil em acidentes automobilísticos e outros acidentes relacionados [162] com o transporte; 33 mil devido a suicídios; 71 mil mortes em incêndios, afogamento, quedas, envenenamentos e outros acidentes sem relação com o transporte; e 17 mil em decorrência de homicídios (Xu, Kochanek e Tejada-Vera, 2009). Quando todas as pessoas entre 1 e 44 anos são consideradas como um grupo, os ferimentos representam a principal causa de morte, à frente das doenças cardiovasculares e do câncer. Adicionados a esse custo em mortalidade, existem 3,3 milhões de anos potenciais de vida perdida prematuramente a cada ano como resultado de lesões. Os termos lesões e trauma substituem o uso da palavra acidente para enfatizar o fato de que a maior parte dos ferimentos não advém de eventos aleatórios e inevitáveis — eles são previsíveis e evitáveis (Sleet et al, 2004).

A adoção de uma abordagem de prevenção primária no controle de ferimentos é um fenômeno recente. Ainda na década de 1980, a prevenção de lesões não era tratada na maioria dos livros didáticos sobre psicologia comunitária. Os psicólogos da saúde comunitários geralmente se concentram em três estratégias aceitas em programas de prevenção de lesões: educação e mudança de comportamento, legislação efiscalização e engenharia e tecnologia. As estratégias de educação e mudança de comportamento costumam visar à redução dos comportamentos de risco (qualquer aspecto que aumente a probabilidade de a pessoa se ferir) e ao aumento dos comportamentos de proteção (qualquer aspecto que minimize o perigo potencial em um comportamento de risco).

Educação para a saúde comunitária

É provável que haja maior ênfase na promoção da saúde atualmente do que em qualquer outra época da história. Novas leis federais relacionadas com o cuidado de saúde foram aprovadas em março de 2010, esforços substanciais são dedicados para moldar a opinião pública a respeito de questões-de-saude-por meio de campanhas educativas em anúncios, nos meios de transporte público, em revistas e jornais, na televisão, no rádjo e em websites. A importância dessas campanhas é revelada em controvérsias nas pesquisas sobre a maneira como as informações devem ser apresentadas, (p. ex., será que as campanhas de prevenção ao HIV devem se concentrar em formas mais seguras de sexo ou em abstinência?)

Educação para a saúde refere-se a qualquer intervenção planejada envolvendo a comunicação que promova o aprendizado de comportamentos mais saudáveis. O modelo mais usado em educação para a saúde é o depreceder/proceder (Green e Rreuter, 1990; Yeo, Berzins e Addington, 2007). Segurido esse modelo, o planejamento da educação para a saúde comeca com a identificacão de problemas de saúde especificos em determinado grupo. A seguir, são identificados elementos do estilo de vida e do ambiente que contribuam para o problema visado (assim como aqueles que protegem contra ele). Então, fatores da história que predisponham, causem ou reforcem esses fatores relacionados com o estilo de vida e o ambiente são analisados para determinar a possível utilidade da educação para a saúde e de outras intervencões. Duxante a fase fina de implementacão, os programas de educação para a saúde, são projetados, iniciados e avalidados.

Vamos examinar como o modelo de preceder/proceder se aplicaria a uma campanha de educação para a saúde sobre o câncer de pulmão. Em primeiro lugar, os psicólogos da saúde identificam o grupo-alvo para a intervenção. A seguir, investigam fatores ambientais que possam afetar o grupo-alvo, pois a doença pode resultar de condições de vida ou trabalho insalubres, em que as pessoas estejam expostas a poluentes perigosos. Além disso, esses psicólogos consideram fatores psicológicos e sociais. Eles começam determinando quem fuma. Quando começou a fumar? Por quê? Pesquisadores verificaram que o hábito de fumar inicia normalmente durante a adolescência, sobretudo em resposta a pressões sociais (Rodriguez, Romer e Audrain-McGovern, 2007), que incluem a imitação de familiares, amigos e modelos, como [163] atores e atletas conhecidos. Muitos adolescentes consideram difícil resistir às pressões sociais, pois ser aceito pelos amigos é fonte de reforço extremamente importante. Também existem fatores causais relevantes: os cigarros costumam ser muito fáceis de obter, e as ações contra o hábito de fumar são mínimas.

Havendo determinado quais são os fatores que contribuem para o problema, os psicólogos preparam um programa de educação para a saúde contrabalançando esses fatores. Por exemplo, se for verificado que a pressão social é fator importante, eles podem projetar um programa de educação para a saúde que se concentre em aumentar a capacidade dos adolescentes de resistir à pressão social. Esse tipo de programa envolve modelos de comportamento que estimulem os adolescentes a não fumar, políticas antitabagismo em prédios públicos, sanções mais firmes contra a comercialização de cigarros e/ou impostos mais altos sobre a venda.

Qual é o nível de eficácia das campanhas de educação para a saúde? Pesquisadores verificaram que campanhas educacionais simplesmente informando as pessoas dos perigos de comportamentos que comprometem a saúde em geral são ineficazes para motivá-las a mudar hábitos de saúde antigos(Kaiser Foundation, 2010). Por exemplo, isolados, mensagens antitabagistas e outros programas de educação contra as drogas apresentam poucos efeitos - ou até mesmo efeito negativo. Em um estudo, adolescentes que haviam participado de um programa de educação contra as drogas patrocinado por uma escola, na verdade, tiveram, mais propensão, ao consumo de maconha e dietilamida do ácido lisérgico (LSD) do que um grupo de controle de estudantes que não haviam participado do curso (Stuart, 1974). O simples fato de verificar que o próprio estilo de vida não é tão saudável quanto poderia ser é insuficiente para provocar mudanças, pois muitas pessoas acreditam estarem protegidas ou serem invulneráveis às consequências negativas de seu comportamento de risco.

De modo geral, campanhas comunitárias multifacetadas que apresentam informações de diversas frentes funcionam melhor do que campanhas em “dose única”. Por exemplo, duas décadas de campanhas antitabagismo combinando programas de intervenção escolar com mensagens nos meios de comunicação de massa no âmbito da comunidade resultaram em uma redução significativa no tabagismo experimentai e regular e em uma mudança de visão entre estudantes do 7º ao 11º  ano no sistema escolar no condado de Midwestern entre 1980 e 2001, que passaram a considerar o tabagismo mais viciante e com mais consequências sociais negativas (Chassin et al., 2003). Como outro exemplo, um programa recente de prevenção ao câncer de pele se concentrou no uso de protetor solar, chapéus, óculos de sol e outros hábitos de proteção contra o sol por crianças em aulas de natação em 15 piscinas no Havaí e em Massachusetts. Além de visar às crianças, o programa Pool Cool, que combinou educação, atividades interativas e mudanças no ambiente (fornecendo protetor solar gratuito, estruturas de sombra portáteis e pôsteres sobre a segurança contra o sol), foi uma intervenção controlada e randomizada voltada para pais, salva-vidas e instrutores de natação. Comparadas com crianças em um grupo de controle em 13 outras piscinas que receberam uma intervenção de segurança no uso de patins e bicicletas, as crianças do grupo de intervenção apresentaram mudanças positivas relevantes no uso de protetor solar e sombra, hábitos gerais de proteção contra o sol e no número de queimaduras (Glanz et al., 2002). De maneira semelhante, outros pesquisadores observaram que as intervenções com multicomponentes para proteção contra o sol são particularmente efetivas com adultos frequentadores de praias (Pagoto et al., 2003). [164]

Mensagens amedrontadoras estruturadas na forma de perdas

Será que as mensagens que provocam medo são eficazes para promover a mudança de atitude e de comportamento? Para descobrir, Irving Janis e Seymour Feshbach (1953) compararam a eficácia de mensagens que excitavam vários níveis de medo na tentativa de promover mudanças em higiene dental. As mensagens que provocavam níveis moderados de medo eram mais eficazes do que as mais extremas para fazer estudantes do ensino médio mudarem seus hábitos de higiene dental. Para explicar os resultados, os pesquisadores concluíram que os indivíduos e as circunstâncias diferem em seu nível apropriado de medo necessário para desencadear uma mudança de atitude e comportamento. Quando esse nível é ultrapassado, as pessoas podem recorrer à negação ou a medidas de enfrentamento evitativo.

Um fator fundamental na determinação da eficácia de mensagens de saúde ameaçadoras é a percepção de controle comportamental daquele que a recebe. Antes que possam ser persuadidas, as pessoas devem acreditar que possuam a capacidade de seguir as recomendações. Em um estudo, Carol Self e Ronald Rogers (1990) apresentaram mensagens extremamente ameaçadoras em relação aos perigos da vida sedentária com ou sem informações que indicassem se os sujeitos conseguiriam realizar o comportamento favorável à saúde (como praticar exercícios) e melhorar sua saúde. O que eles descobriram? Mensagens ameaçadoras funcionariam apenas se os participantes estivessem convencidos de que eram capazes de enfrentar a ameaça a sua saúde; já as tentativas de assustar os participantes sem assegurá-los disso foram ineficazes.

Heike Mahler e colaboradores (2003) observaram que frequentadores de praia com idade universitária eram particularmente responsivos a uma campanha educacional para promover o uso de protetor solar e outros comportamentos de proteção contra o sol quando ela se concentrava nos perigos da exposição ao sol para a aparência de cada indivíduo. A intervenção começou com uma apresentação de slides de 12 minutos contendo fotos de casos extremos de rugas e marcas de envelhecimento. Depois disso, o rosto de cada sujeito foi fotografado com a câmera com filtro ultravioleta que acentuava as manchas marrons, as sardas e outras lesões cutâneas existentes causadas pela exposição ao ultravioleta. Um mês de seguimento indicou que a exposição resultara em um aumento significativo em comportamentos de proteção contra o sol e uma redução substancial da prática de tomar banho de sol.

Todavia, as táticas de susto que provocam muito medo, como fotografias de gengivas totalmente deterioradas ou doentes, tendem a perturbar as pessoas. Como resultado, essas mensagens podem ter o efeito contrário e diminuir a probabilidade de que uma pessoa mude suas crenças e, assim, seu comportamento (Beck e Frankel, 1981). Esse tipo de mensagem aumenta a ansiedade de tal forma que o único recurso de enfrentamento que percebem é a recusa em encarar o problema.

Concluindo, pesquisas sobre a estruturação de mensagens relacionadas com a saúde revelam um padrão básico: as mensagens estruturadas na forma de ganhos são eficazes para promover comportamentos de prevenção. [166] enquanto as estruturadas na forma de perdas são eficazes para promover comportamentos que impulsionem a detecção de doenças (exames)(Salovey, 2011).

Promovendo locais de trabalho saudáveis

Os psicólogos da saúde ocupacionais são pioneiros em projetar locais de trabalho saudáveis. Quatro dimensões do trabalho saudável foram identificadas: o estresse, relações entre trabalho e família, prevenção à violência e relações no trabalho(Quick et al., 2004). Uma vez que o estresse no trabalho é uma epidemia nos Estados Unidos, a pesquisa e as intervenções psicológicas são vitais para a saúde dos trabalhadores. Cada vez mais, as seguradoras estão reconhecendo que as causas de deficiências no local de trabalho estão mudando, de ferimentos para o estresse.

O local de trabalho tem um efeito psicológico profundo em todos os aspectos de nossas vidas e das vidas de nossos familiares. Por exemplo, os estressores encontrados no trabalho podem resultar em interações sociais menos sensíveis e menos solidárias e mais negativas e conflituosas na família, que podem afetar negativamente as respostas biológicas das crianças ao estresse, bem como sua regulação emocional e competência social (p. ex. Perry-Jenkins et al., 2000). Foram observados dois efeitos cruzados comportamentais entre as experiências de estresse no trabalho por um trabalhador e o bem-estar de outros membros da família. O transbordamento de emoções negativas ocorre quando frustrações relacionadas com o trabalho contribuem para um aumento na irritabilidade, na impaciência ou em outros comportamentos negativos em casa. O retraimento social ocorre quando um ou mais pais ou cuidadores adultos que trabalham retraem-se comportamental ou emocionalmente da vida familiar depois de dias muito estressantes no emprego.

Nos últimos 20 anos, houve uma mudança significativa na maneira como pensamos sobre a relação entre o trabalho e a vida familiar. À medida que mais e mais famílias consistem em dois adultos que trabalham em horário integral, os patrões e agências governamentais começam a reconhecer que todos os empregados enfrentam desafios complexos para equilibrar os papéis profissionais e familiares. Essas novas visões de­ sencadearam uma explosão de pesquisas sobre a relação entre o trabalho e a família. Entre os resultados mais consistentes, está o fato de que, nos Estados Unidos, a maioria dos empregados encontra pouco apoio e tem pouca voz nas políticas trabalhistas que os afetam e atingem suas famílias (Quick et al., 2004). Consequentemente, eles ficam a sua própria sorte para organizar os cuidados dos filhos, equilibrar horários de trabalho, prevenir o estresse no trabalho e coisas do gênero. A Family and Medical Leave Act, de 1993, ajuda alguns trabalhadores protegendo seus empregos enquanto cuidam de bebês e familiares doentes, mas muitos profissionais não são cobertos por essa legislação.

A violência no local de trabalho e nos campi universitários tem recebido considerável atenção nos últimos anos. Conforme algumas estimativas, o homicídio se tornou a segunda causa principal de morte por ferimentos ocupacionais, perdendo apenas para óbitos decorrentes de acidentes automobilísticos. A maioria dessas mortes ocorre durante assaltos, mas por volta de 10% podem ser atribuídos a colegas de trabalho ou ex-empregados. Outros 2 milhões de pessoas são agredidas todos os anos no trabalho (Bureau of Labor Statistics, 2006). Diversos fatores aumentam o risco de um trabalhador ser vítima de violência (Quick et al., 2004):

§ Contato com o público;

§ Transação em dinheiro;

§ Entrega de passageiros e mercadorias ou prestação de serviços;

§ Local de trabalho móvel;

§ Trabalho com pessoas instáveis ou voláteis (p. ex., em ambientes médicos ou de assistência social);

§ Trabalho realizado só, tarde da noite e em áreas com alta criminalidade [167]

Na área das relações trabalhistas, construir uma cultura de trabalho saudável exige que os empregados aceitem a responsabilidade por sua própria saúde e segurança e pela segurança e saúde de seus colegas. De maneira mais geral, conforme observaram Dorothy Cantor e colaboradores (2004), construir uma cultura de trabalho saudável exige atenção a três fatores: a pessoa (diferenças individuais, educação, personalidade), o ambiente (condições de trabalho, equipamento, sistemas de gestão) e comportamento (comportamentos de risco, procedimentos, desempenho do grupo).

Em uma cultura de trabalho saudável, as políticas baseadas na tríade de segurança motivam os empregados a agirem de maneiras que deem um exemplo saudável e tornem o ambiente de trabalho seguro, prestando também atenção a fatores individuais da pessoa.

Programas de bem-estar no local de trabalho

Por várias razões, o local de trabalho é o lugar ideal para promover a saúde. Primeiro, os trabalhadores consideram conveniente participar desses programas. Alguns patrões até mesmo permitem que seus empregados participem de programas de prevenção durante o dia de trabalho. Além disso, o local de trabalho oferece a maior oportunidade para contato continuado, acompanhamento efeedback. Finalmente, os colegas de trabalho estão disponíveis para proporcionar apoio social e ajudam a motivar as pessoas nos momentos difíceis. O mesmo se aplica a programas de bem-estar em universidades e faculdades.

Os programas de bem-estar no local de trabalho começaram a surgir em um ritmo acelerado com o advento do movimento do bem-estar durante a década de 1980. Hoje, nos Estados Unidos, mais de 80% das organizações com 50 ou mais funcionários oferecem algum tipo de programa de promoção da saúde. Os programas de bem-estar no local de trabalho oferecem uma variedade de atividades, incluindo controle do peso, orientação nutricional, cessação do tabagismo, exames preventivos de saúde, seminários educacionais, controle do estresse, cuidados com a coluna lombar, academias de ginástica, programas de imunização e programas pré-natais.

No centro do movimento do bem-estar, está a compreensão de que prevenir doenças é mais fácil, mais barato e muito mais desejável do que curá-las. Um exemplo: a campanha de vacinação para o H1N1 em campi universitários na temporada de 2009 a 2010. Ao redor do mundo, os custos com tratamento de saúde aumentaram de cerca de 3% do produto interno bruto (PIB) em 1948 para aproximadamente 8% nos dias atuais. Os Estados Unidos gastam 16% de seu PIB em tratamento de saúde (Smith et al., 2006). Conforme já foi observado, uma proporção cada vez maior desses [168] custos tem sido transferida para os patrões que pagam os prêmios do seguro de saúde de seus empregados. Segundo um estudo realizado em 2006 por William B. Mercer, 97% dos custos de benefícios de saúde cooperativos são gastos para tratar condições evitáveis, como doenças cardiovasculares, problemas com a coluna lombar, hipertensão, acidente vascular encetálico (AVE), câncer de bexiga e abuso de álcool. Os patrões compreenderam que mesmo programas com resultados modestos em melhorar a saúde dos empregados podem resultar em economias substanciais.

Esses programas são eficazes? Vários estudos minuciosos revelam que sim. O custo dos programas é mais que compensado pelas reduções em ferimentos relacionados com trabalho, absenteísmo e rotatividade de funcionários. Por exemplo, empregados da Union Pacific Railroad que participavam de um programa de bem-estar reduziram o risco de pressão alta (45%) e colesterol alto (34% ), saíram da faixa de risco para obesidade (30%) e pararam de fumar (21%), gerando uma economia líquida para a empresa de 1,26 milhão de dólares (Scott, 1999).

Estudos demonstraram que, para ter sucesso, os programas de bem-estar no local de trabalho devem:

§ Ser voluntários;

§  Incluir exames de triagem de saúde, que têm o maior impacto sobre os custos de saúde no local de trabalho;

§  Estar relacionados com comportamentos de saúde de interesse para os empregados;

§  Garantir a confidencialidade das informações de saúde;

§  Ser convenientes e ter apoio da empresa;

§ Oferecer outros incentivos, como descontos em planos de saúde, bônus monetários ou outros prêmios pelo sucesso.

Psicologia positiva e florescimento

Em 2001, a American Psychological Association (APA) modificou sua declaração de missão, que já durava 60 anos, para incluir a palavra saúde pela primeira vez. Mais de 95% dos membros da organização endossaram a mudança no regimento, enfatizando sua percepção de que, embora existam elementos físicos e psicológicos que contribuem para doença e deficiência em cada pessoa, existem outros que cooperam para saúde, bem-estar e florescimento. A mudança no regimento foi parte da Healthy World Initiative da APA, que se alinhou com o novo movimento da psicologia positiva, descrito no Capítulo 1, para promover uma abordagem preventiva baseada em potencialidades para pesquisa e intervenções, em vez do tratamento mais tradicional da psicologia de atacar problemas depois que ocorreram (Seligman, 2002). Conforme afirmou a presidente da APA, Norine Johnson (2004), "Devemos trazer a construção de potencialidades para o primeiro plano no tratamento e na prevenção de doenças, para a promoção do bem-estar e da saúde” (p. 317).

Um tema central do movimento da psicologia positiva é que a experiência da adversidade, seja de natureza física ou psicológica, às vezes pode trazer benefícios, como fez para Sara Snodgrass, que conhecemos no começo do capítulo. Conforme observou Charles Carver (Carver et al., 2005), quando temos uma adversidade física ou psicológica, ocorrem pelo menos quatro resultados possíveis:

§  Uma piora continuada;

§  Sobrevivência com capacidade reduzida ou comprometimento;

§  Um retorno gradual ou rápido ao nível de funcionamento anterior à adversidade;

§  A emergência de uma qualidade que deixa a pessoa melhor do que antes. [169]

Florescimento refere-se a esse quarto resultado paradoxal, no qual a adversidade leva as pessoas a maior bem-estar psicológico e/ou físico (O’Leary e Ickovics, 1995). Como pode ser isso? Segundo o neurocientista Bruce McEwen (1994, 2011), que introduziu o conceito de carga alostática, “ Em condições de estresse, devemos esperar um enfraquecimento físico do sistema, mas pode haver mudanças psicológicas positivas muitas vezes no contexto do florescimento psicológico. Em termos fisiológicos, isso se traduz em mais processos restauradores do que destrutivos em ação” (p. 195). Usando a analogia de atletas que fortalecem seus músculos decompondo-os por meio de exercícios, permitindo que se recuperem, e depois repetindo esse padrão para produzir músculos mais fortes e capazes de fazer mais trabalho, os psicólogos positivos apontam para evidencias de que a adversidade pode desencadear uma “musculação psicológica” (Pearsall, 2004).

Alostasia e saúde neuroendócrina

Conforme vimos no Capítulo 4, em resposta a um estressor, a ativação do eixo hipotálamo-hipófiso-adrenal (HAA) causa uma mudança no estado metabólico geral do corpo. Na maior parte do tempo, as células do corpo estão ocupadas com atividades que constroem o corpo (anabolismo). Quando o cérebro percebe uma ameaça ou um desafio iminentes, contudo, o metabolismo anabólico é convertido em seu oposto, o catabolisnio, que decompõe os tecidos para fornecer energia.O metabolismo catabólico caracteriza-se pela liberação de catecolaminas, cortisol e outros hormônios responsáveis pelas reações de “luta ou fuga” que ajudam o corpo a mobilizar energia rapidamente. Para combater essas reações neuroendócrinas, o sistema nervoso parassimpático (SNP) desencadeia a liberação de hormônios anabólicos, incluindo o hormônio do crescimento (GH), o fator do crescimento semelhante à insulina (1GF-1) e os esteroides sexuais. O metabolismo anabólico combate a excitação e promove o relaxamento, o armazenamento de energia e processos de cura, como a síntese de proteínas.

Lembre, do Capítulo 4, que alostasia refere-se à capacidade do corpo de se adaptar ao estresse e a outros elementos de ambientes que sofrem mudanças rápidas(McEwen, 2011). Uma medida do florescimento físico é um sistema alostático fluido, que muda flexivelmente de níveis altos para níveis baixos de excitação do sistema nervoso simpático (SNS), dependendo das demandas do ambiente. Os hormônios catabólicos, por exemplo, são essenciais à saúde no curto prazo. Todavia, quando as pessoas encontram-se em um estado constante de excitação, elevações prolongadas desses hormônios podem prejudicar o corpo e promover doenças crônicas. Como exemplo, o estresse repetido pode afetar muito o funcionamento cerebral, em especial no hipocampo, que tem grandes concentrações de receptores de cortisol(McEwen, 1998, 2011). As consequências de elevações de longo prazo em hormônios catabólicos, quando vistos em conjunto, parecem-se muito com o envelhecimento. Hipertensão, músculos desgastados, úlceras, fadiga e um risco maior de doenças crônicas são sinais comuns de envelhecimento e estresse crônico. Esse estado, que tem sido chamado de carga alostática, é indicado pela predominância da atividade catabólica em repouso. Um nível elevado de cortisol salivar ou sérico em repouso é um indicador biológico de carga alostática e do funcionamento geral do eixo HAA. Em contrapartida, a predominância de hormônios anabólicos em repouso reflete melhora na saúde e uma carga alostática baixa.

Uma série de estudos clássicos de Jay Weiss e colaboradores (1975) demonstraram que a excitação do estresse pode levar a uma melhor saúde física, condicionando o corpo a ser resistente a estressores futuros. Você aprendeu que, quando experimentam estresse crônico, cobaias de laboratório sofrem de desamparo aprendido e depleção de catecolamina. Paradoxalmente, Weiss observou que a exposição de cobaias a [170] estressores intermitentes seguida por períodos de recuperação pode levar a um “endurecimento fisiológico”, incluindo resistência a depleção de catecolamina e supressão de cortisol, e maior resiliência a estressores subsequentes. Outros estudos revelaram que a exposição a estressores precoces na vida às vezes pode resultar no desenvolvimento de resiliênciaem macacos-de-cheiro (Lyons e Parker, 2007).

Fatores psicossociais e florescimento fisiológico

Em outra parte do livro, vimos como o sistema imune reage ao encontrar patógenos e como seu funcionamento é influenciado por citocinas e sinais de outros sistemas corporais, incluindo o cérebro. Grande parte dessa discussão enfatizou como os fatores psicossociais podem modificar o funcionamento imunológico e outros sistemas do corpo.

Diversas variáveis psicológicas foram relacionadas com reduções nos níveis de hormônios do estresse ou maior imunidade em resposta ao estresse, incluindo autoestima e percepções de competência e controle pessoal sobre os resultados(Sceman et al., 1995), autoeficácia(Bandura, 1985) e uma sensação de coerência na vida(Myrin e Lagcrstrom, 2006). No local de trabalho, uma sensação de controle e autonomia vem acompanhado por níveis basais mais baixos de catecolaminas, mesmo quando as demandas do teste e os níveis de estresse são muito elevados(Karaseketal., 1982). A empresa Google, por exemplo, tem uma área de lazer onde os funcionários podem jogar basquete, pingue-pongue e outros jogos quando estão se sentindo cansados.

Autoengrandecimento

Um corpo crescente de pesquisas relaciona estados mentais positivos, mesmo estados irrealistas envolvendo ilusões positivas, com um funcionamento fisiológico mais saudável(p. ex., Taylor et al., 2003). Pessoas que tendem ao autoengrandecimento, por exemplo, têm a tendência desproporcional a recordar informações positivas sobre suas personalidades e seus comportamentos, de se enxergarem de maneira mais positiva do que os outros as veem e de aceitar o crédito por bons resultados(Taylor e Brown, 1988). Ao contrário de visões anteriores em psicologia, que consideravam esse tipo de autopercepção inflada evidência de narcisismo, autocentrismo e má saúde mental, estudos recentes sugerem que, em vez de ser associado ao desajuste, o auto­engrandecimento é indicativo de saúde, bem-estar e da capacidade de se sentir bem a respeito de si mesmo, o autoengrandecimento também foi relacionado com a capacidade de desenvolver e manter relacionamentos, de ser feliz e de prosperar em ambientes inconstantes ou mesmo ameaçadores(Taylor et al., 2003).

Visões errôneas, mas positivas, de nossa condição médica e da percepção de nosso controle sobre ela parecem promover a saúde e a longevidade. Por exemplo, indivíduos HIV-positivo e aqueles diagnosticados com aids que mantém visões positivas irreais sobre seus prognósticos apresentam uma deterioração menos rápida e mesmo um tempo mais longo até a morte (Reed et al., 1999). Embora esses resultados correlacionais não provem uma relação de causalidade, pesquisadores especulam que as cognições de autoengrandecimento podem abrandar as respostas fisiológicas e neuroendócrinas ao estresse e, assim, reduzir as respostas do eixo HAA a esta condição(Taylor et al.,2000).

Em um estudo, Shelley Taylor e colaboradores (2003) pediram a 92 universitários que preenchessem o How I See Myself Questionnaire, uma medida do [171] autoengrandecimento na qual os participantes se avaliam em comparação com indivíduos correspondentes em capacidade acadêmica, autorrespeito e 19 outras qualidades positivas, assim como egoísmo, pretensiosidade e 19 outras características negativas. Eles também responderam a escalas de personalidade que avaliavam recursos psicológicos como otimismo, extroversão e felicidade. Uma semana depois, os participantes compareceram a um laboratório da UCLA onde forneceram uma amostra de saliva para análise de cortisol e fizeram diversos testes padronizados de aritmética mental que induziam o estresse de maneira confiável. Enquanto respondiam aos testes, suas frequências cardíacas e pressões sistólica e diastólica eram monitoradas. Depois de concluírem os testes de estresse, uma segunda medida do nível de cortisol foi colhida.

Os resultados mostraram que os indivíduos que tendiam ao autoengrandecimento apresentavam níveis basais mais baixos de cortisol no começo do estudo e respostas mais baixas de frequência cardíaca e pressão arterial durante os testes de estresse. Os resultados para os níveis basais de cortisol sugerem que o autoengrandecimento esteja associado a níveis mais baixos do eixo HAA em repouso, indicando um estado neuroendócrino cronicamente mais saudável. As respostas reduzidas em frequência cardíaca e pressão arterial sugerem que autopercepções positivas ajudem as pessoas a lidar com estressores agudos. Com o tempo, os autoengrandecedores podem ter menos desgaste relacionado com o estresse em seus corpos. Interessantes de igual modo foram as respostas dos participantes ao questionário de recursos psicológicos, as quais indicaram que a relação entre o autoengrandecimento e a resposta neuroendócrina era medida por maior autoestima, otimismo, extroversão e apoio social mais forte, bem como um maior envolvimento ocupacional e comunitário do que o observado em sujeitos com escores baixos em medidas do autoengrandecimento.

Envolvimento social

Sara Snodgrass (a nossa introdução) acredita que um aspecto fundamental de seu florescimento psicológico seja o nível em que reorganizou as prioridades de sua vida em torno de seus relacionamentos com amigos e familiares. De fato, a importância do envolvimento social foi demonstrada por estudos epidemiológicos, os quais evidenciaram que pessoas cujos laços sociais são fortes têm mais probabilidade de manter a saúde e de viver mais tempo(Berkman et al., 2000). O envolvimento social também parece estar diretamente relacionado com a saúde neuroendócrina.Estudos revelaram, por exemplo, um aumento na contagem de linfócitos em resposta ao apoio social. Intervenções que incluem alguma forma de apoio social têm efeitos maiores sobre a citotoxicidade das células natural killer (NK), a proliferação de linfócitos e a imunidade mediada pelas células (Miller e Cohen, 2001). Os proponentes de tratamentos médicos alternativos (ver Cap. 14) também são encorajados por evidências de que a massagem, que exige contato físico entre pelo menos dois indivíduos, tem efeitos promotores de imunidade, como maior atividade das células N K (Ironson et al., 1996).

Os indivíduos costumam procurar o apoio de outras pessoas para revelar seus sentimentos durante momentos de adversidade. Pesquisas realizadas, pelo menos nos últimos 15 anos, documentaram que esse tipo de revelação emocional altera a atividade autonômica e o funcionamento imunológico de maneiras que promovem a saúde. O trabalho de James Pennebaker e colaboradores (1995, 1988) mostrou que, quando discutem situações que geram estados [172] emocionais negativos, os indivíduos apresentam elevações na atividade das células N K e na proliferação de linfócitos.

Relaxamento

Conforme discutimos no Capítulo 5, o relaxamento desperto atingido por meio da meditação, da música, de simples exercícios de respiração, da ioga e uma variedade de outros meios simples também está associado a reduções em emoções negativas e alterações nas funções neuroendócrinas(Daruna, 2004). Por exemplo, estudos mos­ traram que o relaxamento promove decréscimo na contagem de leucócitos, maior atividade das células N K e, no caso de estudantes que praticam relaxamento regularmente, melhor funcionamento imunológico durante períodos de exames estressantes (Davidson et al., 2003; Kiecolt-Glaser et al., 1985,1986), O resultado mais consistente associado ao relaxamento é um aumento na secreção de imunoglobulina A (IgA), um dos hormônios anabólicos já discutidos no capítulo. De maneira interessante, a hipnose, que também parece induzir relaxamento, produz ainda aumentos na secreção de IgA (Johnson et al., 1996).

Aspectos do florescimento psicológico

Um corpo crescente de pesquisas revela que a curiosidade e uma sensação de controle sobre a vida contribuem muito para o florescimento psicológico. Vamos examinar cada um desses fatores.

