O Brasil voltará a sorrir novamente. Presidente Lula, seja bem vindo de volta!
DICIONÁRIOS DE PSICOLOGIA - PESQUISA POR VERBETE
7/3/2022 3:40:46 PM | Por Robert Biswas-Diener, Todd B. Kashdan
O papel da intuição no bem-estar

Ao entrar numa livraria, você encontra uma estante, quando não uma seção inteira, de títulos que alardeam as vantagens de desenvolver mindfulness. Resumidamente, mindfulness é um es­tado de consciência plena. É saber observar o mundo à sua volta sem interferências de diálogo interno, julgamento e outras distra­ções. É conseguir ver um vestido como vermelho em vez de “lin­do”, ou ficar desapontado por alguma coisa em vez de se ver como “um fracasso”. Mindfulness está muito em moda. Phil Jackson, trei­nador que ganhou os maiores campeonatos da NBA em todos os tempos, era famoso por recomendar técnicas de mindfulness aos jogadores de basquete. Meditação mindfulness e concentração são usadas em psicoterapias, treinamentos esportivos e até no ramo dos negócios. Atualmente, mindfulness é aclamada como o estado ótimo do funcionamento humano.

Os entusiastas de mindfulness não são apenas uns poucos sob a influência de algum elixir da Nova Era. Há um crescente corpo de evidências científicas corroborando as vantagens da “observação tranqüila”, em oposição a julgamento e interpretação, daquilo que acontece no momento presente. Uma série de estudos mostra que pessoas com tendência a ser mindful na vida afirmam ter mais felicidade, encontram mais significado e propósito na vida, têm inteligência emocional superior, maior nível de autocompaixão e maior capacidade de lidar com situações de estresse crônico. Mindfulness, ao que parece, é bom demais.

Se você quiser dados específicos convincentes, não precisa ir além dos dois principais cientistas que foram instrumentais na popularização de práticas de mindfulness nos Estados Unidos, Jon Kabat-Zinn, da Universidade de Massachusetts Medical School, e Richard Davidson, da Universidade de Wisconsin.2 Kabat-Zinn é considerado o pai do movimento mindfulness norte-americano, e Davidson é famoso e altamente conceituado por seu pendor a usar ressonância magnética funcional e outros instrumentos de mapeamento cerebral para estudar os fundamentos biológicos e psicológicos de mindfulness. Num estudo recente, Kabat-Zinn e Davidson deram um curso de oito semanas para funcionários de uma empresa de biotecnologia. Após exporem muitos funcionários a um surto de gripe, constataram que os que haviam feito o curso apresentaram uma notável resistência à gripe.

Como se a maior imunidade não bastasse, os pesquisadores descobriram também mudanças concretas no cérebro daqueles funcionários após meras vinte horas de treinamento em mindfulness (duas horas e meia por semana). Constataram um aumento de 400% de ativação no lado esquerdo do córtex pré-frontal anterior.3 Você deve estar se perguntando: “Será que eu quero um córtex pré-frontal anterior mais ativado?” A resposta é sim. Essa é a região do cérebro associada a emoções positivas e à predisposição para ver o estresse mais como um desafio a ser enfrentado do que um perigo a ser evitado. Aqueles funcionários precisaram apenas do tempo que levariam assistindo a quatro jogos de futebol ou indo três vezes ao supermercado para modificar o cérebro de modo a ter maior sucesso. É correto dizer que mindfulness não é só ótimo; é realmente ótimo.

Se mindfulness é tão útil, por que não nascemos equipados para fazer isso com mais frequência? Há uma razão para os seres humanos terem evoluído de modo a passar uma enorme quantidade de tempo sendo mindless, distraídos. O pensamento consciente, que nos mantém atentos ao que está acontecendo no momento presente, tem uma capacidade de processamento muito limitada. Pense no esforço dispendido pelo cérebro quando passamos por alguém na rua. Estimamos a distância que estamos do corpo da pessoa, calculamos nossa velocidade e a dela, calculamos onde nosso corpo termina e o dela começa, para evitar um esbarrão, e enquanto tudo isso está acontecendo movemos magistralmente uma perna após a outra sem tropeçar em nada no chão, nem atropelar uma árvore em nosso espaço aéreo.

Quando você vê o rosto de alguém, decide imediatamente se é uma pessoa conhecida e, pela expressão dela, avalia se ela está feliz ou infeliz, se é amigável ou perigosa, querendo ou não parar para conversar. Essa função é ainda mais difícil porque, em vez de ficarem parados, os músculos faciais da pessoa se movem, mostrando expressões ligeiramente diferentes a cada poucos segundos, o que exige uma avaliação contínua. Se por acaso você conhece a pessoa, ainda precisa acessar funções de nível mais alto. Precisa lembrar o nome, o tipo de seu relacionamento com ela, lembrar o que conversaram em interações anteriores, e pôr em ação habilidades motoras finas de contato visual (nem de mais nem de menos), volume da voz, conteúdo verbal, e habilidades de audição e codificação exigidas para manter uma conversa. Se você precisasse proceder com atenção consciente e deliberada, jamais seria capaz de chegar ao fim dessa lista enorme de atividades.

A mente consciente é incapaz de manipular as camadas de dados complexos, dinâmicos, que nos inundam a cada momento. Um erro de processamento e você é atropelado por um carro em alta velocidade, fala um palavrão na frente das crianças, deixa escapar um segredo profissional, queima a mão no forno, comete um milhão de pequenas faltas. Por necessidade, muito desse processamento mental ocorre na velocidade do pensamento fora do radar da atenção consciente.

Neste capítulo, dizemos “mindless” para indicar um claro contraste da obsessão cultural de mindfulness como solução para boa saúde, bons relacionamentos e maior sucesso. As pessoas se sentem desconfortáveis com mindfulness porque é o oposto da intencionalidade, da estratégia e de todas as indicações de superioridade da inteligência humana. Uma longa tradição de intelectuais afirma que o bem viver é previdente e planejado. Mindlessness, pelo contrário, é a marca característica de, digamos, zumbis. Curiosamente, tomando o exemplo de zumbis, podemos encontrar uma ilustração das vantagens de mindlessness.

Steven Yeun faz o papel de Glenn na premiada série de televisão sobre o apocalipse de zumbis, The Walking Dead. Em quatro temporadas, o personagem de Steven se transforma de enérgico herói em esfalfado sobrevivente que foge com seus amigos de um ataque após outro de zumbis famintos de carne humana. Você pensaria que, como ator, Yeun deve dedicar uma quantidade considerável de atenção consciente às emoções, postura e atitudes do personagem. Isso deve se aplicar principalmente a cenas complicadas, quando ele finge pisotear um zumbi numa luta. Yeun diz que o segredo para fazer a cena parecer real é pensar como um zumbi, isto é, não pensar. Ele comenta que, se fosse ter o cuidado de calcular quantos centímetros de distância seu pé precisaria es­tar da cabeça do ator que representa o zumbi, a cena ficaria desco­nexa e artificial. Em vez de pensar muito firme e deliberadamente (concentração bruta), ou se fixar numa observação sem julgamen­to do que está ocorrendo no momento (mindfulness) para fazer bem seu papel, ele precisa atuar com um mínimo de reflexão conscien­te, exatamente como se comportaria se realmente estivesse andan­do pela rua tentando se livrar de um bando de zumbis comedores de cérebros. Ele precisa confiar no processamento automático, que se compõe de decisões intuitivas, instintivas, ações baseadas no bem projetado equipamento evolucionário, e em anos de pro­fissão (que Steven Yeun tem como ator). No centro da brilhante atuação de Yeun, está a capacidade de se perder - largar sua men­te consciente - totalmente e se tornar outra pessoa, o personagem tentando sobreviver ao apocalipse de zumbis num mundo alter­nativo onde milhões de telespectadores entram durante uma hora a cada semana.

As páginas a seguir exploram três áreas em que as pesquisas científicas sugerem que mindlessness pode ajudá-lo a ser mais pro­dutivo, criativo, e mais capaz de trilhar o tormentoso e ambíguo terreno da vida diária. Podemos definir mindlessness como um es­pectro que vai da distração à total imersão no inconsciente, mas isso não faria justiça ao tópico. Assim sendo, vamos expor três ti­pos de mindlessness que podem apontar o caminho do sucesso e bem-estar: 1) ligar o piloto automático, 2) partir para ações impul­sivas e 3) confiar em decisões mindless. As pessoas mais psicologi­camente flexíveis - e mais bem-sucedidas - têm a capacidade de transitar muito bem entre mindfulness e mindlessness, em vez de ficarem presas a um desses modos. Ao conhecer e usar intencionalmente esses caminhos, ainda que subestimados, você poderá ter aqueles 20% a mais, desperdiçados por quem permanece ligado à ideia de que mindfulness é melhor que mindlessness.

Três caminhos mindless para o sucesso e bem-estar

O pensamento consciente se mantém firme sob o farol [enquanto] o pensamento inconsciente se aventura pelas fendas e recantos escuros e poeirentos da mente - Dijksterhuis &Meurs, 2006

LIGAR O PILOTO AUTOMÁTICO

Para economizar espaço de computação no cérebro, as pessoas recorrem ao pensamento heurístico, isto é, usam atalhos cognitivos automáticos - e portanto mindless. Um modo comum de usar o pensamento heurístico é categorizar as coisas. Quando você vai ao correio, não vai ao balcão perguntar se o funcionário fala sua língua. Ele já foi categorizado como funcionário do correio e, como tal, você supõe que saiba muitas coisas (fala o idioma nacional, é alfabetizado, sabe o preço dos selos, pode responder a perguntas sobre formas de pagamento e assim por diante). A heurística poupa tempo e um valioso espaço cognitivo, pois não incomoda a mente consciente com exercícios desnecessários.

Pesquisas mostram que as pessoas são capazes de fazer julgamentos categóricos inconscientes sobre os outros com uma rapidez extraordinária.5 Num estudo sobre primeiras impressões, os participantes só levaram um décimo de segundo para tirar conclusões sobre a personalidade do outro. Nesse breve espaço de tempo, fizeram julgamentos sobre confiabilidade, estabilidade emocional, gentileza, entusiasmo, negligência, abertura a novas experiências e outros aspectos da personalidade. Se colocarmos esse nosso espantoso aparelho detector de personalidade em perspectiva, você levaria duzentas vezes mais tempo só para ler este parágrafo. Você deve estar se perguntando se essas avaliações tão rápidas são corretas. Numa ampla série de estudos, pesquisadores constataram que observações em “fatia fina” têm exatidão bem acima da média (cerca de 70% corretas).6 Resultado excelente para um pingo de tempo e esforço.

1. DETECTOR MINDLESS DE SITUAÇÕES SOCIAIS IMPRECISAS

Um aspecto importante do pensamento automático é determinar se uma pessoa desconhecida é ou não confiável. Essa difícil tarefa é essencial para relações comerciais e sociais, afora a segurança pessoal. Se errar, você pode ser lesado, atacado ou, no mínimo, perder um tempo enorme quando poderia estar alicerçando uma boa amizade com outra pessoa. Muitos cientistas acreditam que confiamos ou não conforme as reações da pessoa às nossas “deixas”. Quando o outro espelha nosso comportamento, é um sinal de que nossas necessidades, valores e bem-estar o afetam e despertam seu interesse.

Rick van Baaren e seus colegas da Universidade de Nijmegen viram que, quando garçons repetiam os pedidos dos clientes (um sinal claro de que o garçom estava atento), as gorjetas aumentavam em até 68%.7 Estamos certos de que era um ato mindless dos clientes (não calculavam ativamente quanto dinheiro deixar na mesa se o garçom repetia em voz alta seu pedido de um copo de água). Esse simples ato de repetir o pedido é um sinal sutil de que o garçom está atento, ciente e é confiável no contexto do restaurante.

Uma boa manutenção de interações sociais pode ser difícil, inclusive nas conversas em que você está fora de sintonia com a pessoa, ou quando sorri e se inclina para contar uma piada e a pessoa não se aproxima nem muda de expressão. Uma troca sem movimentos coordenados e algum grau de espelhamento é esquisita e desagradável. Pesquisadores afirmam, com razão, que gostamos mais da pessoa quando ela imita nosso humor e nossos gestos - não quando estão zombando, mas quando espelham sutilmente nossa postura, emoção e até o modo de falar. Por outro lado, essa imitação não é apropriada quando estamos competindo com alguém ou pedindo a um vendedor de automóveis uma orientação sobre o melhor carro para a família.

Psicólogos da Universidade de Groningen, da Universidade de Duke e da Universidade de Yale investigaram reações a “sinais sociais de nuanças negativas”.8 Num estudo, quando os participantes foram recebidos por um profissional muito formal e empertigado que tentou imitá-los durante uma interação social, ficaram “arrepiados” literalmente, sentindo 2,5 vezes mais frio do que quando a mesma pessoa não tentou imitá-los. Quando recebidos por uma pessoa amigável, brincalhona, os participantes a preferiam quando ela imitava seus gestos: sentiram duas vezes mais frio físico após passarem algum tempo com uma pessoa amigável que não os imitava, como se o corpo reconhecesse ali uma recepção fria.

Com essa perspectiva em mente, veja o que aconteceu num estudo em que participantes de diferentes grupos raciais interagiram, e depois pediram que eles adivinhassem qual era a temperatura do ambiente. Numa interação de pessoas da mesma raça, a ausência de imitação provocou uma sensação de frio, 2,04° mais frio, para sermos exatos. E, quando a interação se deu com uma pessoa de outra raça, foi a presença de imitação que provocou a sensação de 2,47° mais frio no ambiente. Esse e outros estudos similares são compatíveis com a ideia de que cada um de nós tem uma reação visceral a comportamentos desencontrados em certas situações. Dado que a imitação é tipicamente considerada um sinal de intimidade, é fácil entender que, quando alguém não está esperando intimidade, a imitação desperta suspeita. Pense na queda de temperatura psicológica como um levíssimo sinal, nas franjas da consciência, de que há maneiras menos ameaçadoras, menos incômodas de passar o tempo do que estar com aquela pessoa.

Essa forma de autoproteção mindless é cortesia de milhares de anos de evolução. Perguntado sobre a lição prática a ser extraída disso, o principal autor do estudo, Pontus Leander, diz:

E melhor não se “empenhar tanto” em adotar completamente, porque o tiro pode sair pela culatra (por exemplo, imitação numa interação inter-racial). Esses estudos mostram que é melhor deixar acontecer alguns processos automáticos. Fui criado numa região do Sul, e sempre ouvi dizerem “se está funcionando, não precisa consertar”; talvez isso se aplique especialmente à imitação.

Propomos a seguinte seqüência: 1) numa interação social com alguém que você mal conhece ou numa conversa sobre um assunto delicado, deixe o processo quase mindless acontecer; 2) faça um esforço consciente para notar qualquer mudança em seu próprio corpo; 3) observe se seu detector de perigo está ou não indo longe demais. Sim, estamos falando das vantagens complementares de começar com mindlessness e depois ir trazendo a atenção consciente para a situação entre você e o outro. Não estamos defendendo a necessidade de uma luta entre mindfulness e mindlessness. É um trabalho em conjunto, numa determinada ordem.

A primeira parte da seqüência, ligar o piloto automático, é o que nós, autores, nunca tínhamos considerado antes. Antes de escrever este livro, nenhum de nós tinha usado o fator de estimativa de temperatura ao tratar de negócios, em encontros amorosos ou em conversas com desconhecidos num saguão de hotel. Mas, agora, sim. Tomamos consciência das vantagens de mindlessness. Além de avaliar a aparência física, inteligência, curiosidade e simpatia, observamos se há alguma queda de temperatura física quando estamos perto de alguém. Antes seria normal exclamar “puxa, que frio!”, mas agora, quando sentimos um arrepio ou pensamos em buscar um agasalho, entramos em alerta. Estamos um pouquinho mais céticos, procurando algum sinal de perigo/manipulação, que antes não registrávamos conscientemente. De posse desses dados que ignorávamos, talvez tenhamos tomado decisões melhores ao contratar empregados e tomar um táxi em terra estrangeira.

2. AJUSTE MINDLESS DA EMOÇÃO

Curiosamente, o processamento automático também se aplica à emoção. Um ajuste saudável da emoção - a tentativa de controlar ou alterar o tipo, intensidade e expressão de nossas reações ao mundo - está vinculado às partes mais importantes do bem viver. Por exemplo: pesquisadores sugerem que falhas no ajuste das emoções são parcialmente responsáveis por problemas individuais como depressão, agressão, infidelidade, e, na esfera profissional, mau desempenho, roubo e assédio. Sabendo como é importante, e difícil, ajustar emoções intensas como raiva, medo, tristeza, vergonha, convém ponderar se o gerenciamento consciente das emoções exige esforço demais, e se é vagaroso demais para nos ajudar em situações fortes.

Situações fortes são aquelas em que somos tomados por emoções intensas e impelidos a tomar uma atitude, como você ver que um desconhecido se acerca de sua filha que está na fila do toalete no restaurante, murmura algo no ouvido da menina e acaricia o braço dela.9 Pense na vantagem de ser capaz de ajustar a emoção automaticamente, antes mesmo de você saber o que está sentindo, e amortecer o impulso de se entregar ao arrebatamento de uma ação impensada (nesse exemplo, dar um pulo da cadeira e pegar um garfo para cravar na mão do atrevido, e só então ficar sabendo que é o novo namorado dela). Que tal se a sua mente pudesse ser treinada para ajudar efetivamente, antes que você saiba que precisa de ajuda, numa situação dessas?

Em dois estudos, íris Mauss, da Universidade de Berkeley, e James Gross, da Universidade de Stanford, pediram a alguns participantes que reordenassem frases com palavras embutidas relacionadas ao gerenciamento de emoções, como “refrear”, “controlar”, “sossegar”, e deram a mesma tarefa a outros participantes com frases contendo palavras relacionadas a ímpetos emocionais, como “soltar”, “ferver”, “explodir”.10 Os pesquisadores queriam saber se a exposição dos participantes a essas palavras dissimuladas no texto interferia na maneira de lidarem com as emoções enquanto alguém - nesse caso um ator - tentava deliberadamente irritá-los. O ator mandou que contassem rapidamente as letras de um texto borrado enquanto lhes dizia que eram incompetentes, num tom de voz cada vez mais impaciente e enervante. Os par­ticipantes sugestionados subliminarmente a liberar as emoções sentiram 42,2% mais raiva do que os participantes sugestionados subliminarmente a manter as emoções sob controle. Um segundo estudo mostrou que os participantes expostos a palavras que aju­davam a controlar as emoções reagiam com pressão e batimentos cardíacos mais baixos quando o ator hostil se aproximava deles.

O que podemos aprender a partir desses resultados? Primei­ro: objetivos muito sofisticados, como tolerar pessoas hostis e nos­sos próprios aborrecimentos, podem ser alcançados sem qualquer ação consciente e deliberada de nossa parte. Segundo: esses atos mindless de ajuste da emoção parecem ser gratuitos, pois as pes­soas manifestam não só menos aborrecimento, mas também me­nos agravos fisiológicos. Terceiro: intervenções simples, breves e de baixo custo podem nos induzir a reações mais saudáveis em situações sociais difíceis.12 Isso indica que já existe um forte siste­ma mindless em funcionamento, regulando nossas emoções, e que, aprendendo a influenciá-lo, podemos aumentar suas vantagens.

3. CRIATIVIDADE MINDLESS

Inovação é uma palavra muito popular no mundo empresarial e na educação, pois tem a vantagem de ser tangível, mensurável, e resulta em idéias criativas que podem ser implantadas fisicamen­te, no mundo real. Elon Musk, o gênio por trás dos carros elétricos Tesla e da SpaceX, é um exemplo perfeito de como o ardor criati­vo pode ser a peça central das empresas. De fato, muitas empresas - especialmente as chamadas “empresas maduras” - estão sempre prontas a investir muito dinheiro em consultorias inovadoras pa­ra seus produtos e gestão, e outro tanto em cursos de desenvolvimento de criatividade para seus funcionários. Na maioria desses cursos, o foco é improvisar, correr riscos e aceitar pequenos fracassos. Até aí, nada contra.

Muitas oficinas de criatividade também são regidas pela ideia de que você pode se tornar criativo propositadamente; quanto mais mindful você for, mais receptivo estará a inspirações criativas. Mindfulness é atraente porque está associada a uma ação deliberada, tranqüila, dependendo somente do seu interesse e afinco. Isso combina com a noção de que uma vida bem vivida não deve - nem pode - ser fácil. A mensagem cultural é clara, porém enganosa. Pesquisadores se esforçam para identificar um problema em pessoas que devaneiam e, por isso, se mostram incapazes de controlar a mente. Seu filho tem um problema porque devaneia na sala de aula enquanto o professor está falando? Um artigo do psicólogo Scott Barry Kaufman sobre mindlessness construtiva contraria pesquisas e opiniões que menosprezam momentos mindless e devaneios em sala de aula:13

Essa perspectiva faz sentido quando o devaneio é observado por um terceiro, e quando os prejuízos são medidos segundo padrões impostos externamente, como rapidez ou exatidão de processamento, fluência ou compreensão de texto, persistência da atenção e outros padrões de medida externos.

Entretanto, há outra maneira de ver o devaneio, numa perspectiva pessoal, se você quiser... Nossa mente vagueia, de propósito ou por acaso, porque há uma compensação tangível, mensurada em objetivos e aspirações que têm um significado pessoal. Precisar reler três vezes a mesma linha porque seu pensamento voou não tem importância, se esse voo levou sua atenção a uma descoberta interna, a uma lembrança deliciosa ou a dar novo significado a um evento desagradável...

Fazer uma pausa para reflexão no meio de uma história é irrelevante se essa pausa nos permite evocar um acontecimento que torna a história mais sugestiva e interessante. Enquanto dirigimos, perder uns minutinhos porque não pegamos a rampa de saída é um inconveniente desprezível se o lapso de atenção nos permitir entender, finalmente, por que o chefe ficou tão chateado com o que dissemos na reunião da semana passada. Chegar em casa sem trazer os ovos que saímos só para comprar é uma contrariedade muito pequena se o esquecimento foi devido à decisão de mudar de emprego, pedir um aumento de salário, ou voltar a estudar.

Dessa perspectiva pessoal, é muito mais fácil entender por que as pessoas são levadas a devanear e investem quase 50% do tempo deixando a mente vagar.14

Um ponto desse artigo encontra eco num ensaio sobre preguiça de Thomas Pynchon, que diz:

... o que Tomás de Aquino denomina Inquietude da Mente ou “correr atrás de várias coisas sem que nem pra que... se pertence ao poder da imaginação... chama-se curiosidade”. Decerto, é precisamente nesses episódios de viagem mental que os escritores produzem boas obras, às vezes as melhores, solucionando problemas formais, recebendo orientação do Além, tendo aventuras hipnagógicas que, com sorte, podem ser recuperadas.15

Imagine se nossa mente fosse privada da capacidade de sair dos trilhos. Se não pudéssemos resistir ao impulso de cumprir as obrigações imediatas, seriamos mais felizes? Seriamos mais felizes e bem-sucedidos com um controle autoritário de por onde anda nossa mente? O passatempo mindless é indispensável à consciência de si, à reflexão e ao planejamento. Pode-se argumentar que nosso cérebro exige uma atividade de livre flutuação mental para revelar, descobrir e consolidar informações, assim como nosso corpo físico exige sono adequado, exercícios e vitamina D.

Antes de investir numa especialização, pense nesse fruto ao seu alcance, o ocioso estado mindless, como a gestação de uma criativa visão interna. Afinal, há muito tempo a criatividade é associada a uma incubação inconsciente, e essa ideia é apoiada por laureados pelo Prêmio Nobel e artistas famosos.16 Você provavelmente conhece a ideia do “ah-ah”, o momento de revelação que traz subitamente a solução de um problema, ou uma ideia relevante, quando menos se espera. Pode-se pensar que há algo de criativo na falta de atenção. Pesquisas apoiam a ideia de que a criatividade está sempre à nossa espreita.

Segundo David Greenberg, autor de Presidential Doodles, documentos históricos revelam que 26 dos 44 presidentes dos Estados Unidos ficavam rabiscando enquanto a mente vagava e os negócios de Estado (reforma tributária?) não prendiam sua atenção. Mas não entenda isso como um desperdício porque os cientistas constataram que, em comparação com quem não rabisca, os rabiscadores apresentam quase 25% a mais de lembrança do que aconteceu enquanto rabiscavam.17 Pode parecer contraditório que alguma coisa que “distrai” na verdade mantém a pessoa ativa, mas rabiscar exige apenas atenção mindless, mantendo a pessoa alerta e ao mesmo tempo recarregando a energia mental que, não fosse isso, estaria sendo drenada por um discurso enfadonho. Infelizmente, professores, pais e gerentes muitas vezes acham que rabiscar é desrespeito e, portanto, deve ser desestimulado.

E se professores e gerentes partissem de outra premissa? E se estimulassem atividades mindless para contrabalançar a intensidade da atenção? Já é possível encontrar esse exemplo em empresas e escolas que colocam uma música suave de fundo enquanto as pessoas trabalham. Pesquisas mostram que isso melhora a concentração, proporcionando um ambiente de calma que favorece a continuidade das atividades.18 Um exemplo menos óbvio pode ser encontrado na prática de admitir que pilotos de avião durmam um pouco durante o voo. Imagine a longa viagem de Washington D.C. a Sydney, na Austrália. Você espera ter certos confortos - um travesseiro, um filme, o toalete com a descarga funcionando e a tripulação acordada.19 Felizmente, ninguém lhe diz que o comandante está tirando uma soneca de 25 minutos enquanto o avião cruza os ares sobre o mar. Mas não se preocupe. Num estudo, pesquisadores da NASA constataram que pilotos que dormem durante o voo tomam decisões 20% mais rápidas e cometem 34% menos erros quando acordam. O valor estratégico de desligar a mente para recarregar não pode ser subestimado. Onde mais você pode obter 34% mensuráveis de melhor desempenho numa atividade, em menos de 26 minutos?

Para saber mais sobre a vantagem de desligar a atenção consciente, procuramos o dr. Andrei Medvedev, professor no Georgetown University Center for Functional and Molecular Imaging.20 Em 2012, sua equipe monitorou a atividade cerebral de adultos enquanto faziam a sesta. Constataram que, nesses períodos de sono, o hemisfério direito - altamente associado ao pensamento criativo - se comunica frequentemente com o lado esquerdo do cérebro. Medvedev especula que enquanto o corpo descansa o he­misfério direito faz uma verdadeira arrumação da casa, transfe­rindo informações e experiências recentes para o armazenamento de memória de longo prazo.

É o mesmo que programar seu computador para salvar arqui­vos importantes e deletar informações desnecessárias enquanto você não o está usando, exceto que algo diferente acontece nessa catalogação mental. Colisões acidentais com lembranças antigas resultam em combinações originais e até bizarras. Quando es­tamos dormindo, o editor dentro de nós está de folga, não pode avisar que certas idéias são proibidas, nem apagá-las por serem impraticáveis. Seria maravilhoso se cada combinação de pensa­mentos produzisse uma descoberta criativa, mas, em geral, essa sopa conceitual é intragável. Isso é esperado, e precisa ser respei­tado. Não podemos contar com uma fileira de idéias cinco estre­las; só precisamos de uma ideia interessante de vez em quando.

A criatividade surge das mais estranhas atividades mindless. Quando pesquisadores investigaram as origens das idéias mais criativas produzidas por 104 especialistas em relações públicas para empresas do Reino Unido, não encontraram ali um manan­cial de originalidade.21 A ida e volta do trabalho ganharam o título de musa das idéias, e em segundo lugar, quase empatados, fica­ram o banho ou a chuveirada. Essas ocasiões são Focos de Criação Acidental (FCAs). Para sermos criativos, precisamos aproveitar ao máximo esses e outros FCAs, que podem ser cuidar das plantas, lavar os pratos, dar uma caminhada ou levar o cachorro ao parque.

Uma observação importante: a atividade mindless, por si só, não basta para a ocorrência da criatividade. Se assim fosse, se­riamos todos Georgia O’Keeffe ou Ernest Hemingway, bastando deixar a mente vagar enquanto lavamos a louça. No entanto, a atividade mindless é o solo fértil em que as melhores idéias criam raízes. Pesquisadores descobriram, por exemplo, que as pessoas mais criativas, e as que mais investem em aprimorar o produto de sua criatividade, recorrem instintivamente a estados não conscientes para ter inspiração.22 Elas têm uma aptidão particular para filtrar os sonhos e incorporar esse material à vida desperta. Portanto, planeje não planejar, passando algum tempo longe de atividades em que a mente insiste em tentar criar. E esteja pronto a captar idéias a qualquer momento, em qualquer lugar, tendo sempre um gravador à mão.

AGIR POR IMPULSO

Se você gosta de uma pessoa engraçada e muito franca, você a classifica de “espontânea” e, se não gosta, você se refere ao mesmo conjunto de comportamentos como “impulsivos”. Temos uma relação ambígua com atividades no “calor do momento”. Por um lado, tendemos a vê-las como engraçadas, e, por outro lado, podem parecer bobas. Uma das razões da má fama da impulsividade é que não prestamos muita atenção nas situações em que a ação impulsiva dá bons resultados. Considere o seguinte: uma grande tempestade de inverno está se aproximando, prevista para chegar daí a alguns dias. Em vez de passar um dia inteiro trancado em casa com seus três filhos pequenos, você clica naquele site de promoções de viagem e reserva passagens para a família passar um delicioso fim de semana em Aruba. Bater os olhos num livro de capa esquisita e comprar por um preço irrisório, entrar por instinto num bar novo, encontrar sua laboriosa pessoa amada estendendo roupa no varal e transar apaixonadamente em cima da máquina de lavar, ter uma conversa interessante com uma pessoa totalmente desconhecida, pedir licença aos amigos e subir no palco de karaokê para cantar sua canção favorita - reações impulsivas e atividades inesperadas, apesar de arriscadas, podem ter grande sucesso e ser agradáveis. Isso acontece exatamente porque não são programadas e a incerteza do resultado contribui para uma mescla de ansiedade e curiosidade que nos faz sentir vivos e inteiros - sem afetação, sem se preocupar em causar boa impressão.

1. O EFEITO LIBERADOR DE PERDER O CONTROLE

Imagine ser arrastado para uma conversa sobre um assunto polêmico: legalizar a maconha, reduzir o número de bombeiros e policiais para cortes no orçamento municipal, decidir quem herda o quê quando vovô morrer. Esses tópicos são controversos devido à sua importância para as pessoas diretamente afetadas. Em locais de trabalho politicamente carregados, um dos assuntos mais delicados é a diversidade. Muitos países ocidentais, modernos, industrializados, concordam que a inclusão baseada em raça, sexo, orientação sexual, religião, nacionalidade e status econômico não só é justa como valiosa.

Nicky Garcea, consultora administrativa na Inglaterra, passou anos coordenando programas sobre diversidade. Ela chegava a uma empresa, reunia os funcionários e passavam horas em workshops sobre a importância de respeitar as diferenças, mas não tardou a se desencantar com essa abordagem. “Mostrar que todo mundo era diferente”, ela confessou, “era uma garantia de que cada funcionário passaria a ser rotulado de mulher, indiano ou gay.”

Muitos de nós ficamos divididos entre querer agir como se não houvesse absolutamente diferenças entre as pessoas e falar sobre possíveis diferenças com sensibilidade e respeito. O problema de tomar tanto cuidado ao escolher as palavras é a quantidade de energia mental exigida. Um homem branco, por exemplo, pode gastar muita energia conduzindo uma conversa com uma mulher negra para temas leves, inócuos, superficiais. Ambos se sentem enojados ao reconhecer que, na verdade, o importante é o que não está sendo dito. Duas pessoas bem-intencionadas acabam criando uma interação forçada, que exige muito esforço e energia.23

Mas e se fosse possível esgotar a energia da pessoa antes da conversa, de modo que ela não tivesse mais pique para ocultar, sufocar ou deixar escapar o que está pensando?24 Seria preciso que os funcionários corressem meia maratona ou fizessem todas as palavras cruzadas do jornal de domingo antes do trabalho. Num estudo, os cientistas determinaram que os sujeitos fizessem algo desafiador em termos físicos ou intelectuais antes de uma conversa potencialmente delicada com um membro de outro grupo étnico. Mentalmente exaustos, os sujeitos se livraram da difícil tentativa de falar a coisa certa, ficaram menos inibidos numa conversa sobre diferenças raciais com alguém de outra raça, e tiveram uma interação 25,4% melhor. Além disso, se sentiram menos alvo de preconceito por observadores negros que assistiram aos vídeos da interação. Os participantes, cansados, desinibidos, tiveram 72,6% mais facilidade de conversar francamente sobre diversidade e lidar efetivamente com esse tema delicado.

Um apoio adicional ao valor de ações impulsivas, ou não comedidas, vem de uma fonte inusitada: o declínio cognitivo na idade avançada, que precede doenças cerebrais degenerativas.25 Num estudo, os pesquisadores disseram a jovens adultos (de 19 anos em média) e a adultos idosos (de 73 anos em média) que eles faziam parte de um programa da comunidade para aconselhamento de adolescentes com problemas. Todos foram levados a acreditar que essa iniciativa visava a aconselhar um adolescente por meio de vídeos de entrevistas com pessoas comuns (e não com terapeutas) sobre a adolescência que essas pessoas comuns tinham vivido. Os participantes selecionaram uma entre várias fichas de adolescentes, sem saber que todas continham a mesma informação: uma menina obesa que sofria de insônia, bullying, incapacidade de fazer amigos e desinteresse na escola.

Quando disseram aos sujeitos para pensar no que desejavam dizer, os idosos demonstraram maior franqueza, falando diretamente que a menina era gorda e feia, e contaram como tinham sofrido na adolescência, como haviam lidado com isso e o quanto tinham aprendido com a rejeição e o fracasso. Os jovens foram mais cautelosos: 70% nem mencionaram a gordura da garota. Curiosamente, os idosos com o mais fraco funcionamento cognitivo (medido por um exame neuropsicológico abrangente) foram os mais abertos, com 80% falando na gordura da menina e dando mais conselhos.

Os pesquisadores pediram a dois médicos famosos, especialistas em obesidade, que assistissem ao filme das entrevistas e avaliassem a qualidade dos conselhos. Os conselhos dos idosos com menor capacidade cognitiva foram julgados melhores do que os conselhos dos jovens, que tinham maior capacidade cognitiva. A falta de inibição deixou os velhos mais acessíveis, empáticos, cooperativos, e dispostos a abordar o desconfortável fato da obesidade da garota e suas dificuldades sociais por causa disso. No artigo intitulado “The risk of polite misunderstandings”, Jean-François Bonnefon e seus colegas concluem:26 A polidez gasta recursos mentais e cria confusão sobre o verdadeiro significado.

Embora essa confusão seja funcional em situações corri­queiras, pode ter conseqüências indesejáveis em situações de alto risco, como pilotar um avião em caso de emergência ou ajudar um paciente a optar por um tratamento.

Aconselhar e servir de mentor são papéis de liderança funda­mentais para pais, professores e executivos. A incapacidade de abordar assuntos delicados aumenta a probabilidade de malogro no trabalho, erosão de relacionamentos, perda de tempo e de di­nheiro, devido à comunicação inadequada. Não evite essas conversas tão temidas. Experimente falar quando estiver um pouco cansado, com as defesas naturais em baixa. Isso vai ajudá-lo a to­lerar o desconforto e se valer de sentimentos menos convencionais.

DECISÕES MINDLESS

Desafiamos você a passar oito horas sem tomar decisões instantâ­neas. Não mudar de faixa no trânsito, não convidar alguém que você acabou de conhecer para almoçar, não expor um pensamento antes que seja bem analisado, não enviar e-mails apressados e, certamente, não comentar imediatamente alguma coisa postada no Facebook. Apostamos que você não consegue durante as oito horas. Imaginamos que consiga durante uma hora. Se você estiver num shopping center ou assistindo à televisão, reduzimos para dois minutos.

As pessoas tendem a trabalhar decisões importantes. Gosta­mos de ter trabalho com nossas escolhas, calcular custo-benefício, consultar especialistas, fazer programações, quando bastaria uma boa noite de sono para resolver o assunto. Uma abordagem mais intuitiva pode parecer quase Nova Era porque se baseia na existência do inconsciente e na crença em que o fantasma na máquina, a mente inconsciente, é capaz de dar conta das decisões enquanto a mente consciente está ocupada com outras coisas. Segundo o princípio de capacidade do cérebro, quando há excesso de dados a serem digeridos, o pensamento consciente fica confinado ao trabalho de processar todas as informações, integrando-as, apelando para os conhecimentos e experiências, comparando-as e contrastando as escolhas possíveis até chegar a uma decisão. O pensamento mindless não tem essas restrições porque ocorre fora da consciência. Isso nos traz uma regra de ouro contraintuitiva: quando é preciso tomar uma decisão complexa, após reunir informações na mente consciente, evite pensar nelas conscientemente. Não tenha pressa, deixe o inconsciente resolver.27

Nenhum autor enuncia melhor essa regra do que Ap Dijksterhuis.28 Esse psicólogo holandês passou anos estudando a inteligência inconsciente. Em um estudo muito interessante, Dijksterhuis investigou se torcedores fanáticos por futebol, com seus conhecimentos obsessivos do esporte, eram mais capazes de acertar qual time seria vencedor do que adultos sem maiores conhecimentos, que usavam mais as seções de esportes dos jornais para embrulhar o lixo do que para ler.29 Ele fez uma breve exposição estatística de gols, jogadas, passes perfeitos, dribles e segredos de vários times de futebol. Dijksterhuis queria saber como os dois grupos utilizavam essas informações.

Tendo tempo suficiente para avaliar todos esses dados sobre a performance dos times, os fanáticos tiveram melhor desempenho que os neófitos. Já era de se esperar, pois eles usaram as informações que obtinham diariamente. Mas algo estranho aconteceu quando Dijksterhuis mudou o procedimento. Deixou os sujeitos pensarem durante dois minutos apenas e, para evitar que continuassem a pensar em futebol, pediu que resolvessem complicadas equações de álgebra. Enquanto tentavam solucionar os complexos problemas de matemática, Dijksterhuis os interrompeu, pedindo que respondessem rapidamente quais times seriam vitoriosos no próximo campeonato. Nesse momento, os neófitos acertaram mais que os fanáticos! Por quê? Porque, na ausência de uma grande quantidade de dados, os neófitos confiaram nas informações que, bem diante de seus olhos, lhes chamaram a atenção, como passes perfeitos em condições de chuva e vento, uma estatística que os fanáticos devem ter negligenciado. Os neófitos basearam essa reação intuitiva em informações inusitadas, que foram sublinhadas e marcadas em negrito pelo cérebro. Como os fanáticos tinham um grande acúmulo de fatos sobre futebol estocados no cérebro, “a dica” ali à sua frente não se destacou. É muito difícil desaprender fatos antigos e descartar idéias preconcebidas, e eles precisariam ter feito isso rapidamente a fim de absorver novos fatos.

Os resultados da pesquisa sobre futebol não se limitam ao mundo dos esportes. A decisão instintiva é relevante também para uma pessoa doente escolher o médico, um adulto obeso escolher dietas e exercícios, médicos diagnosticarem doenças graves. Em um estudo similar, pediu-se a adultos com pós-graduação em psicologia para determinar se um paciente tinha algum distúrbio psicológico e, se tivesse, qual seria o diagnóstico.30 Em uma sessão, os psicólogos leram a descrição do caso de um paciente e tiveram quatro minutos para ponderar antes de formar uma opinião. Em outra sessão, tiveram que processar inconscientemente as informações sobre o caso enquanto faziam um jogo de caça-palavras durante quatro minutos. As opiniões foram piores quando tiveram os quatro minutos para pensar. De fato, as opiniões mais mindless foram cinco vezes mais corretas do que as ponderadas.31

Vemos assim que há nítidas vantagens no pensamento inconsciente, especialmente quando se trata de dissecar, manipular e sintetizar grandes quantidades de informação. Mas, certamente, há também nítidas vantagens no pensamento consciente. Se você acha que ter uma janela que dá para campos verdejantes e belas árvores é importante para sua qualidade de vida no trabalho, por exemplo, é preciso ter isso na mente consciente quando lhe oferecerem um escritório muito maior, com elegantes cadeiras ergonômicas e sem vista para o mundo externo. Caso contrário, você pode se deixar levar pelo entusiasmo de ter tanto espaço e depois se surpreender com o abrupto declínio de seu ânimo nos meses seguintes sem janela. Então, entre os dois, qual é o melhor para você?

Vejamos o problema de escolher um apartamento para alugar, que é uma decisão da maior importância. Será fácil se o apartamento tiver todos os requisitos: preço baixo, quartos amplos, banheiro com banheira, bons armários, varanda, perto de shoppings e transporte público, num bairro com ótimos restaurantes, parques e baixa criminalidade. E - ah, sim - que tenha conforto para seu bichinho de estimação. Na vida real, encontrar um apartamento é um exercício de concessões. Você tem um closet enorme, mas não tem parque; cozinha moderna, mas não tem pia dupla. Muita gente entra num jogo mental de troca-troca, num esforço para tomar uma decisão feliz.

Em 2011, Dijksterhuis e seus colegas conduziram um experimento em que os participantes tinham que fazer uma entre duas escolhas ideais dentre 12 apartamentos possíveis.32 Mas, tal como no mundo real, nenhum era perfeito. Os melhores apartamentos tinham oito características positivas e quatro negativas, e os piores tinham quatro características positivas e oito negativas. Quando as pessoas precisaram tomar uma decisão imediatamente após receber informações sobre cada apartamento, houve somente 15% de acertos na melhor opção. Quando tiveram quatro minutos para ponderar sobre cada apartamento, os acertos na melhor opção chegaram a 29%. Isso indica que a ponderação se sobrepõe à escolha impulsiva, mas nenhuma das duas parece ser totalmente satisfatória.

Curiosamente, numa terceira sessão, quando os participantes ficaram distraídos fazendo palavras cruzadas sem relação com o tema e então tiveram que tomar a decisão, o resultado foi 30% de acertos na melhor opção. Mas realmente interessante foi o que aconteceu quando os participantes puderam passar dois minutos pensando conscientemente em cada apartamento e depois sua atenção foi desviada para jogos de palavras, irrelevantes, porém difíceis, que precisavam solucionar em dois minutos. Depois de passar metade do tempo ponderando conscientemente antes de tomar uma rápida decisão mindless após um cansativo jogo de palavras, alcançaram 58% de acertos na melhor opção. Eles tinham passado apenas metade do tempo analisando cada apartamento e a decisão foi duas vezes melhor!

Esses mesmos pesquisadores constataram que a melhor estratégia é aproveitar os pontos positivos do pensamento consciente e inconsciente. Mas deram um passo adiante ao descobrir a importância da ordem seqüencial de pensamento consciente e inconsciente. Quando os possíveis compradores de apartamentos tiveram dois minutos para ponderar antes de serem distraídos com jogos de palavras, tiveram 58% de acertos na melhor opção. Quando a seqüência foi invertida e ficaram distraídos com jogos irrelevantes de palavras (pensamento inconsciente) e depois tiveram dois minutos para ponderar (pensamento consciente), sua capacidade de escolha caiu para 30%.

Não é de surpreender que existam tantos livros sobre mindfulness e pensamento irracional. Ainda estamos aprendendo a funcionar no modo ótimo, como pessoas bem integradas, inteiras. Essa fascinante linha de pesquisa mostra que a estratégia mais eficaz para lidar com decisões complexas é ter flexibilidade para usar o pensamento consciente e inconsciente, em conjunto, e nessa ordem. Numa situação em que há várias opções exigindo uma ação cognitiva, a fórmula para a melhor decisão é a seguinte:

  1. Fique algum tempo pensando conscientemente na situação.
  2. Pare.
  3. Faça uma atividade qualquer, sem relação com a situação, para ter um período de incubação.
  4. Tome a decisão.

Intervenções Mindless

Passamos décadas tentando aumentar nossa autoconsciência para alcançar o sucesso, e os pesquisadores que apresentamos neste capítulo sugerem uma atitude diferente. Como alternativa, vamos propor uma estratégia do “levantar da (in)consciência”, que nos permite atingir as metas que almejamos e, assim, viver melhor. Propomos a audaciosa noção de que nosso comportamento pode ser modificado drasticamente sem qualquer intervenção consciente. O imperceptível processamento inconsciente da informação pode nos conduzir a decisões mais firmes, mais rápidas e melhores.

Pense na meta de melhorar seu desempenho. Em uma central de telemarketing, Garry Latham e Ronald Piccolo testaram uma intervenção de baixo custo com os funcionários, dando a eles fotografias para olharem antes de falar com os clientes.33 Uma foto era de três vendedores sorridentes durante um telefonema (desempenho relevante), outra era de uma mulher levantando os braços na linha de chegada de uma corrida (desempenho irrelevante) e, no terceiro caso, os funcionários olharam para uma foto do prédio em que trabalhavam. Os funcionários que olharam para as fotos de desempenhos vitoriosos apresentaram um aumento de 58% de chamadas bem-sucedidas, e os que olharam para a foto do prédio não apresentaram nenhum aumento.

Mas essa não é a melhor parte. Veja só: os funcionários que olharam para a foto do vendedor sorridente conseguiram 85% a mais de dinheiro do que os que olharam para a foto do prédio! Quando lhes perguntaram como tinham melhorado tanto seu desempenho, nenhum deles mencionou a foto inspiradora em seu cubículo. O que você acha melhor: gastar um dinheirinho numa foto emoldurada, ou gastar um dinheirão em workshops para melhorar o ânimo, a motivação e o desempenho dos funcionários? Nesse estudo, os pesquisadores constataram também que imprimir um melhor desempenho no inconsciente tem um impacto que não dura somente minutos ou horas, mas permanece por uma semana inteira de trabalho.

Agora, vejamos problemas sociais maiores. Tentar convencer as pessoas a não usar estereótipos sobre idosos, deficientes, gays ou de uma raça diferente tem o efeito contrário, tornando mais fácil evocar o estereótipo e, portanto, usá-lo. Na mesma linha, quando fumantes veem anúncios contra cigarros, acabam fumando mais.34 Em vista disso, pesquisadores reuniram um grupo de adultos brancos que admitiam ter preconceito racial e não gostavam de ter contato com negros, a fim de saber se essa opinião podia ser recondicionada sem tentar convencer os sujeitos de que preconceito e racismo são indesejáveis.

Os pesquisadores colocaram os sujeitos diante de uma tela de computador contendo imagens e palavras positivas sobre norte-americanos negros (uma criança negra dividindo o lanche com um coleguinha esfomeado), e instruídos a se “aproximar dos negros” movendo um joystick na direção deles. Quando apareciam imagens e palavras sobre norte-americanos brancos, deveriam mover o joystick na direção oposta a eles.35 A ideia era que associar repetidamente imagens positivas sutis de pessoas negras à motivação para se aproximar e apreciá-las levasse a rever o hábito mindless de ver pessoas negras como inimigas a serem evitadas. Os pesquisadores constataram que os adultos brancos treinados para associar negros a um comportamento de aproximação tiveram um decréscimo de 46,5% de crenças preconceituosas em comparação com os que não receberam o treinamento. Mas essa reinstalação cerebral influencia o comportamento de um branco com um desconhecido negro? A resposta é um surpreendente sim. Após o treinamento de associação mindless de rostos negros com os movimentos de aproximação via joystick, numa conversa de “apresentação”, esses brancos colocaram a cadeira seis vezes mais perto de um desconhecido negro (um ator que já estava sentado quando os participantes entraram). Vejam só, o cérebro é um órgão muito interessante!

Quem já trabalha no sentido de criar maior apreciação da diversidade não precisa ser lembrado de que as pessoas que não se parecem conosco, ou que não têm os mesmos valores, podem oferecer mais oportunidades de aproximação que de evitação. Mas há um fato importante: todos nós temos um “grupo”, um círculo de pessoas cuja mentalidade é parecida com a nossa e, por um efeito de espelho, consideramos mais atraentes do que o resto da humanidade. Sejam religiosos versus ateus, vegetarianos versus carnívoros, feministas versus fãs de pornografia, nerds versus atletas, todos têm sua tendenciosidade, algumas reconhecidas, e muitas outras ocultas. Pesquisas recentes nos oferecem alguns meios de mudar essas tendenciosidades. Sabemos agora que, com movimentos repetidos, podemos remodelar o cérebro, mudando a mente para melhor. O treinamento mindless pode ser acrescentado à lista de estratégias para aumentar o sucesso e o bem-estar.

Utilizando o Mindless

Apresentamos um contraste entre a grande divulgação científica e pública de que mindfulness é melhor que mindlessness. Ao compreender que o pensamento mindless reforça o êxito, você terá uma vantagem sobre quem está sempre pronto a acionar o estado mindful. Ainda que você queira, é fisicamente impossível estar mindful o tempo todo. Para capitalizar o pensamento inconsciente, descrevemos os pontos fortes de mindlessness em diversas áreas da vida, desde alcançar metas, confiar nas pessoas e ter mais criatividade, até lidar com uma pressão sufocante, com os preconceitos e tomar decisões complexas.

Em certas situações o pensamento mindless nos capacita a ser mais objetivos ou mais neutros. Você pode estar resistindo a aceitar essa afirmação. Afinal, acredita-se intuitivamente que um julgamento instantâneo pode ser muito bom em decisões “sem importância”, mas decisões complexas exigem intensidade e concentração nas deliberações. Estamos aqui para lhe dizer que a eficácia é frequentemente prejudicada pela crença na superioridade da mindfulness.

LEMBRETES

  1. Mindfulness pode ter vantagens, mas nossa predisposição natural é para mindlessness.
  2. O pensamento automático ajuda a conservar os recursos mentais.
  3. A redução da atividade mental pode gerar uma forma produtiva de desinibição.
  4. O processamento mindless frequentemente conduz a um desempenho superior e a melhores decisões, principalmente em situações delicadas.
  5. Intervenções subliminares podem nos impulsionar na direção de um objetivo.
  6. Tentativas de recusar mindlessness estão fadadas ao fracasso.

Reconhecer o poder de mindlessness é, por si só, uma intervenção. E as pessoas podem aprender a se beneficiar desse recurso tão menosprezado. Aqui vão mais alguns conselhos para utilizar mindlessness:

  1. Estabeleça um prazo ridiculamente curto - dez segundos - para tomar uma decisão que o deixou alguns minutos paralisado, sem saber o que fazer. Isso força uma decisão mindless. Há sempre um motivo para deixar de fazer uma viagem. Há sempre um motivo para comprar sempre o mesmo presunto e queijo no supermercado. Tire dez segundos, clique “enviar”, ponha a compra no carrinho ou vá embora sem gastar mais energia na decisão.
  2. Use dicas ou sinais que representem seus objetivos. Você quer ser calmo e moderado numa situação ou ser franco e dizer tudo o que está sentindo? Quer ter grandes aspirações e está disposto a correr riscos para alcançar a meta ou é aves­so a riscos para ter certeza de não cometer erros? Você po­de colar palavras e imagens na sua sala ou na escrivaninha, apontando para determinadas metas e estilos motivacionais.
  3. Reserve tempo para deixar a mente vagar. Mindlessness é um recurso estratégico intenso, e há motivos para não sermos dotados exclusivamente desse equipamento mental. Quan­do a mente vagueia, nossa atividade cerebral é quase a mes­ma de quando estamos descansando. As idéias colidem, e a criatividade aparece por acaso. As empresas e o ambiente doméstico podem ser organizados de modo a estimular ati­vidades mindless estratégicas. Essa é uma das muitas razões para que os exercícios físicos e as brincadeiras na hora do recreio sejam as últimas atividades a serem excluídas dos programas pedagógicos.
  4. Determine regras para usar a intuição. Quando você estiver diante de uma opção simples, é melhor usar um método lógico e deliberado. Quando precisar tomar uma decisão complicada, terá um resultado melhor se, depois de passar algum tempo analisando as informações, você se permitir um período de incubação, fazendo alguma outra coisa (“dor­mir sobre o assunto”) e depois mudar para o modo mindless, a intuição.

Em vez de eleger um vencedor entre os dois modos de pensamento, mindlessness e mindfulness, defendemos os méritos relativos de ambos. Se você retirar metade do pensamento humano, metade da consciência, poderá criar um espaço maior para o sucesso e o bem-estar.

Psicologia - Psicologia Cognitiva
4/11/2022 2:53:07 PM | Por Danny Penman, Mark Williams
Despertando a atenção plena

Imagine-se no topo de uma montanha, contemplando lá do alto a pai­sagem urbana e cinzenta sob a chuva. A cidade parece fria e inóspita. Os prédios são velhos e desgastados. As avenidas estão engarrafadas e as pessoas caminham infelizes e mal-humoradas. Então algo milagroso acontece: as nuvens se dissipam e o sol começa a brilhar. Num instante, a paisagem muda. As janelas dos prédios ficam douradas. O concreto cinza muda para um bronze lustroso. As ruas parecem reluzentes e limpas. Um arco-íris surge. O rio lodoso se transforma numa serpente exótica que corta as ruas. Por um momento, tudo fica em suspenso: sua respiração, seu coração, sua mente, os pássaros no céu, o tráfego nas ruas, o próprio tempo. Tudo parece pausar, absorver a transformação.

Essas mudanças de perspectiva têm um efeito dramático - não apenas no que você vê, mas também no que pensa e sente e na maneira como se relaciona com o mundo. Elas podem alterar sua visão da vida de forma radical num piscar de olhos. Mas o que é notável nessa situação é que, de fato, pouca coisa muda: a cena permanece exatamente a mesma, mas quando o sol aparece você vê o mundo sob uma luz diferente. Só isso.

Observar sua vida sob uma luz diferente também pode transformar seus sentimentos. Lembre-se de uma época em que você estava se pre­parando para as férias. Havia coisas de mais por fazer e tempo de menos para dar conta de tudo. Você chegou tarde em casa depois de passar o dia tentando deixar o trabalho em ordem antes de sair para seus dias de folga. Você se sentia como um hamster preso numa roda que não para­va de girar. Enquanto arrumava as malas, estava tão cansado que teve dificuldades de selecionar o que levar. Não conseguiu dormir direito porque sua mente continuava revivendo as atividades daquele dia. Na manhã seguinte, você acordou, pôs a bagagem no carro, trancou a casa e partiu... E acabou.

Pouco depois você estava deitado à beira da praia, relaxando e con­versando com os amigos. O trabalho de repente ficou a milhares de qui­lômetros de distância e você mal conseguia se lembrar dos problemas relacionados a ele. Você se sentia revigorado porque sua vida simples­mente mudara de marcha. Sua rotina estressante continuava existindo, é claro, mas você agora a estava vendo de um ponto de vista diferente.

O tempo também pode alterar profundamente sua perspectiva. Pense na última vez que você teve uma discussão com um colega ou um estranho - talvez um atendente de telemarketing. Você ficou uma fera. Passou horas pensando em todas as coisas inteligentes que pode­ria ou deveria ter dito para derrubar seu oponente. Os efeitos da dis­cussão arruinaram seu dia. Porém, poucas semanas depois, o episódio já não o afeta mais. Na verdade, você nem se lembra dele. O evento continua tendo ocorrido, mas você pensa nele de um ponto diferente no tempo.

Mudar sua perspectiva pode transformar sua experiência de vida, como mostram os exemplos. Mas eles também evidenciam um proble­ma fundamental: todos ocorreram porque algo fora de você havia mu­dado - o sol surgiu, você saiu de férias, o tempo passou. Acontece que, se você depender somente da mudança de circunstâncias externas para se sentir feliz e energizado, terá de esperar muito tempo. E enquanto você espera o sol aparecer ou as férias chegarem, sua vida passa despercebida.

Mas as coisas não precisam ser assim.

É fácil ficar preso num ciclo de sofrimento e aflição quando você tenta eliminar seus sentimentos ou se  emaranha num excesso de análises. Os sentimentos negativos persistem quando o modo Atuante da mente se oferece para ajudar, mas em vez disso acaba aumentando as dificuldades que você estava tentando superar.

Mas existe uma alternativa. Nossa mente tem outra maneira de se relacionar com o mundo: o modo Existente. Assemelha-se a uma mu­dança de perspectiva, embora vá bem além disso. Ela nos permite ver como a mente tende a distorcer a “realidade” e nos ajuda a eliminar o hábito de pensar, analisar e julgar demais. Com ela, podemos experi­mentar o mundo de forma direta, vendo qualquer dificuldade de um novo ângulo e enfrentando os obstáculos de maneira bem diferente. Por causa dela, somos capazes de mudar nossa paisagem interna (ou paisa­gem mental, se preferir) independentemente do que estiver ocorrendo a nossa volta. Deixamos de depender das circunstâncias externas para encontrar a felicidade, o contentamento e o equilíbrio. Voltamos a ter o controle de nossa própria vida.

Se o modo Atuante é uma armadilha, o modo Existente é a liberdade.

Ao longo das eras, as pessoas aprenderam a cultivar essa forma de ser, e qualquer um de nós é capaz de fazer o mesmo. A meditação da atenção plena é a porta pela qual podemos acessar o modo Existente. E, com um pouco de prática, poderemos abrir essa porta sempre que precisarmos.

A atenção plena surge espontaneamente do modo Existente quando aprendemos a prestar atenção deliberada, no momento presente e sem julgamento, nas coisas como de fato são.

Na atenção plena, começamos a ver o mundo como ele é, não como esperamos que seja, como queremos que seja ou como tememos que se torne.

Essas idéias podem soar um pouco nebulosas. Pela própria natureza, elas precisam ser experimentadas para serem compreendidas da manei­ra correta. Assim, para facilitar o entendimento, vou explicar a seguir ponto a ponto as diferenças entre os modos Atuante e Existente. Embora algumas das definições talvez não fiquem muito claras no início, os bene­fícios da prática da atenção plena são inquestionáveis. Na verdade, é até possível verificar os benefícios de longo prazo se enraizando no cérebro usando algumas das tecnologias de imagens mais avançadas do mundo.

Ao ler as páginas seguintes, é importante que você tenha em mente que o modo Atuante não é um inimigo a ser derrotado. Com frequência, é até um aliado. Ele só se torna um “problema” quando se oferece para uma tarefa que é incapaz de realizar, como “solucionar” uma emoção preocupante. Quando isso acontece, vale a pena mudar a marcha para o modo Existente.

É exatamente isto que a atenção plena proporciona: a capacidade de mudar de marcha quando precisamos, em vez de ficar presos sempre na mesma.

As sete características dos modos atuante e existente

1. Piloto automático X escolha consciente

O modo Atuante é muito eficiente em automatizar nossa vida por meio dos hábitos, mas esta é uma das características que menos perce­bemos. Sem a capacidade da mente de aprender com a repetição, ainda estaríamos tentando lembrar como amarrar o sapato - algo que hoje fazemos automaticamente. O lado ruim disso é que, quando cedemos demais ao piloto automático, podemos acabar pensando, trabalhando, comendo, caminhando ou dirigindo sem uma consciência clara do que estamos fazendo. O maior perigo é que grande parte da nossa vida passe assim, sem que de fato estejamos vivendo.

A atenção plena nos traz de volta à consciência: um local de escolha e intenção.

O modo Existente - ou “atento” - nos permite voltar a ter total consciência de nossa vida. Proporciona a capacidade de nos conec­tarmos com nós mesmos de tempos em tempos para que possamos fazer escolhas intencionais. A medi­tação da atenção plena nos leva a gastar menos tempo para realizar as coisas. É simples: quando se torna mais atento, suas intenções e ações ficam alinhadas, e você deixa de ser desviado toda hora do rumo pelo piloto automático. Aprende a parar de perder tempo à toa com sua velha maneira de pensar e agir, que se provou inútil. Além disso, diminui sua tendência a lutar demais por objetivos dos quais é melhor abrir mão. Você se torna plenamente vivo e consciente de novo.


2. Analisar X sentir

O modo Atuante precisa pensar. Ele analisa, recorda, planeja e compara. Esse é seu papel, e quase todo mundo se acha bom nisso. Passamos grande parte do tempo perdidos, desligados, sem notar o que se passa a nossa volta. A correria do mundo nos absorve de tal forma que destrói nossa percepção do agora, forçando-nos a viver mais no mundo dos nossos pensamentos do que no mundo real. E, como vimos no capítulo anterior, os pensamentos podem facilmente ser desviados para uma direção peri­gosa. Isso nem sempre ocorre, mas é um risco constante.

A atenção plena é uma forma diferente de experimentar o mundo. Não é como pegar um caminho novo; estar plenamente atento é entrar em contato com seus sentidos, de modo que possa ver, ouvir, tocar, cheirar e degustar as coisas que você já conhece como se fosse a primeira vez. Você se torna curioso de novo. Esse contato sensorial direto com o mundo pode parecer trivial de início. No entanto, quando você começa a sentir os momentos da vida comum, descobre algo fora do comum. Você cultiva uma sensação intuitiva do que está ocorrendo a sua volta, o que aumenta sua capacidade de observar as pessoas e a vida de uma nova maneira. Eis a essência da atenção plena: acordar para o que está acontecendo no mundo e dentro de você, momento a momento.

3. Lutar X aceitar

O modo Atuante envolve julgar e comparar o mundo “real” com o mundo que idealizamos em nossos sonhos e pensamentos. Ele foca a atenção na diferença entre os dois, o que acaba gerando uma insatisfa­ção permanente.

O modo Existente, por outro lado, nos convida a suspender o jul­gamento temporariamente. Significa ficar de lado por um momento e observar o mundo e a vida se desenrolando, permitindo que as coisas sejam como são. Ao analisar um problema ou uma situação sem precon­ceitos, não somos mais forçados a chegar a uma conclusão preconcebi­da. Desse modo, não precisamos reduzir nossa criatividade.

Aceitação não é o mesmo que resignação. Aceitar é reconhecer que a experiência existe e, em vez de deixar que ela controle sua vida, observá-la compassivamente, sem julgá-la, criticá-la ou negá-la. A aceitação pro­movida pela atenção plena permite que você impeça que uma espiral ne­gativa comece, ou, se já começou, reduza seu ímpeto. Ela nos concede a liberdade de escolher e, no processo, nos liberta da infelicidade, do medo, da ansiedade e da exaustão. Com isso, adquirimos um controle maior sobre a nossa vida. O mais importante é que nos permite lidar com os problemas da forma mais eficaz possível e no momento mais apropriado.

4. Ver os pensamentos como reais X tratá-los como eventos mentais

No modo Atuante, a mente usa as próprias criações, pensamentos e imagens como matéria-prima. As idéias são a sua moeda e adquirem valor próprio. Você pode começar a confundi-las com a realidade. Na  maioria das vezes, isso faz sentido. Se você saiu para visitar um amigo, precisa ter em mente seu destino. A mente planejadora, ativa, racional levará você até lá. Não faz sentido duvidar da verdade de seu pensa­mento: Vou mesmo visitar meu amigo? Em tais situações, é necessário considerar seus pensamentos como verdadeiros.

Mas isso se torna um problema quando você está estressado. Você poderia dizer a si mesmo: Vou enlouquecer se isso continuar. Eu deve­ria fazer melhor do que isso. Você pode considerar esses pensamentos verdadeiros também. Seu astral despenca quando sua mente reage de forma rude: Sou fraco, não presto, não sirvo para nada. Assim, você se esforça cada vez mais, ignorando as mensagens de seu corpo castigado e o conselho de seus amigos. Os pensamentos deixaram de ser seus servos e se tornaram seu senhor - um senhor rígido e implacável.

A atenção plena nos ensina que pensamentos não passam de pensa­mentos. São eventos criados pela mente. Costumam ser valiosos, mas não são “você” ou “a realidade”. São uma narração interna sobre você e seu mundo. A simples compreensão desse fato o liberta do excesso de preocupação, elucubração e ruminação, o que lhe permite enxergar um caminho claro pela vida de novo.

5. Evitar X aproximar-se

O modo Atuante resolve problemas não apenas mantendo na lem­brança seus objetivos e destinos, mas também lembrando “antiobjetivos” e lugares aonde você não quer ir. Isso faz sentido quando, por exemplo, você vai de carro do ponto A ao ponto B, porque convém saber quais partes da cidade você deve evitar. No entanto, esse pro­cesso se torna um problema quando se trata de estados mentais dos quais você gostaria de fugir. Por exemplo, se tentar resolver o proble­ma do cansaço e do estresse, você manterá na mente os “lugares que não deseja visitar”, como a exaustão, o esgotamento e o colapso. Então, além de se sentir cansado e estressado, você começará a invocar novos medos, aumentando sua ansiedade e gerando ainda mais estresse. O modo Atuante, usado no contexto errado, conduz você passo a passo ao esgotamento e à exaustão.

O modo Existente, por outro lado, convida você a se “aproximar” das coisas que sente vontade de evitar. Instiga-o a se interessar por seus estados mentais mais difíceis. A atenção plena não diz “não se preocupe” ou “não fique triste”: ela reconhece o medo, a tristeza, a fadiga e a exaustão e o encoraja a se voltar para aquelas emoções que ameaçam engoli-lo. Essa abordagem compassiva dissipa pouco a pouco o poder dos sentimentos negativos.

6. Viagem no tempo mental X permanecer no momento presente

Sua memória e sua capacidade de planejar o futuro são cruciais para o bom andamento da vida diária, mas elas sofrem distorções por causa de seu estado de espírito. Quando você está sob estresse, tende a se lembrar somente das coisas ruins, traumáticas, e a ter dificuldade de se lembrar das coisas boas, prazerosas. Algo semelhante ocorre quan­do você pensa no futuro: quando se sente infeliz, acha quase impossível olhar para a frente com otimismo. No momento em que esses sentimentos percorreram sua mente consciente, você deixa de perceber que não passam de memórias do passado ou de planos para o futuro. Você se perde na viagem no tempo mental.

Nós revivemos eventos passados e voltamos a sentir a dor; nós antevemos desastres futuros e sentimos seu impacto com antecedência.

A meditação treina a mente para que você conscientemente “veja” seus pensamentos quando ocorrerem, para que possa viver sua vida conforme ela se desenrola no presente. Isso não significa que você fica aprisionado no agora. Ainda consegue se lembrar do passado e planejar o futuro, mas o modo Existente permite que você os veja como são: a memória como memória e o planejamento como planejamento. Ter essa clareza evita que você seja escravo da viagem no tempo mental. Você consegue impedir a dor de reviver o passado e de se preocupar com o futuro.

7. Atividades exaustivas X tarefas revigorantes

Quando você está preso no modo Atuante, não é apenas o piloto au­tomático que o impele: você tende a se envolver em projetos pessoais e  profissionais importantes, e em tarefas exaustivas como cuidar da casa, dos filhos, dos pais idosos. Essas atividades costumam ser válidas, mas por demandarem tanto tempo é fácil concentrar-se nelas e excluir todo o resto, inclusive sua saúde e seu bem-estar. De início, você pode tentar convencer-se de que tudo isso é temporário e de que você está disposto a abrir mão dos hobbies e passatempos que nutrem sua alma. Mas desistir dessas coisas pode esgotar seus recursos internos aos poucos e levá-lo a se sentir vazio, apático e exausto.

O modo Existente restaura o equilíbrio, ajudando-o a identificar as atividades que o revigoram e aquelas que o esgotam. Ele o faz perceber que necessita de tempo para renovar sua alma e proporciona o espaço e a coragem para tal. Também o ensina a lidar com as inevitáveis tarefas do dia a dia que drenam a energia de sua vida.

Mudança consciente de marcha

A meditação da atenção plena ensina a sentir as sete dimensões de­ lineadas anteriormente e, com isso, ajuda a reconhecer em que modo sua mente está operando. Ela age como um alarme suave que avisa, por exemplo, quando você está analisando demais uma situação e lembra que existe uma alternativa: você ainda tem opções, por mais infeliz ou estressado que esteja. Ou seja, se sente que está emaranhado no excesso de análises e críticas, a atenção plena pode torná-lo mais aberto e fazê-lo aceitar a dificuldade com receptividade e curiosidade.

Agora podemos lhe revelar um segredo: se você mudar ao longo de qualquer uma dessas dimensões, as outras mudarão também. Por exem­plo, durante o programa de atenção plena, você pode praticar a recepti­vidade e se tornará menos crítico. Você pode praticar a permanência no presente e passará a interpretar seus pensamentos de forma menos literal. Se olhar para si mesmo com generosidade, também terá mais empatia pelos outros. E, ao fazer todas essas coisas, uma sensação de entusiasmo, energia e equilíbrio surgirá como uma fonte de água límpida há muito esquecida.

Embora as práticas ocupem apenas vinte a trinta minutos de “tempo de relógio” a cada dia, os resultados podem ter um impacto em toda a sua vida. Você logo perceberá que, embora certo grau de comparação e julgamento seja necessário, nossa civilização dá valor excessivo a essas coisas. Muitas escolhas que fazemos no dia a dia são desnecessárias. Elas são impelidas por seu fluxo de pensamentos. Você não precisa se comparar aos outros. Não precisa comparar seu pa­drão de vida atual com uma visão fictícia de futuro ou uma lembrança romantizada do passado. Não precisa ficar acordado à noite avaliando o impacto que um comentário casual, feito durante uma reunião de tra­balho, causará em seu emprego. Apenas aceite a vida como ela é, e você se sentirá mais realizado e livre de preocupações. E quando precisar to­mar alguma atitude, a decisão mais sábia provavelmente surgirá em sua mente no momento em que você não estiver pensando no assunto.

Precisamos enfatizar outra vez que aceitação atenta não é resignação. Não é aceitar o inaceitável. Nem é uma desculpa para ser preguiçoso e não fazer nada com sua vida, seu tempo, seus talentos e seus dons inatos. (O trabalho significativo, seja remunerado ou não, é uma forma segura de promover a felicidade.) A atenção plena é uma “recuperação dos sentidos”, uma consciência que começa a vir à tona espontaneamen­te quando você reserva tempo para praticá-la. Ela permite que você ex­perimente o mundo pelos sentidos - com calma e sem espírito crítico. Proporciona uma grande sensação de perspectiva, que o ajuda a sentir o que é importante ou não.

No longo prazo, a atenção plena o encoraja a tratar a si mesmo e aos outros com compaixão. Isso o liberta da dor e da preocupação, e em seu lugar surge uma sensação de felicidade que se propaga à vida diária. Não é o tipo de felicidade que se dissipa à medida que você se torna imune às alegrias. Pelo contrário, é um estado permanente de contentamento que invade sua rotina.

Um dos aspectos mais espantosos da meditação da atenção plena é que você consegue ver seus efeitos positivos alterando o funcionamen­to cerebral. Avanços científicos recentes nos permitem ver que as áreas do cérebro associadas às emoções positivas - como felicidade, empatia e compaixão - se tornam mais fortes e ativas quando as pessoas meditam. As novas tecnologias de imagem conseguem mapear redes críticas do cérebro sendo ativadas, quase como se estivessem brilhando e vibrando com uma vida renovada. Com essa reenergização promovida pela me­ditação, a infelicidade, a ansiedade e o estresse começam a se dissolver, deixando uma sensação profunda de revigoramento. Mas você não pre­cisa passar anos meditando para constatar esses benefícios: cada minuto conta.

Pesquisas mostraram que já é possível sentir seus efeitos se você se dedicar à prática diária por um período de oito semanas.

Durante muitos anos acreditou-se que todos temos uma espécie de “termostato emocional”, que determina nosso grau de felicidade na vida. Presumivelmente, algumas pessoas teriam um temperamento feliz, en­quanto outras teriam um temperamento infeliz. Embora grandes acon­tecimentos, como a morte de um ente querido ou ganhar na loteria, possam alterar de forma significativa o nosso estado de humor, às vezes por semanas ou meses a fio, sempre se supôs que havia um ponto de referência ao qual retornaríamos. Esse ponto de referência emocional estaria codificado em nossos genes ou seria fixado na infância. Em ou­tras palavras: algumas pessoas nasciam felizes e outras não.

Anos atrás, porém, esse pressuposto foi abalado por Richard David­son, da Universidade de Wisconsin, e Jon Kabat-Zinn, da Faculdade de Medicina da Universidade de Massachusetts. Eles descobriram que a prática da atenção plena permitia às pessoas escaparem da atração gravitacional de seu ponto de referência emocional. O trabalho deles nos ofereceu a possibilidade extraordinária de alterar permanentemente nosso nível de felicidade.

Essa descoberta tem suas raízes no trabalho do Dr. Davidson sobre a indexação (ou mensuração) da felicidade de uma pessoa por meio do exame da atividade elétrica em diferentes partes do cérebro, usando sensores no couro cabeludo ou por meio de ressonância magnética. Ele descobriu que quando as pessoas estão emocionalmente perturba­das - zangadas, ansiosas ou deprimidas -, o córtex pré-frontal direito se ilumina mais do que a parte equivalente do cérebro situada à esquerda. Quando as pessoas estão num astral positivo - contentes, entusiasma­das, radiantes -, o córtex pré-frontal esquerdo se ilumina mais do que o direito. Essa pesquisa levou o Dr. Davidson a conceber um “índice de humor” baseado na relação entre a atividade elétrica nos cortices pré-frontais esquerdo e direito. Essa relação consegue prever seu estado de ânimo diário com grande precisão. É como dar uma espiada no termos­tato emocional - se a relação tende para a esquerda, é provável que você esteja feliz, contente e energizado. Esse é o sistema da “abordagem”. Se a relação tende para a direita, a probabilidade é de que você esteja mais sombrio, desanimado e sem energia. É o sistema da “fuga”.

Davidson e Kabat-Zinn decidiram estender o trabalho e examinar os efeitos da atenção plena nos termostatos emocionais de um grupo de trabalhadores de biotecnologia. Os voluntários praticaram a meditação da atenção plena por oito semanas. Então algo incrível aconteceu: eles não apenas ficaram menos ansiosos, mais contentes, mais energizados e mais envolvidos com seu trabalho, como também o índice de ativação do cérebro deles passou a tender para a esquerda. Surpreendentemente, o sistema da abordagem continuou operando mesmo quando eles fo­ram expostos a músicas melancólicas e a lembranças do passado que os deixavam tristes. A tristeza gerada nesses momentos deixou de ser vista como um inimigo e passou a ser encarada como algo amigável, passível de ser administrado. Ficou claro não só que a prática da atenção plena aumenta os níveis de felicidade (e reduz o estresse), como também que essa mudança se reflete na forma como o cérebro funciona. Isso sugere que a atenção plena tem efeitos positivos que criam raízes profundas no cérebro.

Outro benefício inesperado foi que o sistema imunológico dos vo­luntários se fortaleceu. Os pesquisadores ministraram uma injeção com o vírus da gripe nos participantes e depois mediram a concentração de anticorpos específicos que haviam sido produzidos por cada um. Aque­les cujo cérebro mostrava maior tendência ao sistema da abordagem tiveram o sistema de defesa mais estimulado.

Mas um trabalho ainda mais interessante estava por vir. A Dra. Sa­rah Lazar, do Hospital Geral de Massachusetts, descobriu que quando as pessoas continuam meditando por vários anos, essas mudanças po­sitivas alteram a estrutura física do cérebro. O termostato emocional é reiniciado - para melhor. Isso significa que, com o tempo, você terá mais tendência a se sentir feliz em vez de triste, despreocupado em vez de agressivo, energizado em vez de cansado e apático. Essa mudança nos circuitos cerebrais é mais pronunciada numa parte da superfície do cérebro conhecida como insula, que controla muitas das características centrais à nossa humanidade.

Numerosos testes clínicos mostram que esses efeitos positivos sobre o cérebro se traduzem em benefícios para a felicidade, o bem-estar e a saúde. Veja alguns exemplos a seguir.

Atenção plena e Reisiliência

Descobriu-se que a atenção plena aumenta a resiliência - ou seja, a capacidade de resistir aos golpes e reveses da vida - num grau conside­rável. Essa capacidade de resistência varia muito de pessoa para pessoa. Algumas se saem bem em desafios estressantes que intimidariam mui­tas outras, como bater altas metas de desempenho no trabalho, acampar no Polo Sul ou cuidar de três filhos, da casa e do emprego.

O que faz com que pessoas “resistentes” sejam capazes de enfrentar as adversidades enquanto as outras se desesperam diante delas? A Dra. Su­zanne Kobasa, da City University de Nova York, identificou três traços psicológicos envolvidos nesse processo: controle, compromisso e desa­fio. Outro psicólogo eminente. Dr. Aaron Antonovsky, também tentou definir os principais aspectos psicológicos que permitem que algumas pessoas suportem uma tensão extrema, enquanto outras não. Ele con­centrou seus estudos em sobreviventes do Holocausto e encontrou três traços que se combinam para gerar uma sensação de coerência: inteligibilidade, maneabilidade e significabilidade. Assim, as pessoas “fortes” acreditam que os acontecimentos têm um significado, que são capazes de manejar sua vida e que a situação é compreensível, ainda que pareça caótica e descontrolada.

De certa forma, todos os traços identificados por Kobasa e Anto­novsky definem nosso grau de resiliência. Em termos gerais, quanto mais forte for nossa tendência a essas características, maior será nossa capacidade de enfrentar as provações e adversidades da vida.

A equipe de Jon Kabat-Zinn, da Faculdade de Medicina da Univer­sidade de Massachusetts, decidiu testar se a meditação conseguia me­lhorar essa tendência e, portanto, aumentar a capacidade de resiliência das pessoas. Os resultados foram claros. Em geral, os participantes não apenas se sentiram mais felizes, mais energizados e menos estressa­dos, como também ganharam mais controle sobre sua vida. Descobri­ram que ela fazia sentido e que os desafios podiam ser vistos como oportunidades, não como ameaças. Outros estudos confirmaram essas descobertas.