Curiosidade

Curiosidade refere-se à orientação ou à atração de uma pessoa em relação a estímulos novos. Pesquisas sugerem que a curiosidade em pessoas idosas esteja associada com manutenção da saúde do sistema nervoso central (SNC) em envelhecimento. Ao analisarem a relação entre a curiosidade em mulheres e homens idosos e as taxas de sobrevivência, pesquisadores verificaram que, depois de cinco anos, indivíduos com os níveis mais altos de curiosidade sobreviveram mais tempo do que aqueles que tinham níveis mais baixos (Swan e Carmelli, 1996). É importante observar, porém, que essa evidência correlacionai não indica que a curiosidade aumentará automaticamente as chances de sobrevivência de uma pessoa idosa. Ela pode apenas ser um sinal de que seu SNC esteja operando de maneira adequada. Em alguns indivíduos, os declínios na curiosidade relacionados com a idade refletem a queda no funcionamento mental. Em sustentação parcial a essa hipótese, um estudo mostrou menor curiosidade (medida como uma redução nos movimentos exploratórios dos olhos em resposta a estímulos visuais novos) em indivíduos com doenças graves do SNC, em comparação com controles normais de idade correspondente (Daffner et al., 1994). Visto que certas estruturas cerebrais reconhecidamente envolvidas na doença de Alzheimer também estão implicadas na atenção dirigida e no comportamento de busca de novidades, a redução na curiosidade pode ser um dos primeiros sinais do envelhecimento anormal do SNC.

Pressupondo que a pessoa seja um adulto normal e saudável, a curiosidade pode promover o envelhecimento sadio, pois possibilita aos idosos enfrentarem com sucesso os desafios físicos e ambientais do cotidiano. Desse modo, o idoso curioso usa estratégias ativas de enfrentamento (ver Cap. 5) para abordar problemas e obstáculos potenciais e, desse modo, consegue reduzir a pressão sobre seus recursos físicos e mentais. Parece que esses indivíduos têm uma chance maior de ser física e mentalmente saudáveis nos anos mais avançados (Ory e Cox, 1994). [173] 

Percepção de controle e autoeficácia

Em um importante estudo prospectivo sobre traços da personalidade e saúde, pesquisadores entrevistaram 8.723 pessoas idosas e no final da meia-idade que viviam de forma independente ou em residências adaptadas para idosos na Holanda (Kempen et al., 1997). Três medidas da personalidade foram investigadas: domínio ou controle pessoal, autoeficácia geral e neurose (instabilidade emocional). O domínio diz respeito ao nível em que o indivíduo considera que as mudanças ocorridas em sua vida estejam sob seu controle, em vez de serem fatalísticas. A autoeficácia refere-se à crença de conseguir realizar determinados comportamentos. A neurose está relacionada com a preocupação constante de que as coisas possam dar errado e a forte reação emocional de ansiedade a esses pensamentos. Os sujeitos que tinham níveis baixos de neurose e níveis elevados de domínio e autoeficácia perceberam taxas significativamente mais elevadas de funcionamento e bem-estar.

Por que uma sensação de controle e domínio deveria melhorar a saúde? As explicações comportamentais e fisiológicas são viáveis. Aqueles que têm uma sensação maior de controle apresentam maior probabilidade de agir, de apresentar comportamentos que promovam a saúde e de evitar comportamentos que a prejudiquem(Rodin, 1986). Como acreditam que seus atos façam alguma diterença, os indivíduos que têm uma sensação elevada de controle agem de maneira mais saudável(Lachman et al., 1994). Em contrapartida, aqueles que se sentem desamparados e não percebem qualquer relação entre seus atos e os resultados são mais propensos a doenças (Peterson e Stunkard, 1989), talvez porque não se envolvam em práticas promotoras da saúde ou porque tendam a comportamentos que a comprometam (“Posso ter câncer de pulmão não importa o que fizer, portanto vou fumar”).

O fato de ter uma sensação de controle também parece apresentar efeitos fisiológicos. Pesquisas mostraram que pessoas com uma sensação elevada de controle tem níveis mais baixos de cortisol e retornam mais rapidamente aos níveis basais após uma situação de estresse(Seeman e Lewis, 1995). Elas também possuem sistemas imunes mais fortes, conforme evidenciado por sua capacidade de combater doenças(Rodin, 1986).

Outras evidências da relação entre uma forte sensação de controle e boa saúde advêm de pesquisas envolvendo pessoas de diferentes níveis socioeconômicos. Margie Lachman e Suzanne Weaver, da Brandeis University (1998), analisaram três grandes amostras nacionais de homens e mulheres com idades de 25 a 75 anos, de classes sociais variadas, e verificaram que, para todos os grupos de renda, o maior controle percebido estava relacionado com melhor saúde, mais satisfação na vida e menos emoções negativas. Embora os resultados mostrassem que, em média, aqueles com renda mais baixa tinham menos percepção de controle, assim como pior saúde, as crenças de controle desempenharam um papel moderador, e os participantes no nível de renda mais baixo com uma sensação elevada de controle apresentaram níveis comparáveis de saúde e bem-estar aos dos grupos de maior renda. Os resultados proporcionam evidências de que variáveis psicossociais, como a sensação de controle, podem ajudar a compreender as diferenças na saúde relacionadas com a classe social.

Neste capítulo, exploramos a conexão entre o comportamento e a saúde. Vimos como o foco biopsicossocial da psicologia da saúde em abordagens a prevenção baseadas em potencialidades promove indivíduos, famílias, locais de trabalho e comunidades mais saudáveis. Esse foco é um afastamento da abordagem mais tradicional [174] da psicologia de atacar os problemas depois de sua ocorrência, à medida que esse modelo mais saudável e mais positivo se firma, poderemos alcançar um ponto em que o cuidado de saúde simplesmente passe de sua ênfase tradicional na prevenção terciária para um sistema de prestação de serviço mais equilibrado que favoreça a prevenção primária. [175]

Psicologia - Psicologia da Saúde
Comportamento - Equilíbrio psicológico, Virtudes
7/20/2020 6:02:43 PM | Por Charles Richard Snyder
As virtudes humanas sob as perspectivas Oriental e Ocidental

Uma questão de perspectiva “A boa sorte pode anunciar uma des­ventura, a qual, por sua vez, acaba por re­velar uma boa sorte.” Esse provérbio chi­nês exemplifica a perspectiva oriental de que o mundo e seus habitantes estão em um estado de fluxo perpétuo. Sendo assim, da mesma forma que ocorrem bons tem­pos, os tempos ruins nos visitarão. Os de­safios da vida, por sua vez, podem ser arau­tos de nossos triunfos. Esse equilíbrio en­tre bom e ruim é buscado ao longo da vida. De fato, essa expectativa e esse desejo de equilíbrio distinguem as visões dos orien­tais sobre o funcionamento ideal do cami­nho mais linear adotado pelos ocidentais para resolver problemas e monitorar o pro­gresso (vide o Capítulo 2). Portanto, os ori­entais buscam se tornar unos com o ritmo da mudança, encontrando sentido nos al­tos e baixos naturais da vida. Sempre adaptativos e atentos, avançam com o ci­clo da vida até que o processo de mudança se torne natural, chegando-se à ilumina­ção (isto é, ser capaz de ver as coisas cla­ramente pelo que elas são). Diferentemente dos ocidentais, que buscam gratificações no plano físico, os orientais buscam trans­cender o plano humano e se elevar ao es­piritual.

Os estudiosos da psicologia positiva visam definir as qualidades dos seres hu­manos, destacando os vários caminhos que levam a vidas melhores (Aspinwall e Staudinger, 2002; Keyes e Haidt, 2003; Lopez e Snyder, 2003; Peterson e Seligman, 2004; Snyder e Lopez, 2002). Dado que a civilização ocidental e os eventos e valores da Europa moldaram o campo da psicolo­gia como o conhecemos hoje nos Estados Unidos, não surpreende que as origens da psicologia positiva se tenham concentrado mais nos valores e nas experiências dos ocidentais. Cada vez mais, contudo, os his­toriadores estão levando em conta os even­tos históricos e culturais mais amplos para entender as qualidades e as práticas associadas ao bem-viver (vide, por exemplo, Leonge Wong, 2003; Schimmel, 2000; Sue e Constantine, 2003). As sabedorias ante­riormente negligenciadas das tradições orientais estão sendo consultadas para acrescentar diferentes pontos de vista em relação a essas qualidades humanas.

Neste capítulo, discutimos as perspec­tivas e os ensinamentos orientais em ter­mos de suas influências na pesquisa e nas aplicações da psicologia positiva. [45] Em primeiro lugar, apresentamos os principais preceitos do confucionismo, taoísmo, bu­dismo e do hinduísmo, e demonstramos como cada tradição caracteriza importan­tes qualidades e resultados na vida. A se­guir, discutimos algumas das diferenças fundamentais e inerentes entre os sistemas de valores, processos de pensamento e os resultados que se buscam na vida nas cul­turas oriental e ocidental. Também expomos a ideia oriental do “bem-viver” e dis­cutimos as qualidades associadas a ela (mais embutidas nas culturas orientais do que nas ocidentais) que ajudam os orien­tais a atingir resultados positivos em suas vidas. Em seguida, encerramos com uma discussão das visões ocidentais sobre os conceitos de compaixão e harmonia como as duas qualidades básicas e necessárias para se atingir uma boa vida.

Confucionimo, Taoísmo, Budismo e Hinduísmo

Resumir milhares de anos de ideolo­gia e tradição orientais está, obviamen­te, além dos objetivos deste capítulo. Por­ tanto, destacamos os preceitos básicos das quatro disciplinas orientais influentes do confucionismo, do taoísmo (tradições geralmente associadas à China), do budismo e do hinduísmo (enraizadas em tra­dições do Sudeste da Ásia). Como é o caso no contexto histórico ocidental, o conceito de “bem-viver” existe na tra­dição oriental há muitos séculos. Ao contrário da ideia da cultura ocidental sobre o funciona­mento ideal como algo que ocorre intrapsiquicamente, as culturas orientais acreditam que uma experiência de vida ideal é uma jornada espiritual envolvendo transcendência e iluminação. Essa busca por transcendência espiritual é paralela às buscas esperançosas ocidentais de uma vida melhor na Terra.

Confucionismo

Confúcio, ou o Sábio, como é chama­do às vezes, sustentava que a liderança e a educação são centrais à moralidade. Nasci­do em um tempo em que sua pátria chinesa era assolada por conflitos, Confúcio en­fatizou a moralidade como potencial para os males da época (Soothill, 1968). A ética confucionista, que já foi comparada às obras do filósofo ocidental Immanuel Kant, tem definições claras e significados relativamen­te inflexíveis (Ross, 2003; por exemplo, “Sua tarefa é a de governar, e não a de matar”, Analecto, 12:19, em instruções a governan­tes que recorrem à força). Os preceitos do confucionismo estão cheios de citações que estimulam cuidar do bem-estar dos outros. Na verdade, um dos ditados mais famosos de Confúcio é um precursor da chamada “regra de ouro” e poderia ser traduzido como: “Você gostaria que outros lhe fizes­sem aquilo de que gostaria para si mesmo” (Ross, 2003; Analecto, 6:28). Esses ensina­mentos estão reunidos em diversos livros, sendo que o mais famoso deles é o I Ching (O livro das mutações).

A conquista da virtude está no centro dos ensinamentos confucianos. As cinco virtudes consideradas centrais a uma exis­ tência moral são jen (humanidade, a virtu­de mais exaltada por Confúcio), yi (dever); li (etiqueta); zhi (sabedoria) e xin (since­ridade). O poder de jen deriva do fato de que se diz que ela engloba as outras qua­tro virtudes. O conceito de yi descreve o tratamento inadequado que se dá aos ou­tros e pode ser definido como o dever de [46] tratá-los bem. O conceito de li promove a retidão e as boas maneiras, junto com sen­sibilidade aos sentimentos dos outros (Ross, 2003). Por fim, as idéias de zhi e xin defi­nem a importância da sabedoria e da sin­ceridade, respectivamente. Os seguidores de Confúcio devem se esforçar para tomar decisões sábias com base nessas cinco vir­tudes. E também devem ser fiéis a elas. O esforço contínuo para atingir essas virtu­des leva o seguidor confuciano à ilumina­ção, ou ao bem-viver.

Taoísmo

As idéias taoístas antigas são difíceis de discutir com públicos ocidentais, em parte em função da natureza intraduzível de alguns conceitos fundamentais na tra­dição taoísta. Lao-Tzu (o criador da tradi­ção taoísta) declara em suas obras que os seguidores devem viver segundo o Tao (tra­duzido, de forma geral, como “O cami­nho”). O caractere chinês que retrata o conceito de Caminho é uma cabeça em mo­vimento e “se refere simultaneamente a direção, movimento, método e pensamen­to” (Peterson e Seligman, 2004, p. 42; Ross, 2003); além disso, corporifica a natureza ubíqua dessa força. O Tao é a energia que circunda a todos e é uma força que “envol­ve, circunda e flui por meio de todas as coisas” (Western Reform Taoism, 2005, p. 1). Nesse sentido, Lao-Tzu (1994, p. 47) descreve o Caminho da seguinte forma:

Pode-se falar do Caminho,
Mas não será um caminho constante; Pode-se pronunciar seu nome,
Mas não será um nome constante.
O inominável é a origem de todos os seres;
O que é nominável foi a mãe de todos os seres.
Por isso, livre-se constantemente dos desejos, para observar sua sutileza;
Mas permita-se sempre ter desejos para observar o que vem depois.
Os dois têm as mesmas origens, mas nomes diferentes.
De ambos se diz escuros,
Trevas sobre trevas
O portal a tudo é sutil.

Embora Lao-Tzu seja eloqüente ao expor suas visões sobre o Caminho, mui­tos leitores dessas li­nhas ficam com al­guma incerteza so­bre seu real signifi­cado. Segundo tra­dições taoístas, a di­ficuldade de enten­der o Caminho pro­vém do fato de que não se pode ensinar sobre ele a outra
pessoa. Em lugar disso, a compreensão flui de se vivenciar o Caminho por conta própria, participando da vida de forma integral. Nesse processo, as experiências boas e más podem contri­buir para uma compreensão maior do Ca­minho. Também se diz que ele engloba o equilíbrio e a harmonia entre conceitos contrastantes (isto é, não haveria luz sem escuro, não haveria masculino sem femi­nino, e assim por diante) (Ontario Consul­tants on Religious Tolerance, 2004). Sobre esse último aspecto, o símbolo de yin e yang (descrito mais detalhadamente a se­guir) reflete esse equilíbrio em constante mudança entre forças e desejos opostos.

Conquistar a naturalidade e esponta­neidade na vida é o objetivo mais impor­tante na filosofia taoísta. Logo, as virtudes da humanidade, da justiça, da temperança e da retidão devem ser praticadas pelo [47] individuo virtuoso sem esforços (Cheng, 2000). Alguém que chegou à transcendência den­tro dessa filosofia não tem que pensar so­bre o funcionamento ideal, pois se com­porta naturalmente de forma virtuosa.

Budismo

A busca do bem dos outros está entretecida em todos os ensinamentos do “Mestre” ou do “Ilu­minado” - o Buda. Em uma passagem, o Buda teria dito “Vão, para o bem-estar de muitos, pa­ra a felicidade de muitos, por compai­xão pelo mundo” (Sangharakshita, 1991, p. 17). Ao mesmo tempo, ele ensina que o sofrimento é parte do ser e que é causado pela emoção huma­na do desejo. Esse desejo se reflete nas Quatro Nobres Verdades do budismo:

  1. Avida é sofrimento; ela é essencialmen­te dolorosa do nascimento à morte.
  2. Todo o sofrimento é causado pela igno­rância da natureza da realidade e pelos desejos intensos, os vínculos e o senti­mento de posse que resultam.
  3. O sofrimento pode ser extinto na supe­ração da ignorância.
  4. O caminho para o alívio do sofrimento é o Caminho Nobre de Oito Passos (vi­sões corretas, intenções corretas, fala correta, ação correta, meio de vida cor­reto, esforços corretos, disposições cor­retas e contemplação correta).

Segundo a ideologia budista, enquan­to houver anseios intensos, não se poderá conhecer a paz, e essa existência sem paz é considerada sofrimento (Sangharakshita, 1991). Esse sofrimento só pode ser reduzi­do ao se atingir o nirvana, que é a destinação final na filosofia budista. Nessa li­nha, o nirvana é um estado no qual o eu é libertado do desejo de qualquer coisa (Schumann, 1974). Deve-se observar que os estados de nirvana pré-mortal e pós-mortal são apresentados como possíveis para o indivíduo. Mais especificamente, o nirvana pré-mortal pode ser associado, em última análise, à ideia do “bem-viver”. O nirvana pós-mortal pode ser semelhante à ideia cristã de paraíso.

Assim como as outras filosofias ori­entais, o budismo atribui um importante lugar à virtude, que é descrita em vários catálogos de qualidades pessoais. Os bu­distas falam de Brahma Viharas, as virtu­des que estão acima de todas as outras em importância (descritas por Peterson e Seligman, 2004, p. 44, como “virtudes uni­versais”) e incluem o amor (maitri), a com­paixão (karuna), alegria (mudita) e a equanimidade (upeksa) (Sangharakshita, 1991). Os caminhos para se atingirem es­sas virtudes dentro do budismo requerem que as pessoas se desvinculem da emoção humana do desejo para dar um fim ao so­frimento.

Hinduísmo

A tradição hindu difere um pouco das outras três filosofias discutidas anterior­mente, no sentido de que não parece ter um fundador específico, e não está claro quando teve início na história (Stevenson e Haberman, 1998). Além disso, não há um texto único que permeie essa tradição, embora muitas pessoas mencionem os Upanishads como o conjunto mais usado de escritos. Em lugar de seguir diretrizes escri­tas, muitos seguidores do hinduísmo “pensam em sua religião como algo baseado em uma forma de ação, em lugar de um texto escrito” (Stevenson e Haberman, p. 45). Os principais ensinamentos da tradição hindu enfatizam o caráter interconectado de to­das as coisas. A ideia de uma união harmoniosa entre todos os indivíduos está [48] entretecida nos ensinamentos do hinduísmo que se referem a um “princípio único e unificador que está por trás de toda a Ter­ra” (Stevenson e Haberman, 1998, p. 46).

Os Upanishads discutem dois cami­nhos possíveis após a morte: o da reencarnação (ou retorno à Terra para continuar a tentar chegar à necessária iluminação) ou o da não-reencarnação (que significa que se atingiu o conhecimento mais eleva­ do possível durante a vida). Esse último caminho é o mais glorificado e o que os seguidores do hinduísmo tentariam atingir. O objetivo da pessoa dentro dessa tradição seria o de viver a vida de forma tão inte­gral e correta que ela iria diretamente para a vida que há depois da morte, sem ter de repetir as lições da vida em uma forma reencarnada (Stevenson e Haberman, 1998). Os ensinamentos hindus são muito claros em relação às qualidades que se de­vem corporificar para evitar a reencarnação: “Retornar a este mundo é um indica­tivo de que não se conseguiu atingir o conhecimento máximo do próprio eu” (Stevenson e Haberman, p. 53). Dessa for­ma, o objetivo da vida de uma pessoa é chegar ao máximo autoconhecimento e lutar pelo maior aprimoramento possível de si mesma (o que também é um conceito ocidental). Essa ênfase no aprimoramento pessoal faz eco aos ensinamentos budistas, mas contrasta muito com a crença confuciana de que a cidadania e o bem coletivo são muito mais importantes do que melho­rar individualmente (Dahlsgaard, Peterson e Seligman, 2005; Peterson e Seligman, 2004). Isso não significa, contudo, que o foco da tradição hindu esteja somente no indivíduo. Os indivíduos são estimulados a ser bons para com os outros, além de aprimorar a si mesmos. Os Upanishads di­zem: “Um homem se torna algo de bom por meio das boas ações, e algo de mau por meio das más ações” (Stevenson e Haberman, p. 54).

As “boas ações” também são estimu­ladas no sentido de que, se não se atinge o máximo autoconhecimento na própria vida e se tem que retornar à Terra via reencarnação após a morte, as boas ações da vida anterior estão diretamente correlacionadas com uma melhor colocação no mundo nes­ta vida (Stevenson e Haberman, 1998). Esse processo é conhecido como carma. Na próxima vida, o indivíduo deve, mais uma vez, lutar para se aprimorar, e assim o fará em sucessivas vidas, até que atinja seu ob­jetivo maior de autoconhecimento. Portan­to, o bem-viver na tradição hindu engloba indivíduos que estão permanentemente ad­quirindo conhecimento e trabalhando em direção a boas ações (Dahlsgaard, Peterson e Seligman, 2005; Peterson e Seligman, 2004; Stevenson e Haberman, 1998).

Resumo das filosofias orientais

Cada uma das filosofias orientais dis­cutidas aqui incorpora idéias sobre a im­portância da virtude, junto com qualida­des do ser humano, à medida que as pes­soas avançam rumo à boa vida (ou seja, rumo à transcendência). Também se po­dem identificar semelhanças entre as qua­tro, especialmente os tipos de qualidades humanas e experiências que são valoriza­das. Elas são discutidas em detalhe nas se­ções que seguem, mas, antes, é importan­te comparar as visões orientais com a ideologia ocidental para entender as diferen­ças na psicologia positiva vistas a partir de cada perspectiva.

Quando o Oriente encontra o Ocidente

As ideologias orientais e ocidentais são oriundas de eventos históricos e tradi­ções muito diferentes. Tais diferenças po­dem ser vistas explicitamente nos sistemas de valores de cada uma dessas visões em relação ao viver, suas orientações sobre o tempo e seus respectivos processos de pen­samento. Essas diferenças culturais dão [49] mais informações sobre as qualidades identificadas em cada cultura e sobre as formas como se buscam e se atingem re­ sultados positivos na vida.

Sistemas de valores

Os sistemas culturais de valores têm impactos importantes na determinação das qualidades versus defeitos (Lopez, Edwards, Magyar-Moe, Pedrotti e Ryder, 2003). En­quanto a maioria das culturas ocidentais tem perspectivas individualistas, a maioria das culturas orientais (japonesa, chinesa, vietnamita, indiana e outras) é guiada por pontos de vista coletivistas (vide também o Capítulo 18). Nas culturas individualistas, o principal foco é a pessoa individual, que é considerada como mais importante do que o grupo. A competição e a conquista pessoal são enfatizadas dentro dessas cul­turas. Nas culturas coletivistas, contudo, o grupo é valorizado acima do indivíduo, e se acentua a cooperação (Craig e Baucum, 2002). Tais diferentes ênfases sobre o que se valoriza determinam quais constructos são considerados como qualidades em cada tipo de cultura. Por exemplo, as culturas ocidentais valorizam muito as idéias de li­berdade e autonomia pessoal. Por esse motivo, a pessoa que “caminha com os próprios pés” é considerada como possuidora de força dentro dessa visão de mundo. Em uma cultura oriental, por outro lado, essa afirmação do eu não seria vista como um recurso positivo, já que a sociedade busca estimular a interdependência dentro do grupo.

Intimamente relacionados à interde­pendência valorizada nas culturas coleti­vistas estão os conceitos de compartilha­mento e dever para com o grupo. Além dis­so, dá-se valor a se manter fora de confli­tos e “seguir a maré” nas formas orientais de pensar. A história japonesa “Momotaro” (“O menino-pêssego”, Sakade, 1958) ofe­rece um exemplo excelente da importân­cia cultural dos traços de interdependência, da capacidade de evitar o conflito e do dever para com o grupo. A história come­ça com um casal de idosos que sempre quis um filho, mas nunca conseguiu conceber. Um dia, quando a mulher está lavando suas roupas em um riacho, um pêssego gigante flutua até onde ela está e, ali chegando, abre-se, revelando um bebê! A mulher leva Momotaro (“O menino-pêssego”) para casa, e ela e o marido o criam. Momotaro cresce e se torna um jovem excelente e, aos 15 anos, diz aos pais que já chega de os ogros do país vizinho atormentarem o povo de sua vila. Para orgulho de seus pais, ele decide lutar contra os ogros e trazer de volta o tesouro para a vila. No caminho, Momotaro faz muitas amizades com ani­mais, um a um. Os animais querem lutar contra cada animal novo que encontram, mas, diante dos pedidos de Momotaro, “o cachorro-do-mato, o macaco e o faisão, que costumavam se odiar, tornam-se amigos e seguem Momotaro fielmente” (Sakade, 1958, p. 6 ). No final da história, Momotaro e seus amigos animais derrotam os ogros ao trabalhar juntos, e trazem o tesouro de volta à vila, onde todos os que ali vivem compartilham a recompensa. Como herói, Momotaro retrata as qualidades valoriza­das na cultura japonesa e em outras cultu­ras asiáticas:

  1. ele parte em busca do bem do grupo, embora arrisque danos individuais (coletivismo);
  2. ao longo do caminho, impede as brigas mesquinhas de outros (promoção da harmonia);
  3. trabalha com eles para atingir esse obje­tivo (interdependência e colaboração); e 
  4. traz de volta um tesouro para compar­tilhar com o grupo (interdependência e compartilhamento).

Em comparação com essa estória de Momotaro, a estória do herói ocidental pode diferir em vários pontos, especialmen­te naquele em que o herói necessita da aju­da de outros, dado que as conquistas [50] individuais costumam ser mais valorizadas do que as conquistas coletivas. Dessa forma, a orientação cultural determina quais ca­racterísticas são transmitidas aos seus mem­bros como sendo qualidades.

Orientação em relação ao tempo

Também há diferenças entre o Orien­te e o Ocidente em termos de suas orienta­ções em relação ao tempo. Em culturas oci­dentais tais como a dos Estados Unidos, mui­tas vezes olhamos para o futuro (vide os capítulos 2 e 9). Na verdade, algumas das qualidades que parecemos valorizar mais (como a esperança, o otimismo, a autoeficácia, vide o Capítulo 9) refletem o pen­samento voltado ao futuro. Nas culturas orientais, contudo, há um foco e um respei­to maiores em relação ao passado. Esse foco no passado se revela no antigo provérbio chinês “Para conhecer a estrada que tens por diante, pergunta aos que estão voltando”. Portanto, determinadas características de personalidade podem ser definidas como qualidades em termos de sua compatibili­dade com uma determinada orientação em relação ao tempo. Por exemplo, certos ti­pos de solução de problemas podem ser considerados mais vantajosos do que outros. Em uma antiga fábula chinesa, “O cavalo velho conhece o caminho”, um grupo de soldados viaja para longe de casa - nas montanhas - e, quando tenta encontrar o caminho de volta, perde-se. Um dos solda­dos propõe a seguinte solução: “Podemos usar a sabedoria de um cavalo velho. Liber­tem os cavalos velhos e os sigam, e assim encontrem a estrada certa” (Pei, 2005, p. 1). As culturas orientais valorizam a carac­terística de saber “olhar para trás” e reco­nhecer a sabedoria dos mais velhos.

Processos de pensamento

Ao considerar os aspectos únicos dos pensamentos ocidental e oriental, muitas vezes nos concentramos na natureza de idéias específicas, mas não refletimos sobre o processo de conectar e integrar idéias. De fato, como já observaram pesquisado­res (como Nisbett, 2003), existem diferenças claras nos próprios processos de pen­samento usados por ocidentais e orientais, o que resulta em visões de mundo e enfo­ques à produção de sentido marcadamente divergentes. Richard Nisbett, professor da Universidade de Michigan que estuda a psicologia social e a cognição, ilustra como entendeu algumas dessas diferenças duran­te uma conversa com um estudante chinês. Nisbett relembra.

Alguns anos atrás, um estudante chinês muito inteligente começou a trabalhar comigo em questões de psicologia social e raciocínio. Um dia, no início de nossa convivência, ele disse: “Sabe de uma coi­sa, a diferença entre você e eu é que eu vejo o mundo como um círculo, e você o vê como uma reta...”. Os chineses acredi­tam na transformação permanente, mas com tudo sempre retornando a algum estado anterior. Eles prestam atenção a uma ampla gama de eventos, buscam re­lações entre as coisas e acham que não se pode entender a parte sem entender o todo. Os ocidentais vivem em um mundo mais simples, mais determinista; eles se concentram em objetos ou pessoas sali­entes, em lugar do quadro mais amplo, e acreditam que conseguem controlar eventos porque conhecem as regras que comandam o comportamento dos objetos (p. xiii).

Como demonstra a história de Nisbett, o pensamento utilizado pelo estudante chi­nês, e não apenas as idéias em si, é muito diferente do de Nisbett. O estilo mais cir­cular de pensamento é mais bem exem­plificado pela figura taoísta do yin/yang. A maioria das pessoas conhece o símbolo, que representa a natureza circular, em constante mudança, do mundo, da manei­ra que o vê o pensamento oriental. A parte escura do símbolo representa o feminino e o passivo, e a parte clara, o masculino e o [51] ativo. Cada parte existe em função da outra, e nenhuma delas poderia existir só segundo a visão taoísta. Quando se experimenta um estado, o outro não tardará a segui-lo; se estamos passan­do por tempos difíceis, outros mais fáceis estão a caminho. Esse padrão de pensa­mento mais circular afeta a maneira como o pensador oriental mapeia sua vida e, por­ tanto, pode influenciar as decisões que uma pessoa toma na busca de paz.

Um exemplo dos efeitos dessas for­mas diferentes de pensar pode ser encon­trado nas coisas que o ocidental busca em sua vida, em comparação com o oriental. Enquanto nos Estados Unidos damos alta prioridade ao direito “à vida, à liberdade e à busca da felicidade”, os objetivos de um oriental podem ter foco diferente. Tome­mos, por exemplo, o constructo da psico­logia positiva sobre a felicidade (vide o Capítulo 7). Os pesquisadores propuseram que a felicidade (seja coletiva, seja indivi­dual) é um estado comumente buscado tanto por orientais quanto por ocidentais (Diener e Diener, 1995). A diferença na abordagem filosófica à vida, contudo, pode dar às buscas aparências muito diferentes. Por exemplo, o ocidental cujo objetivo é a felicidade traça uma linha reta até esse objetivo, procurando cuidadosamente os obstáculos e encontrando possibilidades de se desviar deles. Seu objetivo é atingir a felicidade eterna. Para o oriental que se­gue o yin/yang, todavia, esse objetivo da felicidade pode não fazer sentido. No caso de buscar a felicidade e encontrá-la, na forma oriental de pensar, isso só significa­ria que a infelicidade estaria próxima. Em lugar disso, o oriental pode ter como obje­tivo o equilíbrio, acreditando no fato de que, embora possa haver muita infelicida­de ou muito sofrimento na vida de uma pessoa, eles seriam equilibrados por muita felicidade. Esses dois tipos distintos de pen­samento criam formas muito diferentes de estabelecer objetivos e conquistar a boa vida.

Oriente e ocidente: algum é melhor?

Diferenças importantes nos tipos de idéias e na forma como elas são organiza­das surgem das tradições orientais e oci­dentais, mas é importante lembrar que nenhuma é “melhor” do que a outra. Isso é especialmente relevante para discussões com relação às qualidades. Portanto, de­vemos usar a cultura como uma lente para avaliar se uma determinada característica pode ser considerada como uma qualida­de ou um defeito dentro de um determina­ do grupo.

Caminhos diferentes para resultados positivos

Até aqui, discutimos como os estilos de pensamento influenciam o desenvolvi­mento de objetivos nas vidas de ocidentais e orientais. Também existem diferenças, contudo, nos caminhos que cada grupo utiliza para avançar em direção a esses objetivos. O pensamento de orientação ocidental se concentra nos objetivos do in­divíduo, ao passo que os filósofos orientais sugerem um foco diferente, no qual o gru­po se destaca. Por exemplo, Confúcio dis­se: “Se quiser chegar a seu objetivo, ajude os outros a chegar aos seus” (Soothill, 1968, Analectos, 6:29). Da mesma forma, embora a esperança possa ser a ferramen­ta básica do “individualista rigoroso” (isto é, o ocidental, vide o Capítulo 2) ao avan­çar rumo ao bem-viver, outras ferramentas podem ter precedência na vida do orien­tal. Por exemplo, qualidades que ajudam a criar e sustentar relações interdependentes para os orientais podem ser mais valiosas para ajudá-los a atingir seus objetivos. [52] Essas virtudes podem ser muito importantes para ajudar os orientais a desenvolver ca­minhos que garantam que se atinjam obje­tivos coletivos, ajudando-os a realizar seus objetivos individuais.

Nos principais ramos dos ensina­mentos orientais (confucionismo, taoísmo, budismo e hinduísmo), mencionam-se re­petidamente os dois constructos da com­paixão pelos outros e da busca de harmo­nia ou equilíbrio na vida. Dessa forma, cada um deles tem um lugar claro no estudo da psicologia positiva a partir da perspectiva oriental.

Compaixão

A ideia da compaixão tem suas ori­gens nas filosofias ocidental e oriental. Dentro da primeira, Aristóteles costuma ser apontado por seus escritos precoces sobre o conceito de compaixão. Da mesma for­ma, a compaixão pode ser identificada nas tradições orientais do confucionismo, do taoísmo, do budismo e do hinduísmo. Nos ensinamentos confucianos, a compaixão é discutida dentro do conceito de jen (hu­manidade) e se diz que ela engloba todas as outras virtudes. Na visão taoísta, a hu­manidade também reflete comportamen­tos que devem ocorrer naturalmente, sem premeditação. Por fim, Buda costuma ser descrito como “perfeitamente iluminado e infinitamente compassivo” (Sangharak- shita, 1991, p. 3). Como tal, a ideia da compaixão, ou karuna, também está entretecida em todo o budismo como vir­tude no caminho em direção à trans­cendência. Por fim, dentro da tradição hindu, a compaixão é evocada em boas ações em relação aos outros, que irão direcionar os seguidores para o caminho que não exigirá que retornem à Terra após a morte.

Em recentes trabalhos de psicologia positiva, o médico Eric Cassell (2002) pro­pôs os três requisitos a seguir para a com­paixão:

  1. as dificuldades do receptor devem ser graves,
  2. elas não podem ser causadas por ele mesmo e
  3. nós, como observadores, devemos ser capazes de nos identificar com seu so­frimento.

A compaixão é descrita como uma “emoção unilateral” (Cassell, p. 435) que é dirigida para fora da pessoa. Nos ensi­namentos budistas, atingir a compaixão significa ser capaz de “transcender a preo­cupação com a centralidade do eu” (Cas­sell, p. 438), isto é, concentrar-se em ou­tros em lugar de simplesmente em nós mes­mos. A capacidade de possuir sentimentos por algo que é completamente separado de nosso próprio sofrimento nos permite transcender o eu e, dessa forma, chegar mais perto do bem-viver. Na verdade, diz-se que a compaixão transcendental é a mais importante das quatro verdades universais, e muitas vezes é chamada de Grande Com­paixão (mahakaruna) para diferenciá-la da karuna, mais aplicada (Sangharakshita, 1991). Da mesma forma, embora discuti­das de maneiras um pouco diferentes como princípios confucianos, taoístas e hindus, as capacidades de sentir e fazer algo pelos outros são centrais para se conquistar o bem-viver também para cada uma dessas tradições.

A compaixão ajuda a pessoa a ter êxi­to na vida e é considerada uma caracterís­tica importante na tradição oriental. Os sentimentos por membros do mesmo gru­po podem possibilitar a identificação com outros e o desenvolvimento de coesão de grupo. Além disso, o agir com compaixão estimula a felicidade coletiva em lugar da individual.

A compaixão também pode vir mais naturalmente à pessoa de uma cultura coletivista do que àquela de uma cultura individualista. Nesse aspecto, pesquisado­res afirmaram que uma cultura coletivista pode construir um sentido de compaixão na forma de um comportamento [53] pró-social por parte de seus membros (Batson, 1991; Batson, Ahmad, Lishner e Tsang, 2002). Quando se forma uma identidade de grupo, portanto, a escolha natural pode ser a dos benefícios coletivos em detrimen­to dos individuais. Seria interessante ter mais informações de estudos qualitativos e quantitativos nessa área para se defini­rem os mecanismos usados para estimular essa compaixão.

Peterson e Seligman (2004) indicam que a característica de “humanidade” pode ser considerada como um “ponto forte uni­versal” em seu livro Character strengths and virtues: a handbook and classification (Qua­lidades de caráter e virtudes: manual e clas­sificação). Para as tradições ocidental e oriental, eles afirmam que a capacidade de ter sentimentos pelos outros é uma parte necessária na busca do bem-viver. A com­paixão, um aspecto da humanidade, signi­fica olhar para fora de nós mesmos e pen­sar nos outros, ao nos identificarmos e nos preocuparmos com eles. Esse foco para além do eu é necessário para transcender o corpo físico, segundo as tradições orien­tais. O nirvana só pode ser atingido quando a própria identidade independente e os de­sejos de motivação própria que a acompa­nham forem erradicados completamente.

Sendo assim, ao avançar em direção à boa vida, a compaixão é essencial para lidarmos com as tarefas do dia-a-dia. Ao se percorrer o caminho que leva a esse bem-viver, o objetivo permanente é transcender o plano humano e se tornar iluminado por meio de experiências com outros e com o mundo. A compaixão pede que as pessoas pensem para fora de si mesmas e se conectem às outras. Ademais, ao entender os ou­tros, a pessoa se aproxima do autoconhecimento. Esse é mais um componente fun­damental para se atingir a transcendência.

Harmonia

Na história ocidental, diz-se que os gregos consideravam a felicidade como a capacidade de “exercer poderes na busca de excelência em uma vida livre de restri­ções” (Nisbett, 2003, p. 2-3). Dessa forma, a boa vida é considerada como aquela sem vínculos com o dever e com liberdade para ir em busca de objetivos individuais. Há distinções claras quando se compara essa ideia com os ensinamentos confucianos, por exemplo, nos quais o dever (yi) é uma virtude básica. Na filosofia oriental, a feli­cidade é descrita como ter as “satisfações de uma vida rural plena, compartilhada com uma rede social harmoniosa” (Nisbett, p. 5-6, grifos nossos). Nessa tradição, a harmonia é considerada central para se atingir a felicidade.
Nos ensinamentos budistas, ao atin­gir um estado de nirvana, as pessoas che­garam a um estado de paz que implica “harmonia, estabilidade e equilíbrio com­ pletos” (Sangharakshita, 1991, p. 135). Do mesmo modo, nos ensinamentos confucionistas, a harmonia é considerada crucial para a felicidade. Confúcio elogi­ava muito as pessoas capazes de harmo­nizar; ele comparava essa capacidade com “um bom cozinheiro misturando os sabo­res e criando algo harmônico e delicioso” (Nisbett, 2003, p. 7). Relacionar-se bem com outros possibilita que a pessoa se li­berte dos objetivos individuais e, ao fazê-lo, alcance a “ação coletiva” (Nisbett, p. 6 ) para produzir o que é bom para o gru­po. Dessa forma, o princípio harmonizador é um preceito central ao estilo de vida oriental. O equilíbrio e a harmonia que se atingem como parte de uma vida ilumi­nada são considerados, muitas vezes, como representantes da finalidade maior da boa vida. Nos ensinamentos hinduístas, também se pode ver que, como todos os seres humanos estão interconectados por um “único princípio unificador” (Steven­ son e Haberman, 1998, p. 46), deve-se buscar a harmonia. Se um indivíduo ca­minha pela vida sem considerar os outros conectados a ele, os efeitos podem ser pro­fundos para esse indivíduo e para o gru­po (Stevenson e Haberman). [54]

Até agora, o conceito de harmonia re­cebeu atenção mínima no campo da psicolo­gia positiva, embora se tenha tratado um pouco da ideia de apreciar o equilíbrio na vida em relação a outros constructos (como a sabedoria; vide Baltes e Staudinger, 2000, e o Capítulo 10). Clifton e colaboradores (Buckingham e Clifton, 2001; Lopez, Hod­ ges e Harter, 2005) incluem um tema relacio­nado à harmonia no Clifton Strengths Finder (vide o Capítulo 4), descrevendo esse constructo como um desejo de encontrar consenso entre o grupo, em vez de promo­ver idéias conflituosas. A literatura sobre psi­cologia nos Estados Unidos deu um pouco mais de atenção acadêmica à harmonia. Con­siderando-se o papel central da harmonia como um ponto forte nas culturas orientais, podem ser necessárias mais pesquisas sobre esse tópico no futuro. Em primeiro lugar, o conceito de harmonia muitas vezes é con­fundido com a noção de conformidade. Es­tudos para identificar as diferenças entre es­ses dois constructos poderiam ser benéficos para definir cada um deles mais claramente. Como o termo conformidade tem conotações um pouco negativas em nossa cultura vol­tada à independência, é possível que algu­mas dessas mesmas caracterizações negati­vas tenham sido estendidas ao conceito de harmonia.

Em segundo, poderiam ser usados métodos qualitativos de pesquisa para de­senvolver uma definição melhor de harmo­nia. Atualmente, o conceito de harmonia se reflete na virtude da justiça, como dis­cutido por Peterson e Seligman (2004) em sua classificação de qualidades. Esses au­tores observam que a capacidade de “tra­balhar bem como membro de um grupo ou equipe, de ser leal ao grupo, de fazer a sua parte” (p. 30) pode ser uma subdivi­são da ideia de qualidade cívica. Embora essa possa ser uma forma de classificar essa qualidade, pode-se dizer que a ideia de harmonia é mais ampla do que essa defini­ção específica e pode ser pensada separa­damente da lealdade e da contribuição. Além disso, o fenômeno da harmonia pode ser um ponto forte interpessoal (conforme descrito nos parágrafos anteriores) e um ponto forte intrapessoal.
Por fim, depois de realizar mais tra­balho conceitual, os estudiosos da psicolo­gia positiva poderiam aproveitar muito do desenvolvimento de mecanismos de avalia­ção confiáveis e válidos. Essas ferramentas ajudariam os pesquisadores a desvelar os fatores básicos que contribuem para a har­monia, bem como seus correlatos.

Reflexões finais

É importante reconhecer que, ao se discutirem os pensamentos orientais neste capítulo, um preceito fundamental dos es­tilos de vida orientais se rompe, em fun­ção do método de ensino decididamente ocidental, didático, usado para trazer essa informação a estudantes de psicologia po­sitiva. O oriental tradicional se oporia à noção de que tais conceitos podem ser aprendidos a partir de meras palavras, e afirmaria que só com a experiência isso seria possível. Como parte dos ensinamen­tos orientais, a autoexploração e experiên­cia prática real são essenciais para a verdadeira compreensão dos conceitos que são apresentados de maneira apenas introdu­tória neste capítulo. Portanto, recomenda­mos que você busque mais experiência com essas idéias na vida cotidiana e tente desco­brir a relevância que qualidades como com­paixão e harmonia têm para sua própria vida. Embora possam ser originárias da ideologia oriental, essas idéias são impor­tantes para os ocidentais que querem des­cobrir novas maneiras de pensar sobre o funcionamento humano. Ao estudar psico­logia positiva, você pode continuar a am­pliar seus horizontes refletindo sobre as idéias do Oriente. Desafie a si mesmo a ter uma mente aberta aos tipos de característi­cas aos quais poderia atribuir a denomina­ção qualidade, e se lembre que diferentes tradições trazem consigo valores distintos. [55]

Psicologia - Psicologia positiva
Personalidade - Forças de caráter, Transcedência
7/19/2020 3:12:21 PM | Por Shane J. Lopez
A história ocidental da esperança

A esperança tem sido uma força podero­sa por trás da civilização ocidental. Na ver­dade, olhando hoje a história registrada da civilização ocidental, a esperança - o pen­samento baseado na agência, concentrado em objetivos que fazem com que você saia daqui e chegue lá - tem estado tão entre­laçada no tecido das épocas e dos eventos de nossa civilização que pode ser difícil de detectar, como o fermento no pão. Nesse sentido, a crença em um futuro positivo se reflete em muitas das idéias e palavras de nosso dia-a-dia. Por exemplo, palavras como planejar e acreditar são portadoras de suposições sobre quanto tempo nos res­ta de vida e as probabilidades de que nos­sas ações venham a ter efeitos positivos nesses eventos futuros.

Este capítulo volta o olhar para idéias fundacionais e eventos exemplares que de­finiram a esperança moderna e o século XXI. Somos intencionalmente lineares em nossa narração histórica, começando com o mito grego da caixa de Pandora e termi­nando com uma história moderna de tri­unfo. No entanto, exploraremos antes como e por que uma força robusta como a esperança tem estado ausente de partes da narrativa da civilização ocidental.

Esperança: onipresente, mas oculta

Embora a esperança tenha um po­der impressionante e penetrante, muitas vezes não estamos conscientes de sua pre­sença, talvez porque esteja embutida em muitas idéias relacionadas. Por isso, a es­perança muitas vezes não é identificada pelo nome em fontes que são essencialmente relacionadas a ela (por exemplo, para uma visão minuciosa de como a es­perança raramente é discutida na filoso­fia, vide o livro O princípio da esperança [1959], de Ernst Bloch. Na verdade, se examinarmos os sumários de conteúdos ou índices de importantes obras ociden­tais, a palavra esperança não será encon­trada. Por exemplo, o índice do livro Key ideas in human thought (Idéias fundamen­tais do pensamento humano, McLeish, 1993) não contém um item para esperan­ça. Imagine a ironia de omitir o termo es­perança de um registro supostamente completo das idéias humanas! Segundo Bloch, a esperança tem sido “tão inexplo­rada quanto a Antártica” (citado em Schu­ macher, 2003, p. 2).

A Esperança como parte da Mitologia grega

Ao longo de toda a história humana, tem havido uma necessidade de que o mal possa ser transformado em bem, de que o feio se torne bonito e de que os problemas sejam solucionados, mas as civilizações di­feriram no grau em que consideravam es­sas mudanças possíveis. Por exemplo, ve­jamos o mito grego da caixa de Pandora, uma história sobre a origem da esperança. Há duas versões para essa história.

Em uma dessas versões, Zeus criou Pandora, a primeira mulher, para se vin­gar de Prometeu (e de todos os seres hu­ manos) porque este havia roubado o fogo dos deuses. Pandora foi dotada de beleza e graça impressionantes, mas também de uma tendência a mentir e a enganar. Zeus enviou Pandora com o baú contendo seu dote a Epimeteu, que se casou com ela. Usando o que pode ser um dos primeiros exemplos de psicologia reversa, Zeus ins­truiu Pandora a não abrir o baú quando chegasse à Terra. Obviamente, ela o igno­rou e abriu. Dali saíram todos os tipos de problemas para o mundo, mas não a espe­rança, que permaneceu no baú - não para ajudar a humanidade, mas para provocá- la com a mensagem de que a esperança não existe realmente. Nessa versão, por­tanto, a esperança não passava de um lo­gro cruel.

Uma segunda versão dessa história diz que todos os infortúnios terrenos fo­ram causados pela curiosidade de Pandora, antes de qualquer natureza inerentemente má. Os deuses a testaram com instru­ções de não abrir o baú com o dote. Ela foi mandada a Epimeteu, que a aceitou, malgrado os avisos de seu irmão, Prome­teu, sobre os presentes de Zeus. Quando Pandora abriu o baú, a esperança não era um logro, e sim uma fonte de conforto para os infortúnios (Hamilton, 1969). Nessa versão positiva da história, a esperança deveria servir como antídoto aos males (como a gota, o reu­matismo e a cólica para o corpo; e como a inveja, a malevo­lência e a vingança para a mente) que escaparam quando o baú foi aberto. Quer seja um logro quer seja um antídoto, es­sas duas versões des­sa história revelam a tremenda ambivalência dos gregos em re­lação à esperança.

A Esperança religiosa na civilização ocidental

A história da civilização ocidental se dá em paralelo às histórias do judaísmo e do cristianismo. É por isso que a expressão herança judaico-cristã costuma ser asso­ciada à civilização ocidental. Não é por aci­dente que a linha do tempo da civilização ocidental (vide as figuras 2.1 a 2.4) coinci­de com a herança judaico-cristã, incluindo o período antes da era comum (a.e.c.) e era comum (e.c.). Essas linhas do tempo destacam eventos importantes na história da religião: a inauguração da Catedral de Notre Dame, a construção da fachada oes­ te da catedral de Chartres e a publicação de Summa Theologica, de São Tomás de Aquino. Nesse aspecto, a presença da es­perança nos primórdios da civilização ocidental é ilustrada claramente em passagens bíblicas como “venha a nós o vosso reino, seja feita a vossa vontade” (Mateus, 6:10) e “...na esperança de que a própria criação seja redimida do cativeiro da corrupção para a liberdade da glória dos filhos de Deus” (Romanos, 8:18, 20, 21). Essas passagens refletem uma visão de esperança pelo Reino de Deus na Terra, bem como a [35]  esperança de que sua vontade seja feita assim na Terra como no céu. Ou, vejamos Coríntios 115:19, em que São Paulo escreve sobre a fé em Cristo nesta vida na Terra e além dela: “Se é só para esta vida que te­mos posta nossa esperança em Cristo, so­mos, de todos os homens, os mais dignos de lástima”. Além disso, as doutrinas do cristianismo sustentam que o reino de Deus na Terra não só é esperado, como também está previsto. Dessa forma, é lógico que a crença na esperança influencie as idéias e os pressupostos intelectuais seculares.

Como demonstrado por estes exem­plos de esperança e religião, de uma dis­posição esperançosa podem resultar em­preendimentos humanos impressionantes. Em cada caso, um verbo ativo está conec­tado a um substantivo que se refere a um resultado - uma conquista. Observe as pa­lavras abrir, construir e publicar. Deve-se observar, também, que esses verbos foram seguidos de substantivos que denotam con­quistas de nossa civilização, como as cate­drais de Chartres e Notre Dame.

Esses exemplos também são impor­tantes por serem conquistas em um cami­nho que parte de um período às vezes cha­mado de Idade das Trevas. É difícil, para nós, apreciar a força de vontade e os esfor­ços de nossos ancestrais, que lutaram para realizar importantes conquistas em um período conhecido pela ausência delas. De fato, embora essa época não tenha sido realmente obscura, a Idade Média (500-1450), antes do Renascimento, certamen­te estava envolvida nas sombras da opres­são e da ignorância, quando a inércia e a lassidão intelectual eram a norma. Como escreve Davies (1996, p. 291), Há um ar de imobilidade em muitas des­crições do mundo medieval. A impressão se cria por meio da ênfase no ritmo lento das transformações tecnológicas, no ca­ráter fechado da sociedade medieval e nas percepções fixas e teocráticas da vida hu­mana. Os principais símbolos do período são o cavaleiro de armadura em seu ca­valo, que se movia com dificuldade; os servos ligados à gleba (domínio ou pro­priedade) de seu senhor; e monges e frei­ras rezando em clausura. Eles são feitos para representar a imobilidade física, a imobilidade social, a imobilidade inte­lectual.

Essa imobilidade intelectual e social refletia uma paralisia da curiosidade e da iniciativa. A partir dos anos da Idade Mé­dia (500-1500), essa paralisia impediu o planejamento e a ação intencionais e sus­tentados que são necessários para que haja uma sociedade com esperança e desen­volvimento. Os fogos do avanço foram reduzidos a brasas durante esse milênio obscuro e se mantiveram acesos apenas em instituições como os monastérios e suas escolas.

Com o tempo, quando a Idade das Trevas foi encerrada pelas luzes brilhantes do Renascimento, com seu crescimento e prosperidade econômicos, a esperança pas­sou a ser considerada mais importante para a vida presente na Terra do que para de­pois da vida (ou seja, uma vida melhor na Terra se tornou possível, até mesmo pro­vável). Portanto, a esperança religiosa que se concentrava em um futuro distante, após a vida na Terra, tornou-se um pouco menos importante quando surgiu o Renascimento. Na verdade, o foco durante o Renascimento caiu na antecipação contemporânea de dias melhores no presente. Em relação a esse novo foco, o filósofo Immanuel Kant deci­diu que a natureza religiosa da esperança impedia sua inclusão nas discussões sobre como gerar transformações na Terra. Com essa mudança, a concepção religiosa de esperança se desvaneceu como motivação principal da ação. O fortalecimento e a ace­leração dessa mudança constituíram outro aspecto da esperança religiosa, identificada pelo que Farley (2003) chamou de “passi­vidade desejosa”, uma perspectiva que ain­da hoje influencia a esperança religiosa. Farley observa: ‘A esperança religiosa... dá uma falsa sensação de que tudo está real­mente bem e tudo ficará bem. A crença em um futuro final, nessa visão, direciona o [36] compromisso para um futuro que ainda chegará” (p. 25). Em outras palavras, a esperança religiosa voltada à vida após a morte pode se tornar uma barreira incons­ciente à ação nesta vida. O problema desse tipo de esperança religiosa, como descrito por Farley, é que ela pode dar uma sensa­ção de conforto postergado em relação a condições futuras. Infelizmente, ao se con­centrar em um estado desejado para o fu­turo, em lugar daquilo que deve acontecer para se atingir esse estado, as atenções e os esforços da pessoa são afastados do que é necessário no momento presente.

O comentário de Farley (2003) é se­melhante a um importante argumento apresentado por Eric Fromm em seu livro A revolução da esperança-tecnologia huma­nizada (1974). Fromm diz que algumas de­finições de esperança costumam ser “mal-entendidas e confundidas com atitudes que nada têm a ver com Esperança e, na ver­dade, são exatamente o seu oposto” (p. 6). O autor aponta que esperança não é a mes­ma coisa que desejos ou anseios (isto é, produtos da visualização de uma possibili­dade de mudança sem que se tenha um plano ou a energia necessária para produ­zir essa mudança). Diferentemente da es­perança, essas últimas motivações têm ca­racterísticas passivas nas quais se faz pou­co ou nenhum esforço para concretizar o objetivo desejado. Um nível extremo des­sa passividade gera o que Fromm chamou de niilismo (p. 8).

Revisão da história da esperança na civilização ocidental

O período pré-renascentista

As crenças positivas e a esperança por parte da civilização ocidental se solidifica­ram após o Renascimento, mas se deve observar que a esperança não estava total­mente ausente em épocas anteriores. Con­sideremos, por exemplo, a seguinte lista breve de exemplos de atividades humanas que aconteceram antes do Renascimento.

  • A construção do museu e da biblioteca de Alexandria (307 a.e.c.)
  • A abertura da primeira escola inglesa, em Canterbury (598 e.c.)
  • A publicação da coletânea de poesia in­glesa Exeter Book (970 e.c.)
  • O desenvolvimento da notação musical sistemática (990 e.c.)
  • Reflorescimento das tradições artísticas na Itália (1000)
  • Tentativa de voar ou flutuar (1000)
  • Início da construção da Catedral de York, na Inglaterra (1070)
  • Fundação da Universidade de Bolonha, na Itália (1119)
  • Construção do Hospital de São Bartolo­meu, na Inglaterra (1123)
  • Finalização da fachada oeste da cate­dral de Chartres, na França (1150)
  • Popularização do xadrez na Inglaterra (1151)
  • Fundação das universidades de Oxford (1167) e Cambridge (1200), na Inglaterra
  • Abertura da Catedral de Notre Dame, em Paris (1235)
  • Impressão da Summa Theologica, de São Tomás de Aquino (1273)
  • Desenvolvimento da cidade italiana de Florença como importante centro co­ mercial e cultural da Europa (1282)

Observemos es­ ses eventos na linha do tempo da Figura 2.1. Eles são reflexos do espírito das pes­soas para atingir ob­jetivos e de seu esfor­ço para tanto. Tais marcos históricos exigiram ações volta­das a objetivos, em lugar da simples es­pera pela chegada de tempos melhores ou o acontecimento de  coisas boas. Com o advento do Renasci­mento, esses pensamentos ativos e espe­rançosos começaram a ser acoplados a ações voltadas a objetivos. Na próxima se­ção, trataremos do Renascimento e de eventos cruciais.

O Renascimento

Começando na Itália, em 1450, e se estendendo até cerca de 1600, o Renas­cimento produziu mudanças nos costumes e nas instituições que dominaram a Euro­pa no milênio anterior. O feudalismo, o domínio da Igreja Católica e a vida rural e isolada deram lugar ao surgimento do nacionalismo, aos negócios e ao comércio, ao crescimento das cidades e à expansão das artes e da academia. A esperança ganhou vida durante esse renascer. Esse período histórico é visto agora mais como uma evo­lução do que uma revolução, e foi uma vi­rada que facilitou o surgimento da espe­rança ativa.

Dado que, no Renascimento, parte da ênfase estava no passado, como ele pode­ria ser considerado o começo da esperan­ça “moderna”? A resposta a esta pergunta é que, embora o Renascimento tenha ana­lisado a Antiguidade, grande parte da aná­lise foi feita para avançar e promover o conhecimento. Por exemplo, o direito ro­mano surgiu como uma área fundamental para os estudos jurídicos porque os juris­tas do Renascimento queriam examinar seus grandes códigos, o Digesto e o Códex. Portanto, a perspectiva renascentista era de [38] que a aprendizagem sobre o passado era necessária para atender às demandas de uma sociedade complexa e materialista que estava surgindo a partir do final da Idade Média. Da mesma forma, avanços em ou­tras áreas da vida e dos assuntos públicos foram construídos a partir de compreensões precisas da literatura, da filosofia e da arte anteriores.

Embora se tenham tornado campos em si, os estudos desses campos foram de­ senvolvidos basicamente para atingir obje­tivos mais mundanos como facilitar o co­mércio e a economia mercantilista. Sendo assim, a sociedade do Renascimento come­çou a considerar a realização mundana mais importante do que a preparação para a morte ou a realização após a morte.

Durante esse período, as pessoas tam­bém começaram a se considerar como in­divíduos em lugar de representantes de uma classe. Mais além, esse recém-surgido interesse nos méritos das realizações pessoais levou a uma dedicação a fazer coisas relacionadas a esta vida. Enquanto homens e mulheres medievais (500-1500 e.c.) estavam em busca de suas almas, os cidadãos do Renascimento olhavam para fora e para a frente, e isso para atingir ob­jetivos do aqui e agora, que se baseavam em suas capacidades e seus interesses pes­soais. Vide a Figura 2.2 para importantes eventos e conquistas do Renascimento.

O lluminismo

O período que se seguiu ao Renasci­mento, de cerca de 1700 ao final daquele século, é conhecido como a Era do [39] Iluminismo. Essa época marcou a superação de uma imaturidade caracterizada pela indis­posição para usar os próprios conhecimen­tos e inteligência.

Sobre isso, Immanuel Kant (1784) es­creveu: “Sapere aude! ‘Tem coragem de fa­zer uso de teu pró­prio entendimento!’ - Esse é o mote do Iluminismo” (citado em Gay, 1969, p.ll). Com efeito, o Ilumi­nismo representou uma declaração de independência em relação à aceitação, há muito estabele­cida, da autoridade na religião e na polí­tica, que datava dos tempos bíblicos.

Em uma atmosfera cultural que leva­va à exploração e à mudança, o Iluminismo estava enraizado no ressurgimento renas­centista do interesse pelos livros e pelas idéias de gregos e latinos, junto com o in­teresse por este mundo e não pelo outro. À medida que a autoridade religiosa da Igre­ja se enfraquecia, as influências comerciais, políticas e científicas começaram a ter um impacto cada vez maior nas vidas espiri­tuais, físicas e intelectuais das pessoas.

A palavra científico é fundamental para caracterizar o Iluminismo. A publica­ção de Princípios matemáticos de filosofia natural, de Isaac Newton, em 1687, tem sido usada por alguns para marcar o início do Iluminismo e a ascensão do método científico. Embora as raízes desse trabalho datem da época bíblica, as idéias de Newton cumpriram outros propósitos no sentido de ajudar a entender e a reverenciar a Deus.

A Revolução Científica foi parte inte­grante do Iluminismo e teve início quando a atmosfera política se tornou mais favo­rável a um clima de descoberta, como ex­presso nos trabalhos de estudiosos como Kepler, Galileu, Newton e Descartes. Gay (1966) descreve esse grupo de pensadores como um tipo de “coalizão” de cientistas e filósofos que consideravam as iniciativas de pesquisa como “passos” em um proces­so cumulativo, em lugar de meras desco­bertas acidentais e isoladas.

O Iluminismo refletiu a natureza da esperança, em função de sua ênfase em ações e capacidades racionais. Essas quali­dades estavam entrelaçadas com a crença dominante da época, a de que a razão que ganhou vida com o método científico leva­va a conquistas na ciência e na filosofia. Essas perspectivas estão em contraste di­reto com a predominância da ignorância, da superstição e da aceitação da autorida­de que caracterizaram a Idade Média. Des­crito em termos de uso da matemática como meio de descoberta e progresso, esse processo enfatizava a vontade racional. Assim, não é surpresa que a educação, a livre expressão e a aceitação de novas idéias crescessem muito durante o Iluminismo. Na verdade, as conseqüências desse pensa­mento ilustrado foram duradouras e refle­tiam o poder da esperança. Sobre esse aspecto, um exemplo é a educação e como ela reduz a probabilidade de que as ações venham a ser impulsivas, ou seja, a educa­ção deve promover análises e planos refle­tidos para se atingirem objetivos desejados. Mais além, a dignidade e o valor humanos foram reconhecidos durante o Iluminismo. Tomada em seu conjunto, a ideia de que conhecimento e planejamento poderiam produzir uma percepção de fortalecimen­to levou Francis Bacon ao objetivo de me­lhorar a condição humana. Entende-se, portanto, que Condorcet observou em seu Esboço para um quadro histórico do progres­so do espírito humano (1795) que o Iluminismo garantiu o progresso futuro e presente dos seres humanos.

Os resultados das crenças esperanço­sas podem ser vistos no impacto desses eventos importantes do Iluminismo:

  • Invenção da lançadeira (1773), que deu início à tecelagem moderna.
  • Redação da Declaração de Independên­cia dos Estados Unidos (1776)[40]
  • Ridicularização da alta sociedade pelo poeta Alexander Pope em Rape of the lock (1714)
  • Inauguração do Museu Britânico (1759)
  • Publicação de Crítica da razão pura, de Kant(1781)
  • Composição das três últimas sinfonias de Mozart (1788)
  • Publicação de Reflexões sobre a Revolu­ção na França, de Edmund Burke (1790)
  • Outros eventos e marcos são aponta­ dos na Figura 2.3.

A revolução industrial

Começando aproximadamente no fi­nal do século XVIII e continuando até o fi­nal do XIX, deu-se o período conhecido como Revolução Industrial (ou Era da Industrialização).

A passagem da produção de casas e pequenos ateliês para grandes fábricas au­mentou em muito os benefícios materiais para os cidadãos individuais (vide a Figura 2.4). Embora alguns resultados dessa épo­ca tenham sido disfuncionais e contrapro­ducentes, houve contribuições muito reais e importantes. Brogan (1960) descreve es­ ses avanços:

Como resultado dos avanços do século XIX e início do XX, as pessoas passaram a vi­ver mais tempo, poucas crianças morriam ainda bebês e muitos se alimentavam melhor, tinham moradia melhor e forma­ção escolar melhor. A unidade física do mundo se tornou possível com o navio a vapor, a locomotiva, o automóvel e o avião. A unidade da ciência foi exempli­ficada pela adaptação, alguns anos após [41] sua descoberta, do trabalho de Louis Pasteur sobre bactérias feito em Paris à prática de cirurgia antisséptica por Joseph Lister, na Escócia. Passou a ser fácil viver em áreas do mundo que anteriormente eram inabitáveis, ou habitáveis somente em um nível muito baixo de existência (citado em Burchell, 1966, p. 7).