Mas talvez a descoberta mais intrigante sobre o assunto seja que esses traços de personalidade não são imutáveis. Eles podem ser mudados para melhor em apenas oito semanas de treinamento em atenção ple­na. Essas transformações não devem ser subestimadas, pois têm uma enorme importância para nossa vida diária. A empatia, a compaixão e a serenidade são vitais para o nosso bem-estar, mas certo grau de força e resistência também é necessário. E a prática da atenção plena pode ter um papel crucial nesses aspectos da vida.

Os estudos realizados em laboratórios e clínicas do mundo inteiro es­tão mudando a maneira como os cientistas pensam sobre a mente e vêm aumentando a confiança das pessoas nos benefícios da atenção plena. Muitos praticantes contam que a meditação aumenta a alegria diária. Isso significa que mesmo as coisas mais simples podem voltar a ser cativantes.

3/24/2022 5:41:23 PM | Por Danny Penman, Mark Williams
Pensamentos automáticos e sua influência em nossas emoções

Aparentemente, Lucy era uma representante de vendas bem-suce­dida de uma rede de lojas de roupas. Mas ela estava se sentindo paralisada. Às três da tarde, olhando pela janela do escritório, estres­sada, exausta e totalmente indisposta, ela se perguntava: "Por que não consigo fazer meu trabalho direito? Por que não consigo me concentrar? O que há de errado comigo? Estou tão cansada! Nem consigo pensar direito...". Lucy vinha se punindo com esses pensamentos autocríticos constan­temente. Mais cedo, naquele dia, ela tivera uma conversa longa e ansiosa com a professora do jardim de infância sobre sua filha, Emily, que an­dava chorando quando era deixada na escola. Depois, telefonou para o bombeiro para saber por que não tinha ido consertar a descarga que­brada em sua casa. Agora fitava uma planilha, sentindo-se sem energia e mastigando um muffin de chocolate no lugar do almoço.

As exigências e tensões na vida de Lucy estavam piorando gradual­mente nos últimos meses. O trabalho se tornava cada vez mais estressante e começava a se estender até bem depois do horário do expediente. As noites haviam se tornado insones, os dias, mais sonolentos. Seu cor­po começou a doer. A vida perdeu a alegria. Seguir em frente era uma luta. Ela já havia se sentido assim antes, mas sempre fora uma situação temporária. Jamais imaginara que aquilo poderia se tornar um aspecto permanente de sua vida.

Ela vivia se perguntando: O que aconteceu com a minha vida? Por que me sinto tão exausta? Eu deveria estar feliz. Eu costumava ser feliz. Para onde foi minha alegria?

A vida de Lucy girava em torno de excesso de trabalho, infelicidade, insatisfação e estresse. Ela fora privada de sua energia mental e física e se sentia perdida. Queria voltar a ser feliz e estar em paz consigo mesma, mas não tinha ideia de como chegar lá. Sua frustração não era grave a ponto de justificar uma ida ao médico, mas era suficiente para solapar o seu prazer de viver. Ela não vivia, apenas sobrevivia.

A história de Lucy não é um caso isolado. Ela é uma das milhões de pessoas que não estão deprimidas nem ansiosas na acepção médica - mas também não são felizes de verdade. O humor de todos nós passa por altos e baixos. Às vezes nosso estado de espírito muda de uma hora para outra, sem nem sabermos por quê: num momento estamos felizes, contentes e despreocupados, então algo sutil acontece e começamos a ficar estressados. Pensamos em nossas dificuldades, em todas as coisas que precisamos fazer, na falta de tempo para resolver tudo. O ritmo das exigências é cada vez mais implacável. Nesse estado, ficamos cansados o tempo todo, de forma que nem uma boa noite de sono nos revigora. E nos perguntamos: Como isso foi acontecer? Por que ficamos assim? Talvez não tenha havido nenhuma grande mudança em nossa vida: não perdemos um amigo, não nos endividamos de forma descontrolada. Nada mudou, mas de alguma forma a alegria desapareceu, sendo subs­tituída por uma espécie de aflição generalizada.

Na maior parte do tempo, as pessoas conseguem escapar dessa espiral descendente. Esses períodos difíceis costumam passar. No entanto, às vezes podem perdurar e nos levar para o fundo do poço. No caso de Lucy, a tristeza e a frustração duraram meses, sem qualquer razão apa­rente. Nas situações mais graves, a pessoa pode ser acometida por uma crise séria de ansiedade ou de depressão clínica.

Embora períodos persistentes de aflição e exaustão geralmente pare­çam surgir do nada, existem processos ocorrendo no fundo da mente que só se tornaram conhecidos na década de 1990. E essa descoberta trouxe a percepção de que podemos nos libertar das preocupações, da infelicidade, da ansiedade, do estresse, da exaustão e até da depressão.

Se você perguntasse a Lucy como estava se sentindo naquela tarde, ela teria dito que estava “exausta” ou “tensa”. À primeira vista, essas sen­sações parecem afirmações factuais, mas se olhasse para dentro de si mesma com mais atenção, Lucy teria percebido que não havia algo es­pecífico que pudesse ser rotulado de “exaustão” ou “tensão”. Ambas as emoções eram, na verdade, feixes de pensamentos, sentimentos, sensa­ções físicas e impulsos (como o desejo de gritar ou de sair correndo da sala). As emoções são assim: uma “cor de fundo” criada quando a mente funde pensamentos, sentimentos, impulsos e sensações físicas para evo­car um tema norteador ou estado mental geral. Todos os elementos que formam as emoções interagem entre si e podem intensificar o estado de humor geral. É uma dança intricada, cheia de ligações sutis que só agora começamos a entender.

Tomemos os pensamentos como exemplo. Algumas décadas atrás, acreditava-se que os pensamentos conseguiam mudar nosso estado de espírito e nossas emoções, mas a partir dos anos 1980 descobriu-se que o contrário também pode acontecer: nosso estado de espírito pode mudar nossos pensamentos. Na prática, isso significa que mesmo os momentos passageiros de tristeza podem acabar se autoalimentando para criar pensamentos negativos, definindo a maneira como você vê e interpreta o mundo. Assim como um céu nublado pode fazê-lo se sen­tir melancólico, uma pequena irritação pode trazer à tona lembranças ruins, aprofundando ainda mais seu nervosismo. O mesmo vale para outras emoções: se você se sente estressado, esse estado pode criar ainda mais estresse. Isso também acontece com a ansiedade, o medo, a raiva, e com emoções “positivas” como amor, felicidade, compaixão e empatia.

Mas não são apenas pensamentos e estados de ânimo que se alimen­tam mutuamente e destroem o bem-estar - o corpo também se envolve nesse processo. Isso acontece porque a mente não existe de forma isolada. Ela é uma parte fundamental do corpo, e ambos compartilham informa­ções emocionais entre si o tempo todo. Na verdade, grande parte do que o corpo sente é influenciado pelos pensamentos e pelas emoções, e tudo o que pensamos é influenciado pelo que está ocorrendo no corpo. Pesquisas recentes mostram que nossa perspectiva de vida pode ser alterada por mínimas mudanças corporais: atitudes sutis como fechar a cara, sorrir ou corrigir a postura podem ter um impacto enorme em nosso estado de espírito e em nossos pensamentos.

Para compreender melhor o poder da interação entre o corpo e o es­tado de humor, os psicólogos Fritz Strack, Leonard Martin e Sabine Stepper1 pediram a um grupo de pessoas que assistisse a desenhos ani­mados e depois avaliasse quão engraçados eram. Alguns voluntários tiveram que colocar um lápis entre os lábios, sendo forçados a franzi­dos e fazer uma cara triste. Outros assistiram aos desenhos com o lápis entre os dentes, simulando um sorriso. Os resultados foram impres­sionantes: aqueles forçados a sorrir acharam os desenhos bem mais engraçados do que aqueles obrigados a fechar a cara. Todos sabemos que sorrir demonstra que estamos felizes, mas, convenhamos: é sur­preendente descobrir que o ato de sorrir pode ele próprio torná-lo feliz. Esse é um exemplo perfeito de como são estreitos os vínculos entre a mente e o corpo.

Sorrir também é contagioso. Quando você vê alguém sorrindo, quase inevitavelmente sorri de volta. Pense nisto: o simples ato de sorrir pode deixá-lo contente (ainda que seja um sorriso forçado). E, se você sorrir, os outros sorrirão de volta, o que reforça sua felicidade. É um círculo virtuoso.

Mas também existe um círculo vicioso, que atua na direção oposta. Ao pressentirmos uma ameaça, ficamos tensos, prontos para lutar ou fugir. Essa reação de “luta ou fuga” não é consciente: é controlada por uma das partes mais “primitivas” do cérebro e, por isso, ele pode ser um pouco simplista na maneira de interpretar o perigo. O cérebro não faz distinção entre uma ameaça externa (como um tigre) e uma interna (como uma lembrança incômoda ou uma preocupação futura), tratan­do as duas como um perigo equivalente. Quando uma ameaça é detecta­da - seja real ou imaginária -, o corpo fica tenso e se prepara para entrar em ação. Isso pode se manifestar de várias formas, como rosto franzido, frio na barriga ou tensão nos ombros. A mente lê a reação do corpo e entende que está diante de uma ameaça (lembra como uma cara amar­rada pode fazê-lo se sentir triste?), o que faz o corpo tensionar ainda mais. O círculo vicioso começou.

Na prática, isso significa que, se você está se sentindo um pouco es­tressado ou vulnerável, uma pequena mudança emocional pode acabar arruinando seu dia - ou até mesmo lançá-lo num período prolongado de insatisfação ou preocupação. Essas mudanças costumam surgir do nada, deixando-o sem energia e se perguntando por que está tão infeliz.

Oliver Burkeman, colunista do jornal The Guardian, descobriu isso sozinho e escreveu sobre como pequenas sensações corporais se retroalimentavam para lançá-lo em uma espiral emocional descendente:

Geralmente sou feliz, mas de vez em quando sou atingido por um estado de infelicidade e ansiedade que se intensifica muito rápido. Nos piores dias, sou capaz de passar horas perdido em divagações angustiantes, refletindo sobre as grandes mudanças que preciso fazer em minha vida. De repente, percebo que me esqueci de almoçar. Como um sanduíche de atum e o mau humor desapa­rece. No entanto, minha primeira reação à sensação ruim nunca é pensar que estou com fome. Aparentemente, meu cérebro prefere se chatear com reflexões sobre a falta de sentido da existência a me direcionar até a geladeira.

Como Oliver Burkeman constatou em sua própria experiência, quase sempre essas “divagações angustiantes” se desfazem rápido. Algo atrai nosso olhar e nos faz sorrir - um amigo telefona, encontramos um bom filme passando na TV, tomamos uma deliciosa xícara de chocolate quente ou decidimos ir para a cama cedo. Em geral, toda vez que somos atingidos pelos turbilhões da vida, algo de bom acontece para restabe­lecer o equilíbrio. Mas nem sempre é assim. Às vezes o peso de nossa história entra em ação e adiciona uma carga emocional extra, já que nossas lembranças têm um impacto poderoso em nossos pensamentos, sentimentos, impulsos e, em última análise, em nosso corpo.

Vamos voltar ao exemplo de Lucy. Embora se descreva como uma pessoa “ambiciosa” e “relativamente bem-sucedida”, ela tem consciên­cia de que algo fundamental está faltando em sua vida. Ela conquistou quase tudo o que queria, por isso acha estranho que não se sinta feliz, contente e em paz consigo mesma. Constantemente repete a frase “Eu deveria estar feliz”, como se dizer isso fosse suficiente para expulsar a tristeza.

Os surtos de infelicidade de Lucy começaram na adolescência. Seus pais se separaram quando ela tinha 17 anos e a casa da família precisou ser vendida, forçando seus pais a se mudarem para locais não muito adequados. Lucy surpreendeu a todos por segurar a barra. É claro que no início ficou arrasada com o divórcio, mas logo aprendeu a tirar o foco dos problemas se empenhando nos estudos. Essa foi sua tábua de salvação. Tirou boas notas, entrou na faculdade e se formou com uma qualificação satisfatória. Seu primeiro emprego foi como trainee numa loja de roupas. Ao longo dos anos, foi subindo na hierarquia da empresa, até chegar a chefe de uma pequena equipe de representantes de vendas. Aos poucos, o trabalho dominou a vida de Lucy, deixando-a cada vez mais sem tempo para si mesma. Aconteceu tão lentamente que ela mal percebeu que deixava sua vida de lado. Ocorreram coisas boas também, é claro, como o casamento com Tom e o nascimento das duas filhas. Ela adorava sua família, mas não conseguia se livrar da sensação de que apenas algumas pessoas tinham direito de viver de forma plena. Sua impressão era de estar caminhando em areia movediça.

Essa areia movediça era sua rotina, seu estresse, seus padrões de pen­samentos e seus sentimentos do passado. Embora por fora Lucy pare­cesse uma pessoa de sucesso, por dentro ela morria de medo do fracas­so. Esse medo fazia com que qualquer mau humor passageiro desenca­deasse lembranças dolorosas, enquanto seu crítico interno dizia que era vergonhoso exibir tais fraquezas. Sensações vagas de insegurança aca­bavam despertando uma sucessão de sentimentos negativos do passado que pareciam bem reais e rapidamente assumiam vida própria, ativando outra onda de emoções nocivas.

Como Lucy atestará, é raro experimentarmos a tensão ou a tristeza isoladamente - raiva, irritabilidade, amargura, ciúmes e ódio às vezes estão ligados em um novelo intricado. Esses sentimentos podem até ser dirigidos aos outros, mas na maioria das vezes são voltados para nós mesmos, ainda que não percebamos. Ao longo da vida, esses emaranha­dos emocionais podem se tornar mais associados aos pensamentos, aos sentimentos, às sensações físicas e aos comportamentos. É assim que o passado consegue ter um efeito tão difuso no presente. Se ativamos uma chave emocional, as outras são ativadas em seguida (o mesmo ocor­re com as sensações físicas, como a dor). Tudo isso pode desencadear padrões de pensamento, comportamento e sentimentos que sabemos que são nocivos, mas que simplesmente não conseguimos evitar. E que, quando combinados, são capazes de transformar qualquer contratempo em uma tempestade emocional.

Aos poucos, o acionamento repetitivo de pensamentos e humores ne­gativos começa a abrir sulcos na mente. Com o tempo, esses sulcos se tornam mais profundos, fazendo com que os pensamentos negativos, a autocrítica, a melancolia e o medo se instalem com mais facilidade e se dissipem com mais esforço. A conseqüência disso é que os períodos prolongados de fragilidade podem ser desencadeados por coisas cada vez mais banais, como uma chateação momentânea ou uma baixa de energia - tão banais que às vezes nem as reconhecemos. Com frequên­cia, os pensamentos negativos aparecem disfarçados de perguntas duras que fazemos a nós mesmos: Por que estou tão infeliz? O que está aconte­cendo comigo? Onde será que errei? Onde isso vai acabar?

Os vínculos estreitos entre os diversos aspectos da emoção, que o tem­po todo recorrem ao passado, podem explicar por que um sentimento passageiro pode ter um efeito significativo sobre o estado de humor. Às vezes esses sentimentos chegam e partem tão rápido quanto uma rajada de vento. Outras vezes, no entanto, o estresse, a fadiga e o mau humor ficam grudados como adesivos em nossa mente, e nada parece ser capaz de arrancá-los dali. A impressão que se tem é que é justamente isso que está ocorrendo: a mente é ativada para entrar em alerta máximo, mas depois não consegue ser desativada, como deveria acontecer.

Uma boa forma de ilustrar esse processo é comparar a maneira como humanos e animais reagem diante do perigo. Tente se lembrar do últi­mo documentário sobre a vida selvagem a que assistiu na TV. Deve ter aparecido um rebanho de gazelas sendo caçado por um leopardo na savana africana. Aterrorizados, os animais correram feito loucos até que o leopardo capturou um deles ou desistiu da caçada naquele dia. Uma vez passado o perigo, as gazelas voltaram a pastar tranquilamente. Algo no cérebro delas foi acionado quando avistaram o leopardo e depois desativado quando a ameaça se dissipou.

Mas a mente humana é diferente, sobretudo quando se trata de amea­ças “intangíveis” capazes de desencadear ansiedade, estresse, preocupa­ção ou irritabilidade. Quando nos preocupamos ou tememos alguma coisa - seja ela real ou imaginária - nossas reações de luta ou fuga entram em ação. Mas aí algo mais ocorre: a mente começa a percor­rer nossas lembranças em busca de algo que explique por que nos sen­timos daquele jeito. Assim, se nos sentimos tensos ou em perigo, nossa mente desenterra memórias de ocasiões passadas em que nos sentimos ameaçados e depois cria cenários do que poderá ocorrer no futuro se não conseguirmos explicar o que está acontecendo agora. O resultado é que os sinais de alerta do cérebro são ativados não apenas pelo perigo atual, mas por ameaças passadas e preocupações futuras. Tal processo se dá de forma instantânea, sem que percebamos.

Estudos recentes feitos a partir de tomografias do cérebro confirmam que pessoas que sentem dificuldade de viver o presente e têm rotinas muito agitadas possuem uma amígdala cerebral (a parte primitiva do cérebro envolvida no instinto de luta ou fuga) em “alerta máximo” o tempo todo.2 Assim, quando trazemos à tona lembranças de ameaças e perdas antigas e as juntamos ao “perigo” atual, nosso mecanismo de luta ou fuga não é desativado quando a ameaça passa. Ao contrário das gazelas, não paramos de correr.

Então, a forma como reagimos pode transformar emoções temporá­rias e não problemáticas em dores persistentes e incômodas. Em suma, a mente pode acabar agravando a situação. Isso vale para muitos outros sentimentos do dia a dia. Eis um exemplo:

Enquanto está lendo este livro, veja se consegue perceber qualquer sinal de fadiga em seu corpo. Passe um momento observando-o a fun­do. Depois que tiver se conscientizado de seu cansaço, faça a si mesmo as seguintes perguntas: Por que estou me sentindo tão exausto?O que fiz de errado? O que essa sensação revela sobre mim? O que acontecerá se eu não conseguir me livrar dessa fadiga?

Reflita sobre essas questões por um tempo. Deixe-as ecoar em sua mente. Por que estou tão cansado? O que aconteceu comigo? O que vou fazer se permanecer assim?

Como se sente agora? Provavelmente pior. Acontece com todo mun­do, porque aliado a essas perguntas existe um desejo de se livrar da fadi­ga e de descobrir suas causas e conseqüências.3 O impulso de explicar e expulsar a exaustão deixou você mais exausto.

O mesmo vale para uma série de sentimentos, como a infelicidade, a ansiedade e o estresse. Quando estamos infelizes, é natural tentarmos descobrir a razão por nos sentirmos assim e procurarmos um meio de resolver esse “problema”. Mas tensão, infelicidade ou exaustão não são problemas que possam ser resolvidos. São emoções. Refletem estados da mente e do corpo. Como tais, não podem ser resolvidas - apenas sentidas. Se você as percebeu e abandonou a tendência de explicá-las ou resolvê-las, terá mais chances de vê-las desaparecer sozinhas, como a névoa numa manhã de primavera.

Isso lhe soa estranho? Deixe-me explicar melhor.

Quando você tenta resolver o “problema” da infelicidade (ou de qual­ quer outra emoção “negativa”), mobiliza uma das ferramentas mais poderosas da mente: o pensamento crítico racional. Funciona assim: você se vê num lugar (infeliz) e sabe onde deseja estar (feliz). Sua mente analisa o hiato entre os dois polos e tenta descobrir a melhor forma de transpô-lo. Para isso, usa seu modo Atuante (assim chamado porque é eficiente para resolver problemas e realizar tarefas), que reduz progres­sivamente o hiato entre onde você está e onde deseja chegar. Ele faz isso fragmentando o problema, resolvendo cada uma das partes e depois ve­rificando se isso o ajudou a se aproximar de seu objetivo. Esse processo é instantâneo e nem nos damos conta dele. É uma forma incrivelmente poderosa de resolver problemas: é assim que nos orientamos nas cidades desconhecidas, dirigimos carros e organizamos cronogramas de trabalho frenéticos. Numa escala maior, foi como os povos antigos construí­ram pirâmides e navegaram pelo mundo em veleiros primitivos.

Parece perfeitamente natural, portanto, aplicar essa abordagem para resolver o “problema” da infelicidade. Mas, na verdade, é a pior coisa que se pode fazer, pois requer que você se concentre no hiato entre como está e como gostaria de estar. Então você faz perguntas como: O que há de errado comigo? Onde foi que errei? Por que cometo sempre os mesmos erros? Esses questionamentos, além de duros e autodestrutivos, exigem que a mente forneça indícios para explicar seu descontentamento. E a mente é de fato brilhante em fornecer tais indícios.

Imagine-se passeando num belo parque em um dia de primavera. Você está feliz, mas, por alguma razão desconhecida, uma centelha de tristeza surge em sua mente. Pode ser por causa da fome, já que você não almo­çou, ou talvez porque você tenha se lembrado sem querer de alguma coisa incômoda. Após alguns minutos, você começa a se sentir um pouco aba­tido. Assim que percebe seu desânimo, pensa: O dia está lindo. O parque é maravilhoso. Gostaria de me sentir mais contente do que estou agora.

Repita: Gostaria de me sentir mais contente.

Como se sente depois disso? Provavelmente, ainda mais triste. Você se concentrou no hiato entre como se sente e como quer se sentir. E concentrar-se no hiato o realçou. A mente vê a distância entre os dois estados como um problema a ser resolvido. Essa abordagem é desastro­sa quando se trata das emoções, devido à interligação complexa entre pensamentos, emoções e sensações físicas. Todos se alimentam mutua­mente e podem conduzir sua mente em direções perturbadoras. Em pouco tempo, você se vê sufocado pelos próprios pensamentos. Você começa a analisar demais a situação, a remoer o sentimento, a se culpar por não se sentir feliz.

Seu estado de ânimo piora. Seu corpo fica tenso, seu rosto se franze e o desânimo se instala. Algumas dores podem surgir. Essas sensações realimentam sua mente, que se sente mais ameaçada. Seu astral pode cair a tal ponto que você deixa de aproveitar o passeio no parque e não presta mais atenção na beleza do dia.

Claro que ninguém fica remoendo os problemas porque acredita que é uma forma nociva de pensar. As pessoas acreditam que, preocupando-se o suficiente com sua infelicidade, acabarão encontrando uma solu­ção para ela. Mas as pesquisas provam o oposto: na verdade, remoer pensamentos reduz nossa capacidade de solucionar problemas, e é um artifício absolutamente inútil para lidar com dificuldades emocionais.

Os sinais são claros: remoer pensamentos é o problema, não a solução.

Escapando do círculo vicioso

Não dá para deter o fluxo de lembranças infelizes, monólogos inter­nos negativos e outras formas de pensamento prejudiciais - mas você pode evitar o que acontece a seguir. Como já dissemos, você pode im­]pedir que o círculo vicioso se autoalimente e desencadeie a próxima es­piral de pensamentos negativos. E pode fazer isso experimentando um jeito novo de se relacionar consigo mesmo e com o mundo. Se você pára e reflete por um momento, a mente não apenas pensa: ela tem consciência de que está pensando. Essa forma de pura consciência permite que você veja o mundo de outra maneira, de um ponto de vista distanciado, sem sofrer a interferência de seus pensamentos, sentimentos e emoções. É como estar numa montanha alta - um ponto de observação - da qual você pode ver tudo por quilômetros a sua volta.

A pura consciência transcende o pensamento. Permite que você cale a mente tagarela e iniba seus impulsos e emoções reativas. Possibilita que você olhe para o mundo com os olhos abertos. E quando faz isso, a sensação de contentamento reaparece em sua vida.

 

12/8/2021 12:36:12 PM | Por Robert Biswas-Diener, Todd B. Kashdan
Por que é bom não estar bem

No primeiro tempo de um jogo de basquete profissional, quando Pat Riley era o treinador do Los Angeles Lakers, o time estava totalmente desconcentrado. Os jogadores ficavam olhando para as meninas da torcida, fazendo piadas, praticamente ignorando o que se passava na quadra. O único a manter a cabeça no lugar foi o astro do basquete Kareem Abdul-Jabbar. No inter­ valo, Riley simulou um ataque de raiva, que começou com gritos e culminou com uma bandeja cheia de copos de água derrubada. O único atingido foi Kareem, que ficou encharcado. Essa cena le­vou os jogadores a se sentirem culpados pelo mau comportamen­to que fez Kareem sofrer injustamente a ira do treinador. A partir daí eles se compenetraram, superaram a diferença de 24 pontos e venceram o jogo. Acontece que, desde o começo, Riley teve a in­tenção de jogar a água em Kareem, e a estratégia funcionou.

Alguém acha que o time teria jogado melhor se, no intervalo, Riley tivesse ido para o vestiário com a intenção de criar uma atmosfera de alegria, calma e contentamento? Naquele momen­to, a raiva era exatamente o que a situação exigia. Como vimos pela reação dos jogadores, as emoções negativas podem ser alta­mente motivadoras. Se você não se abrir para aceitar sentimentos negativos, poderá perder ótimas oportunidades de usar alguns dos [87] instrumentos mais úteis na vida. Se cair na tentação de procurar sempre algo positivo em que se agarrar, na esperança de eliminar, dissimular ou esconder emoções negativas, vai sair perdendo no jogo da vida. Ao evitar as emoções negativas, você estará, invo­luntariamente, sufocando a felicidade, a fortaleza de caráter, a curiosidade, a maturidade, a sabedoria e o crescimento pessoal. Se você abafar as emoções negativas, abafa as positivas também. Lembra-se dos norte-americanos deprimidos que não riram do filme cômico?

Por que o mau pode ser mais potente que o bom

Roy Baumeister e seus colegas da Universidade Estadual da Fló­rida publicaram um artigo intitulado “Bad is Stronger thatn Good” [O mau é mais forte que o bom].1 É sse título ousado sugere que os psicólogos tinham dado um jeito de medir o bom e o mau no mun­do, e o resultado foi a favor do lado mau. Na verdade, o artigo afir­ma que temos uma reação mais forte aos eventos negativos da vida do que aos eventos positivos. Tomemos apenas um exemplo: nu­ma pesquisa com adultos norte-americanos escolhidos aleato­riamente e mais ou menos como nós, constatou-se que o fato de terem passado um dia muito agradável não influenciava a quali­dade do dia seguinte. Por outro lado, um dia péssimo se refletia no dia seguinte logo ao acordar (cambaleando), no café da manhã (achando tudo horrível), indo para o trabalho (fechando todos os carros na via expressa para ganhar dois minutos). O mesmo pa­drão surge diversas vezes na pesquisa psicológica:[88]

  • O sexo bom no casamento está relacionado a cerca de 20% da diferença de satisfação marital entre marido e mulher.2 Quando o sexo não é bom, a variação sobe para 50% a 75%.
  • Perguntaram a crianças em idade escolar se algum colega de classe era um “amigo indesejável”.3 Se punham alguém na lista, justificavam dizendo que o colega não era bom nos esportes ou no dever de casa, entre outros mil defeitos. Mas na lista de “amigos desejáveis” não vinha ao caso se era atlé­tico, estudioso ou bonito.
  • As pessoas têm uma reação mais forte a cheiros desagradá­veis - franzindo o nariz por mais tempo - do que a odores agradáveis, que lhes põe um breve sorriso nos lábios.4

A equipe de Baumeister relatou um estudo abrangente e mui­to interessante que mostra que eventos, experiências, relaciona­mentos e estados psicológicos negativos têm um peso muito maior em nossa sensibilidade do que os positivos. Você pode questionar essa conclusão aparentemente pessimista, mas lembremos que a negatividade é nosso direito evolucionário inato.5 Avaliações ne­gativas são essenciais à sobrevivência (a folha amarga é também venenosa), e a maior verdade disso é o caso das emoções negativas. As emoções são como um sistema de rastreamento das experiên­cias, e fornecem um rápido sinal mental de aprovação ou desapro­vação para aceitar ou recusar uma determinada situação.

É fácil ver que um breve desentendimento com seu parceiro permanece mais na lembrança do que um doce beijo de despedida de manhã, mas e os estados desagradáveis, como a frustração e a decepção? São sentidos com maior intensidade do que seus pri­mos felizes - o entusiasmo e a satisfação? Veja isso como uma porta aberta para refletir sobre as emoções negativas. Pare um [89] momento e escreva todas as palavras que significam emoções ne­gativas que lhe vierem à mente. Depois, escreva todas as que sig­nificam emoções positivas. Provavelmente, sua primeira lista é mais longa que a segunda. Isso pode ser porque as palavras nega­tivas têm um significado mais específico do que as positivas (tente definir amor e raiva ou feliz e medo).6 Pesquisadores interessados em saber como as pessoas se lembram dos eventos emocionais monitoraram estados de espírito de adultos no dia a dia, e depois pediram que se lembrassem da frequência e intensidade de suas emoções durante as duas semanas do estudo.7

Como se pode ima­ginar, as pessoas tiveram mais propensão a se lembrar dos eventos intensos, tanto positivos como negativos. Mas é interessante notar que subestimaram a frequência das emoções positivas, e não tive­ram dificuldade em recordar os eventos negativos. Temos muito mais técnicas para reduzir, eliminar e tolerar emoções negativas do que para destacar as positivas.

Pense na última vez em que você precisou falar com um serviço de atendimento ao cliente. Talvez estivesse querendo marcar uma consulta médica e havia poucos horários disponíveis, ou tentando conseguir isenção de juros de um pagamento atrasado do cartão de crédito. Ou talvez estivesse convencendo uma atendente da companhia aérea a dar um jeitinho de lhe conseguir um lugar me­lhor no avião. Você se lembra de como se expressou? Falou num tom simpático e educado? Ou levantou a voz e falou com agressi­vidade? Supomos que você seja uma pessoa bem-educada e tenha escolhido a forma gentil. Difícil de engolir - pelo menos para a maioria de nós - é que frequentemente os arrogantes e grosseirões conseguem o que querem.

Personalidades irritadiças, embora desagradáveis, podem ser tremendamente eficientes. A agilidade psicológica que defendemos [90] aqui pode expandir seu repertório para lhe dar acesso a abor­dagens mais duras, mais diretas, e às vezes mais eficazes. Você provavelmente evita essa estratégia porque acha que ser negativo é... negativo. Pode pensar que as pessoas agressivas, hostis ou francamente ruins são idiotas, e não quer fazer parte dessa turma. A boa notícia é que há toda uma gama de negatividade - negatividade benéfica, veja bem - que nada tem a ver com idiotice.

Emoções negativas também podem ajudar a se concentrar na situação em curso. Quando você pega a furadeira para fazer um furo na parede, deve prestar atenção no local do furo e também na posição da sua mão. A ansiedade associada ao risco de erro ajuda a fazer o furo no lugar exato. (Cortar um bolo de aniversário com uma faca de plástico é uma experiência muito diferente, em que um método “também serve” de fato também serve.) Uma pesquisa de Kate Harkness, da Universidade de Queens, mostra que pessoas com propensão a estados depressivos também tendem a prestar mais atenção em detalhes.8 Isso é verdade, particularmente em se tratando de expressões faciais. Indivíduos alegres e expansivos veem os traços em geral - um nariz, dois olhos, e talvez as sobran­celhas estejam franzidas. No estudo de Harkness, os menos exu­berantes tinham olhos de águia para expressões faciais, captando o menor tremor dos lábios, o mais leve movimento dos olhos. É por isso que - como você provavelmente já terá notado -, quan­do está brigando com a pessoa amada (um evento negativo), você “lê” as mínimas mudanças na atitude dela, coisas que jamais no­taria quando tudo está bem. A questão é: se as pessoas felizes pas­sam por cima das minúcias, e se isso conduz a interações mais confortáveis, não devemos nos satisfazer com “está bom assim”? Não. Você prefere contratar um advogado alegre e bonachão, em vez de um ranzinza, que identifica as menores falhas num contra­to? Nós também não.[91]

O clima das salas de controle de tráfego aéreo tende a ser ne­gativo. Isso se deve, em parte, ao fato de os controladores terem plena consciência de sua responsabilidade pela segurança, e qual­ quer erro pode ser fatal. Na extremidade menos grave do espetro, os erros podem causar atrasos e complicações logísticas, e no ou­tro extremo o custo pode chegar a dezenas de milhões de dólares e à morte de centenas de pessoas. O trabalho exige muita atenção aos detalhes. Os pontinhos bipando na tela do radar são aeronaves, cada uma com sua identificação, altitude, velocidade e plano de voo. Emoções negativas, como ansiedade e suspeição, podem agir como um funil estreitando os olhos da mente para detalhes im­portantes. No controle de tráfego aéreo, não há lugar para “tam­bém serve”. Em consonância com o que vimos aqui, enquanto tudo funciona bem ninguém nota. As pessoas só voltam sua aten­ção para o controle aéreo quando há um desastre.

Greg Petto, controlador de tráfego aéreo em Louisville, Ken­tucky, nos contou que sua torre é responsável por 230 quilômetros quadrados de tráfego aéreo entre o chão e uma altitude de três mil metros. É um trabalho estressante, em que aviões que vão chegan­do a uma distância de cinco quilômetros um do outro ficam peri­gosamente próximos. Petto compara o radar a um dojo, nome dado a salas de treinamento de artes marciais japonesas. Os controla­dores orientam setecentos voos por dia, e o maior movimento é durante a noite, quando os jatos do correio expresso, FedEx, che­gam em grande número. Perguntamos a ele se, sabendo que os aviões da FedEx estavam transportando carga, e não passageiros, a tensão na sala de controle era menor que durante o dia.

- Para ser franco - ele respondeu -, preciso pensar que cada ponto na tela é um avião. Se eu parasse para pensar o que está se passando lá no céu, ficaria maluco. E acrescentou: - Mas é muito [92] bom alinhar todos os aviões na distância exata e no tempo exato. É muito bom mesmo. - Apesar de se orgulhar do trabalho, Petto é o primeiro a admitir que há alguma negatividade entre os pró­prios controladores. - Eles ficam malcriados ou competitivos quando a coisa aperta. A gente lida com isso implicando uns com os outros, ou indo para casa rezar, ou beber, dependendo da ten­dência cultural.

Aqui é importante fazer uma pausa para frisar que muitas pessoas cometem um erro enorme, muito comum, quando se trata de emoções negativas.

Elas separam a experiência de sentimentos negativos da expressão de sentimentos negativos. Muitas pessoas com quem conversamos aceitam rapidamente que estar mal é uma experiência psicológica válida, e até mesmo inevitável. Por outro lado, expressar frustração, ou muita tristeza, é um horror! É como se tivéssemos que ser computadores, cujos processos in­ternos estivessem escondidos e separados do que aparece na tela. Essa atitude existe em vários graus em nossa cultura; faz parte da ideia de que é mais fácil viver numa sociedade de pessoas sorri­dentes do que coexistir com gente que esbraveja e chora. Não se pode ignorar que a expressão emocional tem razões para existir. A expressão emocional é um meio importante de se comunicar com os outros. Um cenho franzido, um olhar carrancudo, avisa aos outros que se afastem porque não estamos de bom humor (e às vezes não estamos mesmo de bom humor). Um grito de medo tem tamanho efeito contagiante que quem está por perto também sente o aumento da adrenalina e olha nervosamente em torno. A expressão de sentimentos, inclusive negativos, é uma parte ne­cessária da experiência emocional humana. [93]

Se as emoções negativas são tão proveitosas, por que não gostamos delas? 

Pare um momento para pensar: quanto você pagaria para não pre­cisar repetir uma palestra em que as pessoas não riam, não sorriam e não paravam de se remexer na cadeira? Pense numa ocasião em que você infernizou uma pessoa inocente por causa de sua própria insegurança: quanto você pagaria para não repetir essa atitude vergonhosa? Do outro lado da moeda: quanto pagaria para reviver a emoção do primeiro encontro com seu/sua atual marido/esposa/parceiro/parceira/amante? Pense na melhor massagem que você teve na vida: quanto você pagaria para ter uma igualmente relaxante neste momento?

O dr. Hi Po Bobo Lau, da Universidade de Hong Kong, e sua equipe colocaram essas mesmas questões numa pesquisa.10 Imagi­ne-se no invejável cenário dos participantes dessa pesquisa. Você recebe duzentos dólares para alterar sua experiência psicológica de modo que sua vida se aproxime do ideal. Pense numa situação específica em que você se sentiu muito feliz. Quantos desses du­zentos dólares você pagaria para recriar esse sentimento? Se você já decidiu quantos dólares exatamente, vamos passar para outra emoção positiva. Calma e tranqüilidade? Animação? Muito bem. Agora vamos a emoções negativas. Pense numa situação que lhe causou muito remorso. Quantos dos duzentos dólares você paga­ria para evitar ter esse sentimento novamente? E medo? Vergonha? Estamos dizendo que determine a quantia exata para cada um dos sentimentos. E agora você já pode imaginar que, para os partici­pantes da pesquisa, evitar o sofrimento valia mais do que comprar felicidade. Vejamos a cotação dos participantes da pesquisa do dr. Lau, detalhada até os centavos de dólar: [94]

  • $44,30 por calma e tranqüilidade;
  • $62,80 por animação;
  • $79,06 por felicidade;
  • $83,27 para evitar o medo;
  • $92,80 para evitar a tristeza;
  • $99,81 para evitar a vergonha;
  • $106,26 para evitar o remorso.

Apenas um sentimento foi considerado mais valioso do que evitar o remorso: o amor. Felicidade, animação, tranqüilidade, é muito bom, mas, como criaturas sociais, queremos que alguém aceite, valorize e cuide do nosso ser interior. O amor foi cotado a 113,55 dólares. Se você, leitor, não for de Hong Kong, pode duvi­dar dessas cotações. Portanto, vamos mostrar que essas mesmas questões, colocadas para adultos do Reino Unido, obtiveram os mesmos valores de compra, em dólares: vale a pena comprar tran­qüilidade por $53,47 e animação por $60,90, mas não se compara à vontade de fugir da vergonha, cotada em $71,83, e do remorso, valendo $64,40. E nada tem mais valor que o amor, cotado em $115,16.

Esses valores em dólar dão uma ideia da motivação dos seres humanos para alterar seu mundo interno e externo. Da maior im­portância é o desejo de ser aceito. Isso é um problema porque não temos o menor controle sobre o que as pessoas vão dizer de nós. Só podemos controlar o que pensamos e como agimos. A falta de controle, o sentimento de incerteza, pode ser o estado psicológico mais desconfortável. Logo atrás vêm os medos do remorso e da vergonha. Portanto, os estados psicológicos mais valorizados es­tão centrados em como somos vistos pelos outros. Infelizmente, as [95] inquietações frequentemente dificultam a aprovação imediata. Mas essa é apenas uma das razões para nossa antipatia pelas emo­ções negativas.

Evitamos as emoções negativas não porque somos tolos a pon­to de ignorar que não devemos, mas por quatro motivos básicos, e muito intuitivos:

  1. São desagradáveis.
  2. Representam estagnação.
  3. São associadas à perda de controle pessoal.
  4. São associadas (corretamente!) a um alto custo social.

Vamos examinar melhor esses motivos fundamentais. Em pri­meiro lugar, evitamos nos sentir mal porque se sentir mal é mau. Ou seja, as emoções negativas são desagradáveis. A ideia de pas­sar uma tarde inteira com tédio, ou estresse, ou frustração, é tão sedutora quanto passar o dia inteiro fazendo depilação com cera quente. Contudo, as pessoas se enganam, não em seu desejo de evitar o desagradável, mas em subestimar sua capacidade de tole­rar a chatice das emoções negativas. Como vimos no exemplo das mulheres à espera de saber se estavam grávidas, as emoções nega­tivas são um pouco menos chatas do que a gente espera. Você já teve raiva e medo, e - assim esperamos - não está sentindo nada disso neste momento. Isso já passou, e você não está pior porque teve esses sentimentos. Você é mais capaz de lidar com emoções desagradáveis do que imagina.

Pense na última vez em que teve tédio, por exemplo. Peter Toohey, da Universidade de Calgary, afirma que o tédio é uma ferra­menta muito útil, que tem a função de nos fazer saber quando as interações sociais ou a rotina estão nos dando desejos que não [96] estamos satisfazendo. Talvez pouco haja a fazer para espantar o té­dio quando você está ouvindo um discurso infindável ou numa longa viagem de avião, mas muitas vezes é possível escapar de si­tuações entediantes. O tédio pode ser um indicador importante de que você está fazendo más escolhas ou entrando em situações com uma atitude restritiva (talvez com mentalidade estreita ou abertamente crítica). O mais interessante é que, mesmo odiando o tédio, você lida muito bem com esse sentimento a cada vez, e ele logo passa. Quando você pensa no tédio, naturalmente se concentra em quanto é desconfortável. Você não atenta para o fato de que lidou efetivamente com o tédio centenas (ou milhares) de vezes na vida.

Um segundo motivo comum para as pessoas desejarem se afastar das emoções negativas é a crença em que elas são como areia movediça - puxam a gente para baixo, sem esperança de escapar. É muito comum a noção de que a depressão, por exem­plo, é um estado difícil de mudar, e, quanto mais crônica for a emoção negativa, maior é o risco de que se torne permanente. Ve­jamos a Prova A, com pessoas que lutam há anos contra a depres­são. De fato, algumas evidências dão suporte à crença popular. Cerca de 60% de adultos que têm um episódio clinicamente sig­nificativo de depressão grave têm um segundo; as que têm um segundo episódio têm cerca de 70% de chance de ter um terceiro, o que dispara para 90% de chance de ter um quarto episódio.1 Sim, essas estatísticas são alarmantes, principalmente se você esquecer a matemática. Se 100 pessoas têm um episódio de depres­são e 60 delas têm um segundo episódio, 42 têm um terceiro, e 38 têm um quarto episódio. Para essas 38 pessoas, é um problema grave, sem dúvida. Mas a grande maioria de pessoas que lutam contra a depressão não está confinada a uma prisão emocional da [97] qual não há escapatória. A maioria estará livre depois de uns pou­cos - notoriamente desagradáveis - episódios. O mesmo se aplica a outros estados. Apesar da tendência a acreditar que a raiva irá acionar algum mecanismo interno que nos transformará em ban­didos violentos, ou que o pânico nos deixará escondidos debaixo da mesa pelo resto da vida, basta você dar uma olhada em sua experiência pessoal para saber que isso não é verdade.

Um terceiro motivo pelo qual evitamos sentimentos negativos é o temor de que, tal como um tsunami psicológico, eles desabem sobre nós e nos arrastem para um destino desconhecido e indesejado de pensamentos. Portanto, o temor das pessoas, ainda que não o articulem, é de que um determinado estado as leve a perder o controle e fazer coisas que de outro modo não fariam. O caso mais óbvio é a raiva. Certamente, há um elemento de verdade nisso, o que leva o sistema judiciário a considerar que um assassi­nato cometido “no calor do momento” é menos grave do que um assassinato planejado. É como se a comunidade jurídica tivesse se reunido e concordado: “Sim, a pessoa com a cabeça quente tem uma tendência a se descontrolar um pouco.” Mas quantas pessoas você conhece que já cometeram um assassinato, de um modo ou de outro? É extremamente incomum, e por isso vira notícia.

É muito improvável que a raiva faça de você um criminoso, mas pode afetá-lo de outras maneiras, às vezes surpreendentes. Alguns pesquisadores interessados no termo “cabeça quente” in­vestigaram se haveria alguma associação entre cabeça e calor na mente das pessoas.12 Num estudo, apresentaram a alguns partici­pantes (mas não a todos) palavras relativas à raiva, como desde­nhoso, hostil e irritado, dizendo que essas palavras eram parte de uma experiência de memória. Em outra tarefa, disseram aos par­ticipantes que opinassem se a média de temperatura de trinta [98] cidades que eles não conheciam era fria ou quente. Os pesquisadores constataram que os participantes que lembraram mais as palavras ligadas à raiva opinaram muito mais que as cidades eram quentes.

O quarto motivo pelo qual evitamos emoções negativas é o me­do das conseqüências sociais de expressá-las. Você tem uma noção intuitiva de que, se ficar no local de trabalho se lastimando ou tendo súbitos ataques de raiva, as pessoas vão se esconder em seus cubículos até que você fique longe delas. Mais uma vez, há um grão de verdade nessa crença, mas seu medo é muito exagerado. Nossos estados negativos têm poder sobre os outros.

Num estudo clássico, o pesquisador Thomas Joiner investigou se o ânimo de colegas de quarto era contagioso. Ele constatou que, se um deles estivesse deprimido logo que se instalaram, havia uma alta proba­bilidade de que o outro desenvolvesse depressão nas três semanas subsequentes. Isso é verdade, apesar de Jointer ter feito o controle pelas taxas básicas da depressão e a presença ou ausência de even­tos de vida negativos. A depressão não somente é contagiosa, mas, contradizendo o folclore recente, é mais provável que o colega de quarto deprimido afete o outro negativamente do que o colega mais feliz modifique o ânimo depressivo do primeiro. É mais um exemplo de que o mal é mais forte que o bem.

Você agora deve estar surpreso com o fato de que nós, os auto­res, esmiuçamos os quatro principais motivos pelos quais as pes­soas evitam emoções negativas e não os invalidamos, um a um. Não podemos. Todos eles têm pelo menos alguma validade. A questão importante é: para que servem as emoções negativas? Constituem uma parte importante da nossa arquitetura emocional. Embora confusas, desagradáveis e às vezes problemáticas, não deixam de ser úteis. As emoções - todas as emoções - são informações. Estar bem ou estar mal nos mostra a qualidade de nossos progressos, [99] interações, ambiente e ações. Numa comparação sumária, as emo­ções são como um aparelho de GPS no painel do carro, trans­mitindo informações metafóricas sobre sua posição, o terreno à frente e atrás, o ritmo de progresso. Quem tenta desesperadamente evitar, esconder e fugir de estados negativos perde todas essas valiosas informações. Para esclarecer ainda mais:

  • Você quer sentir o arrepio de medo em situações de perigo físico.
  • Você quer sentir o calor da raiva quando precisa defender seus filhos.
  • Você quer sentir frustração quando não progride nas aulas de violão.
  • Você quer se arrepender de ter dito aos seus filhos que eles não são bonitos, nem inteligentes, nem boas pessoas.

Em cada uma dessas situações, as emoções são sinal de que algo não vai bem e exige sua atenção imediata. Se a raiva e outros sentimentos maus forem tamponados instantaneamente, deixa­rão de sinalizar o que os despertou e o curso de ação a ser tomado. É difícil enfatizar toda a importância disso. Você deve estar pen­sando: Há milhares de motivos para evitar os sentimentos negativos, mas deixe-me entender hem: só há um único motivo para serem bons? Ainda que seja um único motivo, é um motivo excelente. Imagine viver num mundo em que ninguém sentisse culpa. Em que nin­guém se revoltasse contra a injustiça. Em que ninguém sentisse frustração por não atingir um objetivo. Em que você não conseguis­se sentir medo na presença de um incêndio em casa, um assaltante ou uma seringa de injeção usada boiando ao seu lado num banho de mar. Na ausência desses sentimentos negativos, estaríamos [100] vivendo num mundo desprovido de humanos em pleno funcionamento.

Um passeio por três emoções temidas

Raiva

Matthew Jacobs é um carpinteiro autônomo de 50 e poucos anos. Mora num apartamento coletivo em San Francisco, Califórnia. É conhecido pela boa qualidade de seu trabalho, joga futebol e lê obras de não ficção nas horas livres. Quando jovem, serviu por algum tempo como oficial da polícia militar na Guerra do Vietnã. Ele diz ter sido um jovem de cabeça quente, mas há muito tempo se acalmou e almeja levar uma vida sem encrencas.

Em maio de 2013, já tarde da noite, uma camelô vietnamita estava vendendo a Jacobs uma tigela depho numa rua do centro da cidade, quando um homem grandalhão se aproximou, gritan­do com ela. O homem, totalmente desconhecido, chegou exigindo que a mulher lhe desse uma moeda, ela disse que não tinha, e ele começou a berrar xingamentos com palavras ofensivas à raça de­la. Duas colegiais estavam presentes, dando mostras de nervosis­mo, obviamente temerosas de chamar a atenção do homem.

À medida que os insultos do homem ficavam mais acalorados, Jacobs viu que ninguém por perto iria se adiantar para defender a mulher e as adolescentes. Recorrendo a um preceito pessoal - sempre oferecer duas interações gentis antes de passar a um tom mais agressivo -, ele disse calmamente ao homem: “Com licença. Poderia falar mais baixo, por favor?” O homem se voltou para Jacobs e começou a berrar com ele também. “Eu agradeceria se [101] você se retirasse”, disse Jacobs. “Estamos tentando comer em paz; ninguém aqui quer confusão.” Jacobs tinha usado a sua segunda e última cota de boa vontade. Infelizmente, não obteve o efeito calmante que desejava, e o homem chegou mais perto de Jacobs, gritando obscenidades.

Jacobs largou cuidadosamente sua tigela de macarrão e elevou a voz, num tom de ameaça: “Na minha terra, isso quer dizer que você está procurando briga. Muito bem, estou aqui. Vamos lá!” O homem recuou, surpreso, murmurou uns xingamentos para manter a pose e foi embora. Jacobs respirou fundo para recuperar a calma, grato pela altercação não ter chegado à agressão física, e a vendedora e as adolescentes não terem sido feridas. Ele olhou para elas, esperando um gesto de simpatia ou uma palavra de agradecimento. Não houve. Em vez disso, notou que elas pare­ciam ter tanto medo dele quanto do grosseirão.

Essa é uma história verdadeira, não uma narrativa dramati­zada que termina em briga, ou numa donzela em perigo recom­pensando o salvador com imorredoura gratidão. É um exemplo de como os sentimentos negativos se apresentam na vida real. As emoções negativas, como a raiva no caso de Jacobs, geralmente afloram em resultado de circunstâncias externas (em oposição a “surgir do nada”). Podem ser tremendamente úteis, apesar de terem um preço (como assustar as pessoas presentes). Como vimos aqui, a raiva altera drasticamente o comportamento das outras pessoas, muitas vezes levando-as a recuar ou a transigir rápido. Por essa mesma razão, a raiva e outros sentimentos negativos são às vezes mais oportunos que a positividade.

A raiva em si não é boa nem má; o que importa é o que você faz com ela. Pesquisas sugerem que apenas 10% de acessos de raiva levam a alguma forma de violência, mostrando que raiva não é [102] exatamente igual à agressão. Em geral, a raiva surge quando acre­ditamos que fomos tratados injustamente, ou que algo está blo­queando nossa capacidade de alcançar objetivos significativos. Em nossos dados, registramos 3.679 dias em que as pessoas rela­taram ter tido raiva no dia a dia.13 Descobrimos que em 63,3% desses episódios a culpa foi atribuída a outra pessoa (em oposição a, digamos, se irritar com o teclado do computador). Tipicamen­te, a raiva é causada por algo que outra pessoa fez, ou que não fez, ou que poderia ter feito.

A dificuldade de transitar num mundo complexo, hipotético, e muitas vezes imprevisível, de trocas sociais que podem incluir a raiva, é precisamente a razão pela qual os humanos adultos pos­suem o cérebro tão pesado (47 vezes mais pesado que o cérebro de um gato e 19,5 vezes mais pesado que o cérebro de um cão beagle). Todos nós já fomos ofendidos ou magoados por outra pessoa. Ape­sar da sua vibração gentil e compassiva, você também já foi im­portunado, provocado, hostilizado, traído, enganado e tratado com grosseria. A positividade não dá conta de nos ajudar a transitar pelas relações e interações sociais. A raiva é uma ferramenta que nos ajuda a apreender e responder a situações sociais complicadas. Quanto aos benefícios, pesquisas indicam, com uma frequência esmagadora, que sentir raiva aumenta o otimismo, a criatividade e o desempenho efetivo, enquanto expressar raiva leva a negocia­ções mais bem-sucedidas e a um caminho mais rápido para mobilizar as pessoas como agentes de mudança. Vejamos cada caso separadamente.

Primeiro, o sentimento de raiva é associado a uma atitude mais otimista. Num estudo, os participantes foram orientados a virar quantas cartas quisessem até um total de 32 cartas, cada uma com [103] um valor de pontos específico.14 Misturadas nas 32, porém, havia três “cartas de bancarrota”, que custariam centenas de pontos ao participante que virasse uma delas (muito mais do que os poucos pontos ganhos com outras cartas). Numa versão, os participan­tes podiam decidir antecipadamente quantas cartas iriam virar, desde 1 a 32. Esperava-se que ninguém iria querer virar as 32, sa­bendo que três delas os levariam à bancarrota, e sairiam do jogo. Quantas iriam virar? As pessoas previamente induzidas a sentir uma ligeira raiva arriscaram mais. A raiva as deixou mais propen­sas a explorar os limites da possibilidade.

Esse achado foi sustentado por uma equipe de pesquisa inte­ressada em investigar como as pessoas avaliam riscos.15 Nesse estudo, fizeram aos participantes perguntas relativas ao - entre outras temas - risco de se divorciar, contrair uma doença venérea, e um tratamento experimental de uma doença grave que iria sal­var muitas vidas se desse certo, mas iria matar muitas mais se não desse. Os participantes que os pesquisadores incitaram a ter raiva apresentaram maior tendência a achar que tinham controle sobre os resultados, acreditavam que um resultado positivo era alta­mente provável e que valia a pena correr riscos. Pode ser que a rai­va - uma alta elevação emocional que nos prepara para lidar com ameaças - ajude a predispor as pessoas à ação. Talvez por isso seja tão comum ver atletas com raiva para entrar no clima psicológico.

Em segundo lugar, a raiva pode acender a fagulha da criativi­dade. Vale a pena repetir, porque pode soar louco demais para crer: sim, a raiva pode nos ajudar a ser criativos. Na psicologia, o estudo da criatividade pode ser muito divertido. Vejamos o exem­plo clássico: quantas utilidades você acha que um tijolo pode ter? Não tenha pressa. Pare um momento e faça uma lista de todas as [104] utilidades que puder imaginar. O mais provável é que as mais óbvias lhe venham primeiro à mente. Você pode pensar facilmen­te numa parede. Depois você fica mais esperto e pensa em utilida­des que tenham a ver com o peso, forma e durabilidade do tijolo. Talvez sua lista inclua um batente de porta, peso de papel, um banquinho ou um projétil. Muito bem. Mas podemos tentar pen­sar em outras aplicações? Que tal colocar um tijolo na mochila para melhorar sua postura? E usar para apoiar uma panela quen­te, ou junto ao pneu do carro como calço numa ladeira? Você pode até usar, para fazer graça, como moldura de um celular da primei­ra geração e falar com ele na orelha.

Os psicólogos usam o teste de utilidades do tijolo para medir a criatividade. O teste pode servir para avaliar a fluência (quantas idéias foram criadas?), a originalidade (quantas idéias constam em quantas outras listas?) e a flexibilidade (quantas categorias de uso você pode propor?). Num estudo, os pesquisadores deram às pessoas feedbacks irritados (negativos) ou neutros numa ativida­de prévia, e depois aplicaram o teste do tijolo.16 Algumas pessoas manifestaram grande necessidade de entender bem as regras e queriam saber o que se esperava delas em determinada situação. Entre estas, as que tinham tido feedbacks negativos tiveram me­lhor desempenho. Melhor desempenho significa aqui que obtive­ram melhores resultados do que as pessoas com características similares que tinham recebido feedback neutro. A mensagem é que, em alguns casos, a raiva induz a maior criatividade. Por ou­tro lado, em pessoas rebeldes, menos equilibradas, a criatividade é embotada pela raiva. Isso mostra que o contexto é importante quando se trata de raiva, e que o preconceito generalizado contra ela é um equívoco. [105]

Por fim, a raiva é seletivamente útil enquanto ferramenta de melhora do desempenho. Ninguém quer viver sob o jugo de um tirano, mas um pequeno acesso de irritação pode fazer alguém sair correndo para trabalhar. Alguns pais sabem que é uma estratégia que funciona com os filhos, e muitos patrões sabem disso muito bem. Num estudo com gerentes de construção no Reino Unido, os pesquisadores descobriram que alguns acessos de raiva eram de­ploráveis e outros funcionavam como um remédio perfeito.17 Um gerente de construção comentou:

Não faz muito tempo, tive um ataque de raiva numa reunião com o engenheiro estrutural porque eles estavam querendo virar o acerto contratual sem qualquer justificativa, e aquilo já vinha acontecendo havia algum tempo... Acho que [a reu­nião] terminou com o surto emocional. Em retrospecto, me arrependo? Provavelmente não, na verdade, porque resolveu a questão...

O que diferenciou as querelas lamentáveis das eficazes não foi o tamanho da raiva envolvida. Foi uma questão de contexto. Con­tudo, mesmo os gerentes que aprovavam uma palavra mais forte de vez em quando reconheceram que não era - e não podia ser - uma atitude permanente na interação com os outros. Um deles resumiu brilhantemente:

Funcionou, eu consegui a reação que esperava, todo mundo voltou ao trabalho, e o que estava pendente foi resolvido na mesma hora, de modo que tudo deu muito certo. Acho que se acontecesse com muita frequência, se ficasse sempre usando uma linguagem grosseira com as pessoas, chegaria ao ponto [106] de não surtir mais efeito. Se você usar de vez em quando, acho que funciona.

Outro contexto em que a raiva funciona bem é nas negocia­ções. Quando duas ou mais pessoas estão tentando chegar a uma resolução, a raiva é uma espécie de alavanca. Numa série de estu­dos, os participantes tiveram a tarefa de negociar o maior preço possível por um lote de telefones celulares (e a recompensa na vida real estava diretamente ligada ao desempenho deles).18 Após um valor inicial ser pedido pelo vendedor, o comprador apresen­tou uma série de contrapropostas. Para atingir os objetivos do ex­perimento, alguns participantes foram escalados para ter um comprador irritadiço, e outros foram contemplados com compra­dores alegres ou neutros. Viu-se que, diante da raiva, as pessoas têm muito menos propensão a fazer exigências. Na terceira roda­da de negociação, quem tentava vender os celulares a um compra­ dor com raiva acabava cedendo e dando 20% de desconto, e, na sexta rodada de negociação, já davam mais de 33% de seus ganhos potenciais. Os pesquisadores sugeriram que pessoas com raiva eram vistas como poderosas e de alto status na situação. Portanto, vemos que a raiva em certas competições faz pender o resultado a seu favor. A felicidade não rende os mesmos dividendos.

Por outro lado, não basta adotar uma postura zangada na es­perança de obter uma transação favorável. Esses mesmos pesqui­sadores advertem - e a ciência está a favor deles - contra a raiva fingida. Num estudo, os pesquisadores constataram que, quan­do um ator experiente fingia uma raiva superficial em oposição a uma raiva intensa, era inconvincente.19 Em negociações, as pes­soas fazem exigências maiores de quem finge raiva, em parte por­ que estes parecem menos confiáveis. [107]

Tomemos, do mundo real, o exemplo de Barack Obama. Sejam quais forem suas cores políticas, você tem que admitir que Obama é mais afável que a maioria dos presidentes dos Estados Unidos jamais foi. Ele tem a fala suave, a voz profunda e bem modulada. Quando houve o vazamento do petroleiro britânico no golfo do México, em 2010, Obama foi criticado por sua reação fria. Mais tarde ele expressou raiva na televisão, mas essa resposta mais emo­cional teve o efeito oposto ao desejado: as pessoas perceberam que o presidente não estava sendo sincero.

Por fim, a raiva tem o poder de despertar uma ação coletiva diante de ameaças inadequadas, injustas. Em toda autobiografia, encontramos a mesma história: o impulso inicial de lutar contra a injustiça foi motivado pela raiva, como a faísca da ignição que põe o motor do carro em funcionamento. Martin Luther King Jr. dis­se: “A tarefa suprema é organizar e unir o povo para que sua raiva seja uma força transformadora.” Foi a raiva que transformou W. E. B. Du Bois de acadêmico - brilhante, mas ineficaz num mundo de exploração e racismo desenfreados - num poderoso ativista em defesa dos direitos civis:

Justamente na época em que minhas pesquisas tinham maior sucesso, veio aquele corte nos meus planos de cientista, um clarão vermelho que não podia ser ignorado. Lembro-me de quando me atingiu como um raio...20 A notícia me despertou: Sam Hose fora linchado, e diziam que seus dedos estavam ex­postos num açougue... Passei a me afastar do trabalho... Não é possível continuar a ser um cientista calmo, frio e distancia­ do enquanto negros eram linchados, assassinados e mortos de fome. [108]

Pouco adiante, em sua autobiografia, Du Bois narra como a raiva o incitou à ação e ele fundou o Niagara Movement, que mais tarde veio a ser a NAACP.

Ao recordar suas atividades em defesa dos opositores à Pri­meira Guerra Mundial, Bertrand Russell relata que ficou “cheio de desesperada ternura pelos jovens que iriam ser massacrados, e de raiva contra os estadistas da Europa”. Da mesma forma, He­len Caldicott deu os primeiros passos como ativista quando ficou “indignada”. Sua indignação inspirou uma geração de movimen­tos sociais.

Quando a raiva aflora, somos levados a prevenir ou eliminar ameaças iminentes ao nosso bem-estar, ou ao bem-estar das pes­soas que nos são caras. Muitas vezes, o altruísmo nasce da raiva. Quando se trata de mobilizar pessoas e conseguir apoio para uma causa, não existe emoção mais forte. É um erro supor que bonda­de, compaixão, amor e equidade estão de um lado do continuum, e raiva, fúria e aversão estão do outro lado. A raiva é um elemento poderoso, difamado pela noção errônea de que uma sociedade saudável é isenta de raiva.

O grande preconceito contra a raiva é amplamente injustifica­do.21 Decerto, é uma emoção forte e altamente inflamável. A cau­tela com a raiva é aconselhável, assim como o conhecimento de que não deve ser usada em demasia ou indiscriminadamente. Seu melhor uso é acompanhado de uma atitude de respeito pelo ponto de vista da pessoa ou das pessoas que violam seu bem-estar. Quem se dispõe a arcar com as conseqüências tem mais facilidade para utilizar uma expressão eficaz da raiva. Tomando certas precau­ções, a raiva - a raiva autêntica - é totalmente apropriada para certas pessoas em certas situações. [109]

O jeito certo de ficar com raiva

Quando você quiser expressar raiva, ou outra emoção negativa, um modo conveniente é começar com o que chamamos de aviso de desconforto. Deixe o outro saber explicitamente que você está ten­do emoções intensas e, por causa disso, é mais difícil se comuni­car com clareza. Desculpe-se por antecipação, não por suas emoções ou ações, mas pela falta de clareza na forma de comuni­cação do que você vai dizer. Comece com uma declaração do tipo: “Quero que você saiba que estou me sentindo muito desconfortá­vel, o que significa que não é o melhor momento para me expressar. Mas dadas as circunstâncias, é importante, para mim, dizer...” O objetivo do aviso de desconforto é desarmar o outro, evitando que fique na defensiva. Quando alguém ouve que você está se sen­tindo desconfortável e a conversa é difícil para você, é mais prová­vel que receba com empatia o que você tem a dizer. Depois dessa introdução, você pode se aprofundar no motivo do aborrecimen­to, no que pensa e sente por causa do que aconteceu (por que a raiva irrompeu, em vez de outros sentimentos).

Você pode usar a tática do aviso de desconforto mesmo quan­do estiver se sentindo perfeitamente confortável ao expressar a raiva ou outros sentimentos negativos, desde que sejam autênti­cos. Lembre-se: o objetivo é provocar uma mudança no que o ou­tro está fazendo ou sentindo, diminuir a progressão da situação de modo a torná-la mais favorável à sua mensagem. Se for ade­quadamente controlada, a raiva nos oferece um modo de ser proativo na alteração ou remoção de ameaças e obstáculos. Portanto, não tenha medo de usar pequenas mostras físicas de raiva, o que chamamos de “microagressão”, para expressar o nível da emoção que está sentindo. Ponha as mãos abertas com força em cima da mesa. Aperte os punhos. Ok, você entendeu. [110]

Se ainda não se convenceu da importância de expressar a rai­va abertamente para repelir uma ameaça, considere o seguinte: O dr. Ernest Harburg e sua equipe de pesquisa da School of Public Health da Universidade de Michigan passaram várias décadas fazendo acompanhamento de alguns adultos num estudo longitu­dinal sobre a raiva.22 Constataram que homens e mulheres que es­condiam a raiva diante de uma agressão injusta apresentavam maior tendência a ter bronquite e infarto, e a morrer mais cedo do que os que liberavam a raiva quando se deparavam com pessoas ofensivas e irritantes.

A dificuldade óbvia está em saber como pôr a raiva em funcio­namento, principalmente em relacionamentos. Primeiro, quere­mos desencorajá-lo a se policiar no sentido de controlar ou evitar a raiva, dizendo a si mesmo, por exemplo: “Preciso me livrar des­sa raiva”, ou “Tenho que guardar a raiva para mim mesmo”, ou “Por que não posso ter menos raiva?”. Em vez disso, reconheça a diferença entre eventos que você pode mudar e os que estão além da sua capacidade de controlar. Se está viajando e perde o casaco no primeiro dia, não há nada a fazer, e portanto não há benefício em expressar a raiva. Mas, se está numa loja pechinchando o pre­ço de um casaco e se zanga porque a balconista está tentando lhe vender por um preço mais alto do que o freguês anterior pagou, é uma situação em que você tem algum controle. Nesse caso, co­mo pode comunicar o aborrecimento ou a raiva de modo a obter um resultado favorável? O psicólogo e autor de Anger Disorders, dr. Howard Kassinove, diz que a chave é usar “um tom apropriado, sem aviltar a outra pessoa”.23

Segundo, desacelere a situação. Nossa tendência é mergulhar de cabeça na situação e agir no mesmo instante, especialmente [111] quando o sangue está fervendo. Em vez disso, imagine a raiva variando entre depressa e devagar, como você querendo gritar ver­sus querendo motivar a pessoa de maneira calculada. Quando es­tiver zangado, permita-se fazer uma pausa, mesmo que tenha alguém esperando sua resposta. Pode até deixar que saibam que está diminuindo o ritmo da situação. Tome decisões boas, e não apressadas. Quando estiver zangado, respirar fundo, fazer pausas e momentos de reflexão exercem mais poder do que respostas rá­pidas. Se você ficar menos zangado depois disso, ótimo, mas não é o objetivo. Trata-se de ter mais opções numa situação emocio­nalmente carregada.

Pense como um jogador de xadrez. Antes de se decidir por um curso de ação, imagine como o outro irá reagir e como estará a situação dois movimentos adiante. Se lhe parecer boa, prossiga. Se lhe parecer má, pense num caminho alternativo, imagine qual será a reação do outro e avalie esse cenário. Mantenha uma avalia­ção constante, perguntando-se: “Minha raiva está ajudando ou piorando a situação?” Num diálogo, não há uma resposta “tama­nho único” para essa questão, pois as emoções, comportamentos e ações envolvidas estão sempre mudando. Em certo momento, quero contar uma história para afirmar meu domínio da discus­são, e minutos depois posso querer ignorar um comentário forte para aumentar o sentimento de conexão.

Quando a raiva chega ao extremo, parece que, se não partir­mos para o ataque, iremos sofrer sérias conseqüências. O psicólo­go John Riskind, especialista no tratamento de pessoas com emoções aparentemente incontroláveis, desenvolveu técnicas pa­ra desacelerar os eventos ameaçadores.24 Riskind constatou que a experiência de raiva não é tão problemática quanto a crença em [112] que a seqüência de eventos desencadeadores da raiva vai acelerando, o perigo vai aumentando, e a saída para a ação está se fe­chando rapidamente. Esse sentimento de perigo iminente leva as pessoas a fazer algo que dê um fim imediato à ameaça, mas, em longo prazo, irá piorar a situação (como dar um soco em quem furou a fila no caixa do supermercado).

O primeiro passo é avaliar consigo mesmo se a raiva está au­mentando, diminuindo ou estável em determinada situação. Para um autoexame escrupuloso, use um número ou algumas palavras que descrevam a intensidade da raiva, como se pode ver no exem­plo do velocímetro:25

Se a raiva estiver acima do limite de velocidade, será preciso mais tempo para conservar o máximo de flexibilidade e controle a fim de lidar com quem a provocou. Nesse caso, pense em redu­zir a velocidade. Em alta velocidade, a tendência é perder um pouco o controle; portanto, imagine-se freando para que o modo [113] como você está agindo e que o outro está agindo seja reduzido de 130 para 100, e de 100 para 80. Crie uma imagem visual de sua aparência no momento, e da aparência do outro. Repare que o ou­tro já não está tão perto fisicamente de você. Escute com atenção o que o outro está dizendo, e leia a mensagem corporal dele. Use a baixa velocidade para ver se o outro está aberto ou fechado ao diálogo, se está realmente disposto a atacar ou procurando um meio de sair da confusão.

O que acontece quando você imagina a situação desaceleran­do? Como observa Riskind sobre a raiva: “Você pode achar que há muito a fazer e pouco tempo para fazer tudo.” Esse exercício de concentração na velocidade em que as coisas estão acontecendo nos dá um pouco mais de espaço psicológico para respirar. Expe­rimente. O objetivo aqui é aprender a trabalhar a raiva, em vez de deixá-la sair do controle.

Culpa e vergonha

Na sociedade contemporânea, as pessoas pensam na culpa da mes­ma maneira que pensam na obesidade: um estado temível, inacei­tável do ponto de vista social e da saúde. Talvez por isso engordar seja tão frequentemente associado à culpa. Em nossa cultura, “cul­par” alguém é algo falado aos cochichos, terapeutas acenam com redução da culpa, gurus da autoajuda encorajam as pessoas a “se libertarem”, conselheiros do bem-viver escarnecem das palavras “você deve fazer/ser”. Em contraste, queremos remover o estigma da culpa. Não estamos dizendo que é sempre bom sentir culpa, mas em certas ocasiões a culpa traz vantagens. Por exemplo: quando você se sente culpado, fica mais motivado para melhorar, [114] enquanto seus colegas menos propensos à culpa não têm essa mo­tivação.

Doug Hensch, de 40 e poucos anos, ajuda organizações a de­senvolver líderes fortes, mas sua paixão na vida é treinar o time de futebol americano de seu filho de 9 anos. Sua melhor experiên­cia como treinador aconteceu quando estava trabalhando com um atleta musculoso, rápido, chamado Zander, que tinha vindo de Gana para os Estados Unidos. Era desagradável porque, em vez de aplicar suas qualidades no esporte, Zander ficava esguichando água ou enfiando o dedo lambido na orelha dos outros meninos. Cansado daquilo, Doug convocou uma reunião para falar com Zander e todo o time.

Doug não tinha o menor prazer em ter aquela conversa, e não tentou esconder isso na reunião. Começou com um aviso de des­conforto. (“Sou o treinador de vocês, sou pai, mas também já fui menino, e joguei futebol dos 9 aos 21 anos, assim como muitos de vocês jogarão. Por isso eu sei que uma reunião com um treinador frustrado é difícil. Entendam que é desconfortável para mim tam­bém.”) E prosseguiu: Vejam seus companheiros neste time. Pensem no esforço de cada um deles a cada semana, se machucando, se sujando, suando, ficando sem fôlego, e às vezes com ânsias de vômito. Agora, pensem bem: O que você faz aqui está ajudando ou preju­dicando o time?

Doug se calou por um minuto inteiro, e então pediu que cada um desse um exemplo de como tinha ajudado o time no treino da­ quele dia. Depois pediu que cada um desse um exemplo de como [115] tinha prejudicado o time naquela temporada, por menor que fos­se a falta. Todos tinham alguma coisa a dizer e, depois do último menino falar, Doug disse:

Quando você faz alguma coisa que não ajuda o time, está pre­judicando seus colegas, meninos que vão proteger você, vão brigar por você, vão se arriscar a serem machucados por al­guém duas vezes maior que eles na disputa da bola, para que vocês façam uma boa jogada. De hoje em diante, vou fazer sempre essa mesma pergunta a todos, e se acharem que estão prejudicando o time, não precisam se sentir culpados; só tratem de melhorar. Entenderam?

Quando todos concordaram com um gesto de cabeça, Doug lhes disse para se unirem de mãos dadas e gritarem o nome do time três vezes.

Zander perdeu sua posição de estrela no time inicial. Se você quiser saber se a motivação dele foi a vergonha ou a culpa, Doug lhe dirá que, quando Zander voltou a jogar, pegou a bola e correu cem metros para um touchdown que trouxe a primeira vitória do time na temporada. E, quando Zander viu que os colegas o respei­tavam mais pelas ações que ajudavam do que pelas que prejudi­cavam o time (embora algumas de suas palhaçadas fossem muito engraçadas), investiu mais energia nos treinos e passou a animar os outros jogadores, mostrando uma atitude completamente di­ferente. Doug ajudou Zander a se tornar um jovem adulto res­ponsável e, revelando seu próprio desconforto e induzindo a um pouquinho de culpa, conseguiu melhorar o menino e o time.

Nós, os autores, usamos a mesma pergunta em sala de aula (“O que você faz está ajudando ou prejudicando a classe?”) e aos [116] nossos filhos (“O que você está fazendo está melhorando ou piorando a situação?”). Na condição de psicólogos socialmente incômodos, fazemos a mesma pergunta a nós mesmos quando conversamos com as pessoas (“O que estamos fazendo está ajudando ou preju­dicando esse relacionamento?”). Sugerimos que você considere essa pergunta com relação à culpa: vai ajudar ou prejudicar a von­tade de ser uma pessoa melhor, mais forte e mais sábia?

Se quiser mais um exemplo de utilidade da culpa, vamos pen­sar naqueles que foram banidos temporariamente pela sociedade devido a suas más ações: os prisioneiros. Segundo o National Re­cidivism Study of Released Prisoners, conduzido pelo Bureau of Justice dos Estados Unidos, dos 272.111 presos libertados em 15 estados em 1994, 67,5% voltaram dentro de três anos para a prisão por crimes ou contravenções graves.26 Cometer um crime depois de sair do presídio é a norma, e não uma exceção.

Ao tomar conhecimento dessa estatística, você pode julgar que os prisioneiros são pessoas más. Ou pode acreditar que a maioria deles não é muito diferente de nós - eles querem achar um lugar onde sejam aceitos, sentir que têm controle sobre a vida deles, encontrar pelo menos uma aparência de significado e propósito na vida, e ter a esperança de que seus filhos tenham uma vida me­lhor que a deles. Seja como for, a pergunta-chave é: o que evita que um meliante solto volte a cometer atos ilegais ou imorais? A dra. June Tangney, eminente psicóloga clínica, passou quase dez anos investigando se sentimentos morais como a culpa são o segredo para evitar o crime. Em pesquisa recente, ela constatou que os presos com tendência ao sentimento de culpa sofriam mais pelos atos cometidos e eram mais motivados para confessar, pedir perdão e reparar os problemas que causaram.27 Após serem [117] libertados, tinham menor probabilidade de serem presos novamente. Ou seja, presos propensos a sentir culpa pelo mal que causaram contrariam as estatísticas e não causam mais problemas.

A culpa dá mais fibra moral, dá motivação para sermos cida­dãos mais socialmente sensíveis e conscienciosos, e esses bene­fícios se estendem à comunidade não criminosa. Por exemplo: pesquisadores constataram que adultos propensos a sentir culpa eram menos propensos a dirigir bêbados, roubar, usar drogas ile­gais e atacar as pessoas.28 Se o caráter se reflete naquilo que você faz quando ninguém está vendo, a emoção moral chamada culpa é um elemento de construção do caráter. Ao ignorar o valor da culpa, pais e educadores encaram uma dificuldade muito maior para formar as crianças que constituirão o futuro de uma socieda­de saudável.

A fracassada campanha destacando a culpa é uma conseqüên­cia direta de se confundir culpa e vergonha. Segundo o dicionário American Heritage, a culpa é “arrependimento consciente de ter feito algo mau”, e “autorreprovação por suposta inadequação ou transgressões”. A vergonha é diferente. Quando sentimos ver­gonha, não nos contentamos em achar que nossas ações foram erradas ou equivocadas, mas nos vemos como pessoas fundamen­talmente más. No caso da culpa, a consciência da transgressão se limita a uma situação específica. A vergonha nos parece ser uma medida de quem somos. A culpa é útil; sua prima, a vergonha, não é. A culpa é local, a vergonha é global.

Há maneiras úteis e inúteis de sentir remorso pelos fracassos e transgressões. Para aprender a adicionar a negatividade às ferra­mentas psicológicas úteis, vejamos as diferenças. [118]

As pessoas que sentem vergonha sofrem. Pessoas envergo­nhadas se desaprovam e querem mudar, se esconder, ou livrar-se totalmente de si mesmas. Pessoas que sentem culpa querem aprender com seus erros e são motivadas a melhorar. Embora não queiram que sua transgressão esteja escrita na testa, as pessoas culpadas são menos propensas a esconder suas más ações. O mo­tivo? Estão prontas a reparar os danos e dispostas a se esforçar para que não se repitam. Quanto à vergonha, vejamos os resíduos sombrios desse sentimento. Lembremos que os adultos são mais inclinados a pagar quantias exorbitantes para evitar um remorso insistente. Vamos investigar por quê.

Faz seis meses que você tomou a última dose de uísque e a razão de estar sóbrio são as reuniões dos Alcoólicos Anônimos. Na condição de adulto novamente sóbrio, pessoas desconhecidas se aproximam para ouvir sua história. Sabendo que é típico falar [119] sobre problemas pessoais em reuniões do AA, você cede, e até con­corda em gravar um vídeo. Entre as perguntas sobre como você começou a beber, como isso afetou seus relacionamentos etc., a entrevistadora pede que você fale sobre “a última vez em que bebeu e se sentiu mal por ter bebido”. É uma solicitação pesada, que lhe traz lembranças desagradáveis, mas você responde com franque­za. Passam-se quatro meses até que a entrevistadora volte a procurá-lo, trazendo um calendário, pedindo-lhe que anote todos os dias em que bebeu desde a entrevista. Tendo a garantia de que seria confidencial e anônimo, você preenche o calendário.

A entrevistadora era a dra. Jessica Tracy, ou seu aluno de pós-graduação, Daniel Randles, da Universidade de British Colum­bia, e eles fizeram algo realmente criativo.29 A dra. Tracy queria saber se as manifestações de vergonha ao falar sobre bebida aju­davam a prever quais adultos recém-sóbrios voltariam a beber. (Se você quiser identificar vergonha na expressão corporal de al­guém, veja se a pessoa mantém os ombros caídos e a área do peito encolhida ou se fica curvada na cadeira como se buscasse uma posição fetal.)

Os resultados desse estudo podem causar espanto. No decorrer de quatro meses, adultos recém-sóbrios que não demonstraram vergonha durante a entrevista tomaram 7,91 drinques. Quanto aos que demonstraram maior vergonha na entrevista (os 10% mais envergonhados) - imagine só - consumiram, em média, 117,89 drinques no mesmo período. Para aqueles que tinham uma relação de vergonha com o comportamento de beber foi muito mais difí­cil evitar uma recidiva. [120]

De gavião à pombinha

Todo mundo comete erros. No trabalho, você se encarrega de man­dar flores para uma colega doente e se esquece de mandar. Em casa, você reclama do descaso de sua vizinha com o lixo e o jardim dela, e depois descobre que ela estava de cama, com pneumonia. Sentir culpa, por definição, tira a felicidade da pessoa. Mas vimos que, embora à custa da felicidade imediata, a culpa pode ser útil em longo prazo. Além disso, a culpa beneficia os outros. Nas pa­lavras do pesquisador Roy Baumeister, a culpa nos “causa mal-estar, mas, para evitar esse desconforto, precisamos fazer algo melhor para nossos parceiros e membros do nosso grupo”. O agui­lhão da culpa pelo que nossas ações causaram em alguém nos im­pele a agir com maior sensibilidade social na próxima vez.

Por outro lado, se você ficar envergonhado, seus problemas vão aumentar, e tentar melhorar o comportamento de alguém ape­lando para a vergonha também não adianta nada. Esperamos que essas palavras sejam lidas por pais bem-intencionados que casti­gam os filhos obrigando-os a dar a volta no quarteirão com um cartaz dizendo: “Acessei pornografia no computador lá de casa.” Esperamos que sejam levadas em consideração por juizes que condenam motoristas bêbados a colocar no carro um adesivo para que todos saibam da infração. Esperamos que essa informação atinja professores que colocam na sala de aula um painel infor­mando quantas vezes uma criança de 6 anos mordeu, lambeu ou bateu num coleguinha. Essas táticas não surtem o efeito desejado, não estimulam as pessoas a ter mais respeito e consideração pelos outros. Os resultados de pesquisas sobre isso são muito claros: quanto mais envergonhadas as pessoas se sentem, mais ansiosas, agressivas e distanciadas elas se tornam. Usar a vergonha como [121] forma de punição tem o trágico efeito paradoxal de acentuar o comportamento que se tenta extinguir.

Se você quiser motivar, escolha a culpa, e não a vergonha. Co­mo diz a dra. June Tangney: “Sentimos culpa porque damos im­portância [às pessoas] - uma mensagem relevante para quem magoamos ou ofendemos.” Atos incorretos não são prova de que você é uma pessoa incorreta. Assuma a responsabilidade por suas ações, sinta a dor de ter magoado uma pessoa, caso aconteça, e volte a atenção para nada mais e nada menos que a ação específica que causou aquele agravo. Sinta, erre, falhe, se aborreça, e então fique mais atento ao bem-estar dos outros na próxima ocasião de interações sociais.

Como escapar da armadilha da vergonha

Supondo que você não desconheça a compaixão, oferecemos as seguintes sugestões para inspirar a culpa em lugar da vergonha.

Tenha em mente o objetivo. Um erro comum ao lidar com a par­te culpada é partir diretamente para o ataque pessoal. É fácil se apressar em associar - até de forma inconsciente - a culpa à au­sência de valores, idiotice, ganância e a tantas outras falhas de caráter. O problema é que ninguém quer ouvir que é uma pessoa má. As pessoas estão mais abertas a ouvir que fizeram algo mau. Você tem maior probabilidade de ser ouvido, se reforçar as virtu­des e pontos fortes da pessoa (se você de fato os reconhece; não invente) ao mesmo tempo em que a responsabiliza por suas ações.

Comece estabelecendo um terreno comum. Se alguém fez algo er­rado, mostre, se possível, que vocês têm os mesmos valores e obje­tivos. Depois mostre como o comportamento da pessoa a afastou desses valores e que há alternativas, comportamentos mais saudáveis [122], mais compatíveis com quem ela é. Outro terreno em comum, como já dissemos, é compartilhar seu desconforto. Essas conver­sas são difíceis, e às vezes parece ser mais fácil desconsiderar o mau comportamento. É tão desconfortável para quem está apon­tando o dedo acusador quanto para quem está se encolhendo de arrependimento. Para que a conversa resulte numa modificação do comportamento do outro, é preciso ter a honestidade de ver por que a conversa lhe causa desconforto.

Em vez de tentar controlar o outro, ofereça autonomia. Ao contrá­rio do que se pensa, as pessoas não se incomodam que lhes digam o que fazer. Por exemplo: você tem boa vontade para levar o lixo para fora quando lhe pedem, você entrega trabalhos com prazo apertado, quando vai ao supermercado e alguém lhe pede que tra­ga algo mais, se for razoável, você acrescenta à lista e traz. As pessoas se incomodam é que lhes digam como fazer alguma coisa. Ninguém quer conselhos sobre a maneira de colocar o saco de li­xo, como formatar o relatório em que você está trabalhando há meses ou como comparar preços no supermercado. Cientistas que estudam a motivação humana sabem que uma de nossas necessidades básicas, na mesma medida da sobrevivência física, é o dese­jo de dirigir a própria vida. Ao conversar com a parte culpada, não lhe dê instruções de como agir no futuro. Deixe que tenha autonomia para fazer as modificações possíveis. As conseqüên­cias das más ações conduzem a melhores resultados quando o pla­nejamento de mudança do comportamento para melhor é visto como um processo criativo entre o culpado e a vítima.

Ansiedade

Muito se tem escrito sobre o valor da ansiedade. Em suma, pouca ansiedade sugere uma situação enfadonha, ausência de estímulos, [123] a mente num estado de hibernação em que a atenção, as motiva­ções prioritárias, a energia e a determinação são deixadas de lado. Como você pode imaginar, patrões e gerentes não apreciam essa condição, pois os empregados se distraem, buscando estímulo em videogames e brincadeiras com os colegas. Ansiedade em excesso sugere uma situação incontrolável, chegando a paralisar efetiva­mente a pessoa. Quando a ansiedade é passageira, o desempenho é afetado, mas no final dá certo e você se sente bem. E sabemos que períodos prolongados de ansiedade são desastrosos para a saúde física e mental. Quem tem ansiedade muito intensa com muita frequência envelhece prematuramente. Podemos constatar isso em nível celular, na deterioração dos telômeros, que formam as extremidades dos cromossomos.30 Por isso, especialistas em desempenho e empresários dão preferência a pessoas que têm a “quantidade certa” de ansiedade, suficiente para despertar a mo­tivação, sem levar a incontroláveis ataques de pânico e a estresse crônico.31 Perfeito. Estamos totalmente de acordo.

Só nos perguntamos por que chegamos a esse ponto. Nossos ancestrais hominídeos, que viviam em pequenas comunidades caçadoras e coletoras na África, sobreviviam graças a um conjunto específico de circuitos de ansiedade. Criado pela seleção natural e desenvolvido no decorrer da história evolucionária da nossa es­pécie, esse programa especializado em ansiedade opera basica­mente fora da nossa consciência, e por isso mesmo é subvalorizado, pois resolve nossos problemas sem um esforço da vontade. Assim como nós, autores, você já deve ter ouvido dizer que as emoções positivas expandem o pensamento e o comportamento em deter­minadas situações e, em contraste, a ansiedade restringe o pensa­mento e o comportamento, levando-nos a “não ter uma visão geral da situação”. A isso, vamos contrapor: o expandido não é melhor [124] que o restringido. O importante é você usar todos os softwares instalados no seu cérebro. O que acontece quando há uma possibilidade de perigo e o programa de ansiedade está ativado?

Consideremos três situações problemáticas que podem iniciar seu programa mental de ansiedade. Você está sendo ridiculariza­do na frente de um grupo de pessoas por alguém que quer aumen­tar o próprio status social perante o grupo, em detrimento do seu. A pessoa com quem você tem um envolvimento romântico está se comportando de modo estranho, chegou atrasada para um jantar, e vocês ficam longos momentos em silêncio, o que não acontecia antes. Você tem palpitações cardíacas enquanto conversa sobre problemas financeiros, e é a primeira vez que isso acontece. Nes­sas situações, e em muitas outras que induzem a pensamentos e sensações de ansiedade, a parte mais antiga do cérebro, associada à sobrevivência, já está considerando três tipos de ação: fugir, lu­tar ou paralisar. Esse processo ocorre sem qualquer contribuição da sua consciência. Na verdade, muito se tem pesquisado sobre o que causa esse estresse indevido, pois a sobrevivência não é mais o problema cotidiano dos tempos em que compartilhávamos o planeta com os tigres-dentes-de-sabre.

Entretanto, ainda há relíquias remanescentes no disco rígido da ansiedade, forças que permanecem ocultas até o momento an­sioso. Nesses momentos você consegue acessar um aumento da percepção, inclusive uma amplificação da visão, sendo capaz de enxergar a uma grande distância, e uma amplificação da audição, e capaz de sintonizar com maior clareza ruídos aleatórios vindos de uma determinada direção. Você tem maior capacidade de solu­cionar problemas. Para citar um exemplo dado pelos psicólogos da evolução John Tooby e Leda Cosmides: “Lugares estranhos, que você não ocupa normalmente - armário do corredor, galhos [125] de árvore podem subitamente se salientar como locais incluídos na categoria lugar seguro ou esconderijo.”32

A utilidade da ansiedade para seu sucesso, o de sua família, de seu parceiro e da sua empresa está ausente de discussões anterio­res. A surpreendente verdade sobre a ansiedade é:

  • Há situações em que você gostaria de ser uma pessoa alta­mente ansiosa.
  • Você precisa de uma pessoa ansiosa em sua equipe.
  • Sem ansiedade, pequenos problemas podem facilmente ir se transformando num desastre.

Já abordamos o fato de que os erros são necessários para a criati­vidade e as inovações. Sem os erros, não aprendemos nem evoluí­mos. Mas não devemos superestimar o valor dos erros; precisamos identificá-los logo no início, a fim de aprendermos a lição sem nin­guém sair prejudicado. É aí que o valor da ansiedade entra em cena.

O que há de especial em ansiosos sempre apavorados com ameaças e perigos potenciais é a sofisticada contribuição que dão aos outros. Quando tomados pela ansiedade, temos a mesma fun­ção que os canários nos túneis das minas: somos sentinelas, rea­gindo rápida e sonoramente ao primeiro sinal de perigo. Isso ocorre em cinco passos:

  • Medo: pessoas ansiosas ficam em estado de alerta à menor mudança no ambiente. São, portanto, extremamente aten­tas a problemas potenciais, especialmente em situações no­vas ou ambíguas. [126]
  • Sobressalto: pessoas ansiosas reagem com rapidez e intensi­dade à menor indicação de presença de perigo (por exem­plo, sons diferentes, ritmos interrompidos).
  • Aviso: pessoas ansiosas são rápidas em advertir os outros so­bre um perigo iminente. Possuem um desejo incomum de vigiar e cuidar; esse ato de “sair de seu caminho para ajudar os outros” as acalma.
  • Patrulha: se os outros não lhe dão atenção imediata, as pes­soas ansiosas vão investigar e coletar mais dados. Reúnem informações com o intuito de ser mais persuasivas, a fim de construir uma aliança com os outros e, juntos, afastarem o perigo.
  • Vigilância: pessoas ansiosas se abstêm de necessidades im­portantes, como dormir ou comer, e perseveram até que o problema seja resolvido.

Sim, você não quer ter ansiedade crônica. Sim, você não quer ter uma família ou uma equipe formada apenas por pessoas an­siosas. Mas, como pode ver, há enormes vantagens em ter um sis­tema de alarme humano. Pessoas não ansiosas não percebem sinais ambíguos que podem significar perigo. Pessoas não ansio­sas tendem mais a ignorar até os sinais óbvios de um perigo em potencial porque não julgam a informação mais premente do que qualquer outra coisa que lhes passa pela cabeça.

Em uma pesquisa fascinante, membros de um grupo foram levados a crer que tinham ativado, acidentalmente, um vírus de computador que infectou rápido todos os arquivos.33 A caminho de comunicar o ocorrido à administração, eles encontraram qua­tro obstáculos, impedindo que comunicassem ou pedissem ajuda a outros. Uma pessoa lhes pediu que respondessem a um pequeno [127] questionário para uma pesquisa, um funcionário disse onde pode­riam encontrar o administrador do prédio, mas lhes pediu o favor de ajudar com umas fotocópias, na porta da sala do administrador havia uma placa pedindo que visitantes aguardassem e, finalmen­te, depois de serem encaminhados a um técnico em computado­res, passaram por um aluno que “acidentalmente” deixou cair no chão uma pilha de papéis. Quatro obstáculos sociais planejados para fazê-los tropeçar. Para superar os obstáculos, eles precisavam ser determinados e insistentes, duas qualidades nem sempre asso­ciadas a pessoas que sofrem de ansiedade. No entanto, diante do perigo, as pessoas mais ansiosas contornaram todos os obstáculos sem perder o foco. Recusando pedidos de ajuda e atos de gentileza, foram mais eficientes do que seus colegas mais tranqüilos e feli­zes para alertar sobre o perigo e conseguir assistência imediata.

Melhor que a positividade

As vantagens de ser uma pessoa ansiosa não estão ao alcance de quem vive tipicamente no reino da positividade. Pesquisadores constataram que ser extrovertido, sociável e dominante não com­bina com a determinação férrea e a concentração das pessoas ansiosas.34 Em zonas de perigo, a ansiedade prevalece sobre a po­sitividade. Nas situações em que há possibilidade de perigo, mas os sinais são obscuros, complicados ou duvidosos, a ansiedade prevalece sobre a positividade. Nesses casos, as pessoas ansiosas descobrem soluções e, tendo gente à sua volta (amigos, família, co­legas), compartilham os problemas e as soluções. Os grupos são mais bem-sucedidos quando formados por uma mistura de tipos de personalidade com pontos fortes variados e pelo menos uma sentinela ansiosa. [128] 

Como aplicar efetivamente à ansiedade

  1. Crie uma atmosfera em que a atitude vigilante das pessoas ansiosas seja encarada como um ponto psicologicamente forte, e não uma neurose a ser curada. Fale claramente, ex­plicando aos outros que o valor inerente à ansiedade traz o equilíbrio necessário a uma cultura, tentando maximizar o prazer, o crescimento e a busca de realização de sonhos e aspirações. Um grupo bem-sucedido mescla pessoas com diversas motivações, desde alcançar objetivos até evitar os perigos.
  2. Estimule sempre a atenção aos problemas. Crie canais de informação, designando para trabalhar no centro do grupo alguém que tenha a medida exata de pontos fortes, isto é, que seja sensível, articulado, persuasivo, socialmente co­nectado e ciente dos diversos pontos fortes das outras pes­soas (a fim de encontrarem as soluções mais rápidas).
  3. Crie uma estrutura de incentivos, com recompensas para formas mais discretas de detectar e neutralizar os proble­mas. Isso significa que uma força antiterrorista que impede a entrada de armas num aeroporto deve ser tão valorizada quanto um agente que agarra um criminoso prestes a explodir uma bomba escondida na mochila. A mídia adora exal­tar um indivíduo como herói porque propicia uma matéria mais fácil, mais continuada, mais romantizada. Organiza­ções devem escrever suas próprias histórias, criando opor­tunidades para as sentinelas ganharem os aplausos quando merecidos. [129]
  4. Em vez de pensar em ameaças como algo presente-ausente, liga-desliga, lembre que as maiores ameaças frequentemen­te começam como sinais de fumaça, fracos, insidiosos, mal perceptíveis, que de repente aumentam muito. Reconheça a qualidade de quem detecta o começo da ameaça. É preciso deixar de estigmatizar esse processo, a fim de ver seu lado saudável, quando as pessoas ficam à vontade para falar de desgaste e desconforto.

Lembretes

  • Quando não evitamos emoções negativas, ganhamos agilida­de emocional, a capacidade de usar todas as nuanças das experiências emocionais.
  • Raiva, culpa, ansiedade e outras emoções negativas têm vá­rias e inesperadas serventias. Servem para nos dar coragem, regular o comportamento, manter-nos alertas ao ambiente e recarregar as energias criativas, além de outras vantagens.
  • Estratégias concretas como diminuir a velocidade podem ser usadas para transformar as emoções consideradas nega­tivas em boas ferramentas.
  • Abandone a ideia de rotular emoções como exclusivamen­te negativas ou positivas. Em vez disso, identifique o que é aconselhável ou não em cada situação.

Quando você era criança, provavelmente imaginava possuir al­gum superpoder (se não imaginou, perdeu uma boa oportunida­de). Talvez imaginasse poder voar, ter uma força descomunal ou ser invulnerável. Quando você pensa à luz dos benefícios associa­dos a todos os sentimentos - positivos e negativos -, se dá conta de [130] que não tem um único superpoder, e sim vários: tem um potenciador de coragem (raiva), um comportamento que mantém a ética nos trilhos (culpa) e um vigilante sempre alerta ao seu lado (an­siedade). No próximo capítulo, vamos examinar seu menospreza­do detector de mentiras (tristeza). Como seus sentimentos vêm e vão, você tem sempre um poder ao seu dispor.

Afinal, muitos preconceitos contra as experiências emocionais negativas surgem porque as pessoas misturam emoções proble­máticas, extremas, arrebatadoras, com suas primas mais benignas. Culpa não é vergonha, raiva não é fúria, ansiedade não é distúrbio de pânico. Em cada caso, o primeiro é uma fonte benéfica de in­formações emocionais que ativa a atenção, o pensamento e o com­portamento que conduzem a resultados desejáveis. [131]

 

 

Sobre parcerias e a divulgação de nossa mensagem

O movimento/força da psicologia positiva está em posição de contribuir de formas úni­cas para a crise e a oportunidade com que nosso mundo como um todo se depara. Por exemplo, a tecnologia oferece oportunidades de conexão, mas o Caráter enganoso da cone­xão “real” é uma sina de muita gente. O interesse crescente na espiritualidade ocorre simul­taneamente a marés crescentes de fundamentalismo religioso. Desenvolvem-se medica­mentos que podem salvar vidas, ao mesmo tempo que drogas ilícitas parecem estar cada vez mais disponíveis. Esses fenômenos podem ser considerados como copos meio cheios ou meio vazios. A psicologia positiva pode empregar um conhecimento crescente e a dissemi­nação desse conhecimento sobre o amor, a esperança, a resiliência e coisas desse tipo, que podem ser usadas para ajudar as pessoas a entender melhor como maximizar o que é posi­tivo e minimizar o que é negativo. É importante manter uma força de coesão dentro da psicologia positiva, composta de colaboradores de várias áreas da psicologia. Também é importante olhar para fora, para além dos limites estreitos da disciplina. Para que tenha­mos realmente um impacto social, acredito que devemos estabelecer parcerias com colegas em outras disciplinas, como a ciência política e a economia, de forma que a disseminação de nosso conhecimento possa ser ampla. Temos uma boa mensagem, agora precisamos ser ainda melhores em sua divulgação.

<<Expandir>>
5/1/2018 1:06:13 PM | MenteCérebro n.141
Riso, um instinto vital

A capacidade de rir é uma das características mais prazerosas dos humanos. Sinal de superioridade para Platão, ou a distância mais curta entre dois corações, como consideram os apaixonados, esse instinto primordial e irresistível tem seus mistérios.

Psicologia - Neuropsicologia
9/11/2021 4:50:34 PM | Filosofia, n. 10
A superação do luto

Desde Freud, no clássico Luto e Melancolia, estu­damos o luto como sendo um processo doloroso do senti­mento da perda de um ente querido; de um sonho, como o da liberdade e dignidade huma­nas, por exemplo. Ou ainda, a perda do ideal de alguém, uma profunda decepção em relação à avaliação do caráter de uma pessoa que nos seja cara.

7/10/2020 7:16:58 PM | MenteCérebro, n.141
Mentira, um componente da inteligência social

Psicólogos, antropólogos e neurobiólogos confirmam: mentir não é apenas um processo cognitivo complexo, mas também um componente decisivo de nossa competência social.

12/31/2019 3:55:18 PM | MenteCérebro, n.141
Imagens de um cérebro apaixonado

Com ajuda da ressonância magnética funcional, pesquisadores descobriram como o amor subverte nossa vida emocional. 

Todas as matérias
Todas Psicologia
A personalidade do colaborador pode influenciar seu trabalho no Home Office

A prática do teletrabalho (também conhecido com trabalho a distância ou home office) é aplicada cada vez mais em todas as partes de mundo [virando uma tendência muito forte devido à pandemia iniciada no final de 2019]. Só nos Estados Unidos, a prática do teletrabalho cresceu mais de 63% desde 2006. Segundo a American Management Association, as empresas que implementaram programas de teletrabalho tiveram quedas nas ausências programadas e nos custos imobiliários, uma vez que, com grande parte do corpo de funcionários trabalhando em casa, os empregadores necessitam de um menor espaço físico em seus escritórios.

Porém, a viabilidade do trabalho a distância, permitido em grande parte pela conexão em banda larga e pela computação em nuvem, não garante o alto nível de produtividade do funcionário. Um estudo recente [2014] descobriu uma aparente ligação entre determinados traços de personalidade do teletrabalhador e o “cyberslacking", termo usado para descrever a prática de usar a Internet para fins não relacionados ao trabalho durante o exercício da função.

Para algumas pessoas, a opção do trabalho a distância se torna um convite à perda de horas em atividades que vão desde assistir vídeos no YouTube até fazer compras.

Uma equipe de pesquisadores liderada pelo psicológico Thomas O’Neill, da University of Calgary, decidiu examinar os atributos de personalidade que diferenciam as pessoas que durante o teletrabalho se deixam levar pela ‘cyberslack” de outras que maximizam sua produção.

O estudo se deu a partir da análise de algumas variáveis inseridas na personalidade como: afabilidade, consciência, neuroticismo, honestidade e procrastinação. O’Neill convenceu duas organizações, uma corporação de serviços financeiros e uma empresa de recursos humanos e recrutamento, a participarem do estudo, que mediu os traços de personalidade, autopercepção, desempenho e satisfação diante do trabalho em casa. Os funcionários também foram questionados sobre seus níveis de distração, o que incluiu, obviamente, a tentação de navegar na Internet durante o trabalho.

Os pesquisadores descobriram que os trabalhadores que alcançaram altos níveis de conscientização, honestidade e satisfação com o trabalho em casa, foram menos propensos a relatar comportamento cyberslacking. Por outro lado, os trabalhadores com alta pontuação em procrastinação e pouca satisfação no teletrabalho eram mais propensos a cyberslacking.

O’Neill e sua equipe sugerem que os resultados são um ponto de partida para a identificação de traços de personalidade que explicam as diferenças individuais no comportamento entre os teletrabalhadores. Eles sugerem que os teletrabalhadores insatisfeitos podem ver cyberslacking como uma forma de passar o tempo ou procurar um novo emprego, enquanto os funcionários com desempenho insatisfatório podem estar à procura de uma fuga das obrigações do trabalho.

Entretanto, os pesquisadores citaram a necessidade de estudos mais amplos, capazes de envolver um número maior de empresas, o que possibilitará uma visão mais apurada acerca dos motivos pessoais e justificativas para o “cyberslacking”. Tais pesquisas, dizem eles, poderiam ser muito úteis na contratação e identificação de funcionários que são mais adequados para o teletrabalho.

<<Expandir>>
Sócrates

A democracia ateniense assegurava aos cidadãos o exercício da função legislativa: integrantes da Ekklesia(assembléia popular), podiam e deviam participar da elaboração das leis que regiam a vida e os destinos da cidade. Mas o regime democrático impunha também aos cidadãos a obrigação de defender, como juízes, as leis que eles mesmos votavam, pois, na condição de membros das cortes populares, assumiam o compromisso — através do juramento heliástico — de fazer acatar aquelas leis e de decidir, de acordo com elas, o que seria justo e o que seria injusto, o que seria bom ou mau para a cidade-Estado e seu povo.

No ano 399 a.e.c., o tribunal dos heliastas, constituído por cidadãos provenientes das dez tribos que compunham a população de Atenas e escolhidos por meio da tiragem de sorte, reuniu-se com 500 ou 501 membros.

 Difícil tarefa aguardava esses juízes: julgar Sócrates, conhecida mas controvertida figura. Cidadão admirado e enaltecido por alguns — particularmente pelos jovens —, era, entretanto, criticado e combatido por outros, que nele viam uma ameaça para as tradições da polis e um elemento pernicioso à juventude. Indiscutível era seu destemor, de que já dera provas em tempos de guerra, como notória sua independência pessoal, manifestada não apenas em seu modo peculiar e inconvencional de viver, mas também em circunstâncias especiais — como quando se negou à conivência com sórdida trama política urdida pelos Trinta Tiranos que durante algum tempo haviam dominado Atenas. Mas o que sobretudo o caracterizava era a atividade a que vinha se dedicando há anos e que justamente suscitava o deleite e a admiração dos jovens, enquanto noutros despertava ressentimentos: conversar. Despreocupado com os bens materiais — cujo acúmulo era o objetivo da maioria —, usufruindo os prazeres sem se atormentar em viver à sua cata, mas também sem deles fugir em exageros ascetas, Sócrates dedicava-se ao que considerava, desde certo momento de sua vida, sua missão — a missão que lhe teria sido confiada pelo deus de Delfos e que o tornara um "vagabundo loquaz": dialogar com as pessoas. Mas dialogar de modo a fazê-las tentar justificar os conhecimentos, as virtudes ou as habilidades que lhes eram atribuídos. Com esse objetivo inicial, levava o interlocutor a emitir opiniões referentes à sua própria especialidade, para em seguida interrogar a respeito do sentido das palavras empregadas. O resultado das questões habilmente formuladas por Sócrates — que alegava que "apenas sabia que nada sabia" — era, com frequência, tornar patente a fragilidade das opiniões de seus interlocutores, a inconsistência de seus argumentos, a obscuridade de seus conceitos. Colocados à prova, muitos supostos talentos e muitas reputações de sapiência revelavam-se infundados e muitas ideias vigentes e consagradas pela tradição manifestavam seu caráter preconceituoso e sua condição de meros hábitos mentais ou simples construções verbais sem base racional. Evidenciava-se a ignorância da própria ignorância: situação que, não sendo ultrapassada, prenderia a alma  num estéril engano e, o que era mais trágico ainda, deixá-la-ia distante de si mesma, apartada de sua própria realidade. Para alguns — os que aceitavam submeter-se à fase construtiva da dialogação socrática —, aquele reconhecimento da ignorância do justo significado das palavras representava a oportunidade de um verdadeiro renascimento: o renascer na consciência de si mesmo, condição preliminar para a tomada de posse da própria alma. Para outros, porém, era o esboroar do prestígio em plena praça pública. Ou então era a instauração de questões e dúvidas ali onde há séculos perdurava a cega certeza dos preconceitos e das crendices: no campo dos valores morais e religiosos, que orientavam a conduta dos indivíduos mas também serviam de alicerces às instituições políticas.

O julgamento

Diante do tribunal popular, Sócrates é acusado pelo poeta Meleto, pelo rico curtidor de peles, influente orador e político Anitos, e por Lição, personagem de pouca importância. A acusação era grave: não reconhecer os deuses do Estado, introduzir novas divindades e corromper a juventude. O relato do julgamento feito por Platão (428-348 a.e.c.) a Apologia de Sócrates, é geralmente tido como bastante fiel aos fatos e apresenta-se dividido em três partes. Na primeira, Sócrates examina e refuta as acusações que pairam sobre ele, retraçando sua própria vida e procurando mostrar o verdadeiro significado de sua "missão". E proclama aos cidadãos que deveriam julgá-lo: "Não tenho outra ocupação senão a de vos persuadir a todos, tanto velhos como novos, de que cuideis menos de vossos corpos e de vossos bens do que da perfeição de vossas almas, e a vos dizer que a virtude não provém da riqueza, mas sim que é a virtude que traz a riqueza ou qualquer outra coisa útil aos homens, quer na vida pública quer na vida privada. Se, dizendo isso, eu estou a corromper a juventude, tanto pior; mas, se alguém afirmar que digo outra coisa, mente". Noutro momento de sua defesa, Sócrates dialoga com um de seus acusadores, Meleto, deixando-o embaraçado quanto ao significado da acusação que lhe imputava — "corromper a juventude". Demonstra que estava sendo acusado por Meleto de algo que o próprio Meleto não sabia bem explicar o que era, já que não conseguia definir com clareza o que era bom e o que era mau para os jovens.

Em nenhum momento de sua defesa — segundo o relato platônico — Sócrates apela para a bajulação ou tenta captar a misericórdia daqueles que o julgavam. Sua linguagem é serena — linguagem de quem fala em nome da própria consciência e não reconhece em si mesmo nenhuma culpa. Chega a justificar o tom de sua autodefesa: "Parece-me não ser justo rogar ao juiz e fazer-se absolver por meio de súplicas; é preciso esclarecê-lo e convencê-lo". Embora a demonstração pública da inconsistência dos argumentos de seus acusadores e embora a tranquila e reiterada declaração de inocência — e talvez justamente por mais essas manifestações de altaneira independência de espírito —, Sócrates foi condenado. Mesmo para uma democracia como a ateniense, ele era uma ameaça e um escândalo: a encarnação, para a mentalidade vulgar, do "escândalo filosófico" que, ali mesmo em Atenas, acarretara a perseguição de Anaxágoras de Clazômena, que se viu obrigado a fugir.

Como era de praxe, após o veredicto da condenação, Sócrates foi convidado a fixar sua pena. Meleto havia pedido para o acusado a pena de morte. Mas seria fácil para Sócrates salvar-se: bastava propor outra penalidade, por exemplo pagar uma multa, como chegaram a lhe sugerir os amigos. Afinal, fora difícil obter um veredicto de culpabilidade: havia sido condenado por uma margem de apenas sessenta votos. Qualquer pena moderada que ele mesmo propusesse seria certamente acatada com alívio por aquela assembleia constrangida por condenar um cidadão que, apesar de suas excentricidades e de suas atitudes muitas vezes irreverentes e incômodas, apresentava aspectos de indiscutível valor. Afinal, era aquele o Sócrates que não se havia deixado corromper pelos tiranos, inimigos da democracia, e que lutara bravamente na guerra por sua cidade e por seu povo. Bastava que declarasse estar disposto a pagar algumas moedas — e todos sairiam dali satisfeitos consigo mesmos, por terem cumprido o "dever" de punir um cidadão suspeito de atividades nocivas à cidade, e mais contentes ainda por se sentirem magnânimos, ao permitirem que continuasse vivendo.

Mas Sócrates não faz concessões. Propor-se a cumprir qualquer pena, mesmo pagar uma multa, por menor que fosse, seria aceitar a culpa de que não o acusava a própria consciência. Na segunda parte da Apologia, Platão descreve o momento em que, novamente diante de seus juízes, Sócrates estabelece a pena que julgava merecer. Nem exílio, nem multa. "Ora, o homem (Meleto) propõe a sentença de morte. Bem; e eu, que pena vos hei de propor em troca, Atenienses? A que mereço, não é claro? Qual será? Que sentença corporal ou pecuniária mereço, eu que entendi de não levar uma vida quieta? Eu que, negligenciando o de que cuida toda gente — riquezas, negócios, postos militares, tribunas e funções públicas, conchavos e lutas que ocorrem na política, coisas em que me considero de fato por demais pundonoroso para me imiscuir sem me perder —, não me dediquei àquilo a que, se me dedicasse, haveria de ser completamente inútil para vós e para mim? Eu que me entreguei à procura de cada um de vós em particular, a fim de proporcionar-lhe o que declaro o maior dos benefícios, tentando persuadir cada um de vós a cuidar menos do que é seu do que de si próprio, para vir a ser quanto melhor e mais sensato, menos dos interesses do povo que do próprio povo, adotado o mesmo princípio nos demais cuidados? Que sentença mereço por ser assim? Algo de bom, Atenienses, se há de ser a sentença verdadeiramente proporcionada ao mérito; não só, mas algo de bom adequado a minha pessoa. O que é adequado a um benfeitor pobre, que precisa de lazeres para vos viver exortando? Nada tão adequado a tal homem, Atenienses, como ser sustentado no Pritaneu; muito mais do que a um de vós que haja vencido, nas Olimpíadas, uma corrida de cavalos, de bigas ou quadrigas. Esse vos dá a impressão da felicidade; eu, a felicidade; ele não carece de sustento, eu careço. Se, pois, cumpre que sentenciem com justiça e em proporção ao mérito, eu proponho o sustento no Pritaneu." Sócrates não deixava saída para seus juízes. Ou a pena de morte, pedida por Meleto, ou ser alimentado no Pritaneu, enquanto fosse vivo, como herói ou benemérito da cidade. Impossível voltar atrás, desfazer a condenação, inocentar o acusado. Entre a morte e as impossíveis recompensas, os juízes ficaram sem alternativa real. Para não abrir mão de sua própria consciência, Sócrates optara pela morte. Que então morresse.

O que significa morrer?

A terceira parte da Apologia pretende ser a transcrição das últimas palavras endereçadas por Sócrates aos que haviam acabado de condená-lo a morrer bebendo cicuta. Em sua alocução, a mesma serenidade, o mesmo tom altaneiro; "Não foi por falta de discursos que fui condenado, mas por falta de audácia e porque não quis que ouvísseis o que para vós teria sido mais agradável, Sócrates lamentando-se, gemendo, fazendo e dizendo uma porção de coisas que considero indignas de mim, coisas que estais habituados a escutar de outros acusados". Sustenta-o uma certeza: mais difícil que evitar a morte é "evitar o mal, porque ele corre mais depressa que a morte". Quanto a esta, apenas pode ser uma destas duas coisas: "Ou aquele que morre é reduzido ao nada e não tem mais qualquer consciência, ou então, conforme ao que se diz, a morte é uma mudança, uma transmigração da alma do lugar onde nos encontramos para outro lugar. Se a morte é a extinção de todo sentimento e assemelha-se a um desses sonos nos quais nada se vê, mesmo em sonho, então morrer é um ganho maravilhoso. (...) Por outro lado, se a morte é como uma passagem daqui para outro lugar, e se é verdade, como se diz, que todos os mortos aí se reúnem, pode-se, senhores juízes, imaginar maior bem?" Apoiado nessas hipóteses — as únicas existentes a respeito de um fato que não permite certezas racionais —, o setuagenário Sócrates despede-se, tranquilo, de seus concidadãos: "Mas eis a hora de partirmos, eu para a morte, vós para a vida. Quem de nós segue o melhor rumo, ninguém o sabe, exceto o deus".

A execução da pena teve de ser adiada por trinta dias. Como acontecia todos os anos, um navio oficial havia sido enviado ao santuário de Delos para comemorar a vitória de Teseu, o herói mitológico ateniense, sobre o Minotauro, o terrível monstro que habitava o labirinto de Creta e se alimentava de carne humana. Enquanto o navio não regressasse de sua missão sagrada, nenhum condenado podia ser executado.

No diálogo Fédon, Platão descreve as conversações que, durante os dias de espera na prisão, Sócrates mantivera com seus discípulos e amigos. Um problema se propunha a todos como urgente e atormentador: a morte, a morte que para Sócrates se tornava cada dia mais próxima. E, do mesmo modo que nas outras circunstâncias de sua atividade filosófica, Sócrates ocupava-se apenas de questões que eram propostas imediata e vivamente à sua consciência e à de seus interlocutores — assim, naqueles dias em que se aguardava o retorno do navio que partira para Delos, somente tinha sentido meditar e dialogar sobre um problema: o do significado da própria morte. Sócrates então debate com os amigos diversos argumentos que poderiam levar à admissão da imortalidade da alma, uma das únicas soluções que já apontara na parte final da Apologia, quando se despedira de seus juízes. Sobre a outra — a morte representar o nada, como longa noite de sono sem sonhos — nada havia a dizer, como nada havia a temer. Restava explorar a única possibilidade na qual o pensamento podia transitar, tecendo argumentos e conjeturas.

Mas o barco está prestes a retornar de Delos. Na véspera de sua chegada, um dos amigos avisa a Sócrates: "Amanhã terás de morrer". O mestre não se perturba: "Em boa hora, se assim o desejarem os deuses, assim seja". Suplicam-lhe que aceite a fuga que os amigos haviam preparado. Sócrates recusa. E explica: a única coisa que importa é viver honestamente, sem cometer injustiças, nem mesmo em retribuição a uma injustiça recebida. Ninguém, nem os amigos, consegue convencê-lo a abdicar de sua consciência. Entra a mulher de Sócrates, Xantipa, trazendo os filhos para a despedida. Sócrates permanece sereno. Finalmente chega o carcereiro com a cicuta. Imperturbável, Sócrates toma o vaso que lhe é oferecido, de um só gole bebendo todo o veneno. Os amigos soluçam. Mas ele ainda os anima: "Não, amigos, tudo deve terminar com palavras de bom augúrio: permanecei, pois, serenos e fortes".

Ao sentir os primeiros efeitos da cicuta, Sócrates se deita. Aquele que sempre indagara sobre o significado das palavras e dos valores que regiam a conduta humana e investigara o sentido dos costumes e das leis que governavam a cidade buscava a consciência nas ações e nas afirmativas, mas não pretendia se subtrair às normas estabelecidas e às exigências dos preceitos e das instituições sociais e políticas. Porque não traíra sua consciência, preferira a morte a declarar-se culpado. Mas porque respeitava a lei não quisera fugir da prisão. Suas últimas palavras teriam sido ainda um testemunho dessa dupla fidelidade: a si mesmo e aos compromissos assumidos. Dirige-se a um dos amigos presentes, lembrando-lhe que deviam um sacrifício ao deus Asclépio. E morre.

O homem e a lenda

"A vida de um grande homem, particularmente quando ele pertence a uma época remota", escreve o historiador A. E. Taylor, "jamais pode ser o mero registro de fatos indiscutíveis. Mesmo quando tais fatos são abundantes, a verdadeira tarefa do biógrafo consiste em interpretá-los; deve penetrar, além dos simples eventos, no propósito e no caráter que eles revelam, o que só consegue fazer mediante um esforço de imaginação construtiva. No caso das duas figuras históricas que exerceram a mais profunda influência na vida da humanidade, Jesus e Sócrates, fatos indiscutíveis são extraordinariamente raros; talvez haja apenas uma afirmativa a respeito de cada um deles que não possa ser negada sem que se perca o direito a ser contado entre os sensatos. É certo que Jesus 'sofreu sob Pôncio Pilatos', e é não menos certo que Sócrates foi levado a morrer em Atenas, sob acusação de impiedade, no 'ano de Laques' (399 a.e.c.). Qualquer consideração sobre ambos que vá além dessas afirmativas constitui inevitavelmente uma construção pessoal."

O próprio Sócrates nada deixou a respeito de suas atividades e de seu pensamento. Como Jesus, ele nada escreveu e as principais informações que se tem sobre sua vida e sobre seu ensinamento provêm de textos de discípulos, que podem ter retratado o mestre com os excessos ditados pela admiração e pelo afeto. Além disso, há discrepâncias entre esses diferentes perfis — o que gera um problema sério para os historiadores da filosofia. Por outro lado, Sócrates aparece caricaturado em algumas comédias de Aristófanes (c.448-385 a.e.c.), seu contemporâneo, que o utiliza, em parte, como protótipo dos filósofos que especulavam sobre os fenômenos celestes ou que, com artifícios retóricos, "faziam passar por boa uma causa má". Na Apologia de Sócrates, escrita por Platão, o próprio Sócrates, durante seu julgamento, é levado a rebater esse seu retrato feito "por um certo poeta cômico", Aristófanes. Mas o fato é que o Sócrates de que se tem notícia através dos textos antigos surge como um rosto diversamente refletido por diferentes espelhos. Quais os que o deformam, exagerando-Ihe ou modificando-lhe os traços? Onde a face verdadeira?

Para a elucidação da "questão socrática" deve-se, de saída, lembrar que o período em que viveu Sócrates — a Atenas da época de Péricles — não foi marcado pelo desenvolvimento da prosa literária. Foi, ao contrário, uma fase caracterizada pela criação de grandes obras teatrais, particularmente tragédias. Isso justifica, de certo modo, o fato de não se ter nenhuma alusão de um contemporâneo a respeito do que Sócrates teria feito ou dito até quase a idade de cinquenta anos. Tinha aproximadamente 47 anos quando alguns poetas cômicos — Aristófanes, Amipsias e depois Eupolis — o tomaram para personagem de suas composições burlescas. Dessas, apenas a caricatura de Aristófanes conservou-se, tornando-se o único depoimento sobre Sócrates surgido antes de sua morte. Depois desta, eclodiu uma rica produção literária que tomava Sócrates para personagem central. Seus discípulos fazem-lhe a defesa póstuma e apresentam-no como modelo da sabedoria e das virtudes humanas: Platão torna-o a figura principal da maioria de seus Diálogos, Xenofonte exalta-o principalmente nas Memoráveis, Esquines, em diversas obras (que se perderam), falou do mestre de quem fora amigo constante. Mas todos eles descrevem um Sócrates de mais de 45 anos. E, possivelmente, um dos motivos da divergência entre os depoimentos que oferecem e o de Aristófanes reside neste fato: eles falavam do Sócrates maduro, o mestre que se considerava imbuído da missão — assumida em face de decisiva declaração do oráculo de Delfos — de despertar os homens para o conhecimento de si mesmos. Já Aristófanes, particularmente n’As Nuvens, teria feito uma caricatura do Sócrates mais jovem, personagem já famosa em Atenas antes mesmo de desempenhar a atividade missionária de que se julgou incumbido mais tarde.

Visto em épocas tão diferentes, Sócrates poderia ter permitido retratos tão diversos: o mestre modelar, segundo discípulos, e a personagem apresentada por Aristófanes, cômica mas perigosa, pois, na medida em que investigaria os fenômenos celestes — como os filósofos da Jônia —, lançava o descrédito sobre as tradições religiosas que fundamentavam as instituições políticas, e, enquanto apresentaria "como boa uma causa má" — à semelhança de certos sofistas, professores de retórica —, daria aos jovens um perigoso exemplo de relativismo, capaz de abalar a aceitação dos valores tradicionais, éticos, políticos e religiosos. Defensor desses valores, Aristófanes teria centralizado no ateniense Sócrates a crítica às ideias trazidas de outras terras por pensadores que haviam acorrido a Atenas atraídos pelo apogeu cultural e político da cidade, como Anaxágoras de Clazômena (c.500-428 a.e.c..) e Protágoras de Abdera (c.490-421 a.e.c.). O próprio Platão, no Fédon, faz Sócrates confessar o entusiasmo inicial que lhe despertou a obra de Anaxágoras; e indiscutivelmente, pelo menos na aparência, a dialogação socrática tinha, por outro lado, muito da surpreendente e embaraçosa habilidade retórica dos sofistas — o que mostra que, embora se apresentando (na versão platônica) como adversário daqueles mestres de eloquência e argumentação, Sócrates absorvera-lhes, se não as teses relativistas, pelo menos a arma de combate. O depoimento de Aristófanes sobre Sócrates possui assim — para muitos historiadores — certo fundamento, sobretudo em relação ao Sócrates que ainda não havia sido tocado pela palavra do oráculo. Mesmo porque o efeito de comicidade a que visava Aristófanes não teria nenhum resultado se a caricatura traçada não apresentasse, aos olhos do público, alguma semelhança com o modelo real.

A "questão socrática"

Outros depoimentos antigos importantes sobre Sócrates são o de Aristóteles (384-322 a.e.c..) — discípulo de Platão — e os provenientes de biógrafos da fase helenística, como Diógenes Laércio (século III e.c). Todavia, a interpretação aristotélica de Sócrates — que o apresenta como iniciador do trabalho de definição de conceitos (relativos ao campo moral) — é vista com reservas pelos historiadores, pois Aristóteles sempre "aristoteliza" o pensamento de seus antecessores, tornando-os momentos preparatórios de suas próprias concepções filosóficas. Por outro lado, as biografias que sobre os pensadores mais antigos da Grécia foram produzidas no período helenístico não apresentam grande exigência crítica. Numa fase marcada pela sombra da perda de liberdade política, o importante para os gregos era descrever a vida daqueles que haviam vivido nos momentos da perdida grandeza política, sem se importar tanto com o rigor das informações e misturando dados históricos com relatos fantasiosos.

As fontes mais seguras para a reconstituição da vida e do pensamento de Sócrates continuam sendo, assim, os depoimentos de seus contemporâneos. Do confronto entre os testemunhos deixados por Platão, Xenofonte e Aristófanes é que sobretudo os historiadores têm procurado recompor a verdadeira fisionomia do Sócrates-homem e do Sócrates-filósofo. Se Aristófanes teria focalizado Sócrates na fase anterior a seu magistério filosófico e se, além disso, misturou-lhe os traços com os de cosmólogos jônicos e os dos sofistas, então de Xenofonte e de Platão é que devem ser recolhidas as principais informações referentes ao Sócrates que marcou tão profundamente não apenas a cultura grega como também toda a herança ocidental. Xenofonte, porém, segundo a maioria dos historiadores, espírito bastante simplório, não teria tido condições para apreender toda a dimensão dos ensinamentos socráticos. Essa seria a razão de, frequentemente, trazer as ideias éticas de Sócrates para o nível de simples lugares-comuns, empobrecendo-as e deturpando-as.

O contrário exatamente é o que se pode dizer de Platão: ninguém mais bem dotado para acompanhar o mestre em todas as suas sutilezas e em todos os seus vôos, por mais altos que se alçassem. Aqui o perigo é oposto: Platão pode ter atribuído a Sócrates mais do que ele disse ou quis dizer. E, na medida em que o torna personagem-chave de quase todos os Diálogos que escreveu, não apenas reportou situações e debates vividos por Sócrates, como — considerando-se continuador da linha de pensamento inaugurada pelo mestre — utilizou-o, a partir de certo momento da evolução de sua própria filosofia, como porta-voz de suas doutrinas. A resolução da "questão socrática" transforma-se assim, em grande parte, na questão da delimitação de fronteiras entre o pensamento de Sócrates e o de Platão, dentro dos próprios Diálogos platônicos.

Confrontando-se o socratismo de Platão com o dos chamados "socráticos menores" (megáricos, cínicos, cirenaicos), pode-se, até certo ponto, tentar uma aproximação do Sócrates histórico. Este, de qualquer forma, desde a Antiguidade, perdeu o caráter estrito de indivíduo concreto, condenado à morte em 399 a.e.c., para se transformar em ideal humano ou em motivo de escândalo — um elemento definitivamente integrante da consciência ética do Ocidente. Na medida mesma em que só se tem de Sócrates reflexos produzidos na consciência e na obra de discípulos ou de adversários, já que ele teria escolhido a comunicação direta e viva do diálogo oral, torna-se difícil reconstituir com fidelidade sua vida e seu pensamento. Diante das incertezas inevitáveis, alguns historiadores modernos chegaram a levantar a hipótese da inexistência do Sócrates histórico — pelo menos com as características que lhe foram apontadas pelos relatos dos antigos. Sócrates, chegou-se a afirmar, seria uma criação literária, a serviço do nacionalismo ateniense. Se essa tese não prevalece entre os historiadores, por outro lado é inegável que a recuperação de Sócrates como "fato" histórico defronta-se com a dificuldade da escassez de dados indisputáveis: a objetividade histórica de Sócrates se dilui na teia de depoimentos diversos e às vezes discrepantes. Porém não foi justamente isso o que — segundo a Apologia platônica — ele quis ser: alguém que apontava não para a ciência das coisas e sim para a consciência do próprio homem? A ciência sobre Sócrates — a resolução da "questão socrática", a reconstituição do Sócrates histórico — não poderia assim ser socraticamente reformulada? A escassez de dados objetivos indiscutíveis a seu respeito não o transforma, fundamentalmente, num apelo à consciência do homem que dele se aproxima — como contemporâneo ou como estudioso, em qualquer época, de seu pensamento? Ele, que reiteradamente teria afirmado não possuir ciência alguma, não teria também declarado ter aceito a missão de ajudar os homens a se voltarem para o conhecimento de si mesmos, para o desbravamento da própria subjetividade, tentando a conquista da própria alma? Pois essa consciência e essa subjetividade é que estão desde logo comprometidas com Sócrates, quando se pretende recuperar sua fisionomia autêntica. Tentar decifrá-lo é já decifrar-se um pouco, buscar conhecê-lo é inevitavelmente uma ocasião para reagir ao desafio de seu enigma. Sócrates remete seu decifrador à própria consciência, oferecendo-lhe uma ocasião para se conhecer a si mesmo.

O homem e o oráculo

 Nascido em Atenas em 470 ou 469 a.e.c., na época em que findava a guerra entre os gregos e os persas (guerras persas) e quando a vitória da Grécia marcaria o início da fase áurea da democracia ateniense, Sócrates era filho de um escultor, Sofronisco, e de uma parteira, Fenareta. Teria seguido, durante algum tempo, a profissão paterna e é provável que tivesse recebido a educação dos jovens atenienses de seu tempo, aprendendo música, ginástica e gramática. Além disso beneficiou-se da própria atmosfera cultural da época, das mais brilhantes da cultura grega. Era o famoso "século de Péricles", idade de ouro da civilização ateniense. Através de sua frota, Atenas domina os mares e chega a criar uma verdadeira talassocracia. Graças à proteção de Péricles, artistas como os escultores Fídias e Ictino embelezam a cidade com suas obras magistrais, enquanto pensadores de outras regiões do mundo helênico, como Anaxágoras de Clazômena e Protágoras de Abdera, trazem para Atenas os frutos da investigação filosófica e científica que, desde o século VI a.e.c.., vinha se desenvolvendo nas colônias gregas da Ásia Menor e nas cidades da magna Grécia (sul da Itália e Sicília). É o momento também dos grandes autores trágicos: Esquilo morreu quando Sócrates tinha cerca de quatorze anos, Sófocles e Eurípides eram aproximadamente mais velhos dez anos que o filho de Fenareta. Centro do mundo grego, "Hélade da Hélade", Atenas é, no tempo de Sócrates, um ponto de convergência cultural e um laboratório de experiências políticas, onde se firmara, pela primeira vez na história dos povos, a tentativa de um governo democrático, exercido diretamente por todos os que usufruíam dos direitos de cidadania. Nessa democracia, a função pública dos oradores torna-se fundamental e, consequentemente, a palavra torna-se não apenas um instrumento de ascensão política, como também um problema a preocupar retóricos e pensadores. Preparar o indivíduo para a vida pública, conferir-lhe capacitação ou virtude (aretê) política, representa, basicamente, adestrá-lo na arte da persuasão através da palavra.

Atendendo a esses requisitos da ação política da Atenas democrática, para aí acorrem os sofistas, professores de eloquência que, bem remunerados, se dispunham a ensinar aos jovens atenienses o uso correto e hábil da palavra. Eles próprios, designando-se "sábios" (sofistas), traziam uma mensagem contrária às pretensões dos tradicionais "amigos da sabedoria" (filósofos). Não se preocupavam com tentar desvendar o segredo dos astros ou da origem do universo, como os cosmologistas jônicos, voltando seu interesse para o plano humano, dos valores morais e políticos. Negando a possibilidade de se desvendar a natureza (physis) das coisas, fundamentam todo o conhecimento na convenção (nomos), a partir das impressões sensíveis. Donde resulta que nenhuma afirmativa poderia pretender validade absoluta, só valendo relativamente às experiências e às circunstâncias em que tem origem. "O homem é a medida de todas as coisas, das que são enquanto são e das que não são enquanto não são", afirma Protágoras de Abdera, exprimindo o relativismo da sofistica.

Outro grande representante dessa corrente, Górgias de Leontinos (c.487-380 a.e.c.), justificando o valor da retórica, mostra que as noções propostas pelos filósofos como capazes de resolver os problemas do mundo físico eram turvas e cheias de ambiguidades: seria pelo menos tão difícil falar sobre o ser quanto sobre o não-ser. Lidando apenas com suas sensações, o homem não teria acesso direto às coisas e jamais teria a garantia de estar transmitindo a outrem, com fidelidade, aquilo que ele percebe. Resta-lhe um plano em comum com os demais: o das palavras, convenções que resumem múltiplas sensações. A linguagem é o que compete ao homem investigar, desenvolver, aprimorar, para atender a seus interesses e necessidades. Desvinculadas da physis, não mais expressão da "alma das coisas", as palavras se dessacralizam. Mas, com isso, os valores humanos que elas exprimem perdem o peso do absoluto e da universalidade: tornam-se convencionais, circunstanciais, relativos.

A moral tradicional e as normas de conduta política pareciam estar ameaçadas pela vaga de racionalização trazida pelos sofistas. Mas, na verdade, não é com eles que tem início a humanização relativizadora dos valores. Eles apenas exprimem o clima cultural do Atenas daquele tempo: a relativização dos valores e a laicização das questões morais aparecem na própria evolução da tragédia grega, de Esquilo a Eurípides, passando por Sófocles. O "homem medida de todas as coisas" era mais do que a expressão do relativismo de Protágoras de Abdera: manifestava uma situação geral do momento histórico vivido pela Grécia, e particularmente por Atenas, como resultado da progressiva valorização da "medida humana", iniciada alguns séculos antes. O próprio regime democrático — fruto daquela valorização — permitia ao cidadão ateniense a experiência diária de que é o homem que faz ou altera as leis, como resultado do confronto e do acordo entre interesses e pontos de vista diferentes.

Embora confundido — como por Aristófanes — com os sofistas, Sócrates desenvolverá, junto aos atenienses, uma atividade sob vários aspectos oposta à dos mestres de eloquência e da arte de persuasão. Essa atividade ele mesmo considera, como relata Platão na Apologia, a sagrada missão que lhe fora confiada pelo deus de Delfos. Até esse momento, ele havia acompanhado, como pretendem alguns biógrafos, os ensinamentos de sofistas como Hípias (século V a.e.c..) e Pródicos (c.465-399 a.e.c.). Havia também se encantado provisoriamente — como narra o Fédon de Platão — com a doutrina de Anaxágoras, que afirmava que todas as coisas do universo se tinham organizado devido à ação inicial da Inteligência ou do Espírito (Nous). Teria ainda recebido a influência de duas mulheres, a cortesã Aspásia de Mileto e a sacerdotisa Diotima de Mantinéia (a quem Sócrates, no Banquete de Platão, atribui a concepção de amor que apresenta).

Em 432 a.e.c.. explode o conflito entre Atenas e a outra cidade que com ela disputava a hegemonia do mundo grego: Esparta. Sócrates toma parte na guerra do Peloponeso e destaca-se pela bravura e pelas demonstrações de resistência física. Durante o cerco de Potidéia, salva a vida de Alcibíades (c.450-404 a.e.c.), que se tornará político e militar famoso e discutido, além de dedicar a Sócrates — como Platão o faz declarar no Banquete — um exaltado afeto. No mesmo diálogo, Alcibíades revela outro traço da personalidade de Sócrates que o tornava invulgar: certa vez, em Potidéia, ele teria permanecido, durante 24 horas, imóvel e absorto em seus pensamentos, diante da estupefação dos soldados.

Mais tarde (424 a.e.c.), Sócrates teria participado novamente de campanha militar, desta vez em Délio, quando os atenienses foram derrotados pelos tebanos. Teve então a oportunidade de salvar a vida de Xenofonte. Mas também em tempos de paz sua coragem foi demonstrada. Em 406 a.e.c., enfrentou a ira da multidão que exigia a condenação sumária dos generais tidos como responsáveis pelo desastre de Arginusas — quando a tempestade impediu que fossem recolhidos no mar, como estabelecia a lei, os corpos dos que pereceram no combate. Apesar das ameaças, Sócrates, sorteado para dirigir a assembleia escolhida para julgar os generais, fez prevalecer a lei, impondo que houvesse tantos julgamentos quantos eram os acusados. Noutra ocasião, quando o regime democrático foi provisoriamente interrompido pelo governo dos Trinta Tiranos, Sócrates arrostou a fúria desses oligarcas, ao recusar-se a participar da tentativa de sequestro dos bens de Leon de Salamina, o que considerava injusto. Diante de qualquer forma de governo e de qualquer autoridade constituída, Sócrates prestava primeiro obediência aos ditames de sua própria consciência.

Mas o fato que teria marcado, de forma decisiva, o resto de sua existência foi, segundo ele mesmo afirma na Apologia, a declaração, pelo oráculo de Delfos a seu amigo Querefonte, de que ele era o mais sábio dos homens. Logo ele, sem nenhuma especialização, ele que estava ciente de sua ignorância? Logo ele, numa cidade repleta de artistas, oradores, políticos, artesãos? Sócrates parece ter meditado bastante tempo, buscando o significado das palavras da pitonisa. Afinal concluiu que sua sabedoria só poderia ser aquela de saber que nada sabia, essa consciência da ignorância sobre coisas que era sinal e começo da autoconsciência. E viu nas palavras oraculares a indicação de uma missão a cumprir. "Desde então", conta em seu julgamento, "de acordo com a vontade do deus, não deixei de examinar os meus concidadãos e os estrangeiros que considero sábios e, se me parecerem que não o são, vou em auxílio do deus revelando-lhes sua ignorância."

O renascer na própria alma

A atividade filosófica de Sócrates tinha em sua origem — a crer no depoimento da Apologia platônica — uma dimensão religiosa. Se, em nome da indicação contida na afirmativa do oráculo, Sócrates desenvolveu uma insistente investigação sobre o significado de palavras, certamente não visava, como interpretará Aristóteles, à definição de conceitos. Tanto que os Diálogos de Platão, considerados transcrições aproximadas de conversações efetivamente entabuladas por Sócrates (os primeiros Diálogos, justamente designados "socráticos"), terminam sempre sem que se chegue a uma conclusão a respeito do tema debatido. É que, para Sócrates, a meta seria não o assunto em discussão, mas a própria alma do interlocutor, que, por meio do debate, seria levada a tomar consciência de sua real situação, depois que se reconhecesse povoada de conceitos mal formulados e obscuros.

A implacável racionalização contida na dialogação socrática — com a qual, segundo o filósofo alemão Nietzsche (1844-1900), Sócrates teria amortecido a primitiva força criadora do gênio grego — significava, ao que parece, fidelidade e submissão ao oráculo. Em Sócrates a razão seria tão mais forte e exigente quanto não teria apenas em si mesmo o motivo de sua autoconfiança. A sabedoria oracular — que já havia marcado o pensamento e a linguagem de Heráclito de Efeso (540-480 a.e.c..) — parece constituir para Sócrates o absoluto em que se apóia a razão. Ao tentar decifrá-lo, a razão não se contrai, antes se expande, e, porque o absoluto é sua meta e seu ponto de referência, ela pode e deve traçar um itinerário que não conhece limites.

No cumprimento da missão de que se sente encarregado, Sócrates dialoga. Geralmente o interlocutor, tido como autoridade em algum ramo de conhecimento ou de atividade, decepciona-o. Apenas nos artífices encontra alguma consciência daquilo que fazem. Mas esses revelam um conhecimento restrito a suas especializações e embaraçam-se quando levados a opinar sobre outros assuntos, embora de geral interesse para os homens. Isso parece confirmar a Sócrates o sentido da superioridade que lhe fora atribuída pelo oráculo: o reencontro consigo mesmo só pode partir da consciência da própria ignorância. Mas essa ignorância, que é um atributo de Sócrates, não é geralmente assumida pelas outras pessoas, que se julgam na posse de "verdades". Torna-se necessário, portanto, levá-las, de saída, a despojar-se dessas pseudoverdades — única forma de torná-las aptas a caminharem em direção ao conhecimento de si mesmas. A demolição das falsas ideias que fundamentam a falsa imagem que as pessoas têm delas próprias é o que pretende a ironia: momento do diálogo em que Sócrates, reafirmando nada saber, força o interlocutor a expor suas opiniões, para, com habilidade, emaranhá-lo na teia obscura de suas próprias afirmativas e acabar reconhecendo a ignorância a respeito do que antes julgava ter certeza. A ironia socrática tem, assim, a função de propiciar uma catarse: uma purificação da alma por via da expulsão das idéias turvas, das ilusões e dos equívocos que distanciavam a alma de si mesma.

Orientado por seu "demônio" (daimon), espécie de voz interior que às vezes lhe freava as iniciativas e impedia-o de dialogar com determinadas pessoas, Sócrates escolhia aqueles com os quais a conversa poderia assumir caráter de reconstrução, após o exorcismo propiciado pela ironia. Nessa outra fase do método socrático, o interlocutor — transformado em discípulo — é levado, progressivamente, pela habilidade das questões propostas, a tentar elaborar ele mesmo suas próprias ideias. Não mais a repetição automática de fórmulas consagradas ou chavões herdados, embora ocos de sentido. Agora, de início timidamente, o interlocutor-discípulo é conduzido ao risco de tentar ser ele mesmo, de ele mesmo conceber ideias. E de ser ele mesmo sua própria alma. Sócrates — dando um exemplo que a pedagogia moderna frequentemente tenta reviver — reserva-se nessa fase, chamada maiêuticaou parturição das ideias, um papel semelhante ao de sua mãe, Fenareta. Ela ajudava as mulheres a darem à luz seus filhos; Sócrates, que se dizia ele mesmo estéril — pois só sabia que nada sabia —, procurava auxiliar as pessoas noutra forma de concepção, a das ideias próprias: forma de se ir ao encontro de si mesmo — como prescrevia a inscrição do templo de Delfos — e de fazer de si mesmo seu próprio ponto de partida. Em algumas afirmativas que lhe são atribuídas, Sócrates compara-se aos médicos: como estes, ele submetia, quando necessário, o interlocutor-paciente à purgação da ironia, condição preliminar para a recuperação da saúde da alma, que seria o conhecimento de si mesma. E, na verdade, o sentido da filosofia — que ele identificava com sua sagrada missão — era o de conduzir o indivíduo a pensar como quem se cura: pensando palavras como quem pensa feridas.

Na escolha de seus interlocutores, Sócrates não levava em conta fatores de natureza social e econômica. Seu daimon guiava-o no processo seletivo, fazendo-o perceber, com um agudo senso de oportunidade pedagógica, quais as pessoas que ainda não dispunham de condições psicológicas para ser submetidas ao "tratamento" da ironia e da maiêutica. Imbuído de espírito missionário, Sócrates, ao contrário dos sofistas, não cobrava por seu trabalho: considerava-se a serviço do deus. Assim, enquanto a atividade pedagógica dos sofistas tinha como consequência política facilitar a ascensão na vida pública daqueles que dispunham de recursos suficientes para pagar suas caras lições — e que, portanto, já detinham em suas mãos o poder econômico —, a de Sócrates, exercida em nome do espírito religioso, abria-se a qualquer um que manifestasse situação psicológica favorável à realização do processo de autoconhecimento. Essa forma de seleção dos interlocutores-educandos tornava democratizadora a pedagogia socrática.

Mas, para aquela democracia, que recusava o direito de cidadania às mulheres, aos estrangeiros e aos escravos — portanto, à maioria da população de Atenas —, o Sócrates pedagogo e médico de almas constituía uma denúncia de suas limitações e, conseqüentemente, um perigo. No diálogo Ménon, Platão descreve Sócrates realizando a maiêutica com um escravo e levando-o a conceber noções sobre intrincada questão matemática (relativa aos "irracionais"). Mesmo que não se trate, no caso, do relato de um fato efetivamente ocorrido, ou se teria sido outro o conteúdo da conversação entre Sócrates e o escravo, não importa: a situação descrita por Platão é certamente representativa do menosprezo de Sócrates pelos preconceitos sociais da própria democracia ateniense. Demonstrar publicamente que um escravo era capaz, se bem conduzido pelo processo educativo, de ter acesso às mais importantes e difíceis questões científicas era sem dúvida provar que ele era pelo menos igual, em sua alma, a qualquer cidadão. Era invalidar as distâncias sociais e políticas entre os indivíduos e mostrar que, de direito, todos eram intrinsecamente semelhantes. Porque sua missão era levar todos os homens a buscar o verdadeiro bem — pelo cuidado da própria alma —, Sócrates contrariava os interesses daquela minoria que detinha o poder na democracia ateniense. Assim, quando em 399 a.e.c.. a democracia condena-o à morte, ela não apenas o pune: ela se defende.

bom?

Para os primeiros filósofos gregos, o homem seria explicado pelo mesmo substrato ou pela mesma natureza (physis) que justificaria a existência de todos os seres. Se tudo era constituído ou proviria de água, ou de fogo, ou de átomos, também o homem teria na água, no fogo ou nos átomos as "raízes" de sua realidade física, psíquica e moral. Como transparece claramente no pitagorismo, a ética se inseria na cosmologia. Justamente a grande revolução filosófica instaurada pelos sofistas consistiu na desvinculação do homem em relação à physis universal. Certamente sob a influência das escolas médicas — que verificavam a peculiaridade de determinadas reações orgânicas do homem —, os sofistas passam a atribuir autonomia à natureza humana. Mas o humanismo que formulam apresenta-se vinculado ao ceticismo, à indiferença religiosa e ao relativismo epistemológico.

Refletindo outros fundamentos, o humanismo socrático — centralizado no preceito "conhece-te a ti mesmo" — caminha num sentido aparentemente semelhante, mas, na verdade, profundamente diverso.

A tradição ética na cultura grega parte de Homero e Hesíodo. As epopéias homéricas (séculos X-VIII a.e.c..) formulam uma ética aristocrática que fazia da virtude (aretê) um atributo inerente à nobreza e manifestado por meio da conduta cortesã e do heroísmo guerreiro. Justamente porque identificada a atributos da nobreza, a aretê homérica era usada para designar não apenas a excelência humana, como também a superioridade de seres não-humanos — como a força dos deuses e a rapidez dos cavalos nobres. Originariamente, portanto, a palavra aretê não tem o sentido preciso de "virtude". Ainda não atenuada por seu uso posterior puramente ético, estava de início ligada às noções de função, de realização e de capacitação, denotando a excelência de tudo o que é útil para algum ato ou fim. Com Hesíodo (século VIII a.e.c.) é que a aretê passa a assumir significado mais estritamente moral: deixa de ser atributo natural de bem-nascidos para se transformar numa conquista, resultado do esforço e do trabalho enobrecedor de qualquer homem. Por isso mesmo é que com Hesíodo já se propõe a questão do ensino da aretê, que será retomada pelos sofistas e por Sócrates. Antes dos sofistas, o tema da aretê e de seu ensino, desde Hesíodo, estivera inserido na temática de poetas, como Teognis, Simônides e Píndaro, que desenvolveram a chamada poesia parenética, de exortação moral. Os sofistas é que transpõem para a prosa uma questão de que tradicionalmente se ocupara a poesia — e isso é sinal de que neles essa problemática recebia sua definitiva racionalização.

Sócrates reage ao relativismo sofistico. Ao que tudo indica, alicerçado em pressupostos religiosos órfico-pitagóricos, não concebe o conhecimento humano como apenas a sucessão de impressões sensíveis — fugazes e intransferíveis — ou a criação, a partir delas, dos sinais convencionais que constituiriam a linguagem. Se as palavras são geralmente um terreno instável e uma expressão de opinião relativa e insegura, é porque, segundo ele, não estariam acompanhadas da consciência de seu significado. Mas esse significado, por sua vez, deveria emanar da própria alma do indivíduo, que constitui uma unidade subjacente às mutáveis impressões dos sentidos.

Na verdade, Sócrates criou uma nova concepção de alma (psique), que passou a dominar a tradição ocidental. Antes, como em Homero, a psique era o "duplo" que podia se desprender provisoriamente durante o sono ou definitivamente, com a morte, mas que nada tinha a ver com a vida mental ou as "faculdades" da pessoa. Nos órficos, era o princípio superior, que se reencarnava sucessivamente, atravessando o processo purificador que a reconduziria às estrelas e a reintegraria na harmonia universal; mas, enquanto ligada ao corpo, só se manifestava em situações excepcionais — sonhos, visões, transes. Nos pensadores jônicos do século VI a.e.c., a psique era apenas uma parte do todo: porção do pneuma (ar) infinito que habitava o corpo, vivificando-o provisoriamente até escapar, como último alento, na hora da morte — como em Anaxímenes de Mileto; ou porção de fogo a aquecer e animar o corpo até que afinal retornasse à unidade do Fogo-Razão, o Logos universal "eternamente vivo, que se acende com medida e se apaga com medida" — como em Heráclito de Efeso. É a partir de Sócrates — ou pelo menos é na literatura referente a ele e que se seguiu à sua morte — que surge a concepção de alma como sede da consciência normal e do caráter, a alma que no cotidiano de cada um é aquela realidade interior que se manifesta mediante palavras e. ações, podendo ter conhecimento ou ignorância, bondade ou maldade. E que, por isso, deveria ser o objeto principal da preocupação e dos cuidados do homem.

Essa concepção de alma torna compreensível a tese socrática de que virtude é conhecimentoe que, por conseguinte, ninguém erra deliberadamente. Só que aquele conhecimento nada teria a ver com as opiniões flutuantes e geralmente infundadas. O conhecimento que Sócrates identifica à aretê é a episteme (ciência), não a doxa (opinião). E essa episteme — que não pode ser ensinada — não constitui uma ciência sobre coisas ou informações voltadas para a obtenção de prestígio ou de riquezas: é o conhecimento de si mesmo, a autoconsciência despertada e mantida em permanente vigília. Bom é, assim, o homem autoconstruído a partir de seu próprio centro e que age de acordo com as exigências de sua alma-consciência: seu oráculo interior finalmente decifrado.

Textos com indicação livre
7/3/2022 3:40:46 PM | Por Robert Biswas-Diener, Todd B. Kashdan
O papel da intuição no bem-estar

Ao entrar numa livraria, você encontra uma estante, quando não uma seção inteira, de títulos que alardeam as vantagens de desenvolver mindfulness. Resumidamente, mindfulness é um es­tado de consciência plena. É saber observar o mundo à sua volta sem interferências de diálogo interno, julgamento e outras distra­ções. É conseguir ver um vestido como vermelho em vez de “lin­do”, ou ficar desapontado por alguma coisa em vez de se ver como “um fracasso”. Mindfulness está muito em moda. Phil Jackson, trei­nador que ganhou os maiores campeonatos da NBA em todos os tempos, era famoso por recomendar técnicas de mindfulness aos jogadores de basquete. Meditação mindfulness e concentração são usadas em psicoterapias, treinamentos esportivos e até no ramo dos negócios. Atualmente, mindfulness é aclamada como o estado ótimo do funcionamento humano.

Os entusiastas de mindfulness não são apenas uns poucos sob a influência de algum elixir da Nova Era. Há um crescente corpo de evidências científicas corroborando as vantagens da “observação tranqüila”, em oposição a julgamento e interpretação, daquilo que acontece no momento presente. Uma série de estudos mostra que pessoas com tendência a ser mindful na vida afirmam ter mais felicidade, encontram mais significado e propósito na vida, têm inteligência emocional superior, maior nível de autocompaixão e maior capacidade de lidar com situações de estresse crônico. Mindfulness, ao que parece, é bom demais.

Se você quiser dados específicos convincentes, não precisa ir além dos dois principais cientistas que foram instrumentais na popularização de práticas de mindfulness nos Estados Unidos, Jon Kabat-Zinn, da Universidade de Massachusetts Medical School, e Richard Davidson, da Universidade de Wisconsin.2 Kabat-Zinn é considerado o pai do movimento mindfulness norte-americano, e Davidson é famoso e altamente conceituado por seu pendor a usar ressonância magnética funcional e outros instrumentos de mapeamento cerebral para estudar os fundamentos biológicos e psicológicos de mindfulness. Num estudo recente, Kabat-Zinn e Davidson deram um curso de oito semanas para funcionários de uma empresa de biotecnologia. Após exporem muitos funcionários a um surto de gripe, constataram que os que haviam feito o curso apresentaram uma notável resistência à gripe.

Como se a maior imunidade não bastasse, os pesquisadores descobriram também mudanças concretas no cérebro daqueles funcionários após meras vinte horas de treinamento em mindfulness (duas horas e meia por semana). Constataram um aumento de 400% de ativação no lado esquerdo do córtex pré-frontal anterior.3 Você deve estar se perguntando: “Será que eu quero um córtex pré-frontal anterior mais ativado?” A resposta é sim. Essa é a região do cérebro associada a emoções positivas e à predisposição para ver o estresse mais como um desafio a ser enfrentado do que um perigo a ser evitado. Aqueles funcionários precisaram apenas do tempo que levariam assistindo a quatro jogos de futebol ou indo três vezes ao supermercado para modificar o cérebro de modo a ter maior sucesso. É correto dizer que mindfulness não é só ótimo; é realmente ótimo.

Se mindfulness é tão útil, por que não nascemos equipados para fazer isso com mais frequência? Há uma razão para os seres humanos terem evoluído de modo a passar uma enorme quantidade de tempo sendo mindless, distraídos. O pensamento consciente, que nos mantém atentos ao que está acontecendo no momento presente, tem uma capacidade de processamento muito limitada. Pense no esforço dispendido pelo cérebro quando passamos por alguém na rua. Estimamos a distância que estamos do corpo da pessoa, calculamos nossa velocidade e a dela, calculamos onde nosso corpo termina e o dela começa, para evitar um esbarrão, e enquanto tudo isso está acontecendo movemos magistralmente uma perna após a outra sem tropeçar em nada no chão, nem atropelar uma árvore em nosso espaço aéreo.

Quando você vê o rosto de alguém, decide imediatamente se é uma pessoa conhecida e, pela expressão dela, avalia se ela está feliz ou infeliz, se é amigável ou perigosa, querendo ou não parar para conversar. Essa função é ainda mais difícil porque, em vez de ficarem parados, os músculos faciais da pessoa se movem, mostrando expressões ligeiramente diferentes a cada poucos segundos, o que exige uma avaliação contínua. Se por acaso você conhece a pessoa, ainda precisa acessar funções de nível mais alto. Precisa lembrar o nome, o tipo de seu relacionamento com ela, lembrar o que conversaram em interações anteriores, e pôr em ação habilidades motoras finas de contato visual (nem de mais nem de menos), volume da voz, conteúdo verbal, e habilidades de audição e codificação exigidas para manter uma conversa. Se você precisasse proceder com atenção consciente e deliberada, jamais seria capaz de chegar ao fim dessa lista enorme de atividades.

A mente consciente é incapaz de manipular as camadas de dados complexos, dinâmicos, que nos inundam a cada momento. Um erro de processamento e você é atropelado por um carro em alta velocidade, fala um palavrão na frente das crianças, deixa escapar um segredo profissional, queima a mão no forno, comete um milhão de pequenas faltas. Por necessidade, muito desse processamento mental ocorre na velocidade do pensamento fora do radar da atenção consciente.

Neste capítulo, dizemos “mindless” para indicar um claro contraste da obsessão cultural de mindfulness como solução para boa saúde, bons relacionamentos e maior sucesso. As pessoas se sentem desconfortáveis com mindfulness porque é o oposto da intencionalidade, da estratégia e de todas as indicações de superioridade da inteligência humana. Uma longa tradição de intelectuais afirma que o bem viver é previdente e planejado. Mindlessness, pelo contrário, é a marca característica de, digamos, zumbis. Curiosamente, tomando o exemplo de zumbis, podemos encontrar uma ilustração das vantagens de mindlessness.