Como escreveu, de forma eloqüente, Bronowski (1973) em seu capítulo A busca pelo poder, de A escalada do homem, a Re­volução Industrial tornou o mundo “nos­so”. De fato, a Revolução Industrial mar­cou uma virada no progresso da humani­dade, por ter proporcionado tantos benefícios materiais e pessoais. Talvez ainda mais importante, criou conforto que a maioria dos cidadãos poderia obter e des­frutar. Assim, os bens passaram a estar dis­poníveis para muitos, em vez de apenas para uns poucos. Esses benefícios incluíam a máquina a vapor e suas muitas aplica­ções, o ferro e o aço e as estradas de ferro (transporte e comunicação eficientes para todos), para citar apenas alguns exemplos que surgiram no século XX.

A civilização ocidental foi definida por sua massa crítica de eventos e crenças es­perançosos. Antes do Renascimento, do Iluminismo e da Revolução Industrial, e mesmo durante a Idade Média, o pensa­mento esperançoso foi uma parte funda­mental do sistema de crenças da humani­dade. Se algumas áreas históricas não re­velam sinais importantes, ainda assim houve marcos implícitos de esperança. [42] Portanto, embora a Reforma e a Idade da Razão (1600-1700) não sejam destacadas aqui, esses períodos testemunharam importan­tes avanços que contribuíram para a socie­dade. A seguir, uma amostra de eventos de destaque nesses períodos:

  • O avanço do conhecimento, de Francis Bacon (1604)
  • Bússola proporcional, de Galileu (1606)
  • O início da construção intensa de es­tradas na França (1606)
  • O telescópio astronômico de Galileu (1608)
  • Descoberta da circulação sanguínea por Harvey (1619)
  • Publicação do Weekly News, em Londres (1622)
  • A abertura da primeira cafeteria, em Londres (1632)
  • A abolição da tortura na Inglaterra (1638)
  • Lançamento da Carta da Faculdade Harvard (1650)
  • Experimentos de Newton com a gravi­dade e sua invenção do cálculo diferen­cial (1665)
  • Estabelecimento do observatório de Greenwich (1681)
  • Abertura das primeiras cafeterias em Viena (1683)
  • Implementação da iluminação pública em Londres (1684)
  • Primeira feira comercial moderna, em Leiden, na Holanda (1689)
  • Pedro, o Grande, envia 50 estudantes russos para estudar na Inglaterra, na Holanda e em Veneza (1698)

Olhando para os eventos do Renasci­mento, do Iluminismo e da Revolução In­dustrial, talvez seja razoável considerar to­das as épocas, começando pelo Renasci­mento e seguindo até 1900, como parte de um novo período chamado a Era do Pro­gresso.

Essa Era do Progresso caracteriza a civilização ocidental e reflete o componen­te inerente do pensamento esperançoso. Como escreve Nisbet (1980, p. 4), em sua obra History of the idea of progress (Histó­ria da ideia de progresso). Nenhuma ideia foi mais importante do que, talvez, a ideia do progresso na civili­zação ocidental, por 3.000 anos. Enten­didas suas falhas e distorções, a ideia do progresso tem sido, em sua arrasadora maioria, uma ideia nobre na história oci­dental, nobre pelo que celebrou em in­contáveis obras filosóficas, religiosas, cien­tíficas e históricas, e, acima de tudo, pelo que significou para as motivações e aspi­rações daqueles que compuseram a subs­tância humana da civilização ocidental.

Essa fé no valor e na promessa de nossa civilização é essencial para o conceito de esperança, e vice-versa. Dessa forma, a esperança é a essência da fé no valor e na promessa de nossa civilização ocidental.

Conclusões

A esperança é a crença de que a vida pode ser melhor, junto com as motivações e os esforços para torná-la melhor. Mais do que desejar, ter anseios ou sonhar acor­dado, a esperança caracteriza o pensar que conduz a ações dotadas de sentido. Um anseio visualiza a mudança, mas pode não levar à ação. Pode-se desejar ganhar na loteria, mas isso não necessariamente leva a atividades importantes ou sustentadas para concretizá-lo. Mais além, as condições em torno da concretização de um anseio não são promissoras, porque pode haver poucos meios razoáveis ou, mesmo, realis­tas para fazê-lo.

Deve-se destacar que a civilização ocidental não detém o monopólio da ideia da esperança. Em todas as civilizações e pe­ríodos históricos, houve crenças e ativida­des esperançosas, mas a esperança não parece ser uma crença motivadora tão im­portante em todas as perspectivas cultu­rais. Por exemplo, nas culturas indígenas [43] dos Estados Unidos, há menos expectativa de progresso. Em lugar disso, se o meio ambiente for respeitado e cuidado, as coi­sas devem ficar bem, mas não necessaria­mente ótimas. A crença dessas culturas é de que as tradições e as crenças podem não trazer prosperidade, mas ajudarão a evitar os desastres. Nesse caso, então, as diferen­ças entre os dois sistemas podem ser mais quantitativas do que qualitativas. As cul­turas indígenas dos Estados Unidos não supõem que as ações positivas levem a re­ sultados positivos tanto quanto no sistema de crenças da civilização ocidental euro­péia, de modo que a esperança pode não ser uma força de motivação tão importan­te nas primeira culturas quanto no caso das segundas (Pierotti, comunicação pessoal,2005).

A ideia de esperança serviu como es­trutura para o pensamento na civilização ocidental. Como observou Bronowski (1973) em relação à Revolução Industrial, a esperança ajudou a tornar o mundo nos­so. Aonde a esperança nos levará, por sua vez, talvez seja a pergunta mais importan­te sobre o século XXI que se descortina.

Psicologia - Psicologia positiva
Temas gerais - Temas gerais, 
7/19/2020 3:05:47 PM | Por Charles Richard Snyder
Bem-vindo à Psicologia positiva

As ultimas linhas desse discurso feito por Robert F. Kennedy na Universidade do Kansas apontam para o conteúdo deste livro: as coisas que fazem com que a vida valha a pena. Entretanto, imagine que alguém se ofereça para ajudar a entender os seres humanos, mas, ao fazê-lo, ensine apenas acerca de seus defeitos e patologias. Ainda que pareça um exagero, um questionamento do tipo “O que há de errado com as pessoas?” orientou o trabalho da maioria dos praticantes da psicologia aplicada (clínicos, escolares, etc.) no século XX. Em virtude das muitas formas de falibilidade humana, essa pergunta gerou uma avalanche de idéias sobre o “lado obscuro” do ser humano. Contudo, à medida que o século XXI avança, começamos a nos fazer outra pergunta: “O que há de certo com as pessoas?”. Essa interrogação está no centro da iniciativa emergente da psicologia positiva, que é o enfoque científico e aplicado da descoberta das qualidades das pessoas e da promoção de seu funcionamento positivo. (Vide o artigo “Construindo as qualidades humanas,” [17] no qual o pioneiro da psicologia positiva, Martin E. P Seligman, apresenta suas visões sobre a necessidade desse campo.)

O produto nacional bruto não possibilita que nossas crianças tenham saúde, educação ou a alegria de brincar. Ele não inclui a beleza de nossa poesia ou a força de nossos casamentos, a inteligência de nosso debate público ou a integridade de nossas autoridades. Ele não mede a nossa inteligência nem a nossa coragem, nem a nossa sabedoria, nem os nossos ensinamentos, nem a nossa compaixão, nem nossa devoção a nosso país. Ele mede tudo, resumindo, com exceção daquilo que faz que a vida valha a pena. – Robert F. Kennedy

Embora outras subáreas da psicologia não tenham se concentrado nos defeitos das pessoas, a psicologia e a psiquiatria aplicadas do século XX geralmente o fizeram. Por exemplo, consideremos a declaração - atribuída a Sigmund Freud - de que o objetivo da psicologia deveria ser “substituir o sofrimento neurótico por felicidade comum” (citado em Simonton e Baumeister, 2005, p. 99). Dessa forma, a psicologia aplicada do passado estava mais relacionada à doença mental, e à compreensão e ao auxílio das pessoas que estavam vivenciando tais tragédias. A psicologia positiva, por sua vez, oferece um equilíbrio em relação a essa abordagem anterior, sugerindo que também devemos explorar as qualidades das pessoas, junto com seus defeitos. Ao defender esse foco nas qualidades, contudo, de forma nenhuma pretendemos diminuir a importância e a dor associadas ao sofrimento humano. [18] A ciência e a prática da psicologia positiva estão direcionadas para a identificação e a compreensão das qualidades e virtudes humanas, bem como para o auxílio no sentido de que as pessoas tenham vidas mais felizes e mais produtivas. Ao entramos no século XXI, estamos em condições de estudar toda a dimensão humana explorando recursos e desvantagens psicológicas. Apresentamos este livro como um guia para essa jornada e para dar as boas-vindas àqueles de vocês que são novos nessa abordagem. Neste capítulo, começamos orientando o leitor em relação aos benefícios potenciais de se concentrar no positivo, seja durante a vida cotidiana seja na pesquisa [20] em psicologia. Nesta primeira parte, mostramos como uma reportagem de jornal positiva pode iluminar o que está certo no mundo e como contar esse tipo de história pode gerar reações muito favoráveis entre os leitores. Na segunda parte, discutimos a importância de uma perspectiva equilibrada envolvendo as qualidades e os defeitos das pessoas. Estimulamos os leitores a não se enredarem no debate entre os campos das qualidades e dos defeitos, sobre qual deles reflete melhor a “verdade”. Em terceiro, exploramos a atenção que a psicologia atual tem dado às qualidades humanas. Na quarta seção, levamos o leitor a perceber suas reações emocionais típicas e discutimos como isso pode condicionar sua forma de ver o mundo. Além disso, compartilhamos um de nossos sábados como exemplo típico dos pensamentos e sentimentos que caracterizam a psicologia positiva. Na quinta seção, que segue, guiamos o leitor pelas oito principais partes do livro e lhe apresentamos panoramas breves dos conteúdos de cada capítulo. Por fim, sugerimos que a psicologia positiva representa uma potencial “era de ouro” nos Estados Unidos do século XXI.

Gostaríamos de destacar dois aspectos sobre a postura que assumimos ao escrever este volume. Em primeiro lugar, acreditamos que os maiores benefícios podem advir de uma psicologia positiva baseada nos mais recentes e mais rigorosos métodos experimentais. Resumindo: uma psicologia positiva duradoura pode ser construída a partir de princípios científicos. Sendo assim, em cada capítulo apresentamos o que consideramos as melhores bases de pesquisa disponíveis para os vários tópicos que exploramos. Ao utilizar essa abordagem, contudo, descrevemos a teoria e as conclusões de vários pesquisadores, em lugar de aprofundar ou detalhar seus métodos. Nossa fundamentação para adotar essa postura que opta pela “superfície em detrimento da profundidade” vem do fato de que este é um livro de nível introdutório, mas os métodos usados para deduzir as várias conclusões da psicologia positiva representam os melhores e mais sofisticados projetos de pesquisa e estatísticas no campo da psicologia.

Em segundo, embora não tratemos em um capítulo separado dos fundamentos da fisiologia e da neurobiologia (e, ocasionalmente, os evolutivos) da psicologia positiva, consideramos essas perspectivas muito importantes. Portanto, nossa abordagem discute os fatores fisiológicos, neurobiológicos e evolutivos no contexto dos tópicos específicos tratados em cada capítulo. Por exemplo, no capítulo sobre autoeficácia, otimismo e esperança, discutimos as forças neurobiológicas subjacentes. Da mesma forma, no capítulo sobre gratidão, exploramos os padrões de ondas cardíacas e cerebrais que estão por trás delas. Além disso, ao discutir o perdão, mencionamos as vantagens evolutivas dessa resposta.

Passando do Negativo ao Positivo

Suponha que você seja um repórter de jornal com a tarefa de descrever os pensamentos e ações das pessoas que estão presas em um aeroporto, em uma sexta-feira à noite, em função do mau tempo. O conteúdo da reportagem sobre esse tipo de situação provavelmente seria negativo e cheio de ações que retratam as pessoas de um ponto de vista muito desconfortável. Essas histórias são do mesmo gênero que as ênfases apresentadas pelos psicólogos do século XX em relação aos seres humanos, mas, como veremos, nem todas as histórias são negativas em relação às pessoas. [21]

Uma reportagem positiva

Compare as reportagens negativas à seguinte história contada por um autor consagrado em um jornal local (Snyder, 2004d, p. D4). A cena se passa no Aeroporto Internacional de Filadélfia, sexta-feira à noite, no momento em que os voos chegam com atraso ou são cancelados.

... pessoas que estão tentando fazer o melhor possível a partir de situações difíceis. Por exemplo, quando um soldado do Exército, recém-chegado do Iraque, deu-se conta de que havia perdido a aliança de sua namorada, os funcionários do aeroporto e todos nós que estávamos no saguão de espera imediatamente começamos a procurar. Em pouco tempo, o anel foi encontrado, e se ouviu um grito de alegria da multidão.

Por volta de 19h40, o alto-falante nos disse que haveria atrasos ainda mais longos em vários voos. Para minha surpresa e prazer, descobri que meus companheiros viajantes (e eu) simplesmente demos conta da situação. Alguns tiraram coisas de comer que haviam guardado nas bolsas e ofereceram esses tesouros aos outros. Apareceram baralhos, e vários jogos tiveram início. As companhias aéreas distribuíram lanches. Havia explosões de gargalhadas.

Como se fôssemos soldados esperando nas trincheiras durante um momento de calma entre batalhas, alguém ao longe começou a tocar uma gaita. Meninos fizeram uma quadra de beisebol - e, à medida que seu jogo avançava, ninguém parecia se importar com o quanto uma de suas bolas passaria perto. Embora não houvesse lugares para todos se sentarem, as pessoas usaram a criatividade para fazer cadeiras e sofás com suas bagagens. As pessoas que tinham computadores os pegaram e jogaram videogames umas com as outras. Um cara até transformou a tela do seu em um dispositivo semelhante a um drive-in, no qual várias pessoas assistiram ao filme Matrix. Eu usei o meu notebook para escrever esta coluna.

Uma vez, ouvi dizer que a virtude está em fazer coisas simples quando todo mundo está enlouquecendo. Quando bradar, gritar, ficar com raiva, incomodar-se e geralmente perder a cabeça parecem estar próximos, é maravilhoso, em lugar disso, ver a beleza aconchegante das pessoas, como raios de sol em um dia frio.

Reações a essa reportagem positiva

Depois que essa reportagem positiva apareceu, eu (C.R. Snyder) não estava preparado para as reações dos leitores. Nunca havia escrito qualquer coisa que gerasse tantos elogios sinceros e tanta gratidão. Já na primeira semana depois da publicação, fui inundado com e-mails elogiosos. Alguns falavam de como a reportagem os fez lembrar momentos em que testemunharam as pessoas se comportando da melhor maneira possível. Outros escreviam sobre como esse texto jornalístico os fez se sentirem melhor pelo resto do dia e até mesmo por vários dias depois disso. Várias pessoas disseram que gostariam que houvesse mais matérias dessas no jornal. Nem uma única pessoa, entre as respostas que recebi, tinha qualquer coisa negativa para dizer sobre a coluna.

Por que as pessoas reagiriam de forma tão igualmente receptiva a essa breve história sobre uma sexta-feira à noite no aeroporto de Filadélfia? Em parte, elas provavelmente querem ver e ouvir mais sobre a bondade nos outros. Seja por meio de reportagens como essa, seja por meio dos estudos científicos e aplicações que apresentamos neste livro, há uma sede de saber mais sobre o que há de bom nas pessoas. É como se o sentimento coletivo fosse: “Basta de toda essa negatividade em relação às pessoas!”.

Ao escrever este livro sobre psicologia positiva, experimentei os efeitos edificantes de revisar as muitas aplicações em pesquisa e clínica que estão surgindo sobre o estudo das qualidades humanas e das emoções positivas. Ao ler sobre as qualidades de seu semelhante e sobre os muitos recursos que promovem o melhor nas pessoas, verifique se você também se sente bem. Há muitas coisas pelas quais é possível elogiar as pessoas, e daremos muitos exemplos disso.

A Psicologia positiva busca uma visão equilibrada e mais completa do funcionamento humano

Ver apenas o que há de bom nas próprias reações e o que há de ruim nas dos outros é um defeito humano comum. Validar somente os lados positivos ou negativos da experiência humana não é uma atitude produtiva. É muito tentador concentrar-se apenas no bom (ou no mau) do mundo, mas isso não é boa ciência, e não podemos cometer esse erro ao promover a psicologia positiva. Embora não concordemos com os preceitos dos modelos anteriores baseados nas patologias, seria errado descrever seus defensores como maus estudiosos, maus cientistas, maus profissionais ou más pessoas. Em lugar disso, esse paradigma anterior foi promovido por pessoas bem-intencionadas e inteligentes, que estavam respondendo a determinadas circunstâncias de sua época.

Da mesma forma, essas pessoas não estavam equivocadas com relação à descrição do ser humano. Elas desenvolveram diagnósticos e abordagens para esquizofrenia, depressão e alcoolismo e validaram muitos tratamentos eficazes para problemas específicos, como transtorno de pânico e fobias em relação a sangue ou a se machucar (vide Seligman, What you can change and what you can’t, 1994).

Assim, os que operaram dentro do modelo das patologias estavam bastante corretos em suas descrições de algumas pessoas em determinadas épocas de suas vidas. Eles também conseguiram ajudar certas pessoas com problemas específicos. Não obstante, os defensores da abordagem das patologias descreveram a humanidade de forma incompleta. Não resta dúvida de que o negativo é parte da humanidade, mas apenas uma parte. A psicologia positiva oferece um olhar sobre o outro lado, ou seja, o que é bom e forte na humanidade e em nossos ambientes, junto com formas de cultivar e sustentar essas qualidades e recursos.

Embora exploremos o positivo, enfatizamos que essa metade não representa a totalidade da história, mais do que o lado negativo. Futuros psicólogos devem desenvolver uma abordagem includente que examine os defeitos e as qualidades das pessoas, bem como os fatores de estresse e os recursos que estão presentes no ambiente. Essa abordagem seria a mais abrangente e válida. Entretanto, ainda não chegamos a esse ponto, porque faltam desenvolver e explorar completamente a ciência e a prática da psicologia positiva. Somente quando tivermos realizado esse trabalho de detetive sobre as qualidades das pessoas e os muitos recursos dos ambientes positivos é que seremos verdadeiramente capazes de entender os seres humanos de forma equilibrada. Nossa tarefa nestas páginas é compartilhar com você o que sabemos sobre psicologia positiva nesse momento relativamente inicial de seu desenvolvimento.

Vislumbramos o momento futuro, no campo da psicologia, em que o positivo terá tantas probabilidades quanto o negativo de ser usado para avaliar as pessoas e as ajudar a ter existências mais satisfatórias. Esse tempo provavelmente chegará durante a vida dos leitores deste livro. Alguns de vocês podem ir em busca de carreiras em psicologia nas quais irão levar em consideração as qualidades das pessoas, junto com seus defeitos. Na verdade, acreditamos [22] muito que nossa geração será a que implementará uma psicologia que equilibre verdadeiramente os preceitos de uma abordagem positiva com os da orientação anterior, voltada às patologias. Também esperamos que os pais de hoje em dia usem técnicas de psicologia positiva para servir de alicerce às suas famílias e trazer à tona o melhor em seus filhos. Da mesma forma, vislumbramos um tempo em que crianças em idade escolar e jovens sejam valorizados tanto por suas qualidades principais quanto por suas notas em provões ou vestibulares.

Dedicamos este livro a vocês. Como vocês podem ser os condutores da psicologia com um equilíbrio entre positivo e negativo que acabará por nascer, alertamos para o debate que já está em andamento sobre a superioridade de uma abordagem em relação à outra. Na próxima seção, tentamos inoculá-los contra o pensamento do tipo “nós contra eles”.

Visões da realidade que incluem o positivo e o negativo

A realidade reside nas percepções das pessoas sobre os eventos e os acontecimentos no mundo (Gergen, 1985), e as perspectivas científicas, portanto, dependem de quem as defina. Nessa linha, os “campos” da psicologia positiva e da patologia podem entrar em choque sobre como construir sistemas significativos para entender nosso mundo. Sobre esse processo de negociação da realidade (isto é, o avanço em direção a visões de mundo sobre as quais haja acordo), Maddux, Snyder e Lopez (2004, p. 326) escreveram o que segue:

Os significados desses e de outros conceitos não são revelados pelos métodos da ciência, e sim negociados entre as pessoas e instituições da sociedade que têm interesse em suas definições. Aquilo que as pessoas chamam de “fatos” não são verdades, e sim reflexos de negociações da realidade por parte dessas pessoas que têm interesse em usar os “fatos”.

Sendo assim, quer se acredite na perspectiva da psicologia positiva quer na da patologia, deve-se ter claro que esse debate envolve construções sociais sobre esses fatos. Em última análise, as visões predominantes estão vinculadas a valores sociais dos indivíduos, grupos e instituições mais poderosos da sociedade (Becker, 1963). Igualmente, como as visões predominantes são construções sociais que contribuem para os objetivos e valores socio-culturais vigentes, tanto a perspectiva das patologias quanto a psicologia positiva oferecem diretrizes sobre como as pessoas deveriam viver suas vidas e o que faz com que valha a pena vivê-las. Acreditamos que tanto a visão da psicologia positiva quanto a visão mais tradicional baseada nas patologias são úteis, de forma que seria um erro enorme continuar o debate “nós contra eles” entre esses dois grupos. Os profissionais dos dois campos querem entender e ajudar as pessoas. Para chegar a esses objetivos, a melhor solução científica e prática é adotar ambas as perspectivas. Dessa forma, embora introduzamos os preceitos, a pesquisa e as aplicações da psicologia positiva neste livro-texto, fazemos isso como forma de acrescentar a abordagem baseada nas qualidades como complemento a idéias que foram deduzidas a partir do modelo anterior, baseado nos defeitos. Estimulamos os leitores deste livro - que acabarão por se tornar os líderes no campo - a evitar ser arrastados para o debate que visa provar o modelo da psicologia positiva ou o das patologias.

Onde nos encontramos e quais serão as nossas interrogações

A psicologia positiva encontra-se atualmente em um período de expansão, nem [23] tanto em termos de porcentagem relativa no campo todo que ela representa, mas em termos da influência dessas ideias para chamar a atenção da comunidade da psicologia em particular e da sociedade em geral. Uma conquista notável do movimento da psicologia positiva nesta primeira década foi o sucesso no aumento da atenção dada a suas teorias e conclusões de pesquisa.

O psicólogo da Universidade da Pensilvânia, Martin Seligman, deve ser destacado por ter dado início à recente explosão de interesse na psicologia positiva, bem como por ter lhe dado o nome de psicologia positiva. (Abraham Maslow foi quem realmentec unhou a expressão psicologia positiva quando a usou como título de um Capítulo em seu livro de 1954, Motivação e personalidade.) Cansado do fato de que a psicologia não estava rendendo suficiente “conhecimento do que faz com que a vida valha a pena” (Seligman e Csikszentmihalyi, 2000, p. 5; observe a semelhança de sentimento em relação ao lamento de Robert Kennedy sobre o produto interno bruto, na citação de abertura deste capítulo), Seligman buscou um tema provocativo quando se tornou presidente da Associação Norte-Americana de Psicologia em 1998. Foi durante sua gestão que ele usou sua posição privilegiada para chamar atenção ao tópico da psicologia positiva. Desde aquela época, Seligman trabalhou de forma incansável para dar início a conferências e programas de financiamento para pesquisa e às aplicações dessas à psicologia positiva. Durante todo o tempo em que esteve à frente do crescente movimento da psicologia positiva, Seligman lembrou aos psicólogos que a espinha dorsal da iniciativa deveria ser a boa ciência. Sem dúvida, portanto, temos uma dívida de gratidão para com os esforços continuados de Martin Seligman para garantir que a psicologia positiva prospere.

Às vezes, cometeremos erros em nossa busca pelas qualidades humanas. Contudo, fazendo um balanço, acreditamos firmemente que essa busca resultará em algumas idéias maravilhosas sobre a humanidade. Ao avaliar o sucesso da psicologia positiva, sustentamos que ela deve ser submetida aos mais elevados padrões da lógica da ciência. Da mesma forma, a psicologia positiva deve passar pelas análises de mentes céticas, mas abertas. Deixamos essa função importante para vocês.

Qual é a sua cara? Uma foto da Psicologia positiva em tamanho “passaporte”

Ao começarmos essa jornada na psicologia positiva, pedimos-lhe que pegue sua foto de passaporte. Ela servirá como sua identificação para passar pelos vários territórios da psicologia positiva. Feche os olhos e relaxe por alguns segundos. Em seguida, pense sobre o rosto que a maioria das pessoas vê quando você faz suas atividades cotidianas. Quando tiver um rosto em mente, abra os olhos e veja a fila de rostos simples na Figura 1.1. Faça um círculo ao redor do que melhor se parece com você, entre essas possibilidades. Lembre- se, esse não é o rosto que você quer que os outros vejam, mas o que eles realmente veem.

Em vários momentos deste livro, falamos sobre como as pessoas reagem às outras. O rosto humano - a cara - muitas vezes é o que os outros olham quando formam uma impressão.

Na verdade, o rosto está relacionado ao termo básico para o subcampo da psicologia chamado de personalidade. Nas antigas tragédias e comédias, os atores (todos homens) seguravam máscaras que representavam os papéis que estavam desempenhando. A palavra para essa máscara era persona. Assim, nossas máscaras são o que os outros veem. O ator Jack Nicholson é conhecido por seu sorriso, que é sua forma permanente de demonstrar sua postura despreocupada e divertida em relação à vida.

Figura 1.1

Depois de decidir que rosto melhor se ajusta a você, acrescentaríamos imediatamente que a forma como você está se sentindo será influenciada pelas coisas que lhe aconteceram este mês, esta semana, hoje ou, talvez, há apenas cinco minutos. Portanto, geralmente sorrimos quando tivemos êxito na busca de um objetivo importante. Examinemos aqui a experiência de total satisfação do ciclista Lance Armstrong quando se deu conta de que iria vencer pela sexta vez seguida a Volta da França na prova de 2004. (É claro, um ano mais tarde, em sua última corrida antes de se aposentar do ciclismo, Armstrong venceu sua sétima Volta da França).

No artigo, “You smile, I smile” (Você sorri, eu sorrio, 2002), Roger Martin conta um incidente pessoal no qual ele foi profundamente influenciado pelo sorriso de uma pessoa que encontrou. Você alguma vez já se deparou com uma pessoa que sorriu para você, e você respondeu com um sorriso igualmente grande? Somos criaturas sociais e, como exploramos no Capítulo 7, nossas emoções são parte de nossa felicidade e nossa satisfação na vida. Nos Mini experimentos pessoais (p. 201), apresentamos diferentes atividades para você experimentar com vistas a melhorar seu estado emocional.

Um sábado recente: um exemplo de Psicologia positiva

Permitam-me (C.R.S.) usar hoje um exemplo de onde encontrar psicologia positiva, bem como de onde não a encontrar. Sendo sábado, ligo o rádio. Minhas preferências para rádio mudaram nos últimos tempos.

Eu costumava escutar música country, na qual ouvia histórias de como alguém perdeu a namorada, o emprego, o cachorro ou a caminhonete. As melodias eram muito parecidas, assim como o eram as letras cheias de angústia. Pode ser o caso de que essas letras repetidamente negativas tenham-me levado a uma estação de rádio que toca os clássicos, não os clássicos do rock-and-roll dos anos de 1960 e 1970, mas obras de Beethoven, Handel, Chopin e outros. Suas melodias parecem fortes e enriquecedoras.

Na hora do almoço, esbanjo e vou à Baskin-Robbins para um sorvete de chocolate com amêndoas, com mais uma bola [25] de flocos em cima. Depois, corto a grama do jardim e, em um momento de altruísmo, decido também cortar a da minha vizinha. Na metade do serviço, ela sai e me diz: “Não é necessário fazer isso!”. Eu sei, claro, e provavelmente seja por isso que é tão gratificante. Considero ajudar os outros como, talvez, a atividade mais prazerosa na vida. (Voltaremos a esse tema mais tarde.)

A essas alturas, já são 3h da tarde e estou de volta em casa, trabalhando neste capítulo. Ouço a campainha. Abro a porta, e lá está meu neto de nove meses, Trenton. Seu pai me pergunta se posso cuidar dele o resto do dia (incluindo passar a noite), e digo que sim, imediatamente. Eu não costumava ser tão entusiasmado em relação a ficar com crianças, mas mudei muito depois dos cinqüenta. Estou fascinado com bebês e crianças pequenas, e gosto de brincar com eles, observá-los, dar-lhes de comer e assim por diante. Durante grande parte da tarde, Trenton e eu ficamos sentados no gramado do jardim, olhando passarinhos, esquilos, coelhos e qualquer coisa que se mexesse, especialmente as pessoas que sorriem quando passam, parece que com pressa, na calçada da frente. Fico pensando para onde é que elas vão com tanta pressa.

Para mim, é um grande prazer ver meu neto enxergar essas coisas pela primeira vez - tudo parece tão novo para ele, e isso respinga em mim. Dou-lhe de comer e não me incomodo com o fato de que ele põe mais em mim e ao redor dele do que na boca. Coloco-o no andador, e caminhamos bastante. Ele adora estar na rua, e eu adoro estar com ele.

Quando voltamos, minha mulher já chegou do trabalho, e me decepciono por ela querer ficar com o bebê. Então, monto um velho balanço que ganhamos, com minha mulher furiosa porque não uso escada, e sim subo em uma precária mesinha de madeira. O balanço já está pendurado em um galho de árvore. Depois do jantar, [26] decidimos colocar Trenton na cadeirinha de crianças, e ele vai direto para o chão, pois é muito pesado. Rebecca e eu rimos de meu planejamento não muito perfeito.

Quando se vê, já é hora do ritual de ir para a cama - e, para qualquer leitor que tenha (ou tenha tido) filhos, esse processo provavelmente é muito conhecido e envolve uma luta de vontades em que, neste caso, os avós e o neto, cansados e exaustos, acabam desabando de sono. (Quando pegamos no sono, minha mulher e eu parecemos a antítese das imagens nos catálogos românticos e sensuais de lojas de lingerie [27] que mostram estrelas de Hollywood. Em lugar delas, nossa roupa de dormir geralmente é composta de calças de moletom muito antigas, manchas do jantar ou de “coisas que fomos consertar em casa”, baba de criança seca ou coisa pior... Nossos pijamas poderiam ser chamados de “Estrelas do Kansas”.)

Essa breve crônica de sábado ilustra várias coisas acerca de psicologia positiva. De longe, o aspecto mais positivo de meu dia está relacionado a fazer coisas com outras pessoas. Cortar a grama da vizinha e cuidar de meu neto são muito gratificantes. Essas atividades lhe dão uma ideia de como e onde a psicologia positiva “funciona” para mim. Muito do prazer que fluiu desse sábado de verão veio de minha capacidade de manter o foco de minhas atividades nas coisas que me dão prazer. Na verdade, o positivo está ao redor da maioria de nós. Observe, também, que nem todas essas atividades resultam de ações hedonistas positivas; em lugar disso, as atividades que são, de longe, as mais gratificantes estão vinculadas a ajudar os outros. Dar é receber. Esse é apenas um dos paradoxos surpreendentes sobre a psicologia positiva que iremos deslindar para você neste livro.