Steven Yeun faz o papel de Glenn na premiada série de televisão sobre o apocalipse de zumbis, The Walking Dead. Em quatro temporadas, o personagem de Steven se transforma de enérgico herói em esfalfado sobrevivente que foge com seus amigos de um ataque após outro de zumbis famintos de carne humana. Você pensaria que, como ator, Yeun deve dedicar uma quantidade considerável de atenção consciente às emoções, postura e atitudes do personagem. Isso deve se aplicar principalmente a cenas complicadas, quando ele finge pisotear um zumbi numa luta. Yeun diz que o segredo para fazer a cena parecer real é pensar como um zumbi, isto é, não pensar. Ele comenta que, se fosse ter o cuidado de calcular quantos centímetros de distância seu pé precisaria es­tar da cabeça do ator que representa o zumbi, a cena ficaria desco­nexa e artificial. Em vez de pensar muito firme e deliberadamente (concentração bruta), ou se fixar numa observação sem julgamen­to do que está ocorrendo no momento (mindfulness) para fazer bem seu papel, ele precisa atuar com um mínimo de reflexão conscien­te, exatamente como se comportaria se realmente estivesse andan­do pela rua tentando se livrar de um bando de zumbis comedores de cérebros. Ele precisa confiar no processamento automático, que se compõe de decisões intuitivas, instintivas, ações baseadas no bem projetado equipamento evolucionário, e em anos de pro­fissão (que Steven Yeun tem como ator). No centro da brilhante atuação de Yeun, está a capacidade de se perder - largar sua men­te consciente - totalmente e se tornar outra pessoa, o personagem tentando sobreviver ao apocalipse de zumbis num mundo alter­nativo onde milhões de telespectadores entram durante uma hora a cada semana.

As páginas a seguir exploram três áreas em que as pesquisas científicas sugerem que mindlessness pode ajudá-lo a ser mais pro­dutivo, criativo, e mais capaz de trilhar o tormentoso e ambíguo terreno da vida diária. Podemos definir mindlessness como um es­pectro que vai da distração à total imersão no inconsciente, mas isso não faria justiça ao tópico. Assim sendo, vamos expor três ti­pos de mindlessness que podem apontar o caminho do sucesso e bem-estar: 1) ligar o piloto automático, 2) partir para ações impul­sivas e 3) confiar em decisões mindless. As pessoas mais psicologi­camente flexíveis - e mais bem-sucedidas - têm a capacidade de transitar muito bem entre mindfulness e mindlessness, em vez de ficarem presas a um desses modos. Ao conhecer e usar intencionalmente esses caminhos, ainda que subestimados, você poderá ter aqueles 20% a mais, desperdiçados por quem permanece ligado à ideia de que mindfulness é melhor que mindlessness.

Três caminhos mindless para o sucesso e bem-estar

O pensamento consciente se mantém firme sob o farol [enquanto] o pensamento inconsciente se aventura pelas fendas e recantos escuros e poeirentos da mente - Dijksterhuis &Meurs, 2006

LIGAR O PILOTO AUTOMÁTICO

Para economizar espaço de computação no cérebro, as pessoas recorrem ao pensamento heurístico, isto é, usam atalhos cognitivos automáticos - e portanto mindless. Um modo comum de usar o pensamento heurístico é categorizar as coisas. Quando você vai ao correio, não vai ao balcão perguntar se o funcionário fala sua língua. Ele já foi categorizado como funcionário do correio e, como tal, você supõe que saiba muitas coisas (fala o idioma nacional, é alfabetizado, sabe o preço dos selos, pode responder a perguntas sobre formas de pagamento e assim por diante). A heurística poupa tempo e um valioso espaço cognitivo, pois não incomoda a mente consciente com exercícios desnecessários.

Pesquisas mostram que as pessoas são capazes de fazer julgamentos categóricos inconscientes sobre os outros com uma rapidez extraordinária.5 Num estudo sobre primeiras impressões, os participantes só levaram um décimo de segundo para tirar conclusões sobre a personalidade do outro. Nesse breve espaço de tempo, fizeram julgamentos sobre confiabilidade, estabilidade emocional, gentileza, entusiasmo, negligência, abertura a novas experiências e outros aspectos da personalidade. Se colocarmos esse nosso espantoso aparelho detector de personalidade em perspectiva, você levaria duzentas vezes mais tempo só para ler este parágrafo. Você deve estar se perguntando se essas avaliações tão rápidas são corretas. Numa ampla série de estudos, pesquisadores constataram que observações em “fatia fina” têm exatidão bem acima da média (cerca de 70% corretas).6 Resultado excelente para um pingo de tempo e esforço.

1. DETECTOR MINDLESS DE SITUAÇÕES SOCIAIS IMPRECISAS

Um aspecto importante do pensamento automático é determinar se uma pessoa desconhecida é ou não confiável. Essa difícil tarefa é essencial para relações comerciais e sociais, afora a segurança pessoal. Se errar, você pode ser lesado, atacado ou, no mínimo, perder um tempo enorme quando poderia estar alicerçando uma boa amizade com outra pessoa. Muitos cientistas acreditam que confiamos ou não conforme as reações da pessoa às nossas “deixas”. Quando o outro espelha nosso comportamento, é um sinal de que nossas necessidades, valores e bem-estar o afetam e despertam seu interesse.

Rick van Baaren e seus colegas da Universidade de Nijmegen viram que, quando garçons repetiam os pedidos dos clientes (um sinal claro de que o garçom estava atento), as gorjetas aumentavam em até 68%.7 Estamos certos de que era um ato mindless dos clientes (não calculavam ativamente quanto dinheiro deixar na mesa se o garçom repetia em voz alta seu pedido de um copo de água). Esse simples ato de repetir o pedido é um sinal sutil de que o garçom está atento, ciente e é confiável no contexto do restaurante.

Uma boa manutenção de interações sociais pode ser difícil, inclusive nas conversas em que você está fora de sintonia com a pessoa, ou quando sorri e se inclina para contar uma piada e a pessoa não se aproxima nem muda de expressão. Uma troca sem movimentos coordenados e algum grau de espelhamento é esquisita e desagradável. Pesquisadores afirmam, com razão, que gostamos mais da pessoa quando ela imita nosso humor e nossos gestos - não quando estão zombando, mas quando espelham sutilmente nossa postura, emoção e até o modo de falar. Por outro lado, essa imitação não é apropriada quando estamos competindo com alguém ou pedindo a um vendedor de automóveis uma orientação sobre o melhor carro para a família.

Psicólogos da Universidade de Groningen, da Universidade de Duke e da Universidade de Yale investigaram reações a “sinais sociais de nuanças negativas”.8 Num estudo, quando os participantes foram recebidos por um profissional muito formal e empertigado que tentou imitá-los durante uma interação social, ficaram “arrepiados” literalmente, sentindo 2,5 vezes mais frio do que quando a mesma pessoa não tentou imitá-los. Quando recebidos por uma pessoa amigável, brincalhona, os participantes a preferiam quando ela imitava seus gestos: sentiram duas vezes mais frio físico após passarem algum tempo com uma pessoa amigável que não os imitava, como se o corpo reconhecesse ali uma recepção fria.

Com essa perspectiva em mente, veja o que aconteceu num estudo em que participantes de diferentes grupos raciais interagiram, e depois pediram que eles adivinhassem qual era a temperatura do ambiente. Numa interação de pessoas da mesma raça, a ausência de imitação provocou uma sensação de frio, 2,04° mais frio, para sermos exatos. E, quando a interação se deu com uma pessoa de outra raça, foi a presença de imitação que provocou a sensação de 2,47° mais frio no ambiente. Esse e outros estudos similares são compatíveis com a ideia de que cada um de nós tem uma reação visceral a comportamentos desencontrados em certas situações. Dado que a imitação é tipicamente considerada um sinal de intimidade, é fácil entender que, quando alguém não está esperando intimidade, a imitação desperta suspeita. Pense na queda de temperatura psicológica como um levíssimo sinal, nas franjas da consciência, de que há maneiras menos ameaçadoras, menos incômodas de passar o tempo do que estar com aquela pessoa.

Essa forma de autoproteção mindless é cortesia de milhares de anos de evolução. Perguntado sobre a lição prática a ser extraída disso, o principal autor do estudo, Pontus Leander, diz:

E melhor não se “empenhar tanto” em adotar completamente, porque o tiro pode sair pela culatra (por exemplo, imitação numa interação inter-racial). Esses estudos mostram que é melhor deixar acontecer alguns processos automáticos. Fui criado numa região do Sul, e sempre ouvi dizerem “se está funcionando, não precisa consertar”; talvez isso se aplique especialmente à imitação.

Propomos a seguinte seqüência: 1) numa interação social com alguém que você mal conhece ou numa conversa sobre um assunto delicado, deixe o processo quase mindless acontecer; 2) faça um esforço consciente para notar qualquer mudança em seu próprio corpo; 3) observe se seu detector de perigo está ou não indo longe demais. Sim, estamos falando das vantagens complementares de começar com mindlessness e depois ir trazendo a atenção consciente para a situação entre você e o outro. Não estamos defendendo a necessidade de uma luta entre mindfulness e mindlessness. É um trabalho em conjunto, numa determinada ordem.

A primeira parte da seqüência, ligar o piloto automático, é o que nós, autores, nunca tínhamos considerado antes. Antes de escrever este livro, nenhum de nós tinha usado o fator de estimativa de temperatura ao tratar de negócios, em encontros amorosos ou em conversas com desconhecidos num saguão de hotel. Mas, agora, sim. Tomamos consciência das vantagens de mindlessness. Além de avaliar a aparência física, inteligência, curiosidade e simpatia, observamos se há alguma queda de temperatura física quando estamos perto de alguém. Antes seria normal exclamar “puxa, que frio!”, mas agora, quando sentimos um arrepio ou pensamos em buscar um agasalho, entramos em alerta. Estamos um pouquinho mais céticos, procurando algum sinal de perigo/manipulação, que antes não registrávamos conscientemente. De posse desses dados que ignorávamos, talvez tenhamos tomado decisões melhores ao contratar empregados e tomar um táxi em terra estrangeira.

2. AJUSTE MINDLESS DA EMOÇÃO

Curiosamente, o processamento automático também se aplica à emoção. Um ajuste saudável da emoção - a tentativa de controlar ou alterar o tipo, intensidade e expressão de nossas reações ao mundo - está vinculado às partes mais importantes do bem viver. Por exemplo: pesquisadores sugerem que falhas no ajuste das emoções são parcialmente responsáveis por problemas individuais como depressão, agressão, infidelidade, e, na esfera profissional, mau desempenho, roubo e assédio. Sabendo como é importante, e difícil, ajustar emoções intensas como raiva, medo, tristeza, vergonha, convém ponderar se o gerenciamento consciente das emoções exige esforço demais, e se é vagaroso demais para nos ajudar em situações fortes.

Situações fortes são aquelas em que somos tomados por emoções intensas e impelidos a tomar uma atitude, como você ver que um desconhecido se acerca de sua filha que está na fila do toalete no restaurante, murmura algo no ouvido da menina e acaricia o braço dela.9 Pense na vantagem de ser capaz de ajustar a emoção automaticamente, antes mesmo de você saber o que está sentindo, e amortecer o impulso de se entregar ao arrebatamento de uma ação impensada (nesse exemplo, dar um pulo da cadeira e pegar um garfo para cravar na mão do atrevido, e só então ficar sabendo que é o novo namorado dela). Que tal se a sua mente pudesse ser treinada para ajudar efetivamente, antes que você saiba que precisa de ajuda, numa situação dessas?

Em dois estudos, íris Mauss, da Universidade de Berkeley, e James Gross, da Universidade de Stanford, pediram a alguns participantes que reordenassem frases com palavras embutidas relacionadas ao gerenciamento de emoções, como “refrear”, “controlar”, “sossegar”, e deram a mesma tarefa a outros participantes com frases contendo palavras relacionadas a ímpetos emocionais, como “soltar”, “ferver”, “explodir”.10 Os pesquisadores queriam saber se a exposição dos participantes a essas palavras dissimuladas no texto interferia na maneira de lidarem com as emoções enquanto alguém - nesse caso um ator - tentava deliberadamente irritá-los. O ator mandou que contassem rapidamente as letras de um texto borrado enquanto lhes dizia que eram incompetentes, num tom de voz cada vez mais impaciente e enervante. Os par­ticipantes sugestionados subliminarmente a liberar as emoções sentiram 42,2% mais raiva do que os participantes sugestionados subliminarmente a manter as emoções sob controle. Um segundo estudo mostrou que os participantes expostos a palavras que aju­davam a controlar as emoções reagiam com pressão e batimentos cardíacos mais baixos quando o ator hostil se aproximava deles.

O que podemos aprender a partir desses resultados? Primei­ro: objetivos muito sofisticados, como tolerar pessoas hostis e nos­sos próprios aborrecimentos, podem ser alcançados sem qualquer ação consciente e deliberada de nossa parte. Segundo: esses atos mindless de ajuste da emoção parecem ser gratuitos, pois as pes­soas manifestam não só menos aborrecimento, mas também me­nos agravos fisiológicos. Terceiro: intervenções simples, breves e de baixo custo podem nos induzir a reações mais saudáveis em situações sociais difíceis.12 Isso indica que já existe um forte siste­ma mindless em funcionamento, regulando nossas emoções, e que, aprendendo a influenciá-lo, podemos aumentar suas vantagens.

3. CRIATIVIDADE MINDLESS

Inovação é uma palavra muito popular no mundo empresarial e na educação, pois tem a vantagem de ser tangível, mensurável, e resulta em idéias criativas que podem ser implantadas fisicamen­te, no mundo real. Elon Musk, o gênio por trás dos carros elétricos Tesla e da SpaceX, é um exemplo perfeito de como o ardor criati­vo pode ser a peça central das empresas. De fato, muitas empresas - especialmente as chamadas “empresas maduras” - estão sempre prontas a investir muito dinheiro em consultorias inovadoras pa­ra seus produtos e gestão, e outro tanto em cursos de desenvolvimento de criatividade para seus funcionários. Na maioria desses cursos, o foco é improvisar, correr riscos e aceitar pequenos fracassos. Até aí, nada contra.

Muitas oficinas de criatividade também são regidas pela ideia de que você pode se tornar criativo propositadamente; quanto mais mindful você for, mais receptivo estará a inspirações criativas. Mindfulness é atraente porque está associada a uma ação deliberada, tranqüila, dependendo somente do seu interesse e afinco. Isso combina com a noção de que uma vida bem vivida não deve - nem pode - ser fácil. A mensagem cultural é clara, porém enganosa. Pesquisadores se esforçam para identificar um problema em pessoas que devaneiam e, por isso, se mostram incapazes de controlar a mente. Seu filho tem um problema porque devaneia na sala de aula enquanto o professor está falando? Um artigo do psicólogo Scott Barry Kaufman sobre mindlessness construtiva contraria pesquisas e opiniões que menosprezam momentos mindless e devaneios em sala de aula:13

Essa perspectiva faz sentido quando o devaneio é observado por um terceiro, e quando os prejuízos são medidos segundo padrões impostos externamente, como rapidez ou exatidão de processamento, fluência ou compreensão de texto, persistência da atenção e outros padrões de medida externos.

Entretanto, há outra maneira de ver o devaneio, numa perspectiva pessoal, se você quiser... Nossa mente vagueia, de propósito ou por acaso, porque há uma compensação tangível, mensurada em objetivos e aspirações que têm um significado pessoal. Precisar reler três vezes a mesma linha porque seu pensamento voou não tem importância, se esse voo levou sua atenção a uma descoberta interna, a uma lembrança deliciosa ou a dar novo significado a um evento desagradável...

Fazer uma pausa para reflexão no meio de uma história é irrelevante se essa pausa nos permite evocar um acontecimento que torna a história mais sugestiva e interessante. Enquanto dirigimos, perder uns minutinhos porque não pegamos a rampa de saída é um inconveniente desprezível se o lapso de atenção nos permitir entender, finalmente, por que o chefe ficou tão chateado com o que dissemos na reunião da semana passada. Chegar em casa sem trazer os ovos que saímos só para comprar é uma contrariedade muito pequena se o esquecimento foi devido à decisão de mudar de emprego, pedir um aumento de salário, ou voltar a estudar.

Dessa perspectiva pessoal, é muito mais fácil entender por que as pessoas são levadas a devanear e investem quase 50% do tempo deixando a mente vagar.14

Um ponto desse artigo encontra eco num ensaio sobre preguiça de Thomas Pynchon, que diz:

... o que Tomás de Aquino denomina Inquietude da Mente ou “correr atrás de várias coisas sem que nem pra que... se pertence ao poder da imaginação... chama-se curiosidade”. Decerto, é precisamente nesses episódios de viagem mental que os escritores produzem boas obras, às vezes as melhores, solucionando problemas formais, recebendo orientação do Além, tendo aventuras hipnagógicas que, com sorte, podem ser recuperadas.15

Imagine se nossa mente fosse privada da capacidade de sair dos trilhos. Se não pudéssemos resistir ao impulso de cumprir as obrigações imediatas, seriamos mais felizes? Seriamos mais felizes e bem-sucedidos com um controle autoritário de por onde anda nossa mente? O passatempo mindless é indispensável à consciência de si, à reflexão e ao planejamento. Pode-se argumentar que nosso cérebro exige uma atividade de livre flutuação mental para revelar, descobrir e consolidar informações, assim como nosso corpo físico exige sono adequado, exercícios e vitamina D.

Antes de investir numa especialização, pense nesse fruto ao seu alcance, o ocioso estado mindless, como a gestação de uma criativa visão interna. Afinal, há muito tempo a criatividade é associada a uma incubação inconsciente, e essa ideia é apoiada por laureados pelo Prêmio Nobel e artistas famosos.16 Você provavelmente conhece a ideia do “ah-ah”, o momento de revelação que traz subitamente a solução de um problema, ou uma ideia relevante, quando menos se espera. Pode-se pensar que há algo de criativo na falta de atenção. Pesquisas apoiam a ideia de que a criatividade está sempre à nossa espreita.

Segundo David Greenberg, autor de Presidential Doodles, documentos históricos revelam que 26 dos 44 presidentes dos Estados Unidos ficavam rabiscando enquanto a mente vagava e os negócios de Estado (reforma tributária?) não prendiam sua atenção. Mas não entenda isso como um desperdício porque os cientistas constataram que, em comparação com quem não rabisca, os rabiscadores apresentam quase 25% a mais de lembrança do que aconteceu enquanto rabiscavam.17 Pode parecer contraditório que alguma coisa que “distrai” na verdade mantém a pessoa ativa, mas rabiscar exige apenas atenção mindless, mantendo a pessoa alerta e ao mesmo tempo recarregando a energia mental que, não fosse isso, estaria sendo drenada por um discurso enfadonho. Infelizmente, professores, pais e gerentes muitas vezes acham que rabiscar é desrespeito e, portanto, deve ser desestimulado.

E se professores e gerentes partissem de outra premissa? E se estimulassem atividades mindless para contrabalançar a intensidade da atenção? Já é possível encontrar esse exemplo em empresas e escolas que colocam uma música suave de fundo enquanto as pessoas trabalham. Pesquisas mostram que isso melhora a concentração, proporcionando um ambiente de calma que favorece a continuidade das atividades.18 Um exemplo menos óbvio pode ser encontrado na prática de admitir que pilotos de avião durmam um pouco durante o voo. Imagine a longa viagem de Washington D.C. a Sydney, na Austrália. Você espera ter certos confortos - um travesseiro, um filme, o toalete com a descarga funcionando e a tripulação acordada.19 Felizmente, ninguém lhe diz que o comandante está tirando uma soneca de 25 minutos enquanto o avião cruza os ares sobre o mar. Mas não se preocupe. Num estudo, pesquisadores da NASA constataram que pilotos que dormem durante o voo tomam decisões 20% mais rápidas e cometem 34% menos erros quando acordam. O valor estratégico de desligar a mente para recarregar não pode ser subestimado. Onde mais você pode obter 34% mensuráveis de melhor desempenho numa atividade, em menos de 26 minutos?

Para saber mais sobre a vantagem de desligar a atenção consciente, procuramos o dr. Andrei Medvedev, professor no Georgetown University Center for Functional and Molecular Imaging.20 Em 2012, sua equipe monitorou a atividade cerebral de adultos enquanto faziam a sesta. Constataram que, nesses períodos de sono, o hemisfério direito - altamente associado ao pensamento criativo - se comunica frequentemente com o lado esquerdo do cérebro. Medvedev especula que enquanto o corpo descansa o he­misfério direito faz uma verdadeira arrumação da casa, transfe­rindo informações e experiências recentes para o armazenamento de memória de longo prazo.

É o mesmo que programar seu computador para salvar arqui­vos importantes e deletar informações desnecessárias enquanto você não o está usando, exceto que algo diferente acontece nessa catalogação mental. Colisões acidentais com lembranças antigas resultam em combinações originais e até bizarras. Quando es­tamos dormindo, o editor dentro de nós está de folga, não pode avisar que certas idéias são proibidas, nem apagá-las por serem impraticáveis. Seria maravilhoso se cada combinação de pensa­mentos produzisse uma descoberta criativa, mas, em geral, essa sopa conceitual é intragável. Isso é esperado, e precisa ser respei­tado. Não podemos contar com uma fileira de idéias cinco estre­las; só precisamos de uma ideia interessante de vez em quando.

A criatividade surge das mais estranhas atividades mindless. Quando pesquisadores investigaram as origens das idéias mais criativas produzidas por 104 especialistas em relações públicas para empresas do Reino Unido, não encontraram ali um manan­cial de originalidade.21 A ida e volta do trabalho ganharam o título de musa das idéias, e em segundo lugar, quase empatados, fica­ram o banho ou a chuveirada. Essas ocasiões são Focos de Criação Acidental (FCAs). Para sermos criativos, precisamos aproveitar ao máximo esses e outros FCAs, que podem ser cuidar das plantas, lavar os pratos, dar uma caminhada ou levar o cachorro ao parque.

Uma observação importante: a atividade mindless, por si só, não basta para a ocorrência da criatividade. Se assim fosse, se­riamos todos Georgia O’Keeffe ou Ernest Hemingway, bastando deixar a mente vagar enquanto lavamos a louça. No entanto, a atividade mindless é o solo fértil em que as melhores idéias criam raízes. Pesquisadores descobriram, por exemplo, que as pessoas mais criativas, e as que mais investem em aprimorar o produto de sua criatividade, recorrem instintivamente a estados não conscientes para ter inspiração.22 Elas têm uma aptidão particular para filtrar os sonhos e incorporar esse material à vida desperta. Portanto, planeje não planejar, passando algum tempo longe de atividades em que a mente insiste em tentar criar. E esteja pronto a captar idéias a qualquer momento, em qualquer lugar, tendo sempre um gravador à mão.

AGIR POR IMPULSO

Se você gosta de uma pessoa engraçada e muito franca, você a classifica de “espontânea” e, se não gosta, você se refere ao mesmo conjunto de comportamentos como “impulsivos”. Temos uma relação ambígua com atividades no “calor do momento”. Por um lado, tendemos a vê-las como engraçadas, e, por outro lado, podem parecer bobas. Uma das razões da má fama da impulsividade é que não prestamos muita atenção nas situações em que a ação impulsiva dá bons resultados. Considere o seguinte: uma grande tempestade de inverno está se aproximando, prevista para chegar daí a alguns dias. Em vez de passar um dia inteiro trancado em casa com seus três filhos pequenos, você clica naquele site de promoções de viagem e reserva passagens para a família passar um delicioso fim de semana em Aruba. Bater os olhos num livro de capa esquisita e comprar por um preço irrisório, entrar por instinto num bar novo, encontrar sua laboriosa pessoa amada estendendo roupa no varal e transar apaixonadamente em cima da máquina de lavar, ter uma conversa interessante com uma pessoa totalmente desconhecida, pedir licença aos amigos e subir no palco de karaokê para cantar sua canção favorita - reações impulsivas e atividades inesperadas, apesar de arriscadas, podem ter grande sucesso e ser agradáveis. Isso acontece exatamente porque não são programadas e a incerteza do resultado contribui para uma mescla de ansiedade e curiosidade que nos faz sentir vivos e inteiros - sem afetação, sem se preocupar em causar boa impressão.

1. O EFEITO LIBERADOR DE PERDER O CONTROLE

Imagine ser arrastado para uma conversa sobre um assunto polêmico: legalizar a maconha, reduzir o número de bombeiros e policiais para cortes no orçamento municipal, decidir quem herda o quê quando vovô morrer. Esses tópicos são controversos devido à sua importância para as pessoas diretamente afetadas. Em locais de trabalho politicamente carregados, um dos assuntos mais delicados é a diversidade. Muitos países ocidentais, modernos, industrializados, concordam que a inclusão baseada em raça, sexo, orientação sexual, religião, nacionalidade e status econômico não só é justa como valiosa.

Nicky Garcea, consultora administrativa na Inglaterra, passou anos coordenando programas sobre diversidade. Ela chegava a uma empresa, reunia os funcionários e passavam horas em workshops sobre a importância de respeitar as diferenças, mas não tardou a se desencantar com essa abordagem. “Mostrar que todo mundo era diferente”, ela confessou, “era uma garantia de que cada funcionário passaria a ser rotulado de mulher, indiano ou gay.”

Muitos de nós ficamos divididos entre querer agir como se não houvesse absolutamente diferenças entre as pessoas e falar sobre possíveis diferenças com sensibilidade e respeito. O problema de tomar tanto cuidado ao escolher as palavras é a quantidade de energia mental exigida. Um homem branco, por exemplo, pode gastar muita energia conduzindo uma conversa com uma mulher negra para temas leves, inócuos, superficiais. Ambos se sentem enojados ao reconhecer que, na verdade, o importante é o que não está sendo dito. Duas pessoas bem-intencionadas acabam criando uma interação forçada, que exige muito esforço e energia.23

Mas e se fosse possível esgotar a energia da pessoa antes da conversa, de modo que ela não tivesse mais pique para ocultar, sufocar ou deixar escapar o que está pensando?24 Seria preciso que os funcionários corressem meia maratona ou fizessem todas as palavras cruzadas do jornal de domingo antes do trabalho. Num estudo, os cientistas determinaram que os sujeitos fizessem algo desafiador em termos físicos ou intelectuais antes de uma conversa potencialmente delicada com um membro de outro grupo étnico. Mentalmente exaustos, os sujeitos se livraram da difícil tentativa de falar a coisa certa, ficaram menos inibidos numa conversa sobre diferenças raciais com alguém de outra raça, e tiveram uma interação 25,4% melhor. Além disso, se sentiram menos alvo de preconceito por observadores negros que assistiram aos vídeos da interação. Os participantes, cansados, desinibidos, tiveram 72,6% mais facilidade de conversar francamente sobre diversidade e lidar efetivamente com esse tema delicado.

Um apoio adicional ao valor de ações impulsivas, ou não comedidas, vem de uma fonte inusitada: o declínio cognitivo na idade avançada, que precede doenças cerebrais degenerativas.25 Num estudo, os pesquisadores disseram a jovens adultos (de 19 anos em média) e a adultos idosos (de 73 anos em média) que eles faziam parte de um programa da comunidade para aconselhamento de adolescentes com problemas. Todos foram levados a acreditar que essa iniciativa visava a aconselhar um adolescente por meio de vídeos de entrevistas com pessoas comuns (e não com terapeutas) sobre a adolescência que essas pessoas comuns tinham vivido. Os participantes selecionaram uma entre várias fichas de adolescentes, sem saber que todas continham a mesma informação: uma menina obesa que sofria de insônia, bullying, incapacidade de fazer amigos e desinteresse na escola.

Quando disseram aos sujeitos para pensar no que desejavam dizer, os idosos demonstraram maior franqueza, falando diretamente que a menina era gorda e feia, e contaram como tinham sofrido na adolescência, como haviam lidado com isso e o quanto tinham aprendido com a rejeição e o fracasso. Os jovens foram mais cautelosos: 70% nem mencionaram a gordura da garota. Curiosamente, os idosos com o mais fraco funcionamento cognitivo (medido por um exame neuropsicológico abrangente) foram os mais abertos, com 80% falando na gordura da menina e dando mais conselhos.

Os pesquisadores pediram a dois médicos famosos, especialistas em obesidade, que assistissem ao filme das entrevistas e avaliassem a qualidade dos conselhos. Os conselhos dos idosos com menor capacidade cognitiva foram julgados melhores do que os conselhos dos jovens, que tinham maior capacidade cognitiva. A falta de inibição deixou os velhos mais acessíveis, empáticos, cooperativos, e dispostos a abordar o desconfortável fato da obesidade da garota e suas dificuldades sociais por causa disso. No artigo intitulado “The risk of polite misunderstandings”, Jean-François Bonnefon e seus colegas concluem:26 A polidez gasta recursos mentais e cria confusão sobre o verdadeiro significado.

Embora essa confusão seja funcional em situações corri­queiras, pode ter conseqüências indesejáveis em situações de alto risco, como pilotar um avião em caso de emergência ou ajudar um paciente a optar por um tratamento.

Aconselhar e servir de mentor são papéis de liderança funda­mentais para pais, professores e executivos. A incapacidade de abordar assuntos delicados aumenta a probabilidade de malogro no trabalho, erosão de relacionamentos, perda de tempo e de di­nheiro, devido à comunicação inadequada. Não evite essas conversas tão temidas. Experimente falar quando estiver um pouco cansado, com as defesas naturais em baixa. Isso vai ajudá-lo a to­lerar o desconforto e se valer de sentimentos menos convencionais.

DECISÕES MINDLESS

Desafiamos você a passar oito horas sem tomar decisões instantâ­neas. Não mudar de faixa no trânsito, não convidar alguém que você acabou de conhecer para almoçar, não expor um pensamento antes que seja bem analisado, não enviar e-mails apressados e, certamente, não comentar imediatamente alguma coisa postada no Facebook. Apostamos que você não consegue durante as oito horas. Imaginamos que consiga durante uma hora. Se você estiver num shopping center ou assistindo à televisão, reduzimos para dois minutos.

As pessoas tendem a trabalhar decisões importantes. Gosta­mos de ter trabalho com nossas escolhas, calcular custo-benefício, consultar especialistas, fazer programações, quando bastaria uma boa noite de sono para resolver o assunto. Uma abordagem mais intuitiva pode parecer quase Nova Era porque se baseia na existência do inconsciente e na crença em que o fantasma na máquina, a mente inconsciente, é capaz de dar conta das decisões enquanto a mente consciente está ocupada com outras coisas. Segundo o princípio de capacidade do cérebro, quando há excesso de dados a serem digeridos, o pensamento consciente fica confinado ao trabalho de processar todas as informações, integrando-as, apelando para os conhecimentos e experiências, comparando-as e contrastando as escolhas possíveis até chegar a uma decisão. O pensamento mindless não tem essas restrições porque ocorre fora da consciência. Isso nos traz uma regra de ouro contraintuitiva: quando é preciso tomar uma decisão complexa, após reunir informações na mente consciente, evite pensar nelas conscientemente. Não tenha pressa, deixe o inconsciente resolver.27

Nenhum autor enuncia melhor essa regra do que Ap Dijksterhuis.28 Esse psicólogo holandês passou anos estudando a inteligência inconsciente. Em um estudo muito interessante, Dijksterhuis investigou se torcedores fanáticos por futebol, com seus conhecimentos obsessivos do esporte, eram mais capazes de acertar qual time seria vencedor do que adultos sem maiores conhecimentos, que usavam mais as seções de esportes dos jornais para embrulhar o lixo do que para ler.29 Ele fez uma breve exposição estatística de gols, jogadas, passes perfeitos, dribles e segredos de vários times de futebol. Dijksterhuis queria saber como os dois grupos utilizavam essas informações.

Tendo tempo suficiente para avaliar todos esses dados sobre a performance dos times, os fanáticos tiveram melhor desempenho que os neófitos. Já era de se esperar, pois eles usaram as informações que obtinham diariamente. Mas algo estranho aconteceu quando Dijksterhuis mudou o procedimento. Deixou os sujeitos pensarem durante dois minutos apenas e, para evitar que continuassem a pensar em futebol, pediu que resolvessem complicadas equações de álgebra. Enquanto tentavam solucionar os complexos problemas de matemática, Dijksterhuis os interrompeu, pedindo que respondessem rapidamente quais times seriam vitoriosos no próximo campeonato. Nesse momento, os neófitos acertaram mais que os fanáticos! Por quê? Porque, na ausência de uma grande quantidade de dados, os neófitos confiaram nas informações que, bem diante de seus olhos, lhes chamaram a atenção, como passes perfeitos em condições de chuva e vento, uma estatística que os fanáticos devem ter negligenciado. Os neófitos basearam essa reação intuitiva em informações inusitadas, que foram sublinhadas e marcadas em negrito pelo cérebro. Como os fanáticos tinham um grande acúmulo de fatos sobre futebol estocados no cérebro, “a dica” ali à sua frente não se destacou. É muito difícil desaprender fatos antigos e descartar idéias preconcebidas, e eles precisariam ter feito isso rapidamente a fim de absorver novos fatos.

Os resultados da pesquisa sobre futebol não se limitam ao mundo dos esportes. A decisão instintiva é relevante também para uma pessoa doente escolher o médico, um adulto obeso escolher dietas e exercícios, médicos diagnosticarem doenças graves. Em um estudo similar, pediu-se a adultos com pós-graduação em psicologia para determinar se um paciente tinha algum distúrbio psicológico e, se tivesse, qual seria o diagnóstico.30 Em uma sessão, os psicólogos leram a descrição do caso de um paciente e tiveram quatro minutos para ponderar antes de formar uma opinião. Em outra sessão, tiveram que processar inconscientemente as informações sobre o caso enquanto faziam um jogo de caça-palavras durante quatro minutos. As opiniões foram piores quando tiveram os quatro minutos para pensar. De fato, as opiniões mais mindless foram cinco vezes mais corretas do que as ponderadas.31

Vemos assim que há nítidas vantagens no pensamento inconsciente, especialmente quando se trata de dissecar, manipular e sintetizar grandes quantidades de informação. Mas, certamente, há também nítidas vantagens no pensamento consciente. Se você acha que ter uma janela que dá para campos verdejantes e belas árvores é importante para sua qualidade de vida no trabalho, por exemplo, é preciso ter isso na mente consciente quando lhe oferecerem um escritório muito maior, com elegantes cadeiras ergonômicas e sem vista para o mundo externo. Caso contrário, você pode se deixar levar pelo entusiasmo de ter tanto espaço e depois se surpreender com o abrupto declínio de seu ânimo nos meses seguintes sem janela. Então, entre os dois, qual é o melhor para você?

Vejamos o problema de escolher um apartamento para alugar, que é uma decisão da maior importância. Será fácil se o apartamento tiver todos os requisitos: preço baixo, quartos amplos, banheiro com banheira, bons armários, varanda, perto de shoppings e transporte público, num bairro com ótimos restaurantes, parques e baixa criminalidade. E - ah, sim - que tenha conforto para seu bichinho de estimação. Na vida real, encontrar um apartamento é um exercício de concessões. Você tem um closet enorme, mas não tem parque; cozinha moderna, mas não tem pia dupla. Muita gente entra num jogo mental de troca-troca, num esforço para tomar uma decisão feliz.

Em 2011, Dijksterhuis e seus colegas conduziram um experimento em que os participantes tinham que fazer uma entre duas escolhas ideais dentre 12 apartamentos possíveis.32 Mas, tal como no mundo real, nenhum era perfeito. Os melhores apartamentos tinham oito características positivas e quatro negativas, e os piores tinham quatro características positivas e oito negativas. Quando as pessoas precisaram tomar uma decisão imediatamente após receber informações sobre cada apartamento, houve somente 15% de acertos na melhor opção. Quando tiveram quatro minutos para ponderar sobre cada apartamento, os acertos na melhor opção chegaram a 29%. Isso indica que a ponderação se sobrepõe à escolha impulsiva, mas nenhuma das duas parece ser totalmente satisfatória.

Curiosamente, numa terceira sessão, quando os participantes ficaram distraídos fazendo palavras cruzadas sem relação com o tema e então tiveram que tomar a decisão, o resultado foi 30% de acertos na melhor opção. Mas realmente interessante foi o que aconteceu quando os participantes puderam passar dois minutos pensando conscientemente em cada apartamento e depois sua atenção foi desviada para jogos de palavras, irrelevantes, porém difíceis, que precisavam solucionar em dois minutos. Depois de passar metade do tempo ponderando conscientemente antes de tomar uma rápida decisão mindless após um cansativo jogo de palavras, alcançaram 58% de acertos na melhor opção. Eles tinham passado apenas metade do tempo analisando cada apartamento e a decisão foi duas vezes melhor!

Esses mesmos pesquisadores constataram que a melhor estratégia é aproveitar os pontos positivos do pensamento consciente e inconsciente. Mas deram um passo adiante ao descobrir a importância da ordem seqüencial de pensamento consciente e inconsciente. Quando os possíveis compradores de apartamentos tiveram dois minutos para ponderar antes de serem distraídos com jogos de palavras, tiveram 58% de acertos na melhor opção. Quando a seqüência foi invertida e ficaram distraídos com jogos irrelevantes de palavras (pensamento inconsciente) e depois tiveram dois minutos para ponderar (pensamento consciente), sua capacidade de escolha caiu para 30%.

Não é de surpreender que existam tantos livros sobre mindfulness e pensamento irracional. Ainda estamos aprendendo a funcionar no modo ótimo, como pessoas bem integradas, inteiras. Essa fascinante linha de pesquisa mostra que a estratégia mais eficaz para lidar com decisões complexas é ter flexibilidade para usar o pensamento consciente e inconsciente, em conjunto, e nessa ordem. Numa situação em que há várias opções exigindo uma ação cognitiva, a fórmula para a melhor decisão é a seguinte:

  1. Fique algum tempo pensando conscientemente na situação.
  2. Pare.
  3. Faça uma atividade qualquer, sem relação com a situação, para ter um período de incubação.
  4. Tome a decisão.

Intervenções Mindless

Passamos décadas tentando aumentar nossa autoconsciência para alcançar o sucesso, e os pesquisadores que apresentamos neste capítulo sugerem uma atitude diferente. Como alternativa, vamos propor uma estratégia do “levantar da (in)consciência”, que nos permite atingir as metas que almejamos e, assim, viver melhor. Propomos a audaciosa noção de que nosso comportamento pode ser modificado drasticamente sem qualquer intervenção consciente. O imperceptível processamento inconsciente da informação pode nos conduzir a decisões mais firmes, mais rápidas e melhores.

Pense na meta de melhorar seu desempenho. Em uma central de telemarketing, Garry Latham e Ronald Piccolo testaram uma intervenção de baixo custo com os funcionários, dando a eles fotografias para olharem antes de falar com os clientes.33 Uma foto era de três vendedores sorridentes durante um telefonema (desempenho relevante), outra era de uma mulher levantando os braços na linha de chegada de uma corrida (desempenho irrelevante) e, no terceiro caso, os funcionários olharam para uma foto do prédio em que trabalhavam. Os funcionários que olharam para as fotos de desempenhos vitoriosos apresentaram um aumento de 58% de chamadas bem-sucedidas, e os que olharam para a foto do prédio não apresentaram nenhum aumento.

Mas essa não é a melhor parte. Veja só: os funcionários que olharam para a foto do vendedor sorridente conseguiram 85% a mais de dinheiro do que os que olharam para a foto do prédio! Quando lhes perguntaram como tinham melhorado tanto seu desempenho, nenhum deles mencionou a foto inspiradora em seu cubículo. O que você acha melhor: gastar um dinheirinho numa foto emoldurada, ou gastar um dinheirão em workshops para melhorar o ânimo, a motivação e o desempenho dos funcionários? Nesse estudo, os pesquisadores constataram também que imprimir um melhor desempenho no inconsciente tem um impacto que não dura somente minutos ou horas, mas permanece por uma semana inteira de trabalho.

Agora, vejamos problemas sociais maiores. Tentar convencer as pessoas a não usar estereótipos sobre idosos, deficientes, gays ou de uma raça diferente tem o efeito contrário, tornando mais fácil evocar o estereótipo e, portanto, usá-lo. Na mesma linha, quando fumantes veem anúncios contra cigarros, acabam fumando mais.34 Em vista disso, pesquisadores reuniram um grupo de adultos brancos que admitiam ter preconceito racial e não gostavam de ter contato com negros, a fim de saber se essa opinião podia ser recondicionada sem tentar convencer os sujeitos de que preconceito e racismo são indesejáveis.

Os pesquisadores colocaram os sujeitos diante de uma tela de computador contendo imagens e palavras positivas sobre norte-americanos negros (uma criança negra dividindo o lanche com um coleguinha esfomeado), e instruídos a se “aproximar dos negros” movendo um joystick na direção deles. Quando apareciam imagens e palavras sobre norte-americanos brancos, deveriam mover o joystick na direção oposta a eles.35 A ideia era que associar repetidamente imagens positivas sutis de pessoas negras à motivação para se aproximar e apreciá-las levasse a rever o hábito mindless de ver pessoas negras como inimigas a serem evitadas. Os pesquisadores constataram que os adultos brancos treinados para associar negros a um comportamento de aproximação tiveram um decréscimo de 46,5% de crenças preconceituosas em comparação com os que não receberam o treinamento. Mas essa reinstalação cerebral influencia o comportamento de um branco com um desconhecido negro? A resposta é um surpreendente sim. Após o treinamento de associação mindless de rostos negros com os movimentos de aproximação via joystick, numa conversa de “apresentação”, esses brancos colocaram a cadeira seis vezes mais perto de um desconhecido negro (um ator que já estava sentado quando os participantes entraram). Vejam só, o cérebro é um órgão muito interessante!

Quem já trabalha no sentido de criar maior apreciação da diversidade não precisa ser lembrado de que as pessoas que não se parecem conosco, ou que não têm os mesmos valores, podem oferecer mais oportunidades de aproximação que de evitação. Mas há um fato importante: todos nós temos um “grupo”, um círculo de pessoas cuja mentalidade é parecida com a nossa e, por um efeito de espelho, consideramos mais atraentes do que o resto da humanidade. Sejam religiosos versus ateus, vegetarianos versus carnívoros, feministas versus fãs de pornografia, nerds versus atletas, todos têm sua tendenciosidade, algumas reconhecidas, e muitas outras ocultas. Pesquisas recentes nos oferecem alguns meios de mudar essas tendenciosidades. Sabemos agora que, com movimentos repetidos, podemos remodelar o cérebro, mudando a mente para melhor. O treinamento mindless pode ser acrescentado à lista de estratégias para aumentar o sucesso e o bem-estar.

Utilizando o Mindless

Apresentamos um contraste entre a grande divulgação científica e pública de que mindfulness é melhor que mindlessness. Ao compreender que o pensamento mindless reforça o êxito, você terá uma vantagem sobre quem está sempre pronto a acionar o estado mindful. Ainda que você queira, é fisicamente impossível estar mindful o tempo todo. Para capitalizar o pensamento inconsciente, descrevemos os pontos fortes de mindlessness em diversas áreas da vida, desde alcançar metas, confiar nas pessoas e ter mais criatividade, até lidar com uma pressão sufocante, com os preconceitos e tomar decisões complexas.

Em certas situações o pensamento mindless nos capacita a ser mais objetivos ou mais neutros. Você pode estar resistindo a aceitar essa afirmação. Afinal, acredita-se intuitivamente que um julgamento instantâneo pode ser muito bom em decisões “sem importância”, mas decisões complexas exigem intensidade e concentração nas deliberações. Estamos aqui para lhe dizer que a eficácia é frequentemente prejudicada pela crença na superioridade da mindfulness.

LEMBRETES

  1. Mindfulness pode ter vantagens, mas nossa predisposição natural é para mindlessness.
  2. O pensamento automático ajuda a conservar os recursos mentais.
  3. A redução da atividade mental pode gerar uma forma produtiva de desinibição.
  4. O processamento mindless frequentemente conduz a um desempenho superior e a melhores decisões, principalmente em situações delicadas.
  5. Intervenções subliminares podem nos impulsionar na direção de um objetivo.
  6. Tentativas de recusar mindlessness estão fadadas ao fracasso.

Reconhecer o poder de mindlessness é, por si só, uma intervenção. E as pessoas podem aprender a se beneficiar desse recurso tão menosprezado. Aqui vão mais alguns conselhos para utilizar mindlessness:

  1. Estabeleça um prazo ridiculamente curto - dez segundos - para tomar uma decisão que o deixou alguns minutos paralisado, sem saber o que fazer. Isso força uma decisão mindless. Há sempre um motivo para deixar de fazer uma viagem. Há sempre um motivo para comprar sempre o mesmo presunto e queijo no supermercado. Tire dez segundos, clique “enviar”, ponha a compra no carrinho ou vá embora sem gastar mais energia na decisão.
  2. Use dicas ou sinais que representem seus objetivos. Você quer ser calmo e moderado numa situação ou ser franco e dizer tudo o que está sentindo? Quer ter grandes aspirações e está disposto a correr riscos para alcançar a meta ou é aves­so a riscos para ter certeza de não cometer erros? Você po­de colar palavras e imagens na sua sala ou na escrivaninha, apontando para determinadas metas e estilos motivacionais.
  3. Reserve tempo para deixar a mente vagar. Mindlessness é um recurso estratégico intenso, e há motivos para não sermos dotados exclusivamente desse equipamento mental. Quan­do a mente vagueia, nossa atividade cerebral é quase a mes­ma de quando estamos descansando. As idéias colidem, e a criatividade aparece por acaso. As empresas e o ambiente doméstico podem ser organizados de modo a estimular ati­vidades mindless estratégicas. Essa é uma das muitas razões para que os exercícios físicos e as brincadeiras na hora do recreio sejam as últimas atividades a serem excluídas dos programas pedagógicos.
  4. Determine regras para usar a intuição. Quando você estiver diante de uma opção simples, é melhor usar um método lógico e deliberado. Quando precisar tomar uma decisão complicada, terá um resultado melhor se, depois de passar algum tempo analisando as informações, você se permitir um período de incubação, fazendo alguma outra coisa (“dor­mir sobre o assunto”) e depois mudar para o modo mindless, a intuição.

Em vez de eleger um vencedor entre os dois modos de pensamento, mindlessness e mindfulness, defendemos os méritos relativos de ambos. Se você retirar metade do pensamento humano, metade da consciência, poderá criar um espaço maior para o sucesso e o bem-estar.

Psicologia - Psicologia Cognitiva
4/11/2022 2:53:07 PM | Por Danny Penman, Mark Williams
Despertando a atenção plena

Imagine-se no topo de uma montanha, contemplando lá do alto a pai­sagem urbana e cinzenta sob a chuva. A cidade parece fria e inóspita. Os prédios são velhos e desgastados. As avenidas estão engarrafadas e as pessoas caminham infelizes e mal-humoradas. Então algo milagroso acontece: as nuvens se dissipam e o sol começa a brilhar. Num instante, a paisagem muda. As janelas dos prédios ficam douradas. O concreto cinza muda para um bronze lustroso. As ruas parecem reluzentes e limpas. Um arco-íris surge. O rio lodoso se transforma numa serpente exótica que corta as ruas. Por um momento, tudo fica em suspenso: sua respiração, seu coração, sua mente, os pássaros no céu, o tráfego nas ruas, o próprio tempo. Tudo parece pausar, absorver a transformação.

Essas mudanças de perspectiva têm um efeito dramático - não apenas no que você vê, mas também no que pensa e sente e na maneira como se relaciona com o mundo. Elas podem alterar sua visão da vida de forma radical num piscar de olhos. Mas o que é notável nessa situação é que, de fato, pouca coisa muda: a cena permanece exatamente a mesma, mas quando o sol aparece você vê o mundo sob uma luz diferente. Só isso.

Observar sua vida sob uma luz diferente também pode transformar seus sentimentos. Lembre-se de uma época em que você estava se pre­parando para as férias. Havia coisas de mais por fazer e tempo de menos para dar conta de tudo. Você chegou tarde em casa depois de passar o dia tentando deixar o trabalho em ordem antes de sair para seus dias de folga. Você se sentia como um hamster preso numa roda que não para­va de girar. Enquanto arrumava as malas, estava tão cansado que teve dificuldades de selecionar o que levar. Não conseguiu dormir direito porque sua mente continuava revivendo as atividades daquele dia. Na manhã seguinte, você acordou, pôs a bagagem no carro, trancou a casa e partiu... E acabou.

Pouco depois você estava deitado à beira da praia, relaxando e con­versando com os amigos. O trabalho de repente ficou a milhares de qui­lômetros de distância e você mal conseguia se lembrar dos problemas relacionados a ele. Você se sentia revigorado porque sua vida simples­mente mudara de marcha. Sua rotina estressante continuava existindo, é claro, mas você agora a estava vendo de um ponto de vista diferente.

O tempo também pode alterar profundamente sua perspectiva. Pense na última vez que você teve uma discussão com um colega ou um estranho - talvez um atendente de telemarketing. Você ficou uma fera. Passou horas pensando em todas as coisas inteligentes que pode­ria ou deveria ter dito para derrubar seu oponente. Os efeitos da dis­cussão arruinaram seu dia. Porém, poucas semanas depois, o episódio já não o afeta mais. Na verdade, você nem se lembra dele. O evento continua tendo ocorrido, mas você pensa nele de um ponto diferente no tempo.

Mudar sua perspectiva pode transformar sua experiência de vida, como mostram os exemplos. Mas eles também evidenciam um proble­ma fundamental: todos ocorreram porque algo fora de você havia mu­dado - o sol surgiu, você saiu de férias, o tempo passou. Acontece que, se você depender somente da mudança de circunstâncias externas para se sentir feliz e energizado, terá de esperar muito tempo. E enquanto você espera o sol aparecer ou as férias chegarem, sua vida passa despercebida.

Mas as coisas não precisam ser assim.

É fácil ficar preso num ciclo de sofrimento e aflição quando você tenta eliminar seus sentimentos ou se  emaranha num excesso de análises. Os sentimentos negativos persistem quando o modo Atuante da mente se oferece para ajudar, mas em vez disso acaba aumentando as dificuldades que você estava tentando superar.

Mas existe uma alternativa. Nossa mente tem outra maneira de se relacionar com o mundo: o modo Existente. Assemelha-se a uma mu­dança de perspectiva, embora vá bem além disso. Ela nos permite ver como a mente tende a distorcer a “realidade” e nos ajuda a eliminar o hábito de pensar, analisar e julgar demais. Com ela, podemos experi­mentar o mundo de forma direta, vendo qualquer dificuldade de um novo ângulo e enfrentando os obstáculos de maneira bem diferente. Por causa dela, somos capazes de mudar nossa paisagem interna (ou paisa­gem mental, se preferir) independentemente do que estiver ocorrendo a nossa volta. Deixamos de depender das circunstâncias externas para encontrar a felicidade, o contentamento e o equilíbrio. Voltamos a ter o controle de nossa própria vida.

Se o modo Atuante é uma armadilha, o modo Existente é a liberdade.

Ao longo das eras, as pessoas aprenderam a cultivar essa forma de ser, e qualquer um de nós é capaz de fazer o mesmo. A meditação da atenção plena é a porta pela qual podemos acessar o modo Existente. E, com um pouco de prática, poderemos abrir essa porta sempre que precisarmos.

A atenção plena surge espontaneamente do modo Existente quando aprendemos a prestar atenção deliberada, no momento presente e sem julgamento, nas coisas como de fato são.

Na atenção plena, começamos a ver o mundo como ele é, não como esperamos que seja, como queremos que seja ou como tememos que se torne.

Essas idéias podem soar um pouco nebulosas. Pela própria natureza, elas precisam ser experimentadas para serem compreendidas da manei­ra correta. Assim, para facilitar o entendimento, vou explicar a seguir ponto a ponto as diferenças entre os modos Atuante e Existente. Embora algumas das definições talvez não fiquem muito claras no início, os bene­fícios da prática da atenção plena são inquestionáveis. Na verdade, é até possível verificar os benefícios de longo prazo se enraizando no cérebro usando algumas das tecnologias de imagens mais avançadas do mundo.

Ao ler as páginas seguintes, é importante que você tenha em mente que o modo Atuante não é um inimigo a ser derrotado. Com frequência, é até um aliado. Ele só se torna um “problema” quando se oferece para uma tarefa que é incapaz de realizar, como “solucionar” uma emoção preocupante. Quando isso acontece, vale a pena mudar a marcha para o modo Existente.

É exatamente isto que a atenção plena proporciona: a capacidade de mudar de marcha quando precisamos, em vez de ficar presos sempre na mesma.

As sete características dos modos atuante e existente

1. Piloto automático X escolha consciente

O modo Atuante é muito eficiente em automatizar nossa vida por meio dos hábitos, mas esta é uma das características que menos perce­bemos. Sem a capacidade da mente de aprender com a repetição, ainda estaríamos tentando lembrar como amarrar o sapato - algo que hoje fazemos automaticamente. O lado ruim disso é que, quando cedemos demais ao piloto automático, podemos acabar pensando, trabalhando, comendo, caminhando ou dirigindo sem uma consciência clara do que estamos fazendo. O maior perigo é que grande parte da nossa vida passe assim, sem que de fato estejamos vivendo.

A atenção plena nos traz de volta à consciência: um local de escolha e intenção.

O modo Existente - ou “atento” - nos permite voltar a ter total consciência de nossa vida. Proporciona a capacidade de nos conec­tarmos com nós mesmos de tempos em tempos para que possamos fazer escolhas intencionais. A medi­tação da atenção plena nos leva a gastar menos tempo para realizar as coisas. É simples: quando se torna mais atento, suas intenções e ações ficam alinhadas, e você deixa de ser desviado toda hora do rumo pelo piloto automático. Aprende a parar de perder tempo à toa com sua velha maneira de pensar e agir, que se provou inútil. Além disso, diminui sua tendência a lutar demais por objetivos dos quais é melhor abrir mão. Você se torna plenamente vivo e consciente de novo.


2. Analisar X sentir

O modo Atuante precisa pensar. Ele analisa, recorda, planeja e compara. Esse é seu papel, e quase todo mundo se acha bom nisso. Passamos grande parte do tempo perdidos, desligados, sem notar o que se passa a nossa volta. A correria do mundo nos absorve de tal forma que destrói nossa percepção do agora, forçando-nos a viver mais no mundo dos nossos pensamentos do que no mundo real. E, como vimos no capítulo anterior, os pensamentos podem facilmente ser desviados para uma direção peri­gosa. Isso nem sempre ocorre, mas é um risco constante.

A atenção plena é uma forma diferente de experimentar o mundo. Não é como pegar um caminho novo; estar plenamente atento é entrar em contato com seus sentidos, de modo que possa ver, ouvir, tocar, cheirar e degustar as coisas que você já conhece como se fosse a primeira vez. Você se torna curioso de novo. Esse contato sensorial direto com o mundo pode parecer trivial de início. No entanto, quando você começa a sentir os momentos da vida comum, descobre algo fora do comum. Você cultiva uma sensação intuitiva do que está ocorrendo a sua volta, o que aumenta sua capacidade de observar as pessoas e a vida de uma nova maneira. Eis a essência da atenção plena: acordar para o que está acontecendo no mundo e dentro de você, momento a momento.

3. Lutar X aceitar

O modo Atuante envolve julgar e comparar o mundo “real” com o mundo que idealizamos em nossos sonhos e pensamentos. Ele foca a atenção na diferença entre os dois, o que acaba gerando uma insatisfa­ção permanente.

O modo Existente, por outro lado, nos convida a suspender o jul­gamento temporariamente. Significa ficar de lado por um momento e observar o mundo e a vida se desenrolando, permitindo que as coisas sejam como são. Ao analisar um problema ou uma situação sem precon­ceitos, não somos mais forçados a chegar a uma conclusão preconcebi­da. Desse modo, não precisamos reduzir nossa criatividade.

Aceitação não é o mesmo que resignação. Aceitar é reconhecer que a experiência existe e, em vez de deixar que ela controle sua vida, observá-la compassivamente, sem julgá-la, criticá-la ou negá-la. A aceitação pro­movida pela atenção plena permite que você impeça que uma espiral ne­gativa comece, ou, se já começou, reduza seu ímpeto. Ela nos concede a liberdade de escolher e, no processo, nos liberta da infelicidade, do medo, da ansiedade e da exaustão. Com isso, adquirimos um controle maior sobre a nossa vida. O mais importante é que nos permite lidar com os problemas da forma mais eficaz possível e no momento mais apropriado.

4. Ver os pensamentos como reais X tratá-los como eventos mentais

No modo Atuante, a mente usa as próprias criações, pensamentos e imagens como matéria-prima. As idéias são a sua moeda e adquirem valor próprio. Você pode começar a confundi-las com a realidade. Na  maioria das vezes, isso faz sentido. Se você saiu para visitar um amigo, precisa ter em mente seu destino. A mente planejadora, ativa, racional levará você até lá. Não faz sentido duvidar da verdade de seu pensa­mento: Vou mesmo visitar meu amigo? Em tais situações, é necessário considerar seus pensamentos como verdadeiros.

Mas isso se torna um problema quando você está estressado. Você poderia dizer a si mesmo: Vou enlouquecer se isso continuar. Eu deve­ria fazer melhor do que isso. Você pode considerar esses pensamentos verdadeiros também. Seu astral despenca quando sua mente reage de forma rude: Sou fraco, não presto, não sirvo para nada. Assim, você se esforça cada vez mais, ignorando as mensagens de seu corpo castigado e o conselho de seus amigos. Os pensamentos deixaram de ser seus servos e se tornaram seu senhor - um senhor rígido e implacável.

A atenção plena nos ensina que pensamentos não passam de pensa­mentos. São eventos criados pela mente. Costumam ser valiosos, mas não são “você” ou “a realidade”. São uma narração interna sobre você e seu mundo. A simples compreensão desse fato o liberta do excesso de preocupação, elucubração e ruminação, o que lhe permite enxergar um caminho claro pela vida de novo.

5. Evitar X aproximar-se

O modo Atuante resolve problemas não apenas mantendo na lem­brança seus objetivos e destinos, mas também lembrando “antiobjetivos” e lugares aonde você não quer ir. Isso faz sentido quando, por exemplo, você vai de carro do ponto A ao ponto B, porque convém saber quais partes da cidade você deve evitar. No entanto, esse pro­cesso se torna um problema quando se trata de estados mentais dos quais você gostaria de fugir. Por exemplo, se tentar resolver o proble­ma do cansaço e do estresse, você manterá na mente os “lugares que não deseja visitar”, como a exaustão, o esgotamento e o colapso. Então, além de se sentir cansado e estressado, você começará a invocar novos medos, aumentando sua ansiedade e gerando ainda mais estresse. O modo Atuante, usado no contexto errado, conduz você passo a passo ao esgotamento e à exaustão.

O modo Existente, por outro lado, convida você a se “aproximar” das coisas que sente vontade de evitar. Instiga-o a se interessar por seus estados mentais mais difíceis. A atenção plena não diz “não se preocupe” ou “não fique triste”: ela reconhece o medo, a tristeza, a fadiga e a exaustão e o encoraja a se voltar para aquelas emoções que ameaçam engoli-lo. Essa abordagem compassiva dissipa pouco a pouco o poder dos sentimentos negativos.

6. Viagem no tempo mental X permanecer no momento presente

Sua memória e sua capacidade de planejar o futuro são cruciais para o bom andamento da vida diária, mas elas sofrem distorções por causa de seu estado de espírito. Quando você está sob estresse, tende a se lembrar somente das coisas ruins, traumáticas, e a ter dificuldade de se lembrar das coisas boas, prazerosas. Algo semelhante ocorre quan­do você pensa no futuro: quando se sente infeliz, acha quase impossível olhar para a frente com otimismo. No momento em que esses sentimentos percorreram sua mente consciente, você deixa de perceber que não passam de memórias do passado ou de planos para o futuro. Você se perde na viagem no tempo mental.

Nós revivemos eventos passados e voltamos a sentir a dor; nós antevemos desastres futuros e sentimos seu impacto com antecedência.

A meditação treina a mente para que você conscientemente “veja” seus pensamentos quando ocorrerem, para que possa viver sua vida conforme ela se desenrola no presente. Isso não significa que você fica aprisionado no agora. Ainda consegue se lembrar do passado e planejar o futuro, mas o modo Existente permite que você os veja como são: a memória como memória e o planejamento como planejamento. Ter essa clareza evita que você seja escravo da viagem no tempo mental. Você consegue impedir a dor de reviver o passado e de se preocupar com o futuro.

7. Atividades exaustivas X tarefas revigorantes

Quando você está preso no modo Atuante, não é apenas o piloto au­tomático que o impele: você tende a se envolver em projetos pessoais e  profissionais importantes, e em tarefas exaustivas como cuidar da casa, dos filhos, dos pais idosos. Essas atividades costumam ser válidas, mas por demandarem tanto tempo é fácil concentrar-se nelas e excluir todo o resto, inclusive sua saúde e seu bem-estar. De início, você pode tentar convencer-se de que tudo isso é temporário e de que você está disposto a abrir mão dos hobbies e passatempos que nutrem sua alma. Mas desistir dessas coisas pode esgotar seus recursos internos aos poucos e levá-lo a se sentir vazio, apático e exausto.

O modo Existente restaura o equilíbrio, ajudando-o a identificar as atividades que o revigoram e aquelas que o esgotam. Ele o faz perceber que necessita de tempo para renovar sua alma e proporciona o espaço e a coragem para tal. Também o ensina a lidar com as inevitáveis tarefas do dia a dia que drenam a energia de sua vida.

Mudança consciente de marcha

A meditação da atenção plena ensina a sentir as sete dimensões de­ lineadas anteriormente e, com isso, ajuda a reconhecer em que modo sua mente está operando. Ela age como um alarme suave que avisa, por exemplo, quando você está analisando demais uma situação e lembra que existe uma alternativa: você ainda tem opções, por mais infeliz ou estressado que esteja. Ou seja, se sente que está emaranhado no excesso de análises e críticas, a atenção plena pode torná-lo mais aberto e fazê-lo aceitar a dificuldade com receptividade e curiosidade.

Agora podemos lhe revelar um segredo: se você mudar ao longo de qualquer uma dessas dimensões, as outras mudarão também. Por exem­plo, durante o programa de atenção plena, você pode praticar a recepti­vidade e se tornará menos crítico. Você pode praticar a permanência no presente e passará a interpretar seus pensamentos de forma menos literal. Se olhar para si mesmo com generosidade, também terá mais empatia pelos outros. E, ao fazer todas essas coisas, uma sensação de entusiasmo, energia e equilíbrio surgirá como uma fonte de água límpida há muito esquecida.

Embora as práticas ocupem apenas vinte a trinta minutos de “tempo de relógio” a cada dia, os resultados podem ter um impacto em toda a sua vida. Você logo perceberá que, embora certo grau de comparação e julgamento seja necessário, nossa civilização dá valor excessivo a essas coisas. Muitas escolhas que fazemos no dia a dia são desnecessárias. Elas são impelidas por seu fluxo de pensamentos. Você não precisa se comparar aos outros. Não precisa comparar seu pa­drão de vida atual com uma visão fictícia de futuro ou uma lembrança romantizada do passado. Não precisa ficar acordado à noite avaliando o impacto que um comentário casual, feito durante uma reunião de tra­balho, causará em seu emprego. Apenas aceite a vida como ela é, e você se sentirá mais realizado e livre de preocupações. E quando precisar to­mar alguma atitude, a decisão mais sábia provavelmente surgirá em sua mente no momento em que você não estiver pensando no assunto.

Precisamos enfatizar outra vez que aceitação atenta não é resignação. Não é aceitar o inaceitável. Nem é uma desculpa para ser preguiçoso e não fazer nada com sua vida, seu tempo, seus talentos e seus dons inatos. (O trabalho significativo, seja remunerado ou não, é uma forma segura de promover a felicidade.) A atenção plena é uma “recuperação dos sentidos”, uma consciência que começa a vir à tona espontaneamen­te quando você reserva tempo para praticá-la. Ela permite que você ex­perimente o mundo pelos sentidos - com calma e sem espírito crítico. Proporciona uma grande sensação de perspectiva, que o ajuda a sentir o que é importante ou não.

No longo prazo, a atenção plena o encoraja a tratar a si mesmo e aos outros com compaixão. Isso o liberta da dor e da preocupação, e em seu lugar surge uma sensação de felicidade que se propaga à vida diária. Não é o tipo de felicidade que se dissipa à medida que você se torna imune às alegrias. Pelo contrário, é um estado permanente de contentamento que invade sua rotina.

Um dos aspectos mais espantosos da meditação da atenção plena é que você consegue ver seus efeitos positivos alterando o funcionamen­to cerebral. Avanços científicos recentes nos permitem ver que as áreas do cérebro associadas às emoções positivas - como felicidade, empatia e compaixão - se tornam mais fortes e ativas quando as pessoas meditam. As novas tecnologias de imagem conseguem mapear redes críticas do cérebro sendo ativadas, quase como se estivessem brilhando e vibrando com uma vida renovada. Com essa reenergização promovida pela me­ditação, a infelicidade, a ansiedade e o estresse começam a se dissolver, deixando uma sensação profunda de revigoramento. Mas você não pre­cisa passar anos meditando para constatar esses benefícios: cada minuto conta.

Pesquisas mostraram que já é possível sentir seus efeitos se você se dedicar à prática diária por um período de oito semanas.

Durante muitos anos acreditou-se que todos temos uma espécie de “termostato emocional”, que determina nosso grau de felicidade na vida. Presumivelmente, algumas pessoas teriam um temperamento feliz, en­quanto outras teriam um temperamento infeliz. Embora grandes acon­tecimentos, como a morte de um ente querido ou ganhar na loteria, possam alterar de forma significativa o nosso estado de humor, às vezes por semanas ou meses a fio, sempre se supôs que havia um ponto de referência ao qual retornaríamos. Esse ponto de referência emocional estaria codificado em nossos genes ou seria fixado na infância. Em ou­tras palavras: algumas pessoas nasciam felizes e outras não.

Anos atrás, porém, esse pressuposto foi abalado por Richard David­son, da Universidade de Wisconsin, e Jon Kabat-Zinn, da Faculdade de Medicina da Universidade de Massachusetts. Eles descobriram que a prática da atenção plena permitia às pessoas escaparem da atração gravitacional de seu ponto de referência emocional. O trabalho deles nos ofereceu a possibilidade extraordinária de alterar permanentemente nosso nível de felicidade.

Essa descoberta tem suas raízes no trabalho do Dr. Davidson sobre a indexação (ou mensuração) da felicidade de uma pessoa por meio do exame da atividade elétrica em diferentes partes do cérebro, usando sensores no couro cabeludo ou por meio de ressonância magnética. Ele descobriu que quando as pessoas estão emocionalmente perturba­das - zangadas, ansiosas ou deprimidas -, o córtex pré-frontal direito se ilumina mais do que a parte equivalente do cérebro situada à esquerda. Quando as pessoas estão num astral positivo - contentes, entusiasma­das, radiantes -, o córtex pré-frontal esquerdo se ilumina mais do que o direito. Essa pesquisa levou o Dr. Davidson a conceber um “índice de humor” baseado na relação entre a atividade elétrica nos cortices pré-frontais esquerdo e direito. Essa relação consegue prever seu estado de ânimo diário com grande precisão. É como dar uma espiada no termos­tato emocional - se a relação tende para a esquerda, é provável que você esteja feliz, contente e energizado. Esse é o sistema da “abordagem”. Se a relação tende para a direita, a probabilidade é de que você esteja mais sombrio, desanimado e sem energia. É o sistema da “fuga”.

Davidson e Kabat-Zinn decidiram estender o trabalho e examinar os efeitos da atenção plena nos termostatos emocionais de um grupo de trabalhadores de biotecnologia. Os voluntários praticaram a meditação da atenção plena por oito semanas. Então algo incrível aconteceu: eles não apenas ficaram menos ansiosos, mais contentes, mais energizados e mais envolvidos com seu trabalho, como também o índice de ativação do cérebro deles passou a tender para a esquerda. Surpreendentemente, o sistema da abordagem continuou operando mesmo quando eles fo­ram expostos a músicas melancólicas e a lembranças do passado que os deixavam tristes. A tristeza gerada nesses momentos deixou de ser vista como um inimigo e passou a ser encarada como algo amigável, passível de ser administrado. Ficou claro não só que a prática da atenção plena aumenta os níveis de felicidade (e reduz o estresse), como também que essa mudança se reflete na forma como o cérebro funciona. Isso sugere que a atenção plena tem efeitos positivos que criam raízes profundas no cérebro.

Outro benefício inesperado foi que o sistema imunológico dos vo­luntários se fortaleceu. Os pesquisadores ministraram uma injeção com o vírus da gripe nos participantes e depois mediram a concentração de anticorpos específicos que haviam sido produzidos por cada um. Aque­les cujo cérebro mostrava maior tendência ao sistema da abordagem tiveram o sistema de defesa mais estimulado.

Mas um trabalho ainda mais interessante estava por vir. A Dra. Sa­rah Lazar, do Hospital Geral de Massachusetts, descobriu que quando as pessoas continuam meditando por vários anos, essas mudanças po­sitivas alteram a estrutura física do cérebro. O termostato emocional é reiniciado - para melhor. Isso significa que, com o tempo, você terá mais tendência a se sentir feliz em vez de triste, despreocupado em vez de agressivo, energizado em vez de cansado e apático. Essa mudança nos circuitos cerebrais é mais pronunciada numa parte da superfície do cérebro conhecida como insula, que controla muitas das características centrais à nossa humanidade.

Numerosos testes clínicos mostram que esses efeitos positivos sobre o cérebro se traduzem em benefícios para a felicidade, o bem-estar e a saúde. Veja alguns exemplos a seguir.

Atenção plena e Reisiliência

Descobriu-se que a atenção plena aumenta a resiliência - ou seja, a capacidade de resistir aos golpes e reveses da vida - num grau conside­rável. Essa capacidade de resistência varia muito de pessoa para pessoa. Algumas se saem bem em desafios estressantes que intimidariam mui­tas outras, como bater altas metas de desempenho no trabalho, acampar no Polo Sul ou cuidar de três filhos, da casa e do emprego.

O que faz com que pessoas “resistentes” sejam capazes de enfrentar as adversidades enquanto as outras se desesperam diante delas? A Dra. Su­zanne Kobasa, da City University de Nova York, identificou três traços psicológicos envolvidos nesse processo: controle, compromisso e desa­fio. Outro psicólogo eminente. Dr. Aaron Antonovsky, também tentou definir os principais aspectos psicológicos que permitem que algumas pessoas suportem uma tensão extrema, enquanto outras não. Ele con­centrou seus estudos em sobreviventes do Holocausto e encontrou três traços que se combinam para gerar uma sensação de coerência: inteligibilidade, maneabilidade e significabilidade. Assim, as pessoas “fortes” acreditam que os acontecimentos têm um significado, que são capazes de manejar sua vida e que a situação é compreensível, ainda que pareça caótica e descontrolada.

De certa forma, todos os traços identificados por Kobasa e Anto­novsky definem nosso grau de resiliência. Em termos gerais, quanto mais forte for nossa tendência a essas características, maior será nossa capacidade de enfrentar as provações e adversidades da vida.

A equipe de Jon Kabat-Zinn, da Faculdade de Medicina da Univer­sidade de Massachusetts, decidiu testar se a meditação conseguia me­lhorar essa tendência e, portanto, aumentar a capacidade de resiliência das pessoas. Os resultados foram claros. Em geral, os participantes não apenas se sentiram mais felizes, mais energizados e menos estressa­dos, como também ganharam mais controle sobre sua vida. Descobri­ram que ela fazia sentido e que os desafios podiam ser vistos como oportunidades, não como ameaças. Outros estudos confirmaram essas descobertas.

Mas talvez a descoberta mais intrigante sobre o assunto seja que esses traços de personalidade não são imutáveis. Eles podem ser mudados para melhor em apenas oito semanas de treinamento em atenção ple­na. Essas transformações não devem ser subestimadas, pois têm uma enorme importância para nossa vida diária. A empatia, a compaixão e a serenidade são vitais para o nosso bem-estar, mas certo grau de força e resistência também é necessário. E a prática da atenção plena pode ter um papel crucial nesses aspectos da vida.

Os estudos realizados em laboratórios e clínicas do mundo inteiro es­tão mudando a maneira como os cientistas pensam sobre a mente e vêm aumentando a confiança das pessoas nos benefícios da atenção plena. Muitos praticantes contam que a meditação aumenta a alegria diária. Isso significa que mesmo as coisas mais simples podem voltar a ser cativantes.

Psicologia - Psicologia positiva
3/24/2022 5:41:23 PM | Por Danny Penman, Mark Williams
Pensamentos automáticos e sua influência em nossas emoções

Aparentemente, Lucy era uma representante de vendas bem-suce­dida de uma rede de lojas de roupas. Mas ela estava se sentindo paralisada. Às três da tarde, olhando pela janela do escritório, estres­sada, exausta e totalmente indisposta, ela se perguntava: "Por que não consigo fazer meu trabalho direito? Por que não consigo me concentrar? O que há de errado comigo? Estou tão cansada! Nem consigo pensar direito...". Lucy vinha se punindo com esses pensamentos autocríticos constan­temente. Mais cedo, naquele dia, ela tivera uma conversa longa e ansiosa com a professora do jardim de infância sobre sua filha, Emily, que an­dava chorando quando era deixada na escola. Depois, telefonou para o bombeiro para saber por que não tinha ido consertar a descarga que­brada em sua casa. Agora fitava uma planilha, sentindo-se sem energia e mastigando um muffin de chocolate no lugar do almoço.

As exigências e tensões na vida de Lucy estavam piorando gradual­mente nos últimos meses. O trabalho se tornava cada vez mais estressante e começava a se estender até bem depois do horário do expediente. As noites haviam se tornado insones, os dias, mais sonolentos. Seu cor­po começou a doer. A vida perdeu a alegria. Seguir em frente era uma luta. Ela já havia se sentido assim antes, mas sempre fora uma situação temporária. Jamais imaginara que aquilo poderia se tornar um aspecto permanente de sua vida.

Ela vivia se perguntando: O que aconteceu com a minha vida? Por que me sinto tão exausta? Eu deveria estar feliz. Eu costumava ser feliz. Para onde foi minha alegria?

A vida de Lucy girava em torno de excesso de trabalho, infelicidade, insatisfação e estresse. Ela fora privada de sua energia mental e física e se sentia perdida. Queria voltar a ser feliz e estar em paz consigo mesma, mas não tinha ideia de como chegar lá. Sua frustração não era grave a ponto de justificar uma ida ao médico, mas era suficiente para solapar o seu prazer de viver. Ela não vivia, apenas sobrevivia.

A história de Lucy não é um caso isolado. Ela é uma das milhões de pessoas que não estão deprimidas nem ansiosas na acepção médica - mas também não são felizes de verdade. O humor de todos nós passa por altos e baixos. Às vezes nosso estado de espírito muda de uma hora para outra, sem nem sabermos por quê: num momento estamos felizes, contentes e despreocupados, então algo sutil acontece e começamos a ficar estressados. Pensamos em nossas dificuldades, em todas as coisas que precisamos fazer, na falta de tempo para resolver tudo. O ritmo das exigências é cada vez mais implacável. Nesse estado, ficamos cansados o tempo todo, de forma que nem uma boa noite de sono nos revigora. E nos perguntamos: Como isso foi acontecer? Por que ficamos assim? Talvez não tenha havido nenhuma grande mudança em nossa vida: não perdemos um amigo, não nos endividamos de forma descontrolada. Nada mudou, mas de alguma forma a alegria desapareceu, sendo subs­tituída por uma espécie de aflição generalizada.

Na maior parte do tempo, as pessoas conseguem escapar dessa espiral descendente. Esses períodos difíceis costumam passar. No entanto, às vezes podem perdurar e nos levar para o fundo do poço. No caso de Lucy, a tristeza e a frustração duraram meses, sem qualquer razão apa­rente. Nas situações mais graves, a pessoa pode ser acometida por uma crise séria de ansiedade ou de depressão clínica.

Embora períodos persistentes de aflição e exaustão geralmente pare­çam surgir do nada, existem processos ocorrendo no fundo da mente que só se tornaram conhecidos na década de 1990. E essa descoberta trouxe a percepção de que podemos nos libertar das preocupações, da infelicidade, da ansiedade, do estresse, da exaustão e até da depressão.

Se você perguntasse a Lucy como estava se sentindo naquela tarde, ela teria dito que estava “exausta” ou “tensa”. À primeira vista, essas sen­sações parecem afirmações factuais, mas se olhasse para dentro de si mesma com mais atenção, Lucy teria percebido que não havia algo es­pecífico que pudesse ser rotulado de “exaustão” ou “tensão”. Ambas as emoções eram, na verdade, feixes de pensamentos, sentimentos, sensa­ções físicas e impulsos (como o desejo de gritar ou de sair correndo da sala). As emoções são assim: uma “cor de fundo” criada quando a mente funde pensamentos, sentimentos, impulsos e sensações físicas para evo­car um tema norteador ou estado mental geral. Todos os elementos que formam as emoções interagem entre si e podem intensificar o estado de humor geral. É uma dança intricada, cheia de ligações sutis que só agora começamos a entender.

Tomemos os pensamentos como exemplo. Algumas décadas atrás, acreditava-se que os pensamentos conseguiam mudar nosso estado de espírito e nossas emoções, mas a partir dos anos 1980 descobriu-se que o contrário também pode acontecer: nosso estado de espírito pode mudar nossos pensamentos. Na prática, isso significa que mesmo os momentos passageiros de tristeza podem acabar se autoalimentando para criar pensamentos negativos, definindo a maneira como você vê e interpreta o mundo. Assim como um céu nublado pode fazê-lo se sen­tir melancólico, uma pequena irritação pode trazer à tona lembranças ruins, aprofundando ainda mais seu nervosismo. O mesmo vale para outras emoções: se você se sente estressado, esse estado pode criar ainda mais estresse. Isso também acontece com a ansiedade, o medo, a raiva, e com emoções “positivas” como amor, felicidade, compaixão e empatia.

Mas não são apenas pensamentos e estados de ânimo que se alimen­tam mutuamente e destroem o bem-estar - o corpo também se envolve nesse processo. Isso acontece porque a mente não existe de forma isolada. Ela é uma parte fundamental do corpo, e ambos compartilham informa­ções emocionais entre si o tempo todo. Na verdade, grande parte do que o corpo sente é influenciado pelos pensamentos e pelas emoções, e tudo o que pensamos é influenciado pelo que está ocorrendo no corpo. Pesquisas recentes mostram que nossa perspectiva de vida pode ser alterada por mínimas mudanças corporais: atitudes sutis como fechar a cara, sorrir ou corrigir a postura podem ter um impacto enorme em nosso estado de espírito e em nossos pensamentos.

Para compreender melhor o poder da interação entre o corpo e o es­tado de humor, os psicólogos Fritz Strack, Leonard Martin e Sabine Stepper1 pediram a um grupo de pessoas que assistisse a desenhos ani­mados e depois avaliasse quão engraçados eram. Alguns voluntários tiveram que colocar um lápis entre os lábios, sendo forçados a franzi­dos e fazer uma cara triste. Outros assistiram aos desenhos com o lápis entre os dentes, simulando um sorriso. Os resultados foram impres­sionantes: aqueles forçados a sorrir acharam os desenhos bem mais engraçados do que aqueles obrigados a fechar a cara. Todos sabemos que sorrir demonstra que estamos felizes, mas, convenhamos: é sur­preendente descobrir que o ato de sorrir pode ele próprio torná-lo feliz. Esse é um exemplo perfeito de como são estreitos os vínculos entre a mente e o corpo.

Sorrir também é contagioso. Quando você vê alguém sorrindo, quase inevitavelmente sorri de volta. Pense nisto: o simples ato de sorrir pode deixá-lo contente (ainda que seja um sorriso forçado). E, se você sorrir, os outros sorrirão de volta, o que reforça sua felicidade. É um círculo virtuoso.

Mas também existe um círculo vicioso, que atua na direção oposta. Ao pressentirmos uma ameaça, ficamos tensos, prontos para lutar ou fugir. Essa reação de “luta ou fuga” não é consciente: é controlada por uma das partes mais “primitivas” do cérebro e, por isso, ele pode ser um pouco simplista na maneira de interpretar o perigo. O cérebro não faz distinção entre uma ameaça externa (como um tigre) e uma interna (como uma lembrança incômoda ou uma preocupação futura), tratan­do as duas como um perigo equivalente. Quando uma ameaça é detecta­da - seja real ou imaginária -, o corpo fica tenso e se prepara para entrar em ação. Isso pode se manifestar de várias formas, como rosto franzido, frio na barriga ou tensão nos ombros. A mente lê a reação do corpo e entende que está diante de uma ameaça (lembra como uma cara amar­rada pode fazê-lo se sentir triste?), o que faz o corpo tensionar ainda mais. O círculo vicioso começou.

Na prática, isso significa que, se você está se sentindo um pouco es­tressado ou vulnerável, uma pequena mudança emocional pode acabar arruinando seu dia - ou até mesmo lançá-lo num período prolongado de insatisfação ou preocupação. Essas mudanças costumam surgir do nada, deixando-o sem energia e se perguntando por que está tão infeliz.

Oliver Burkeman, colunista do jornal The Guardian, descobriu isso sozinho e escreveu sobre como pequenas sensações corporais se retroalimentavam para lançá-lo em uma espiral emocional descendente:

Geralmente sou feliz, mas de vez em quando sou atingido por um estado de infelicidade e ansiedade que se intensifica muito rápido. Nos piores dias, sou capaz de passar horas perdido em divagações angustiantes, refletindo sobre as grandes mudanças que preciso fazer em minha vida. De repente, percebo que me esqueci de almoçar. Como um sanduíche de atum e o mau humor desapa­rece. No entanto, minha primeira reação à sensação ruim nunca é pensar que estou com fome. Aparentemente, meu cérebro prefere se chatear com reflexões sobre a falta de sentido da existência a me direcionar até a geladeira.

Como Oliver Burkeman constatou em sua própria experiência, quase sempre essas “divagações angustiantes” se desfazem rápido. Algo atrai nosso olhar e nos faz sorrir - um amigo telefona, encontramos um bom filme passando na TV, tomamos uma deliciosa xícara de chocolate quente ou decidimos ir para a cama cedo. Em geral, toda vez que somos atingidos pelos turbilhões da vida, algo de bom acontece para restabe­lecer o equilíbrio. Mas nem sempre é assim. Às vezes o peso de nossa história entra em ação e adiciona uma carga emocional extra, já que nossas lembranças têm um impacto poderoso em nossos pensamentos, sentimentos, impulsos e, em última análise, em nosso corpo.

Vamos voltar ao exemplo de Lucy. Embora se descreva como uma pessoa “ambiciosa” e “relativamente bem-sucedida”, ela tem consciên­cia de que algo fundamental está faltando em sua vida. Ela conquistou quase tudo o que queria, por isso acha estranho que não se sinta feliz, contente e em paz consigo mesma. Constantemente repete a frase “Eu deveria estar feliz”, como se dizer isso fosse suficiente para expulsar a tristeza.

Os surtos de infelicidade de Lucy começaram na adolescência. Seus pais se separaram quando ela tinha 17 anos e a casa da família precisou ser vendida, forçando seus pais a se mudarem para locais não muito adequados. Lucy surpreendeu a todos por segurar a barra. É claro que no início ficou arrasada com o divórcio, mas logo aprendeu a tirar o foco dos problemas se empenhando nos estudos. Essa foi sua tábua de salvação. Tirou boas notas, entrou na faculdade e se formou com uma qualificação satisfatória. Seu primeiro emprego foi como trainee numa loja de roupas. Ao longo dos anos, foi subindo na hierarquia da empresa, até chegar a chefe de uma pequena equipe de representantes de vendas. Aos poucos, o trabalho dominou a vida de Lucy, deixando-a cada vez mais sem tempo para si mesma. Aconteceu tão lentamente que ela mal percebeu que deixava sua vida de lado. Ocorreram coisas boas também, é claro, como o casamento com Tom e o nascimento das duas filhas. Ela adorava sua família, mas não conseguia se livrar da sensação de que apenas algumas pessoas tinham direito de viver de forma plena. Sua impressão era de estar caminhando em areia movediça.

Essa areia movediça era sua rotina, seu estresse, seus padrões de pen­samentos e seus sentimentos do passado. Embora por fora Lucy pare­cesse uma pessoa de sucesso, por dentro ela morria de medo do fracas­so. Esse medo fazia com que qualquer mau humor passageiro desenca­deasse lembranças dolorosas, enquanto seu crítico interno dizia que era vergonhoso exibir tais fraquezas. Sensações vagas de insegurança aca­bavam despertando uma sucessão de sentimentos negativos do passado que pareciam bem reais e rapidamente assumiam vida própria, ativando outra onda de emoções nocivas.

Como Lucy atestará, é raro experimentarmos a tensão ou a tristeza isoladamente - raiva, irritabilidade, amargura, ciúmes e ódio às vezes estão ligados em um novelo intricado. Esses sentimentos podem até ser dirigidos aos outros, mas na maioria das vezes são voltados para nós mesmos, ainda que não percebamos. Ao longo da vida, esses emaranha­dos emocionais podem se tornar mais associados aos pensamentos, aos sentimentos, às sensações físicas e aos comportamentos. É assim que o passado consegue ter um efeito tão difuso no presente. Se ativamos uma chave emocional, as outras são ativadas em seguida (o mesmo ocor­re com as sensações físicas, como a dor). Tudo isso pode desencadear padrões de pensamento, comportamento e sentimentos que sabemos que são nocivos, mas que simplesmente não conseguimos evitar. E que, quando combinados, são capazes de transformar qualquer contratempo em uma tempestade emocional.

Aos poucos, o acionamento repetitivo de pensamentos e humores ne­gativos começa a abrir sulcos na mente. Com o tempo, esses sulcos se tornam mais profundos, fazendo com que os pensamentos negativos, a autocrítica, a melancolia e o medo se instalem com mais facilidade e se dissipem com mais esforço. A conseqüência disso é que os períodos prolongados de fragilidade podem ser desencadeados por coisas cada vez mais banais, como uma chateação momentânea ou uma baixa de energia - tão banais que às vezes nem as reconhecemos. Com frequên­cia, os pensamentos negativos aparecem disfarçados de perguntas duras que fazemos a nós mesmos: Por que estou tão infeliz? O que está aconte­cendo comigo? Onde será que errei? Onde isso vai acabar?

Os vínculos estreitos entre os diversos aspectos da emoção, que o tem­po todo recorrem ao passado, podem explicar por que um sentimento passageiro pode ter um efeito significativo sobre o estado de humor. Às vezes esses sentimentos chegam e partem tão rápido quanto uma rajada de vento. Outras vezes, no entanto, o estresse, a fadiga e o mau humor ficam grudados como adesivos em nossa mente, e nada parece ser capaz de arrancá-los dali. A impressão que se tem é que é justamente isso que está ocorrendo: a mente é ativada para entrar em alerta máximo, mas depois não consegue ser desativada, como deveria acontecer.

Uma boa forma de ilustrar esse processo é comparar a maneira como humanos e animais reagem diante do perigo. Tente se lembrar do últi­mo documentário sobre a vida selvagem a que assistiu na TV. Deve ter aparecido um rebanho de gazelas sendo caçado por um leopardo na savana africana. Aterrorizados, os animais correram feito loucos até que o leopardo capturou um deles ou desistiu da caçada naquele dia. Uma vez passado o perigo, as gazelas voltaram a pastar tranquilamente. Algo no cérebro delas foi acionado quando avistaram o leopardo e depois desativado quando a ameaça se dissipou.

Mas a mente humana é diferente, sobretudo quando se trata de amea­ças “intangíveis” capazes de desencadear ansiedade, estresse, preocupa­ção ou irritabilidade. Quando nos preocupamos ou tememos alguma coisa - seja ela real ou imaginária - nossas reações de luta ou fuga entram em ação. Mas aí algo mais ocorre: a mente começa a percor­rer nossas lembranças em busca de algo que explique por que nos sen­timos daquele jeito. Assim, se nos sentimos tensos ou em perigo, nossa mente desenterra memórias de ocasiões passadas em que nos sentimos ameaçados e depois cria cenários do que poderá ocorrer no futuro se não conseguirmos explicar o que está acontecendo agora. O resultado é que os sinais de alerta do cérebro são ativados não apenas pelo perigo atual, mas por ameaças passadas e preocupações futuras. Tal processo se dá de forma instantânea, sem que percebamos.

Estudos recentes feitos a partir de tomografias do cérebro confirmam que pessoas que sentem dificuldade de viver o presente e têm rotinas muito agitadas possuem uma amígdala cerebral (a parte primitiva do cérebro envolvida no instinto de luta ou fuga) em “alerta máximo” o tempo todo.2 Assim, quando trazemos à tona lembranças de ameaças e perdas antigas e as juntamos ao “perigo” atual, nosso mecanismo de luta ou fuga não é desativado quando a ameaça passa. Ao contrário das gazelas, não paramos de correr.

Então, a forma como reagimos pode transformar emoções temporá­rias e não problemáticas em dores persistentes e incômodas. Em suma, a mente pode acabar agravando a situação. Isso vale para muitos outros sentimentos do dia a dia. Eis um exemplo:

Enquanto está lendo este livro, veja se consegue perceber qualquer sinal de fadiga em seu corpo. Passe um momento observando-o a fun­do. Depois que tiver se conscientizado de seu cansaço, faça a si mesmo as seguintes perguntas: Por que estou me sentindo tão exausto?O que fiz de errado? O que essa sensação revela sobre mim? O que acontecerá se eu não conseguir me livrar dessa fadiga?

Reflita sobre essas questões por um tempo. Deixe-as ecoar em sua mente. Por que estou tão cansado? O que aconteceu comigo? O que vou fazer se permanecer assim?

Como se sente agora? Provavelmente pior. Acontece com todo mun­do, porque aliado a essas perguntas existe um desejo de se livrar da fadi­ga e de descobrir suas causas e conseqüências.3 O impulso de explicar e expulsar a exaustão deixou você mais exausto.

O mesmo vale para uma série de sentimentos, como a infelicidade, a ansiedade e o estresse. Quando estamos infelizes, é natural tentarmos descobrir a razão por nos sentirmos assim e procurarmos um meio de resolver esse “problema”. Mas tensão, infelicidade ou exaustão não são problemas que possam ser resolvidos. São emoções. Refletem estados da mente e do corpo. Como tais, não podem ser resolvidas - apenas sentidas. Se você as percebeu e abandonou a tendência de explicá-las ou resolvê-las, terá mais chances de vê-las desaparecer sozinhas, como a névoa numa manhã de primavera.

Isso lhe soa estranho? Deixe-me explicar melhor.

Quando você tenta resolver o “problema” da infelicidade (ou de qual­ quer outra emoção “negativa”), mobiliza uma das ferramentas mais poderosas da mente: o pensamento crítico racional. Funciona assim: você se vê num lugar (infeliz) e sabe onde deseja estar (feliz). Sua mente analisa o hiato entre os dois polos e tenta descobrir a melhor forma de transpô-lo. Para isso, usa seu modo Atuante (assim chamado porque é eficiente para resolver problemas e realizar tarefas), que reduz progres­sivamente o hiato entre onde você está e onde deseja chegar. Ele faz isso fragmentando o problema, resolvendo cada uma das partes e depois ve­rificando se isso o ajudou a se aproximar de seu objetivo. Esse processo é instantâneo e nem nos damos conta dele. É uma forma incrivelmente poderosa de resolver problemas: é assim que nos orientamos nas cidades desconhecidas, dirigimos carros e organizamos cronogramas de trabalho frenéticos. Numa escala maior, foi como os povos antigos construí­ram pirâmides e navegaram pelo mundo em veleiros primitivos.

Parece perfeitamente natural, portanto, aplicar essa abordagem para resolver o “problema” da infelicidade. Mas, na verdade, é a pior coisa que se pode fazer, pois requer que você se concentre no hiato entre como está e como gostaria de estar. Então você faz perguntas como: O que há de errado comigo? Onde foi que errei? Por que cometo sempre os mesmos erros? Esses questionamentos, além de duros e autodestrutivos, exigem que a mente forneça indícios para explicar seu descontentamento. E a mente é de fato brilhante em fornecer tais indícios.

Imagine-se passeando num belo parque em um dia de primavera. Você está feliz, mas, por alguma razão desconhecida, uma centelha de tristeza surge em sua mente. Pode ser por causa da fome, já que você não almo­çou, ou talvez porque você tenha se lembrado sem querer de alguma coisa incômoda. Após alguns minutos, você começa a se sentir um pouco aba­tido. Assim que percebe seu desânimo, pensa: O dia está lindo. O parque é maravilhoso. Gostaria de me sentir mais contente do que estou agora.

Repita: Gostaria de me sentir mais contente.

Como se sente depois disso? Provavelmente, ainda mais triste. Você se concentrou no hiato entre como se sente e como quer se sentir. E concentrar-se no hiato o realçou. A mente vê a distância entre os dois estados como um problema a ser resolvido. Essa abordagem é desastro­sa quando se trata das emoções, devido à interligação complexa entre pensamentos, emoções e sensações físicas. Todos se alimentam mutua­mente e podem conduzir sua mente em direções perturbadoras. Em pouco tempo, você se vê sufocado pelos próprios pensamentos. Você começa a analisar demais a situação, a remoer o sentimento, a se culpar por não se sentir feliz.

Seu estado de ânimo piora. Seu corpo fica tenso, seu rosto se franze e o desânimo se instala. Algumas dores podem surgir. Essas sensações realimentam sua mente, que se sente mais ameaçada. Seu astral pode cair a tal ponto que você deixa de aproveitar o passeio no parque e não presta mais atenção na beleza do dia.

Claro que ninguém fica remoendo os problemas porque acredita que é uma forma nociva de pensar. As pessoas acreditam que, preocupando-se o suficiente com sua infelicidade, acabarão encontrando uma solu­ção para ela. Mas as pesquisas provam o oposto: na verdade, remoer pensamentos reduz nossa capacidade de solucionar problemas, e é um artifício absolutamente inútil para lidar com dificuldades emocionais.

Os sinais são claros: remoer pensamentos é o problema, não a solução.

Escapando do círculo vicioso

Não dá para deter o fluxo de lembranças infelizes, monólogos inter­nos negativos e outras formas de pensamento prejudiciais - mas você pode evitar o que acontece a seguir. Como já dissemos, você pode im­]pedir que o círculo vicioso se autoalimente e desencadeie a próxima es­piral de pensamentos negativos. E pode fazer isso experimentando um jeito novo de se relacionar consigo mesmo e com o mundo. Se você pára e reflete por um momento, a mente não apenas pensa: ela tem consciência de que está pensando. Essa forma de pura consciência permite que você veja o mundo de outra maneira, de um ponto de vista distanciado, sem sofrer a interferência de seus pensamentos, sentimentos e emoções. É como estar numa montanha alta - um ponto de observação - da qual você pode ver tudo por quilômetros a sua volta.

A pura consciência transcende o pensamento. Permite que você cale a mente tagarela e iniba seus impulsos e emoções reativas. Possibilita que você olhe para o mundo com os olhos abertos. E quando faz isso, a sensação de contentamento reaparece em sua vida.

 

Psicologia - Psicologia positiva
1/5/2022 1:11:36 PM | Por Paulo Dalgalarrondo
O que é semiologia

A semiologia, tomada em um sentido ge­ral, é a ciência dos signos, não se restrin­gindo obviamente à medicina, à psiquia­tria ou à psicologia. É campo de grande importância para o estudo da linguagem (semiótica lingüística), da música (semio­logia musical), das artes em geral e de to­dos os campos de conhecimento e de ativi­dades humanas que incluam a interação e a comunicação entre dois interlocutores por meio de um sistema de signos.
Entende-se por semiologia médica o estudo dos sintomas e dos sinais das doen­ças, estudo este que permite ao profissio­nal de saúde identificar alterações físicas e mentais, ordenar os fenômenos observa­dos, formular diag­nósticos e empreen­der terapêuticas. Se­miologia psicopatológica é, por sua vez, o estudo dos si­nais e sintomas dos transtornos mentais.

Embora esteja intimamente relacio­nada à lingüística, a semiologia geral não se limita a ela, posto que o signo transcen­de a esfera da língua; são também signos os gestos, as atitudes e os comportamentos não-verbais, os sinais matemáticos, os signos musicais, etc. De fato, a semiologia geral como ciência dos signos foi postula­da pelo lingüista suíço Ferdinand de Saussure [1916] (1970), que afirmou: Pode-se, então, conceber uma ciência que estude a vida dos signos no seio da vida social; [...] chamá-la-emos de Semiologia (do grego semeion, “signo”)- Ela nos ensi­nará em que consistem os signos, que leis os regem.

Charles Morris (1946) discrimina três campos distintos no interior da semiologia: a semântica, responsável pelo estudo das relações entre os signos e os objetos a que tais signos se referem; a sintaxe, que [23] compreende as regras e as leis que regem as relações entre os vários signos de um siste­ma de signos; e, finalmente, a pragmáti­ca, que se ocupa das relações entre os sig­nos e os usuários, os sujeitos que os utili­zam concretamente.

O signo é o elemento nuclear da semiologia; ele está para a semiologia as­sim como a célula está para a biologia e o átomo para a física. O signo é um tipo de sinal. Define-se sinal como qualquer estí­mulo emitido pelos objetos do mundo. As­sim, por exemplo, a fumaça é um sinal do
fogo, a cor vermelha, do sangue, etc. O sig­no é um sinal especial, um sinal sempre provido de significação. Dessa forma, na semiologia médica, sabe-se que a febre pode ser um sinal/signo de uma infecção, ou a fala extremamente rápida e fluente pode ser um sinal/signo de uma síndrome maníaca. A semiologia médica e a psicopatológica tratam particularmente dos signos que indicam a existência de sofrimento mental, transtornos e patologias.

Os signos de maior interesse para a psicopatologia são os sinais comportamentais objetivos, verificáveis pela obser­vação direta do paciente, e os sintomas, isto é, as vivências subjetivas relatadas pe­los pacientes, suas queixas e narrativas, aquilo que o sujeito experimenta e, de al­guma forma, comunica a alguém. Sá Junior (1988) apresenta uma definição de sintoma e sinal um pouco diferente. Ele discrimi­na os sintomas objetivos (observados pelo examinador) dos sintomas subjetivos (per­cebidos apenas pelo paciente). Os sinais, por sua vez, são definidos como dados elementares das doenças que são provocados (ativamente evocados) pelo examinador (si­nal de Romberg, sinal de Babinski, etc.). Segundo o lingüista russo Roman Jakobson [1962] (1975), já os antigos es­tóicos desmembraram o signo em dois ele­mentos básicos: signans (o significante) e signatum (o significado). Assim, todo sig­no é constituído por estes dois elementos: o significante, que é o suporte material, o veículo do signo; e o significado, isto é, aquilo que é designado e que está ausente, o conteúdo do veículo.

De acordo com o filósofo norte-ame­ricano Charles S. Peirce [1904] (1974), se­gundo as relações entre o significado (con­teúdo) e o significante (suporte material) de um signo, há três tipos de signos: o ícone, o indicador e o símbolo. O ícone é um tipo de signo no qual o elemento significante evoca imediatamente o significado, isso gra­ças a uma grande semelhança entre eles, como se o significante fosse uma “fotogra­fia" do significado. O desenho esquemático no papel de uma casa pode ser considerado um ícone do objeto casa. No caso do indica­dor, ou índice, a relação entre o significante e o significado é de contigüidade; o signi­ficante é um índice, algo que aponta para o objeto significado. Assim, uma nuvem é um indicador de chuva, e a fumaça, de fogo.

O símbolo, por sua vez, é um tipo de signo totalmente diferente do ícone e do indicador; aqui o elemento significante e o objeto ausente (significado) são distintos em aparência e sem relação de contigüida­de. Não há qualquer relação direta entre eles; trata-se de uma relação puramente convencional e arbitrária. Entre o conjun­to de letras agrupadas “C-A-S-A” e o obje­to “casa” não existe qualquer semelhança (visual ou de qualquer outro tipo), o que constitui uma relação totalmente conven­cional. Por isso, o sentido e o valor de um símbolo dependem necessariamente das relações que este mantém com os outros sím­bolos do sistema simbólico total; depende, por exemplo, da ausência ou presença de outros símbolos que expressam significa­dos próximos ou antagônicos a [24] ele.

Dimensão dupla do sintoma psicopatológico: indicador e símbolo ao mesmo tempo

Os sintomas médicos e psicopatológicos têm, como signos, uma dimensão dupla. Eles são tanto um índice (indicador) como um símbolo. O sintoma como índice in­dica uma disfunção que está em outro ponto do organismo ou do aparelho psí­quico; porém, aqui a relação do sintoma com a disfunção de base é, em certo sen­tido, de contigüidade. A febre pode corresponder a uma infecção que induz os leucócitos a liberarem certas citocinas que, por sua ação no hipotálamo, produzem o aumento da temperatura. Assim, o sintoma febre tem determinada relação de contigüidade com o processo infeccio­so de base.

Além de tal dimensão de indicador, os sintomas psicopatológicos, ao serem nomeados pelo paciente, por seu meio cultural ou pelo médico, passam a ser “símbolos lingüísticos” no interior de uma linguagem. No momento em que recebe um nome, o sintoma adquire o status de símbolo, de signo lingüístico arbitrário, que só pode ser compreendido dentro de um sistema simbólico dado, em determinado universo cultural. Dessa forma, a angústia manifesta-se (e realiza-se) ao mesmo tempo como mãos geladas, tremores e aperto na garganta (que indicam, p. ex., uma disfunção no sistema nervoso autônomo), e, ao ser tal estado designado como nervosismo, neurose, ansiedade ou gastura, passa a receber certo significado simbólico e cultural (por isso, convencional e arbitrário), que só pode ser adequadamen­te compreendido e interpretado tendo-se como referência um universo cultural es­pecífico, um sistema de símbolos deter­minado.

A semiologia psicopatológica, portanto, cuida espe­cificamente do estudo dos sinais e sin­tomas produzidos pelos transtornos mentais, signos que sempre contêm essa dupla dimensão.

Divisões da semiologia

A semiologia (tanto a médica como a psicopatológica) pode ser dividida em duas grandes subáreas: semiotécnica e semiogênese (Marques, 1970).
A semiotécnica refere-se a técnicas e procedimentos específicos de observação e coleta de sinais e sintomas, assim como à descrição de tais sintomas. No caso dos transtornos mentais, a semiotécnica concentra-se na entrevista direta com o paciente, seus familiares e demais pessoas com as quais convive. A coleta de sinais e sintomas requer a habilidade sutil em formular as perguntas mais adequadas para o estabelecimento de uma relação produtiva e a conseqüente identificação dos signos dos transtornos mentais. Aqui são fundamentais o “como” e o “quando” fazer as perguntas, assim como o modo de interpretar as respostas e a decorrente formulação de novas perguntas. Fundamental, sobretudo para a semiotécnica em psicopatologia, é a observação minuciosa, atenta e perspicaz do comportamento do paciente, do conteúdo de seu discurso e do seu modo de falar, da sua mímica, da postura, da vestimenta, da forma como reage e do seu estilo de relacionamento com o entrevistador, com outros pacientes e com seus familiares.

A semiogênese, por sua vez, é o campo de investigação da origem, dos me­canismos, do significado e do valor diag­nóstico e clínico dos sinais e sintomas. Fi­nalmente, alguns autores utilizam o termo propedêutica médica ou psiquiátrica para designar a semiologia. Propedêutica, de modo geral, é termo empregado em várias áreas do saber para designar o ensino pré­vio, os conhecimentos preliminares neces­sários ao início de uma ciência ou filoso­fia. Prefiro o termo semiologia à pro­pedêutica, mas reconheço que a semiologia psicopatológica (como propedêutica) pode ser concebida como uma ciência prelimi­nar, necessária a todo estudo psicopatológico e prática clínica psiquiátrica.

Síndromes e entidades nosológicas

Na prática clínica, os sinais e os sintomas não ocorrem de forma aleatória; surgem em certas associações, certos clusters mais ou menos freqüentes. Definem-se, portan­to, as síndromes como agrupamentos re­lativamente constantes e estáveis de deter­minados sinais e sintomas. Entretanto, ao se delimitar uma síndrome (como síndrome depressiva, demencial, paranoide, etc.), não se trata ainda da definição e da identi­ficação de causas específicas e de uma na­tureza essencial do processo patológico. A síndrome é puramente uma definição des­critiva de um conjunto momentâneo e re­corrente de sinais e sintomas.

Denominam-se entidades nosológicas, doenças ou transtornos específicos os fenômenos mórbidos nos quais podem-se identificar (ou pelo menos presumir com certa consistência) certos fatores causais (etiologia), um curso relativamente homo­gêneo, estados terminais típicos, meca­nismos psicológicos e psicopatológicos característicos, antecedentes genético-familiares algo específicos e respostas a tratamentos mais ou menos previsíveis. Em psicopatologia e psiquiatria, trabalha-se muito mais com síndromes do que com doenças ou transtornos específicos, embo­ra muito esforço tenha sido (há mais de 200 anos!) empreendido no sentido de identifi­car entidades nosológicas precisas. Cabe lembrar que o reconhecimento dessas enti­dades não tem apenas um interesse cientí­fico ou acadêmico (valor teórico); ele ge­ralmente viabiliza ou facilita o desenvolvi­mento de procedimentos terapêuticos e pre­ventivos mais eficazes (valor pragmático).

Psicologia - Psicopatologia
12/8/2021 12:45:04 PM | Por Kristin Neff
Por que autocompaixão

Quantos de nós nos sentimos realmente bem nesta sociedade extrema­ mente competitiva? Sentir-se bem parece uma coisa fugaz. Especialmente porque, para nos sentirmos merecedores, precisamos nos sentir especiais e acima da média. Qualquer coisa menor soa como fracasso. Lembro-me de quando era caloura na faculdade e, depois de passar horas me pre­ parando para uma grande festa, reclamei para meu namorado que o meu cabelo, maquiagem e roupa não estavam adequados. Ele tentou me tranqüilizar, dizendo: “Não se preocupe, você está bem.”

“Bem? Áh, tá. Era isso que eu queria. Estar bem...”

O desejo de se sentir especial é compreensível. O problema é que, por definição, é impossível estarmos todos acima da média ao mesmo tempo. Embora existam qualidades que nos destacam, sempre há alguém mais inteligente, mais bonito, mais bem-sucedido. Como lidar com isso? Não sabemos muito bem. Para vermos a nós mesmos de forma positiva, temos a tendência de inflar nosso próprio ego e rebaixar o dos outros, para que possamos nos sentir bem em relação a eles. Mas essa estratégia tem um preço: impede-nos de alcançar o nosso potencial pleno na vida.

Espelhos distorcidos

Se for preciso me sentir melhor do que você para eu estar bem co­migo, será que realmente vejo você com clareza? Será que sou capaz de enxergar a mim mesma? Digamos que tenha tido um dia estressante no trabalho e por isso ficado mal-humorada e irritada com meu marido quando ele chegou em casa mais tarde naquela noite (puramente hipo­tético, é claro). Se eu estiver muito interessada em ter uma autoimagem positiva e não quiser correr o risco de me ver sob uma luz negativa, minha interpretação dos fatos garantirá que qualquer atrito entre nós seja culpa do meu marido, e não minha.

“Que bom que está em casa. Fez as compras que pedi?”
“Acabei de passar pela porta. Que tal dizer ‘é bom ver você, querido,
como foi seu dia?”
“Ora, se você não fosse tão esquecido, talvez eu não precisasse per­guntar sempre.”
“O fato é que eu fiz as compras.”
“Oh... Bem, hum... É a exceção que confirma a regra. Eu queria poder confiar em você sempre.”

Essa não é exatamente a receita para a felicidade.]

Por que é tão difícil admitir quando agimos mal, quando somos rudes ou impacientes? Porque satisfazemos o nosso ego quando projetamos nossas falhas e deficiências nas outras pessoas. A culpa é sua, não minha. Basta pensar em todas as discussões e brigas que crescem a partir dessa simples dinâmica. Cada pessoa culpa o outro por ter dito ou feito algo errado, justificando suas próprias ações como se sua vida dependesse disso. Lá no fundo do coração, ambos sabemos que se um não quer, dois não brigam. Quanto tempo desperdiçamos com isso? Não seria muito melhor se pudéssemos apenas admitir isso e jogar limpo?

Mas é mais fácil falar do que fazer. Se não pudermos nos ver com clareza, torna-se quase impossível percebermos nossas características que causam problemas para os outros ou que nos impedem de alcançar o nosso pleno potencial. Como podemos crescer se não conseguimos  identificar nossas próprias fraquezas? Temporariamente, podemos nos sentir melhor em relação a nós mesmos ignorando nossas falhas ou acreditando que nossos problemas e dificuldades são culpa de outra pessoa. Mas, em longo prazo, só nos prejudicamos, ficando presos em intermináveis ciclos de estagnação e conflitos.

O Preço do autojulgamento

Alimentar continuamente nossa necessidade de autoavaliação positiva é um pouco como se empanturrar de doces. Ficamos embriagados de açúcar e, em seguida, vem uma queda brusca. Na queda, entramos em desespero. É quando percebemos que, por maior que seja a nossa vontade, nem sempre podemos culpar os outros por nossos problemas. Nem sempre podemos nos sentir especiais e acima da média. Muitas vezes, o resultado é devastador.

Olhamos no espelho e não gostamos do que vemos (literal e figurativamente), e então a vergonha começa a tomar forma. A maioria de nós é extremamente dura em relação a si quando consegue admitir alguma falha ou defeito. Pensamos: “Eu não sou bom o suficiente. Sou um inútil”. Por isso, preferimos esconder a verdade de nós mesmos, pois recebemos a honestidade como uma dura condenação.

Em áreas difíceis de nos enganarmos - por exemplo, quando com­paramos o nosso peso ao de modelos de revistas ou as nossas contas bancárias às dos ricos e bem-sucedidos causamo-nos uma imensa dor emocional. Perdemos a fé em nós mesmos, começamos a duvidar de nosso potencial e perdemos a esperança. Naturalmente, esse estado de tristeza apenas produz mais autocondenação por sermos perdedores que não fazem nada. Assim, caímos cada vez mais.

Mesmo quando conseguimos nos sair bem, as regras do jogo para atingir o "suficientemente bom” parecem sempre permanecer fora de alcance, o que é frustrante. Precisamos ser inteligentes e atléticos e ele­gantes e interessantes e bem-sucedidos e sexies. Ah, e espiritualizados também. Não importa o quanto façamos algo bem, sempre haverá al­guém que parece fazer melhor. O resultado dessa linha de pensamento é preocupante: milhões de pessoas precisam tomar medicamentos todos  os dias apenas para lidar com o seu cotidiano. A insegurança, a ansie­dade e a depressão são extremamente comuns em nossa sociedade, e muito disso é devido ao autojulgamento, por nos martirizarmos quando sentimos que não estamos vencendo no jogo da vida.

Outra maneira

Então, qual é a resposta? É preciso parar com o autojulgamento de uma vez por todas e exercitar as autoavaliações. Parar com os rótulos de “bom” ou “mau” e simplesmente se aceitar de coração aberto. Devemos nos tratar com a mesma bondade, carinho e compaixão que dedicamos a um bom amigo ou mesmo a um estranho. Não há quase ninguém a quem tratemos tão mal quanto a nós mesmos.

Quando me deparei com a ideia de autocompaixão, minha vida mu­dou quase imediatamente. Foi no último ano do meu doutorado sobre Desenvolvimento Humano na Universidade de Berkeley, na Califórnia, quando estava dando os retoques finais na minha tese. Eu passava por um momento muito difícil com o fim do meu primeiro casamento e estava cheia de vergonha e autoaversão. Tive a ideia de me inscrever em aulas de meditação em um centro budista perto dali. Quando pe­quena, já nutria um interesse pela espiritualidade oriental. Fui criada nos arredores de Los Angeles por uma mãe de mente aberta, mas nunca tinha levado a meditação a sério. Além disso, nunca tinha examinado a filosofia budista porque a minha exposição ao pensamento oriental foi mais na linha New Age da Califórnia. Como parte da minha busca, li o clássico livro da Sharon Salzberg, Loving Kindness (A Bondade Amorosa) e nunca mais fui a mesma.

Eu sabia que os budistas falavam muito sobre a importância da com­paixão, mas nunca antes tinha considerado que a compaixão por si mesmo podia ser tão importante quanto a compaixão pelos outros. Do ponto de vista budista, você tem de cuidar de si mesmo antes que possa realmente se preocupar com as outras pessoas. Se você se julga e se critica conti­nuamente enquanto tenta ser gentil com os outros, acaba desenhando fronteiras e distinções artificiais que só levam a sentimentos de separação  e isolamento. Esse movimento é oposto à unidade, à interconexão e ao amor universal - objetivos finais da maioria dos caminhos espirituais, não importa qual seja a tradição.

Meu novo noivo, o Rupert, ia comigo às reuniões semanais do grupo de budistas. Lembro-me de como ele balançava a cabeça com espanto e dizia: “Quer dizer que é possível se permitir ser bom consigo mesmo e ter autocompaixão diante do fracasso ou de momentos difíceis? Não sei... Se eu for muito autocompassivo não vou estar apenas sendo preguiçoso e egoísta?” Levei um tempo para colocar a minha cabeça em ordem. Mas lentamente percebi que a autocrítica, apesar de ser sancionada pela sociedade, não era de forma alguma útil. Na verdade, ela só piorava as coisas. Eu não me tornava uma pessoa melhor por me bater o tempo todo. Em vez disso, sentia-me inadequada e insegura e jogava a minha frustração nas pessoas próximas. Mais do que isso, havia muitas coisas que eu não admitia, porque tinha muito medo do auto-ódio que viria se eu encarasse a verdade.

Rupert e eu aprendemos a fornecer a nós mesmos, individualmente, doses de amor, aceitação e segurança que, antes, esperávamos extrair do nosso relacionamento. Isso significou um aumento desses senti­mentos em nossos corações para darmos um ao outro. Estávamos tão comovidos com o conceito da autocompaixão que, em nossa cerimônia de casamento, ainda naquele ano, cada um terminou os votos, dizendo: “Acima de tudo, prometo te ajudar a ter compaixão por ti mesmo, para que possas prosperar e ser feliz.”

Depois do meu doutorado, fiz dois anos de pós-doutorado com uma pesquisadora especialista em autoestima. Queria saber mais sobre como as pessoas determinam o seu senso de autoestima, e aprendi rapidamen­te que o campo da psicologia estava se desencantando com a teoria da autoestima como o suprassumo da saúde mental. Apesar dos milhares de artigos escritos sobre a importância da autoestima, os investigadores começam a apontar todas as suas armadilhas: narcisismo, egocentrismo, raiva hipócrita, preconceito, discriminação e assim por diante. Percebi que a autocompaixão era a alternativa perfeita para a busca incessante da autoestima. Por quê? Porque oferece a mesma proteção contra a dura autocrítica, mas sem a necessidade de nos vermos como seres perfeitos ou como melhores do que os outros. Em outras palavras, a autocompaixão proporciona os mesmos benefícios que a autoestima elevada, mas sem as suas desvantagens.

Quando consegui um emprego como professora assistente na Uni­versidade de Austin, no Texas, decidi que, assim que estivesse instalada, gostaria de realizar pesquisas sobre a autocompaixão. Embora ninguém ainda houvesse definido autocompaixão numa perspectiva acadêmica - muito menos feito qualquer pesquisa a esse respeito -, eu sabia que esse seria o trabalho da minha vida.

Então, o que é autocompaixão? O que ela significa exatamente? Em geral, acho que a melhor maneira de descrever a autocompaixão é começando com uma experiência mais familiar - compaixão pelos outros. Afinal de contas, a compaixão que direcionamos a nós mesmos é a mesma que damos a outras pessoas.

Compaixão pelos outros

Imagine que você está preso no trânsito no caminho para o trabalho e um sem-teto pede um trocado para lavar o vidro do seu carro. “Ele é tão insistente!’’ Você pensa. Ele vai me fazer perder o sinal e chegar tarde. Pro­vavelmente só quer o dinheiro para bebida ou drogas. Se eu ignorá-lo, talvez ele me deixe em paz. Mas ele não ignora você, que permanece sentado odiando-o, enquanto limpa o vidro; você vai se sentir culpado se não lhe der algum dinheiro e ressentido se o fizer.

Até que um dia algo muda subitamente. Lá está você, no mesmo trânsito, no mesmo sinal, na mesma hora, e lá está o homem, com seu balde e rodo, como de costume. No entanto, por alguma razão desco­nhecida, hoje você o vê de forma diferente. Você o vê como uma pessoa e não como um mero aborrecimento. Você percebe o seu sofrimento. Como ele sobrevive? A maioria das pessoas simplesmente o expulsa. Ele enfrenta esse trânsito e essa fumaça todos os dias e certamente não ganha muito. Pelo menos está tentando oferecer algo em troca de dinheiro. Deve ser muito difícil quando as pessoas são hostis com você o tempo todo. Qual será a história dele?

Como fui fazer isso? No momento em que você vê o homem como um ser humano real que está sofrendo, seu coração se conecta com ele. Em vez de ignorá-lo, você se encontra - para seu espanto - reservando um momento para pensar em como a vida dele deve ser difícil. Você está movido pela sua dor e sente o desejo de ajudá-lo de alguma forma. E, mais importante, se o que você sente é a verdadeira compaixão, em vez de mera piedade, você diz para si mesmo: Graças a Deus. Se eu tivesse nascido em circunstâncias diferentes, ou se tivesse tido apenas azar, também poderia estar lutando para sobreviver como ele. Somos todos vulneráveis.

Claro, esse pode ser o momento em que você endurece o seu coração completamente - o seu próprio medo de acabar na rua o leva a desumanizar esse amontoado horrível de trapos e barba. Muitas pessoas agem assim. Mas endurecer o coração não torna ninguém mais feliz. Não nos ajuda a lidar com as tensões do trabalho, com nossos cônjuges ou filhos quando chegamos em casa. Não nos ajuda a enfrentar nossos próprios medos. Esse endurecimento do coração envolve achar-se melhor do que o sem-teto e, se muda algo, muda tudo para pior.

Mas suponhamos que você não se fecha e realmente experimenta a compaixão pela infelicidade do sem-teto. Como você se sente? Esse é um sentimento muito bom. É maravilhoso quando o seu coração se abre - você se sente imediatamente mais conectado, vivo, presente.

Agora, imaginemos que o homem não estivesse tentando lavar os vidros em troca de algum dinheiro. Talvez ele estivesse apenas pedindo dinheiro para comprar álcool ou drogas. Você ainda sentiria compai­xão por ele? Sim. Você não tem que convidá-lo para ir à sua casa nem lhe dar dinheiro. Você pode decidir dar-lhe um sorriso amável ou um sanduíche se sentir que é a coisa mais responsável a fazer. Mas sim, ele ainda é digno de compaixão. Todos nós somos. A compaixão não é relevante apenas para as vítimas inocentes, mas também para aqueles cujo sofrimento decorre de falhas, fraqueza pessoal ou decisões ruins. Você sabe: do tipo que você e eu cometemos todos os dias.

Acompaixão, portanto, envolve o reconhecimento e a visão clara do sofrimento. Ela também envolve sentimentos de bondade pelas pessoas que sofrem, de modo que o desejo de ajudar a amenizar o sofrimento  cresce. Finalmente, a compaixão envolve reconhecer a nossa condição humana compartilhada, imperfeita e frágil como ela é.

Compaixão por nós mesmos

Aautocompaixão, por definição, envolve as mesmas qualidades. Em primeiro lugar, é necessário que reconheçamos nosso próprio sofrimento. Não podemos ser movidos por nossa própria dor sem ao menos reconhe­cermos que ela existe. Claro que, às vezes, o fato de estarmos sofrendo é absolutamente óbvio e não conseguimos pensar em mais nada. No entanto, com mais frequência do que se imagina, não reconhecemos quando estamos sofrendo. Grande parte da cultura ocidental tem a forte tradição do “nariz empinado”. Somos ensinados a não reclamar, devemos apenas continuar. Se estamos em uma situação complicada ou estressante, raramente paramos para dar um passo atrás e reconhecer como aquele momento é difícil para nós.

Quando a nossa dor vem do autojulgamento, é ainda mais difícil vê-la como um momento sofrido. É o que acontece quando você sente raiva de si mesmo por maltratar alguém ou por fazer alguma observação estúpida em uma festa. Foi o que aconteceu quando, certa vez, perguntei a uma amiga de barriguinha saliente que eu não via há algum tempo: “Está esperando bebê?”. “Eu, não”, ela respondeu. “Engordei um pouco ultimamente." “Ah...”, eu disse, e meu rosto ficou vermelho de vergonha. Normalmente não reconhecemos esses momentos como um tipo de dor digno de uma resposta compassiva. Afinal de contas, eu errei. Não significa que deveria ser punida? Bem, você pune os seus amigos ou a sua família quando eles cometem erros? Está bem, talvez às vezes um pouco, mas você se sente bem com isso?

Todos cometem erros eventuais, é um fato da vida. E, pensando bem, por que você deveria ser diferente? Onde está aquele contrato que assinou antes do nascimento, prometendo ser perfeito, nunca falhar e seguir sua vida exatamente do jeito que você queria? Eh, com licença. Deve haver algum erro. Eu me inscrevi para o plano “tudo sairá às mil ma­ravilhas até o dia em que eu morrer. Posso falar com o gerente, porf avor?” É  um absurdo! Ainda assim, a maioria de nós age como se algo estivesse completamente errado quando falhamos ou quando a vida toma um rumo indesejado ou inesperado.

Há desvantagens na nossa cultura fomentadora da ética da indepen­dência e da realização individual. Se não alcançamos continuamente nossos objetivos, sentimo-nos culpados. E se falhamos significa que não merecemos compaixão, certo? A verdade é que todo mundo é digno de compaixão. O próprio fato de sermos seres humanos conscientes experienciando a vida no planeta significa que somos intrinsecamente valiosos e merecedores de atenção. De acordo com o Dalai Lama, “os seres humanos, por natureza, querem a felicidade, e não o sofrimento. Com esse sentimento, todo mundo tenta alcançar a felicidade e se livrar do sofrimento, e todos têm o direito básico de fazê-lo... Basicamente, do ponto de vista do valor humano real, somos todos iguais”. Sem dúvida foi esse o mesmo sentimento que inspirou a Declaração de Independência dos Estados Unidos: “Consideramos estas verdades como autoevidentes, que todos os homens são criados iguais, que são dotados pelo Criador de certos Direitos inalienáveis, que entre estes estão a Vida, a Liberdade e a busca da Felicidade”. Não precisamos ganhar o direito à compaixão: é nosso direito de nascença. Somos humanos e nossa capacidade de pensar e sentir, combinada com o nosso desejo de sermos felizes ao invés de sofrermos, garante a compaixão por si só.

Contudo, muitas pessoas são resistentes à ideia da autocompaixão. Essa não seria, na verdade, apenas uma forma de autocomiseração? Ou uma palavra bonita para a autoindulgência? Vou mostrar ao longo deste livro por que essas suposições são falsas e vão diretamente contra o real significado da autocompaixão. Você verá que a autocompaixão envolve querer saúde e bem-estar para si, e leva a um comportamento proativo. Busca-se melhorar a situação, e não permanecer na passivi­dade. Sobretudo, a autocompaixão não significa considerar os meus problemas mais importantes do que os seus, significa apenas colocar ambos os problemas no mesmo nível de importância, entendendo-os como dignos de serem atendidos.

Portanto, em vez de se condenar por seus erros e fracassos, você pode usar a experiência do sofrimento para amolecer seu coração. Pode se desvencilhar dessas expectativas irreais de perfeição que o fazem sentir-se tão insatisfeito e abrir a porta à satisfação real e duradoura, dando-se a compaixão de que você precisa no momento.

A pesquisa que meus colegas e eu realizamos na década passada mostra que a autocompaixão é uma maneira poderosa para alcançar o bem-estar emocional e o contentamento em nossas vidas. Quando nos damos bondade incondicional e conforto ao abraçarmos a experiência humana, por mais difícil que seja, evitamos os padrões destrutivos do medo, da negatividade e do isolamento. Ao mesmo tempo, a autocom­paixão promove estados mentais positivos, como a felicidade e o oti­mismo. Cultivar a qualidade da autocompaixão nos permite florescer e apreciar a beleza e a riqueza da vida, mesmo em tempos difíceis. Quando acalmamos nossas mentes agitadas com a autocompaixão, somos mais capazes de perceber o que está certo e o que está errado. Podemos nos orientar na direção do que nos dá alegria.

A autocompaixão fornece uma ilha de calmaria, um refúgio dos mares tempestuosos do interminável autojulgamento, positivo e nega­tivo, para que finalmente possamos parar de perguntar: "Sou tão bom quanto eles? Sou bom o suficiente?” Bem aqui, ao nosso alcance, temos os meios para fornecer a nós mesmos o apoio cuidadoso e caloroso que desejamos profundamente. Quando bebemos da nossa fonte interior de bondade, reconhecendo a natureza compartilhada da nossa condição humana imperfeita, nos sentimos mais seguros, mais aceitos e mais vivos.

De muitas formas, a autocompaixão é como mágica porque tem o poder de transformar o sofrimento em alegria. Tara Bennet-Goldman, em seu livro Alquimia Emocional: como a mente pode curar o coração, usa a metáfora da alquimia para simbolizar a transformação espiritual e emocional possibilitada pelo ato de abraçarmos nossa própria dor com uma preocupação atenciosa. Quando nos entregamos à compaixão, o nó apertado do autojulgamento negativo começa a se dissolver e é subs­tituído por uma sensação de calma e aceitação - o diamante brilhante que emerge do carvão.

Psicologia - Psicologia humanista
12/8/2021 12:36:12 PM | Por Robert Biswas-Diener, Todd B. Kashdan
Por que é bom não estar bem

No primeiro tempo de um jogo de basquete profissional, quando Pat Riley era o treinador do Los Angeles Lakers, o time estava totalmente desconcentrado. Os jogadores ficavam olhando para as meninas da torcida, fazendo piadas, praticamente ignorando o que se passava na quadra. O único a manter a cabeça no lugar foi o astro do basquete Kareem Abdul-Jabbar. No inter­ valo, Riley simulou um ataque de raiva, que começou com gritos e culminou com uma bandeja cheia de copos de água derrubada. O único atingido foi Kareem, que ficou encharcado. Essa cena le­vou os jogadores a se sentirem culpados pelo mau comportamen­to que fez Kareem sofrer injustamente a ira do treinador. A partir daí eles se compenetraram, superaram a diferença de 24 pontos e venceram o jogo. Acontece que, desde o começo, Riley teve a in­tenção de jogar a água em Kareem, e a estratégia funcionou.

Alguém acha que o time teria jogado melhor se, no intervalo, Riley tivesse ido para o vestiário com a intenção de criar uma atmosfera de alegria, calma e contentamento? Naquele momen­to, a raiva era exatamente o que a situação exigia. Como vimos pela reação dos jogadores, as emoções negativas podem ser alta­mente motivadoras. Se você não se abrir para aceitar sentimentos negativos, poderá perder ótimas oportunidades de usar alguns dos [87] instrumentos mais úteis na vida. Se cair na tentação de procurar sempre algo positivo em que se agarrar, na esperança de eliminar, dissimular ou esconder emoções negativas, vai sair perdendo no jogo da vida. Ao evitar as emoções negativas, você estará, invo­luntariamente, sufocando a felicidade, a fortaleza de caráter, a curiosidade, a maturidade, a sabedoria e o crescimento pessoal. Se você abafar as emoções negativas, abafa as positivas também. Lembra-se dos norte-americanos deprimidos que não riram do filme cômico?

Por que o mau pode ser mais potente que o bom

Roy Baumeister e seus colegas da Universidade Estadual da Fló­rida publicaram um artigo intitulado “Bad is Stronger thatn Good” [O mau é mais forte que o bom].1 É sse título ousado sugere que os psicólogos tinham dado um jeito de medir o bom e o mau no mun­do, e o resultado foi a favor do lado mau. Na verdade, o artigo afir­ma que temos uma reação mais forte aos eventos negativos da vida do que aos eventos positivos. Tomemos apenas um exemplo: nu­ma pesquisa com adultos norte-americanos escolhidos aleato­riamente e mais ou menos como nós, constatou-se que o fato de terem passado um dia muito agradável não influenciava a quali­dade do dia seguinte. Por outro lado, um dia péssimo se refletia no dia seguinte logo ao acordar (cambaleando), no café da manhã (achando tudo horrível), indo para o trabalho (fechando todos os carros na via expressa para ganhar dois minutos). O mesmo pa­drão surge diversas vezes na pesquisa psicológica:[88]

  • O sexo bom no casamento está relacionado a cerca de 20% da diferença de satisfação marital entre marido e mulher.2 Quando o sexo não é bom, a variação sobe para 50% a 75%.
  • Perguntaram a crianças em idade escolar se algum colega de classe era um “amigo indesejável”.3 Se punham alguém na lista, justificavam dizendo que o colega não era bom nos esportes ou no dever de casa, entre outros mil defeitos. Mas na lista de “amigos desejáveis” não vinha ao caso se era atlé­tico, estudioso ou bonito.
  • As pessoas têm uma reação mais forte a cheiros desagradá­veis - franzindo o nariz por mais tempo - do que a odores agradáveis, que lhes põe um breve sorriso nos lábios.4

A equipe de Baumeister relatou um estudo abrangente e mui­to interessante que mostra que eventos, experiências, relaciona­mentos e estados psicológicos negativos têm um peso muito maior em nossa sensibilidade do que os positivos. Você pode questionar essa conclusão aparentemente pessimista, mas lembremos que a negatividade é nosso direito evolucionário inato.5 Avaliações ne­gativas são essenciais à sobrevivência (a folha amarga é também venenosa), e a maior verdade disso é o caso das emoções negativas. As emoções são como um sistema de rastreamento das experiên­cias, e fornecem um rápido sinal mental de aprovação ou desapro­vação para aceitar ou recusar uma determinada situação.

É fácil ver que um breve desentendimento com seu parceiro permanece mais na lembrança do que um doce beijo de despedida de manhã, mas e os estados desagradáveis, como a frustração e a decepção? São sentidos com maior intensidade do que seus pri­mos felizes - o entusiasmo e a satisfação? Veja isso como uma porta aberta para refletir sobre as emoções negativas. Pare um [89] momento e escreva todas as palavras que significam emoções ne­gativas que lhe vierem à mente. Depois, escreva todas as que sig­nificam emoções positivas. Provavelmente, sua primeira lista é mais longa que a segunda. Isso pode ser porque as palavras nega­tivas têm um significado mais específico do que as positivas (tente definir amor e raiva ou feliz e medo).6 Pesquisadores interessados em saber como as pessoas se lembram dos eventos emocionais monitoraram estados de espírito de adultos no dia a dia, e depois pediram que se lembrassem da frequência e intensidade de suas emoções durante as duas semanas do estudo.7

Como se pode ima­ginar, as pessoas tiveram mais propensão a se lembrar dos eventos intensos, tanto positivos como negativos. Mas é interessante notar que subestimaram a frequência das emoções positivas, e não tive­ram dificuldade em recordar os eventos negativos. Temos muito mais técnicas para reduzir, eliminar e tolerar emoções negativas do que para destacar as positivas.

Pense na última vez em que você precisou falar com um serviço de atendimento ao cliente. Talvez estivesse querendo marcar uma consulta médica e havia poucos horários disponíveis, ou tentando conseguir isenção de juros de um pagamento atrasado do cartão de crédito. Ou talvez estivesse convencendo uma atendente da companhia aérea a dar um jeitinho de lhe conseguir um lugar me­lhor no avião. Você se lembra de como se expressou? Falou num tom simpático e educado? Ou levantou a voz e falou com agressi­vidade? Supomos que você seja uma pessoa bem-educada e tenha escolhido a forma gentil. Difícil de engolir - pelo menos para a maioria de nós - é que frequentemente os arrogantes e grosseirões conseguem o que querem.

Personalidades irritadiças, embora desagradáveis, podem ser tremendamente eficientes. A agilidade psicológica que defendemos [90] aqui pode expandir seu repertório para lhe dar acesso a abor­dagens mais duras, mais diretas, e às vezes mais eficazes. Você provavelmente evita essa estratégia porque acha que ser negativo é... negativo. Pode pensar que as pessoas agressivas, hostis ou francamente ruins são idiotas, e não quer fazer parte dessa turma. A boa notícia é que há toda uma gama de negatividade - negatividade benéfica, veja bem - que nada tem a ver com idiotice.

Emoções negativas também podem ajudar a se concentrar na situação em curso. Quando você pega a furadeira para fazer um furo na parede, deve prestar atenção no local do furo e também na posição da sua mão. A ansiedade associada ao risco de erro ajuda a fazer o furo no lugar exato. (Cortar um bolo de aniversário com uma faca de plástico é uma experiência muito diferente, em que um método “também serve” de fato também serve.) Uma pesquisa de Kate Harkness, da Universidade de Queens, mostra que pessoas com propensão a estados depressivos também tendem a prestar mais atenção em detalhes.8 Isso é verdade, particularmente em se tratando de expressões faciais. Indivíduos alegres e expansivos veem os traços em geral - um nariz, dois olhos, e talvez as sobran­celhas estejam franzidas. No estudo de Harkness, os menos exu­berantes tinham olhos de águia para expressões faciais, captando o menor tremor dos lábios, o mais leve movimento dos olhos. É por isso que - como você provavelmente já terá notado -, quan­do está brigando com a pessoa amada (um evento negativo), você “lê” as mínimas mudanças na atitude dela, coisas que jamais no­taria quando tudo está bem. A questão é: se as pessoas felizes pas­sam por cima das minúcias, e se isso conduz a interações mais confortáveis, não devemos nos satisfazer com “está bom assim”? Não. Você prefere contratar um advogado alegre e bonachão, em vez de um ranzinza, que identifica as menores falhas num contra­to? Nós também não.[91]

O clima das salas de controle de tráfego aéreo tende a ser ne­gativo. Isso se deve, em parte, ao fato de os controladores terem plena consciência de sua responsabilidade pela segurança, e qual­ quer erro pode ser fatal. Na extremidade menos grave do espetro, os erros podem causar atrasos e complicações logísticas, e no ou­tro extremo o custo pode chegar a dezenas de milhões de dólares e à morte de centenas de pessoas. O trabalho exige muita atenção aos detalhes. Os pontinhos bipando na tela do radar são aeronaves, cada uma com sua identificação, altitude, velocidade e plano de voo. Emoções negativas, como ansiedade e suspeição, podem agir como um funil estreitando os olhos da mente para detalhes im­portantes. No controle de tráfego aéreo, não há lugar para “tam­bém serve”. Em consonância com o que vimos aqui, enquanto tudo funciona bem ninguém nota. As pessoas só voltam sua aten­ção para o controle aéreo quando há um desastre.

Greg Petto, controlador de tráfego aéreo em Louisville, Ken­tucky, nos contou que sua torre é responsável por 230 quilômetros quadrados de tráfego aéreo entre o chão e uma altitude de três mil metros. É um trabalho estressante, em que aviões que vão chegan­do a uma distância de cinco quilômetros um do outro ficam peri­gosamente próximos. Petto compara o radar a um dojo, nome dado a salas de treinamento de artes marciais japonesas. Os controla­dores orientam setecentos voos por dia, e o maior movimento é durante a noite, quando os jatos do correio expresso, FedEx, che­gam em grande número. Perguntamos a ele se, sabendo que os aviões da FedEx estavam transportando carga, e não passageiros, a tensão na sala de controle era menor que durante o dia.

- Para ser franco - ele respondeu -, preciso pensar que cada ponto na tela é um avião. Se eu parasse para pensar o que está se passando lá no céu, ficaria maluco. E acrescentou: - Mas é muito [92] bom alinhar todos os aviões na distância exata e no tempo exato. É muito bom mesmo. - Apesar de se orgulhar do trabalho, Petto é o primeiro a admitir que há alguma negatividade entre os pró­prios controladores. - Eles ficam malcriados ou competitivos quando a coisa aperta. A gente lida com isso implicando uns com os outros, ou indo para casa rezar, ou beber, dependendo da ten­dência cultural.

Aqui é importante fazer uma pausa para frisar que muitas pessoas cometem um erro enorme, muito comum, quando se trata de emoções negativas.

Elas separam a experiência de sentimentos negativos da expressão de sentimentos negativos. Muitas pessoas com quem conversamos aceitam rapidamente que estar mal é uma experiência psicológica válida, e até mesmo inevitável. Por outro lado, expressar frustração, ou muita tristeza, é um horror! É como se tivéssemos que ser computadores, cujos processos in­ternos estivessem escondidos e separados do que aparece na tela. Essa atitude existe em vários graus em nossa cultura; faz parte da ideia de que é mais fácil viver numa sociedade de pessoas sorri­dentes do que coexistir com gente que esbraveja e chora. Não se pode ignorar que a expressão emocional tem razões para existir. A expressão emocional é um meio importante de se comunicar com os outros. Um cenho franzido, um olhar carrancudo, avisa aos outros que se afastem porque não estamos de bom humor (e às vezes não estamos mesmo de bom humor). Um grito de medo tem tamanho efeito contagiante que quem está por perto também sente o aumento da adrenalina e olha nervosamente em torno. A expressão de sentimentos, inclusive negativos, é uma parte ne­cessária da experiência emocional humana. [93]

Se as emoções negativas são tão proveitosas, por que não gostamos delas? 

Pare um momento para pensar: quanto você pagaria para não pre­cisar repetir uma palestra em que as pessoas não riam, não sorriam e não paravam de se remexer na cadeira? Pense numa ocasião em que você infernizou uma pessoa inocente por causa de sua própria insegurança: quanto você pagaria para não repetir essa atitude vergonhosa? Do outro lado da moeda: quanto pagaria para reviver a emoção do primeiro encontro com seu/sua atual marido/esposa/parceiro/parceira/amante? Pense na melhor massagem que você teve na vida: quanto você pagaria para ter uma igualmente relaxante neste momento?

O dr. Hi Po Bobo Lau, da Universidade de Hong Kong, e sua equipe colocaram essas mesmas questões numa pesquisa.10 Imagi­ne-se no invejável cenário dos participantes dessa pesquisa. Você recebe duzentos dólares para alterar sua experiência psicológica de modo que sua vida se aproxime do ideal. Pense numa situação específica em que você se sentiu muito feliz. Quantos desses du­zentos dólares você pagaria para recriar esse sentimento? Se você já decidiu quantos dólares exatamente, vamos passar para outra emoção positiva. Calma e tranqüilidade? Animação? Muito bem. Agora vamos a emoções negativas. Pense numa situação que lhe causou muito remorso. Quantos dos duzentos dólares você paga­ria para evitar ter esse sentimento novamente? E medo? Vergonha? Estamos dizendo que determine a quantia exata para cada um dos sentimentos. E agora você já pode imaginar que, para os partici­pantes da pesquisa, evitar o sofrimento valia mais do que comprar felicidade. Vejamos a cotação dos participantes da pesquisa do dr. Lau, detalhada até os centavos de dólar: [94]

  • $44,30 por calma e tranqüilidade;
  • $62,80 por animação;
  • $79,06 por felicidade;
  • $83,27 para evitar o medo;
  • $92,80 para evitar a tristeza;
  • $99,81 para evitar a vergonha;
  • $106,26 para evitar o remorso.

Apenas um sentimento foi considerado mais valioso do que evitar o remorso: o amor. Felicidade, animação, tranqüilidade, é muito bom, mas, como criaturas sociais, queremos que alguém aceite, valorize e cuide do nosso ser interior. O amor foi cotado a 113,55 dólares. Se você, leitor, não for de Hong Kong, pode duvi­dar dessas cotações. Portanto, vamos mostrar que essas mesmas questões, colocadas para adultos do Reino Unido, obtiveram os mesmos valores de compra, em dólares: vale a pena comprar tran­qüilidade por $53,47 e animação por $60,90, mas não se compara à vontade de fugir da vergonha, cotada em $71,83, e do remorso, valendo $64,40. E nada tem mais valor que o amor, cotado em $115,16.

Esses valores em dólar dão uma ideia da motivação dos seres humanos para alterar seu mundo interno e externo. Da maior im­portância é o desejo de ser aceito. Isso é um problema porque não temos o menor controle sobre o que as pessoas vão dizer de nós. Só podemos controlar o que pensamos e como agimos. A falta de controle, o sentimento de incerteza, pode ser o estado psicológico mais desconfortável. Logo atrás vêm os medos do remorso e da vergonha. Portanto, os estados psicológicos mais valorizados es­tão centrados em como somos vistos pelos outros. Infelizmente, as [95] inquietações frequentemente dificultam a aprovação imediata. Mas essa é apenas uma das razões para nossa antipatia pelas emo­ções negativas.

Evitamos as emoções negativas não porque somos tolos a pon­to de ignorar que não devemos, mas por quatro motivos básicos, e muito intuitivos:

  1. São desagradáveis.
  2. Representam estagnação.
  3. São associadas à perda de controle pessoal.
  4. São associadas (corretamente!) a um alto custo social.

Vamos examinar melhor esses motivos fundamentais. Em pri­meiro lugar, evitamos nos sentir mal porque se sentir mal é mau. Ou seja, as emoções negativas são desagradáveis. A ideia de pas­sar uma tarde inteira com tédio, ou estresse, ou frustração, é tão sedutora quanto passar o dia inteiro fazendo depilação com cera quente. Contudo, as pessoas se enganam, não em seu desejo de evitar o desagradável, mas em subestimar sua capacidade de tole­rar a chatice das emoções negativas. Como vimos no exemplo das mulheres à espera de saber se estavam grávidas, as emoções nega­tivas são um pouco menos chatas do que a gente espera. Você já teve raiva e medo, e - assim esperamos - não está sentindo nada disso neste momento. Isso já passou, e você não está pior porque teve esses sentimentos. Você é mais capaz de lidar com emoções desagradáveis do que imagina.

Pense na última vez em que teve tédio, por exemplo. Peter Toohey, da Universidade de Calgary, afirma que o tédio é uma ferra­menta muito útil, que tem a função de nos fazer saber quando as interações sociais ou a rotina estão nos dando desejos que não [96] estamos satisfazendo. Talvez pouco haja a fazer para espantar o té­dio quando você está ouvindo um discurso infindável ou numa longa viagem de avião, mas muitas vezes é possível escapar de si­tuações entediantes. O tédio pode ser um indicador importante de que você está fazendo más escolhas ou entrando em situações com uma atitude restritiva (talvez com mentalidade estreita ou abertamente crítica). O mais interessante é que, mesmo odiando o tédio, você lida muito bem com esse sentimento a cada vez, e ele logo passa. Quando você pensa no tédio, naturalmente se concentra em quanto é desconfortável. Você não atenta para o fato de que lidou efetivamente com o tédio centenas (ou milhares) de vezes na vida.

Um segundo motivo comum para as pessoas desejarem se afastar das emoções negativas é a crença em que elas são como areia movediça - puxam a gente para baixo, sem esperança de escapar. É muito comum a noção de que a depressão, por exem­plo, é um estado difícil de mudar, e, quanto mais crônica for a emoção negativa, maior é o risco de que se torne permanente. Ve­jamos a Prova A, com pessoas que lutam há anos contra a depres­são. De fato, algumas evidências dão suporte à crença popular. Cerca de 60% de adultos que têm um episódio clinicamente sig­nificativo de depressão grave têm um segundo; as que têm um segundo episódio têm cerca de 70% de chance de ter um terceiro, o que dispara para 90% de chance de ter um quarto episódio.1 Sim, essas estatísticas são alarmantes, principalmente se você esquecer a matemática. Se 100 pessoas têm um episódio de depres­são e 60 delas têm um segundo episódio, 42 têm um terceiro, e 38 têm um quarto episódio. Para essas 38 pessoas, é um problema grave, sem dúvida. Mas a grande maioria de pessoas que lutam contra a depressão não está confinada a uma prisão emocional da [97] qual não há escapatória. A maioria estará livre depois de uns pou­cos - notoriamente desagradáveis - episódios. O mesmo se aplica a outros estados. Apesar da tendência a acreditar que a raiva irá acionar algum mecanismo interno que nos transformará em ban­didos violentos, ou que o pânico nos deixará escondidos debaixo da mesa pelo resto da vida, basta você dar uma olhada em sua experiência pessoal para saber que isso não é verdade.

Um terceiro motivo pelo qual evitamos sentimentos negativos é o temor de que, tal como um tsunami psicológico, eles desabem sobre nós e nos arrastem para um destino desconhecido e indesejado de pensamentos. Portanto, o temor das pessoas, ainda que não o articulem, é de que um determinado estado as leve a perder o controle e fazer coisas que de outro modo não fariam. O caso mais óbvio é a raiva. Certamente, há um elemento de verdade nisso, o que leva o sistema judiciário a considerar que um assassi­nato cometido “no calor do momento” é menos grave do que um assassinato planejado. É como se a comunidade jurídica tivesse se reunido e concordado: “Sim, a pessoa com a cabeça quente tem uma tendência a se descontrolar um pouco.” Mas quantas pessoas você conhece que já cometeram um assassinato, de um modo ou de outro? É extremamente incomum, e por isso vira notícia.

É muito improvável que a raiva faça de você um criminoso, mas pode afetá-lo de outras maneiras, às vezes surpreendentes. Alguns pesquisadores interessados no termo “cabeça quente” in­vestigaram se haveria alguma associação entre cabeça e calor na mente das pessoas.12 Num estudo, apresentaram a alguns partici­pantes (mas não a todos) palavras relativas à raiva, como desde­nhoso, hostil e irritado, dizendo que essas palavras eram parte de uma experiência de memória. Em outra tarefa, disseram aos par­ticipantes que opinassem se a média de temperatura de trinta [98] cidades que eles não conheciam era fria ou quente. Os pesquisadores constataram que os participantes que lembraram mais as palavras ligadas à raiva opinaram muito mais que as cidades eram quentes.

O quarto motivo pelo qual evitamos emoções negativas é o me­do das conseqüências sociais de expressá-las. Você tem uma noção intuitiva de que, se ficar no local de trabalho se lastimando ou tendo súbitos ataques de raiva, as pessoas vão se esconder em seus cubículos até que você fique longe delas. Mais uma vez, há um grão de verdade nessa crença, mas seu medo é muito exagerado. Nossos estados negativos têm poder sobre os outros.

Num estudo clássico, o pesquisador Thomas Joiner investigou se o ânimo de colegas de quarto era contagioso. Ele constatou que, se um deles estivesse deprimido logo que se instalaram, havia uma alta proba­bilidade de que o outro desenvolvesse depressão nas três semanas subsequentes. Isso é verdade, apesar de Jointer ter feito o controle pelas taxas básicas da depressão e a presença ou ausência de even­tos de vida negativos. A depressão não somente é contagiosa, mas, contradizendo o folclore recente, é mais provável que o colega de quarto deprimido afete o outro negativamente do que o colega mais feliz modifique o ânimo depressivo do primeiro. É mais um exemplo de que o mal é mais forte que o bem.

Você agora deve estar surpreso com o fato de que nós, os auto­res, esmiuçamos os quatro principais motivos pelos quais as pes­soas evitam emoções negativas e não os invalidamos, um a um. Não podemos. Todos eles têm pelo menos alguma validade. A questão importante é: para que servem as emoções negativas? Constituem uma parte importante da nossa arquitetura emocional. Embora confusas, desagradáveis e às vezes problemáticas, não deixam de ser úteis. As emoções - todas as emoções - são informações. Estar bem ou estar mal nos mostra a qualidade de nossos progressos, [99] interações, ambiente e ações. Numa comparação sumária, as emo­ções são como um aparelho de GPS no painel do carro, trans­mitindo informações metafóricas sobre sua posição, o terreno à frente e atrás, o ritmo de progresso. Quem tenta desesperadamente evitar, esconder e fugir de estados negativos perde todas essas valiosas informações. Para esclarecer ainda mais:

  • Você quer sentir o arrepio de medo em situações de perigo físico.
  • Você quer sentir o calor da raiva quando precisa defender seus filhos.
  • Você quer sentir frustração quando não progride nas aulas de violão.
  • Você quer se arrepender de ter dito aos seus filhos que eles não são bonitos, nem inteligentes, nem boas pessoas.

Em cada uma dessas situações, as emoções são sinal de que algo não vai bem e exige sua atenção imediata. Se a raiva e outros sentimentos maus forem tamponados instantaneamente, deixa­rão de sinalizar o que os despertou e o curso de ação a ser tomado. É difícil enfatizar toda a importância disso. Você deve estar pen­sando: Há milhares de motivos para evitar os sentimentos negativos, mas deixe-me entender hem: só há um único motivo para serem bons? Ainda que seja um único motivo, é um motivo excelente. Imagine viver num mundo em que ninguém sentisse culpa. Em que nin­guém se revoltasse contra a injustiça. Em que ninguém sentisse frustração por não atingir um objetivo. Em que você não conseguis­se sentir medo na presença de um incêndio em casa, um assaltante ou uma seringa de injeção usada boiando ao seu lado num banho de mar. Na ausência desses sentimentos negativos, estaríamos [100] vivendo num mundo desprovido de humanos em pleno funcionamento.

Um passeio por três emoções temidas

Raiva

Matthew Jacobs é um carpinteiro autônomo de 50 e poucos anos. Mora num apartamento coletivo em San Francisco, Califórnia. É conhecido pela boa qualidade de seu trabalho, joga futebol e lê obras de não ficção nas horas livres. Quando jovem, serviu por algum tempo como oficial da polícia militar na Guerra do Vietnã. Ele diz ter sido um jovem de cabeça quente, mas há muito tempo se acalmou e almeja levar uma vida sem encrencas.

Em maio de 2013, já tarde da noite, uma camelô vietnamita estava vendendo a Jacobs uma tigela depho numa rua do centro da cidade, quando um homem grandalhão se aproximou, gritan­do com ela. O homem, totalmente desconhecido, chegou exigindo que a mulher lhe desse uma moeda, ela disse que não tinha, e ele começou a berrar xingamentos com palavras ofensivas à raça de­la. Duas colegiais estavam presentes, dando mostras de nervosis­mo, obviamente temerosas de chamar a atenção do homem.

À medida que os insultos do homem ficavam mais acalorados, Jacobs viu que ninguém por perto iria se adiantar para defender a mulher e as adolescentes. Recorrendo a um preceito pessoal - sempre oferecer duas interações gentis antes de passar a um tom mais agressivo -, ele disse calmamente ao homem: “Com licença. Poderia falar mais baixo, por favor?” O homem se voltou para Jacobs e começou a berrar com ele também. “Eu agradeceria se [101] você se retirasse”, disse Jacobs. “Estamos tentando comer em paz; ninguém aqui quer confusão.” Jacobs tinha usado a sua segunda e última cota de boa vontade. Infelizmente, não obteve o efeito calmante que desejava, e o homem chegou mais perto de Jacobs, gritando obscenidades.

Jacobs largou cuidadosamente sua tigela de macarrão e elevou a voz, num tom de ameaça: “Na minha terra, isso quer dizer que você está procurando briga. Muito bem, estou aqui. Vamos lá!” O homem recuou, surpreso, murmurou uns xingamentos para manter a pose e foi embora. Jacobs respirou fundo para recuperar a calma, grato pela altercação não ter chegado à agressão física, e a vendedora e as adolescentes não terem sido feridas. Ele olhou para elas, esperando um gesto de simpatia ou uma palavra de agradecimento. Não houve. Em vez disso, notou que elas pare­ciam ter tanto medo dele quanto do grosseirão.

Essa é uma história verdadeira, não uma narrativa dramati­zada que termina em briga, ou numa donzela em perigo recom­pensando o salvador com imorredoura gratidão. É um exemplo de como os sentimentos negativos se apresentam na vida real. As emoções negativas, como a raiva no caso de Jacobs, geralmente afloram em resultado de circunstâncias externas (em oposição a “surgir do nada”). Podem ser tremendamente úteis, apesar de terem um preço (como assustar as pessoas presentes). Como vimos aqui, a raiva altera drasticamente o comportamento das outras pessoas, muitas vezes levando-as a recuar ou a transigir rápido. Por essa mesma razão, a raiva e outros sentimentos negativos são às vezes mais oportunos que a positividade.

A raiva em si não é boa nem má; o que importa é o que você faz com ela. Pesquisas sugerem que apenas 10% de acessos de raiva levam a alguma forma de violência, mostrando que raiva não é [102] exatamente igual à agressão. Em geral, a raiva surge quando acre­ditamos que fomos tratados injustamente, ou que algo está blo­queando nossa capacidade de alcançar objetivos significativos. Em nossos dados, registramos 3.679 dias em que as pessoas rela­taram ter tido raiva no dia a dia.13 Descobrimos que em 63,3% desses episódios a culpa foi atribuída a outra pessoa (em oposição a, digamos, se irritar com o teclado do computador). Tipicamen­te, a raiva é causada por algo que outra pessoa fez, ou que não fez, ou que poderia ter feito.

A dificuldade de transitar num mundo complexo, hipotético, e muitas vezes imprevisível, de trocas sociais que podem incluir a raiva, é precisamente a razão pela qual os humanos adultos pos­suem o cérebro tão pesado (47 vezes mais pesado que o cérebro de um gato e 19,5 vezes mais pesado que o cérebro de um cão beagle). Todos nós já fomos ofendidos ou magoados por outra pessoa. Ape­sar da sua vibração gentil e compassiva, você também já foi im­portunado, provocado, hostilizado, traído, enganado e tratado com grosseria. A positividade não dá conta de nos ajudar a transitar pelas relações e interações sociais. A raiva é uma ferramenta que nos ajuda a apreender e responder a situações sociais complicadas. Quanto aos benefícios, pesquisas indicam, com uma frequência esmagadora, que sentir raiva aumenta o otimismo, a criatividade e o desempenho efetivo, enquanto expressar raiva leva a negocia­ções mais bem-sucedidas e a um caminho mais rápido para mobilizar as pessoas como agentes de mudança. Vejamos cada caso separadamente.

Primeiro, o sentimento de raiva é associado a uma atitude mais otimista. Num estudo, os participantes foram orientados a virar quantas cartas quisessem até um total de 32 cartas, cada uma com [103] um valor de pontos específico.14 Misturadas nas 32, porém, havia três “cartas de bancarrota”, que custariam centenas de pontos ao participante que virasse uma delas (muito mais do que os poucos pontos ganhos com outras cartas). Numa versão, os participan­tes podiam decidir antecipadamente quantas cartas iriam virar, desde 1 a 32. Esperava-se que ninguém iria querer virar as 32, sa­bendo que três delas os levariam à bancarrota, e sairiam do jogo. Quantas iriam virar? As pessoas previamente induzidas a sentir uma ligeira raiva arriscaram mais. A raiva as deixou mais propen­sas a explorar os limites da possibilidade.

Esse achado foi sustentado por uma equipe de pesquisa inte­ressada em investigar como as pessoas avaliam riscos.15 Nesse estudo, fizeram aos participantes perguntas relativas ao - entre outras temas - risco de se divorciar, contrair uma doença venérea, e um tratamento experimental de uma doença grave que iria sal­var muitas vidas se desse certo, mas iria matar muitas mais se não desse. Os participantes que os pesquisadores incitaram a ter raiva apresentaram maior tendência a achar que tinham controle sobre os resultados, acreditavam que um resultado positivo era alta­mente provável e que valia a pena correr riscos. Pode ser que a rai­va - uma alta elevação emocional que nos prepara para lidar com ameaças - ajude a predispor as pessoas à ação. Talvez por isso seja tão comum ver atletas com raiva para entrar no clima psicológico.