Um guia para este livro

Este livro foi escrito tendo os leitores em mente. Por meio de nosso trabalho conjunto, perguntamos um ao outro: “Este capítulo trará a psicologia positiva para a vida dos alunos?”. Essas discussões nos ajudaram a entender que o livro precisava ser um excelente resumo da ciência e da prática da psicologia positiva e que teria que conquistá-los para aplicar seus princípios em seu dia-a-dia. Com esse objetivo em mente, tentamos destilar os mais rigorosos estudos da psicologia positiva e as estratégias de prática mais eficazes, e construímos dúzias de miniexperimentos e estratégias pessoais que promovem seu envolvimento com os aspectos positivos nas pessoas e no mundo. Ao terminar de ler este livro, vocês estarão mais informados sobre psicologia e terão se tornado mais hábeis para capitalizar suas características humanas fortes e gerar emoções positivas, o que configura nosso objetivo.

Dividimos este livro em oito partes. Na Parte I, “Um olhar positivo sobre a psicologia”, há quatro capítulos. O Capítulo 1, que você está quase terminando de ler, é introdutório. Nosso propósito foi lhe dar uma ideia do entusiasmo que sentimos em relação à psicologia positiva e compartilhar algumas das questões fundamentais que movem o desenvolvimento desse novo campo. Os Capítulos 2 e 3 se chamam “Perspectivas ocidentais sobre a psicologia positiva” e “Perspectivas orientais sobre a psicologia positiva”, respectivamente. Neles, você verá que, embora haja vínculos óbvios da psicologia positiva com as culturas ocidentais, também há temas importantes para as culturas orientais. O Capítulo 4, “Classificações e medidas das qualidades e resultados positivos do ser humano”, dará uma ideia de como os psicólogos classificam os vários tipos de qualidades humanas. Para leitores familiarizados com o modelo de psicologia mais tradicional, baseado em patologias, essa seção irá oferecer uma classificação que serve de contraponto, construída a partir das qualidades humanas.

Na Parte II, “Psicologia positiva em contexto”, dedicamos dois capítulos aos fatores associados ao bem-viver. No Capítulo 5, “Desenvolvendo as qualidades humanas e vivendo bem em um contexto cultural”, examinamos como as forças da sociedade e do ambiente ao nosso redor podem contribuir para uma sensação de bem-estar. Mais além, no Capítulo 6, “Vivendo bem em todas as etapas da vida”, mostramos como as atividades de infância podem ajudar uma pessoa a se tornar adaptativa mais tarde.

A Parte III, “Estados e processos emocionais positivos”, consiste em dois capítulos sobre tópicos que dizem respeito a [28] processos relacionados às emoções. No Capítulo 7, “Os princípios do prazer: entendendo a afetividade positiva, as emoções positivas, a felicidade e o bem-estar”, tratamos da pergunta freqüente: “O que torna uma pessoa feliz?”. No Capítulo 8, “Fazendo o melhor de nossas experiências emocionais: enfrentamento voltado às emoções, à inteligência emocional, à seletividade socioemocional e à narração emocional de histórias”, apresentamos novas descobertas com relação às emoções como recursos extremamente importantes para atingir nossos objetivos.

Na Parte IV “Estados e processos cognitivos positivos”, incluímos três capítulos. O Capítulo 9, “Observando nossos futuros por meio da autoeficácia, do otimismo e da esperança”, trata das três motivações mais pesquisadas para enfrentar o futuro: autoeficácia, otimismo e esperança. No Capítulo 10, “Sabedoria e coragem: duas virtudes universais”, examinamos os tópicos de psicologia positiva, envolvendo os recursos que as pessoas trazem para circunstâncias que ampliam suas habilidades e sua capacidade. Da mesma forma, no Capítulo 11, “Mindfulness, flow e espiritualidade: em busca das melhores experiências”, discutimos como as pessoas se conscientizam do processo permanente de pensar e sentir, junto com a necessidade humana de acreditar em forças maiores e mais poderosas do que elas próprias.

Na Parte V, “Comportamento pró-social”, descrevemos as ligações positivas gerais que os seres humanos têm com outras pessoas. No Capítulo 12, “Empatia e egotismo: portais para o altruísmo, a gratidão e o perdão”, mostramos como os processos relacionados à bondade operam em benefício das pessoas. E, no Capítulo 13, “Vínculo, amor e relacionamentos que prosperam”, analisamos a importância dos vínculos humanos íntimos para uma série de resultados positivos.

A Parte VI, “Compreendendo e mudando o comportamento humano”, descreve como prevenir que aconteçam coisas negativas, bem como fazer que coisas positivas aconteçam. O Capítulo 14, “Conceituações equilibradas de saúde mental e comportamento”, e o Capítulo 15, “Intercedendo para prevenir o que é ruim e potencializar o que é bom”, ajudará você a ver como as pessoas podem melhorar suas circunstâncias de vida.

A Parte VII, ‘Ambientes positivos”, observa ambientes específicos. No Capítulo 16, “Escolarização positiva”, descrevemos descobertas recentes relacionadas a resultados positivos na aprendizagem para estudantes. No Capítulo 17, “Bom trabalho: a psicologia do emprego gratificante”, discutimos os componentes de empregos que são produtivos e satisfatórios. E, no Capítulo 18, “O equilíbrio eu/nós: construindo comunidades melhores”, sugerimos que os ambientes mais produtivos e satisfatórios são aqueles em que os habitantes possam manifestar algum sentido de que são especiais e algum sentido de semelhança com relação a outras pessoas.

O livro se encerra com a Parte VIII, “Um olhar positivo sobre o futuro da psicologia”. Essa seção traz o Capítulo 19, “Tornando-se positivo,” no qual especulamos sobre os avanços no campo da psicologia positiva na próxima década. Além disso, convidamos especialistas da área para dar suas impressões sobre as questões fundamentais para o campo da psicologia positiva no século XXI.

Miniexperimentos pessoais

Na maioria dos capítulos (incluindo este), estimulamos que você teste as idéias de importantes psicólogos positivos. Em Miniexperimentos pessoais, pedimos que leve a psicologia positiva para dentro de sua vida, realizando o tipo de experimento que os pesquisadores da psicologia positiva podem dar a seus clientes como trabalho de casa. Alguns desses experimentos levam menos de meia hora para ser realizados, ao passo que outros levam mais de uma semana. [29]

Estratégias para melhorar a vida

Encontrar o positivo na vida cotidiana não requer, necessariamente, um experimento total. Na verdade, acreditamos que uma abordagem cuidadosa à vida do dia-a-dia revela o poder das emoções positivas e das qualidades humanas. Sendo assim, para os capítulos que tratam especificamente das emoções positivas, qualidades e processo saudáveis, elaboramos estratégias para melhorar a vida, que podem ser implementadas em uma questão de minutos. Decidimos desenvolver essas estratégias para ajudá-lo a atingir os três mais importantes resultados na vida: conexão com outras pessoas, busca de sentido e a vivência de algum grau de prazer ou satisfação. Especificamente, o amor, o trabalho e o lazer têm sido citados como os três grandes domínios da vida (Seligman, 1998e). Freud definiu a normalidade como a capacidade de amar, trabalhar e se divertir, e os pesquisadores da psicologia se referiram a essa capacidade como “saúde mental” (Cederblad, Dahlin, Hagnell e Hansson, 1995). Os pesquisadores do desenvolvimento descreveram o amor, o trabalho e o lazer como tarefas normais associadas ao crescimento humano (Icard, 1996) e como chaves para um envelhecimento saudável (Vaillant, 1994). Os profissionais interessados em psicoterapia consideram a capacidade de amar, trabalhar e se divertir como um aspecto do processo de mudança (Prigatano, 1992), ao passo que outros a veem como um dos principais objetivos da terapia (Christensen e Rosenberg, 1991). Embora um envolvimento integral na busca do amor, do trabalho e do lazer não garanta uma vida boa, acreditamos que ele é necessário para viver bem. Com essa ideia em mente, estimulamos você a participar das diversas estratégias para melhorar a vida que irão aprimorar sua capacidade de amar, trabalhar e se divertir.

Isso conclui nosso breve resumo de por onde planejamos ir nos capítulos que seguem e de nossas muitas esperanças em relação a você. Se você se envolver totalmente com o material e com os exercícios deste livro, obterá conhecimentos e habilidades que podem lhe ajudar a levar uma vida melhor.

Raramente, um estudante tem a oportunidade de testemunhar a construção de um novo campo desde o princípio. Se nosso trabalho foi feito como deveria ser, você irá sentir a emoção que vem de ter estado presente no início.

O Panorama geral

Apesar do horror e da incerteza do terrorismo e dos desastres naturais, os Estados Unidos do século XXI são prósperos, estáveis e estão em condições de atingir a paz. Em um momento tão positivo para sua evolução, uma cultura pode se concentrar em questões como virtudes, criatividade e esperança. Três culturas anteriores se depararam com eras positivas semelhantes. No século V a.e.c., Atenas usava seus recursos para explorar as virtudes humanas - bom caráter e boas ações. A democracia se formou durante esse período. Na Florença do século XV, riquezas e talentos eram empregados para promover a beleza. E a Inglaterra vitoriana usava seus recursos para uma busca das virtudes humanas de dever, honra e disciplina. Como as dádivas que emanam dessas épocas anteriores, talvez a contribuição dos Estados Unidos do século XXI resida na adoção e na exploração dos preceitos da psicologia positiva, isto é, do estudo e da aplicação do que é bom nas pessoas (Seligman e Csikszen- tmihalyi, 2000). Certamente, nunca em nossas carreiras testemunhamos um novo desenvolvimento no campo da psicologia que fosse potencialmente tão importante. Mas estamos nos adiantando, porque o verdadeiro teste virá quando novos estudantes forem atraídos para essa área. Por hora, damos as boas-vindas à psicologia positiva. [30]

Psicologia - Psicologia positiva
Temas gerais - Temas gerais, 
6/20/2020 2:38:10 PM | Por Duane P. Schultz
A evolução da Psicologia Contemporânea

Garry Kasparov não era só um grande jogador de xadrez: ele era o mestre dos grão-mestres. No con­senso universal, ele era o maior jogador de xadrez da história. Na primavera de 1997, aos 34 anos de idade, no auge do prolongado reconhecimento, vinha man­tendo o título mundial por 12 anos. Jamais perdera uma única vez em uma competição de várias partidas com um único oponente. Jamais exibira outra coisa que não a absoluta confiança na sua genialidade no xadrez. Sua atitude em relação a qualquer rival che­gava ao limite do desprezo, traço exibido novamente ao vencer, como havia previsto, a primeira das seis partidas da anunciada revanche, naquele mês de maio em Nova York, contra o oponente que arrasara havia um ano.

Ao reinicio da partida, os especialistas em xadrez, reunidos para assistir ao grande campeão esmagar seu adversário, testemunharam algo tão inesperado que ficaram mudos. Milhões de observadores que acompanhavam intensamente a partida pela internet e pela transmissão em cadeia mundial de televisão ficaram atônitos ao testemunhar Kasparov exibir sinais incomuns de perturbação. Primeiro, demonstrando muita dúvida, em seguida, terror, desespero e perda de controle. Finalmente, parecia sofrer de um colapso emocional, demonstrando estar aterrorizado.

O primeiro sinal de que o campeão estava à beira de um colapso nervoso surgiu durante a segunda partida. Foi aí que Kasparov enfrentou algo inusitado na sua experiência. No passado, ele sempre conseguiu explorar a fraqueza do oponente, aprendendo o padrão de pensamento adotado contra ele. Mas, dessa vez, não conseguiu.

Essa segunda partida terminou empatada. Depois, outro empate. Em seguida, o opo­nente venceu uma partida. Quando os enxadristas retomaram o confronto no sábado, a série estava empatada. Kasparov iniciou de forma agressiva, brilhante; sabia que estava vencendo. O oponente respondeu com uma série de movimentos inspirados, até brutais, deixando Kasparov visivelmente abalado.

Os grão-mestres estavam chocados ao verem o campeão, pela primeira vez, parecer insignificante. Ele foi forçado a aceitar outro empate. Depois de um dia de folga na com­petição, o desfecho viria na segunda-feira.

A atenção mundial se intensificou. As redes de televisão enviaram correspondentes para cobrir o evento para transmissão em horário nobre. A imprensa escrita enviou não apenas os analistas de xadrez, mas também os melhores jornalistas, e reservaram a pri­meira página para o resultado do confronto. Eles, bem como milhares de telespectadores, testemunharam pela televisão e pela internet o grande Garry Kasparov, o incontestável campeão cuja suprema confiança comparava-se apenas à sua arrogância, dando lugar a um enxadrista nervoso, encurvado, com olheiras e com o ar taciturno. Parecia derrotado mesmo antes de executar o primeiro movimento.

Kasparov ficava cada vez mais abatido, à medida que os movimentos rápidos e impla­cáveis do oponente o deixavam encurralado. Em um momento captado pelas imagens da televisão e, mais tarde, exibido nas capas dos jornais, depois de perder a rainha e com o rei perigosamente exposto em uma posição de xeque-mate, o campeão curvou-se sobre o tabuleiro. Colocou as mãos sobre o rosto, tapando os olhos, e baixou a cabeça, desanimado. Esse momento consolidou-se como o retrato duradouro da expressão do desespero huma­no. Alguns momentos depois, Kasparov levantou-se de repente. Anunciava a desistência da partida e da competição. Efetuara apenas 19 movimentos.

Os grão-mestres ficaram espantados com o modo abrupto como o campeão desmoro­nou. "Foi como o impacto de uma tragédia grega", disse o presidente do comitê de xadrez, responsável pelo reconhecimento da competição. Kasparov reagiu com mais simplicidade. "Perdi meu espírito de luta", disse. "Não estava mesmo com vontade de jogar."

Minutos depois, em uma tumultuada entrevista coletiva, quando lhe perguntaram sobre o porquê, respondeu: "Sou um ser humano. Quando vejo algo além da minha capacidade de compreensão, sinto medo."

O que Kasparov efetivamente viu que estava além da sua capacidade de compreen­são? O que o espantara tanto a ponto de não conseguir mais jogar o jogo do qual era mestre? O que isso tem a ver com a história da psicologia? Calma! Tudo será revelado mais adiante. Por enquanto, vamos acompanhar a evolução da psicologia cognitiva pelo século XXI.

As Escolas de Pensamento em Perspectiva

Cada escola obteve êxito de modo particular e cada uma contribuiu substancialmente para a evolução da psicologia. Esse fato se aplica até mesmo ao estruturalismo, embora esse movimento tenha publicado pouco material relacionado à psicologia como a conhecemos atualmente. Não existem mais estruturalistas como Titchener na psicologia moderna isso ocorre há décadas. Todavia, o estruturalismo obteve enorme sucesso em promover a empreitada iniciada por Wundt, estabelecendo uma ciência da psicologia independente e livre das limitações da filosofia. O fato de o estruturalismo haver fracassado em dominar a psicologia, fazendo-o apenas por um curto período, não desvaloriza a sua realização revolucionária como a primeira escola de pensamento da nova ciência e a fonte vital de oposição para os sistemas seguintes.

Analisemos o sucesso do funcionalismo, que não conseguiu persistir como escola separada. Os funcionalistas buscavam apenas impor uma atitude ou um ponto de vista e, nesse aspecto, o funcionalismo obteve êxito em penetrar no pensamento psicológico estadunidense. Na medida em que a psicologia estadunidense atual é vista mais como uma profis­são científica e suas descobertas são aplicadas praticamente em todos os aspectos da vida a atitude funcional e utilitária realmente mudou a natureza da psicologia.

E o que dizer da psicologia da Gestalt? A escola da Gestalt, em uma escala mais modes­ta, também cumpriu sua missão. A oposição ao elementarismo, o apoio à abordagem da "totalidade" e o interesse na consciência influenciaram os psicólogos da psicologia clínica, da aprendizagem, da percepção, da psicologia social e do pensamento. Embora a escola da Gestalt não tenha transformado a psicologia da forma como esperavam os fundadores, ela exerceu considerável impacto e deve ser considerada um sucesso.

Mesmo que as realizações do estruturalismo, do funcionalismo e da psicologia da Gestalt mereçam o devido destaque, esses movimentos ocupam o segundo lugar em com­ paração com o impacto fenomenal do behaviorismo e da psicanálise. Os efeitos desses movimentos foram profundos, mantendo identidades próprias e independentes como escolas únicas de pensamento.

Passada a época dos seus fundadores, Watson e Freud, tanto o behaviorismo como a psicanálise dividiram-se internamente em várias posições. Nenhuma forma de behaviorismo ou de psicanálise obteve adesão total dos membros de qualquer uma dessas escolas. O surgimento de subescolas dividiu os sistemas em facções concorrentes, cada uma com o próprio mapa para o caminho da verdade. Todavia, apesar dessa diversidade interna, tanto os behavioristas como os psicanalistas mantêm-se firmes na oposição, uns contra os outros, em relação às suas visões sobre a psicologia. Por exemplo, os behavioristas skinnerianos têm mais aspectos em comum com os sociobehavioristas seguidores de Bandura e de Rotter do que com os adeptos da psicanálise de Jung e de Horney. A vitalidade das duas escolas de pensamento é evidente na sua contínua evolução.

Assim como a psicologia individual de Adler em relação à psicanálise, a psicologia de Skinner não é o último estágio na evolução do behaviorismo. A psicologia humanista, mesmo não conseguindo provocar impacto como escola de pensamento independente, influenciou a psicologia contemporânea, incentivando o crescimento do movimento da psicologia positiva.

Por volta das décadas de 1960 e 1970, dois outros movimentos surgiram na psicologia estadunidense, cada um na tentativa de moldar uma nova definição para o campo - são eles a psicologia cognitiva e a psicologia evolucionista.

O Movimento Cognitivo no Psicologia

Em 1913, no seu manifesto behaviorista, Watson insistia na eliminação da psicologia de qual­quer referência à mente, à consciência ou aos processos conscientes. E, realmente, os psicólogos seguidores dos mandamentos de Watson eliminaram a menção desses conceitos e baniram toda a terminologia mentalista. Durante décadas, os livros básicos de introdução à psicologia apre­sentavam descrições sobre o funcionamento do cérebro mas não proporcionavam discussões acerca de qualquer conceito relacionado à mente. As pessoas comentavam, em tom de piada, que a psicologia perdeu a consciência" ou "perdeu a cabeça”, aparentemente para sempre.

No entanto, de repente (embora a tendência já estivesse se formando há algum tempo), a psicologia resgatou a consciência. Palavras, antes consideradas politicamente incorretas, estavam sendo pronunciadas em alto e bom tom nos encontros e utilizadas nos trabalhos escritos. Em 1979, a publicação American Psychologist apresentou um artigo intitulado "Behaviorism and the mind: a (limited) call for a return to introspection’’ ("O behaviorismo e a mente: um apelo (limitado) para a retomada da introspecção") (Lieberman, 1979), res­gatando não apenas a mente como também a suspeita técnica de introspecção. Alguns meses antes, a revista publicara um artigo com um título bem simples: "Consciousness’’. Seu autor escreveu: Depois de décadas de descaso proposital, a consciência passa nova­mente a ser alvo da investigação científica, com discussões sobre o tópico surgindo por toda parte na respeitada literatura da psicologia" (Natsoulas, 1978, p. 906).

Em 1976, em seu discurso no encontro anual da APA, o presidente falou ao público presente sobre as mudanças que estavam ocorrendo na psicologia, afirmando que o novo conceito incluía a retomada do enfoque na consciência. A imagem da psicologia a res­peito da natureza humana estava sendo "humanizada e não mecanizada" (McKeachie, 1976, p. 831). Quando um representante da APA e uma publicação científica de prestígio discutem a consciência de forma tão aberta e otimista, parece óbvio estar em andamento uma revolução, outro novo movimento. Em seguida, vieram as revisões dos livros básicos de introdução à psicologia, redefinindo o campo como uma ciência do comportamento e dos processos mentais e não apenas do comportamento, uma disciplina em busca da explicação do comportamento manifesto, bem como das suas relações com os processos mentais. Portanto, estava claro que a psicologia progredira muito além dos desejos e dos planos de Watson e de Skinner. Uma nova escola de pensamento estava surgindo.

As Influências Anteriores na Psicologia Cognitiva

Assim como todos os movimentos revolucionários da psicologia, o movimento cognitivo não surgiu de uma hora para outra. Muitas das características já haviam surgido antes.

O interesse na consciência era claro, no período inicial da psicologia, antes de a discipli­na ser considerada uma ciência formal. As obras dos filósofos gregos, Platão e Aristóteles mencionavam os processos de pensamento, como também o faziam as teorias dos associacionistas e empiristas britânicos.

Quando Wundt instituiu a psicologia como disciplina científica independente, seu trabalho concentrou-se na consciência. Ele pode ser considerado o precursor da psicologia cognitiva contemporânea pela ênfase do seu trabalho na atividade criativa da mente. As escolas de pensamento estruturalista e funcionalista abordavam a consciência, estudando os seus elementos e as suas funções. O behaviorismo, no entanto, alterou radicalmente essa visão, descartando a consciência e ignorando-a por cerca de 50 anos.

A retomada da consciência e o início formal do movimento da psicologia cognitiva remontam à década de 1950, embora já se observassem sinais aparentes na década de 1930. O behaviorista E. R. Guthrie, ao final da sua carreira, criticava o modelo mecanicista e afirmava nem sempre ser possível reduzir os estímulos a termos físicos. Ele sugeria que os psicólogos deviam descrever os estímulos em termos cognitivos ou perceptuais, de modo que os tornassem significativos para o organismo reagente (Guthrie, 1959). Por se tratar de um processo cognitivo ou mentalista, o conceito de significado não pode ser descrito exclusivamente por questões behavioristas.

O behaviorismo intencional de E. C. Tolman foi outro precursor do movimento cog­nitivo. Sua forma de behaviorismo reconhecia a importância das variáveis cognitivas e contribuiu para o declínio da visão de estímulo-resposta. Tolman propôs o mapa cognitivo, atribuiu comportamento intencional aos animais e enfatizou as variáveis intervenientes como uma forma de definir operacionalmente os estados internos não-observáveis.

Rudolf Carnap, filósofo positivista, exigia o retorno da introspecção. Em 1956, Carnap afirmou: "a consciência que o indivíduo tem do próprio estado de imaginação, sentimen­to etc. deve ser reconhecida como um tipo de observação, em princípio, semelhante à observação externa e, portanto, uma fonte legítima de conhecimento" (apud Koch, 1964, p. 22). Até mesmo Bridgman, o físico que proporcionou ao behaviorismo a noção de defi­nições operacionais, criticou o behaviorismo e insistiu em que os relatos introspectivos fossem usados para dar significado às análises operacionais.

A psicologia da Gestalt também influenciou a psicologia cognitiva por causa do enfo­que na organização, na estrutura, nas relações, no papel ativo do objeto e na participação importante da percepção na aprendizagem e na memória" (Hearst, 1979, p. 32). A escola de pensamento da Gestalt ajudou a manter vivo ao menos um pouco do interesse na cons­ciência durante os anos em que o behaviorismo dominava a psicologia estadunidense.

Outro precursor da psicologia cognitiva foi o psicólogo suíço Jean Piaget (1896-1980), que escreveu seu primeiro trabalho científico com 10 anos e viria, mais tarde, a estudar com Jung. Piaget também trabalhou com Théodore Simon, que, juntamente com Alfred Binet, desenvolveu o primeiro teste psicológico de habilidade mental. Piaget ajudava a aplicar os testes nas crianças. Posteriormente se tornaria importante por seu trabalho sobre o desenvolvimento infantil não com base nos estágios psicossexuais, conforme propunha Freud, mas em função dos estágios cognitivos. O método clínico de Piaget de entrevistar crianças e sua insistência em anotar tudo detalhadamente durante as entrevistas eram vistos como uma inspiração importante para o famoso estudo de Hawthorne sobre os trabalhadores industriais na década de 1920.

As hipóteses iniciais de Piaget, publicadas entre 1920 e 1930, embora altamente influen­tes na Europa, não foram muito bem-aceitas nos Estados Unidos por sua incompatibilidade com a posição behaviorista. Os primeiros teóricos cognitivos, no entanto, receberam bem a ênfase de Piaget nos fatores cognitivos. E, à medida que as ideias da psicologia cogniti­va tomavam conta da psicologia estadunidense, a importância dos conceitos de Piaget ficava ainda mais evidente. Em 1969, ele foi o primeiro psicólogo europeu a receber o Prêmio de Destaque pela Contribuição Científica. O enfoque do seu trabalho na criança ajudou a ampliar o campo de aplicação da psicologia cognitiva.

A Mudança do Zeitgeist na Física

Quando ocorre uma grande mudança na evolução de uma ciência, ela é entendida como um reflexo das modificações já concretizadas no Zeitgeist intelectual. Sabemos que a ciência, como uma espécie viva, adapta-se às condições e exigências do ambiente. Qual foi a atmosfera intelectual que favoreceu o movimento cognitivo e amenizou as ideias behavioristas, readmitindo a consciência? Mais uma vez, observa-se aqui o Zeitgeist da física, modelo para a psicologia há bastante tempo, e que tem influenciado a área desde o seu início como ciência.

No início do século XX, surge uma nova visão desenvolvida pelos trabalhos de Al­bert Einstein, Neils Bohr e Werner Heisenberg. Eles rejeitavam o modelo mecanicista do universo, originário da época de Galileu e Newton e protótipo para a visão mecanicista, reducionista e determinista da natureza humana adotada pelos psicólogos desde Wundt até Skinner. A nova perspectiva da física descartava a necessidade de total objetividade e a completa separação entre o universo externo e o observador.

Os físicos reconheciam a provável interferência de qualquer tipo de observação feita sobre o universo natural. Seria necessário tentar estabelecer uma relação na lacuna artifi­cial entre observador e observado, entre o universo interior e o exterior e entre o mental e o material. Desse modo, a investigação científica passou do universo independente identificável objetivamente para a observação do universo pelo indivíduo. Os cientistas modernos não podem mais permanecer tão distantes do foco da observação. Em certo sentido, devem se tornar "observadores participativos".

Consequentemente, o ideal da realidade totalmente objetiva agora era considerado inatingível. A física passou a se caracterizar pela crença de que o conhecimento objetivo na verdade é subjetivo e dependente do observador. Essa ideia de que todo conhecimento é pessoal parece muito semelhante à proposta por Berkeley há 300 anos: que o conhecimento é subjetivo porque depende da natureza do observador. Um escritor comentou que nossa visão de mundo, "bem longe de ser uma verdadeira reprodução fotográfica da realidade que está 'lá fora', na verdade, [está] mais para uma pintura: uma criação subjetiva da mente que reproduz uma imagem semelhante, jamais uma réplica" (Matson, 1964, p. 137).

A rejeição dos físicos do objeto de estudo mecanicista e objetivo e, ao mesmo tempo, o reconhecimento da subjetividade restabeleceram o papel vital da experiência conscien­te como uma forma de obter informações acerca do mundo real. Essa revolução na física foi um argumento efetivo para tornar novamente a consciência uma parte legítima do objeto de estudo da psicologia. Embora o sistema psicológico científico tenha resisitido à nova física por meio século, atendo-se a um modelo desatualizado e definindo-se insis­tentemente como uma ciência objetiva do comportamento, a disciplina acabou reagindo ao Zeitgeist e modificando-se, de modo que readmita os processos cognitivos.

A Fundação da Psicologia Cognitiva

Uma análise retrospectiva do movimento cognitivo deixa a impressão de uma rápida tran­sição que solapou as bases behavioristas da psicologia em alguns poucos anos. Ao mesmo tempo, é claro, essa transição não foi totalmente evidente. A mudança, agora percebida como drástica, ocorreu gradual e silenciosamente, sem alardes. Um psicólogo afirmou: "O termo revolução talvez não seja adequado. Não houve acontecimentos cataclísmicos; a mudança ocorreu lentamente, nos diferentes subcampos, ao longo de 10 a 15 anos; não houve nenhum momento e nenhum líder de destaque" (Mandler, 2002a, p. 339). ’

Geralmente, o progresso histórico fica evidente somente depois do acontecimento. A fundação da psicologia cognitiva não ocorreu da noite para o dia nem deve ser atribuída ao carisma de uma pessoa que — como Watson – transformou a área praticamente sozinha. Assim como a psicologia funcional, o movimento cognitivo não apresenta um fundador único, talvez porque nenhum dos psicólogos atuantes na área ambicionasse a liderança do novo movimento. Seu interesse era pragmático, apenas dar continuidade ao trabalho de redefinição da psicologia.

Em retrospecto, a história identifica dois pesquisadores que não foram fundadores, no sentido formal da palavra, mas contribuíram com o trabalho inovador e influente na forma de um centro de pesquisa e de livros considerados marcos no desenvolvimento da psicologia cognitiva. São eles George Miller e Ulric Neisser. As suas histórias indicam alguns fatores pessoais envolvidos na formação de novas escolas de pensamento.

George Miller (1920-)

George Miller formou-se em inglês na University of Alabama, onde completou o mestra­do em fala, em 1941. Durante esse período na universidade, demonstrou interesse pela psicologia e ganhou uma bolsa de estudos para, em troca, trabalhar como uma espécie de professor assistente, dando 16 aulas de introdução à psicologia, sem jamais haver fre­quentado um curso na área. Dizia que depois de lecionar sobre a mesma coisa 16 vezes por semana, começou a acreditar no que ensinava.

Miller foi para a Harvard University, onde trabalhou no laboratório de psicoacústica, lidando com problemas de comunicação oral, obtendo o Ph.D. em 1946. Cinco anos depois, publicou um livro sobre psicolinguística, considerado um marco divisório, Language and communication (1951). Miller reconhecia a escola de pensamento behaviorista, afirmando não ter outra alternativa, já que os behavioristas mantinham as posições de liderança nas principais universidades e associações profissionais.

O poder, as honras, a autoridade, os livros, os lucros, tudo relacionado à psicologia estava nas mãos da escola behaviorista (...) aqueles que desejassem ser psicólogos científicos não podiam opor-se ao behaviorismo. Senão, ficariam desempregados. (Miller apud Baars, 1986, p. 203) Em meados da década de 1950, após investigar a teoria estatística da aprendizagem, a teoria da informação e os modelos de mente com base no computador, Miller chegou à conclusão de que o behaviorismo, literalmente, não iria "funcionar". As semelhanças entre os computadores e o funcionamento da mente humana o impressionaram e sua visão voltou-se mais para a orientação cognitiva. Ao mesmo tempo, desenvolveu uma alergia grave a pelos e descamações de animais, não podendo mais fazer pesquisas com ratos de laboratório, e trabalhar apenas com seres humanos era uma desvantagem no universo dos behavioristas.

A mudança de Miller para a psicologia cognitiva também foi motivada por seu tempe­ramento rebelde, típico de muitos da sua geração de psicólogos. Estavam sempre dispostos a se revoltar contra a psicologia ensinada e praticada no momento, prontos para oferecer sua nova abordagem, seu enfoque no fator cognitivo em lugar do comportamental. Mas, como Miller escreveu cerca de 50 anos depois, "Na época em que estava acontecendo, não percebi que eu era, na realidade, um revolucionário" (2003, p. 141).

Em 1956, Miller publicou um artigo que, desde então, tornou-se um clássico, intitu­lado “The magical number seven, plus or minus two: some limits on our capacity for processing information ("O mágico número sete, mais ou menos dois: alguns limites da nossa capa­ cidade de processamento de informação"). Nesse trabalho, Miller demonstrou que a capa­ cidade consciente do indivíduo de lembrar números por um curto prazo (ou, igualmente, palavras ou cores) limita-se a aproximadamente sete "pedaços" de informação. Essa é a capacidade individual de processamento em determinado momento. A importância, o impacto dessa descoberta reside no fato de lidar com a experiência consciente ou cogni­tiva em uma época em que o behaviorismo ainda dominava o pensamento psicológico.

Ademais, o uso que ele fez da frase "processamento de informações" indicava a influência do modelo da mente humana baseado no computador.

O Centro de Estudos Cognitivos

Em parceria com Jerome Bruner (1915-), seu colega da Harvard, Miller criou um centro de pesquisa para investigar a mente humana. Miller e Bruner pediram ao reitor da universi­dade um espaço físico e, em 1960, ofereceram-lhes a casa em que William James morara. Não havia lugar mais apropriado, já que James abordou de modo tão requintado a natureza da vida mental no seu livro Principies. A escolha do nome para o novo centro não foi uma tarefa comum. Em virtude do fato de estar associado a Harvard, o centro tinha potencial para exercer grande influência na psicologia. Optaram pela palavra "cognição", para deno­tar o objeto de estudo, e decidiram chamar o local de Centro de Estudos Cognitivos.

Ao usarmos a palavra "cognição", estávamos nos colocando à parte do behaviorismo. Desejávamos algo relacionado a mental, no entanto, "psicologia mental" parecia extrema­mente redundante. "Psicologia do senso comum" podia dar a entender alguma espécie de investigação antropológica, e "psicologia do povo", a psicologia social de Wundt. Que palavra usar para rotular esse conjunto de conceitos? Optamos por cognição. (Miller apud Baars, 1986, p. 210)

Mais tarde, dois estudantes do centro lembraram-se de que, naquela época, ninguém conseguia lhes explicar o significado do termo cognição ou as ideias supostamente promo­vidas ali. O centro "não havia sido criado com um objetivo em particular; fora criado para se opor a algo. O importante não era saber o que era e sim saber o que não era" (Norman e Levelt, 1988, p. 101).

Não era o behaviorismo, não era a autoridade vigente, o sistema predominante ou a psicologia do presente. Ao definir o centro, os fundadores demonstravam quão diferentes eram dos behavioristas. Todo novo movimento anuncia a sua posição ou atitude como diferente da escola de pensamento corrente; esse é um estágio preliminar necessário para definir o objetivo e as alterações propostas. Miller, no entanto, atribuiu o devido crédito ao Zeitgeist. "Nenhum de nós deve receber muitos créditos pelo sucesso do Centro. Foi apenas uma ideia ocorrida no tempo certo" (Miller, 1989, p. 412).

Miller não considerava a psicologia cognitiva uma verdadeira revolução, apesar das diferenças em relação ao behaviorismo. Chamava-a de "acréscimo", uma mudança mediante um lento crescimento ou acúmulo. Enxergava o movimento como mais evolucionário que revolucionário e acreditava ser um retorno à psicologia do senso comum, que reconhecia e ratificava a preocupação psicológica com a vida mental e com o comportamento.

Os pesquisadores do centro investigavam ampla variedade de temas: linguagem, memória, percepção, formação de conceito, pensamento e psicologia do desenvolvimento. A maioria dessas áreas havia sido eliminada do vocabulário dos behavioristas. Mais tarde, Miller criou um programa de ciências cognitivas na Princeton University.

Miller tornou-se presidente da APA em 1969 e recebeu o Prêmio de Destaque pela Contribuição Científica e a Medalha de Ouro da Fundação Americana de Psicologia pelas Realizações na Aplicação da Psicologia. Em 1991, recebeu a Medalha Nacional da Ciência. Em 2003, recebeu da APA o Prêmio pela Extraordinária Contribuição à Psicologia. Outro reconhecimento do significado do seu trabalho é a quantidade de laboratórios de psicolo­gia cognitiva criados tendo o seu centro como modelo, além do rápido desenvolvimento e a formalização da abordagem à qual ele se dedicara com afinco para definir.

Ulric Neisser (1928-)

Nascido em Kiel, na Alemanha, Ulric Neisser foi para os Estados Unidos, com os pais, aos 3 anos. Iniciou os estudos universitários na Harvard, formando-se em física. Impressio­nado com um jovem professor de psicologia chamado George Miller, Neisser chegou à conclusão de que física não era assim tão interessante. Mudou para a psicologia e frequen­tou, com menção honrosa, o curso de Miller sobre a psicologia da comunicação e teoria da informação. Ele conta também que foi influenciado pelo livro de Koffka, Principies of Gestalt psychology. Depois de obter a graduação como bacharel em Harvard, em 1950, Neisser recebeu o título de mestrado na Swarthmore College, estudando sob a orientação do psicólogo da Gestalt, Wolfgang Köhler. Retornou a Harvard para obter o Ph.D., que completou em 1956.

Apesar do crescente interesse pela abordagem cognitiva da psicologia, Neisser não via como escapar do behaviorismo, já que desejava seguir a carreira acadêmica. "Não havia outra opção. Estávamos em uma era em que o fenômeno psicologia seria considerado real somente se demonstrado em um rato de laboratório" (apud Baars, 1986, p. 275). No entanto, Neisser teve sorte, pois sua primeira posição acadêmica foi na Brandeis University, onde o diretor do departamento de psicologia era Abraham Maslow. Naquela época, Maslow estava se afas­tando da sua formação behaviorista para desenvolver a abordagem humanista ao campo.

Maslow não conseguiu convencer Neisser a se tornar psicólogo humanista, ou em transfor­mar a psicologia humanista na terceira força da disciplina, mas proporcionou a Neisser a oportunidade de perseguir seu interesse nas questões cognitivas (mais tarde, Neisser afir­mou ser a psicologia cognitiva e não a humanista a terceira força da psicologia).

Em 1967, Neisser publicou a obra Cognitive psychology e alegou ser esse um livro pessoal, uma tentativa de definir a si próprio e o tipo de psicólogo que almejava ser. O trabalho também foi um marco divisório na história da psicologia, uma tentativa de definir um novo tratamento para a disciplina. A obra tornou-se extremamente conhecida, e Neisser sentia-se constrangido por ser identificado como o "pai" da psicologia cognitiva. Embora não desejasse fundar nenhuma escola de pensamento, seus trabalhos ajudaram a afastar a psicologia do behaviorismo, empurrando-a em direção ao cognitivismo. Mesmo assim, Neisser enfatizava que o estudo das questões cognitivas devia constituir apenas parte da psicologia e não caracterizar a disciplina toda.

Neisser definia a cognição como os processos pelos quais "a informação sensorial recebida é transformada, reduzida, elaborada, armazenada, recuperada e usada. (...) cognição está envol­vida em tudo que o ser humano é capaz de realizar" (Neisser, 1967, p. 4). Assim, a psicologia cognitiva está relacionada com a sensação, a percepção, a formação de imagens, a memória, a solução de problemas, o pensamento e as demais atividades mentais relacionadas.

Apenas nove anos depois, Neisser publicou Cognition and reality (1976), expressando a insatisfação com a restrição da posição cognitiva e a dependência da coleta de dados em laboratório e não no mundo real. Insistia em afirmar que os resultados da pesquisa psico­lógica deviam ter validade em termos ecológicos. Com isso, quis dizer que os resultados deviam ser generalizados para as situações além dos limites do laboratório. Além disso, alegava que a psicologia cognitiva devia permitir a aplicação das descobertas aos proble­mas práticos, ajudando as pessoas a lidarem com as questões cotidianas particulares e profissionais. Assim, Neisser mostrava-se decepcionado, concluindo que o movimento da psicologia cognitiva tinha pouco a contribuir com a psicologia, no sentido de compreender como as pessoas lidam com as situações. Desse modo, a principal figura na fundação da psicologia cognitiva tornara-se seu crítico audaz, desafiando o movimento, como fizera anteriormente com o behaviorismo.

Depois de 17 anos na Cornell University, onde seu escritório ficava perto do local em que foi guardado o cérebro conservado de Titchener, Neisser mudou-se para a Emory University, em Atlanta, retornando a Cornell em 1996.

A Metáfora do Computador

Os relógios e os robôs foram as metáforas do século XVII para a visão mecânica do uni­verso e, por analogia, para a mente humana. Essas máquinas bem conhecidas eram mode­los fáceis de entender daquilo que se acreditava ser o funcionamento da mente. Hoje, o modelo do universo mecânico e a psicologia behaviorista baseados nessas máquinas foram superados por outras visões - como a aceitação da subjetividade na física e o movimento cognitivo da psicologia.

Como resultado, o relógio não é mais um exemplo útil para a visão moderna da mente. Uma máquina do século XX, o computador, surgiu para servir de modelo, como uma nova metáfora para o funcionamento da mente. Um historiador da ciência comentou: "O veículo responsável pela reintrodução da mente e um agente vital da derrocada do behaviorismo foi a noção da mente comparada ao computador. Essa afirmação transformou-se em senso comum na literatura histórica da 'revolução cognitiva"' (Crowther-Heyck, 1999, p. 37). Os psicólogos tomam como base as operações do computador para explicar o fenômeno cognitivo. Dizem que os computadores exibem uma inteligência artificial e normalmente são descritos "de forma humana". A capacidade de armazenagem chama-se memória; os códigos de programação, linguagem, e as novas gerações de computadores, evoluções.

O funcionamento dos programas de computador, basicamente formados de conjuntos de instruções para o tratamento de símbolos, é semelhante ao da mente humana. Tanto o computador como a mente recebem do ambiente e processam grande quantidade de infor­mações (estímulos sensoriais ou dados). Ambos compilam essas informações, manipulando, armazenando e recuperando os dados, atuando de várias maneiras. Desse modo, a programa­ ção do computador foi sugerida como base para a visão cognitiva humana do processamento de informações, do raciocínio e da solução de problemas. É o programa (software) e não o computador em si (hardware) que serve como explicação para as operações da mente.

Os psicólogos cognitivos estão interessados na sequência de manipulação dos símbolos envolvida nos processos de pensamento humano. Em outras palavras, estão preocupados em descobrir como a mente processa a informação. Eles têm como objetivo descobrir o programa que cada indivíduo tem armazenado na memória, os padrões de pensamento que lhe permitem compreender e articular as ideias, lembrar e resgatar os acontecimentos e os conceitos, e assimilar e resolver um problema novo. Em quase 125 anos de história, a psicologia partiu do simples relógio até chegar aos sofisticados computadores como mode­los de objeto de estudo, mas é importante observar que ambos são máquinas. Esse aspecto demonstra a continuidade histórica na evolução da psicologia, desde as mais antigas esco­las de pensamento, até as mais recentes. É possível observar também uma continuidade histórica na própria evolução dos computadores.

O Desenvolvimento do Computador Moderno

Os trabalhos de Charles Babbage e Henry Hollerith visavam ao desenvolvimento de uma máquina capaz de "pensar" como o homem. No entanto, um problema prático surgido durante os primeiros dias da Segunda Guerra Mundial provocou o início da moderna era dos computadores. Em 1942, o exército estadunidense precisava desesperadamente encontrar uma forma de realizar com mais rapidez os cálculos necessários para disparar as peças de artilharia. A mira perfeita do canhão para o projétil atingir o alvo envolvia (e até hoje envolve) um processo muito complicado, bem mais complexo que o procedimento de o soldado mirar um rifle e apertar o gatilho. Por exemplo, "Para mirar um canhão, o atirador tinha de efetuar diversos ajustes. Esse procedimento exigia o uso de uma série de tabelas [matemáticas] para calcular todas as variáveis que afetam a trajetória do projétil, como a direção e a velocidade do vento, a umidade do ar, a temperatura, a elevação e até mesmo a temperatura da pólvora" (Keiger, 1999, p. 40).

O manual de ajustes para cada tipo de artilharia continha centenas, até milhares de tabelas de cálculos. Esse trabalho era realizado pelas mulheres, recém-contratadas durante o período da guerra, que usavam calculadores manuais (essas mulheres eram chamadas de "computadoras"). Todavia, um ano depois, elas foram superadas, pois não conseguiam acompanhar a demanda. A situação era tão crítica que alguns canhões chegaram a ser abandonados em combate por falta de tabelas com os cálculos para atirar.

Essa necessidade incentivou o desenvolvimento do primeiro computador de grande porte, o Eniac - Electronic Numerical Integrator and Calculator. Concluída em 1943, a máquina em formato de ferradura ocupava três paredes de uma sala enorme, com "braços de 24 metros de comprimento e altura aproximada de 2,4 metros, pesando em torno de 30 toneladas. Continha cerca de 17.468 válvulas eletrônicas (...) além de 10 mil capacitores, 70 mil resistores, 1.500 relés e 6 mil chaves manuais, uma quantidade tão grande de peças eletrônicas que exigia enormes ventiladores para dissipar o calor produzido" (Waldrop, 2001, p. 45).

As máquinas com capacidade para realizar operações mentais percorreram um longo caminho desde a época da calculadora de Babbage. Basta comparar o tamanho e a capaci­dade de um laptop ou palm top para perceber o quão primitivo era o Eniac. A evolução das máquinas para a realização de funções mentais prossegue em um ritmo tão rápido que nos leva, inevitavelmente, a questionar se elas realmente demonstram inteligência.

A Inteligência Artificial

Os psicólogos cognitivos aceitavam computadores como modelo para o funcionamento cognitivo humano, afirmando que as máquinas exibiam inteligência artificial e proces­samento de informação semelhantes aos do homem. É possível supor, então, que a inteli­gência do computador seja igual à do homem? Será que o computador é capaz de pensar? No século XVII, os robôs simulavam a fala e o movimento humanos. No século XXI, será que as novas gerações de computadores simularão o pensamento humano?

No início, os cientistas da computação e os psicólogos cognitivos acolheram com grande entusiasmo a noção da inteligência artificial. Já em 1949, quando os computadores ainda eram relativamente primitivos, o autor de um livro intitulado Giant brains afirmou: "...a máquina manipula informações; realiza cálculos, chega a conclusões e faz opções; a máquina faz uma quantidade razoável de operações com os dados. A máquina, portanto, pensa” {apud Dyson, 1997, p. 108).

Em 1950, o gênio da computação Alan Turing (1912-1954) propôs uma maneira de veri­ficar a hipótese de que o computador seria capaz de pensar. Chamado de Teste de Turing, o processo consistia em convencer um indivíduo de que o computador com o qual estava se comunicando era realmente uma pessoa, e não uma máquina. Se o indivíduo não conseguis­ se distinguir entre as respostas do computador e as humanas, a máquina estaria exibindo inteligência semelhante à do homem. O Teste de Turing funciona da seguinte forma.

O entrevistador [um indivíduo] estabelece duas formas diferentes de "conversação" com o programa interativo do computador. O entrevistador deve tentar descobrir qual das duas partes seria uma pessoa usando o computador para se comunicar e qual seria a própria máquina respondendo. O entrevistador formula qualquer tipo de pergunta. Entretanto, o computador tenta enganar o entrevistador, ou seja, tenta fazê-lo acreditar ser uma pessoa, enquanto a pessoa de verdade tenta mostrar que ela é humana. O computador é aprovado no Teste de Turing se o entrevistador não conseguir fazer a distinção entre a máquina e o indivíduo. (Sternberg, 1996, p. 481-482)

Nem todos concordavam com a premissa do Teste de Turing. John Searle (1932-), um filósofo que elaborou o problema da sala chinesa, foi quem apresentou as mais veementes objeções (Searle, 1980). Imagine-se sentado em uma cadeira, de frente para uma parede com duas aberturas. Pedaços de papel contendo um conjunto de ideogramas chineses ap­arecem um de cada vez na abertura da esquerda. A sua tarefa é combinar, de acordo com o formato, o conjunto de símbolos com os de um livro. Quando você consegue encontrar o conjunto correto, deve copiar outro conjunto de símbolos do livro em um pedaço.  O que está acontecendo aqui? Você está sendo alimentado com as informações pela abertura da esquerda e transmitindo dados pela da direita, obedecendo às instruções programadas recebidas. Assim como a maioria dos ocidentais, não se espera que você leia ou compreenda chinês. Você está apenas seguindo as instruções de forma mecânica.

No entanto, se um psicólogo chinês estivesse observando a uma distância bem razoá­vel da parede com as aberturas, não conseguiria perceber que você não sabe chinês. As comunicações chegam a você em chinês e, por sua vez, você responde corretamente em chinês, copiando-as do livro. Não importa quantas mensagens você receba ou a quantas responda, ainda continua não sabendo chinês. Você não está pensando, está apenas seguin­do instruções. Não está demonstrando inteligência, apenas obedecendo a ordens.

Searle afirmava que os programas de computador que parecem compreender os diferen­tes tipos de dados recebidos e responder a essas informações de forma inteligente estariam funcionando como a pessoa do problema da sala chinesa. O computador não entende as mensagens, tanto como você não sabe chinês. Nesses exemplos, tanto você como o compu­tador estão funcionando exatamente de acordo com o conjunto de regras programadas.

Vários psicólogos cognitivos chegaram a concordar que o computador passa no Teste de Turing e simula a inteligência sem realmente ser inteligente. Conclusão, o computador ainda não é capaz de pensar. Mas seu desempenho parece simular o pensamento, e isso nos remete às partidas de xadrez de 1997 que devastaram o campeão mundial Garry Kasparov. O que o deixara tão abatido, levando-o a abandonar o jogo? O seu oponente era um computador.

Fabricado pela IBM, o computador se chamava Deep Blue. Pesava cerca de 3 toneladas, e cada uma das suas duas torres media mais de 1,80m de altura. Tinha uma capacidade de processamento de 200 milhões de posições por segundo; em três minutos conseguia processar 50 bilhões de movimento. Não foi à toa que até o maior mestre do xadrez rendeu-se, desespe­rado. Todavia, com toda essa capacidade, o Deep Blue estava realmente pensando?

A conclusão geral foi de que a máquina não pensava, embora se “comportasse" como se estivesse pensando. Um escritor científico britânico, interessado em máquinas de jogos de xadrez, concluiu: "Apesar do incansável aperfeiçoamento do desempenho do computa­dor, houve pouco progresso na busca pela inteligência da máquina para aplicação geral. (...) O Deep Blue mostrou que a criação de um computador capaz de jogar xadrez como qualquer ser humano revela muito pouco sobre a inteligência em geral" (Standage, 2002, p. 241). O computador, apesar do fantástico desempenho exibido, ainda precisa ser progra­mado por um ser humano pensante. Em 2003, Kasparov voltou a jogar, dessa vez contra o Deep Junior, uma nova geração de computador enxadrista. Antes da partida ele disse: "Estou aqui representando a raça humana. Prometo fazer o melhor".

Mas Kasparov teve dificuldades para isso. Um observador para a revista Wired es­creveu: enquanto Kasparov está praticamente exausto, Deep Junior simplesmente continua jogando. Como um robô assassino, o computador com certeza não vai parar, jamais. Garry ficou cada vez mais exausto. Ele está tentando ficar calmo e concentrado para ver se consegue deixar a máquina aborrecida fazer com que ela erre; [mas] ficar aborrecida não é uma opção. A máquina não se irrita, (wired.com/news.7/6/2006) E quando Kasparov cedeu a um empate de 3 a 3, foi vaiado pela multidão. No entanto, seu desempenho mostrou que a inteligência artificial não atingiu o nível de complexidade da inteligência humana - pelo menos por enquanto.

A Natureza da Psicologia Cognitiva

No Capítulo 11, vimos como a inclusão dos fatores cognitivos nas teorias da aprendiza­gem social de Albert Bandura e de Julian Rotter alterou o behaviorismo estadunidense. Hoje, o impacto do movimento cognitivo é observado não apenas na psicologia behaviorista. Os fatores cognitivos são observados por pesquisadores em diversas áreas da disciplina: a teoria da atribuição da psicologia social, a teoria da dissonância cognitiva, a motivação e a emoção, a personalidade, a aprendizagem, a memória, a percepção e o processamen­to da informação na tomada de decisões ou solução de problemas. Nas áreas aplicadas, como a psicologia clínica, comunitária, educacional e industrial-organizacional, também se observam a ênfase nos fatores cognitivos.

A psicologia cognitiva é diferente do behaviorismo em vários aspectos. Primeiro, os psicólogos cognitivos dedicam-se a estudar o processo de aquisição do conhecimento e não apenas a mera resposta ao estímulo. Os principais fatores são os fatos e os processos mentais e não as conexões estímulo-resposta; a ênfase é dada à mente e não ao compor­tamento, o que não quer dizer que os psicólogos cognitivos ignorem o comportamento, mas que as reações comportamentais não consistem no único enfoque da pesquisa. As respostas comportamentais constituem fontes de dedução para se chegar à conclusão sobre os processos mentais associados a essas reações.

Segundo, os psicólogos cognitivos estão interessados em saber como a mente estrutura ou organiza as experiências. Os psicólogos da Gestalt, assim como Piaget, argumentavam em favor da tendência inata de organizar a experiência consciente (as sensações e as percepções) em unidades e padrões de significado. A mente dá forma e coerência à experiência mental; esse processo é o objeto de estudo da psicologia cognitiva. Os empiristas e associacionistas britânicos e a psicologia do século XX derivada dessas teorias, o behaviorismo skinneriano, insistiam em que a mente não é dotada de capacidade organizacional inata.

Terceiro, os psicólogos cognitivos acreditam na atuação ativa e criativa do indivíduo em organizar estímulos recebidos do ambiente. O indivíduo é capaz de participar da aquisição e aplicação do conhecimento, participando intencionalmente de alguns fatos e optando por associá-los à memória. O indivíduo não é, como afirmavam os behavioristas, respondente passivo às forças externas ou folhas em branco para o registro da experiência sensorial.

A Neurociência Cognitiva

As pesquisas sobre o mapeamento das funções cerebrais datam dos séculos XVIII e XIX e estão nos trabalhos de Hall, Flourens e Broca (veja no Capítulo 3). Empregando métodos como a extirpação e os choques elétricos, os primeiros psicólogos tentaram determinar as partes específicas do cérebro controladoras das várias funções cognitivas.

Essa investigação continua até hoje na disciplina chamada neurociência cognitiva, um híbrido da psicologia cognitiva e da neurociência. Os objetivos desse campo são determinar "como as funções cerebrais originam a atividade mental" e "correlacionar aspectos específicos do processamento de informação com as regiões específicas do cérebro" (Sarter Bernston e Cacioppo, 1996, p. 13).

Os pesquisadores da neurociência cognitiva obtiveram avanços extraordinários no mapeamento cerebral, principalmente em virtude do desenvolvimento e da aplicação das sofisticadas técnicas de utilização de imagens. Por exemplo, o eletroencefalograma (EEG - Electroencephalogram) registra as variações na atividade elétrica de partes selecionadas do cérebro. A leitura da tomografia axial computadorizada (CAT - Computerized Axial Tomography) revela perfis detalhados do cérebro. O exame de ressonância magnética (MRI - Magnetic Resonance Imagery) produz imagens tridimensionais do cérebro. Enquanto essas técnicas produzem imagens estáticas, a varredura da tomografia por emissão de pósitron (PET - Positron Emission Tomography) produz imagens ao vivo de várias atividades cogniti­vas. Essas e outras técnicas de uso de imagens vêm oferecendo aos cientistas um grau de precisão e de detalhes impossível de ser obtido até então.
Em 2006, os neurocientistas cognitivos demonstraram que o cérebro humano podia controlar um computador. O pensamento podia ser traduzido em movimento só por impulsos elétricos. O objeto de estudo era um homem de 25 anos de idade que estava totalmente paralisado havia três anos. Censores eletrônicos, implantados no córtex motor de seu cérebro, interagindo com um computador, permitindo controlar não somente o computador, mas também um aparelho de televisão e um robô - tudo isso usando somente seus pensamentos. Em poucos minutos ele havia aprendido a movimentar o cursor do computador, e abrir e-mails, movimentar objetos usando um braço robótico, jogar video-game simples, e desenhar um círculo na tela. Ele praticou esse controle pensando em tais movimentos, isto é, ao ter a intenção ou desejo de fazê-los. Naturalmente, ele não conseguia mover o controle com suas mãos.

Essa aplicação da neurociência cognitiva, chamada de neuroprostética, dá esperança a pessoas com esses tipos de deficiências, de que um dia serão capazes de interagir com objetos em seu ambiente, e controlá-los (Hochberg ET AL., 2006; Pollack, 2006).

O PapeI da Introspecção

A aceitação das experiências conscientes fez os psicólogos cognitivos reconsiderarem a primeira abordagem de pesquisa da psicologia científica, o método introspectivo introdu­zido por Wundt há mais de um século. Em uma declaração que podia ser de Wundt ou Titchener, um psicólogo fez uma afirmação óbvia, no final do século XX, de que "... se vamos estudar a consciência, devemos adotar a introspecção juntamente com os relatos introspectivos" (Farthing, 1992, p. 61).

Os psicólogos tentaram quantificar os relatos introspectivos a fim de permitir análises estatísticas mais objetivas e manipuláveis. Uma das abordagens, a avaliação fenomenológica retrospectiva, consiste em pedir ao indivíduo que avalie a intensidade das experiências subjetivas durante a resposta a uma situação de estímulo anterior. Em outras palavras, o indivíduo avalia retrospectivamente as experiências subjetivas ocorridas durante um período anterior, quando lhe pediram para responder a um dado estímulo.

Um psicólogo cognitivo notou que não somente a introspecção podia ser amplamente utilizada, como também que os estados conscientes revelados pela introspecção são "fre­quentemente bons preditivos do comportamento da pessoa" (Wilson, 2003, p. 131).

Embora alguma forma de introspecção constitua o método de pesquisa mais fre­quentemente usado na psicologia contemporânea, até mesmo os mais fervorosos adeptos reconhecem as limitações para a sua validação. Por exemplo, alguns sujeitos podem fazer relatos introspectivos socialmente desejáveis, falando aos pesquisadores aquilo que eles querem ouvir em um esforço para agradá-los. Outro problema com a introspecção é que os sujeitos podem não ser capazes de avaliar alguns de seus pensamentos ou sentimen­tos, pois eles residem muito profundamente no seu inconsciente, um tópico ao qual os psicólogos estão dedicando atenção crescente.

A Cognição Inconsciente

O estudo do processo mental consciente motivou um renovado interesse nas atividades cognitivas inconscientes. "Depois de cem anos de descaso, desconfiança e frustração, o processo inconsciente voltou com firmeza na mente coletiva dos psicólogos" (Kihlstrom, Barnhardt e Tataryn, 1992, p. 788). Cada vez mais, os psicólogos cognitivos concordam que o inconsciente é capaz de realizar muitas funções que antes se acreditava precisarem de deliberação, intenção e conscientização deliberada. As pesquisas sugerem que a maior parte de nosso pensamento e processamento de informações ocorre no inconsciente, que pode operar mais rápida e eficientemente do que a mente consciente (veja Hassin, Uleman e Margh, 2005; Wilson, 2002).

Entretanto, essa não é a mente inconsciente de que falava Freud, transbordando de lembranças e desejos reprimidos trazidos ao consciente somente por meio da psicanálise. Esse novo inconsciente é mais racional do que emocional, e está envolvido no primeiro estágio da cognição de resposta a um estímulo. Desse modo, o processo inconsciente forma uma parte integrante da aprendizagem e é passível de estudo experimental.

Para distinguir a versão moderna de inconsciente cognitivo da versão psicanalítica (e dos estados físicos de inconsciência, sonolência ou comatoso), alguns psicólogos cognitivos preferem empregar o termo "não-consciente". Em geral, os pesquisadores cognitivos con­cordam que a maioria dos processos mentais do homem ocorre no nível não-consciente. "Hoje, acredita-se ser o estado inconsciente mais 'alerta' do que se pensava, sendo capaz de processar informações visuais e verbais complexas e até prever (e planejar) acontecimen­tos futuros. (...) Não mais um simples depositário do ímpeto e do impulso, o inconsciente parece desempenhar importante papel na solução de problemas, no teste de hipóteses e na criatividade" (Bornstein e Masling, 1998, p. xx).

Tanto nos experimentos laboratoriais quanto nos estudos baseados na observação do comportamento do consumidor ao fazer compras, os pesquisadores verificaram que o pensamento inconsciente (chamado aqui de "atenção sem deliberação") era mais cria­tivo e diversificado e levava a compras mais satisfatórias do que quando as respostas no laboratório e comportamento de compra eram dirigidos pelo pensamento consciente (Kijksterhuis, Bos, Nordgren, e van Baaren, 2006; Dijksterhuis e Meurs, 2006).

Uma abordagem conhecida no estudo do processamento não-consciente envolve a percepção subliminar (ou ativação subliminar), na qual estímulos são apresentados abaixo do nível de consciência do indivíduo. Apesar da incapacidade do indivíduo de percebê-los, a estimulação ativa o processo consciente e o comportamento da pessoa. Desse modo, esse tipo de pesquisa demonstra que o indivíduo pode ser influenciado por um estímulo que não vê ou não ouve. Essas e outras descobertas semelhantes convenceram os psicólogos cognitivos de que o processo de aquisição do conhecimento (dentro ou fora do ambiente laboratorial) ocorre tanto no nível consciente como no não-consciente, mas a maior parte do trabalho mental envolvido na aprendizagem ocorre no nível não-consciente. A pesquisa também indica que o processamento da informação não-consciente pode ser mais rápido, mais eficiente e mais sofisticado do que as atividades semelhantes do nível consciente.

A Cognição Animal

O movimento cognitivo resgatou a consciência não apenas dos seres humanos, como também dos animais. Realmente, a psicologia comparativa e a animal fecharam o círculo completo, desde as observações da vida mental do animal relatadas por Romanes e Mor­gan nas décadas de 1880 e 1890, passando pelo estudo do condicionamento mecânico por estímulo-resposta dos behavioristas skinnerianos nas décadas de 1950 e 1960, até a restauração contemporânea da consciência pelos psicólogos cognitivos.

Desde a década de 1970, os estudiosos da psicologia animal tentam demonstrar como o animal codifica, transforma, computa e manipula as representações simbólicas das texturas espacial, temporal e causal do mundo real para adaptar e organizar o próprio comportamento" (Cook, 1993, p. 174). Em outras palavras, o sistema de processamento de informações semelhante ao do computador que se acredita operar nos humanos também está sendo estudado nos animais. As primeiras pesquisas de cognição animal utilizavam estímulos simples como luzes coloridas, sons e cliques. Esses estímulos talvez tenham sido básicos demais para permitir uma compreensão do processo cognitivo animal, pois não permitiam aos animais exibirem a gama completa de capacidades de processamento de informação. Pesquisas posteriores utilizavam estímulos mais realistas e complexos, tais como fotos coloridas de objetos conhecidos. Esses estímulos fotográficos revelaram capacidades conceituais até então não atribuídas aos animais.

Observou-se ainda uma memória animal complexa e flexível e pelo menos alguns processos cognitivos operando de modo semelhante no animal e nos seres humanos. Os animais de laboratório são capazes de aprender conceitos variados e sofisticados. Eles exi­bem processos mentais tais como a codificação e organização de símbolos, a capacidade de formar abstrações espaciais, temporais e numéricas e perceber as relações de causa e efeito. Além disso, o uso que fazem de ferramentas e outros acessórios implica um sentido básico de raciocínio (Wynne, 2001). 

Estudos feitos com animais, desde insetos até mamíferos (incluindo ratos, pombas, chimpanzés, papagaios, golfinhos e corvos), sugerem que os animais conseguem desempe­nhar uma série de funções cognitivas. Entre estas estão a formação de mapas cognitivos, percepção de motivos, planejamento levando em consideração experiências passadas, compreensão de conceitos de números e resolução de problemas pelo uso da razão (veja por exemplo, Emery e Clayton, 2005; Pennisi, 2006).