Em segundo lugar, a raiva pode acender a fagulha da criativi­dade. Vale a pena repetir, porque pode soar louco demais para crer: sim, a raiva pode nos ajudar a ser criativos. Na psicologia, o estudo da criatividade pode ser muito divertido. Vejamos o exem­plo clássico: quantas utilidades você acha que um tijolo pode ter? Não tenha pressa. Pare um momento e faça uma lista de todas as [104] utilidades que puder imaginar. O mais provável é que as mais óbvias lhe venham primeiro à mente. Você pode pensar facilmen­te numa parede. Depois você fica mais esperto e pensa em utilida­des que tenham a ver com o peso, forma e durabilidade do tijolo. Talvez sua lista inclua um batente de porta, peso de papel, um banquinho ou um projétil. Muito bem. Mas podemos tentar pen­sar em outras aplicações? Que tal colocar um tijolo na mochila para melhorar sua postura? E usar para apoiar uma panela quen­te, ou junto ao pneu do carro como calço numa ladeira? Você pode até usar, para fazer graça, como moldura de um celular da primei­ra geração e falar com ele na orelha.

Os psicólogos usam o teste de utilidades do tijolo para medir a criatividade. O teste pode servir para avaliar a fluência (quantas idéias foram criadas?), a originalidade (quantas idéias constam em quantas outras listas?) e a flexibilidade (quantas categorias de uso você pode propor?). Num estudo, os pesquisadores deram às pessoas feedbacks irritados (negativos) ou neutros numa ativida­de prévia, e depois aplicaram o teste do tijolo.16 Algumas pessoas manifestaram grande necessidade de entender bem as regras e queriam saber o que se esperava delas em determinada situação. Entre estas, as que tinham tido feedbacks negativos tiveram me­lhor desempenho. Melhor desempenho significa aqui que obtive­ram melhores resultados do que as pessoas com características similares que tinham recebido feedback neutro. A mensagem é que, em alguns casos, a raiva induz a maior criatividade. Por ou­tro lado, em pessoas rebeldes, menos equilibradas, a criatividade é embotada pela raiva. Isso mostra que o contexto é importante quando se trata de raiva, e que o preconceito generalizado contra ela é um equívoco. [105]

Por fim, a raiva é seletivamente útil enquanto ferramenta de melhora do desempenho. Ninguém quer viver sob o jugo de um tirano, mas um pequeno acesso de irritação pode fazer alguém sair correndo para trabalhar. Alguns pais sabem que é uma estratégia que funciona com os filhos, e muitos patrões sabem disso muito bem. Num estudo com gerentes de construção no Reino Unido, os pesquisadores descobriram que alguns acessos de raiva eram de­ploráveis e outros funcionavam como um remédio perfeito.17 Um gerente de construção comentou:

Não faz muito tempo, tive um ataque de raiva numa reunião com o engenheiro estrutural porque eles estavam querendo virar o acerto contratual sem qualquer justificativa, e aquilo já vinha acontecendo havia algum tempo... Acho que [a reu­nião] terminou com o surto emocional. Em retrospecto, me arrependo? Provavelmente não, na verdade, porque resolveu a questão...

O que diferenciou as querelas lamentáveis das eficazes não foi o tamanho da raiva envolvida. Foi uma questão de contexto. Con­tudo, mesmo os gerentes que aprovavam uma palavra mais forte de vez em quando reconheceram que não era - e não podia ser - uma atitude permanente na interação com os outros. Um deles resumiu brilhantemente:

Funcionou, eu consegui a reação que esperava, todo mundo voltou ao trabalho, e o que estava pendente foi resolvido na mesma hora, de modo que tudo deu muito certo. Acho que se acontecesse com muita frequência, se ficasse sempre usando uma linguagem grosseira com as pessoas, chegaria ao ponto [106] de não surtir mais efeito. Se você usar de vez em quando, acho que funciona.

Outro contexto em que a raiva funciona bem é nas negocia­ções. Quando duas ou mais pessoas estão tentando chegar a uma resolução, a raiva é uma espécie de alavanca. Numa série de estu­dos, os participantes tiveram a tarefa de negociar o maior preço possível por um lote de telefones celulares (e a recompensa na vida real estava diretamente ligada ao desempenho deles).18 Após um valor inicial ser pedido pelo vendedor, o comprador apresen­tou uma série de contrapropostas. Para atingir os objetivos do ex­perimento, alguns participantes foram escalados para ter um comprador irritadiço, e outros foram contemplados com compra­dores alegres ou neutros. Viu-se que, diante da raiva, as pessoas têm muito menos propensão a fazer exigências. Na terceira roda­da de negociação, quem tentava vender os celulares a um compra­ dor com raiva acabava cedendo e dando 20% de desconto, e, na sexta rodada de negociação, já davam mais de 33% de seus ganhos potenciais. Os pesquisadores sugeriram que pessoas com raiva eram vistas como poderosas e de alto status na situação. Portanto, vemos que a raiva em certas competições faz pender o resultado a seu favor. A felicidade não rende os mesmos dividendos.

Por outro lado, não basta adotar uma postura zangada na es­perança de obter uma transação favorável. Esses mesmos pesqui­sadores advertem - e a ciência está a favor deles - contra a raiva fingida. Num estudo, os pesquisadores constataram que, quan­do um ator experiente fingia uma raiva superficial em oposição a uma raiva intensa, era inconvincente.19 Em negociações, as pes­soas fazem exigências maiores de quem finge raiva, em parte por­ que estes parecem menos confiáveis. [107]

Tomemos, do mundo real, o exemplo de Barack Obama. Sejam quais forem suas cores políticas, você tem que admitir que Obama é mais afável que a maioria dos presidentes dos Estados Unidos jamais foi. Ele tem a fala suave, a voz profunda e bem modulada. Quando houve o vazamento do petroleiro britânico no golfo do México, em 2010, Obama foi criticado por sua reação fria. Mais tarde ele expressou raiva na televisão, mas essa resposta mais emo­cional teve o efeito oposto ao desejado: as pessoas perceberam que o presidente não estava sendo sincero.

Por fim, a raiva tem o poder de despertar uma ação coletiva diante de ameaças inadequadas, injustas. Em toda autobiografia, encontramos a mesma história: o impulso inicial de lutar contra a injustiça foi motivado pela raiva, como a faísca da ignição que põe o motor do carro em funcionamento. Martin Luther King Jr. dis­se: “A tarefa suprema é organizar e unir o povo para que sua raiva seja uma força transformadora.” Foi a raiva que transformou W. E. B. Du Bois de acadêmico - brilhante, mas ineficaz num mundo de exploração e racismo desenfreados - num poderoso ativista em defesa dos direitos civis:

Justamente na época em que minhas pesquisas tinham maior sucesso, veio aquele corte nos meus planos de cientista, um clarão vermelho que não podia ser ignorado. Lembro-me de quando me atingiu como um raio...20 A notícia me despertou: Sam Hose fora linchado, e diziam que seus dedos estavam ex­postos num açougue... Passei a me afastar do trabalho... Não é possível continuar a ser um cientista calmo, frio e distancia­ do enquanto negros eram linchados, assassinados e mortos de fome. [108]

Pouco adiante, em sua autobiografia, Du Bois narra como a raiva o incitou à ação e ele fundou o Niagara Movement, que mais tarde veio a ser a NAACP.

Ao recordar suas atividades em defesa dos opositores à Pri­meira Guerra Mundial, Bertrand Russell relata que ficou “cheio de desesperada ternura pelos jovens que iriam ser massacrados, e de raiva contra os estadistas da Europa”. Da mesma forma, He­len Caldicott deu os primeiros passos como ativista quando ficou “indignada”. Sua indignação inspirou uma geração de movimen­tos sociais.

Quando a raiva aflora, somos levados a prevenir ou eliminar ameaças iminentes ao nosso bem-estar, ou ao bem-estar das pes­soas que nos são caras. Muitas vezes, o altruísmo nasce da raiva. Quando se trata de mobilizar pessoas e conseguir apoio para uma causa, não existe emoção mais forte. É um erro supor que bonda­de, compaixão, amor e equidade estão de um lado do continuum, e raiva, fúria e aversão estão do outro lado. A raiva é um elemento poderoso, difamado pela noção errônea de que uma sociedade saudável é isenta de raiva.

O grande preconceito contra a raiva é amplamente injustifica­do.21 Decerto, é uma emoção forte e altamente inflamável. A cau­tela com a raiva é aconselhável, assim como o conhecimento de que não deve ser usada em demasia ou indiscriminadamente. Seu melhor uso é acompanhado de uma atitude de respeito pelo ponto de vista da pessoa ou das pessoas que violam seu bem-estar. Quem se dispõe a arcar com as conseqüências tem mais facilidade para utilizar uma expressão eficaz da raiva. Tomando certas precau­ções, a raiva - a raiva autêntica - é totalmente apropriada para certas pessoas em certas situações. [109]

O jeito certo de ficar com raiva

Quando você quiser expressar raiva, ou outra emoção negativa, um modo conveniente é começar com o que chamamos de aviso de desconforto. Deixe o outro saber explicitamente que você está ten­do emoções intensas e, por causa disso, é mais difícil se comuni­car com clareza. Desculpe-se por antecipação, não por suas emoções ou ações, mas pela falta de clareza na forma de comuni­cação do que você vai dizer. Comece com uma declaração do tipo: “Quero que você saiba que estou me sentindo muito desconfortá­vel, o que significa que não é o melhor momento para me expressar. Mas dadas as circunstâncias, é importante, para mim, dizer...” O objetivo do aviso de desconforto é desarmar o outro, evitando que fique na defensiva. Quando alguém ouve que você está se sen­tindo desconfortável e a conversa é difícil para você, é mais prová­vel que receba com empatia o que você tem a dizer. Depois dessa introdução, você pode se aprofundar no motivo do aborrecimen­to, no que pensa e sente por causa do que aconteceu (por que a raiva irrompeu, em vez de outros sentimentos).

Você pode usar a tática do aviso de desconforto mesmo quan­do estiver se sentindo perfeitamente confortável ao expressar a raiva ou outros sentimentos negativos, desde que sejam autênti­cos. Lembre-se: o objetivo é provocar uma mudança no que o ou­tro está fazendo ou sentindo, diminuir a progressão da situação de modo a torná-la mais favorável à sua mensagem. Se for ade­quadamente controlada, a raiva nos oferece um modo de ser proativo na alteração ou remoção de ameaças e obstáculos. Portanto, não tenha medo de usar pequenas mostras físicas de raiva, o que chamamos de “microagressão”, para expressar o nível da emoção que está sentindo. Ponha as mãos abertas com força em cima da mesa. Aperte os punhos. Ok, você entendeu. [110]

Se ainda não se convenceu da importância de expressar a rai­va abertamente para repelir uma ameaça, considere o seguinte: O dr. Ernest Harburg e sua equipe de pesquisa da School of Public Health da Universidade de Michigan passaram várias décadas fazendo acompanhamento de alguns adultos num estudo longitu­dinal sobre a raiva.22 Constataram que homens e mulheres que es­condiam a raiva diante de uma agressão injusta apresentavam maior tendência a ter bronquite e infarto, e a morrer mais cedo do que os que liberavam a raiva quando se deparavam com pessoas ofensivas e irritantes.

A dificuldade óbvia está em saber como pôr a raiva em funcio­namento, principalmente em relacionamentos. Primeiro, quere­mos desencorajá-lo a se policiar no sentido de controlar ou evitar a raiva, dizendo a si mesmo, por exemplo: “Preciso me livrar des­sa raiva”, ou “Tenho que guardar a raiva para mim mesmo”, ou “Por que não posso ter menos raiva?”. Em vez disso, reconheça a diferença entre eventos que você pode mudar e os que estão além da sua capacidade de controlar. Se está viajando e perde o casaco no primeiro dia, não há nada a fazer, e portanto não há benefício em expressar a raiva. Mas, se está numa loja pechinchando o pre­ço de um casaco e se zanga porque a balconista está tentando lhe vender por um preço mais alto do que o freguês anterior pagou, é uma situação em que você tem algum controle. Nesse caso, co­mo pode comunicar o aborrecimento ou a raiva de modo a obter um resultado favorável? O psicólogo e autor de Anger Disorders, dr. Howard Kassinove, diz que a chave é usar “um tom apropriado, sem aviltar a outra pessoa”.23

Segundo, desacelere a situação. Nossa tendência é mergulhar de cabeça na situação e agir no mesmo instante, especialmente [111] quando o sangue está fervendo. Em vez disso, imagine a raiva variando entre depressa e devagar, como você querendo gritar ver­sus querendo motivar a pessoa de maneira calculada. Quando es­tiver zangado, permita-se fazer uma pausa, mesmo que tenha alguém esperando sua resposta. Pode até deixar que saibam que está diminuindo o ritmo da situação. Tome decisões boas, e não apressadas. Quando estiver zangado, respirar fundo, fazer pausas e momentos de reflexão exercem mais poder do que respostas rá­pidas. Se você ficar menos zangado depois disso, ótimo, mas não é o objetivo. Trata-se de ter mais opções numa situação emocio­nalmente carregada.

Pense como um jogador de xadrez. Antes de se decidir por um curso de ação, imagine como o outro irá reagir e como estará a situação dois movimentos adiante. Se lhe parecer boa, prossiga. Se lhe parecer má, pense num caminho alternativo, imagine qual será a reação do outro e avalie esse cenário. Mantenha uma avalia­ção constante, perguntando-se: “Minha raiva está ajudando ou piorando a situação?” Num diálogo, não há uma resposta “tama­nho único” para essa questão, pois as emoções, comportamentos e ações envolvidas estão sempre mudando. Em certo momento, quero contar uma história para afirmar meu domínio da discus­são, e minutos depois posso querer ignorar um comentário forte para aumentar o sentimento de conexão.

Quando a raiva chega ao extremo, parece que, se não partir­mos para o ataque, iremos sofrer sérias conseqüências. O psicólo­go John Riskind, especialista no tratamento de pessoas com emoções aparentemente incontroláveis, desenvolveu técnicas pa­ra desacelerar os eventos ameaçadores.24 Riskind constatou que a experiência de raiva não é tão problemática quanto a crença em [112] que a seqüência de eventos desencadeadores da raiva vai acelerando, o perigo vai aumentando, e a saída para a ação está se fe­chando rapidamente. Esse sentimento de perigo iminente leva as pessoas a fazer algo que dê um fim imediato à ameaça, mas, em longo prazo, irá piorar a situação (como dar um soco em quem furou a fila no caixa do supermercado).

O primeiro passo é avaliar consigo mesmo se a raiva está au­mentando, diminuindo ou estável em determinada situação. Para um autoexame escrupuloso, use um número ou algumas palavras que descrevam a intensidade da raiva, como se pode ver no exem­plo do velocímetro:25

Se a raiva estiver acima do limite de velocidade, será preciso mais tempo para conservar o máximo de flexibilidade e controle a fim de lidar com quem a provocou. Nesse caso, pense em redu­zir a velocidade. Em alta velocidade, a tendência é perder um pouco o controle; portanto, imagine-se freando para que o modo [113] como você está agindo e que o outro está agindo seja reduzido de 130 para 100, e de 100 para 80. Crie uma imagem visual de sua aparência no momento, e da aparência do outro. Repare que o ou­tro já não está tão perto fisicamente de você. Escute com atenção o que o outro está dizendo, e leia a mensagem corporal dele. Use a baixa velocidade para ver se o outro está aberto ou fechado ao diálogo, se está realmente disposto a atacar ou procurando um meio de sair da confusão.

O que acontece quando você imagina a situação desaceleran­do? Como observa Riskind sobre a raiva: “Você pode achar que há muito a fazer e pouco tempo para fazer tudo.” Esse exercício de concentração na velocidade em que as coisas estão acontecendo nos dá um pouco mais de espaço psicológico para respirar. Expe­rimente. O objetivo aqui é aprender a trabalhar a raiva, em vez de deixá-la sair do controle.

Culpa e vergonha

Na sociedade contemporânea, as pessoas pensam na culpa da mes­ma maneira que pensam na obesidade: um estado temível, inacei­tável do ponto de vista social e da saúde. Talvez por isso engordar seja tão frequentemente associado à culpa. Em nossa cultura, “cul­par” alguém é algo falado aos cochichos, terapeutas acenam com redução da culpa, gurus da autoajuda encorajam as pessoas a “se libertarem”, conselheiros do bem-viver escarnecem das palavras “você deve fazer/ser”. Em contraste, queremos remover o estigma da culpa. Não estamos dizendo que é sempre bom sentir culpa, mas em certas ocasiões a culpa traz vantagens. Por exemplo: quando você se sente culpado, fica mais motivado para melhorar, [114] enquanto seus colegas menos propensos à culpa não têm essa mo­tivação.

Doug Hensch, de 40 e poucos anos, ajuda organizações a de­senvolver líderes fortes, mas sua paixão na vida é treinar o time de futebol americano de seu filho de 9 anos. Sua melhor experiên­cia como treinador aconteceu quando estava trabalhando com um atleta musculoso, rápido, chamado Zander, que tinha vindo de Gana para os Estados Unidos. Era desagradável porque, em vez de aplicar suas qualidades no esporte, Zander ficava esguichando água ou enfiando o dedo lambido na orelha dos outros meninos. Cansado daquilo, Doug convocou uma reunião para falar com Zander e todo o time.

Doug não tinha o menor prazer em ter aquela conversa, e não tentou esconder isso na reunião. Começou com um aviso de des­conforto. (“Sou o treinador de vocês, sou pai, mas também já fui menino, e joguei futebol dos 9 aos 21 anos, assim como muitos de vocês jogarão. Por isso eu sei que uma reunião com um treinador frustrado é difícil. Entendam que é desconfortável para mim tam­bém.”) E prosseguiu: Vejam seus companheiros neste time. Pensem no esforço de cada um deles a cada semana, se machucando, se sujando, suando, ficando sem fôlego, e às vezes com ânsias de vômito. Agora, pensem bem: O que você faz aqui está ajudando ou preju­dicando o time?

Doug se calou por um minuto inteiro, e então pediu que cada um desse um exemplo de como tinha ajudado o time no treino da­ quele dia. Depois pediu que cada um desse um exemplo de como [115] tinha prejudicado o time naquela temporada, por menor que fos­se a falta. Todos tinham alguma coisa a dizer e, depois do último menino falar, Doug disse:

Quando você faz alguma coisa que não ajuda o time, está pre­judicando seus colegas, meninos que vão proteger você, vão brigar por você, vão se arriscar a serem machucados por al­guém duas vezes maior que eles na disputa da bola, para que vocês façam uma boa jogada. De hoje em diante, vou fazer sempre essa mesma pergunta a todos, e se acharem que estão prejudicando o time, não precisam se sentir culpados; só tratem de melhorar. Entenderam?

Quando todos concordaram com um gesto de cabeça, Doug lhes disse para se unirem de mãos dadas e gritarem o nome do time três vezes.

Zander perdeu sua posição de estrela no time inicial. Se você quiser saber se a motivação dele foi a vergonha ou a culpa, Doug lhe dirá que, quando Zander voltou a jogar, pegou a bola e correu cem metros para um touchdown que trouxe a primeira vitória do time na temporada. E, quando Zander viu que os colegas o respei­tavam mais pelas ações que ajudavam do que pelas que prejudi­cavam o time (embora algumas de suas palhaçadas fossem muito engraçadas), investiu mais energia nos treinos e passou a animar os outros jogadores, mostrando uma atitude completamente di­ferente. Doug ajudou Zander a se tornar um jovem adulto res­ponsável e, revelando seu próprio desconforto e induzindo a um pouquinho de culpa, conseguiu melhorar o menino e o time.

Nós, os autores, usamos a mesma pergunta em sala de aula (“O que você faz está ajudando ou prejudicando a classe?”) e aos [116] nossos filhos (“O que você está fazendo está melhorando ou piorando a situação?”). Na condição de psicólogos socialmente incômodos, fazemos a mesma pergunta a nós mesmos quando conversamos com as pessoas (“O que estamos fazendo está ajudando ou preju­dicando esse relacionamento?”). Sugerimos que você considere essa pergunta com relação à culpa: vai ajudar ou prejudicar a von­tade de ser uma pessoa melhor, mais forte e mais sábia?

Se quiser mais um exemplo de utilidade da culpa, vamos pen­sar naqueles que foram banidos temporariamente pela sociedade devido a suas más ações: os prisioneiros. Segundo o National Re­cidivism Study of Released Prisoners, conduzido pelo Bureau of Justice dos Estados Unidos, dos 272.111 presos libertados em 15 estados em 1994, 67,5% voltaram dentro de três anos para a prisão por crimes ou contravenções graves.26 Cometer um crime depois de sair do presídio é a norma, e não uma exceção.

Ao tomar conhecimento dessa estatística, você pode julgar que os prisioneiros são pessoas más. Ou pode acreditar que a maioria deles não é muito diferente de nós - eles querem achar um lugar onde sejam aceitos, sentir que têm controle sobre a vida deles, encontrar pelo menos uma aparência de significado e propósito na vida, e ter a esperança de que seus filhos tenham uma vida me­lhor que a deles. Seja como for, a pergunta-chave é: o que evita que um meliante solto volte a cometer atos ilegais ou imorais? A dra. June Tangney, eminente psicóloga clínica, passou quase dez anos investigando se sentimentos morais como a culpa são o segredo para evitar o crime. Em pesquisa recente, ela constatou que os presos com tendência ao sentimento de culpa sofriam mais pelos atos cometidos e eram mais motivados para confessar, pedir perdão e reparar os problemas que causaram.27 Após serem [117] libertados, tinham menor probabilidade de serem presos novamente. Ou seja, presos propensos a sentir culpa pelo mal que causaram contrariam as estatísticas e não causam mais problemas.

A culpa dá mais fibra moral, dá motivação para sermos cida­dãos mais socialmente sensíveis e conscienciosos, e esses bene­fícios se estendem à comunidade não criminosa. Por exemplo: pesquisadores constataram que adultos propensos a sentir culpa eram menos propensos a dirigir bêbados, roubar, usar drogas ile­gais e atacar as pessoas.28 Se o caráter se reflete naquilo que você faz quando ninguém está vendo, a emoção moral chamada culpa é um elemento de construção do caráter. Ao ignorar o valor da culpa, pais e educadores encaram uma dificuldade muito maior para formar as crianças que constituirão o futuro de uma socieda­de saudável.

A fracassada campanha destacando a culpa é uma conseqüên­cia direta de se confundir culpa e vergonha. Segundo o dicionário American Heritage, a culpa é “arrependimento consciente de ter feito algo mau”, e “autorreprovação por suposta inadequação ou transgressões”. A vergonha é diferente. Quando sentimos ver­gonha, não nos contentamos em achar que nossas ações foram erradas ou equivocadas, mas nos vemos como pessoas fundamen­talmente más. No caso da culpa, a consciência da transgressão se limita a uma situação específica. A vergonha nos parece ser uma medida de quem somos. A culpa é útil; sua prima, a vergonha, não é. A culpa é local, a vergonha é global.

Há maneiras úteis e inúteis de sentir remorso pelos fracassos e transgressões. Para aprender a adicionar a negatividade às ferra­mentas psicológicas úteis, vejamos as diferenças. [118]

As pessoas que sentem vergonha sofrem. Pessoas envergo­nhadas se desaprovam e querem mudar, se esconder, ou livrar-se totalmente de si mesmas. Pessoas que sentem culpa querem aprender com seus erros e são motivadas a melhorar. Embora não queiram que sua transgressão esteja escrita na testa, as pessoas culpadas são menos propensas a esconder suas más ações. O mo­tivo? Estão prontas a reparar os danos e dispostas a se esforçar para que não se repitam. Quanto à vergonha, vejamos os resíduos sombrios desse sentimento. Lembremos que os adultos são mais inclinados a pagar quantias exorbitantes para evitar um remorso insistente. Vamos investigar por quê.

Faz seis meses que você tomou a última dose de uísque e a razão de estar sóbrio são as reuniões dos Alcoólicos Anônimos. Na condição de adulto novamente sóbrio, pessoas desconhecidas se aproximam para ouvir sua história. Sabendo que é típico falar [119] sobre problemas pessoais em reuniões do AA, você cede, e até con­corda em gravar um vídeo. Entre as perguntas sobre como você começou a beber, como isso afetou seus relacionamentos etc., a entrevistadora pede que você fale sobre “a última vez em que bebeu e se sentiu mal por ter bebido”. É uma solicitação pesada, que lhe traz lembranças desagradáveis, mas você responde com franque­za. Passam-se quatro meses até que a entrevistadora volte a procurá-lo, trazendo um calendário, pedindo-lhe que anote todos os dias em que bebeu desde a entrevista. Tendo a garantia de que seria confidencial e anônimo, você preenche o calendário.

A entrevistadora era a dra. Jessica Tracy, ou seu aluno de pós-graduação, Daniel Randles, da Universidade de British Colum­bia, e eles fizeram algo realmente criativo.29 A dra. Tracy queria saber se as manifestações de vergonha ao falar sobre bebida aju­davam a prever quais adultos recém-sóbrios voltariam a beber. (Se você quiser identificar vergonha na expressão corporal de al­guém, veja se a pessoa mantém os ombros caídos e a área do peito encolhida ou se fica curvada na cadeira como se buscasse uma posição fetal.)

Os resultados desse estudo podem causar espanto. No decorrer de quatro meses, adultos recém-sóbrios que não demonstraram vergonha durante a entrevista tomaram 7,91 drinques. Quanto aos que demonstraram maior vergonha na entrevista (os 10% mais envergonhados) - imagine só - consumiram, em média, 117,89 drinques no mesmo período. Para aqueles que tinham uma relação de vergonha com o comportamento de beber foi muito mais difí­cil evitar uma recidiva. [120]

De gavião à pombinha

Todo mundo comete erros. No trabalho, você se encarrega de man­dar flores para uma colega doente e se esquece de mandar. Em casa, você reclama do descaso de sua vizinha com o lixo e o jardim dela, e depois descobre que ela estava de cama, com pneumonia. Sentir culpa, por definição, tira a felicidade da pessoa. Mas vimos que, embora à custa da felicidade imediata, a culpa pode ser útil em longo prazo. Além disso, a culpa beneficia os outros. Nas pa­lavras do pesquisador Roy Baumeister, a culpa nos “causa mal-estar, mas, para evitar esse desconforto, precisamos fazer algo melhor para nossos parceiros e membros do nosso grupo”. O agui­lhão da culpa pelo que nossas ações causaram em alguém nos im­pele a agir com maior sensibilidade social na próxima vez.

Por outro lado, se você ficar envergonhado, seus problemas vão aumentar, e tentar melhorar o comportamento de alguém ape­lando para a vergonha também não adianta nada. Esperamos que essas palavras sejam lidas por pais bem-intencionados que casti­gam os filhos obrigando-os a dar a volta no quarteirão com um cartaz dizendo: “Acessei pornografia no computador lá de casa.” Esperamos que sejam levadas em consideração por juizes que condenam motoristas bêbados a colocar no carro um adesivo para que todos saibam da infração. Esperamos que essa informação atinja professores que colocam na sala de aula um painel infor­mando quantas vezes uma criança de 6 anos mordeu, lambeu ou bateu num coleguinha. Essas táticas não surtem o efeito desejado, não estimulam as pessoas a ter mais respeito e consideração pelos outros. Os resultados de pesquisas sobre isso são muito claros: quanto mais envergonhadas as pessoas se sentem, mais ansiosas, agressivas e distanciadas elas se tornam. Usar a vergonha como [121] forma de punição tem o trágico efeito paradoxal de acentuar o comportamento que se tenta extinguir.

Se você quiser motivar, escolha a culpa, e não a vergonha. Co­mo diz a dra. June Tangney: “Sentimos culpa porque damos im­portância [às pessoas] - uma mensagem relevante para quem magoamos ou ofendemos.” Atos incorretos não são prova de que você é uma pessoa incorreta. Assuma a responsabilidade por suas ações, sinta a dor de ter magoado uma pessoa, caso aconteça, e volte a atenção para nada mais e nada menos que a ação específica que causou aquele agravo. Sinta, erre, falhe, se aborreça, e então fique mais atento ao bem-estar dos outros na próxima ocasião de interações sociais.

Como escapar da armadilha da vergonha

Supondo que você não desconheça a compaixão, oferecemos as seguintes sugestões para inspirar a culpa em lugar da vergonha.

Tenha em mente o objetivo. Um erro comum ao lidar com a par­te culpada é partir diretamente para o ataque pessoal. É fácil se apressar em associar - até de forma inconsciente - a culpa à au­sência de valores, idiotice, ganância e a tantas outras falhas de caráter. O problema é que ninguém quer ouvir que é uma pessoa má. As pessoas estão mais abertas a ouvir que fizeram algo mau. Você tem maior probabilidade de ser ouvido, se reforçar as virtu­des e pontos fortes da pessoa (se você de fato os reconhece; não invente) ao mesmo tempo em que a responsabiliza por suas ações.

Comece estabelecendo um terreno comum. Se alguém fez algo er­rado, mostre, se possível, que vocês têm os mesmos valores e obje­tivos. Depois mostre como o comportamento da pessoa a afastou desses valores e que há alternativas, comportamentos mais saudáveis [122], mais compatíveis com quem ela é. Outro terreno em comum, como já dissemos, é compartilhar seu desconforto. Essas conver­sas são difíceis, e às vezes parece ser mais fácil desconsiderar o mau comportamento. É tão desconfortável para quem está apon­tando o dedo acusador quanto para quem está se encolhendo de arrependimento. Para que a conversa resulte numa modificação do comportamento do outro, é preciso ter a honestidade de ver por que a conversa lhe causa desconforto.

Em vez de tentar controlar o outro, ofereça autonomia. Ao contrá­rio do que se pensa, as pessoas não se incomodam que lhes digam o que fazer. Por exemplo: você tem boa vontade para levar o lixo para fora quando lhe pedem, você entrega trabalhos com prazo apertado, quando vai ao supermercado e alguém lhe pede que tra­ga algo mais, se for razoável, você acrescenta à lista e traz. As pessoas se incomodam é que lhes digam como fazer alguma coisa. Ninguém quer conselhos sobre a maneira de colocar o saco de li­xo, como formatar o relatório em que você está trabalhando há meses ou como comparar preços no supermercado. Cientistas que estudam a motivação humana sabem que uma de nossas necessidades básicas, na mesma medida da sobrevivência física, é o dese­jo de dirigir a própria vida. Ao conversar com a parte culpada, não lhe dê instruções de como agir no futuro. Deixe que tenha autonomia para fazer as modificações possíveis. As conseqüên­cias das más ações conduzem a melhores resultados quando o pla­nejamento de mudança do comportamento para melhor é visto como um processo criativo entre o culpado e a vítima.

Ansiedade

Muito se tem escrito sobre o valor da ansiedade. Em suma, pouca ansiedade sugere uma situação enfadonha, ausência de estímulos, [123] a mente num estado de hibernação em que a atenção, as motiva­ções prioritárias, a energia e a determinação são deixadas de lado. Como você pode imaginar, patrões e gerentes não apreciam essa condição, pois os empregados se distraem, buscando estímulo em videogames e brincadeiras com os colegas. Ansiedade em excesso sugere uma situação incontrolável, chegando a paralisar efetiva­mente a pessoa. Quando a ansiedade é passageira, o desempenho é afetado, mas no final dá certo e você se sente bem. E sabemos que períodos prolongados de ansiedade são desastrosos para a saúde física e mental. Quem tem ansiedade muito intensa com muita frequência envelhece prematuramente. Podemos constatar isso em nível celular, na deterioração dos telômeros, que formam as extremidades dos cromossomos.30 Por isso, especialistas em desempenho e empresários dão preferência a pessoas que têm a “quantidade certa” de ansiedade, suficiente para despertar a mo­tivação, sem levar a incontroláveis ataques de pânico e a estresse crônico.31 Perfeito. Estamos totalmente de acordo.

Só nos perguntamos por que chegamos a esse ponto. Nossos ancestrais hominídeos, que viviam em pequenas comunidades caçadoras e coletoras na África, sobreviviam graças a um conjunto específico de circuitos de ansiedade. Criado pela seleção natural e desenvolvido no decorrer da história evolucionária da nossa es­pécie, esse programa especializado em ansiedade opera basica­mente fora da nossa consciência, e por isso mesmo é subvalorizado, pois resolve nossos problemas sem um esforço da vontade. Assim como nós, autores, você já deve ter ouvido dizer que as emoções positivas expandem o pensamento e o comportamento em deter­minadas situações e, em contraste, a ansiedade restringe o pensa­mento e o comportamento, levando-nos a “não ter uma visão geral da situação”. A isso, vamos contrapor: o expandido não é melhor [124] que o restringido. O importante é você usar todos os softwares instalados no seu cérebro. O que acontece quando há uma possibilidade de perigo e o programa de ansiedade está ativado?

Consideremos três situações problemáticas que podem iniciar seu programa mental de ansiedade. Você está sendo ridiculariza­do na frente de um grupo de pessoas por alguém que quer aumen­tar o próprio status social perante o grupo, em detrimento do seu. A pessoa com quem você tem um envolvimento romântico está se comportando de modo estranho, chegou atrasada para um jantar, e vocês ficam longos momentos em silêncio, o que não acontecia antes. Você tem palpitações cardíacas enquanto conversa sobre problemas financeiros, e é a primeira vez que isso acontece. Nes­sas situações, e em muitas outras que induzem a pensamentos e sensações de ansiedade, a parte mais antiga do cérebro, associada à sobrevivência, já está considerando três tipos de ação: fugir, lu­tar ou paralisar. Esse processo ocorre sem qualquer contribuição da sua consciência. Na verdade, muito se tem pesquisado sobre o que causa esse estresse indevido, pois a sobrevivência não é mais o problema cotidiano dos tempos em que compartilhávamos o planeta com os tigres-dentes-de-sabre.

Entretanto, ainda há relíquias remanescentes no disco rígido da ansiedade, forças que permanecem ocultas até o momento an­sioso. Nesses momentos você consegue acessar um aumento da percepção, inclusive uma amplificação da visão, sendo capaz de enxergar a uma grande distância, e uma amplificação da audição, e capaz de sintonizar com maior clareza ruídos aleatórios vindos de uma determinada direção. Você tem maior capacidade de solu­cionar problemas. Para citar um exemplo dado pelos psicólogos da evolução John Tooby e Leda Cosmides: “Lugares estranhos, que você não ocupa normalmente - armário do corredor, galhos [125] de árvore podem subitamente se salientar como locais incluídos na categoria lugar seguro ou esconderijo.”32

A utilidade da ansiedade para seu sucesso, o de sua família, de seu parceiro e da sua empresa está ausente de discussões anterio­res. A surpreendente verdade sobre a ansiedade é:

  • Há situações em que você gostaria de ser uma pessoa alta­mente ansiosa.
  • Você precisa de uma pessoa ansiosa em sua equipe.
  • Sem ansiedade, pequenos problemas podem facilmente ir se transformando num desastre.

Já abordamos o fato de que os erros são necessários para a criati­vidade e as inovações. Sem os erros, não aprendemos nem evoluí­mos. Mas não devemos superestimar o valor dos erros; precisamos identificá-los logo no início, a fim de aprendermos a lição sem nin­guém sair prejudicado. É aí que o valor da ansiedade entra em cena.

O que há de especial em ansiosos sempre apavorados com ameaças e perigos potenciais é a sofisticada contribuição que dão aos outros. Quando tomados pela ansiedade, temos a mesma fun­ção que os canários nos túneis das minas: somos sentinelas, rea­gindo rápida e sonoramente ao primeiro sinal de perigo. Isso ocorre em cinco passos:

  • Medo: pessoas ansiosas ficam em estado de alerta à menor mudança no ambiente. São, portanto, extremamente aten­tas a problemas potenciais, especialmente em situações no­vas ou ambíguas. [126]
  • Sobressalto: pessoas ansiosas reagem com rapidez e intensi­dade à menor indicação de presença de perigo (por exem­plo, sons diferentes, ritmos interrompidos).
  • Aviso: pessoas ansiosas são rápidas em advertir os outros so­bre um perigo iminente. Possuem um desejo incomum de vigiar e cuidar; esse ato de “sair de seu caminho para ajudar os outros” as acalma.
  • Patrulha: se os outros não lhe dão atenção imediata, as pes­soas ansiosas vão investigar e coletar mais dados. Reúnem informações com o intuito de ser mais persuasivas, a fim de construir uma aliança com os outros e, juntos, afastarem o perigo.
  • Vigilância: pessoas ansiosas se abstêm de necessidades im­portantes, como dormir ou comer, e perseveram até que o problema seja resolvido.

Sim, você não quer ter ansiedade crônica. Sim, você não quer ter uma família ou uma equipe formada apenas por pessoas an­siosas. Mas, como pode ver, há enormes vantagens em ter um sis­tema de alarme humano. Pessoas não ansiosas não percebem sinais ambíguos que podem significar perigo. Pessoas não ansio­sas tendem mais a ignorar até os sinais óbvios de um perigo em potencial porque não julgam a informação mais premente do que qualquer outra coisa que lhes passa pela cabeça.

Em uma pesquisa fascinante, membros de um grupo foram levados a crer que tinham ativado, acidentalmente, um vírus de computador que infectou rápido todos os arquivos.33 A caminho de comunicar o ocorrido à administração, eles encontraram qua­tro obstáculos, impedindo que comunicassem ou pedissem ajuda a outros. Uma pessoa lhes pediu que respondessem a um pequeno [127] questionário para uma pesquisa, um funcionário disse onde pode­riam encontrar o administrador do prédio, mas lhes pediu o favor de ajudar com umas fotocópias, na porta da sala do administrador havia uma placa pedindo que visitantes aguardassem e, finalmen­te, depois de serem encaminhados a um técnico em computado­res, passaram por um aluno que “acidentalmente” deixou cair no chão uma pilha de papéis. Quatro obstáculos sociais planejados para fazê-los tropeçar. Para superar os obstáculos, eles precisavam ser determinados e insistentes, duas qualidades nem sempre asso­ciadas a pessoas que sofrem de ansiedade. No entanto, diante do perigo, as pessoas mais ansiosas contornaram todos os obstáculos sem perder o foco. Recusando pedidos de ajuda e atos de gentileza, foram mais eficientes do que seus colegas mais tranqüilos e feli­zes para alertar sobre o perigo e conseguir assistência imediata.

Melhor que a positividade

As vantagens de ser uma pessoa ansiosa não estão ao alcance de quem vive tipicamente no reino da positividade. Pesquisadores constataram que ser extrovertido, sociável e dominante não com­bina com a determinação férrea e a concentração das pessoas ansiosas.34 Em zonas de perigo, a ansiedade prevalece sobre a po­sitividade. Nas situações em que há possibilidade de perigo, mas os sinais são obscuros, complicados ou duvidosos, a ansiedade prevalece sobre a positividade. Nesses casos, as pessoas ansiosas descobrem soluções e, tendo gente à sua volta (amigos, família, co­legas), compartilham os problemas e as soluções. Os grupos são mais bem-sucedidos quando formados por uma mistura de tipos de personalidade com pontos fortes variados e pelo menos uma sentinela ansiosa. [128] 

Como aplicar efetivamente à ansiedade

  1. Crie uma atmosfera em que a atitude vigilante das pessoas ansiosas seja encarada como um ponto psicologicamente forte, e não uma neurose a ser curada. Fale claramente, ex­plicando aos outros que o valor inerente à ansiedade traz o equilíbrio necessário a uma cultura, tentando maximizar o prazer, o crescimento e a busca de realização de sonhos e aspirações. Um grupo bem-sucedido mescla pessoas com diversas motivações, desde alcançar objetivos até evitar os perigos.
  2. Estimule sempre a atenção aos problemas. Crie canais de informação, designando para trabalhar no centro do grupo alguém que tenha a medida exata de pontos fortes, isto é, que seja sensível, articulado, persuasivo, socialmente co­nectado e ciente dos diversos pontos fortes das outras pes­soas (a fim de encontrarem as soluções mais rápidas).
  3. Crie uma estrutura de incentivos, com recompensas para formas mais discretas de detectar e neutralizar os proble­mas. Isso significa que uma força antiterrorista que impede a entrada de armas num aeroporto deve ser tão valorizada quanto um agente que agarra um criminoso prestes a explodir uma bomba escondida na mochila. A mídia adora exal­tar um indivíduo como herói porque propicia uma matéria mais fácil, mais continuada, mais romantizada. Organiza­ções devem escrever suas próprias histórias, criando opor­tunidades para as sentinelas ganharem os aplausos quando merecidos. [129]
  4. Em vez de pensar em ameaças como algo presente-ausente, liga-desliga, lembre que as maiores ameaças frequentemen­te começam como sinais de fumaça, fracos, insidiosos, mal perceptíveis, que de repente aumentam muito. Reconheça a qualidade de quem detecta o começo da ameaça. É preciso deixar de estigmatizar esse processo, a fim de ver seu lado saudável, quando as pessoas ficam à vontade para falar de desgaste e desconforto.

Lembretes

  • Quando não evitamos emoções negativas, ganhamos agilida­de emocional, a capacidade de usar todas as nuanças das experiências emocionais.
  • Raiva, culpa, ansiedade e outras emoções negativas têm vá­rias e inesperadas serventias. Servem para nos dar coragem, regular o comportamento, manter-nos alertas ao ambiente e recarregar as energias criativas, além de outras vantagens.
  • Estratégias concretas como diminuir a velocidade podem ser usadas para transformar as emoções consideradas nega­tivas em boas ferramentas.
  • Abandone a ideia de rotular emoções como exclusivamen­te negativas ou positivas. Em vez disso, identifique o que é aconselhável ou não em cada situação.

Quando você era criança, provavelmente imaginava possuir al­gum superpoder (se não imaginou, perdeu uma boa oportunida­de). Talvez imaginasse poder voar, ter uma força descomunal ou ser invulnerável. Quando você pensa à luz dos benefícios associa­dos a todos os sentimentos - positivos e negativos -, se dá conta de [130] que não tem um único superpoder, e sim vários: tem um potenciador de coragem (raiva), um comportamento que mantém a ética nos trilhos (culpa) e um vigilante sempre alerta ao seu lado (an­siedade). No próximo capítulo, vamos examinar seu menospreza­do detector de mentiras (tristeza). Como seus sentimentos vêm e vão, você tem sempre um poder ao seu dispor.

Afinal, muitos preconceitos contra as experiências emocionais negativas surgem porque as pessoas misturam emoções proble­máticas, extremas, arrebatadoras, com suas primas mais benignas. Culpa não é vergonha, raiva não é fúria, ansiedade não é distúrbio de pânico. Em cada caso, o primeiro é uma fonte benéfica de in­formações emocionais que ativa a atenção, o pensamento e o com­portamento que conduzem a resultados desejáveis. [131]

 

 

Psicologia - Psicologia positiva
11/17/2021 1:04:11 PM | Por Robert Biswas-Diener, Todd B. Kashdan
Por que o modo de buscarmos a felicidade não nos fará felizes

Na  Dinamarca do século XVI, Tycho Brahe era tão famoso pelo seu estilo extravagante quanto pelo seu gênio científico. O nariz de Brahe foi cortado num duelo (colocou no lugar um de metal) e ele ia a festas levando seu alce de estimação (que bebia ál­cool exageradamente), mas perpetuou sua fama com a contribuição para a astronomia. Em vez de aceitar as velhas noções filosóficas ou religiosas sobre a natureza do céu, Brahe observou e cartogra­fou todas as estrelas que via. Suas anotações levaram a descobertas extraordinárias, como o nascimento e morte de estrelas, um fe­nômeno em contradição com as antigas teorias de que todos os corpos celestes eram fixos. Nariz artificial e alce bêbado à parte, a obra de Brahe lhe valeu um lugar na história como pai da astro­nomia moderna, ao lançar a base na qual seu assistente, Johannes Kepler, e todos os astrônomos modernos construíram esta ciência.

Hoje a psicologia vive um “momento Brahe”. Até agora mui­tos têm tido sucesso em criar abordagens intuitivas para melhorar a qualidade de vida. Você provavelmente conhece algumas dessas teorias, como a hierarquia de necessidades de Abraham Maslow - a ideia de que as pessoas precisam satisfazer suas necessidades básicas, como comida e segurança, antes de se ocuparem das [19] necessidades de autoestima e realização pessoal. O bom senso não poupa conselhos para a pessoa tornar-se mais feliz: ser gentil, va­lorizar o que tem, não se dedicar totalmente ao trabalho, passar mais tempo com a família e os amigos, ter uma vida frugal e mo­deração em tudo. Boas sugestões, mas haverá motivos para crer que essas dicas são universalmente aplicáveis ou sempre verda­deiras?

Felizmente, estamos vivendo numa era admirável da psicolo­gia, graças à introdução da sofisticada neurociência, aos avanços da estatística, ao computador portátil, que permite comunicação imediata de experiências cotidianas, e a outras conquistas técni­cas e metodológicas. É o nosso momento Brahe, promovendo a mudança do entendimento básico da qualidade de vida. No campo da psicologia em geral, e no tema específico da felicidade, esses novos instrumentos produziram duas descobertas transformado­ras: primeira, nossa abordagem do tema da felicidade está toda errada; segunda, podemos fazer alguma coisa para corrigir isso.

Por que o modo de buscarmos a felicidade não nos fará felizes

Faz muito tempo que os humanos deixaram de viver em socie­dades caçadoras-coletoras. Já que passamos menos tempo nos preocupando com abrigo, períodos de seca e a próxima caça é ra­zoável voltar nossa atenção coletiva para a busca da felicidade. De fato, num estudo com mais de dez mil participantes de 48 países, os psicólogos Ed Diener, da Universidade de Illinois, e Shigehiro Oishi, da Universidade de Virgínia, constataram que pessoas de [20] todos os cantos do mundo consideram a felicidade mais impor­tante do que qualquer outra realização pessoal altamente desejá­vel, como ter uma vida significativa, ficar rico ou ir para o céu.2

A pressa de ser feliz é estimulada, pelo menos em parte, por um crescente campo de pesquisa sugerindo que a felicidade não só faz a gente se sentir bem, mas faz bem para a gente. Pesquisa­ dores da felicidade associaram sentimentos positivos a uma série de vantagens, desde maiores ganhos financeiros ao melhor fun­cionamento do sistema imunológico e a maior predisposição à gentileza.3 Esses resultados positivos desejáveis não só estão rela­cionados à felicidade, mas a ciência indica que emoções positivas são a causa da felicidade. Alguns pesquisadores, como Barbara Fredrickson, da Universidade da Carolina do Norte, chegam a afirmar que a felicidade é um direito evolucionário inerente à humanidade.4 Ela argumenta que a felicidade ajuda a criar recursos pessoais e sociais vitais para ter sucesso na vida e - do ponto de vista evolucionário - para a própria sobrevivência.

Mas a pergunta que não quer calar mostra uma face não tão feliz assim: se a felicidade proporciona uma vantagem evolucionária, se a valorizamos tanto e temos milhares de anos de bons conselhos para conquistá-la, por que ela não é mais disseminada? Por que não estamos falando sobre uma epidemia de felicidade, em vez de aumentos astronômicos de casos de ansiedade e depres­são? O pesquisador Corey Keyes, da Universidade de Emory, ana­lisou uma amostra de três mil adultos norte-americanos de idades variadas e fez a constatação alarmante de que apenas 17% estavam progredindo psicologicamente. [21] Como é possível acontecer isso? Verifica-se que, apesar de toda a atenção dada a esse tópico, as pessoas não sabem fazer escolhas que levem à felicidade. Não queremos criticar sua malhação na academia, férias na praia, prática de meditação ou a decisão de pôr seus filhos em quatro atividades diferentes depois da escola. Quando se trata de encontrar a felicidade, somos tão culpados quanto você, pois também não chegamos lá. Na verdade, várias pesquisas recentes mostram que todo mundo está mais ou menos nesse desencontro.

Vamos começar com a pesquisa de Barbara Mellers, da Uni­versidade da Pensilvânia, e seus colegas Tim Wilson e Daniel Gilbert, o autor do best-seller O que nos faz felizes? Esse trio condu­ziu uma série de estudos sobre “erros de previsão emocional”. As­ sim como meteorologistas experientes cometem pequenos erros que podem ter um grande impacto na previsão do tempo de uma semana, as pessoas fazem a mesma coisa ao prever como um even­to as afetará emocionalmente no futuro. Superestimamos, por exemplo, o quanto ficaremos felizes se nosso candidato ganhar as eleições ou nosso time de futebol vencer o jogo.8 E tendemos a subestimar dificuldades que teremos, como mudar para outra cidade.

Tomemos como exemplo o estudo em que Mellers e seus co­ legas investigaram mulheres que fizeram teste de gravidez na instituição de planejamento familiar Planned Parenthood.9 (É im­portante saber que nenhuma das mulheres nesse estudo estava tentando engravidar.) Em termos sucintos, as mulheres caíram em dois grupos: as que temiam ter um filho e gostariam de um resultado negativo, e as que gostariam de um resultado positivo. Os pesquisadores disseram às mulheres que fizessem uma previ­ são do grau de felicidade que teriam se tivessem o resultado [23] desejado. Eles esperavam que as mulheres desejosas do resultado negativo sentissem uma espécie de júbilo ao saber que não estavam grávidas, e que as desejosas de engravidar ficassem muito contentes ao receber o resultado positivo.

Ao final do teste, os pesquisadores ficaram surpresos ao cons­tatar que não houve agonia nem êxtase, mas apenas uma ponti­nha de declínio no equilíbrio emocional das mulheres dos dois grupos. As que desejavam um filho não ficaram abatidas ao rece­ber o resultado negativo; ficaram só um pouquinho desapontadas e voltaram rapidamente ao estado emocional normal (podemos esperar reações diferentes, se essas mulheres tivessem tentando engravidar, sem sucesso, durante meses ou anos). Quanto às mu­lheres que não queriam ter um filho e descobriram que havia um embrião não planejado em seu ventre, o temor previsto não se concretizou, pois tiveram uma reação muito mais tranqüila (e uma pequena minoria teve uma inesperada sensação de prazer). Uma razão pela qual erramos ao prever o que nos fará felizes no futuro é que não avaliamos bem nossa capacidade de tolerar, e até de nos adaptar a, situações incômodas. Tomando outro exemplo: um novo emprego nos intimida na primeira semana, mas pouco depois estamos agindo como se já trabalhássemos lá há anos.

A maior razão para se preocupar com os erros de previsão emocional é que quase todas as decisões que você toma agora se baseiam na suposição de como espera se sentir no futuro. Você compra uma casa espetacular de cinco quartos num condomínio chique, imaginando-se tomando café da manhã na varanda de frente para um belo gramado, minimizando os trinta minutos a mais que levará para ir e voltar do trabalho ou para visitar os ami­gos. Você abre mão de passar muito tempo com a família enquanto [25] tenta conseguir uma boa promoção no trabalho. Você escolhe um/a parceiro/a, decide quando (ou se quer) ter filhos ou escolhe uma região ideal para morar, mas geralmente essas decisões são com­ prometidas pela falta de compreensão do seu mundo emocional. Nisso, você não está só. Todos nós tendemos a exagerar o grau de positividade da reação a eventos positivos, e subestimamos nossa capacidade de tolerar o desconforto. Quando se trata de como va­mos nos sentir no futuro, quase sempre erramos.

O pior de tudo na busca da felicidade é a informação de uma recente série de pesquisas conduzidas por íris Mauss, da Uni­versidade da Califórnia, em Berkeley.10 Mauss é um pouco como Tycho Brahe; em vez de aceitar frequentemente as suposições, do tipo “podemos ser felizes”, prefere mapear os céus metafóricos para descobrir o que está lá no firmamento emocional. Ela chega ao ponto de fazer perguntas desconcertantes, como: “As pessoas devem buscar a felicidade?” Um estudo de Mauss e seus colegas mostrou que as pessoas que valorizam a busca da felicidade são de fato mais solitárias que as demais. Os pesquisadores manipula­ram a importância dada à felicidade, fazendo com que a metade dos participantes lesse um artigo falso de jornal exaltando as mui­ tas vantagens da felicidade. Aqueles que leram o artigo disseram se sentir mais solitários do que os que não leram, e produziam uma taxa menor de progesterona (um hormônio liberado quando nos sentimos ligados a outra pessoa). Portanto, apostar tanto na feli­cidade tem implicações na saúde também!

Em suma: nós, humanos, somos péssimos em supor se sere­mos felizes no futuro e, no entanto, baseamos decisões importan­tes na vida nessas previsões equivocadas. Compramos aparelhos de televisão, fazemos seguro de vida, aceitamos convites para jantar [26], tudo por causa de previsões imperfeitas da felicidade que nos trará. Não é à toa que nos damos mal no departamento da felici­dade, e o tema da felicidade está em alta para escritores, instruto­res e conselheiros. A trabalheira imposta pela noção universal de felicidade - com as pessoas seguindo à risca os passos ditados pe­lo bom senso e supostamente benéficos para todo mundo - não funciona. É um pouco como o nariz postiço de Tycho Brahe: uma imitação razoável, mas não melhora a respiração. O que todos nós precisamos com relação à felicidade é um novo conjunto de estra­tégias. Precisamos de uma percepção mais relevante e completa da abrangência disso.

Num mundo em que rejeição, fracasso, insegurança, hipocri­sia, perdas, tédio, e pessoas chatas e detestáveis são inevitáveis, nós, os autores, rejeitamos a noção de que a positividade é o único lugar para encontrar as respostas. Rejeitamos a crença em que saudável é ter uma vida com a menor dor possível. Na verdade, é somente quando tentamos nos esquivar das inescapáveis dores da vida - seja a morte do parceiro, um divórcio, não conseguir a pro­moção no trabalho - que o sofrimento se torna algo que sentimos como dor. A dor aparece quando damos as costas a um aumento do desconforto emocional, físico ou social.

Em vez de batalhar por mais felicidade, valorizamos a capaci­dade de acessar toda a gama de estados psicológicos, tanto os po­sitivos como os negativos, a fim de aproveitar efetivamente o que a vida oferece. Numa palavra: inteireza. Diante dos desafios ine­vitáveis que a vida nos traz, agimos melhor quando paramos de fazer tentativas ineficazes ou desnecessárias de controlar pensa­mentos e sentimentos negativos. Uma pessoa plena age a serviço daquilo que define como importante, e às vezes isso exige recorrer ao lado obscuro da gama de emoções. [37] 

Pesquisas científicas apoiam a ideia de que, em geral, aquilo que vemos como sentimentos negativos podem ser mais benéficos do que os positivos. Estudos mostram, por exemplo:

  • Alunos que têm dificuldades mas não desanimam, têm me­lhor desempenho nas provas do que seus colegas que “enten­dem tudo” rapidamente.11
  • Pessoas centenárias - as que têm 100 anos ou mais - acham que os sentimentos negativos, e não os positivos, estão asso­ciados à saúde melhor e mais atividade física.12
  • Detetives da polícia que foram vítimas de crimes mostram mais determinação e envolvimento no trabalho com civis vítimas de crimes.13
  • Marido e/ou mulher que perdoam agressões físicas ou ver­bais são mais sujeitos a sofrer outras agressões, mas para os que não perdoam há uma forte diminuição das agressões.14
  • Trabalhadores que têm mau humor de manhã e bom humor à tarde demonstram mais concentração no trabalho do que seus colegas bem-humorados o dia inteiro.15

Quanto à criatividade, os pesquisadores viram que as idéias suge­ridas por pessoas que têm estados de ânimo tanto positivo como negativo são consideradas 9% mais criativas, em comparação com as idéias apresentadas por pessoas contentes. No trabalho, a ten­são associada a desafios parece promover a motivação. Ronald Bedlow e seus colegas, que conduziram um recente estudo sobre envolvimento no trabalho, descreveram suas descobertas assim:

Defendemos que adaptativo é o equilíbrio entre a aptidão pa­ra suportar fases de afeto negativo e conseguir mudar para [28] afetos positivos. Minimizar as experiências negativas e repri­mir as positivas não é funcional para a motivação no trabalho nem para o desenvolvimento pessoal.16

A pesquisa da equipe de Bedlow enfatiza também um ponto vital e frequentemente ignorado sobre os estados psicológicos: são temporários. Quando as pessoas falam em felicidade ou em de­pressão, supõem que são experiências relativamente estáveis. No movimento da psicologia positiva moderna, está na moda falar em felicidade sustentável, como se clicar num botão produzisse um sorriso permanente. A verdade é que alternamos entre estados po­sitivos e negativos. Pessoas que têm inteireza, aquelas que se dis­põem a trocar o positivo pelo negativo a fim de obter os melhores resultados numa dada situação, são mais saudáveis, mais bem-sucedidas, aprendem mais e gozam de maior bem-estar. Chama­mos a isso “20% de vantagem” porque a inteireza abrange os que vivem na positividade cerca de 80% do tempo, mas que também podem se valer dos estados negativos nos outros 20% do tempo. Certamente, não pretendemos sugerir que esses percentuais se­jam exatos, que possam ser usados como valores corretos. Não. Só estamos dizendo que a razão de 80:20 é uma regra de ouro para o entendimento da inteireza.

A maré crescente da ansiedade

A ansiedade é notícia há mais de uma década. Guerras, terroris­mo, impasses políticos, crise do mercado imobiliário, obesidade infantil - tudo isso constitui eventos geopolíticos e econômicos importantes. Mas o insidioso aumento da ansiedade é tão digno [29] de nota quanto os outros. O estresse é epidêmico e, como qualquer vírus, não faz discriminação de classe social, nível de inteligência ou profissão. Segundo o National Institute of Mental Health, em qualquer período de 12 meses, um em cada cinco norte-ameri­canos adultos é acometido de distúrbio de ansiedade.17 Em ado­lescentes, o número é mais alto: 25% sofrem de um distúrbio de ansiedade clinicamente significativo. Levando em conta o tempo de vida de um adulto, os números saltam para a elevadíssima ta­xa de um em cada três norte-americanos sofrendo de ansiedade. E essas estatísticas só mostram as pessoas que lutam contra uma ansiedade diagnosticável. Se acrescentarmos estresses do cotidia­no, medo de viajar de avião, de falar em público, de preocupações financeiras, o número chega a quase 100%.

Paradoxalmente, ficamos cada vez mais estressados porque colocamos muita ênfase no conforto. Temos purificadores de ar, ar-condicionado no carro, óculos polarizados, banhos de espuma, roupas à prova d’água, cobertores elétricos e camas adaptadas à conformação específica de nossa espinha dorsal. É difícil enfati­zar suficientemente esse ponto: enquanto, historicamente, escolhe­mos o prazer em vez da dor - quem não o faria? -, a era moderna traz uma aberração na história humana. Não apenas gozamos do conforto, mas somos viciados em conforto.

Por que o conforto é indicativo de um problema? Os altos ní­veis atuais refletem a tendência a usar sabonetes antibacterianos. Esses sabonetes significam que ficamos menos expostos a bacté­rias e, portanto, menos capazes de resistir a elas. Sim, nos velhos tempos a vida era dura, muito trabalhosa, mas teve o efeito cola­teral positivo de enrijecer mentalmente nossos ancestrais. Prova disso é um anúncio clássico do serviço público britânico de 1939, em plena guerra: “Mantenha a calma e vá em frente.” [Keep calm and carry on.] [30] Em outras palavras, as bombas estão caindo, mas não entre em pânico; continue levando a vida. Hoje, seguimos na direção oposta. Vejamos um popular anúncio do serviço público norte-americano contemporâneo: “Se liga. Não polua.” A ideia central dessa mensagem é que as pessoas têm hoje tantos luxos e acessórios que - espere aí! - não podemos parar de jogar coisas no chão e usar a lata de lixo? Quando o lixo dos cidadãos se torna um problema, é sinal de que a sociedade atingiu um elevado estado de conforto.

Atualmente, com tantos supérfluos à nossa disposição, cria­mos a tendência de evitar o desconforto. Clicamos loucamente no smartphone toda vez que estamos sozinhos - sai fora, tédio! Cor­remos como loucos para pegar a faixa expressa na estrada - frus­tração no trânsito, não! Ligamos a televisão assim que chegamos do trabalho - chega de estresse e confusão! O que muita gente não percebe é que essa aparente atração natural por uma vida mais fácil tem raízes numa fuga ao desconforto. Quem teme a rejeição evita as pessoas; quem teme o fracasso não assume riscos; quem teme a intimidade se refugia na televisão ou na internet quando chega em casa. A fuga é uma atitude básica em nossos dias.

Há dois tipos de fuga que causam problemas: evitar o prazer e evitar o sofrimento. A primeira vista, é difícil acreditar que não se queira ter prazer, mas todos nós conhecemos alguém que não quer se divertir, alegando que tem coisa melhor para fazer. (Você pode ser uma dessas pessoas.) Nessa mesma linha, também há quem ache que alardear a felicidade pode dar azar, que comemorar al­guma coisa boa - o aniversário, uma promoção, atuação perfeita numa aula de kickboxing - vai atrair muita atenção e causar des­peito nas pessoas. Os psicólogos chamam a isso “desqualificar o positivo”.18 Infelizmente, ao desqualificar o positivo, perdemos [31] esses momentos de ouro, magníficos, que fazem parte de uma vi­da bem vivida. Ao privar os outros da oportunidade de comparti­lhar nossas emoções positivas, nossas relações sociais se tornam menos íntimas. Se não saboreamos os detalhes de eventos positi­vos, fica mais difícil acessar as boas lembranças para animar um dia sombrio.

A outra forma de fuga, a mais comum de todas, é recusar os estados psicológicos considerados negativos, como a raiva e a an­siedade. Essa atitude reflete a filosofia dos hedonistas da Grécia Antiga - fortes antagonistas intelectuais dos estoicos - cujo pres­suposto era que o bom da vida está no prazer. O problema com a filosofia hedonista é que as pessoas podem se tornar excessiva­mente céticas a respeito de tudo o que for negativo. Isso é uma grande verdade nos tempos modernos, quando dizemos aos ami­gos “veja o lado bom”, “vamos lá, dê um sorriso”, “anime-se”. Além do famoso estudo de Fritz Strack, que mostra que os parti­cipantes da pesquisa que mantinham o lápis entre os dentes (sem saber que assim ativavam os músculos do sorriso) escreviam com maior clareza e tinham opiniões mais positivas a respeito de si mesmos que os demais pesquisados.19 Numa prática vergonhosa, conselheiros de felicidade têm usado esse estudo como prova de que as pessoas devem “fingir até conseguir”. Em essência, todas essas estratégias tentam convencer as pessoas a sair de um estado negativo. Infelizmente, evitar os problemas significa também evi­tar encontrar as soluções para eles.

Você pode imaginar as lutas históricas pela igualdade racial ou por direitos humanos sem um toque de raiva? Pode imaginar vi­ver num mundo em que ninguém tenha remorsos? Pode imaginar uma viagem a um país exótico em que tudo se passe exatamente como planejado? Ou uma vida em que você nunca se debateu com [32] a grave decisão de desistir de um objetivo e continuou insistindo apesar da pouca chance de sucesso? Existe um mal disfarçado preconceito contra estados negativos, e a conseqüência de evitá-los é inibir, inadvertidamente, o crescimento, a maturidade, a aven­tura e o sentido da vida.

Como a interireza se apresenta

Agora é um momento oportuno para ilustrar como a inteireza se apresenta na vida real. Recorremos ao apoio de cientistas que acre­ditam que a história pessoal é mais significativa do que as escalas de felicidade artificiais dominantes em tantas pesquisas. Se existe algo próximo a um exame de sangue ou raios X para qualidade de vida, são as ricas histórias de nossa experiência diária. As histó­rias que contamos sobre os eventos do dia - um pneu furou, che­guei atrasado para a reunião, conheci uma pessoa interessante, vi um pôr do sol lindo - revelam realizações, fracassos, atitudes, de­sejos e anseios, expõem nossa identidade e aquilo a que aspiramos ser e a fazer. Nesse viés, vamos descrever três pessoas que encar­nam aspectos da qualidade que chamamos de inteireza.

Por trás da síndrome do impostor

Apesar de estar cursando o terceiro ano da faculdade de psicologia clínica na Universidade Pacific, Jennifer ainda abria a correspon­dência esperando receber uma carta com o timbre da universidade. Em sua imaginação, a carta diria: “Jennifer, lamentamos infor­mar que cometemos um erro ao aceitá-la no curso de graduação. Sua solicitação deveria ter sido negada.” Como muita gente, Jennifer [33] tinha o sentimento de inadequação pessoal chamado de “síndrome do impostor”, muito comum quando a pessoa atinge um nível mais alto: promoção no trabalho, mudança de carreira, estu­dos avançados. Esse sentimento de duvidar de si mesmo é descon­fortável, às vezes até doloroso. Em casos extremos, é tão forte que leva a pessoa a rejeitar a oportunidade.

Muita gente não vê que o fato da dúvida, com moderação, tem uma função saudável. A dúvida é um estado psicológico que nos leva a fazer um balanço de nossas competências, e a um esforço para melhorar nas áreas de deficiência. Karl Wheatley, pesquisa­dor da Universidade Estadual de Cleveland, afirma que a dúvida pode ser benéfica - pelo menos no caso de professores primários.20 Ele destaca o fato de que, quando um professor tem incerteza sobre seu desempenho, esse sentimento incita à colaboração com outras pessoas, promove a reflexão, motiva o desenvolvimento pessoal e prepara para aceitar mudanças.

Jennifer, ainda novata, usava a dúvida para tomar boas deci­sões sobre quais pacientes encaminhar para terapeutas mais ex­perientes, e quais ela poderia atender. À medida que adquiria mais conhecimentos, ela usava a dúvida para aprimorar sua com­petência e ajudar seus pacientes. Ao eleger a dúvida como ferra­menta, entre tantas outras, mas sem reprimir ou rejeitar essas outras, Jennifer se tornou uma excelente terapeuta e continua a se aperfeiçoar profissionalmente.

As vantagens de jogar a toalha

Em 1995, um aventureiro sueco chamado Goran Kropp estabele­ceu um novo padrão de extremos para um grupo de peritos em escaladas do monte Everest.21 Ao contrário de seus pares [34] alpinistas, Kropp queria escalar sem cilindros de oxigênio, sem cordas e escadas fixas, sem ajuda de sherpas e sem transporte motorizado de qualquer espécie. Montou numa bicicleta e percorreu os quase 13 mil quilômetros de sua casa na Suécia até Katmandu. De lá, foi carregando grandes fardos nas costas até o acampamento no pé do Everest. Saiu do acampamento antes de qualquer outra expedição, e foi subindo por uma trilha de gelo e neve nas escarpas rochosas. No dia de chegar ao cimo, porém, faltando apenas cem metros para alcançar o ponto mais alto da Terra, Kropp tomou a difícil decisão de voltar atrás. Sua decisão se baseou nas condições do fim de tarde, na situação em que ele teria que descer, com muito frio, cansaço, e na escuridão.

O extraordinário autocontrole de Kropp, a decisão de voltar quando estava tão perto do objetivo, depois de ter investido tanto, foi muito sensata e quase divinatória. Uma semana depois, mem­bros de várias expedições sofreram o que se chama “febre do topo” e ficaram presos no flanco do Everest, fustigados pelas nevascas, porque não voltaram no tempo previsto.22 Os dias que se seguiram ficaram conhecidos como o Desastre de 1996 no Everest, que le­vou oito vidas na temporada mais mortal na história das escaladas do Himalaia. Nesse contexto, a decisão de Kropp talvez tenha sal­vado sua vida. E lança outra luz na suposição comumente aceita de que a perseverança é boa e a desistência é má.

É muito fácil ter um objetivo. Pessoas que têm metas específi­cas usam um padrão de medida para avaliar o êxito, diretrizes para aderir aos seus valores, um alvo definido para motivá-las e uma bússola para tomar decisões.23 O ramo dos negócios tem me­tas para melhorar a produção, e os times de futebol têm gols - li­teralmente - para vencer os jogos. Para muita gente, ter uma meta é sinônimo de compromisso, e compromisso com a meta, por sua [35] vez, é quase sinônimo de sucesso. O lendário boxeador Muham­mad Ali disse, em tom jocoso: “Eu odiava cada minuto de treino, mas dizia: ‘Não desista. Sofra agora e seja campeão pelo resto da vida.”’24 Aí está a clara noção de que apostar tudo nas metas é o caminho mais provável do sucesso. Por outro lado, desistir é re­servado para os moral e fisicamente fracos.

Como você já percebeu, rejeitamos a noção de que desistir (certamente um desconforto psicológico) seja horrível. A fidelida­de cega às metas produziu, entre outras coisas, a “febre do ouro”, frequentemente associada à Corrida do Ouro na Califórnia, em 1859, quando mineradores fizeram enormes investimentos finan­ceiros, físicos e emocionais em busca da fortuna, e resultou em nada. A pesquisadora Eva Pomerantz, da Universidade de Illi­nois, afirma que investir pesadamente na busca de um objetivo pode elevar a ansiedade a ponto de corroer a qualidade de vida psicológica da pessoa.25 Isso é tanto mais verdadeiro quando a pessoa se esforça, mas põe o foco no possível impacto negativo de não atingir a meta, aumentando ainda mais o estresse.

Uma das maiores vantagens de algum desânimo - tipicamente desconfortável e que as pessoas sempre tentam evitar - é que, ao senti-lo, nossa tendência é desistir de atingir a meta. A tristeza, frustração, confusão, e até a culpa, servem ao mesmo propósito. São sinais para você puxar o freio e recuar para dentro de si mes­mo a fim de refletir, de conservar sua energia e seus recursos. Isso é especialmente importante para minimizar nossa tendência de continuar investindo em causas impossíveis ou agir com base em um fundo perdido, em vez de tomar a decisão de diminuir as per­das quando os ganhos parecem cada vez menos prováveis. As pes­soas com inteireza são capazes de ter flexibilidade na busca de objetivos, continuando a investir à medida que há progressos num [36] ritmo aceitável e, quando o fracasso é quase certo, trocando os antigos objetivos por outros.

As vantagens da fantasia

Quando menina, o sonho de Melanie Baumgartner era ser juíza. Na universidade, porém, ela se apaixonou e sua vida tomou um rumo inesperado. Em vez de cursar direito, Melanie encontrou um novo sentido em ser dona de casa e mãe. Às vezes, levando e buscando as crianças da escola, ela se surpreendia devaneando sobre aquela outra vida, batendo o martelo para exigir ordem no tribunal.

Num fenômeno psicológico chamado sehnsucht, não é incomum o fato de o anseio por uma oportunidade perdida ou um objetivo não alcançado despertar uma rica fantasia, em que nos imagina­mos realizados naquela situação.26 Sehnsucht é um bálsamo psico­lógico importante para o tormento da oportunidade perdida. Os participantes de uma pesquisa internacional que tinham sehnsucht foram capazes de aceitar a fantasia e transformá-la em compen­sação emocional. A única exceção digna de nota foram os norte-americanos. Ao contrário dos europeus, os norte-americanos são muito mais propensos a achar que seus sonhos são realizáveis e, portanto, relutam em mantê-los no reino da fantasia, o que ten­dem a considerar uma atitude negativa. Mas a fantasia pode ser um recurso muito valioso.

Hoje, com seus filhos crescidos, Melanie pode voltar à facul­dade de direito. Mas ela já não sente tanto o desejo de ser juíza, em parte porque vivenciou as conquistas emocionais em suas fan­tasias. Sehnsucht é uma das muitas estratégias que as pessoas inteiras [37] usam para administrar as conseqüências de terem tomado outro caminho, para tornar a desistência palatável quando foi sen­sata, e a lidar com o desapontamento.

Sabemos que o sofrimento é terrível. Vamos deixar bem claro que não desejamos que você fique arrasado por objetivos frustrados ou porque seu namorado dormiu com a sua irmã. Não estamos sugerindo que você prenda a respiração embaixo de água gelada sem tremer um músculo. Estamos apenas dizendo que acumular emoções que parecem agradáveis agora e evitar emoções que pa­recem desagradáveis agora não é a melhor estratégia para viver bem. Neste livro, oferecemos a inteireza como alternativa a que­rer tirar proveito somente do positivo. A característica principal das pessoas inteiras é a grande capacidade de negociar com tudo o que a vida lhes apresenta. Elas possuem o que chamamos de agi­lidade emocional. Por quê? Porque sabem tirar o maior proveito possível de uma situação, adequando seu comportamento - do la­do bom ou do lado obscuro - a cada desafio que enfrentam. Elas sabem usar os dois lados de todos os traços de personalidade: sé­rio e brincalhão, passional e objetivo, extrovertido e introvertido, altruísta e egoísta. São bondosas, mas seletivas ao conceder seu tempo e energia. Finalmente, pessoas que têm inteireza se bene­ficiam da relutância em desprezar qualidades que a sociedade menospreza. A seguir, vamos expor o que significa ser emocional, social e mentalmente ágil, para você entender a amplitude, a be­leza e as vantagens da inteireza. [38]

Agilidade emocional

Na inteireza, não se trata de evitar emoções negativas, mas de ti­rar o “negativo” delas. Pode-se ver isso no braço da ciência em que se apoiam as boas psicoterapias. Os psicólogos Jonathan Adler (do Franklin W. Olin College of Engineering) e Hal Hershfield (da Universidade de Nova York), testaram a crença predominante de que a terapia funciona quando livra a pessoa de problemas como a depressão, e ajuda a montar estratégias para estimular a positividade.27 Esses pesquisadores observaram 47 adultos em tratamento terapêutico de ansiedade e depressão, e para aprender a lidar com eventos de maior tensão, como a transição para a paternidade/maternidade. Adler e Hershfield queriam saber o que acontece antes de o cliente resolver seus problemas, antes de sua qualidade de vida melhorar e antes de passar realmente a gostar de si mesmo.

Você pode se surpreender tanto quanto eles ao saber que as pessoas em terapia não têm menos experiências negativas e mais experiências positivas, mas passam a se dizer mais felizes. Na ver­dade, o sucesso da terapia começa quando a pessoa passa a se sen­tir confortável com emoções mistas (tanto alegres quanto tristes) sobre o trabalho, os relacionamentos e qualquer outra situação. Vejamos o relato de um cliente após algumas sessões:28

Foram semanas difíceis. Minha esposa e eu comemoramos a boa notícia de uma gravidez saudável com nove semanas (o tempo em que perdemos a gravidez em janeiro passado). Mas também sinto tristeza por ainda estar procurando emprego, e por minha mulher, cuja avó está morrendo. Sinto assim: “quan­to mais posso aguentar?” Mas ao mesmo tempo me sinto razoavelmente [39] confiante e feliz. Não que não fique abatido, mas agradeço as coisas boas da minha vida, especialmente meu ca­samento.

O ponto crucial aqui é que essa pessoa, e tantas outras que de­monstram a capacidade de vivenciar emoções positivas e negativas, teve, subsequentemente, ganhos maiores em bem-estar. Não é o que acontece no caso oposto: sentir a positividade não melhora a capacidade de ser emocionalmente ágil. Esse estudo sugere que a maior vantagem não está na felicidade, e sim que a maior vanta­gem provém de ser plenamente capaz, de ser inteiro, tolerando o bom e o mau sempre que surgirem.

Agilidade social

Os humanos são primatas e, portanto, criaturas sociais. Assim co­mo nossos primos chimpanzés, temos o cérebro altamente desen­volvido para a interação social. Podemos, por exemplo, interpretar facilmente expressões faciais sutis, enquanto os cães, porcos e fal­cões não podem. Temos também centros de linguagem altamente evoluídos, que nos permitem expressar grandes quantidades de informação complexa, inclusive toda a gama de intenções e dese­jos. De fato, somos tão sociais que muitos pesquisadores afirmam que só podemos sobreviver por meio da interdependência. Dacher Keltner, psicólogo em Berkeley, afirma que a generosidade, a hospitalidade e a benevolência são nossos estados naturais.29 Em­bora possamos citar facilmente exemplos de egoísmo, fraude, ganância e outros males sociais, tendemos a achar que as pessoas são capazes de boas ações extraordinárias. De fato, ensinamos às crianças que a bondade é a virtude suprema. [40]

Os efeitos colaterais da bondade e gentileza são inúmeros: as pessoas bondosas vivem mais, ganham mais, são cidadãos melho­res, e os relacionamentos íntimos que cultivam podem sanar mui­tos danos de uma infância problemática. Mas se olharmos mais de perto o mundo social, teremos que admitir um fato incômodo: se estamos envolvidos no amor, no trabalho, em qualquer recreação, precisamos ser gentis, mas também precisamos ser seletivos. Não podemos nos dar ao luxo de nos entregar completamente a qual­quer pessoa. Tempo e energia são recursos limitados, que precisa­mos empregar com discernimento.

Às vezes, em certas situações, precisamos até agir de maneira diametralmente oposta à gentileza. Quem se dispõe a acessar seu lado obscuro está em posição de vantagem, sejam pais, atletas, soldados, professores ou empresários. E aqui vem a parte mais di­fícil de assimilar: é melhor assim para todo mundo. Mesmo os me­lhores pais têm momentos em que não estão dispostos a se esmerar pelos filhos; paternidade e maternidade, como qualquer emprego, precisam de uma hora de almoço. É quando os pais não se cuidam que os filhos sofrem de formas inesperadas e desnecessárias.