No entanto, alguns estudiosos da psicologia animal afirmam que as pesquisas rea­lizadas até hoje não oferecem comprovações suficientes para generalizar a afirmação de que a cognição animal funcione de modo semelhante à humana. A lacuna entre o fun­cionamento da mente animal e o da mente humana proposta por Descartes no século XVII mantém o seu apelo.

Os psicólogos comportamentais ainda rejeitam a noção de consciência, tanto em ani­mais como nos seres humanos. Um behaviorista afirmou sobre os psicólogos cognitivos animais: "Eles são os George Romaneses de hoje. Especular sobre memória, raciocínio e consciência dos animais não é menos ridículo do que era há 100 anos" (Baum, 1994, p. 138). Um historiador famoso apresentou uma opinião contraditória:
Será que os animais demonstram todos os aspectos observáveis da consciência? As evi­dências biológicas apontam para uma clara resposta positiva. Teriam, então, também, o lado subjetivo? Dada a longa e crescente lista de semelhanças, parece-me que o peso da evidência está inexoravelmente tendendo para uma resposta afirmativa. (...) Sinto que a comunidade científica agora inclinou-se a seu favor. Os fatos básicos acabaram retornando à origem. Não somos os únicos seres conscientes do planeta. (Baars, 1997, p. 33)

Se os animais são seres conscientes e podem desempenhar funções cognitivas se­melhantes às dos seres humanos, é possível perguntar se também exibem características comuns de personalidade? Um número crescente de psicólogos acredita que a resposta é afirmativa.

A Psicologia Animal

No início da década de 1990 dois psicólogos decidiram estudar 44 polvos vermelhos no aquário de Seattle, Washington, onde cientistas e cuidadores haviam notado que os polvos tinham personalidades diferentes entre si. De fato, eles haviam dado nomes que corres­pondiam às suas naturezas. Uma fêmea mais tímida foi chamada de Emily Dickinson, em homenagem à poetisa. Uma outra era tão agressiva e destrutiva que foi chamada de Lucrécia McEvil (Siebert, 2006).

Os psicólogos observaram o comportamento dos polvos em três situações experi­mentais e verificaram que diferiam em três fatores: atividade, reação e fuga. A resposta à pergunta: "Os polvos têm personalidade?" foi inexoravelmente afirmativa (Mather e Anderson, 1993).

Desde essa pesquisa, os estudos têm documentado características de personalidade em uma variedade de animais, incluindo peixes, aranhas, animais de grande porte, hienas, chimpanzés e cachorros. Por exemplo, algumas hienas foram observadas em um zoológi­co por seus cuidadores que relataram que apresentam características semelhantes às dos humanos, como excitabilidade, sociabilidade, curiosidade e positividade. Ratos exibiram um certo grau de empatia por outros ratos com dor, assim como os chimpanzés, elefantes e golfinhos. Os orangotangos com grau elevado de extroversão e amabilidade, e baixo grau de comportamento neurótico, também apresentam um alto grau de bem-estar subjetivo. Além disso, os traços de personalidade exibidos por cachorros têm sido medidos com a mesma exatidão que nos seres humanos (veja Gosling, Kwan e John, 2003; Miller, 2006; Siebert, 2006; Weiss, King e Perkins, 2006).

"Com os estudos da personalidade animal estamos obtendo uma apreciação ainda maior não só da distinção dos pássaros e animais e seus comportamentos, mas também de suas semelhanças profundas com nós mesmos e nossos comportamentos" (Siebert, 2006, p. 51). Se os animais são tão semelhantes aos seres humanos em termos de processamento cognitivo, temperamento e personalidade, isso significa confirmação adicional da impor­tância da evolução em todas as criaturas vivas? Como veremos, o campo relativamente novo da psicologia evolucionista dedica-se a investigar justamente essa questão.

O Estágio Atual da Psicologia Cognitiva

Com o movimento cognitivo na psicologia experimental e a ênfase na consciência den­tro da psicologia humanista e da psicanálise pós-freudiana, é possível observar que a consciência estava exigindo a posição central que ocupou quando do início formal da disciplina. Uma análise de 95 discursos presidenciais da APA mostra que a visão predo­minante do objeto de estudo da psicologia oscilou dos fatos subjetivos para os objetivos, retornando aos subjetivos (Gibson, 1993). A retomada da consciência ocorreu de forma vigorosa e substancial.

Como escola de pensamento, a psicologia cognitiva vangloria-se das aparências externas do sucesso. Na década de 1970, o movimento obteve tantos adeptos que conseguiu susten­tar as próprias revistas especializadas: Cognitive Psychology (publicada primeiro em 1970), Cognition (1971), Cognitive Science (1977), Cognitive Therapy and Research (1977), Journal of Mental Imagery (1977) e Memory and Cognition (1983). A revista Consciousness and Cognition começou a ser publicada em 1992, e a Journal of Consciousness Studies, em 1994.

Em uma ocasião, Jerome Bruner descreveu a psicologia cognitiva como "uma revolu­ção cujos limites ainda não podem ser previstos" (Bruner, 1983, p. 274). O cientista Roger Sperry, ganhador do prêmio Nobel, comentou que a revolução da consciência ou cognitiva, comparada às revoluções psicanalítica e behaviorista na psicologia, é "a reviravolta mais radical; a mais revisionista e mais transformadora" (Sperry, 1995, p. 35)

O impacto da psicologia cognitiva é sentido na maioria das áreas de interesse das comunidades de psicologia estadunidense e europeia. Ademais, os psicólogos cognitivos têm tentado aprofundar e consolidar o trabalho de diversas grandes disciplinas em um estudo unificado de aquisição do conhecimento. Essa perspectiva, intitulada ciência cognitiva, é uma fusão de psicologia cognitiva, linguística, antropologia, filosofia, ciência da compu­tação, inteligência artificial e neurociência. Embora George Miller questionasse em que se transformaria a união de campos de estudo tão distintos (ciências cognitivas, ele sugeriu, em vez de ciência cognitiva), não há como negar o crescimento da abordagem multidisci- plinar. Vários laboratórios e institutos de ciência cognitiva foram criados nas universidades dos Estados Unidos; alguns departamentos de psicologia passaram a se chamar departa­mentos de ciência cognitiva. Qualquer que seja o nome, a abordagem cognitiva para o estudo do fenômeno mental e dos processos mentais passou a dominar a psicologia e as disciplinas aliadas.

Todavia, nenhuma revolução, mesmo bem-sucedida, escapa das críticas. Por exemplo, a maioria dos psicólogos behavioristas posiciona-se contrária ao movimento cognitivo. Mesmo os que apoiam o movimento apontam suas limitações e seus pontos fracos, obser­vando que existem poucos conceitos com os quais a maioria dos psicólogos cognitivos concorda, ou que considera importantes, e ainda há muita confusão em torno da termi­nologia e das definições.

Outra crítica está relacionada à ênfase excessiva na cognição em detrimento das outras influências sobre o pensamento e o comportamento, tais como a motivação e a emoção. A literatura especializada em motivação e emoção diminuiu ao longo das últimas décadas, enquanto as publicações relacionadas à cognição aumentaram. Ulric Neisser afirmou ser o resultado uma abordagem limitada e improdutiva do campo. "O pensamento humano envolve paixão e emoção, as pessoas atuam sob motivações complexas. O programa de computador, ao contrário, (...) não trabalha por emoção e é monomaníaco na sua ingenui­dade” (Neisser apud Goleman, 1983, p. 57). Ele percebeu o risco da fixação excessiva da psicologia cognitiva nos processos de pensamento do mesmo modo que o behaviorismo se concentrou excessivamente no comportamento manifesto. Jerome Bruner alertou estar a ciência cognitiva restringindo-se a questões cada vez mais limitadas, até mesmo triviais (Bruner, 1990). Uma crítica mais agressiva aponta o fracasso em unificar os diversos campos de estudo relacionados ao funcionamento cognitivo. Um crítico observou que, até agora, "não existe uma visão comum sobre a mente" (Erneling, 1997, p. 381).

Apesar dessas críticas, a primazia da posição cognitiva é amplamente aceita na psicologia. Esse domínio foi confirmado em uma análise empírica englobando 19 anos de dissertações de doutorado e artigos publicados e citados nas quatro publicações da psi­cologia geral: American Psychologist, Annual Review of Psychology, Psychological BulletinPsychological Review (Robins, Gosling e Craik, 1999).
A psicologia cognitiva não está terminada. Está ainda em evolução, marcando o lugar na história em andamento, portanto ainda é cedo demais para avaliar suas contribuições definitivas. A disciplina é dotada de características de uma escola de pensamento: publi­cações próprias especializadas, laboratórios, encontros, jargões e convicções, bem como o zelo dos adeptos. Podemos falar de cognitivismo, assim como falamos do funcionalis­mo e do behaviorismo. A psicologia cognitiva já atingiu o estágio alcançado pelas outras escolas de pensamento em cada época, ou seja, tornar-se parte da psicologia geral. E essa situação, como já vimos, é o progresso natural das revoluções bem-sucedidas.

A Psicologia Evolucionista

A abordagem mais recente da psicologia, a psicologia evolucionista, afirma que os indivíduos são criaturas ligadas ou programadas pela evolução para se comportarem, pensarem e aprenderem segundo as formas que favoreceram a sobrevivência ao longo de várias gerações passadas. Essa abordagem é baseada na afirmação de que as pessoas com certas tendências comportamentais e cognitivas têm mais chances de sobreviver, perdurar e criar proles.

Conforme comentou um psicólogo evolucionista, "Os seres humanos que defende­ram territórios, alimentaram os filhos e lutaram pela dominação foram mais propensos a se reproduzir com êxito do que os que não o fizeram; resultando que seus últimos des­cendentes - membros da atual geração - normalmente demonstram todas as tendências comportamentais semelhantes" (Funder, 2001, p. 209). Os genes relacionados a esses comportamentos facilitadores da sobrevivência "passam de geração a geração porque se adaptam, aperfeiçoando a forma de sobrevivência e o sucesso reprodutivo, e acabam dis­seminados, tornando-se instrumento-padrão" (Goode, 2000, p. D9).

Assim o ser humano é moldado em grande parte, se não na maioria, pelo meio biológico e não pela aprendizagem. Sem negar que as forças sociais e culturais influenciam o compor­tamento humano pela aprendizagem, os psicólogos evolucionistas afirmam que o indivíduo é predisposto, ao nascer, a certas formas de comportamento moldadas pela evolução.

  1. Todos os mecanismos psicológicos, em algum nível básico, originam-se de pro­ cessos evolucionistas e devem sua existência a eles.
  2. As teorias de Darwin sobre a seleção natural e sexual são as mais importantes para os processos evolucionistas responsáveis por criarem mecanismos psicológicos desenvolvidos.
  3. Mecanismos psicológicos desenvolvidos podem ser descritos como instrumentos de processamento de informações.
  4. Mecanismos psicológicos desenvolvidos são funcionais; funcionam para resol­ver problemas recorrentes de adaptação que confrontaram nossos antepassados, (entrevista de David Buss em Barker, 2006, p. 69-70).

Psicologia evolucionista é uma ampla área que faz uso de resultados de pesquisas de outras disciplinas, incluindo a de comportamento animal, biologia, genética, neuropsicologia e teoria evolucionista. Ela aplica esses resultados em todas as áreas da psicologia. No capítulo 1 observamos que a psicologia atual está fragmentada em abordagens diversas para seus problemas, e que não há um único tema que reúna todas essas propostas em uma única psicologia. Os defensores da psicologia evolucionista afirmam que sua definição pode unir essas áreas discrepantes.

Um dos fundadores da psicologia evolucionista, David Buss, escreveu que "ela repre­senta uma revolução verdadeiramente científica, uma mudança padrão profunda na área de psicologia" (2005, p. xxiv). Em uma entrevista, no ano seguinte, ele chamou a psico­logia evolucionista de "uma das revoluções científicas mais importantes que já tivemos na história da psicologia" (apud Barker, 2006, p. 73).

As Influências Anteriores na Psicologia Evolucionista

Claramente, qualquer movimento que se denomina psicologia evolucionista deve ofere­cer os créditos a Charles Darwin, bem como a Herbert Spencer e sua noção a respeito da sobrevivência do mais apto. A ideia de que somente aqueles dotados de algumas caraterísticas sobrevivem e reproduzem uma espécie com as mesmas qualidades parece ser a base da psicologia evolucionista, assim como fora para Darwin e Spencer.
Em 1890, 31 anos depois da publicação do monumental trabalho de Darwin a respei­to da evolução, William James utilizou o termo "psicologia evolucionista" em seu livro, The principies o psychology. James previu que um dia a psicologia se basearia na teoria da evolução. Também propôs que a maior parte do comportamento humano é programada no nascimento por predisposições genéticas chamadas instinto. Esses comportamentos instintivos seriam passíveis de modificação por meio da experiência ou da aprendizagem, mas são inicialmente formados independentemente das experiências.

James acreditava ser instintiva uma ampla variedade de comportamentos, incluindo o medo de objetos específicos como cobras, animais estranhos e de altura, todos envol­vendo claramente o valor de sobrevivência. Outros comportamentos instintivos, afirmava James, seriam moldados pelos pais - o amor, a sociabilidade e a pugnacidade (a propensão à luta e à disputa). Afirmava que os comportamentos instintivos eram uma evolução mediante a seleção natural e adaptações destinadas a lidar com os problemas específicos de sobrevivência e de reprodução.

Durante o reinado do behaviorismo, de 1913 a cerca de 1960, a noção de determinação genética do comportamento era vista como uma espécie de maldição. Todo comportamen­to era aprendido, afirmavam os behavioristas, mas mesmo assim, durante esse período de supremacia e efetiva dominação do behaviorismo na psicologia, surgiam trabalhos a respeito da precedência das influências genéticas e das tendências herdadas sobre as res­postas condicionadas.

Por exemplo, no Capítulo 11, vimos o trabalho dos alunos de Skinner, os Brelands, que treinavam animais para apresentações em circos, propagandas de televisão e feiras comerciais.

Alguns desses animais demonstravam propensão à transferência instintiva. Os animais, às vezes, substituíam o comportamento instintivo por outros, reforçados por alimento, mesmo quando o instintivo interferia na obtenção de comida, uma violação clara do princípio básico behaviorista de que o reforço seria predominante.

Há um trabalho conhecido do psicólogo Harry Harlow, que realizou uma pesquisa sobre o amor materno dos macacos (Harlow, 1971). Harlow criou filhotes de macacos com mães artificiais de dois tipos. Ambas eram construídas de armações de arame, mas uma era coberta de tecido de pelúcia macio e aconchegante, enquanto a outra era descoberta e dura, mas com mamilos para fornecer leite. Para os skinnerianos, era óbvia a associação do reforço apenas com a mãe que fornecia a recompensa do leite. Entretanto, quando os macacos ficavam assustados, agarravam-se na mãe coberta de pelúcia e não na que sempre lhes fornecera o reforço. Parecia haver outra força atuando, impossível de ser explicada pelo condicionamento operante e pelo reforço.

Uma pesquisa realizada por Martin Seligman, o iniciador da psicologia positiva (discutida no Capítulo 14), demonstrou a facilidade de condicionamento do indivíduo a temer cobras, insetos, cães, altura e túneis. No entanto, percebeu-se que é mais difícil condicionar o indivíduo a temer objetos menos ameaçadores e mais neutros como um automóvel ou uma chave de fendas (Seligman, 1971).

O medo de cobras sempre serviu para a sobrevivência e, consequentemente, para a evolução, e assim, presume-se que o indivíduo já nasça com essa predisposição. Entre­tanto, o medo de objetos neutros não teve valor para a sobrevivência ao longo de várias gerações, não sendo, portanto, transmitido. Seligman chamou esse fenômeno de preparo biológico. Esse conceito sugere que "as fobias realmente são aprendidas por meios clássicos de condicionamento, mas que certos medos, que podem ter servido a algum propósito adaptador nos ambientes ancestrais, são mais facilmente condicionáveis" (Siegert e Ward, 2002, p. 244).

Portanto, a psicologia evolucionista, além de se valer da revolução cognitiva, também expande sua importância ao considerá-lo uma estrutura necessária para se compreender a natureza humana e a animal. Concentra-se na importância do consciente que se desenvolveu com o tempo, e dá uma grande ênfase à noção do computador como uma metáfora para todos os processos conscientes. Dois psicólogos evolucionistas famosos escreveram:

Os programas que abrangem a mente humana foram desenvolvidos por seleção natural para resolver problemas de adaptação regularmente encontrados por nossos ancestrais na caça e coleta - problemas como encontrar um companheiro, cooperar com outros, caçar, coletar, proteger as crianças, navegar, evitar predadores, evitar exploração, e assim por diante. A função desenvolvida do cérebro é a de extrair informações do ambiente e usá-la para gerar comportamentos e regular a fisiologia. Portanto, o cérebro não é só parecido com um computador. Ele é um computador - isto é, um sistema físico planejado para processar informações. (Tooby e Cosmides, 2005, p. 5)

A Influência da Sociobiologia

Surgiu outro ímpeto mais contemporâneo da psicologia evolucionista, em 1975, quando o biólogo Edward O. Wilson publicou um livro totalmente inovador, intitulado Sociobiology: a new synthesis (Wilson, 1975), o qual tanto foi aclamado como veementemente criticado.

Dois anos depois, era capa da revista Time. Nesse mesmo ano, Wilson ganhou a Medalha Nacional da Ciência e, durante a reunião anual da Associação Americana para o Progres­so da Ciência, sociedade não caracterizada pela violência física, ele recebeu um balde de água gelada na cabeça.

A tese simples e corajosa de Wilson era uma afronta para muitas pessoas porque o trabalho desafiava a crença nutrida pela igualdade da criação humana, e da atuação das forças sociais e ambientais motivando ou limitando o desenvolvimento humano. Wilson motivou a ira das pessoas por parecer dar maior ênfase às influências genéticas que às culturais. Se todo comportamento for geneticamente determinado, então, não há espe­ranças na mudança de atitude, mediante as práticas de criação e educação da criança ou por outro método. No entanto, não era esse o ponto central de Wilson, embora adotasse uma visão hereditária muito forte em uma época na qual esse tipo de perspectiva era malvisto. Wilson escreveu:

O ser humano herda a propensão a adquirir estruturas sociais e comportamentais, tendência compartilhada por uma quantidade suficiente de indivíduos para ser chamada de natureza humana. Os traços determinantes incluem a divisão de tarefas entre os sexos, a ligação entre pais e filhos, o grande altruísmo entre os semelhantes mais próximos, a rejeição do incesto, outras formas de comportamento ético, a suspeita de estranhos, o tribalismo, as ordens dominantes entre os grupos, o total domínio masculino e as agressões territoriais diante da limitação de recursos. Embora o indivíduo seja dotado de livre-arbítrio e de escolha das decisões, os canais do desenvolvimento psicológico são - embora muitos de nós desejássemos o contrário - mais determinados pelos genes em algumas direções do que em outras. (Wilson, 1994, p. 332-333)

Como resultado do enorme protesto contra o livro de Wilson, a palavra sociobiologia acabou criando uma conotação tão negativa que caiu em desuso. Em 1989, quando um grupo de cientistas estadunidenses decidiu criar uma associação profissional para estudar o campo iniciado por Wilson, deram o nome de Human Behavior and Evolution Society [Sociedade de Evolução e Comportamento Humano] e procuravam evitar a palavra socio­biologia nos encontros.

O campo de estudo iniciado por Wilson foi incorporado às visões modificadas de vários psicólogos estadunidenses que chamavam seus trabalhos de psicologia evolucionista. Com esse nome aparentemente mais aceitável, o campo tornou-se imensamente popular.

O Estágio Atual da Psicologia Evolucionista

Apesar da sua popularidade, a psicologia evolucionista vem gerando muitas críticas. Como mencionamos anteriormente, as pessoas que acreditam no ser humano exclusivamente, ou pelo menos principalmente, como produto da aprendizagem que se opõem a qualquer discussão a respeito de determinantes biológicas do comportamento. Se a natureza huma­na é determinada apenas pelo dom natural genético, não há possibilidade de as forças culturais e sociais positivas alterarem o comportamento para melhor, ou de as pessoas tentarem exercer o livre-arbítrio.

A resposta dos psicólogos evolucionistas para essa crítica é observar, como fez Wilson, que eles não afirmam ser todo tipo de comportamento imutável e determinado pelos genes.

O comportamento humano é modificável; nós continuamos livres para escolher. As forças sociais e culturais são influentes e, algumas vezes, superam ou alteram a programação herdada para responder de determinada forma.

Os opositores argumentam que a amplitude do campo "dificulta a testagem convin­cente da teoria. A capacidade da psicologia evolucionista de explicar praticamente tudo não é nenhuma virtude" (Funder, 2001, p. 210). Os críticos também questionam como é possível identificar com clareza uma história de adaptação em um comportamento especí­fico, por várias gerações, até chegar aos povos primitivos, quando o valor de sobrevivência possivelmente teria iniciado.

Comentários

Observamos em todo o livro que todas as abordagens da psicologia e as tentativas de defi­nir o campo receberam críticas e apresentaram pontos de aparente vulnerabilidade. Como no caso da psicologia cognitiva, ainda é cedo demais para julgar se a psicologia evolucio­nista terá seu valor legitimado. Também esse campo faz parte da história em andamento. Um defensor do movimento da psicologia evolucionista resumiu o estágio atual da área nos seguintes termos: "Penso que ainda não sabemos realmente como trabalhar com a psicologia evolucionista. Enfrentamos muitas dificuldades para formular as hipóteses, e ainda mais obstáculos para descobrir como testar as afirmações. No momento, temos um princípio poderoso que acabará fornecendo a base para uma psicologia mais profunda e mais enriquecida. No entanto, ainda temos de trabalhar muito” (Randolph Nesse apud Goode, 2000, p. D9).

Assim, a busca pela abordagem verdadeiramente final da psicologia, pela escola de pensamento definitiva que venha a caracterizar o campo por mais de algumas décadas, continua. Será que a psicologia evolucionista ou a psicologia cognitiva se tornará o juiz final e definirá a psicologia e o seu objeto de estudo? Com base no que foi visto até aqui, provavelmente não.

A única afirmação possível fundamentada na história da psicologia estudada até aqui é que, quando um movimento se formaliza em uma escola, ficará em evidência até que um novo movimento apresente ideias que a superem com êxito. Quando isso ocorre, as artérias desobstruídas do até então jovem e vigoroso movimento começam a endurecer. A flexibilidade transforma-se em rigidez, a paixão revolucionária começa a ser protetora da sua posição e os olhos e a mente se fecham para as novas ideias. É dessa maneira que nasce um novo sistema. Assim acontece no progresso de qualquer ciência, uma construção evolucionista para níveis mais elevados de desenvolvimento. Não há complementação nem final, apenas um processo interminável de crescimento, como as novas espécies evoluem das antigas e tentam se adaptar a um ambiente eterno de mudanças.
 

Psicologia - História da Psicologia
Epistemologia - Teoria, Aspectos históricos
6/12/2020 1:35:12 PM | Por Duane P. Schultz
Jung, Adler e os outros dissidentes da Psicanálise

O menino solitário viu os dois gatinhos perdidos e os pegou nos braços. Precisava algo para amar, algo para sentir perto. Ele os trouxe para casa, mas assim que sua mãe viu as criaturas, ela os agarrou e os jogou contra a parede, de cabeça, até que morressem. Isso era típico de seu comportamento desequilibrado. Ele devia saber que ela faria algo parecido.

Abraham Maslow nunca amou sua mãe, pelo menos não do jeito que Freud dizia que meninos o faziam. Não tinha complexo de Édipo armazenado para ele. Ao con­trário, seu ódio irascível, profundo por sua mãe ajudou a determinar a direção de seu trabalho.

Sendo um de sete filhos de pais pobres, imigrantes russos, vivendo em um apartamento pobre no Brooklyn, Nova York, Maslow teve uma infância difícil. Posterior­mente disse em uma entrevista: "Com a infância que tive, não sei como não sou psicótico” (apud Hall, 1968, p. 37). "Minha família era miserável e minha mãe uma criatura horrível" {apud Hoffman, 1996, p. 2).

Cresceu isolado, não era amado nem querido. Não tinha amigos, e seu pai não ajudava muito. Distante e desligado, o pai de Maslow frequentemente abandonava a família, além de beber, brigar e ser mulherengo. Descreveu sentimentos de raiva e hostilidade em relação a seu pai, mas seu relacionamento com sua mãe era ainda pior. Ela claramente o rejeitava a favor de seus irmãos e irmãs e frequentemente o punia com severidade por qualquer coisa, ameaçando que Deus o iria punir por seu comportamento. Ele jamais a perdoou pelo modo que o tratou. Quando ela morreu, ele se recusou a ir ao enterro.

O relacionamento com a mãe afetou não somente sua vida emocional, mas também seu trabalho em psicologia. "Todo o impulso da minha filosofia", ele disse ao biógrafo, "e toda minha pesquisa e teoria tem suas raízes no ódio e revolta por tudo que ela defendia" (apud Hoffman, 1988, p. 9). Quando adolescente, enfrentou ainda outros problemas. Convencido de que era feio por causa de um nariz saliente, também se sentia inferiorizado por ser extremamente magro. Seus pais sempre o insultavam a respeito de sua aparência e frequentemente faziam comentários a respeito de como era desajeitado e pouco atraente. Quis compensar esses sen­timentos de inferioridade tornando-se um atleta, achando que isso poderia levar ao reconhecimento e aceitação. Mas, quando falhou nos esportes, voltou-se para os livros. A biblioteca local tornou-se seu jardim solitário; ler e estudar formaram o caminho que iria tirá-lo de sua solidão.

Seus anos de estudo o puseram em contato com as es­colas de pensamento mais importantes, desde Titchener até Freud, e dessas definições diferentes de psicologia, Maslow criou seu próprio modo de estudar a natureza humana. Na maturidade, suas ideias lhe trouxeram a aceitação, admi­ração e adulação que não teve quando criança.

As Facções Concorrentes

Assim como ocorreu com Wundt e sua psicologia expe­rimental, Freud não manteve o monopólio do seu novo sistema de psicanálise por muito tempo. Passados apenas 20 anos da fundação, o movimento se dividia em facções concorrentes lideradas pelos analistas que discordavam dos pontos básicos. Freud não reagia bem a esses dissidentes e via com desprezo os analistas que adotavam novas posições. Não importava o quão próximas fossem as relações pessoal e profissional: se abandonassem os seus ensinamentos, Freud os expulsava e nunca mais falava com eles.

Mencionaremos primeiro os vários analistas que não discordavam totalmente das visões básicas de Freud; eles trabalhavam baseados no estudo de Freud a fim de aperfeiçoá-lo. Entre esses analistas estão a sua filha Anna e os teóricos do objeto Melanie Klein e Heinz Kohut. Em segui­da, discutiremos os dois principais dissidentes, que desen­volveram teorias próprias ao longo da vida de Freud: Carl Jung e Alfred Adler (a maioria dos neofreudianos, tais como os teóricos com relações entre os objetos, ainda se identificam como "freudianos", porém, esse rótulo não a aplica aos dissidentes como Jung e Adler). Por último, descreveremos o movimen­to da psicologia humanista desenvolvido na década de 1960, vários anos depois da morte de Freud. Dois grandes teóricos, Abraham Maslow e Carl Rogers, aspiravam substituir a psicanálise (bem como o behaviorismo) pela sua visão da natureza humana (uma variação e expansão da psicologia humanística podem ser atualmente encontradas no movimento popular da psicologia positiva, que aplica o método experimental ao estudo das forças e virtudes humanas). É preciso ter em mente que, independentemente da extensão das diver­gências entre essas últimas teorias e os ensinamentos de Freud, esses teóricos extraíram suas ideias no trabalho de Freud, seja aperfeiçoando-o, seja opondo-se à sua teoria.

Os Neofreudianos e a Psicologia do Ego

Nem todo teórico e profissional seguidor da tradição psicanalítica freudiana sentia neces­sidade de abandonar ou suplantar o sistema de Freud. Conservou-se um grupo razoável de analistas neofreudianos que, mesmo adotando as premissas centrais da psicanálise, modificaram-lhe o sistema. A principal mudança introduzida por esses leais seguidores foi a expansão do conceito de ego (Hartmann, 1964), o qual, para eles, era dotado de um papel mais abrangente do que apenas servir ao id. A psicologia do ego incluía a noção de maior independência do ego em relação ao id, ou seja, ele era dotado de energia própria, e não derivada deste, e com funções separadas das do id. Os analistas neofreudianos também sugeriam a isenção do ego em relação ao conflito produzido pela pressão dos impulsos do id em busca da satisfação. Na visão de Freud, o ego sempre respondia ao id, jamais estava livre das suas demandas. Em uma visão revisada, o ego funcionaria independentemente do id - perspectiva bem distante do pensamento ortodoxo freudiano.

Outra alteração introduzida pelos neofreudianos foi a redução da ênfase na influên­cia das forças biológicas sobre a personalidade. Ao contrário, mais ênfase foi dada ao impacto das forças psicológicas e sociais. Os neofreudianos também minimizavam a importância da sexualidade infantil e do complexo de Édipo, sugerindo que o desenvol­vimento da personalidade era determinado principalmente pelas forças psicossociais e não pelas psicossexuais. Dessa forma, as interações sociais na infância passaram a assu­mir maior importância do que as interações sexuais reais ou imaginárias.

Anna Freud (1895-1982)

A filha de Freud, Anna, foi a líder da psicologia do ego neofreudiana. Caçula dentre os seis filhos, Anna Freud afirmou que não teria nascido se na época existissem métodos contraceptivos mais seguros. Em uma carta que escrevera a um amigo, Freud anunciara o nascimento da filha com um tom de resignação e não de entusiasmo, comentando que, se fosse um menino, teria mandado um telegrama para contar a novidade (Young-Bruehl, 1988). No entanto, o ano do nascimento de Anna (1895) foi simbólico, talvez até proféti­co, já que coincide com o surgimento da psicanálise. Anna seria a única dentre os filhos de Freud a seguir a carreira do pai, tornando-se analista.

Sendo a menos favorecida das meninas da família, Anna teve uma infância infeliz. Ela se lembrava de ter sido uma criança triste e solitária, muitas vezes excluída das brin­cadeiras pelos irmãos mais velhos. Sentia ciúmes da irmã Sophie, claramente a favorita da mãe. Anna tornou-se a predileta do pai; ele "ficou viciado na caçula tanto quanto era viciado nos charutos" (Appignanesi e Forrester, 1992, p. 277).

Aos 14 anos, interessou-se pelo trabalho de Freud. Ficava sentada discretamente em um canto, nas reuniões da Sociedade Psicanalítica de Viena, absorvendo tudo o que ouvia. Aos 22, por causa da ligação emocional com Freud e da preocupação com a sua sexualidade, Anna começou a fazer análise com o pai. Ela relatava violentos sonhos em que atirava, matava, morria e defendia o pai dos inimigos. A análise, mantida secreta por muito tempo, durou quatro anos, com seis sessões noturnas por semana, começando às 10 da noite. Posterior­mente, Freud seria criticado por tentar analisar a própria filha. A situação foi considerada "absurda e incestuosa”, "um acontecimento bizarro e sério" e uma "atuação do complexo de Édipo em ambos os lados do divã" (apud Mahony, 1992, p. 307). Naquela época, entretanto, parecia-lhes não haver outra opção. Um historiador afirmou que “Ninguém mais ousaria realizar essa tarefa, já que a análise de Anna inevitavelmente acabaria levantando questões acerca do papel de Freud como pai” (Donaldson, 1996, p. 167). Era impensável admitir outro analista ouvindo os detalhes íntimos sobre a vida do pai da psicanálise.

Em 1924, Anna apresentou seu primeiro trabalho acadêmico para a Sociedade Psica­nalítica de Viena. O trabalho, intitulado "Beating fantasies and daydreams" ("Fantasias de espancamento e devaneios"), fora supostamente baseado no caso de uma paciente, mas, na verdade, abordava as suas fantasias. Ela descrevia sonhos envolvendo surras, masturba­ção e relações incestuosas entre pai e filha. O trabalho foi bem recebido por Freud e seus colegas, rendendo-lhe a admissão na Sociedade.

Freud era ambivalente a respeito de Anna tornar-se psicóloga, e ela passou por uma crise de identidade por causa dessa situação que durou cerca de seis anos. Aos 30 anos de idade, tendo rejeitado propostas de casamento de diversos discípulos de seu pai - mais jovens que ela -, e de amigos da família, ela finalmente tomou a decisão de se tornar analista. Também iniciou uma longa amizade com uma herdeira estadunidense, Dorothy Tiffany Burlingham, e passou a ser como uma segunda mãe para os filhos desta.

Sabe-se que Freud ficou "perturbado quando soube que Anna havia finalmente se decidido a não se casar e a não ter seus próprios filhos, além de desenvolver uma relação emocional intensa com uma mulher" (Elms, 2001, p. 88). Mas o biógrafo de Anna Freud sempre insistiu no fato de que o relacionamento era estritamente emocional, e não sexual (veja Young-Bruehl, 1988).

Anna Freud dedicou sua vida ao desenvolvimento e aprimoramento da teoria psicana­lítica, bem como sua aplicação no tratamento de crianças emocionalmente perturbadas. Outra atividade a que se dedicou foi a de cuidar do pai durante a sua prolongada doença. Quando ele morreu, ela guardou o casaco dele em seu armário. Muitos anos após a morte de seu pai ela relatou uma série de sonhos que tinha tido com ele. Escreveu:

Ele está aqui novamente. Todos esses sonhos recentes têm o mesmo caráter: o papel principal não é desempenhado por meu pai, objeto de meu desejo, mas, ao contrário, do desejo que ele tinha por mim.... No primeiro sonho desse tipo, ele abertamente disse: "Sempre a desejei tanto!" (apud Zaretsky, 2004, p. 263).

Em uma ocasião, mais de 40 anos depois, quando a própria Anna estava quase morrendo, um amigo a acompanhou ao parque e a observou como "a diminuta figura de Anna Freud, hoje tão pequena quanto uma aluna de escola primária, sentada [na cadeira de rodas agasalhada dentro do enorme casaco de lã do pai" (Webster, 1995, p. 4 3 4 ).

A Análise Infantil

Em 1927, Anna Freud publicou o livro Introduction to the technique of child analysis prenúncio dos rumos dos seus interesses. Ela desenvolveu uma abordagem para a aplicação da terapia psicanalítica em crianças, levando em conta a relativa imaturidade e o nível da capacidade verbal infantil. Embora Sigmund Freud não houvesse trabalhado com crianças, sentiu-se orgulhoso com o trabalho de Anna. Ele disse: "As visões de Anna acerca da análise infantil são independentes das minhas; compartilho das suas opiniões, mas ela as desenvolveu a partir de experiências próprias e independentes" (apud Viena 1996, p. 9).

Entre as inovações introduzidas estavam o uso de brincadeiras e a observação da criança no ambiente da família. Grande parte dessas observações foi realizada em Londres, onde a família de Freud se instalara em 1938, depois de fugir de Viena por causa dos nazistas. Ela abriu uma clínica ao lado da casa do pai e ali estabeleceu um centro de tratamento e um instituto de treinamento em psicanálise que atraía psicólogos clínicos do mundo inteiro. O Centro Anna Freud de Londres dá continuidade ao seu trabalho até hoje. Seus estudos constaram dos volumes anuais da publicação The psychoanalytic study of the child lançada inicialmente em 1945. A coletânea dos seus trabalhos compreende oito volumes publicados entre 1965 e 1981.

Anna Freud revisou a teoria psicanalítica ortodoxa, expandindo o papel do ego com um funcionamento independente do id. Em The ego and the mechanisms of defense (1936), ela explicou como os mecanismos de defesa funcionam para proteger o ego da ansiedade. A lista-padrão dos mecanismos de defesa freudianos era substancialmente um trabalho seu. Anna definiu com mais precisão os mecanismos e contribuiu com exemplos extraídos das análises conduzidas com as crian­ças na sua clínica.

Comentários

O sistema de psicologia do ego desenvolvido por Anna Freud e outros tornou-se a prin­cipal forma de psicanálise estadunidense, desde a década de 1940 até o início da década de 1970. Um dos objetivos dos neofreudianos era transformar a psicanálise em uma parte aceita da psicologia científica. "Assim o fizeram, traduzindo, simplificando e definindo operacionalmente as noções freudianas, incentivando a investigação experimental das hipóteses psicanalíticas e modificando a psicoterapia psicanalítica" (Steele, 1985, p. 222)

Nesse processo, os neofreudianos promoveram uma relação mais conciliatória entre a psi­canálise e a psicologia experimental acadêmica.

As Teorias das Relações entre os Objetos

Freud usava a palavra "objeto" para se referir a qualquer pessoa, objeto ou atividade com capacidade para satisfazer ao instinto. Na sua visão, o primeiro objeto na vida do bebê capaz de satisfazer ao instinto era o seio materno. Mais tarde, a própria mãe como pessoa torna-se um objeto de satisfação do instinto. E, à medida que a criança cresce, outras pes­soas tornam-se objetos de satisfação do instinto.

As teorias dos objetos concentram-se nas relações interpessoais entre esses objetos, enquanto a de Freud enfocava mais os impulsos instintivos propriamente ditos. Assim, os teóricos das relações entre os objetos dão ênfase às influências sociais e ambientais sobre a personalidade, principalmente na interação entre mãe e filho. Eles também acreditavam que, em virtude da natureza dessas relações, a formação da personalidade na infância ocorria mais cedo do que Freud afirmava.

Os adeptos da teoria dos objetos afirmam que as questões mais cruciais no desen­volvimento da personalidade envolvem o aumento da capacidade e da necessidade da criança, com o passar do tempo, de libertar-se do objeto primário (a mãe) a fim de estabe­lecer uma firme noção de si mesma e desenvolver relações com outros objetos (pessoas). Destacamos o trabalho de dois teóricos das relações entre os objetos: Melanie Klein e Heinz Kohut.

Melanie Klein (1882-1960)

Melanie Klein sabia da importância das relações entre pais e filhos por causa da pró­pria experiência como criança e como mãe. Filha não desejada, sofreu a vida toda de depressão por causa do sentimento que tinha de que seus pais a rejeitavam. Ela pró­pria acabou se afastando da filha adulta (que mais tarde tornou-se analista). A filha acusava Klein de interferir na sua vida e afirmava que seu irmão, morto durante uma escalada a uma montanha, na verdade se suicidara por causa da péssima relação que tinha com a mãe.

A teoria dos objetos de Klein concentrava-se na ligação emocional intensa entre mãe e filho, principalmente durante os seis primeiros meses de vida do bebê. Descre­veu a ligação entre o bebê e a mãe em termos sociais e cognitivos, e não em termos sexuais. Na visão de Klein, o seio materno seria o primeiro objeto parcial para o bebê, que o julgaria como bom ou não, dependendo da satisfação do instinto do id. Dessa forma, o bebê percebe o seu ambiente, definido e representado com base nesse objeto parcial bom ou ruim, como satisfatório ou hostil. À medida que se expande o univer­so do bebê, ele se relaciona com objetos completos (a mãe como pessoa, por exemplo) e não com objetos parciais, e define aqueles objetos completos do mesmo modo que definiu o seio, ou seja, satisfatórios ou hostis. A interação social inicial entre a mãe e o bebê é generalizada a todos os objetos (pessoas) da vida da criança e assim a formação da personalidade do adulto baseia-se na natureza da relação dos primeiros seis meses de vida.

Heinz Kohut (1913-1981)

Heinz Kohut nasceu e cresceu em Viena onde, aos 24 anos, mortificado pela morte de seu pai, optou por fazer psicanálise com um amigo de Freud. A análise foi bem-sucedida e Kohut decidiu fazer medicina e foi treinado para se tornar analista. Jamais conheceu Freud e o viu somente uma vez. Quando Freud deixou Viena em 1939, Kohut ficou na plataforma do lado da janela onde ele estava, e fez uma reverência com seu chapéu para cumprimentá-lo. Por sua vez Freud acenou. Nove meses depois Kohut também foi for­çado a abandonar Viena. Foi para Chicago para fazer parte do corpo docente do Chicago Institute for Psychoanalysis (Strozier, 2001).

Kohut enfatizava aquilo que chamava de self nuclear, o que considerava ser a base para um indivíduo tornar-se independente. O self nuclear se desenvolve a partir das relações formadas entre a criança e os chamados "objetos do self" no ambiente, que eram as pes­soas que desempenham papéis tão vitais na nossa vida infantil que passamos a acreditar que são partes de nosso self.

Tipicamente, a mãe é o objeto do self primário do bebê. Na visão de Kohut, o papel da mãe é o de satisfazer não apenas às necessidades físicas da criança como também às psicológicas. E, para tanto, a mãe deve atuar como um espelho para a criança, refletindo o sentimento de peculiaridade, de importância e de grandeza. Desse modo, a mãe confirma o senso de orgulho da criança, o qual acaba se tornando parte do self nuclear. Se a mãe rejeita a sua criança, refletindo, assim, o sentimento de falta de importância, a criança pode desenvolver vergonha ou culpa. Dessa forma, todos os aspectos do self adulto (os positivos e negativos) são formados pelas relações iniciais da criança com o objeto self primário.

Kohut enfatizou que seu trabalho era uma continuidade do trabalho de Freud. Não considerava a sua psicologia do eu como uma variação da psicanálise freudiana, mas, sim, uma expansão ou extensão dela.

Carl Jung (1875-1961)

Freud chegou a considerar Carl Jung o seu substituto e herdeiro do movimento psicanalítico, chamando-o de "meu sucessor e príncipe coroado" (apud McGuire, 1974, p. 218). Depois do rompimento da amizade entre os dois, em 1914, Jung desenvolveu a psicologia analítica, em oposição à grande parte do trabalho de Freud.

Psicologia analítica: teoria da personalidade de Jung.

A Biografia de Jung

Talentoso yodeler - cantor à moda dos montanheses suíços e tiroleses -, Jung foi criado em um vilarejo no nordeste da Suíça, próximo à famosa queda do Reno. Ele próprio foi o responsável por sua infância solitária, isolada e infeliz (Jung, 1961). Seu pai, religioso que aparentemente havia perdido a fé, era irascível e rabugento. "Carl ouvia tudo”, um biógrafo observou, "quando os acessos de raiva de seu pai ressoavam por toda a casa" (Bair, 2003, p. 20).

Sua mãe sofria de distúrbios emocionais, exibindo um comportamento excêntrico, pas­sando em um instante de uma esposa feliz para uma mulher endemoninhada e incoe­rente, falando coisas sem nenhum sentido. Um biógrafo chegou a comentar que "todo o lado da família materna parecia apresentar traços de insanidade" (Ellenberger, 1978. p. 149). Jung aprendeu desde cedo a não confiar nem acreditar nos pais e, por analogia, a desconfiar do resto do mundo. Saía do universo consciente da razão para mergulhar no dos seus sonhos, visões e fantasias, ou seja, no seu inconsciente. Esse tipo de fuga dirigiu a sua infância, e assim seguiu até a vida adulta. Mais de 50 anos depois, um vizinho da família Jung, lembrando-se de quando conheceu Carl, escreveu: "Jamais havia conhecido um monstro tão antissocial antes" (apud Bair, 2003, p. 23).

Nos momentos difíceis, Jung resolvia os problemas e tomava as decisões baseado no que o inconsciente lhe dizia por meio dos sonhos. Quando estava para ingressar na univer­sidade, um sonho revelou-lhe a carreira que seguiria. Ele se viu desenterrando ossadas de animais pré-históricos em um local bem abaixo da superfície terrestre. Interpretou como um sinal de que ele devia estudar algo relacionado à natureza e à ciência. Uma lembrança que teve dos 3 anos de idade, quando sonhou estar em uma caverna subterrânea, previa o seu futuro como um estudioso da personalidade. Jung viria a dedicar-se ao estudo das forças inconscientes enterradas bem abaixo da superfície da mente.

Jung frequentou a University of Basel, na Suíça, formando-se em medicina, em 1900. Estava interessado em psiquiatria e sua primeira indicação profissional foi para trabalhar em um hospital de doentes mentais em Zurique. O diretor do hospital era Eugen Bleuler, um psiquiatra famoso por seu trabalho sobre a esquizofrenia. Em 1905, Jung foi indicado para ser professor de psiquiatria na Universidade de Zurique. Muitos anos mais tarde, depois de se casar com a segunda herdeira mais rica de toda a Suíça, ele pôde se afastar da univer­sidade para se dedicar à escrita, à pesquisa e ao atendimento a pacientes particulares.

No atendimento aos pacientes, diferentemente de Freud, Jung não pedia que se deitassem no divã, comentando que não era o seu desejo colocá-los na cama. Jung e o paciente sentavam-se em confortáveis poltronas, um de frente para o outro. Às vezes ele realizava as sessões de terapia a bordo do seu barco a vela, aproveitando o vento forte do lago, velejando, feliz. Algumas vezes chegava até a cantar para os seus pacientes. No entanto, outras vezes, chegava a ser deliberadamente rude. Nessas ocasiões, quando um paciente chegava para a consulta, Jung dizia: "Ah, não! Não aguento ver mais ninguém. Vá para casa e cure-se sozinho, hoje" (apud Brome, 1981, p. 185).

Jung interessou-se pelo trabalho de Freud, em 1900, quando leu The interpretation of dreams, considerando-o uma obra-prima. Por volta de 1906, os dois começaram a se cor­responder e, um ano depois, Jung viajou para Viena a fim de visitar Freud. O primeiro encontro dos dois durou 13 horas, um início bem animado para o que viria a se tornar uma relação íntima como a de pai e filho (Freud era quase 20 anos mais velho que Jung).

A proximidade entre os dois pode ter envolvido elementos do complexo de Édipo, como propõe a teoria psicanalítica de Freud, com o desejo do filho de destruir o pai. Outro fator complicador, que pode ter prejudicado a relação desde o início, foi uma experiência sexual vivida por Jung aos 18 anos. Um amigo da família, que ele via como uma figura paterna, teria assediado Jung sexualmente, que o teria repelido e imediatamente rompido a relação. Anos depois, quando Freud tentou assegurar que Jung daria continuidade ao movimento psicanalítico como ele previra, Jung rebelou-se contra o encargo, talvez sentindo novamente ser dominado por um homem mais velho. Em ambos os casos, Jung ficara decepcionado com a sua escolha de figura paterna. Talvez por causa do primeiro incidente Jung não conseguisse manter a íntima relação emocional desejada por Freud (Alexander, 1994; Elms, 1994).

Ao contrário da maioria dos discípulos da psicanálise, Jung já construíra uma reputa­ção profissional antes de associar-se a Freud. Era o mais conhecido entre os primeiros acetos da psicanálise. Por isso, talvez ele fosse menos sujeito a se impressionar e sugestionar do que os jovens analistas membros da família psicanalítica de Freud, muitos dos quais ainda cursavam a escola de medicina ou a pós-graduação e eram indecisos em relação à identidade profissional.

Embora durante algum tempo Jung se identificasse como discípulo de Freud, jamais deixou de expressar sua opinião. No início da relação entre os dois, tentou dirimir dúvidas e expressar suas objeções. Enquanto escrevia a obra The psychology of the unconcious (1912), comentou que estava enfrentando um problema, já que, quando o livro fosse lan­çado, a apresentação pública da sua posição significativamente diferente da psicanálise ortodoxa prejudicaria o seu prestígio junto a Freud. Durante meses, Jung não conseguia levar adiante o projeto, tamanha a preocupação com a provável reação de Freud. Evidentemente, acabou publicando o livro, e o inevitável aconteceu.

Em 1911, por insistência de Freud, e apesar da oposição dos membros vienenses, Jung tornou-se o primeiro presidente da Associação Psicanalítica Internacional. Freud acredita­va que o antissemitismo impediria o crescimento da psicanálise se o presidente do grupo fosse judeu. Os analistas vienenses, quase todos judeus, ressentiram-se e desconfiavam do jovem suíço Jung, que claramente era o favorito de Freud. Esses analistas não apenas estavam há mais tempo no movimento, como também acreditavam que Jung tivesse visões antissemíticas. Pouco tempo depois, a amizade entre Jung e Freud começou a exi­bir sinais de tensão e, por volta de 1912, os dois deixaram de se corresponder. Em 1914 Jung renunciou e deixou a Associação.

Aos 38 anos, Jung foi acometido de problemas emocionais profundos que persistiram por três anos; Freud passara por um período de turbulência semelhante mais ou menos na mesma etapa da vida. Acreditando que estava ficando louco, Jung sentia-se incapaz de realizar qualquer tipo de trabalho intelectual ou até mesmo de ler um livro científi­co. Pensou em suicídio e mantinha uma arma ao lado da cama "caso sentisse que havia chegado ao ponto sem retorno" (Noll, 1994, p. 207). É interessante observar que, mesmo durante essa crise, ele não deixou de atender aos seus pacientes.

Resolveu o seu dilema basicamente da mesma maneira que Freud, confrontando a sua mente inconsciente. Embora não analisasse constantemente os seus sonhos, como fazia Freud, Jung seguiu os impulsos inconscientes neles revelados, bem como nas suas fanta­sias. Assim como ocorreu com Freud, esse período foi de intensa criatividade para Jung, levando-o a formular a sua teoria da personalidade. Ele escreveu que "Os anos em que estava voltado às suas imagens interiores foram os mais importantes de sua vida - nesses anos foi decidido tudo o que é essencial" (Jung, 1961, p. 199). Concluiu, com base em sua experiência, que a fase mais importante do desenvolvimento da personalidade não era a infância, como Freud queria, mas a meia-idade, período de sua própria crise.

O interesse de Jung por mitologia o incentivou a realizar expedições de campo na África, na década de 1920, para estudar os processos cognitivos do indivíduo pré-alfabetizado. Em 1932, foi indicado para lecionar na Federal Polytechnical University, em Zu­rique, onde permaneceu por 10 anos até que a fragilidade da sua saúde o obrigou a pedir demissão. Uma cadeira de psicologia médica foi criada para ele na University of Basel, na Suíça, mas a doença não lhe permitiu manter essa posição por mais de um ano. Durante grande parte da vida até os 86 anos, trabalhou ativamente, pesquisando e escrevendo, tendo publicado uma quantidade impressionante de livros.

A Psicologia Analítica

As experiências da vida de Jung sem dúvida influenciaram sua psicologia analítica. Como se observou anteriormente, a aceitação das forças da própria mente inconsciente antevia seus futuros interesses profissionais. Há também fortes evidências autobiográficas acerca da sua visão de sexo. Na teoria de Jung não havia espaço para o complexo de Édipo; esse conceito simplesmente não teve importância na sua infância. Ele achava a mãe gorda e nem um pouco atraente, e jamais entendeu a insistência de Freud em afirmar que os meninos desenvolvem paixões sexuais pela mãe.

Ao contrário de Freud, Jung não desenvolveu nenhum tipo de insegurança, inibição ou ansiedade sexual na vida adulta. Ademais, Jung não tentava refrear suas atividades sexuais, assim como fazia Freud. Preferia a companhia de mulheres em vez de homens e vivia rodeado de adoráveis discípulas e pacientes do sexo feminino. Quando inevita­velmente surgia algum tipo de paixão, ele não hesitava em iniciar um relacionamento sexual, alguns dos quais duraram anos. Ele até alertava as alunas de que cedo ou tarde elas acabariam se apaixonando por ele (Noll, 1997). Uma análise da malfadada relação entre Freud e Jung revelou que, "Para Jung, que satisfazia livre e frequentemente às suas necessidade sexuais, o sexo desempenhava um papel pequeno na motivação humana. Para Freud, bloqueado pelas frustrações e ansioso por causa dos seus desejos reprimidos, o sexo desempenhava um papel fundamental" (Schultz, 1990, p. 148).

Na infância, Jung preferia se isolar das outras crianças e ficar sozinho. Essa opção também se reflete na sua teoria, por meio do enfoque no crescimento interior em lugar do cultivo das relações sociais. Entretanto, a teoria de Freud está mais voltada para as relações interpessoais, até porque não teve uma infância assim tão isolada e introvertida.

Outro ponto de divergência entre a psicologia analítica de Jung e a psicanálise de Freud refere-se à libido. Enquanto Freud a definia exclusivamente em termos sexuais, Jung referia-se à libido como uma energia de vida generalizada da qual o sexo apenas fazia parte. Para
Jung, a energia básica da libido expressava-se no crescimento, na reprodução e em outras atividades, dependendo do que o indivíduo considerava crucial em determinado período.

Outra diferença entre o trabalho de Jung e de Freud consiste na direção das forças que afetam a personalidade. Freud descrevia o indivíduo como vítima dos acontecimentos da infância, enquanto Jung acreditava na pessoa moldada não apenas pelos acontecimentos do passado, como também pelas próprias metas, esperanças e aspirações futuras. Na visão de Jung, a personalidade não era totalmente determinada pelas experiências vividas durante os primeiros cinco anos de vida e podia ser modificada ao longo da vida do indivíduo.

Além disso, Jung tentou investigar a mente inconsciente mais a fundo do que Freud. Ele acrescentou uma nova dimensão - o inconsciente coletivo - que descreveu como as experiências herdadas das espécies humanas e de seus ancestrais animais.

O Inconsciente Coletivo

Jung descreveu dois estados da mente inconsciente. Um pouco abaixo da consciência estaria o inconsciente pessoal, contendo as lembranças, os impulsos, os desejos, as per­cepções indistintas e outras experiências da vida do indivíduo suprimidas ou esquecidas. O inconsciente pessoal não é muito profundo e os incidentes ali armazenados podem ser facilmente trazidos para o nível consciente.

As experiências do inconsciente pessoal são agrupadas em complexos, ou seja, em padrões de emoções e de lembranças com temas comuns. O indivíduo manifesta um complexo por causa da preocupação com alguma ideia (como a inferioridade ou a supe­rioridade) que, por sua vez, influencia o comportamento. Portanto, o complexo consiste basicamente em uma personalidade menor na personalidade total.

Em um nível abaixo do inconsciente pessoal estaria o inconsciente coletivo, desco­nhecido para o indivíduo. Nele estariam armazenadas as experiências acumuladas das gerações anteriores, inclusive dos nossos ancestrais animais. Essas experiências universais e evolutivas formam a base da personalidade. Todavia observe que as experiências con­tidas no inconsciente coletivo são inconscientes. O indivíduo não está ciente delas nem se lembra ou as tem em imagens, assim como ocorre com as experiências contidas no inconsciente pessoal.

Os Arquétipos

As tendências herdadas, armazenadas dentro do inconsciente coletivo, são denominadas arquétipos e consistem em determinantes inatos da vida mental, que levam o indivíduo a comportar-se de modo semelhante aos ancestrais que enfrentaram situações similares. A experiência do arquétipo normalmente se concretiza na forma de emoções associadas aos acontecimentos importantes da vida, tais como o nascimento, a adolescência, o casa­mento e a morte, ou às reações diante de um perigo extremo. Jung referia-se aos arquétipos como as "divindades" do inconsciente (Noll, 1997).

Quando Jung investigou as criações artísticas e místicas das civilizações antigas, des­cobriu símbolos de arquétipos comuns, mesmo entre culturas bem distantes no tempo e no espaço, sem nenhum indício de influência direta. Também descobriu o que pensou serem traços desses símbolos nos sonhos relatados pelos pacientes. Todo esse material confirmava o seu conceito de inconsciente coletivo. Os arquétipos que ocorrem com mais frequência são a persona, a anima e o animus, a sombra e o self

A persona seria a máscara que o indivíduo usa quando está em contato com outra pes­soa, para representá-lo na forma como ele deseja parecer aos olhos da sociedade. Assim, a persona pode não corresponder à verdadeira personalidade do indivíduo. A noção de persona é semelhante ao conceito sociológico do desempenho de papel, em que a pessoa atua da forma como crê que as outras esperam que ela atue nas diferentes situações.

Os arquétipos da anima e do animus refletem a noção de que cada indivíduo exibe algumas características do sexo oposto. A anima refere-se às características femininas pre­sentes no homem, e o animus denota as características masculinas observadas na mulher. Assim como os demais arquétipos, a anima e o animus surgem do passado primitivo das espécies humanas, quando o homem e a mulher adotavam as tendências emocionais e comportamentais do sexo oposto.

O arquétipo da sombra, o nosso ser mais sombrio, consiste na parte animalesca da personalidade. Para Jung, esse arquétipo é herdado das formas inferiores de vida. A som­bra contém as atividades e os desejos imorais, violentos e inaceitáveis. Ela nos incita a nos comportarmos de uma forma que ordinariamente não nos permitiríamos. E, quando isso ocorre, geralmente o indivíduo insiste em afirmar que foi acometido por algo. Esse algo seria a sombra, a parte primitiva da natureza do indivíduo. No entanto, a sombra possui também um lado positivo, responsável pela espontaneidade, pela criatividade, pelo insight e pela emoção profunda, características necessárias para o total desenvolvi­mento humano.

Na opinião de Jung, o principal arquétipo é o self. Integrando e equilibrando todos os aspectos do inconsciente, o self proporciona unidade e estabilidade à personalidade. Jung o comparava a um impulso para a autorrealização, para a harmonização, a completitude e o total desenvolvimento das habilidades individuais. Entretanto acreditava que a autorrealização plena seria atingida somente na meia-idade (30 a 40 anos), período crucial para o desenvolvimento da personalidade. Esse seria o período natural para a transição, quando a personalidade passa por várias mudanças necessárias e benéficas. Observa-se aqui outro exemplo de elemento autobiográfico na teoria de Jung. Na meia-idade ele próprio havia atingido a autointegração resultante da solução de sua crise neurótica. Dessa forma, para Jung, o estágio mais importante no desenvolvimento da personalidade não seria a infância (como foi no sistema e na vida de Freud), mas o período da vida adulta, entre os 30 e os 40 anos, quando ocorreram as mudanças na sua personalidade.

A Introversão e a Extroversão

Os conceitos de Jung a respeito da introversão e da extroversão são bem conhecidos. O indivíduo extrovertido libera a libido (a energia de vida) dentro dele, direcionando-a aos acontecimentos e às pessoas do mundo exterior. A pessoa desse tipo é bastante influen­ciada pelas forças do ambiente, além de se demonstrar sociável e confiante nas diversas situações. Ao contrário, o introvertido direciona a libido para o seu interior. Esse tipo de pessoa é pensativo, introspectivo e resistente às influências externas. O introvertido nor­malmente é mais inseguro do que o extrovertido ao lidar com pessoas e situações.

Todo indivíduo é dotado de algum nível dessas atitudes opostas, mas normalmen­te uma é mais forte que a outra. Nenhum indivíduo é completamente extrovertido ou introvertido. A atitude dominante em algum momento específico pode ser determinada pelas circunstâncias. Muitas vezes, o introvertido torna-se sociável e expansivo diante de situações de seu interesse.

Os Tipos Psicológicos: Funções e Atitudes

Na teoria de Jung, as diferenças de personalidade são expressas não apenas por atitudes introvertidas ou extrovertidas, como também por meio de quatro funções: o pensamento, o sentimento, a sensação e a intuição. Essas funções consistem em formas de orientação seguidas pelo indivíduo para se comportar tanto diante do universo exterior objetivo como diante do universo interior subjetivo.

  • O pensamento é o processo conceitual que proporciona o significado e a com­preensão;
  • O sentimento é o processo subjetivo de ponderação e de avaliação;
  • A sensação é a percepção consciente dos objetos físicos;
  • A intuição envolve a percepção de maneira inconsciente.

Jung rotulou o pensamento e o sentimento como modos racionais de reação, por envol­verem processos cognitivos de raciocínio e de julgamento. A sensação e a intuição são con­sideradas irracionais, pois não envolvem o uso da razão. Dentro de cada par de funções, em determinado momento, apenas uma função é dominante. A combinação das funções dominantes com a atitude dominante de extroversão e introversão produz os oito tipos psi­cológicos (por exemplo, o tipo pensador extrovertido ou o tipo intuitivo extrovertido).

Comentários

As ideias de Jung influenciaram várias áreas bastante distintas como a religião, a história, a arte e a literatura. Muitos historiadores, teólogos e escritores reconheciam-no como uma fonte de inspiração. No entanto, a psicologia científica em geral ignorou a sua psicologia analítica. Muitos dos seus livros foram traduzidos para o inglês somente depois da década de 1960, e o estilo confuso e a organização não-sistemática da redação impediram a total compreensão do seu trabalho. Esse desprezo pelos métodos científicos tradicionais afasta muitos psicólogos experimentais, para quem as teorias com base religiosa e mística contêm menos apelo que as visões de Freud. Ademais, as críticas observadas em relação à busca de evidências para apoiar a psicanálise de Freud também se aplicam ao trabalho de Jung, pois ele também se apoiava na interpretação e orientação clínica e não na investigação controlada em laboratório.

No entanto, alguns dos trabalhos de Jung tiveram uma influência duradoura e cons­tante na psicologia. Por exemplo, o teste de associação de palavras, que Jung desenvolveu no início da década de 1900, é ainda hoje um instrumento padrão de laboratório de clínico em psicologia. A versão de Jung do teste usava uma lista de 100 palavras como estímulo, que ele acreditava serem capazes de provocar emoções. Ele media o tempo que levava para um paciente responder a cada palavra, bem como às reações fisiológicas da pessoa, para determinar a intensidade emocional das palavras de estímulo.

Os oito tipos psicológicos de Jung motivaram muitas pesquisas. Vale a pena mencionar o teste de personalidade Indicador de Tipo Myers-Briggs, elaborado para medir os tipos psicológicos. Criado na década de 1920 por Katharine Briggs e Isabel Briggs Myers, esse teste é amplamente usado para fins de aplicação e de pesquisa, especialmente na seleção e orientação de pessoal. A fórmula introversão-extroversão inspirou o psicólogo inglês Hans Eysenck a desenvolver o teste de Inventário de Personalidade Maudsley para medir as duas atitudes. Pesquisas realizadas com esses testes produziram evidências empíricas para esses conceitos e demonstraram que pelo menos uma das noções de Jung seria passí­vel de teste experimental. De fato, os conceitos de introversão e extroversão de Jung ainda são muito aceitos na psicologia atualmente.

No entanto, assim como ocorreu com o trabalho de Freud, muitos outros aspectos da teoria de Jung (os complexos, os arquétipos e o inconsciente coletivo) resistem às tenta­tivas de validação científica. O conceito de autorrealização serviu de base para o desenvol­vimento do trabalho de Abraham Maslow e dos psicólogos humanistas. A noção da crise da meia-idade foi adotada por Maslow e outros psicólogos e aceita por muitos como um estágio necessário no desenvolvimento da personalidade. Esse conceito foi comprovado por muitas pesquisas.

Cursos formais de análise junguiana são ministrados em várias cidades da Europa e dos Estados Unidos, inclusive em Nova York, São Francisco e Los Angeles. A Sociedade de Psicologia Analítica publica a revista junguiana Journal of Analytical Psychology.

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