Antes que você jogue este livro pela janela ou venda para um sebo, queremos lhe apresentar uma de nossas heroínas científicas, Esther Kim, socióloga da Universidade de Yale. Kim é uma pessoa singular entre os acadêmicos, pois larga o laboratório e sai para o mundo.30 A fim de observar como pessoas desconhecidas intera­gem, Kim percorreu milhares de quilômetros em ônibus de trans­porte público. Ela ficou particularmente fascinada pelo modo como as pessoas evitam sutilmente que outro passageiro ocupe o assento vago ao lado.

Todos nós já tivemos a experiência de ver um passageiro en­trando no ônibus, trem ou avião, enquanto entoamos [41] silenciosamente o mantra “ao meu lado, não; ao meu lado, não”. Kim observou uma variedade impressionante de táticas criativas para evitar a convivência indesejada: gente no assento do corredor com fones de ouvido para fingir que não ouviam o outro pedir licença; sacola colocada no assento ao lado; cenho franzido, pernas estica­das, fingindo dormir; e a lista se alonga. Esses passageiros não são rudes; são humanos. Estão interessados na própria segurança, na energia gasta para interagir com um desconhecido, no conforto durante uma viagem longa. O estudo de Kim ilustra uma situação em que temos propensão a sair da norma de “ser gentil”.

Agilidade social é a capacidade de reconhecer como uma si­tuação difere de outra e alterar o comportamento de acordo com essas diferenças. A pessoa socialmente ágil é proativa, seleciona e influencia as situações que se apresentam. Dependendo das especificidades da situação, a pessoa socialmente ágil pode ser acolhe­dora, dizer mentiras inofensivas, ou fazer pressão; pode se exibir, flertar, elogiar, oferecer ajuda. Pode até mencionar casualmente que limpou a geladeira recentemente para mostrar ao marido que é boa dona de casa. As pessoas socialmente ágeis não são maquia­vélicas, mas operam com um conjunto de normas sociais mais inclusivo e flexível do que o básico “seja gentil”. É interessante notar que, em muitos casos de infração das regras, não intencionamos obter algum ganho pessoal, e sim fazer com que o outro se sinta bem, fortalecer relacionamentos e alcançar metas signifi­cativas.

Agilidade mental

O conceito psicológico de mindfulness (consciência plena) é famo­síssimo. Tem raízes nas práticas budistas, e é a superstar das [42] estratégias mentais. Uma pessoa mindful é aquela focada em viver o momento presente, em “observar com suavidade” o que está acon­tecendo no momento presente, em oposição a “julgar”. As pessoas mindful são mais conscientes, supostamente mais atentas e mais propensas a apreciar a vida do que as outras. Se você for a uma livraria, verá uma estante inteira de livros sobre comer conscien­te, pais conscientes, liderança consciente e até pôquer consciente. Autoridades no assunto dizem que a hiperconsciência é talvez o estado supremo do funcionamento humano, um lugar em que de­sejamos entrar e lá viver perpetuamente. Em conformidade com o provocativo tema deste livro, queremos ser os primeiros a lhe di­zer que é impossível permanecer em estado mindful constante. Se­ja escovando os dentes, seja levando as crianças à escola no piloto automático, é uma maravilha ter um cérebro que nos permite encontrar atalhos que liberam a energia mental para outros empre­endimentos mais significativos, mais intensos. É essencial ter um sistema inconsciente que processa a informação automaticamente, sem autoconsciência e esforço intencional.

Uma das áreas mais fascinantes da psicologia lida especifica­mente com nossa suscetibilidade a influências dos sinais sutis que existem por baixo da atenção consciente. Num estudo com alunos, conduzido pelo psicólogo holandês Ap Dijksterhuis, por exemplo, os sujeitos deviam cumprir uma tarefa antes de responder a perguntas de um teste.31 Um grupo de alunos devia escrever sobre como seria ser um professor. Esse grupo na “condição de professor” respondeu 60% das questões sobre conhecimento geral corretamente, enquanto o grupo de controle respondeu correta­mente a 50% das questões.

A atuação da mente inconsciente cria uma circunstância privi­legiada para mudanças de comportamento, em geral para melhor, [43] sem o esforço exigido normalmente. Por exemplo: num estudo, os pesquisadores levaram sutilmente alguns participantes - mas não todos - a sentir o cheiro de produtos de limpeza (escondidos num balde num canto do laboratório).32 Em seguida, os participantes comeram biscoitos crocantes, e os que tinham sentido o cheiro dos produtos de limpeza comeram com mais cuidado e limparam os farelos. O inconsciente age também ajudando a processar infor­mações complexas. No fenômeno conhecido como “dormir sobre o assunto”, as pessoas distraídas - e portanto não mindful são mais capazes de chegar a boas decisões de compra do que as pes­soas que “se esforçam” de modo consciente.33 Embora a mentalidade da consciência plena de “estar aqui e agora” tenha de fato suas vantagens, é um erro pensar que é o úni­co estado positivo. Quando nos utilizamos de tudo o que somos, de nosso ser por inteiro, podemos alternar atenção e desatenção de acordo com as circunstâncias. Isso nos ajuda a conservar os recur­sos mentais e nos concentrar nas questões que realmente conside­ramos mais importantes.
 

Psicologia - Psicologia positiva
11/17/2021 1:01:13 PM | Por Robert Biswas-Diener, Todd B. Kashdan
A Intolerância ao desconforto e a ascensão da classe acomodada

Para os cientistas sociais, o Google é mais que uma ferramenta de busca. Em vários aspectos, é um termômetro da socieda­de. O Google pode ser usado para rastrear atitudes coletivas e ma­pear tendências populares. Tomemos como exemplo uma simples busca de imagem das palavras “desconforto” e “conforto”. Clicando em “desconforto”, surgem imagens de pessoas franzindo as sobrancelhas, massageando as têmporas, esfregando um joelho dolorido ou contraindo o estômago. Em contraste, a busca da pa­lavra “conforto” traz imagens de camas macias, poltronas fofas e primeira classe em aviões a jato. A implicação é clara: o des­conforto é interno, um fenômeno subjetivo, uma experiência in­dividual, e seu antídoto, o conforto, é encontrado no exterior, no mundo material que nos cerca.

Essa noção popularizada de desconforto como um estado in­terno, desagradável e frequentemente fora de controle, é tema cen­tral neste livro. Se a inteireza remete à capacidade de vivenciar e utilizar toda a gama de estados psicológicos - emocionais, cogni­tivos e sociais -, nosso mal-estar generalizado com o desconforto deve estar ligado a uma estreiteza da experiência. Evitar estados desconfortáveis, ainda que proveitosos, nos impede de alcançar todo o nosso potencial. É interessante notar que essa relação distanciada [50] com o desconforto é um fenômeno muito ocidental, e especificamente norte-americano. Os norte-americanos são mui­tas coisas: criativos, confiantes, industriosos e famosos por serem irremediáveis otimistas. Acima de tudo, porém, são adeptos do conforto. Apesar dos bolsões de pobreza total e da assombrosa dis­paridade na distribuição de renda, os Estados Unidos são um lu­gar notavelmente organizado, conveniente e confortável para se viver. Os sinais de trânsito funcionam, os cinemas têm temperatura controlada, banheiros completos são tão comuns quanto manguei­ras para regar jardim, todo mundo tem acesso a xampu, e as pes­soas escolhem o colchão conforme o material, tamanho e maciez.

À medida que o mundo enriquece, não são apenas os norte-americanos que estão vivendo com mais conforto. Quanto mais uma sociedade se aproxima da dos Estados Unidos - Austrália, Canadá e o Reino Unido me vêm à mente -, maior é a probabili­dade de ter uma atitude semelhante (mas não idêntica) em rela­ção ao conforto. Quanto mais distante é uma cultura - pense no Zimbábue, China, Paquistão -, maior é a probabilidade de se sen­tir confortável com o desconforto. No entanto, em muitas partes do mundo em fase de desenvolvimento econômico, vemos uma classe média emergente que se distingue pelo conforto na mesma medida em que é separada pela renda.

Se você quiser ter uma noção de quão arraigada é a propensão da sociedade norte-americana ao conforto e a uma atitude positi­va, faça a seguinte pergunta: “Jesus era feliz?” Foi exatamente a pergunta feita pelo psicólogo Shigehiro Oishi e seus colegas da Universidade de Virgínia.1 Esses cientistas estavam menos interes­sados em encontrar uma resposta factual a essa questão do que em usá-la para avaliar as atitudes das pessoas. Os pesquisadores par­tiram do princípio de que, já que existe um único Jesus e uma narrativa [51] geral de sua vida (a narrativa bíblica), as diferenças de opi­nião em larga escala sobre a felicidade dele dariam uma espécie de teste de Rorschach cultural, em que as pessoas projetam suas predisposições mentais. Para essa investigação, eles pediram a de­zenas de pessoas nos Estados Unidos e na Coréia do Sul que escre­vessem tudo o que pensavam sobre Jesus. (O número de cristãos era praticamente o mesmo - cerca de 60% - nos dois grupos.)

Os norte-americanos mostraram acreditar muito mais que os sul-coreanos que Jesus era feliz. Além disso, descreveram Jesus como sendo muito mais extrovertido, aberto e agradável do que os sul-coreanos. Ainda mais interessante, os sul-coreanos menciona­ram mais desconforto com relação a Jesus. Escreveram muito mais - em muitos casos, cinco vezes mais - sobre sofrimento, sa­crifício, crucificação e sangue. Embora eventos desconfortáveis como a perseguição e a crucificação sejam centrais na narrativa da vida de Jesus, os norte-americanos mostraram uma tendência significativa a dizer que Jesus era maravilhoso, bom e gentil.

A tendência dos norte-americanos para o positivo não signifi­ca necessariamente desviar os olhos das adversidades. Será que não? Christie Napa Scollon, pesquisadora na Singapore Manage­ment University, e sua colega Laura King, da Universidade de Missouri, conduziram uma série de estudos inédita.2 Em vez de seguir a metodologia habitual, usando sofisticados modelos esta­tísticos de felicidade para determinar onde as pessoas se situam numa escala, os pesquisadores que colaboravam com elas pergun­taram a várias pessoas em que medida a riqueza, a felicidade, e o trabalho árduo contribuíam para o “bem viver”, que incluía bem-estar e sentido da vida. Os norte-americanos atribuíram maior valor à felicidade, e preferiam uma vida fácil a uma vida de traba­lho árduo, principalmente quando o trabalho árduo foi quantificado [52] em horas de trabalho. Os pesquisadores constataram tam­bém que os norte-americanos tendiam a considerar um relaciona­mento satisfatório mais importante para o bem viver do que um trabalho satisfatório. De fato, constataram que os participantes ti­nham opinião muito severa sobre pessoas, hipotéticas, que não tinham bons relacionamentos e achavam o trabalho compensador; muitos disseram que elas eram imorais e alguns chegaram a classificá-las de amaldiçoadas.

O anseio norte-americano por uma vida feliz e confortável não é apenas um assunto de interesse acadêmico abstrato. Vemos isso claramente em seu comportamento, especialmente enquanto con­sumidores. Desde a Segunda Guerra Mundial, os norte-america­nos têm vivido um período de riqueza sem precedentes. Mesmo no atual contexto econômico, em que vivem à sombra de uma cri­se do mercado imobiliário, de um alto nível de desemprego e falências em larga escala, a maioria está se saindo melhor que nunca em termos materiais. A aquisição de casa própria está ab­surdamente em alta nos Estados Unidos, assim como o consumo de aparelhos eletrônicos, automóveis e aparelhos de ar-condicionado. A população corre em busca de conforto e conveniências.3 Segundo Juliet Schor, autora de The Overspent American, atual­mente as pessoas sonham com viagens de luxo, casas melhores e mais conforto.4 Ela cita um estudo longitudinal da Universidade de Connecticut em que as pessoas deviam indicar os itens básicos que consideram como necessidade. Nos anos 1970, 13% apro­varam ar-condicionado no carro, e 25% precisavam de ar-condicionado em casa. Em meados dos anos 1990, as atitudes tinham mudado para incluir mais conforto pessoal, com 41% precisando de ar-condicionado no carro, e 50% precisando de ar-condiciona­ do em casa. [53]

Esse súbito desejo de ar-condicionado é particularmente inte­ressante no contexto da hierarquia de necessidades de Maslow.5 Lembremos que, em 1954, Maslow sugeriu que as pessoas satisfa­zem primeiro suas necessidades básicas, como alimento e abrigo, depois satisfazem necessidades sociais, e só então passam a se preocupar com autoestima e criatividade. Muitos cometem o en­gano de julgar que Maslow estava dando uma prescrição do bem viver. Sua proposta era descrever o funcionamento básico da mo­tivação humana.

À luz do nosso apego atual ao conforto, é interessante conside­rar o que realmente significa a palavra “básica” na expressão “ne­cessidade básica”. É fácil entender que o acesso à água limpa é uma necessidade básica para a sobrevivência. É ainda mais fácil entender que a termorregulação - a manutenção da temperatura normal da pessoa em todas as circunstâncias - é uma necessidade básica. Mas enquanto os humanos precisam de agasalhos para protegê-los contra o perigo da hipotermia, é difícil justificar que o ar-condicionado no carro seja uma necessidade básica, princi­palmente sabendo-se que um carro já é um luxo de proporções quase miraculosas.

Se o desejo das pessoas continuar a seguir essa trajetória, em breve o ar-condicionado no carro já não será suficiente. Haverá a necessidade de assentos aquecidos ou zonas separadas, aquecidas ou refrigeradas, para motorista e passageiros. Ah, e tem mais, nes­se exato momento, está surgindo um novo padrão nos novos car­ros! Seria interessante saber o número de pessoas que já consideram uma tela de vídeo no carro uma necessidade.

Aqui chegamos à tese deste capítulo. A medida que as pessoas vão se tornando mais capazes de satisfazer o desejo de conforto, mais restrita vai se tornando sua gama de experiências, e elas vão [54] perdendo a prática de lidar com as dificuldades da vida. Colocan­do de maneira mais linear: 1) o conforto material e os artigos de conveniência levam a 2) uma compulsão a usar objetos externos para se sentir bem, o que leva a 3) menor imunidade psicológica a circunstâncias menos confortáveis e mais inconvenientes. Não se engane: o conforto material afeta sua capacidade de se adaptar psicologicamente ao ambiente e lidar com dificuldades. O confor­to associado ao ar-condicionado induz, ao longo do tempo, uma situação em que estados internos como raiva, dúvida, desistência, incerteza e mindlessness se tornam esmagadores, ou vistos como reprováveis. É unicamente o vício do conforto que nos divide en­quanto indivíduos e nos impede de desfrutar de toda a gama de bem-estar psicológico.

Enquanto nossos avós podiam suportar poeira, chuva, sol a pino, as pessoas de hoje parecem ser menos capazes disso. Segun­do estatísticas do US Department of Health and Human Services, a taxa de crianças com alergia a alimentos nos Estados Unidos su­biu mais de 40% entre 1997 e 2011, e a prevalência de alergias de pele subiu quase 70% nesse grupo no mesmo período.6 A asma afeta hoje 17% das crianças norte-americanas, e vale notar que a taxa é mais elevada entre crianças que vivem 200% acima da li­nha de pobreza. Uma possibilidade é a chamada “hipótese de hi­giene”, em que as condições da vida moderna na classe média são limpas demais e dão muito poucas oportunidades de exposição e aquisição de resistência a agentes infecciosos.

O que aconteceu? Como a sociedade norte-americana e, em menor grau, a de seus primos culturais em outras sociedades oci­dentais modernas mudaram tão drasticamente? O que aconteceu entre o tempo dos homens das cavernas, que labutavam diaria­mente para manter uma existência frugal, e hoje, quando comerciais [55] de televisão ou cinco minutos de engarrafamento no trânsito parecem intoleráveis? Quando foi que perdemos a imunidade ao desconforto?

As origens do vício do conforto

Conforto e desconforto são temas tão antigos quanto as pessoas. É fácil imaginar o primeiro homem das cavernas que pegou a pedra que lhe servia de travesseiro dizendo: “Ugh! Quero mais macio!”, e pousando a cabeça sobre um monte de agulhas de pi­nheiro. O mesmo impulso de se manter aquecido (ou de evitar o calor), de relaxar os músculos doloridos, de ter contato com textu­ras macias, tem sido uma motivação universal através dos séculos.

Até a famosa frase de Hamlet: “Ser ou não ser”, da obra de Shakespeare, trata basicamente de tentar ou não superar a adversidade.7 Vejam bem:

Ser ou não ser, eis a questão:

Se ao espírito é mais nobre suportar
O disparo das flechas da fortuna infame
Ou pegar em armas contra um mar de dores.*

A pergunta do jovem príncipe fictício da Dinamarca é seme­lhante à de pessoas deprimidas que vivem hoje em Pensacola, To­ ronto ou Manchester: devo escolher a vida ou a morte? A resposta é baseada em graus de desconforto. Hamlet concluiu pela adesão à vida - apesar de todos os contratempos -, não porque fosse aventuroso [56] ou destemido, mas porque a alternativa - o desconhecido reino do além - causava ainda mais ansiedade do que os percalços da vida cotidiana! Vejamos mais uma vez o príncipe em ação:

Mas o pavor de algo após a morte, Desconhecido reino de cujo rio
Viajante algum retorna, refreia a vontade, E faz preferir sofrer os males que já temos.*

Em 1930, Sigmund Freud, a figura mais importante na histó­ria da psicologia, escreveu sobre o perigo do canto da sereia do conforto. Ele disse: “Isso significa colocar o prazer à frente da realidade e logo receber a punição.” Freud não tinha nada contra o prazer de dormir num travesseiro macio ou de sentir a brisa no rosto, e sim contra o prazer como motivador primário da ação. Ele dizia que a busca do conforto, e não o conforto propriamente dito, pode levar a decisões autocentradas e ter conseqüências sociais negativas.

Ainda mais incisivo foi o filósofo alemão Hegel, que disse: “O que os ingleses chamam de ‘conforto’ é algo inexaurível e ilimitável.” Hegel concluiu que “a necessidade de cada vez mais con­forto não surge diretamente na pessoa, mas é sugerida por aqueles que esperam tirar proveito de sua criação”.9 Vafle notar que, tal como Freud, Hegel enfatizou não o conforto em si, mas a “neces­sidade de conforto”. Hegel sugeriu que a necessidade de conforto é uma ilusão, do tipo alimentado hoje pelos gurus da propaganda das grandes lojas. Assim como o vício de tomar café, por exemplo, *Tradução livre. (N. da T.) [57] para Hegel, um desejo pode ser inócuo, mas não é natural nem saudável.

Em nossa era, mais moderna, a industrialização traz conforto e conveniência em proporções sem precedentes. Em um estudo do ritmo de vida, o psicólogo Robert Levine e seus colegas encontra­ram uma relação entre o PIB e o ritmo de vida acelerado.10 Levine mediu a rapidez com que as pessoas andam, a rapidez com que os carteiros cumprem sua tarefa básica, e o grau de exatidão dos re­lógios públicos para avaliar o ritmo relativo de vida de socieda­des. Não só a riqueza nacional está associada a um ritmo de vida mais rápido, como o ritmo de vida mais rápido está associado a uma taxa mais alta de consumo de energia. Pensemos em carros, eletrodomésticos, aquecedores de água - todos são artigos relacio­nados à conveniência e ao conforto. Mas aí vem o outro lado: um ritmo de vida mais acelerado está relacionado a taxas menores de empreendimentos e poupança financeira. Quanto mais artigos de conveniência as pessoas têm, menos se dão ao trabalho de ter autocontrole nos gastos. Vejamos o exemplo da frustração. Em lu­gares onde tudo é feito com rapidez, as pessoas acham intolerável a espera numa fila ou no trânsito. Em outras palavras, quanto mais confortável é sua vida, menos paciente você é diante do que julga ser um problema.

Embora este livro seja basicamente sobre conforto psicológi­co, vamos nos deter um momento para dizer que existe uma rela­ção direta entre conforto físico básico (em psicologia, chamamos de “sensações confortáveis”) e confortos psicológicos mais com­plexos (que seriam o que chamamos de “estados emocionais”). Afi­nal, estamos todos presos a essa existência física pelo corpo. O corpo é uma membrana, por assim dizer, entre os eventos do mundo e a pessoa que entendemos [58] como “si mesmo”. O corpo age como uma espécie de termos­tato - muitas vezes, literalmente - por meio do qual vivenciamos os confortos e desconfortos do mundo. Pesquisadores observaram que todo mundo tem uma gama específica de adaptação às condi­ções do ambiente, o que inclui odores, ruídos, temperatura. É por isso que você não nota como seu escritório é refrigerado até sair em pleno calor do verão lá fora. O impulso para ter conforto físico é normal, e sua capacidade natural de se adaptar é parte desse impulso.

Talvez você se surpreenda ao saber que a repugnância fornece um exemplo perfeito de como as sensações físicas e psicológicas podem se entrelaçar. O nojo é uma sensação que nos leva a evitar coisas nocivas, como alimentos estragados. Pesquisadores usam testes extremamente criativos para medir a sensibilidade à repug­nância. Já fizeram os participantes assoarem o nariz em um rolo de papel higiênico, tomar suco de laranja num urinol, e obser­varam se conseguiam chegar perto de uma cabeça de porco decepada. Há também um tipo mais psicológico de repugnância, conhecido como “repugnância moral”. As pessoas tendem a evitar se deitar numa cama em que dormiu um assassino, da mesma for­ma que evitam uma poça de vômito. Têm tanta relutância em vestir um suéter que pertenceu a Hitler quanto a comer um cho­colate com formato de cocô de cachorro. Vê-se que a sensibilidade à repugnância está diretamente relacionada ao senso de conforto, principalmente quando se trata do mundo natural.

Os pesquisadores Robert Bixler e Myron Floyd ficaram curio­sos para investigar sua hipótese de que a gama de conforto das pes­soas foi se tornando mais restrita ao longo dos anos.12 Quando perguntaram a centenas de crianças em idade escolar como se sen­tiam em relação à natureza, crianças medrosas e com repugnâncias [59] disseram preferir passar a hora do recreio em ambiente fechado ou, se um adulto detestável as obrigasse a ir para o ar livre, prefe­riam passear em parques bem cuidados. Em seguida, apresenta­ram às crianças frases com uma escala do quanto sentiriam falta de conforto se passassem uma semana inteira ao ar livre, numa “simulação” de acampamento de pioneiros na colonização do Te­xas. “Eu não sentiria nenhuma falta” teve zero na escala. “Eu não poderia viver sem conforto” obteve 4. A média para banho de chu­veiro ou banheira foi 3; descarga no banheiro, 2,63; água quente, 2,69; e ar-condicionado, 2,66. É claro que os verdadeiros colonizadores do Texas viviam muito bem sem ter nada disso. Fomos ficando gradualmente mais frouxos desde o tempo em que os pioneiros atravessavam os Estados Unidos em carroções até o advento de poltronas reclináveis e jogos Playstation. O que consideramos conforto se tornou cada vez mais limitado.

Vale notar que esse estudo das atitudes de crianças com rela­ção ao conforto foi publicado em 1997, e foi nos anos 1990 que o vício do conforto deslanchou. Não se questiona que a geração que enfrentou a Grande Depressão de 1929 e a Segunda Guerra Mun­dial - chamada de Greatest Generation - foi capaz de lidar com adversidades. Apesar do progresso da economia nos anos após a Segunda Guerra Mundial, as décadas de 1950,1960 e 1970 foram definidas basicamente pelo movimento de direitos civis, com hip­pies protestando contra o sistema e questionando a Guerra do Vietnã. Quando Ronald Reagan assumiu a presidência, em 1981, o clima social e econômico amainou, culminando com a passagem do governo para Bill Clinton, em 1990. Aqui começamos a ver o drástico aumento da classe confortável, e ouviu-se pela primeira vez a expressão comfort food, numa indicação óbvia de que nossa relação com as necessidades básicas estava mudando. [60]

Hoje, décadas depois, no contexto da Primavera Árabe e das guerras no Iraque e Afeganistão, é difícil recordar o quanto os anos 1990 foram uma época singular. Para quem viveu os tempos dos movimentos de protesto dos anos 1960, da crise de gasolina e dos reféns nos anos 1970,1980 e especialmente os 1990, foi uma época muito diferente. Havia um sentimento de que o mundo es­tava ficando melhor. Após décadas de injustiça institucionaliza­da, o apartheid na África do Sul ruiu. A União Soviética, rival por excelência dos Estados Unidos no palco mundial, espatifou. Co­mo se fosse preciso ter mais provas de seu poderio militar, os Es­tados Unidos derrubaram a máquina militar de Saddam Hussein em uma semana. A bolsa de valores norte-americana subia à estratosfera, e a internet se tornava um novo motor global da criati­vidade e das finanças. Em suma, tudo parecia muito confortável nos Estados Unidos, como nunca se vira em toda a história da humanidade.

As expectativas subiram na mesma medida da maré econômi­ca e política. A felicidade passou a ser vista, não como um objeti­vo desejável, mas como um imperativo moral. Até Shigehiro Oishi - do estudo sobre Jesus, já mencionado - e seus colegas usaram o Google para buscar exemplos da pessoa feliz em livros norte-ame­ricanos de 1800 a 2008.13 Como se pode imaginar, os autores de 1800 e início de 1900 ignoravam essa expressão. Só depois, nos Loucos Anos 20 (the Roaring Twenties), os livros começaram a fa­lar da pessoa feliz, um fenômeno que veio num crescendo e che­gou ao auge na década de 1990, quando dificilmente alguém saía de uma livraria sem comprar um livro que tivesse essa expressão. Nos anos que se seguiram, o uso do termo pessoa feliz não caiu mui­to. De 1990 a 2008, o número de referências à “pessoa feliz” foi [61] igual ao dos cinqüenta anos precedentes. As normas sociais estavam claramente a caminho.

Foi no início dos anos 1990 que a primeira lei de “morte com dignidade” foi promulgada nos Estados Unidos. Em essência, a lei admite a morte planejada de pessoas com enorme desconforto físico ou perda de dignidade, o que é também uma forma de des­conforto mental. Essa lei, independentemente do que você pensa a respeito, reflete uma sociedade que chegou a tal extremo para satisfazer as necessidades básicas que é possível marcar a hora e o modo da morte de uma pessoa. Foi também no início dos 1990 que ouvimos pela primeira vez a expressão zona de conforto - uma ga­ma de experiências muito familiares, que geram a sensação de estar à vontade - no contexto do mundo dos negócios. Um texto sobre negócios aconselha explicitamente os empresários a manterem seus empregados fora da zona de conforto.

A cereja do bolo de conforto é possivelmente a maior invenção confortável de todos os tempos. Nos anos 1960, cientistas da NA­SA criaram uma tecnologia para diminuir o desconforto dos as­tronautas no lançamento e no espaço. Mas somente em 1991 essa tecnologia foi colocada no mercado, ao alcance dos civis: a espu­ma de memória foi lançada na forma dos colchões, almofadas e travesseiros mais confortáveis na face da Terra. Especialistas em marketing concluíram que, durante os anos 1990, as pessoas estavam dispostas a pagar preços exorbitantes por uma cama que se adaptava perfeitamente às suas dimensões: a última palavra em termos de sono confortável. Como se colchões de mola ou de água não fossem confortáveis o suficiente, tínhamos agora um mate­rial que se amoldava de maneira a nos sentirmos repousados até nos menores contornos do corpo. Após 200 mil anos, os humanos [62] podiam finalmente dormir do modo como - supostamente - me­reciam.

Pesquisadores observam que, à medida que ficamos mais con­fortáveis, há uma queda em nossa saúde psicológica. A ansiedade, especialmente, parecia estar em ascensão. Em 1996, pela primeira vez na história, as clínicas das faculdades começaram a receber alunos queixando-se de ansiedade com maior frequência do que de depressão e problemas relacionados, e essa tendência perma­nece até hoje.14 Em consonância, os anos 1990 viram uma peque­na alta de agressão no trânsito nos Estados Unidos. Em estatísticas coletadas para a AAA Foundation for Traffic Safety, o número de incidentes agressivos no trânsito passou de 1.129 em 1990 para 1.708 em 1995, um aumento de 50%.15 A capacidade dos norte-americanos para tolerar pequenas frustrações nas horas de rush e entender que uma fechada no trânsito não era um insulto pes­soal estava diminuindo. Durante os anos 1990 foram registrados mais de 10 mil incidentes agressivos em que duzentas pessoas morreram e 12 mil foram feridas. Nos anos 1990, a vida era tão boa que as pessoas às vezes não sabiam o que fazer quando algu­ma coisa saía dos trilhos.

Mais importante ainda, em meados dos anos 1990 surgiu um termo agourento relativo ao conforto psicológico. A medida que as pessoas dormiam melhor, desfrutando de mais objetos de con­veniência e contando com uma felicidade cada vez maior, iam se adaptando a uma vida sem muitas provações e dificuldades. Foi então que o termo evitação experiencial entrou no léxico da psico­logia.16 A evitação experiencial pode ser definida como a tentativa de recalcar pensamentos e sentimentos indesejados, de se escon­der deles tão ativamente que sobra pouca energia para estar pre­sente no correr da vida. Sim, foi a primeira vez que as pessoas tiveram [63] escolhas, liberdade e possibilidades suficientes para evi­tar as coisas - muitas coisas. E evitaram. Principalmente as emo­ções. O crescente desconforto diante de dúvidas, tédio e emoções negativas produziu mudanças mensuráveis. Uma estratégia de escape comum, por exemplo, é ver televisão. O entretenimento proporcionado pela televisão é inquestionável, mas se alia à fun­ção de nos afastar das questões do cotidiano. Entre os anos 1950 e 1970, a média de tempo de assistir à televisão numa casa era de cinco a seis horas por dia. Nos anos 1980 e 1990, esse número su­biu para sete horas e meia por dia.17

É possível evitar o que está dentro de você?

O recurso principal de profissionais de saúde mental para diag­nóstico e tratamento é o Diagnostic and Statistical Manual of Men­tal Disorders, mais conhecido como DSM. Em 1980, o DSM era um livro de peso, com 494 páginas e 265 doenças mentais adicio­nadas. Em 1994, era um monstro com o dobro do tamanho, 886 páginas e mais 32 doenças mentais classificadas. Os profissionais de saúde pareciam concordar que sentir muita tristeza, muita an­siedade, raiva muito freqüente ou muito intensa, e se defrontar com pensamentos complicados eram sinais de doença. O DSM classifica muitos problemas legítimos, como a esquizofrenia, mas é difícil aceitar a noção de que sentir tristeza durante duas semanas ou mais num grau que interfere com o trabalho ou os relacionamentos é um problema clinicamente significativo. Mas a população em geral captou a mensagem: o sofrimento é ruim, e os profissionais de saúde mental podem ajudar a evitar. Mas como evitar o que está dentro de você? [64]

Os líderes da American Psychological Association tiveram boas razões para eleger dr. Albert Ellis o “segundo psicólogo mais im­portante no século XX” (um lugar à frente de Sigmund Freud e atrás somente de Carl Rogers).18 Ellis lançou a ideia de que alguns comportamentos não podem ser controlados pelo pensamento racional. Fundador da terapia cognitivo-comportamental (TCB), Ellis identificou três crenças disfuncionais importantes na cons­trução direta do sofrimento e do comportamento destrutivo:

  1.  “Preciso fazer tudo bem e obter a aprovação dos outros para ser aceito. ”
  2. “Os outros precisam fazer ‘o que é certo’, se não, não são bons.”
  3. “A vida tem que ser fácil, sem desconforto e inconveniências.”

Nos anos 1950 e 1960, essas idéias eram revolucionárias. Em vez de atribuir a conflitos não resolvidos na infância ou a eventos traumáticos as causas de dificuldades psicológicas, Ellis propu­nha que os problemas se originam nas crenças adotadas pelas pes­soas sobre si mesmas, os outros e o mundo ao seu redor. Ellis não só articulou o problema, mas criou um sistema em que o terapeu­ta pode ajudar o cliente a identificar e questionar suas crenças pessoais. Seu método é eficaz, reprodutível, e teve grande desta­que na psicoterapia durante décadas. Renomeada em 1990 como “otimismo aprendido” pelo dr. Martin Seligman, fundador da psi­cologia positiva, a ideia de Ellis é ensinar as pessoas a reduzir o sofrimento emocional que sabota a felicidade.19 Apesar de todo o seu mérito, essa é uma extensão lógica do vício do conforto fí­sico. Se as condições físicas não são do nosso agrado, tentamos modificá-las até que o sejam. Da mesma forma, se nosso ânimo [65] e nossas lembranças nos deixam infelizes, devemos modificá-los até que sejam menos incômodos.

Essa ideia enfrentou desafios durante trinta anos. Depois, al­guns hippies expostos ao movimento do potencial humano e a fi­losofias orientais nos anos 1960 cresceram, se tornaram psicólogos e lançaram uma nova forma de terapia conhecida como terapia da aceitação e compromisso, ou ACT20. Os doutores Steven Hayes, Kelly Wilson, Elizabeth Gifford, Victoria Follette e Kirk Strosahl trouxeram questões novas e provocativas. E se os terapeutas esti­vessem usando o critério errado para determinar o que é normal e anormal? E se o foco na intensidade e negatividade dos pensa­mentos, sentimentos e comportamentos não fosse o melhor indi­cador de saúde mental? E se, em vez disso, víssemos o que as pessoas fazem com esses pensamentos, sentimentos e comporta­mentos? Esse grupo de pesquisadores observou que, quando as pessoas têm um sofrimento psicológico, elas agem da mesma for­ma que as pessoas que têm um sofrimento físico. Quando você torce o tornozelo, por exemplo, tende a restringir o uso da perna. O mesmo se aplica a uma adversidade mental. Quando um amigo ou namorado fere seus sentimentos, você restringe a amizade, in­teragindo menos. Quando as emoções se intensificam, você as evi­ta assistindo à televisão, dormindo ou tomando cerveja.

A alternativa a mudar ou evitar pensamentos, lembranças, sensações e sentimentos dolorosos é aprender que você pode su­portar o desconforto psicológico, da mesma maneira que suporta o desconforto físico de dar uma caminhada numa tarde de chuva. Pode não ser a sua preferência, mas não há dúvida de que você po­de. Imagine como será libertador aproveitar a vida sem que pensa­mentos e sentimentos indesejáveis sejam inimigos contra os quais temos que lutar, e conseguir vencer. Imagine que esses pensamentos [66] e sentimentos sejam como uma música de fundo tocando no rádio. Eles estão sempre lá, mas podemos prestar muita ou pouca atenção. A premissa central da ACT é que você carrega os pensa­mentos e sentimentos difíceis lá dentro. Você os observa, mas eles e você não são a mesma coisa.

Vale repetir: você não é suas experiências psicológicas, ainda que elas possam afetar você. Pode soar esquisito - até mesmo ra­dical - sugerir que você não é a mesma coisa que seus pensamen­tos e sentimentos. Você não é os pensamentos desconfortáveis em sua cabeça - nem os sentimentos que eles despertam - justamente porque você pode observá-los. Seja quem ou o que for o observa­dor - o self, a personalidade, a alma, chame como quiser - está, por definição, separado desses sentimentos, e o fato de que você pode observá-los é prova disso. Quando você reconhece que esse observador está separado do sofrimento, pode conseguir tolerar melhor o sofrimento.

A maioria dos nossos problemas não advêm dos pensamentos e sentimentos indesejáveis, como Ellis sugeriu, mas da relutância em abordá-los. Vale dizer que, quando se trata da ansiedade, há um só problema subjacente: a evitação.21 Um rápido olhar no mais recente DSM mostra que existem vários tipos de distúrbios de ansiedade, desde a ansiedade social até a ansiedade pós-traumática e ao distúrbio de pânico. Cada um desses tipos é uma forma legítima de sofrimento, mas todos têm um denominador comum. Quando você acha que está sendo rejeitado ou que suas falhas de caráter poderão ser expostas, é compreensível que tente evitar a ansiedade. Infelizmente, em vez de acalmar, evitação da ansieda­de tem o efeito oposto, e só a intensifica no correr do tempo.

Muitos terapeutas bem sabem que os clientes geralmente têm problemas emocionais secundários. A pessoa pode se sentir culpada, [67] por exemplo, e se culpar por se sentir culpada! Ou se sentir deprimida e ter raiva de estar deprimida. A mesma coisa acontece com a ansiedade. A pessoa se sente ansiosa com certas situações, e a tensão é agravada pelo medo de ficar ansiosa. Imagine como a vida seria mais fácil se a pessoa conseguisse remover essa segunda camada de problema mental simplesmente se sentindo forte o su­ficiente para suportar a ansiedade.

Essa noção, de ter uma atitude mais rija a respeito de estados internos, é importante. Desenvolver a tolerância a estados psico­lógicos mais desafiadores não só nos ajuda enquanto indivíduos, mas também, em longo prazo, é bom para a sociedade. Isso porque o vício do conforto não é um incômodo apenas individual. Em termos coletivos, é um legado para nossos filhos.

Vício do conforto: o legado para nossos filhos 

Na sociedade moderna muito se tem escrito sobre os vários males que podem afetar nossos filhos. Obesidade. Bullying. Videogames. Mensagens eróticas enviadas por celular. Uso de drogas. Gravidez indesejada. Doenças sexualmente transmissíveis. Violência. Não passar de ano. Piruetas de skate. A lista de perigos cai nos ouvidos dos pais como uma avalanche e, num surto de protecionismo bem-intencionado, corremos a salvá-los como nunca antes. Em meados da década de 1980, as pessoas começaram a colocar o ade­sivo de Bebê a Bordo nos carros, como aviso para outros motoris­tas e um modo de evocar um mundo mais seguro. Não vivemos mais numa era centrada nos adultos, em que as crianças deviam ser vistas, mas não ouvidas. Atualmente, as crianças são o ponto [68] focal, e os pais agem como uma espécie de segurança privada para assegurar seu bem-estar.

De fato, nos últimos trinta anos os pais vêm ficando cada vez mais preocupados com segurança. Hoje usamos ameaças e recom­pensas, por exemplo, o que era raro nos anos 1950, 60 e 70 nas relações com os filhos. Pesquisadores de atitudes parentais obser­varam que hoje em dia os pais tendem muito mais a organizar as atividades dos filhos e a direcioná-los para essas atividades. As pesquisadoras australianas Trine Fotel e Thyra Thomsen se inte­ressaram em saber se essas taxas mais altas de direcionamento seriam devidas a outros fatores, como distâncias mais longas para a escola.22 Elas constataram que aproximadamente 55% a 60% do aumento da prática de levar os filhos de carro para a escola estão diretamente relacionados ao receio de riscos. Apesar de estatísti­cas mostrarem uma diminuição de acidentes envolvendo bicicletas de crianças, os pais têm mais medo de deixar os filhos dividirem as ruas com os carros.23 Após se queixar das condições perigosas do trânsito, uma mãe concluiu:

Foi um problema para ele eu não ter ensinado como proceder [de bicicleta] no trânsito. Somente quando vi o quanto os co­legas riam dele porque sempre chegava à escola de carro, foi que percebi como isso o afetava. Precisei tomar uma atitude, e ele se revelou muito bom na bicicleta.24

Uma das mudanças mais óbvias nas atitudes dos pais ocorreu nos playgrounds. Poucas décadas atrás, os playgrounds das esco­las eram cheios de brinquedos de madeira, mas tábuas apodreci­das e farpas em abundância levaram pais e diretores de escolas a trocá-los por brinquedos de metal e plástico.

Em um estudo recente [69] sobre segurança em playgrounds, Anita Bundy e seus cole­gas colocaram na área do play objetos soltos, sem finalidade, como caixas de papelão, tambores de plástico, fardos de feno, pneus de carros e pedaços de canos.25 Na coleta de dados sobre as atitudes das crianças e dos professores-supervisores, os pesquisadores vi­ram que o equipamento menos estruturado provocou uma série de mudanças. Primeiro, as crianças demonstraram um aumento sig­nificativo de atividades físicas vigorosas. Segundo, os supervisores se preocuparam mais. Os professores-supervisores elogiaram mui­to o aumento substancial de brincadeiras criativas, de socializa­ção, e a diminuição da agressividade. Sendo assim, se os materiais dos playgrounds das escolas antigas trouxeram tantos benefícios tangíveis, por que eles ficaram preocupados? Os pesquisadores relataram que a preocupação maior foi com o risco de as crianças se machucarem e eles sentiam ter a responsabilidade de impedir.

O ambiente das escolas parece ser tão aterrorizante que pais adentram as salas de aula para ajudar a proteger os filhos contra perigos psicológicos em potencial, como bullying, problemas de autoestima, de aceitação, ou ficar para trás nos estudos. A isso, a socióloga Catharine Warner chama de “salvaguarda emocional”, mas nós chamamos de “helicóptero parental”.26 É interessante no­tar que essas intromissões são mais comuns entre pais de classe média, ou seja, são mais freqüentes entre aqueles que estão mais confortáveis. Numa análise dessa tendência parental, Warner con­clui que pais bem-intencionados têm desejos conflitantes com rela­ção aos filhos. Por um lado, querem que os filhos tenham desafios intelectuais e, por outro lado, querem que sejam felizes, popu­lares, compreendidos, psicologicamente confortáveis. É como se nós, pais, coletivamente, não pudéssemos ver que esses mesmos desafios, frustrações e fracassos aceitos por nós como estimulantes [70] para o crescimento acadêmico de nossos amados rebentos são também necessários ao desenvolvimento psicológico deles.

Aqui está a atitude de conforto, muito bem resumida num co­mentário feito pela mãe de uma aluna do primeiro ano que parti­cipou do estudo de Warner:

Queremos que ela esteja num lugar onde sinta segurança, on­de sua autoestima seja realmente estimulada, e não espezi­nhada. Penso que essa é nossa maior preocupação. E também, é claro, queremos que ela esteja num lugar em que seja bem acolhida e educada, mas que ao mesmo tempo seja devidamente exposta a desafios.

Se você tem 30 anos ou mais, temos certeza de que seus pais jamais disseram algo parecido com isso numa reunião de pais e professores. Em vez disso, devem ter olhado nos olhos da profes­sora e perguntado algo do tipo: “Como ela está em matemática?” Não que o jeito antigo fosse áspero, ou que somente agora tenha­mos aberto os olhos para o bem-estar das crianças. Acontece que os pais modernos entenderam muito mal a diferença. Vemos peri­go em toda parte. Aqui está o outro lado da história, visto por uma professora do primeiro ano, muito elogiada por pais de alunos, que também participou da pesquisa de Warner:

Os pais vivem dizendo: “Ah, meu filho fica muito ansioso quando vem à escola, ele não quer vir à escola.” Mas, na ver­dade, quando a criança chega aqui, fica ótima. Eu acho que talvez os pais é que fiquem ansiosos quanto a alguma coisa, e a criança adota esse sentimento. [71]

Ela resumiu a situação. O mundo parece perigoso. Sem dúvi­da, existem perigos reais à nossa volta, mas adotamos uma visão de mundo coletiva que amplifica os perigos reais. No que concerne aos nossos filhos, se insistirmos numa criação muito antisséptica, eles estarão mal preparados para as intempéries da adolescência e da idade adulta. Em vários aspectos, os pais modernos estão cegos para os diversos benefícios dos desafios. Não se preocupe, não es­tamos apontando o dedo para você; estamos prontos a reconhecer nossa parte da culpa. Pode ser tão fácil aceitar a ideia de que o de­safio intelectual é uma parte vital da educação quanto pode ser difícil aceitar o fato de que o desafio é igualmente benéfico para o desenvolvimento social e emocional.

Qual é a alternativa?

Para conhecer de perto uma realidade alternativa - um mundo em que estados negativos são tolerados - você tem de viajar para a Ásia. Pessoas de origem asiática são frequentemente chamadas de “coletivistas”, porque sua unidade social básica é o grupo e não o indivíduo.27 Os coletivistas tendem mais a refrear seus próprios desejos, se isso contribuir para o bem do grupo. Tendem mais a querer se adaptar do que se destacar. Tendem mais a se ver como seres de identidade fluida, e não de características estáveis trans­feridas de uma situação a outra. O lendário psicólogo social Ro­bert Wyer resumiu da seguinte maneira:

O individualista acha que, se alguém o convida para jantar, ele deve retribuir, convidando a pessoa para jantar algum tempo [72] depois. O coletivista, por sua vez, pode achar que, se uma pes­soa o convida para jantar, ele deve convidar alguém, qualquer pessoa, para jantar algum tempo depois. [28]

Correndo o risco de certo exagero, dizemos que os asiáticos têm uma relação com suas experiências emocionais de um modo muito diferente do ocidental. Por exemplo: se você perguntar a um caucasiano norte-americano ou canadense “Você está feliz?”, ambos farão um rápido cálculo interno. Provavelmente, estarão vasculhando seu próprio estado de espírito momento a momento, e uma olhadela no estado interior produzirá uma resposta preci­sa. Se essa mesma pergunta for feita a uma mulher sul-coreana, por exemplo, ela provavelmente colocará o mesmo peso em sua experiência interna e nas normas culturais para saber como ela deve se sentir naquela determinada situação. [29]

Pesquisadores descobriram diferenças culturais interessantes no modo como as pessoas preferem se sentir.30 Os asiáticos, por exemplo, tendem mais a desejar emoções positivas de baixa in­tensidade, como paz, harmonia, contentamento e calma. Em con­traste, os ocidentais tendem mais a desejar emoções positivas de alta intensidade, como entusiasmo, alegria e orgulho. Ou seja, os norte-americanos gostam de estar agitados e essa tendência emo­cional é autoestimulante. Num estudo conduzido por nós, exami­namos as experiências emocionais de pessoas de várias culturas.31 Vimos que a intensidade do prazer afeta as recordações que os norte-americanos têm de suas experiências emocionais; eles asso­ciam lembranças de sensações mais prazerosas às ocasiões em que tiveram sensações mais intensas. Essa particularidade não se apli­ca aos japoneses em suas recordações. [73]

As diferenças entre orientais e ocidentais são especialmente pronunciadas quando se trata de experiências psicológicas negati­vas, e a maior diferença entre as relações emocionais se refere à re­pressão. Em termos psicológicos, a repressão tem raízes na teoria freudiana de mecanismos de defesa, uma manobra mental que as pessoas empregam para manter o sofrimento emocional afastado. Reprimir (esquecer) experiências más e recorrer ao humor para rir da adversidade são exemplos de mecanismos de defesa. Re­primir significa recalcar, ou empurrar para baixo, a experiência. Muitos ocidentais se prendem ao estereótipo do asiático reprimi­do porque, tipicamente, é difícil saber o que eles estão pensando. Isso acontece porque, em geral, as culturas coletivistas preconizam o hábito de manter uma expressão impassível para atuar no meio social. Mas se os asiáticos são mais propensos a reprimir a expres­são da emoção, não é assim que reagem à verdadeira experiência da emoção. O fato é que os asiáticos tendem a tolerar muito bem as experiências emocionais desagradáveis. Estudos mostram que, ao contrário dos ocidentais, quando eles têm períodos de tristeza ou rompantes de irritação, não tentam buscar uma distração ou apelar para o humor.

Essa tendência pode ser vista na maneira como os norte-ame­ricanos e as pessoas de cultura asiática diferem quando estão de­primidos. Você, como praticamente todo mundo que conhece, tem uma noção intuitiva do que é a depressão. Talvez você já tenha estado deprimido. Seja como for, você sabe que a depressão inclui tristeza, falta de energia, incapacidade de aproveitar a vida, e às vezes problemas de sono, falta de cuidados corporais e de concen­tração. Em casos extremos pode apresentar pensamentos de suicí­dio e sentimento de desesperança. Muitos ocidentais lidam com esses sentimentos opressivos usando alguma estratégia de amortecimento [74] para evitá-los, que pode incluir abuso de drogas ou exces­so de sono. Os asiáticos não costumam adotar essa estratégia.

Em um estudo, os pesquisadores exibiram um trecho de um filme engraçado a norte-americanos e a descendentes de asiáticos, todos deprimidos.32 Os asiáticos riram e sorriram diante das cenas cômicas, e os norte-americanos, não. Em outro estudo, norte-ame­ricanos deprimidos reagiram apenas com mutismo diante de um filme triste. Os asiáticos deprimidos mostraram mais tendência a chorar. Ao que parece, os norte-americanos desligaram um botão de sentimento, enquanto os asiáticos sentiram fortemente a emo­ção. Em suma, os asiáticos parecem ficar mais confortáveis com sentimentos desagradáveis, e é aqui que talvez possamos nos be­neficiar de examinar mais detidamente esse fenômeno.

Vê-se que a tendência cultural a se aproximar ou se afastar de estados psicológicos negativos é aprendida. É estranho pensar que seus sentimentos lhe foram ensinados da mesma maneira que a língua materna, mas é exatamente o que acontece. Esse ponto foi ilustrado brilhantemente numa série de estudos conduzidos por Jeanne Tsai, da Universidade de Stanford, e seus colegas.33 Os pes­quisadores listaram os livros infantis mais vendidos publicados nos Estados Unidos e em Taiwan em 2005. Uma análise detalhada das ilustrações mostrou que os livros norte-americanos apresenta­vam sorrisos mais largos, expressões faciais mais animadas e mo­vimentos mais exuberantes. Em um estudo de acompanhamento, Tsai e colegas leram separadamente para crianças norte-america­nas e taiwanesas, e logo após as crianças foram escolhidas aleato­riamente para ouvir a versão agitada, americana, de uma história sobre nadar numa piscina (mergulho bala de canhão!) ou a versão mais calma, taiwanesa, da mesma história (boiando suavemente). [75]

Depois, apresentaram às crianças uma série de atividades lú­dicas, cada qual com uma versão agitada e outra mais calma. Uma das perguntas foi: “Você prefere tocar um tambor rápido, BUM-BUM-BUM, ou um tambor lento e suave, tap-tap-tap?” Independentemente da origem cultural, as crianças que haviam sido expostas à história agitada preferiram as atividades mais agita­das. Quantas histórias você leu para seus filhos mostrando a capa­cidade de um personagem tolerar emoções negativas? Devemos reconhecer que o dr. Seuss abordou esse tema em vários livros, in­clusive I Had Trouble in Getting to Solla Sallew, mas ele parece ser exceção. Livros sobre tolerância à negatividade são muito mais comuns na Ásia. Os norte-americanos, em contraste, brindam as crianças com aniversários animados, refeições alegres e finais fe­lizes, mas não há tristeza e pesar nos intervalos. Pais e educadores interessados podem ver aqui uma oportunidade de usar materiais educativos e interações sociais do cotidiano para ensinar os filhos a tolerar o desconforto.

Não pretendemos romantizar a cultura asiática. De fato, várias pesquisas sugerem que os asiáticos tendem a evitar saborear expe­riências positivas.34 Talvez vejam as condições num fluxo contínuo e portanto tenham mais cautela, ao invés da avidez dos norte-ame­ricanos pelos momentos positivos. Seja qual for a dinâmica psi­cológica envolvida, os asiáticos parecem sacrificar um pouquinho da felicidade e tolerar melhor as emoções desagradáveis. Nossa intenção aqui é enfatizar a real possibilidade de que os norte-ame­ricanos e outros povos ocidentais consigam largar o vício do con­forto e a intolerância psicológica que o acompanha.

Se as sociedades ocidentais puderem se abrir para um pouqui­nho mais de perigo, uma lasquinha a mais de risco, um tiquinho a mais de adversidade e até um bocadinho de fracasso, poderão [76] recuperar um pouco da robustez mental que anda de mãos dadas com essas experiências. É claro que não estamos recomendando que você jogue seu ar-condicionado pela janela, atire longe seu smartphone e arranque as descargas dos banheiros. Não estamos encorajando ninguém a deixar os filhos brincarem em lugares pe­rigosos, nem a sair correndo para comprar livrinhos taiwaneses a fim de estimular a tolerância dos filhotes aos estados negativos. Ainda assim, algumas mudanças são necessárias se quisermos criar pessoas mais firmes, mais preparadas psicologicamente. Sa­bendo que é sempre difícil empreender uma mudança importan­te, encorajamos você a dar um pequeno passo de cada vez para conhecer os benefícios do desconforto emocional, os resultados positivos de estados cognitivos complicados, e aprender a expan­dir os horizontes, por meio da tolerância, ao lidar com situações sociais mais exigentes.

O Santo Graal da Psicologia

É tentador pensar na psicologia moderna como sinônimo de psicoterapia. Os filmes que mostram psicólogos geralmente os re­tratam como terapeutas e raramente, se é que alguma vez, como pesquisadores. Existe alguma verdade nesse estereótipo: dos 175 mil psicólogos nos Estados Unidos, bem mais da metade são tera­peutas com mestrado ou doutorado. Os demais são, mais ou menos, pesquisadores, professores ou consultores. Dado que uma parte tão grande da psicologia é hoje voltada para o estudo e tratamento de depressão, ansiedade e outros problemas mentais prevalentes, é fácil ignorar o simples fato de que a ciência da psicologia se con­centra há muito tempo em otimizar o funcionamento humano. [77]

A psicologia é uma ciência relativamente jovem. Em seus primórdios, tentando se firmar como uma ciência empírica legítima, médicos como Hermann von Helmholtz trabalharam no sentido de uma compreensão confiável das funções humanas básicas. Ele conseguiu, por exemplo, computar a velocidade de impulsos elé­tricos nervosos atravessando o corpo (27,43 metros por segundo).35 Na virada do século XX, os psicólogos mudaram o foco: em vez de tentar entender como as pessoas funcionam, passaram a tentar en­tender o que as faz funcionar bem. Muitos dos maiores intelectos do século XX se concentraram em descobrir como o ser humano evolui. Sigmund Freud e William James, para tomar dois exemplos proeminentes, abusaram de palavras como integração, desenvolvi­mento e salutar. Eles acreditavam que os humanos são diferentes dos animais, dado que, coletivamente, podemos transcender nos­sa natureza e fazer planejamentos para um futuro que podemos alcançar (e nos distanciar de situações muito incômodas).

Depois da Segunda Guerra Mundial, a psicologia desviou o foco da saúde psicológica para a doença psicológica. Palavras co­mo “potencial” foram substituídas por “sintoma” e “distúrbio”. Em vista de legiões de soldados retornando do front com depres­são e traumas, era de esperar que a psicologia criasse tratamentos mais eficazes contra esses males. Essa tendência permanece - mais ou menos - até hoje. Mesmo assim, houve quem conduzisse aos aspectos positivos da psicologia, acadêmicos muito enamora­dos de tópicos positivos como generosidade, resiliência, confiança e perdão, em vez de focalizar apenas a doença mental. Nos anos 1950, 60 e 70, Abraham Maslow, Carl Rogers e outros humanistas reacenderam o interesse pelo potencial humano. Mais recente­mente, psicólogos - nós entre eles - voltamos a atenção para aspectos mais solares da natureza humana. [78] O momento de retomada desses tópicos se encaixou muito bem numa nova onda de prosperidade. O desenvolvimento econô­mico dos anos 1970, 80 e 90, como já mencionamos, gerou nos norte-americanos uma mudança de foco, elegendo o conforto e o sucesso. O excesso de conforto debilitou o vigor norte-americano, mas o objetivo geral de ser bem-sucedido impulsionou as crescen­tes pesquisas da psicologia positiva. Sugerimos que esses dois pon­tos do interesse - o potencial humano e o manejo do lado obscuro da humanidade - não precisam ser conflitantes. A fusão desses dois temas nos dá um acesso pleno à complexidade do que significa ser humano.
 

Psicologia - Psicologia positiva
7/30/2021 1:47:24 PM | Por Ana Mercês Bahia Bock
As faces da violência

O ser humano é agressivo. Essa afirmação pode causar estranheza porque sempre conhecemos alguém que é muito “bonzinho”, “incapaz de fazer mal a uma mosca”. Nesse caso, avalia-se a agressividade exclusivamente por suas manifestações: o comportamento. E a pessoa “incapaz de fazer mal a uma mosca” é considerada como não-agressiva, como não tendo nenhuma hostilidade dentro de si, nenhum impulso destrutivo na sua
relação cora as coisas e com os outros.

Para superarmos a estranheza que a afirmação inicial causa, é necessário compreender que a agressividade é impulso que pode voltar- se para fora (heteroagressão) ou para dentro do próprio indivíduo (auto-agressão). Mas ela sempre constitui a vida psíquica, enquanto fazendo parte do binômio amor/ódio, pulsão de vida/pulsão de morte (ver capítulo 4).

A agressividade sempre está relacionada com as atividades de pensamento, imaginação ou de ação verbal e não-verbal. Portanto, alguém muito “bonzinho” pode ter fantasias altamente destrutivas, ou sua agressividade pode manifestar-se pela ironia, pela omissão de ajuda, ou seja, a agressividade não se caracteriza exclusivamente pela humilhação, constrangimento ou destruição do outro, isto é, pela ação verbal ou física sobre o mundo. [pg. 330]

A educação e os mecanismos sociais da lei e da tradição buscam a subordinação e o controle dessa agressividade. Assim, desde criança o ser humano aprende a reprimir e a não expressá-la de modo descontrolado, ao mesmo tempo em que o mundo da cultura cria condições para que o indivíduo possa canalizar, levar esses impulsos para produções consideradas positivas, como a produção intelectual, a produção artística, o desempenho esportivo etc.

Nesse enfoque, cuja referência é a Psicanálise, afirma-se que a agressividade é constitutiva do ser humano e, ao mesmo tempo, afirma-se a importância da cultura, da vida social, como reguladoras dos impulsos destrutivos. Essa função controladora ocorre no processo de socialização, no qual, espera-se que, a partir de vínculos significativos que o indivíduo estabelece com os outros, ele passe a internalizar os controles. Então, deixa de ser necessário o controle externo, pois os controles já estão dentro do indivíduo. Mas, mesmo assim, em todos os grupos sociais existem mecanismos de controle e/ou punição dos comportamentos agressivos não valorizados pelo grupo. A sociedade também tem seus mecanismos, que se concretizam na ordem jurídica: as leis.

Esse modo de compreender a agressividade humana coloca em questão se a sociedade está conseguindo ou não criar condições adequadas para a canalização desses impulsos destrutivos e para a não-manifestação da violência.

A violência é o uso desejado da agressividade, com fins destrutivos. Esse desejo pode ser:

  • voluntário (intencional), racional (premeditado e com objeto “adequado” da agressividade) e consciente, ou
  • involuntário, irracional (a violência destina-se a um objeto substituto, por exemplo, por ódio ao chefe, o indivíduo bate no filho) e inconsciente.

A agressividade está na constituição da violência, mas não é o único fator que a explica. É necessário compreender como a organização social estimula, legitima e mantém diferentes modalidades de violência. O estímulo pode ocorrer tanto no incentivo à competição escolar e no mercado de trabalho, como no incentivo a que cada um dos cidadãos dê conta de sua própria segurança pessoal. A legitimação pode ocorrer na guerra, no combate ao inimigo religioso, ao inimigo político. A manutenção da violência ocorre quando se conservam milhões de cidadãos em condições subumanas de existência, o que acaba por desencadear ou determinar a prática de delitos associados à sobrevivência (roubar para comer, a prostituição precoce de crianças e jovens). [pg. 331]

A violência está presente também quando as condições de vida social são pouco propícias ao desenvolvimento e realização pessoal e levam o indivíduo a mecanismos de autodestruição, como o uso de drogas, o alcoolismo, o suicídio.

Jurandir F. Costa, em seu livro Violência e Psicanálise, afirma que podemos entender como violência aquela situação em que o indivíduo “foi submetido a uma coerção e a um desprazer absolutamente desnecessários ao crescimento, desenvolvimento e manutenção de seu bem-estar, enquanto ser psíquico”1.

Isso significa que é necessário deixar de considerar como violência exclusivamente a prática de delitos, a criminalidade. Essa é uma associação feita, por exemplo, pelos meios de comunicação de massa (rádio, televisão) e que acabamos por reproduzir. Mas existem outras formas que não reconhecemos como práticas de violência e que estão diluídas no cotidiano, às quais, muitas vezes, já nos acostumamos. A violência no interior da família, na escola, no trabalho, da polícia, das ruas, do atendimento precário à saúde etc.

A violência e suas modalidades

Nos tempos modernos, a violência “invadiu todas as áreas da vida de relação do indivíduo: relação com o mundo das coisas, com o mundo das pessoas, com seu corpo e sua mente”2. É como se o progresso tecnológico, o desenvolvimento da civilização, ao invés de propiciar o bem-estar dos indivíduos, concorressem para a deterioração das condições da vida social. A violência, também, deve ser entendida como produto e produtora dessa deterioração, como patologia ou doença social que acaba por “contaminar” toda a sociedade — mesmo naqueles grupos ou instituições considerados como mais protetores de seus membros, a família ou a escola, por exemplo. [pg. 332]

É como se vivêssemos um momento de nossa civilização em que a cultura não dá mais conta de canalizar a agressividade — que todos possuímos — em produções socialmente construtivas; é como se essa energia não encontrasse canais, formas de expressar-se dentro dos limites da lei, das regras. A violência crescente e, aparentemente, descontrolada, mobiliza em todos nós a agressividade enquanto destrutividade: a destruição do outro e de nós próprios.

Hélio Pellegrino, psicanalista brasileiro, afirma que a violência crescente só pode ser entendida a partir da constatação de que vivemos um momento histórico em que se rompeu o pacto social (o direito ao trabalho, por exemplo), e isto faz com que se rompa o pacto edípico, isto é, a autoridade, a norma, a lei internalizada. Essa ruptura retira o controle sobre os impulsos destrutivos, e estes emergem com sua força avassaladora.

Há um clima cultural no qual se observa a deterioração de valores básicos e agregadores da coletividade; a solidariedade, a justiça, a dignidade — o que Pellegrino denomina de “cimento social”. É nesse clima que se constata a banalização do mal, a tolerância com a crueldade, a impunidade, a descrença no mecanismo regulador da convivência social — o sistema de justiça — e o fracasso do Estado em garantir a segurança dos cidadãos, até porque eles próprios descobrem que o Estado também detém a violência. Portanto, se não naturalizamos a violência, podemos descobri-la em suas mais diferentes, sutis e grosseiras expressões em nosso cotidiano. [pg. 333]

A violência na família

Embora possamos observar hoje profundas transformações na estrutura e dinâmica da família (veja capítulo 17, Família), há ainda a prevalência, em nossa sociedade, de um modelo de família que se caracteriza pela autoridade paterna e, portanto, pela submissão dos filhos e da mulher a essa autoridade, e pela repressão da sexualidade, principalmente a feminina. Essa autoridade e repressão aparecem como protetoras dos membros da família. Poderíamos perguntar se essa imagem falseada que se tenta passar realmente cumpre a função de proteção, ou se encobre práticas de violência sobre o uso do corpo da mulher, bem como acaba justificando os castigos físicos na educação dos filhos, perpetrados tanto pelo homem como pela mulher — o pai ou a mãe. No interior da família, lugar mitificado em sua função de cuidado e proteção, existem muitas outras formas de violência além da física e sexual; ou seja, há o abandono, a negligência, a violência psicológica, isto é, condições que comprometem o desenvolvimento saudável da criança e do jovem. A primeira violência seria a negação do afeto para a criança, que depende disso para sua sobrevivência psíquica, assim como depende de cuidados e de alimentação para sua sobrevivência física.

A violência crescente no interior da família — tanto em relação à mulher como em relação às crianças e adolescentes — é um dado que chama, cada vez mais, a atenção de pesquisadores e autoridades na área. É grande o número de crianças seviciadas pelos pais, espancadas e mesmo assassinadas. Esse fenômeno perpassa todas as classes sociais, não está apenas circunscrito à pobreza. Muitos de nós mesmos podemos já ter sido vítimas de situações semelhantes em nossa própria casa. E dificilmente isso, em suas formas mais amenas, é entendido como violência, como se os pais tivessem por direito essas práticas. [pg. 334]

A violência na escola

A escola, para as camadas médias da população, pretende ser a continuidade do processo de socialização, iniciado na família. Nesse sentido, os valores, expectativas e práticas que envolvem o processo educativo são semelhantes.

Poderíamos dizer que a violência manifesta-se de modo mais sutil na relação das crianças e dos jovens com os conteúdos a serem aprendidos, que podem não ter significado para sua vida; na relação com professores, que se caracteriza por práticas autoritárias e sem espaço para o diálogo, para a crítica; na relação com práticas disciplinares que buscam a sujeição do educando, a submissão, a docilidade, a obediência, o conformismo. Na verdade, a maior violência exercida pela escola é quando ela usa de seu poder sobre as crianças e os jovens para impedi-los de pensar, de expressar suas capacidades e os leva a se tornarem meros reprodutores de conhecimentos.

Na escola, é importante destacar a violência exercida seletivamente sobre as crianças e os jovens das camadas populares. Estes, muitas vezes, não têm o repertório de conhecimentos esperado pela escola, e sua vivência (de trabalhador precoce, de responsável pela própria sobrevivência, de menino da rua) é desvalorizada, não é considerada no processo educativo. Essas crianças e jovens, que acabam não tendo o desempenho escolar esperado, são percebidos como incapazes, são transferidos para “classes especiais” e, na quase totalidade dos casos, levados a “se expulsarem” da escola. Essa experiência de fracasso escolar é muito importante na construção de sua identidade. A “incapacidade” que lhes é atribuída passa a ser internalizada e eles se sentem incapazes.

Existem, também, estudos sobre as cartilhas e livros didáticos que demonstram que os conteúdos veiculados estão impregnados de preconceitos ou de uma visão de mulher, de negro, que fomenta a formação de preconceitos. O preconceito leva à discriminação de grupos e à violência contra eles.

A violência na rua

A violência nas ruas é um problema que afeta, particularmente, os centros urbanos maiores. A rua, como espaço social do lúdico, do encontro, da convivência, torna-se o espaço da insegurança, do medo, da violência pelo “bandido”, pela polícia e, mesmo, pelo cidadão comum. Vemos todos os dias nos jornais problemas de trânsito que terminam em agressões; a polícia que, num tiroteio, [pg. 335] matou mais um; o trombadinha que roubou o tênis de outro menino. Começamos a ter a cara do medo e a pôr para fora a nossa própria agressividade, de modo destrutivo, no intuito de nos proteger. Certa vez, uma senhora de 60 anos disse: “Antes, se eu encontrasse uma criança na rua, passava a mão em sua cabeça. Hoje, eu tenho medo dela”. Essa mudança demonstra que o outro (a criança, o jovem, o adulto) é sempre percebido como um agressor em potencial, um agente de violência. Isso leva a um clima de insegurança que perpassa por toda a população, a qual passa a pedir mais segurança, maior proteção policial, um aparelho repressivo mais eficiente, que estabeleça, novamente, o clima de segurança entre os cidadãos. Essas solicitações acabam por ter, como conseqüência, a transformação da própria população em vítima da repressão policial.

A violência e a drogas

“Numa sociedade baseada na plenitude do homem e não no consumo; em uma sociedade amável — digna de ser amada —, em que o homem pudesse sentir-se seguro, não existiriam os angustiantes problemas da droga”3. O uso de drogas deve ser entendido como um processo de autodestruição do indivíduo: A droga vem para preencher um “vazio”, que, de outra forma, a realidade social não preenche.

A droga deve ser entendida em seu amplo espectro, desde aquelas socialmente permitidas, como o tabaco e o álcool, até aquelas não permitidas, como a maconha, a heroína, a cocaína e, [pg. 336] mesmo, os psicofármacos. Todas elas podem criar um processo de dependência física e psíquica, de acordo com a intensidade e freqüência do uso, a constituição biológica do organismo, a constituição psíquica, as condições sociais de uso (o incentivo e a valorização pelo grupo, por exemplo) e as próprias características químicas da droga.

Na análise da drogadicção (dependência de drogas), Kalina e Kovadloff apontam a importância da vida familiar e da satisfação das necessidades afetivas do indivíduo como a principal forma de se evitar o consumo de drogas. Os “buracos” afetivos, a insegurança, a não-comunicação com o mundo dos adultos são os principais responsáveis pelo engajamento do jovem nesse projeto de destruição de si próprio, com a ilusão de que está destruindo valores fundamentais da sociedade.

Para Kalina, a cura de alguém que cumpre esse script de morte implica “fazer uma mudança cultural: transformar uma cultura necrofílica, uma cultura tanática, em uma cultura vital, erótica, criativa”4.

Violência e criminalidade

Inicialmente, é importante distinguir três aspectos ou conceitos ligados a esta questão: transgressão, infração e delinqüência. Abordar esses aspectos significa trazer ou partir de questões mais próximas de todos nós e de nosso cotidiano.

O transgressor

O homem vive em grupos sociais. Em todos os grupos existem normas e regras que regulam a relação das pessoas no seu interior e, conseqüentemente, todas as pessoas, alguma vez, transgrediram essas normas. Por exemplo, chegar depois do horário estipulado, deixar de cumprir uma parte da tarefa, não aceitar determinada ordem ou orientação de conduta.

Sempre que ocorre uma transgressão, existe uma conseqüência para o transgressor: ser advertido, ser exposto a uma comunicação mais intensa do grupo, no sentido de reconhecer a importância da norma, ou, mesmo, ser expulso do grupo por ter transgredido uma norma muito importante, como, por exemplo, no caso do aluno expulso da escola por ter dito um palavrão para a professora. [pg. 337]

É sempre mais fácil o conformismo às normas quando se conhece seu significado, sua utilidade e concorda-se com elas. Em todo caso, quando o indivíduo transgride uma norma, não significa que ele se caracterize como infrator ou delinqüente.

O infrator

O infrator é aquele que transgrediu alguma norma ou alguma lei tipificada no código penal ou no sistema de leis de uma determinada sociedade. O infrator é aquele que cometeu um ato — a infração — e será punido por isso, isto é, terá uma pena também prevista em lei e aplicada pelo juiz ou seu representante. Essa pena pode assumir a forma de multa, ressarcimento de prejuízos, cassação de direitos (por exemplo, a carteira de habilitação para dirigir) ou uma pena de reclusão, dependendo da gravidade do delito cometido. Para determinar a pena, é julgado o ato e suas circunstâncias.
Muitos de nós, também, podemos já ter cometido infrações. Por exemplo, estacionar o carro em local proibido, avançar um sinal vermelho, não respeitar a lei de não fumar em ônibus ou em escolas. E nem por isso estivemos envolvidos com a polícia, com o poder judiciário, ou fomos tachados de delinqüentes. A origem social pode proteger ou não o indivíduo que comete uma infração.

Vejamos a seguinte situação: no supermercado, duas crianças da mesma idade pegam um chocolate, abrem-no e comem. Uma delas está suja e maltrapilha; a outra está bem vestida e acompanhada da mãe. A fome da primeira é maior. O vigilante do supermercado chega perto dela, coloca-a para fora aos safanões e ameaça mandá-la para a Vara da Infância e Juventude ou lhe dar uma surra, da próxima vez. A criança que está com a mãe termina de comer, e a mãe, se não esquecer, poderá pagar quando passar pelo caixa.

Nesse caso, não existe um envolvimento direto com o poder judiciário, mas vemos que mesmo as “pequenas polícias”, no caso, o vigilante do supermercado, também já internalizaram esse [pg. 338] modo de tratar e de aplicar diferentemente a norma, dependendo de quem é a criança. Para o vigilante e para a criança pobre, ficará tipificado que ela roubou, que ela é ladra. Encompridando a história, podemos imaginar que todas as pessoas que presenciaram a cena pensam que essa criança faz isso costumeiramente, que é seu “estilo de vida”, que ela é delinqüente, sinônimo de trombadinha, pivete, ladrazinha.

O delinquente

A delinqüência é uma identidade atribuída e internalizada pelo indivíduo a partir da prática de um ou vários delitos (crimes). M. Foucault, em seu livro Vigiar e punir, coloca que essa identidade começa a se formar/forjar a partir do momento em que o infrator (aquele que cometeu um ato) entra no sistema carcerário — seja de maiores ou de menores — , e a equipe de profissionais que administra a pena, isto é, que o acompanha durante todo o período de sua reclusão, começa a procurar na sua história de vida características que indicam sua propensão para a prática de delitos. A investigação de sua história de vida, baseada em técnicas científicas e, principalmente, na ciência PSI (Psicologia e Psiquiatria), deverá levar à descoberta de impulsos, tendências, sentimentos e vivências anteriores que indiquem a afinidade do indivíduo com o delito. Foucault denuncia que se acaba descobrindo o delinqüente, apesar e independente do delito cometido, isto é, descobre-se que, bem antes da prática desse delito, ele já era “delinqüente”.

A instituição na qual o indivíduo é isolado do convívio social e que tem a função social de regeneração e recuperação é aquela que, contraditoriamente, acaba por atribuir-lhe esta identidade, que passa a “funcionar” como marca, rótulo. Uma marca que irá carregar posteriormente à sua saída do cárcere e que irá dificultar sua integração social.

Atualmente, não é necessário o internamente ou a reclusão no sistema carcerário para que se inicie a construção da identidade delinqüente. Começa a ocorrer um fato grave e de conseqüências imprevisíveis. Milhões de [pg. 339] crianças e jovens, cuja condição fundamental de vida é a pobreza, passam a ser vistos não como crianças ou jovens, mas como perigosos ou potencialmente perigosos.

Essa representação social das crianças e jovens das camadas populares fundamenta-se numa visão falseada da realidade e é alimentada pelos meios de comunicação de massa, em que a pobreza é associada à criminalidade. Isto visa esconder que tanto a criminalidade como a pobreza têm origem em um modo de organização econômica e política que se caracteriza pela distribuição desigual da renda e por um processo de pauperização crescente de amplas camadas da população, mantendo alguns setores, os mais miseráveis, no limiar da sobrevivência.

Essa visão cumpre, também, a função de desviar a atenção da opinião pública de outros tipos de crimes cometidos pelas classes média e alta, dos crimes contra a economia popular e dos chamados crimes de “colarinho branco”.

Esta compreensão do fenômeno da criminalidade envolvendo crianças e adolescentes não significa negar que, infelizmente, um número crescente de jovens encontra-se envolvido com a prática de atos infracionais graves e, mesmo, reincidentes. Esse fenômeno atravessa todas as classes sociais, isto é, crianças e adolescentes de diferentes origens sociais, e não exclusivamente os pobres, acabam por se transformar em agentes da violência. Portanto, as determinações da prática de ato infracional não são exclusivamente de ordem econômica. Os jovens repetem, como agressores, as experiências de violência que os vitimaram. Eles carregam prejuízos, vivem em condições de risco pessoal e social e, além da garantia dos direitos básicos de cidadania, precisam de tratamento, porque o delito denuncia um sofrimento. O delito tem esta dupla face: fala do social e do psicológico.

O projeto de morte e o projeto de vida

Entre as várias faces que a violência demonstra, existem ainda dois aspectos importantes a serem destacados.

O primeiro refere-se à destruição planejada, irresponsável da Natureza, isto é, à poluição dos rios por produtos químicos, à devastação das grandes florestas, à poluição do ar. O homem, cuja característica fundamental é a capacidade de transformar a Natureza em seu próprio benefício, está engajado em sua transformação [pg. 340] no sentido destrutivo, o que virá a comprometer as condições de vida das futuras gerações.

O segundo aspecto refere-se à ausência de cuidados que a nossa sociedade demonstra em relação a milhões de crianças e jovens que vivem condições de não-cidadania, de não-garantia de seus direitos à educação, saúde, lazer, alimentação, enfim, às condições básicas que garantem a sobrevivência física e um desenvolvimento psicológico saudável e, conseqüentemente, a formação de cidadãos com participação social. Esta ausência de responsabilidade social reflete-se nos milhares de meninos e meninas que vivem na rua à sua própria sorte e no ingresso precoce de crianças no mercado de trabalho, como forma de garantir sua própria sobrevivência e, muitas vezes, a sobrevivência da família. A essas crianças e jovens é negado o direito à infância e à juventude. E não sabemos, hoje, qual a amplitude dos prejuízos do ponto de vista psicológico e social que irão manifestar-se nas próximas décadas.

É importante considerar que a caracterização da situação de violência em que vivemos denuncia uma tendência para a autodestruição, quer pela ação direta das forças destrutivas presentes no homem, quer pela omissão que leva amplos setores da sociedade a serem espectadores passivos desse espetáculo tanático. Romper com esse destino significa estabelecer uma nova ética de cidadão, em que os valores da vida prevaleçam sobre os da morte.

Construir essa nova ética e um projeto de vida são tarefas para a juventude de hoje, considerando os dados da História. [pg. 341]

Psicologia - Psicologia social
7/30/2021 12:48:19 PM | Por Ana Mercês Bahia Bock
Escolhendo uma profissão

A idéia de que o indivíduo escolhe sua ocupação ou profissão a partir das condições sociais em que vive e em função de suas habilidades, aptidões, interesses e dons (vocação) não é uma idéia que sempre existiu. É algo que teve início quando se instalou na sociedade o modelo de produção capitalista.Antes do capitalismo, o indivíduo tinha sua ocupação determinada pelos laços de sangue, sua ocupação vinha de berço. Os servos teriam seus filhos e netos sempre servos; os senhores seriam sempre senhores. No capitalismo, o indivíduo liberta-se dos laços de sangue. Agora, ele precisa vender sua força de trabalho para sobreviver. Nada mais é determinado “naturalmente”.

No capitalismo, o indivíduo “pode tudo”. O filho do operário não será obrigatoriamente operário. Pode até ser doutor, desde que se esforce, estude, trabalhe e lute. Tudo depende dele. Seu destino está nas suas mãos, como nos faz crer a ideologia do capitalismo.

E, então, é neste momento que a escolha da profissão se coloca como questão. Se tudo está nas mãos do indivíduo, o momento de sua escolha profissional torna-se de suma importância. Teorias, técnicas, idéias passam a ser desenvolvidas para facilitar esse momento decisivo.

A escolha como momento decisivo

Será mesmo a escolha profissional o momento mais importante na vida de um jovem? Será a escolha de uma profissão a escolha mais importante que um indivíduo faz em sua vida?

Sem dúvida, a maior parte de nosso tempo no dia-a-dia é ocupada com o trabalho. Isto porque, principalmente em uma sociedade capitalista dependente (subdesenvolvida) como a nossa, para acumular capital, necessitamos arregimentar nossas energias através do trabalho (que é o produtor das riquezas).

Sabemos que, depois de uma certa idade (e esta idade varia de acordo com as classes sociais), teremos de trabalhar para sobreviver, e ninguém neste mundo gostaria de passar o resto de sua vida dedicando energias a alguma tarefa que lhe desagrada. Assim, a escolha de uma ocupação ou de uma profissão torna-se muito importante para o jovem.

Além disso, nossa sociedade e sua ideologia responsabilizam o indivíduo por suas escolhas, camuflando todas as influências sociais determinantes de sua opção. Fica assim sobre os ombros do jovem [pg. 309] a responsabilidade de, considerando todas as condições, seus interesses e possibilidades, realizar sua escolha profissional.

Com isto estamos querendo dizer que, sem dúvida, o momento da escolha profissional é importante para o jovem, pois é um momento de conflito — imagine-se na frente de uma vitrina de doces, tendo que escolher apenas um deles sem experimentá-los — e é um momento de escolha de um futuro profissional, que ocupará a maior parte do tempo de sua vida.

No entanto, não podemos considerar que o futuro de uma pessoa dependa exclusiva ou principalmente de sua opção profissional e, tampouco, que a escolha de uma profissão não possa ser, a qualquer momento, alterada.

A construção de um futuro é resultado da combinação de uma série de fatores, dentre eles a escolha de uma profissão. Assim, podemos dizer que a escolha profissional — que é um momento de conflito e por isso um momento difícil — é um fator importante, mas não exclusivo, na construção de um futuro.

E ainda cabe ressaltar que a escolha de uma profissão não é algo simples, pois existem influências sociais, componentes pessoais e limites ou possibilidades entrando neste jogo. O importante é que, quanto mais o indivíduo compreende e conhece esses fatores, mais controle terá sobre sua escolha.

Os fatores que influem na escola profissional

Os fatores que influem na escolha profissional são muitos, com peso e composição diferentes na história individual dos jovens. Procuramos organizar estes fatores em quatro categorias (para efeito de uma exposição mais clara), mas gostaríamos de deixar claro, desde o início, que esses fatores estão em permanente interação e que é exatamente esta combinação entre eles que caracteriza o quadro geral da escolha profissional. Vamos lá!

Características da profissão

Quando pensamos em escolher algo, de imediato temos de considerar as características dos diversos objetos que se nos apresentam como passíveis de serem escolhidos. Nossos objetos [pg. 310] aqui são ocupações, profissões. Por isso vamos considerar: o mercado de trabalho, a importância social e a remuneração das profissões e ainda o tipo de trabalho e as habilidades necessárias ao seu desempenho.

Mercado de trabalho

Teremos ou não emprego nesta profissão? Sem dúvida, uma pergunta importante que o jovem deve fazer-se, mas de difícil resposta. Por quê

Entende-se por mercado de trabalho a venda e a compra da força de trabalho. Quando se diz que o mercado de trabalho de uma determinada profissão está saturado, está-se querendo dizer que o número de profissionais procurando vender sua força de trabalho (oferta) é maior que o número de empregos (procura).

Os fatores que determinam o mercado de trabalho (a relação entre a oferta e a procura) são fundamentalmente relacionados à política econômica de um país. Assim, num momento de recessão econômica “ocorre uma diminuição de investimentos — ou seja, a produção, ao invés de aumentar, se equilibra ou diminui — e o mercado de trabalho, em geral, se retrai. Em conseqüência, ocorre não só a expulsão de trabalhadores já empregados como também a não-absorção de novos trabalhadores”. Quando acontece essa retração do mercado, há, concomitantemente, um aumento dos requisitos necessários para a ocupação de cargos. Por exemplo, passa-se a exigir um grau de escolarização [pg. 311] superior ao que se exigia anteriormente, um número maior de anos de experiência naquele tipo de trabalho etc.

Outro fator que acompanha o aumento da oferta de mão-de-obra e a diminuição da procura é o rebaixamento salarial. 

O mercado de trabalho, portanto, não é algo estável. Assim, no momento em que o jovem se coloca esta questão, o mercado de determinada profissão pode ser promissor, mas em pouco tempo esta situação poderá ter-se invertido. Por isso, a pergunta se teremos ou não emprego é de difícil resposta.

Importância social e remuneração

Todos nós queremos trabalhar em alguma profissão que tenha importância social e que seja  bem remunerada — pelo menos uma remuneração mínima para garantir um bom padrão de vida.

E aqui se coloca uma questão importante. Quais são as profissões mais importantes socialmente? Há uma relação direta entre importância e remuneração?

Considerando essas questões do ponto de vista da sociedade como um todo, podemos dizer que todas as profissões têm importância social, pois todas elas respondem a algum tipo de necessidade social e contribuem para a manutenção da vida em sociedade. Assim, podemos perceber, por exemplo, que os lixeiros (trabalhadores tão desvalorizados em nossa sociedade) são muito importantes, pois respondem pelo recolhimento do lixo, o que garante as condições básicas de saúde da população. Em alguns lugares, quando os lixeiros fizeram greve, foi possível perceber claramente a importância de seu trabalho. Sem o recolhimento do lixo, aumenta o número de ratos, de doenças etc. [pg. 312]

No entanto, sabe-se que a sociedade atribui diferente prestígio às profissões. Na história de nossa sociedade, as profissões ligadas ao trabalho manual têm tido menos prestígio social do que as profissões ligadas ao trabalho intelectual.

Assim, em nossa sociedade, as profissões responsáveis pela produção da riqueza material são desprestigiadas e, portanto, oferecem baixa remuneração. Há, sem dúvida, nesta questão, o problema da necessidade ou não de especialização (profissões ligadas à atividade intelectual exigem maior especialização, estudo e permanente aperfeiçoamento), mas há também a necessidade social de remunerar pouco aqueles setores que precisam de mais gente trabalhando.

Esta questão de prestígio e remuneração é bastante complexa e não a exploraremos aqui. Mas queremos deixar claro que nem sempre o prestígio social significa remuneração condizente e que nem mesmo significa que esta ocupação seja mais, ou menos, importante que as outras.

Habilidades necessárias para o desempenho

Toda profissão tem seu rol de pré-requisitos necessários. Os requisitos e o tipo de trabalho que se realiza devem ser considerados, quando pensamos em escolher uma profissão. Não devemos pensar nas profissões apenas pela aparência: prestígio, remuneração ou mercado. A profissão deve ser vista por dentro — o que realmente faz um profissional daquela área?

E quando falamos em pré-requisitos, surge logo a questão de ter ou não as habilidades necessárias.

Acreditamos que todas as pessoas podem exercer qualquer tipo de profissão (excluídos os extremos: um deficiente físico ser jogador de vôlei, um surdo ser maestro etc.), desde que tenham condições para adquirir as habilidades e conhecimentos necessários para seu exercício.

A escolaridade é, sem dúvida, em nossa sociedade, um dos fatores mais valorizados e tem sido exigida como requisito mesmo de ocupações consideradas simples. E sabemos que a possibilidade de acesso e permanência na escola está diretamente relacionada à condição social e econômica do grupo familiar.

Assim, podemos concluir, sem o risco de sermos exagerados, que os fatores que determinam a escolha de uma profissão são de natureza econômica e social (e não biológica), ligados diretamente às oportunidades de escolarização do indivíduo.

Posteriormente voltaremos a analisar a questão do dom, da vocação. [pg. 313]

O caminho para se chegar à profissão

Diretamente ligada à nossa discussão anterior, aparece a questão da trajetória que o indivíduo deve percorrer para adquirir uma profissão. Aqui dois problemas são básicos: a escolarização e o vestibular e os custos da formação.

A escolarização e o vestibular

A crença de que o esforço individual é o único fator responsável pelo sucesso escolar e pelo ingresso na faculdade deve ser desmistificada. Em nossa sociedade, é sabido que o fator econômico mais que o esforço individual, dizendo, econômico propicia que o esforço individual seja ou, melhor o fator
pesa recompensado.

Assim, o aluno proveniente das classes mais altas da sociedade tem maiores chances, pois dispõe de tempo para dedicar-se aos estudos e não trabalha (ou não exerce atividades profissionais muito desgastantes); tem condições de alimentar-se bem, de descansar bem; tem dinheiro para comprar o material necessário para o estudo etc.

O que ocorre aqui é o famoso cruzamento: alunos das escolas públicas em geral ingressam nas faculdades particulares, e alunos das escolas particulares ocupam as vagas públicas.

Custos de formação

Qualquer tipo de formação é, hoje, em nosso País, quase artigo de luxo. Manter-se na escola, na faculdade ou em cursos técnicos profissionalizantes é algo bastante custoso. E de novo vamos assistir aos filhos das classes mais altas podendo completar seus cursos. Tornamos a repetir: os fatores que determinam a aquisição de uma profissão são de natureza econômica e social. [pg. 314]

O grupo social

O grupo familiar e o grupo de amigos são apontados pelo psicólogo argentino Bohoslavsky como os dois grupos de onde vêm as principais pressões e os principais elementos para que o indivíduo se referencie quando escolhe qualquer coisa, inclusive sua profissão.

O grupo de amigos fornece, em geral, uma referência positiva, isto é, o indivíduo utiliza as referências positivamente, enquanto o grupo familiar pode, eventualmente, fornecer referências que o indivíduo procura rejeitar com sua escolha.

Isto ocorre porque as relações no grupo familiar são sabidamente mais complexas. O grupo familiar não é opcional, como ocorre com o grupo de amigos.

Os valores desses grupos, as satisfações ou insatisfações que seus elementos apresentam com suas ocupações, as expectativas que apresentam em relação à escolha do jovem são fatores fundamentais.

Assim, o pai que terá seu filho como seguidor, herdeiro de seus negócios, prepara-o para isto desde cedo, e ao jovem pode nem se colocar a possibilidade de mudar de rumo. O pai que considera seu trabalho de baixo valor social procurará sempre direcionar a escolha de seu filho no caminho da superação daquela situação social, como o pai operário que sonha com o filho doutor.

Aqui entram os fatores relacionados ao sexo — a sexualização das profissões, se podemos chamar assim.

Na tradição cultural brasileira, a mulher, por exemplo, é sempre vista como ser frágil, que nasceu para ser mãe, para proteger e dar amor. Assim, existem profissões vistas como mais femininas, como as da área de humanas — por exemplo, o magistério. E as profissões femininas, por serem vistas como extensão do lar e sem necessidade de muito aperfeiçoamento, foram sempre desvalorizadas e mal remuneradas.

Esses fatores são importantes na pressão que a família exerce sobre o jovem que as escolhe. O rapaz deverá escolher uma profissão masculina, e a garota poderá ou não seguir um curso universitário, poderá ou não trabalhar fora, mas, se o desejar, deverá escolher uma carreira feminina, que não a impeça de cuidar da casa, dos filhos e do marido.

É importante esclarecer aqui que não há profissões para homens e profissões para mulheres. Essa distribuição é cultural e segue também interesses econômicos da sociedade. O que há em nossa sociedade é a exploração do trabalhador, tanto homens quanto mulheres. [pg. 315]

História pessoal

E aqui chegamos ao indivíduo que escolhe. Este ser, rico em elementos internos, procura, ao escolher uma profissão, planejar um ser para si mesmo — “O que quero ser na vida”. O processo de escolha de profissão é, pois, um momento do processo de identidade do indivíduo.

Entram assim, em sua escolha, todos os elementos que ingressaram em seu mundo psíquico. Suas expectativas em relação a si próprio, seus gostos, as habilidades que já desenvolveu até o momento, a profissão das pessoas que lhe são significativas, as imagens registradas no seu mundo interior relacionadas às profissões, a percepção que tem de suas condições materiais, seus limites e possibilidades, seus desejos, tudo aquilo que deseja negar, tudo aquilo que deseja afirmar, enfim, todo seu mundo interno é mobilizado para a escolha profissional, inclusive fatores inconscientes, que também entram neste jogo, e com muita força.

Abordaremos, em seguida, duas questões que nos parecem mais polêmicas e que têm sido apresentadas como conflitos freqüentes para os jovens que escolhem uma profissão: o conflito satisfação pessoal X  satisfação material e a questão do dom, da vocação. Em seguida, discutiremos outra questão importante, que pretende ser um fechamento para nossa discussão: o indivíduo escolhe ou não uma profissão, isto é, há realmente a possibilidade de escolha por parte do indivíduo, ou as condições sociais e econômicas é que a determinam?

Satisfação pessoal X satisfação material

No momento da escolha da profissão, esse conflito aparece com freqüência. A questão é importante e mais complicada do que uma simples dúvida de um jovem isolado, que não consegue decidir-se.

A questão central é que o indivíduo, quando vende sua força de trabalho, sabe que terá de obedecer e trabalhar da maneira como o comprador (seu patrão) estabelecer e desejar. Sabe que terá de abandonar seus projetos para executar o projeto do patrão, recebendo, assim, o salário que garantirá seu sustento.

A satisfação pessoal também é impedida pela parcelarização crescente do trabalho. As tarefas são mínimas, e o trabalhador perde a visão do todo: se sonhou trabalhar numa fábrica de automóveis, certamente irá produzir apenas uma pequena parte deste automóvel; [pg. 316] se escolheu ser professor, aplicará em sala de aula um plano que uma cúpula de técnicos planejou; se escolheu ser engenheiro numa empresa, fará parte de um projeto que não conhece em sua globalidade e assim por diante.

A parcelarização do trabalho fragmenta o próprio indivíduo, desumanizando-o; “a escolha de uma profissão na verdade se constitui na escolha de um pequeno fragmento”3.

Esses aspectos devem ser considerados, para que não se faça de um problema social um problema individual.

Vocação e dom - uma mistificação da escolha

E retomando Bock:

“a vocação do ser humano é exatamente não ter vocação nenhuma. Explicitando um pouco tal afirmação, queremos dizer que em se tratando da história do ser humano, desde o seu surgimento até agora, o que diferencia o homem de todos os outros animais é exatamente sua não-especialização (biológica) para nenhuma atividade específica.”4

Assim, as abelhas sempre construirão as colméias; as formigas, os formigueiros; as aranhas, as teias; o joão-de-barro, sua casa de barro, e o homem não: o Alexandre será analista de sistemas; a Wilma, psicóloga; o Gustavo, empresário; a Lídia, médica; o Pedro, motorista de caminhão; o Francisco, torneiro mecânico etc.

O homem tem de buscar suas formas de sobrevivência, diferentemente dos animais: E essas formas estão além de seu aparato biológico. [pg. 317]
Com isto estamos querendo dizer que o aparato biológico de um homem pode conter características que facilitem a realização de determinados trabalhos e não de outros. Há indivíduos que nascem com o chamado ouvido absoluto; assim, outros poderão apresentar características inatas que estariam relacionadas com um determinado tipo de trabalho ou profissão. Mas não são essas características biológicas do indivíduo que promovem sua realização profissional e nem tampouco que nos permitem falar em vocação, talento ou dom.

O aparato biológico do indivíduo entra em contato com um meio físico e social, e esta interação biológico-social é que será a fonte das determinações do indivíduo.

A idéia de vocação, no entanto, resiste em nossa sociedade. Os jovens procuram descobrir suas vocações, e os cientistas (principalmente psicólogos) criam técnicas para descobri-las.

A idéia persiste quando se fala da vocação ou talento dos negros para o futebol, vocação das mulheres para serem mães, e, como diz Bock, “pessoas vocacionadas para serem pobres e outras para serem ricas”5.

A idéia de vocação é usada para esconder as desigualdades sociais, ou, melhor dizendo, para justificá-las. Essas desigualdades, tão familiares a nós todos, são produzidas pela estrutura social, que, para se manter, exige que existam indivíduos trabalhando (vendendo sua força de trabalho) e outros acumulando e administrando o capital. No entanto, essas desigualdades têm sido justificadas pela concepção das diferenças individuais.

E assim, se o indivíduo é pobre e torna-se um operário (sua profissão) e o outro torna-se um médico, dizemos que um não tem capacidade, não se esforçou, não tem talento nem vocação para ser médico, por isso é um operário.

Além de todo o preconceito criado em torno destas justificativas (de que o trabalho operário é menor, de menor importância do que o de um médico), estamos escamoteando, escondendo as verdadeiras determinações sociais desses diferentes futuros.

Com a idéia de vocação, podemos dizer ainda que o indivíduo não teve sucesso porque não escolheu a profissão para a qual tinha vocação, isto é, não identificou corretamente sua vocação. [pg. 318]

É preciso sempre considerar as multideterminações que agem sobre o indivíduo — fatores biológicos, sociais, psicológicos — determinando sua escolha profissional e seu futuro.

O indivíduo escolhe e não escolhe

Muitas teorias sobre a escolha profissional consideram que não há liberdade de escolha na sociedade capitalista. O indivíduo é escolhido para uma profissão pelas influências dos fatores sociais, da estrutura de classes, dos meios de comunicação e, de certa forma, da herança social.

Consideramos que Bock está correto quando afirma que “(a teoria crítica) ao negar a existência da liberdade de escolha acaba por também negar a existência do indivíduo. Ele passa a ser entendido como reflexo da organização social, não detendo nenhum grau de autonomia frente a tais determinações. A estrutura social tem um poder avassalador sobre o indivíduo, negando assim a sua existência”6. A nosso ver, o indivíduo existe e é a síntese das influências (multideterminação do humano) sociais, biológicas e psicológicas. Há, portanto, um indivíduo que escolhe. Pense em você na frente de uma loja escolhendo um tênis. Quando você diz “quero este”, você escolheu. A decisão deu-se no nível individual. São suas capacidades cognitivas que lhe permitem relacionar todos os aspectos, seus gostos, seus desejos, seus motivos, as condições objetivas — como o preço e o dinheiro que você tem — e responder: “quero este”.

Agora, veja por que dizemos que você também não escolhe.

Ao escolher, você disse este. Você escolheu dentre aqueles que lhe eram oferecidos — a realidade impõe-lhe limites e possibilidades. Seu grupo social valorizou o “usar tênis” e por isso você o desejou; sua classe social e suas condições econômicas determinaram que fosse este e não aquele mais caro e mais bonito. A televisão propagandeou aquela marca de tênis como a mais jovem, a melhor, a que a seleção de vôlei usa. A moda de seu tempo e de seu grupo estabeleceu que é legal usar aquele tipo de tênis. Assim, sua necessidade de comprar um tênis, sua escolha do tipo, cor e marca foram determinadas pela sociedade: grupo, classe social, meios de comunicação de massa etc. Você não escolheu. [pg. 319]

Assim também ocorre com sua escolha profissional. Você diz: “Um dia vou ser isto na vida”. Você escolheu. E você não escolheu. O momento da escolha é um momento psicológico seu, pessoal. As influências externas (condições objetivas, sua classe social, a influência de pessoas significativas e dos meios de comunicação, a valorização social de algumas ocupações e a desvalorização de outras, as exigências escolares que cada profissão apresenta, as pressões de seu grupo de amigos e de sua família, enfim, todos os fatores externos) são sintetizadas no nível interno do indivíduo, analisadas, relacionadas ainda a fatores internos — tudo o que você já valoriza, já deseja e tudo o que você deseja mas não sabe que deseja (o inconsciente individual) — para, numa grande síntese, resultar na escolha.

Sabemos que, para o jovem, o momento da escolha profissional é um momento que não deve ser supervalorizado, mas que é, sem dúvida, importante. As dúvidas são muitas e, infelizmente, nossa sociedade, pela sua complexidade e pelas dificuldades que apresenta para que o trabalho profissional seja algo prazeroso, torna este momento difícil. Esperamos poder, junto com seu professor, contribuir para tornar este momento da escolha um momento de reflexão madura e que considere todos os aspectos envolvidos nesta escolha (ou pelo menos muitos deles).

Os jovens têm apresentado de diferentes maneiras seus protestos em relação às dificuldades que têm enfrentado para escolher e para ter uma atuação profissional que lhes satisfaça.

Escolhemos trechos de uma música do conjunto “Ultraje a Rigor” que demonstram esse protesto:

“A gente não sabemos escolher presidente A gente não sabemos tomar conta da gente (...)
A gente faz carro e não sabe guiar
A gente faz trilho e não tem trem para botar A gente faz filho e não consegue criar
(...)
A gente faz música e não consegue gravar
A gente escreve livro e não consegue publicar A gente escreve peça e não consegue encenar A gente joga bola e não consegue ganhar. Inútil
A gente somos inútil”7. [pg. 320]

A Escolha é difícil mesmo

Procuramos refletir com você vários aspectos da escolha profissional a fim de ajudá-lo a compreender melhor este momento. No entanto, sabemos que não é fácil enfrentá-lo, principalmente em uma sociedade como a nossa, que exerce pressões constantes sobre os jovens para que se saiam bem em suas profissões, sejam competentes, tenham sucesso... Enfim, são muitas as exigências feitas para o futuro de nossos jovens. Queremos compreenda que que você é importante tensão deste perceber que a momento está ligada às pressões sociais.

Escolher não é fácil mesmo. Imagine-se entrando em uma loja de discos e perguntando ao vendedor sobre os últimos lançamentos. Ele certamente irá lhe mostrar uma estante dedicada a eles. São muitos!

Vamos supor que antes de escolher, não lhe seja permitido colocar os CDs no aparelho de som — você também não dispõe de tempo para ouvi-los. A escolha começa a ficar mais difícil. O vendedor avisa-lhe, então, que, na promoção do mês, você só pode levar um CD. Escolher torna-se tarefa quase impossível! Mas você resolve enfrentar o desafio e, pacientemente, observa as capas, lê a relação das músicas atrás de cada CD, verifica a nacionalidade dos cantores e conjuntos, os ritmos, enfim, procura informar-se antes de tomar a sua decisão. Neste processo de escolha, você vai excluindo os tipos de música que não lhe agradam; os CDs que trazem letras conhecidas e que não lhe interessam; os CDs estrangeiros etc. Assim, você vai diminuindo suas possibilidades de escolha. Mas chegará uma hora em que você, mesmo tendo excluído muitos, terá ainda em suas mãos dois ou três. E agora? Qual comprar? Você poderá perguntar ao vendedor qual deles é o mais barato ou tem mais saída, ou qual CD não corre perigo de esgotar-se. Outra opção será perguntar à pessoa que está ao seu lado se ela conhece aquele conjunto e se o considera legal. Se preferir, poderá recorrer a outras estantes, verificar se aquele conjunto tem muitos discos e quais são. Todos esses recursos são usados por nós para escolher, no caso, um CD.

E na escolha da profissão? Também agimos assim. Você tem à sua frente um conjunto enorme de possibilidades e só [pg. 321] pode escolher uma. Então, pergunta às pessoas o que elas sabem sobre determinada profissão; tem bate-papos com profissionais das áreas de seu interesse e procura saber que trabalhos executam; e, sobretudo, procura informações em jornais e revistas. Você pode, também, buscar um serviço de orientação vocacional, pensar nas disciplinas de que você mais gosta na escola, enfim, você procura obter informações que lhe permitam escolher.

Às vezes pode-se pensar ser melhor conduta não buscar informações sobre as profissões, acreditando-se que o excesso de informações pode confundir. Isto nunca é verdade. Quanto mais informações você conseguir sobre determinada profissão, mais elementos para a escolha você terá, aumentando, assim, a probabilidade de a escolha ser a mais acertada. É isto... a escolha certa é a que foi baseada no maior número possível de informações. Compare com os procedimentos feitos para a escolha do CD e você verá que esta afirmação é correta. Evitar informações, acreditando que se ficará menos em dúvida é um raciocínio falso. E verdade que, diante de um grande volume de informações, você terá de considerar um número maior de elementos, mas é exatamente isso o que lhe garantirá uma boa escolha! A dúvida pode lhe parecer maior por serem muitos os elementos a considerar, deixando-o mais “aflito”. Contudo, você está buscando a melhor escolha.

Escolher também é perder

Outro elemento importante da escolha é que, diante da dúvida ou de um conflito, precisamos nos posicionar por um dos objetos. Devemos ter muito claro que estamos escolhendo ficar com um deles e perder todos os outros. Escolher é, assim, obter e perder algo. Quando nos damos conta disso, a escolha fica mais fácil, pois o que acabamos fazendo, na maioria das vezes, é evitar a perda, o que, em certas escolhas, torna-se impossível.

Exemplo: a escolha de um curso profissional e — precisamos escolher um deles para cursar e todos os outros para perder.

Por isso, temos dito aos jovens que escolher é um ato de coragem. No momento final da decisão, você terá que ter a coragem de escolher também o que perder. Poderíamos aqui comparar a escolha profissional com a escolha de um namorado. Conheço três garotos que me atraem e que poderão ser bons namorados. Começo, então, a levantar as características de cada um: um é romântico e eu gosto de garotos românticos; mas o outro é bonito e eu também gosto de beleza física; o terceiro é mais inteligente e as pessoas o valorizam por isso — e eu também. O primeiro dança bem; o segundo [pg. 322] é alegre; o terceiro, seguro. O primeiro é mais companheiro nas horas difíceis; o segundo, mais otimista; e o terceiro, mais racional na solução dos problemas. Ah! Como é difícil! Tenho de escolher um deles antes que eu perca os três! Preciso perder apenas dois para ficar com um.

É preciso coragem! Faço um balanço de todas as características de cada um, converso com as amigas, visito a família deles, saio com cada um, lembro dos outros namorados que já tive, dos defeitos que possuíam e me incomodavam... e por aí vou, até a hora em que resolvo, em que decido. Neste momento, escolhi o que perder e precisei de coragem para fazer esta escolha.

Escolher uma profissão também é assim. Nem mais, nem menos. Não é mais nem menos importante do que esta escolha de parceiros. É uma escolha que pode ser refeita, retomada, modificada.

A nossa vida é movimento e os critérios usados hoje podem ser diferentes dos de amanhã. Uma escolha bem feita é, com certeza, uma boa escolha para o momento atual. Poderá não ser para o amanhã. Mas, então, o que fazer? Vive-se a escolha que se fez e se constrói o projeto de amanhã considerando a escolha feita hoje, para que ela sempre faça parte de nosso cotidiano.

Muitas informações e muita coragem para ganhar e para perder são bons ingredientes para uma boa escolha profissional... ou melhor, para qualquer escolha.

Psicologia - Psicologia do Desenvolvimento
Todos os textos
Todos Psicologia
Para que de fato serve o sonho?

Para entender para que serve o sonho, necessitamos compreender algo básico: o homem contemporâneo tende a esquivar-­se de todo risco. Em vez de caçadas perigosas e coletas incertas, fazemos visitas regulares ao supermercado. No lugar de turnos de guarda noturna alternados para evitar um ataque traiçoeiro na madrugada, temos a segurança dos muros, portas trancadas e alarmes. Em lugar de pedras e peles, dormimos sobre colchões anatômicos. Em vez da dificuldade de encontrar parceiros sexuais férteis que não sejam parentes próximos, apenas o risco de levar um não de uma pessoa desconhecida numa festa ou bar.

Se os sonhos alguma vez foram es­senciais para nossa sobrevivência, já não o são. Isso não quer dizer, entretanto, que os sonhos não mais desempenhem um papel cognitivo. Para esclarecer que papel é esse, é preciso em primeiro lugar desconstruir a noção de que os sonhos refletem algum tipo de processamento neuronal aleatório. Embora regiões profundas do cérebro de fato promovam durante o sono REM um bombardeio elétrico aparentemente desorganizado do córtex cerebral, há bastante evidência de que os padrões de ativação cortical resultantes desse processo reverberam memórias adquiridas durante a vigília.

Mesmo que não soubéssemos disso, bastaria um pouco de reflexão e introspecção para refutar a teoria aleatória dos sonhos. A ocorrência múltipla de um mesmo sonho é um fenômeno detectável, ainda que ocasional, na experiência da maior parte das pessoas. Pesadelos repetitivos são sintomas bem estabelecidos do transtorno de estresse pós-traumático, que acomete indivíduos submetidos a eventos excessivamente violentos. Dada a imensa quantidade de conexões neuronais existentes no cérebro, seria impossível ter sonhos repetitivos se eles fossem o produto de ativação ao acaso dessas conexões.

Além disso, sonho e sono REM não são o mesmo fenômeno e sequer têm bases neurais idênticas. Temos certeza disso porque existem pacientes neurológicos que perdem a capacidade de sonhar mas não deixam de apresentar o sono REM. Nesse caso, as regiões lesionadas, descritas por Mark Solms, são circuitos relacionados com a motivação para receber recompensas e evitar punições. Essas estruturas utilizam o neurotransmissor dopamina para modular a atividade de regiões relacionadas à memória, emoção e percepção. Sonhar com algo na vigília é o mesmo que desejar – e é exatamente de desejo que são feitos os sonhos. Curiosamente, são os níveis de dopamina que, em experimentos com camundongos transgênicos, regulam a semelhança entre os padrões de atividade neural observados durante o sono REM e a vigília. Portanto, a ideia de que psicose é sonho, ridicularizada por décadas, também encontra apoio na neuroquímica moderna.

E ainda, ao contrário da teoria de que os sonhos são subproduto do sono sem função própria, prevalece cada vez mais a noção de que o sono e o sonho são cruciais para a consolidação e a reestruturação de memórias. Ambos os processos parecem ser dependentes da reverberação elétrica de padrões de atividade neural que ocorrem enquanto dormimos e representam memórias recém-adquiridas. Essa reverberação se beneficia da ausência de interferência sensorial durante o sono e resguarda o processamento mnemônico de perturbações ambientais. A reverberação é favorecida também pela ocorrência de oscilações neurais durante o sono sem sonhos, chamadas de ondas lentas. Os pesquisadores Lisa Marshall, Jan Born e colaboradores da Universidade de Lübeck, na Alemanha, demonstraram que é possível aumentar a taxa de aprendizado realizando estimulação elétrica de baixa frequên­cia durante o sono de ondas lentas.

Em contrapartida, como venho demonstrando junto com outros grupos de pesquisa desde 1999, o sono REM parece ser fundamental para a fixação de longo prazo das memórias em circuitos neuronais específicos. Esse processo depende da ativação de genes capazes de promover modificações morfológicas e funcionais das células neurais. Tais genes são ativados durante a vigília quando algum aprendizado acontece e voltam a ser acionados durante os episódios de sono REM subsequentes. Como resultado, memórias evocadas por reverberação elétrica durante o sono de ondas lentas são consolidadas por reativação gênica durante o sono REM. Essa reativação cíclica das memórias em diferentes fases do sono e da vigília vai paulatinamente fortalecendo os caminhos neurais mais importantes para a sobrevivência do indivíduo, enquanto as memórias inúteis são gradativamente esquecidas.

Experimentos eletrofisiológicos e moleculares mostram ainda que as memórias migram de um lugar para outro do cérebro, sofrendo importantes transformações com o passar do tempo. Meu laboratório tem mostrado que áreas do cérebro envolvidas na estocagem temporária de informações, como o hipocampo, apresentam reverberação elétrica e reativação gênica apenas durante os primeiros episódios de sono após o aprendizado. Em contraste, áreas do córtex envolvidas na armazenagem duradoura das memórias apresentam persistência desses fenômenos por muitos episódios de sono após a aquisição de uma nova memória.

<<Expandir>>
Gordon Allport

No outono de 1920, um estudante norte-americano de filosofia, e economia de 22 anos estava visitando um irmão mais velho em Viena. Durante sua visita, o jovem escreveu um bilhete para Sigmund Freud, solici­tando um encontro. Freud, então o mais famoso psiquiatra do mundo, concordou em ver o jovem e sugeriu uma deter­minada hora para o encontro.

O jovem norte-americano chegou ao n° 19 da rua Berggasse muito tempo antes para sua consulta com o dou­tor Freud. Na hora combinada, Freud abriu a porta de seu consultório e, silenciosamente, conduziu o homem para dentro. O visitante norte-americano de repente se deu con­ta de que não tinha nada a dizer. Buscando em sua mente algum incidente que pudesse interessar a Freud, ele se lem­brou de ter visto um menino no bonde naquele dia quando ia para a casa de Freud. O menino, de cerca de 4 anos, exi­bia uma fobia óbvia por sujeira, queixando-se constante­mente para sua bem-engomada mãe acerca das condições de sujeira no carro. Freud ouviu em silêncio a história e, então, - com uma típica técnica freudiana - perguntou ao jovem visitante se ele estava, na realidade, falando de si mesmo. Sentindo-se culpado, o jovem conseguiu mudar de assunto e escapar sem muito mais embaraço.

O visitante norte-americano no consultório de Freud era Gordon Allport, e esse encontro foi o que despertou seu interesse pela teoria da personalidade. De volta aos Estados Unidos, Allport começou a ponderar se poderia haver espaço para uma terceira abordagem da personalidade, uma que se valesse da psicanálise tradicional e das teorias de aprendizagem conduzidas com animais, mas que também adotasse uma postura mais humanista. Allport ra­pidamente concluiu o trabalho para um doutorado em psi­cologia e embarcou em numa longa e distinguida carreira como defensor convicto do estudo do indivíduo.

Gordon Willard Allport nasceu em 11 de novembro de 1897, em Montezuma, Indiana, o quarto e mais moço filho de John E. Allport e Nellie Wise Allport. O pai de Allport se envolveu em muitos empreendimentos comerciais antes de se tornar médico, mais ou menos na época do nascimento de Gordon. Não tendo um local adequado para o consultó­rio e o atendimento clínico, o doutor Allport transformou sua casa em um hospital em miniatura. Havia pacientes e enfermeiras em casa, e prevalecia uma atmosfera limpa e asséptica.

O asseio da ação foi ampliado para a higiene do pen­samento. Em sua autobiografia, Allport (1967) escreveu que o início de sua vida “foi marcado pela comum devoção protestante" (p. 4). Floyd Allport, seu irmão sete anos mais velho, que também se tornou um psicólogo famoso, des­creveu sua mãe como uma mulher muito devota, que dava muita ênfase à religião (F. Allport, 1974). Como ex-professora de escola, ela ensinou ao jovem Gordon as virtudes da linguagem limpa e da conduta adequada, bem como a importância de buscar as respostas religiosas finais.

Na época em que Gordon tinha 6 anos, a família se mudou por três vezes e finalmente se estabeleceu em Cle­veland, Ohio. O jovem Allport desenvolveu um interesse precoce por questões religiosas e filosóficas e tinha mais fa­cilidade com as palavras do que com os jogos. Ele se descre­veu como um “isolado" social que moldou o próprio círculo de atividades. Mesmo tendo se formado em segundo lugar em uma turma de cem alunos do ensino médio, ele não se considerava um estudante inspirado (Allport, 1967). [235]

No outono de 1915, Allport ingressou em Harvard, seguindo as pegadas do irmão Floyd, que havia se formado dois anos antes e que, na época, era assistente graduado em psicologia. Em sua autobiografia, Gordon Allport (1967) escreveu: "Quase do dia para a noite meu mundo foi refeito. Meus valores morais básicos, de fato, foram moldados em casa. Novo era o horizonte de intelecto e cultura que agora eu era convidado a explorar” (p. 5). Seu ingresso em Harvard também marcou o inicio de uma as­sociação de 50 anos com aquela universidade, a qual foi interrompida apenas duas vezes. Quando recebeu seu grau de bacharelado, em 1919, com especialização em filosofia e economia, ele ainda estava incerto quanto a uma carreira futura. Ele havia feito cursos de psicologia e ética social, e ambas as disciplinas deixaram uma impressão duradoura nele. Quando teve a oportunidade de ensinar na Turquia, considerou isso como uma chance de descobrir se gostaria de ensinar. Ele passou o ano acadêmico de 1919-1920 na Europa ensinando inglês e sociologia no Robert College, em Istambul.

Enquanto estava na Turquia, foi oferecida a Allport uma bolsa para estudos de pós-graduação em Harvard. Também recebeu um convite do irmão Fayette para ficar com ele em Viena, onde Fayette estava trabalhando para a comissão de comércio dos Estados Unidos. Em Viena, Allport teve o encontro com Sigmund Freud. Esse encon­tro com Freud influenciou de forma significativa as idéias posteriores de Allport sobre personalidade. Com certa au­dácia, o jovem de 22 anos escreveu para Freud anunciando que estava em Viena e ofereceu ao “pai da psicanálise” uma oportunidade de se encontrar com ele. O encontro se reve­lou como um evento fortuito que alterou a vida de Allport. Não sabendo o que falar, o jovem visitante contou a Freud ter visto um menino no bonde anteriormente naquele dia. A criança se queixava para a mãe sobre as condições de su­jeira do carro e anunciava que não queria se sentar perto dos passageiros a quem ele julgava como sujos. Allport ar­gumentou que escolheu esse incidente particular para ob­ter a reação de Freud a uma fobia à sujeira em uma criança tão pequena, mas ficou estarrecido quando Freud “fixou seus bondosos olhos terapêuticos em mim e disse: ‘E aque­le menino era você?’" (Allport, 1967, p. 8). Allport disse que se sentiu culpado e logo mudou de assunto.

Allport contou essa história muitas vezes, raramente alterando alguma palavra, e nunca revelou o resto de seu encontro solitário com Freud. No entanto, Alan Elms des­cobriu a descrição por escrito de Allport do que aconteceu a seguir. Depois de perceber que Freud estava esperando uma consulta profissional, Allport, então, falou sobre sua aversão a passas cozidas:

Eu disse a ele que achava que isso se devia ao fato de que, aos 3 anos de idade, uma babá me disse que eram “insetos". Freud perguntou: “Quando você se lembrou desse episódio, sua aversão desapareceu?". Eu disse: “Não". Ele respondeu: “Então, você não chegou ao fundo da questão". (Elms, 1994, p. 77)

Quando Allport voltou aos Estados Unidos, imediata­mente se matriculou no programa de doutorado de Har­vard. Depois de concluído, passou os dois anos seguintes na Europa, estudando com os grandes psicólogos alemães Max Wertheimer, Wolfgang Kohler, William Stem, Heinz Werner e outros, em Berlim e Hamburgo.

Em 1924, voltou para Harvard para ensinar, entre ou­tras disciplinas, um novo curso de psicologia da persona­lidade. Em sua autobiografia, Allport (1967) sugeriu que esse curso foi o primeiro de personalidade oferecido em uma faculdade norte-americana. O curso combinava ética social e a busca da bondade e da moralidade com a disci­plina científica de psicologia. Ele também refletia as fortes disposições pessoais de Allport de limpeza e moralidade. Dois anos depois de iniciar sua carreira de ensino em Harvard, Allport assumiu um cargo em Dartmouth College. Quatro anos depois, voltou para Harvard e lá permaneceu pelo resto de sua carreira profissional.

Em 1925, Allport se casou com Ada Lufkin Gould, a quem havia conhecido quando ambos eram estudantes de pós-graduação. Ada Allport, que fez mestrado em psicolo­gia clínica em Harvard, teve o treinamento clínico que seu marido não possuía. Ela foi uma valiosa colaboradora com o trabalho de Gordon, especialmente em dois extensos es­ tudos de caso: o de Jenny Gove Masterson e o de Marion Taylor, o qual nunca foi publicado (Barenbaum, 1997).

Os Allport tiveram um filho, Robert, que se tornou pediatra e, assim, colocou Allport entre duas gerações de médicos, um fato que parecia tê-lo agradado em grande medida (Allport, 1967). Os prêmios e honrarias foram muitos. Em 1939, ele foi eleito presidente da American Psychological Association (APA). Em 1963, recebeu a Medalha de Ouro da APA; em 1964, foi agraciado com o Distinguished Scientific Contribution Award da APA; e, em 1966, foi homenageado como o primeiro professor Ri­chard Clarke Cabot de Ética Social em Harvard. Em 9 de outubro de 1967, Allport, um fumante inveterado, morreu de câncer no pulmão. [236]

7/29/2021 2:52:02 PM | Por Ana Mercês Bahia Bock
Adolescência - tornar-se jovem

Quando lemos um livro, particularmente um livro que fale de Psicologia, esperamos nos encontrar em suas páginas. Mas geralmente esses livros estão distantes de nossas vidas. Falam de coisas que não sentimos, usam termos que não escutamos, enfim, estão descolados de nossa realidade. Esse distanciamento entre a vida e a teoria é conseqüência do trabalho científico, que produz abstrações sobre a realidade. A ciência não reproduz a realidade, mas afasta-se dela para poder compreendê-la. Discutimos um pouco esse aspecto no primeiro capítulo deste livro, quando procuramos separar o conhecimento científico do conhecimento do senso comum.

Entretanto, em nenhum outro capítulo esta questão fica tão evidente quanto na discussão sobre a adolescência. Enquanto estamos discutindo o tema cientificamente, você, jovem, está vivenciando [pg. 290] o fenômeno. O risco aqui é o de nos distanciarmos completamente do leitor ou, com um pouco de sorte, estabelecer uma conversa franca, honesta, sem moralismo. É muito difícil estabelecer o limite entre esses dois extremos. Por um lado, fala a cabeça racional do cientista e, por outro, o desejo do educador do encontro com a juventude.

Abrimos o capítulo com uma poesia de Paulo Leminski que traduz um pouco as inquietações da juventude. Loucura e liberdade ao lado de controle e responsabilidade. Uma vontade de ser criança e adulto ao mesmo tempo. Essa parece ser a linha. Levantar as questões teóricas que mais se aproximem desse conflito e buscar na poesia, na literatura, aquele toque de vida e de emoção que falta na teoria. Venha conosco!

quando eu tiver setenta anos
então vai acabar esta adolescência
vou largar da vida louca
e terminar minha livre docência
vou fazer o que meu pai quer começar a vida com passo perfeito
vou fazer o que minha mãe deseja aproveitar as oportunidades
de virar um pilar da sociedade
e terminar meu curso de direito
então ver tudo em sã consciência quando acabar esta adolescência
Paulo Leminski

O que é a adolescência?

Um grupo de psicólogos e pesquisadores da Universidade de Roma realizou uma pesquisa com jovens italianos, originando um extenso volume chamado A condição juvenil: crítica à Psicologia do adolescente e do jovem, publicado em 1980. Nesse livro, procuram discutir a definição de adolescente e de jovem.

A primeira conclusão dos autores é a de que as palavras adolescência e juventude não têm uma definição precisa. Vários estudiosos dizem que a adolescência é a fase que vem depois da infância e antes da juventude. Chegam a afirmar que a adolescência começa por volta dos doze anos e termina por volta dos dezoito. Já no senso comum, no dia-a-dia das pessoas, o termo adolescência é pouco usado. Dá-se preferência ao termo juventude para designar tanto o menino ou a menina após a puberdade quanto o jovem adulto.

O fato é que não há um critério claro para definir a fase que vai da puberdade até a idade adulta. Essa confusão acontece porque a adolescência não é uma fase natural do desenvolvimento humano, mas um derivado da estrutura socioeconômica. Em outras palavras, nós não temos adolescência e sim adolescentes. [pg. 291]

Parece contraditório afirmar que não existe adolescência, mas que existem adolescentes. Acontece que os critérios que poderiam definir essa etapa não fazem parte da constituição do indivíduo, mas são construídos pela cultura. Não podemos falar em uma fase natural do desenvolvimento humano denominada adolescência. Mas, quando uma determinada sociedade exige de seus membros uma longa preparação para entrar no mundo adulto, como na nossa, teremos de fato o adolescente e as características psicológicas que definirão a fase, que, a título de compreensão, diremos que foi artificialmente criada.

Acompanhando ainda os pesquisadores da Universidade de Roma, podemos dizer que a evolução do indivíduo na nossa cultura dá-se através de uma série de fases: a pré-natal, a do neonato (a criança assim que nasce), a infância, a pré-adolescência, a adolescência, a adulta e, por fim, a velhice.

Os critérios que poderiam definir a adolescência são construídos pela cultura. Mas seria possível atribuir essas fases a outras civilizações? Para ficar somente com um exemplo, citaremos o estudo realizado pelo etnólogo Bronislaw Malinowski1 (1884-1942), acerca da cultura dos nativos trobriandeses, que vivem em ilhas do noroeste da Nova Guiné na Oceania:

No caso dos jovens trobriandeses, a puberdade começa antes que na nossa sociedade mas, nessa fase, as meninas e os meninos trobriandeses já iniciaram sua atividade sexual. Não há, como em outras culturas primitivas, um determinado rito de passagem para a fase adulta. Apenas, gradualmente, o rapaz vai participando cada vez mais das atividades econômicas da tribo e até o final de sua puberdade será um membro pleno da tribo, pronto para casar-se, cumprir as obrigações e desfrutar dos privilégios de um adulto.

Essa fase descrita pelo etnólogo, se é possível estabelecer um paralelo, estaria para a nossa sociedade, em termos etários, definida como pré-adolescente. Entretanto, no nosso caso, as relações sexuais vêm bem depois dessa fase. Outra diferença é que os nativos das ilhas Trobriand, devido ao tabu que representam as relações sexuais cora as irmãs, saem de casa na puberdade, para uma espécie de república organizada por um jovem mais velho não casado, ou por um jovem viúvo. Essa “república” tem o nome de bukumatula, e lá os jovens, moças e rapazes, moram sem controle dos pais. Mas, até que casem e organizem suas próprias casas, trabalham para as suas famílias. [pg. 292]

Esse exemplo mostra que a adolescência não é uma fase natural do desenvolvimento humano, deixando claro o alerta que nos fazem os autores italianos, ao afirmar:

“Para evitar qualquer equívoco é necessário esclarecer que evidentemente não se nega a existência, em qualquer cultura, da puberdade e da passagem da pré-adolescência para a idade adulta. O que se afirma é que não existe necessariamente uma fase de desenvolvimento entre a pré-adolescência e a idade adulta que tenha uma duração mais, ou menos, longa e tenha o status psicossocial diverso da pré-adolescência e da idade adulta”2.

Isto é, se pensarmos no caso dos trobriandeses, verificaremos que entre eles ocorre um salto da pré-adolescência (que é mais prolongada que a nossa) para a fase adulta. Dessa forma, não existiria adolescência entre eles. Podemos considerar, então, que a adolescência é uma fase típica do desenvolvimento do jovem de nossa sociedade. Isso porque uma sociedade evoluída tecnicamente, isto é, industrializada, exige um período para que o jovem adquira os conhecimentos necessários para dela participar.

Essa concepção parece correta, já que o adolescente precisa, para enfrentar determinadas profissões, de uma preparação muito mais avançada que a das sociedades primitivas. Mas não se pode dizer que todo adolescente de nossa sociedade passa pelo mesmo processo, já que uma boa parte das tarefas de um adulto não exige um tempo muito longo de preparação. É só pensar nos bóias-frias, nos serventes da construção civil, nos trabalhadores braçais, de maneira geral. Muitos jovens [pg. 293] não fazem curso de nível superior (só uma minoria atinge esse nível de escolaridade em nosso País). Muitos deixam a escola antes de terminar o primeiro grau e já entram para o mercado de trabalho.

Em outras palavras, isso significa dizer que, mesmo em nossa sociedade, o período de adolescência não é igual para todos os jovens.

Além de tudo isso que foi dito, uma outra questão deve ser colocada: a necessidade de uma maior preparação cultural e técnica de nossa sociedade não está ligada somente a essa fase de transição da pré-adolescência para a idade adulta. Cada vez menos podemos identificar a idade adulta como a idade do conhecimento adquirido, pois a rapidez da evolução científica e tecnológica impõe ao adulto ligado a esse setor uma formação permanente.

Por tudo isso, podemos concluir que fica difícil estabelecer um critério cronológico que defina a adolescência, ou um critério de aquisição de determinadas habilidades, como ocorre com o desenvolvimento infantil. Dá-se o nome de adolescência ou juventude à fase caracterizada pela aquisição de conhecimentos necessários para o ingresso do jovem no mundo do trabalho e de conhecimentos e valores para que ele constitua sua própria família. A flexibilidade do critério, que nos pode levar a categorizar alguém com vinte e cinco anos como adolescente e alguém com quinze como adulto, levou-nos a evitar até aqui o termo adolescência, que passaremos a usar agora cora as restrições já apontadas.

Juventude e psicologia

Apesar das dificuldades apontadas acima para definir a fase de adolescência em nossa sociedade, o fato é que existe uma fase de preparação para que se considere uma pessoa adulta. Mesmo que ela tenha uma duração diferente de um setor social para outro (e mesmo intra-setor), ela é razoavelmente longa. Esse fenômeno social cria um correspondente psicológico que marca o período.

Os jovens de classe média, por exemplo, passam por um longo período de preparação, quando escolhem uma carreira universitária. Tal preparação pode mesmo ultrapassar essa fase de juventude. O jovem da classe operária pode cursar uma escola técnica, onde aprende o necessário para tornar-se um ferramenteiro, e esse aprendizado não dura tanto tempo quanto o curso de Medicina, por exemplo. Outros jovens, ainda, abandonam a escola muito cedo e já trabalham oito horas diárias antes de completarem os catorze anos de idade — apesar de o Estatuto da Criança e [pg. 294] do Adolescente3 garantir que nenhuma criança poderá trabalhar antes dessa idade. Essa entrada prematura no mercado de trabalho ocorre porque a realidade econômica brasileira não fornece condições para que as famílias empobrecidas mantenham seus filhos na escola, obrigando essas crianças e adolescentes a contribuírem com o orçamento doméstico como forma de garantir que toda a família e, particularmente, os irmãos menores, não passem fome. Trata-se de uma injustiça social criada pela estrondosa diferença de renda, constatada em nosso País, entre a população mais rica e a mais pobre.

Para cada um desses segmentos — a classe média, a classe operária e o segmento empobrecido da população — a adolescência terá uma duração peculiar. Um garoto que precise enfrentar o mundo do trabalho muito cedo e em condições bastante adversas, terá um amadurecimento acelerado. Um adolescente da classe operária que se prepare para trabalhar depois dos 16 anos, conseguirá uma condição de vida melhor em relação a este garoto, alcançando um tipo de desenvolvimento mais próximo do padrão das classes abastadas. Um jovem de família rica poderá se dar ao luxo de começar a trabalhar aos 28 anos, após concluir a pós-graduação, atrasando, assim, o seu amadurecimento. Evidentemente, o ingresso no mundo do trabalho não é o único critério para definir o tempo de adolescência dos jovens de nossa sociedade — precisamos levar em consideração suas características individuais. O padrão, contudo, é culturalmente construído (expectativa de desempenho de papéis) e historicamente determinado. [pg. 295]

Mas isso não contradiz o que acabamos de afirmar? A resposta é sim e não. Quando vimos o exemplo da cultura trobriandesa, pudemos notar que lá existe um critério quase único para todos os jovens, e que uma estrutura social relativamente simples não exige uma grande preparação para o ingresso na fase adulta. Vimos também que a passagem ocorre através de rituais e tabus (a saída do jovem da casa dos pais e a proibição das relações sexuais com as irmãs).

No caso da nossa cultura, muito mais complexa, não é possível um ritual único de passagem para a fase adulta. O critério básico é o determinante econômico, e, assim, haverá condições diferentes de desenvolvimento do jovem para diferentes classes sociais. Mas, ao mesmo tempo, a cultura cria um critério mais geral, que atinge todos os níveis socioeconômicos. Na nossa sociedade, tais critérios geralmente estão baseados nas condições de vida das classes mais privilegiadas. Desta forma, um rapaz operário, que se tenha casado aos dezesseis anos e sustente a sua casa com seu trabalho, ouvirá muitas vezes pessoas dizerem com espanto: “Nossa, mas tão jovem e já está casado!”.

Esta expectativa social de que o jovem ainda não está preparado para as responsabilidades da vida de adulto, apesar de não corresponder à realidade de muitos jovens, acaba sendo um forte elemento de identidade do adolescente. Psicologicamente o jovem vive a angústia que representa a ambigüidade de não ser mais menino e ainda não ser adulto. Assim, o jovem que assumiu responsabilidades de adulto aos dezesseis anos irá imaginar-se como alguém que “perdeu” sua juventude.

Há um paradoxo aqui. A sociedade obriga alguns jovens a se tornarem adultos muito cedo e, ao mesmo tempo, considera esse jovem adulto como adolescente. Então não temos a adolescência como uma fase definida do desenvolvimento humano, mas como um período da vida que apresenta suas características sociais e suas implicações na personalidade e identidade do jovem. É um período de transição para a fase adulta que, na sociedade contemporânea, prolongou-se bastante se tomarmos, como parâmetro, as sociedades primitivas. Atualmente, inclusive, é possível falar-se numa espécie de “adultescência”, que seria o prolongamento da adolescência na fase adulta. Este fenômeno, observado particularmente nos países ricos, também pode ser constatado, com menor incidência, em nosso País. Muitos são os fatores psicológicos, sociais e econômicos que determinam esse processo nos países ricos, como a diminuição da oferta de emprego, uma certa garantia social que possibilita a alguns indivíduos viverem relativamente bem mesmo sem trabalhar; uma excessiva valorização da cultura jovem, o que leva o adulto a desejar permanecer eternamente jovem. Entretanto, podemos [pg. 296] dizer que esse fenômeno não leva à ampliação do tempo de passagem para a fase adulta, mas demonstra que precisamos repensar os critérios que definem o que é ser jovem e adulto numa sociedade em constante transformação, na qual o trabalho já não exerce mais o papel que exercia no início da era industrial.

Essa fase de preparação para o mundo adulto — a adolescência ou juventude — coloca o jovem num certo estado de “suspensão” em relação aos valores e normas que ele deve adquirir para entrar para o mundo adulto.

O jovem até agora avaliou o mundo através dos valores da sua família, mas, ao confrontá-los com os valores e normas dos novos grupos que passa a freqüentar, verifica que os valores familiares não são os únicos disponíveis e que, muitas vezes não se adaptam a funções que são agora exigidas. São muitos os exemplos de valores ou normas contraditórios, se compararmos um grupo de jovens colegiais e suas famílias, mas muitos também serão semelhantes. Quando temos uma norma ou valor muito forte, tanto para a família quanto para o grupo juvenil, não se correrá o risco de uma dissonância entre os dois grupos. Contudo, valores e normas importantes e consonantes para esses grupos podem levar a situações dissonantes e contraditórias.

A coragem, a luta para vencer na vida, a noção de construir-se a si mesmo, ser independente, tomar suas próprias decisões e responsabilizar-se por elas são valores presentes tanto no grupo familiar quanto nos grupos juvenis. Já o uso da droga poderá ser uma norma para determinados grupos juvenis, mas certamente será proibido pela família. Entretanto, o jovem que respeite os valores familiares de tomar suas próprias decisões e responsabilizar-se por elas (valores também do grupo juvenil), poderá optar pelo uso de droga, como prática grupal, apenas para demonstrar sua coragem e capacidade de decisão. Ele, ao mesmo tempo que atendeu a um valor familiar (coragem, decisão, independência), transgrediu uma norma do grupo familiar de não utilização de drogas.

A tendência do jovem será no sentido de evitar a dissonância, procurando adequar essas contradições, ora evitando a norma do grupo juvenil, ora questionando os valores familiares. Como isso nem sempre é possível, será submetido a um estado de angústia que representa a ambigüidade de não ser mais menino e ainda não [pg. 297] ser adulto. Ele quer tomar decisões por si mesmo e é incentivado para isso pela família, pela escola, mas, quando procura o novo, o proibido, ele é duramente criticado (e muitas vezes punido). Nesse plano, a busca de experiências significativas causa-lhe medo. E o desejo do novo e o medo do desconhecido.

A propósito, a droga e a AIDS representam dois fortes fatores de risco à saúde dos jovens. Isto ocorre exatamente pelas características sociais e psicológicas dessa fase da vida. Da iniciação sexual, que ocorre cada vez mais cedo, à opção pelo casamento, que ocorre cada vez mais tarde, há um período longo, no qual o compromisso estabelecido por uma relação duradoura (como o noivado, há algum tempo) ainda não está decididamente instalado. Como decorrência destes fatores, os jovens decidem relacionar-se sexualmente e, com mais freqüência, com diferentes parceiros, aumentando o risco de contágio pelo HIV (vírus que pode provocar a AIDS). Apesar das inúmeras campanhas públicas de prevenção à AIDS (a principal delas incentiva o uso da camisinha), sabe-se que o comportamento do jovem tende a ser negligente e que ele confia, basicamente, na sorte. Um dos fatores psicológicos que o leva a essa negligência é a fantasia de onipotência. Exemplo: “isto acontece com os outros, mas comigo não vai acontecer!” Essa fantasia é positiva em muitos momentos, mas, neste caso, torna-se, particularmente, muito perigosa.

O mesmo ocorre com o uso de drogas. O mercado das drogas profissionalizou-se. Isso significa dizer que este mercado é controlado por cartéis que vivem na clandestinidade e no mundo do crime. A comercialização das drogas transformou-se num negócio altamente rentável. A droga perdeu o ar “alternativo” que lhe foi atribuído pelo movimento de contracultura da década de 70, transformando-se numa mercadoria de consumo como outra qualquer — com o agravante de ser ilegal e altamente prejudicial à saúde. Pode-se dizer que, da mesma forma que há o marketing do cigarro, do refrigerante etc., existe o “marketing” da droga, que também utiliza as mesmas técnicas de persuasão como fatores de alienação, diferenciando-se do primeiro por ser feito na clandestinidade (veja capítulo 19, Meios de Comunicação de Massa). Assim como as drogas legalizadas passam a representar símbolos de auto-afirmação na adolescência — citamos como exemplos o cigarro e a bebida alcoólica — a droga ilegal também ocupa seu espaço nesse circuito. Bem, são muitos os símbolos de auto-afirmação na adolescência e muitos deles são legítimos (vale ressaltar aqui que outras culturas também utilizam esquemas para provar o valor do jovem).

Ocorre que, numa sociedade como a nossa, na qual impera a lei do mercado, o jovem (e também o adulto e a criança) fica à mercê dos esquemas [pg. 298] de convencimento do sistema comercial, que explora muito bem esse campo psicológico da necessidade de símbolos e, particularmente, de símbolos auto-afirmativos. Por tratar-se de comércio, ao “vendedor” interessa vender e vender cada vez mais. Assim, o mercado é abastecido não só com drogas sofisticadas e caras, como os opiácios, mas com drogas baratas, acessíveis a qualquer um, como o crack. O grande problema encontra-se, sem dúvida, no fator de alienação produzido pelo esquema comercial, que captura o jovem (e não somente ele) no seu ponto frágil — a moral. Como consumidor, ele enfrentará o inevitável problema de saúde gerado pelo uso freqüente de um produto que poderá levá-lo não só à dependência física e psicológica, mas à morte.

Antes mesmo de perceber em seu corpo as conseqüências orgânicas do consumo de drogas, o usuário entrará em um circuito no qual a dose ou quantidade anteriormente consumida já não lhe propiciará o efeito desejado, o que o levará a aumentar, cada vez mais, a quantidade e a freqüência do consumo para satisfazer-se. Essa ciranda o conduzirá a um estado de permanente letargia, impedindo-o de produzir (estudar ou trabalhar) e tornando-o anti-social (perde os amigos e os laços familiares).

É preciso mencionar aqui que não é necessário possuir um perfil psicológico específico para se tornar um narcodependente. O consumidor da droga não é alguém que está infeliz ou que precise da droga para superar problemas de qualquer ordem. A droga (incluindo o cigarro e o álcool) é um produto que fornece um prazer imediato e é esse prazer que irá garantir o consumo (além de fatores desencadeados pelo próprio grupo). Assim, não estão livres da dependência mesmo aqueles que estão absolutamente seguros de que não têm o perfil [pg. 299] do consumidor pesado (os que consomem com muita freqüência) e que só consomem drogas moderadamente. Há fatores orgânicos que podem estimular o consumo, levando o organismo a sentir “falta” do produto. Assim, quando a pessoa se der conta, não terá como abandonar o consumo. As neurociências estão avançando muito nos estudos dos neurotransmissores e, provavelmente, não vai demorar muito tempo para que seja elucidada a maneira como se dá a dependência. Tal avanço certamente nos levará na direção da superação dessa dependência. O prejuízo psicológico também é considerável e, no momento, a “vontade” de abandonar o vício tanto do álcool, quanto das substâncias narcóticas ou químicas, é o principal fator de cura.

Situação do jovem em nossa sociedade

Em termos evolutivos, as bases para a cognição, de acordo com Piaget, estão prontas por volta dos 11/12 anos de idade. Mas o jovem não será considerado preparado, pela sociedade, para assumir a posição de um adulto. No caso brasileiro, a maioridade civil é dada aos 21 anos, e a maioridade penal aos 18.

Esse padrão obedece à lógica da sociedade de classes, onde a lei geral é a da dominação. Neste caso, a dominação do adulto sobre o jovem. O adulto determina o que devemos esperar do jovem; o problema torna-se aqui uma questão política para a juventude. Frase como “Jovem, você é o futuro da nação!” tem um conteúdo verdadeiro, mas com alguma coisa como “Veja bem o que você vai fazer, estamos de olho em você”. A família, a escola, as instituições em geral, que procuram formar o jovem, buscam ao mesmo tempo controlá-lo, para que o jovem de hoje seja o adulto comportado de amanhã.

Mas o jovem é o que tem a vida pela frente. Ele tem direito ao sonho, à utopia. O compositor de música popular brasileira Raul Seixas diz em uma de suas músicas:

“um sonho que se sonha só é só um sonho que se sonha só mas um sonho que se sonha junto é a realidade”

Os jovens parecem perceber essa sua força. Em alguns momentos eles resolvem sonhar juntos, e a utopia acaba em transformação social. Em outros, sucumbem à ordem social vigente que não suporta o seu ideal transgressivo. [pg. 300] Para garantir esse ideal transgressivo, o jovem organiza-se em grupos, como as gangues, os grupos punks, os grupos de motoqueiros, os grupos de política estudantil etc., busca uma subcultura e uma identidade própria. Há aqui uma especificidade no processo de socialização, que, nesse período, combina os valores tradicionais da sociedade às expectativas (produzidas pela subcultura) de um grupo que está por acontecer.

Este fenômeno tem se acentuado em grandes cidades. Na periferia da cidade de São Paulo, por exemplo, ocorre uma interessante forma de grupalização de jovens através de um movimento músico-cultural chamado rap. Alguns grupos, como os Racionais MC, que nasceram nos bairros periféricos, são hoje conhecidos nacionalmente e têm vários CDs gravados. O movimento rap não se configura como um movimento cultural de elite ou tradicional. Ele aglutina uma enormidade de pequenos grupos que se reúnem freqüentemente e discutem uma espécie de proposta de ação, utilizada por eles como um programa mínimo. As letras dos rappers têm sempre um conteúdo de crítica à circunstância de exclusão e opressão vivida por esses jovens moradores da periferia e, com a grupalização, eles não somente irradiam essa crítica com suas músicas, como discutem formas de defesa contra a exclusão social.

Em outros momentos, a organização pode não ter esse caráter propositivo e estar capturada pelas forças reativas da própria sociedade, forças essas contaminadas de caráter conservador e discriminatório, como ocorre com as gangues do tipo skin-heads, promotoras de um ideário fascistóide.

Por força da circunstância de vida e da forma como se expressa o campo social, o adolescente acaba por apresentar uma certa labilidade. Em alguns momentos não acredita em nada a não ser nele mesmo e, em outros, torna-se presa fácil dos apelos consumistas dos meios de comunicação de massa. O jovem está no meio do caminho. Atrás de si tem toda uma infância, onde a família, a escola e os pequenos grupos de amigos deram-lhe proteção, segurança, ao mesmo tempo que lhe ofereceram um conjunto de valores, crenças e referências que formaram sua identidade. Diante de si tem um futuro como adulto, adaptado à sociedade, em que segurança e proteção são pretensamente oferecidas pelas instituições sociais — a fábrica, o escritório, a família —, da qual se espera que ele seja o ator social.

No seu período de juventude, a sociedade permite-lhe transgressões, oposições, questionamentos, criação de subculturas com seus dialetos e trajes característicos. É como se a sociedade lhe dissesse: “Aproveite agora, que depois será tarde demais, precisaremos de você para outras tarefas” (a produção da riqueza social).

Entretanto, suas condições intelectuais permitem-lhe enfrentar esta etapa com criatividade, seus afetos dão-lhe a agressividade necessária para o questionamento e a oposição, seus pares dão-lhe a certeza de que ele está certo. Mas o mundo adulto o atrai. Por se perceber no meio do caminho, tem então muitas dúvidas. Quais os seus valores e quais aqueles que lhe estão sendo impostos? Quais suas certezas? O que vai ser, afinal de contas, quando se tornar adulto?

A superação dessa crise, assim é o que a sociedade espera dele, significa o abandono de suas utopias, de seus gestos transgressivos, ou seja, a adaptação do jovem à condição adulta, sua entrada para o mundo do trabalho e a possibilidade de formar sua própria família.

Esta perspectiva parece sombria, já que não prevê a possibilidade de transformação social, mas cabe ao jovem lutar pela alteração das condições que criam esse vácuo nas nossas vidas (a fase da juventude na sua forma atual), buscando uma sociedade que saiba preparar seus jovens ao mesmo tempo que lhes garanta a participação social. E então poderíamos, como Leminski, dizer: “quando eu tiver setenta anos então vai acabar esta adolescência (...)” [pg. 302]

Psicologia - Psicologia do Desenvolvimento
7/29/2021 1:06:46 PM | Por Ana Mercês Bahia Bock
Os meios de comunicação em massa

Os meios de comunicação de massa ganharam uma importância formidável nos últimos tempos. Não é por acaso que alguns chamam a imprensa de “o quarto poder”. Trata-se de uma alusão à importância que a difusão da informação ganhou no mundo contemporâneo. Uma parte dos conteúdos difundidos pelos meios de comunicação de massa é estudada no campo das teorias da comunicação, da semiótica e da Psicologia. Nesse sentido, a Psicologia tem sido muito utilizada em função do seu conhecimento sobre a subjetividade humana. É disso que trata esse capítulo sobre os meios de comunicação de massa, conhecidos também como mídia (termo que advém do inglês mass media e que significa meios de massa ou meios de comunicação de massa).

A Psicologia é utilizada para a análise do material jornalístico quando, por exemplo, o jornalista avalia o conteúdo da matéria que está escrevendo e ao qual aplica noções de Psicologia; ou quando, em casos mais específicos, consulta o psicólogo especialista no assunto em pauta. Rigorosamente, poderíamos dizer que se trata do mesmo fenômeno observado no cotidiano e já comentado nos primeiros capítulos deste livro. As pessoas, em geral, possuem um certo conhecimento da Psicologia e o aplicam na solução de problemas do cotidiano. O jornalista e o publicitário apropriam-se desse conhecimento e o utilizam com uma certa competência. Poderíamos [pg. 276] mesmo afirmar que, nesses casos, a Psicologia é usada por eles com mais competência do que pelo próprio psicólogo.

Ora, pode parecer estranho afirmar que profissionais da mídia conhecem mais Psicologia que o próprio psicólogo, mas isso é fácil de entender. O psicólogo é o profissional que trabalha com a Psicologia e, nesse campo, certamente é o mais competente e indicado. Mas, no caso da mídia, o profissional que entende daquele assunto é outro. Um psicólogo não saberia fazer um bom comercial por não ser a publicidade a sua área de atuação. O publicitário, entretanto, produz um bom comercial, não só por conhecer as técnicas desenvolvidas pela propaganda, mas por conseguir “captar” a subjetividade das pessoas as quais pretende alcançar.

O psicólogo, é verdade, não saberia fazer o comercial, mas, uma vez finalizado, ele torna-se um bom analista do campo de subjetividade produzido por este comercial. A partir do momento em que os meios de comunicação de massa perceberam a importância de se trabalhar bem a questão da subjetividade, a presença do psicólogo na mídia passou a ser requisitada com mais freqüência. Exemplo: as agências de publicidade — que constituem o mercado de trabalho mais desenvolvido para o psicólogo especializado em mídia — contratam-no para analisar qualitativamente as peças publicitárias ainda em processo de produção. Mesmo não tendo as mesmas habilidades de um profissional de publicidade para produzir um comercial, o psicólogo vem se tornando o profissional que assessora o setor de criação, ocupando cada vez mais espaços na mídia.

Meios de comunicação e subjetividade - os limites éticos

Uma questão importante e freqüentemente lembrada quando se fala do uso da Psicologia nos meios de comunicação de massa e da participação de psicólogos neste trabalho refere-se à ética. Qual o limite do trabalho com a subjetividade? A Psicologia e o psicólogo têm poder de controlar as pessoas, de fazê-las comprar ou acreditar em algo que absolutamente não lhes interessa? [pg. 277]

Não é tarefa fácil responder a esta última pergunta, pois o seu enunciado é, em parte, falso e, em parte, verdadeiro. Falso porque não se pode conferir tamanho poder nem à Psicologia nem aos meios de comunicação de massa. É falso, também, afirmar que uma mentira repetida por muito tempo torna-se verdade. A história tem demonstrado de forma cabal que não se pode enganar as pessoas o tempo todo. O jornalista Carlos Eduardo Lins e Silva1 fez um estudo muito interessante sobre o Jornal Nacional, da Rede Globo, quando assistido por trabalhadores da Baixada Santista, no Estado de São Paulo. Na época em que o estudo foi realizado, construía-se o mito de que a Rede Globo, com sua audiência imbatível (a audiência do JN chegava a 70% dos televisores ligados), monopolizava a informação veiculada no Brasil. Assim, o que era noticiado no JN passava a ter o estatuto de verdade, à medida que não seria contestado por qualquer outro meio de comunicação (considere que os 30% restantes da audiência estavam voltados, geralmente, para a programação não-jornalística e que as pessoas não-sintonizadas no JN eram atingidas pelos comentários das que o assistiram). Entretanto, o estudo de Lins e Silva demonstrou que os trabalhadores, quando viam um noticiário sobre greve com conteúdo claramente a favor das posições governistas e empresariais, decodificavam a mensagem, depurando-a da opinião da emissora e analisando o conteúdo pelo que a notícia oferecia de objetivo. Os trabalhadores pesquisados faziam uma releitura da informação e a reconstruíam de acordo com a visão sindical da cultura operária. Estes sujeitos, os operários, tinham uma outra fonte de informação (no caso, a imprensa operária, o trabalho sindical e a própria vivência) para avaliar o material jornalístico veiculado pela TV.

É claro que, em outras situações, não temos a informação alternativa à nossa disposição e tendemos a acreditar na informação fornecida. Mas, de maneira geral, as pessoas sabem que, quando se trata de um tema polêmico, elas não devem acreditar piamente na informação veiculada pelo meio de comunicação de massa.

O problema torna-se maior quando as pessoas não consideram o tema polêmico e, neste caso, ficam desarmadas (com baixo nível de criticidade) e sem condições de avaliar a mensagem transmitida. As mensagens sobre saúde cabem nesta alternativa e, eventualmente, a mensagem veiculada cria conceitos que podem ser prejudiciais à população. E freqüente escutarmos alguém dizendo a outra pessoa como cuidar de determinado problema de saúde a partir do que “deu na televisão”. [pg. 278]

A propaganda e o controle da subjetividade

A publicidade também encontra-se nesse campo. Os comerciais procuram, sempre que possível, fugir de questões geradoras de conflitos
na audiência. Apresentam geralmente um mundo idílico, perfeito, sem contradições, associando o produto ou serviço a essa atmosfera radiante e perfeita. Ao mesmo tempo, cuidam de produzir alguma verossimilhança com a realidade para que as pessoas não se sintam distantes deste mundo que pode ser alcançado. É nesse momento que nossa subjetividade é capturada. Essa captura se dá de uma forma muito sutil e, geralmente, fica muito difícil opor resistência a ela. Neste caso, diríamos que a resposta à questão colocada anteriormente é verdadeira. A Psicologia é utilizada pelo publicitário (e mesmo pelo psicólogo) para alcançar um tipo de convencimento que nos leva ao limite da ética.

Porém, mesmo neste caso, podemos dizer que a resistência é difícil, mas não impossível. Os meios de comunicação de massa não têm o controle absoluto da nossa subjetividade. A máquina de propaganda mais eficiente até hoje construída, implantada com o Terceiro Reich, na Alemanha nazista, pretendia ter o controle absoluto da subjetividade do povo alemão e, apesar de ter sido muito eficiente, foi derrotada!

Persuasão

O principal mecanismo psicológico utilizado pelos publicitários e por profissionais da mídia é a persuasão. Trata-se de um mecanismo de convencimento que pode ou não ultrapassar as bases racionais da difusão de uma mensagem.

Quando se trata das bases racionais da mensagem, as quais utilizam-se apenas do campo cognitivo para garantir sua eficiência, isto é, alcançar o receptor, tal recurso visa atingir o plano da consciência do receptor da mensagem. Assim, ele pode compará-la com a informação disponível e verificar se ela lhe é ou não importante. Neste caso, utiliza-se uma informação objetiva, garantindo a veracidade do que é informado. Quando um locutor de TV diz que, de acordo com informações do satélite meteorológico, há previsão de chuvas fortes no decorrer do dia, consideramos a informação verdadeira e nos preparamos para o evento. Atualmente, essas previsões estão cada vez mais eficientes. Vários comerciais na TV ou anúncios veiculados em revistas ou jornais trabalham, fundamentalmente, com as bases racionais. Quando o publicitário afirma num comercial que a bateria do celular tem durabilidade de 8 horas, [pg. 279] ele está fornecendo uma informação de caráter objetivo e os usuários de telefone celular conhecem claramente esse parâmetro da durabilidade da carga da bateria. Esta informação pode ser fundamental na opção de compra e, como se trata de um produto caro, o consumidor geralmente irá checar a veracidade da informação. Todo o processo é bastante racional.

Persuasão e subjetividade

Entretanto, é possível e freqüente a utilização de recursos de base irracional (de fundo emotivo), que são associados ao conteúdo cognitivo da mensagem. Tal forma de convencimento tenta persuadir o receptor da mensagem mais pelo campo da subjetividade do que pelo da objetividade da informação. A publicidade tornou-se a área da comunicação que mais explora esse recurso. A técnica mais comum é a de associar um determinado valor social ao produto anunciado. Assim, um comercial de TV poderá veicular um clima de intenso glamour, com situações sofisticadas, como um casal lindíssimo em trajes de gala, cruzando as taças de champanhe a bordo de um jatinho particular. Acrescente à cena um pôr-de-sol maravilhoso, troca de gestos e olhares sedutores. A música, como não poderia deixar de ser, é extremamente romântica. No instante em que o rapaz tira o maço de cigarros da casaca, o jatinho trepida e sua companheira derruba a taça de champanhe sobre ele. Ela ri deliciosamente, levanta-se dando a impressão de que iria ajudá-lo a secar-se. Em vez disso, toma-lhe, carinhosamente, o maço de cigarros. Os dois riem. Por fim, um locutor, em off (só ouvimos a voz), diz: — Gente moderna fuma Device! Veicula- se um clima encantador e a ele associa-se a marca do cigarro. Assim, define-se o perfil psicológico do fumante daquela marca — uma pessoa que gosta de coisas glamourosas, apesar de não dispor de condições econômicas para comprá-las. Tal pessoa poderá se contentar com a marca de cigarro do anúncio para se identificar com o perfil psicológico veiculado. Evidentemente, esse processo é muito sutil e as pessoas, em geral, não se dão conta de que estão sendo capturadas por uma artimanha publicitária.

O recurso funciona porque não o percebemos claramente, mas ele é insistentemente utilizado: uma marca de bebida associa-se ao padrão de masculinidade; um perfume promete conquistas amorosas; um achocolatado oferece um mundo de diversões; um refrigerante garante que, ao bebê-lo, você fará muitos amigos. Sexo, poder, riqueza e aventura são ofertas freqüentes dos comerciais. Um mundo de prazeres que não encontramos em nosso cotidiano e que, no entanto, são apresentados como possibilidades. [pg. 280]

Como se dá o fenômeno? Nosso cotidiano é repleto de regularidades, de regras, de repetições. Vamos à escola todos os dias, jantamos com a família, assistimos à novela das oito, lemos o texto da aula de amanhã e dormimos porque, logo cedo, reiniciaremos a rotina. A aventura fica para o fim de semana ou para as próximas férias. Mesmo assim, há um temor que nos controla e, quando saímos da rotina, não fazemos algo tão diferente assim. Quando alguma coisa realmente diferente acontece em nossas vidas, ou na vida de nossos amigos, transforma-se num caso que será contado e re-contado por algum tempo.

Isto ocorre porque temos mecanismos psicológicos que nos protegem de frustrações e nos preparam para viver as restrições que a cultura nos impõe (restrições de ordem moral) e as que nos são colocadas pelo sistema econômico (as restrições da desigualdade econômica). De certo que há um padrão conformista neste processo, mas é um mecanismo de defesa eficiente. A publicidade apresenta-nos, intensa e continuamente, a oferta do paraíso e da ascensão social ao mesmo tempo em que a sociedade, através das restrições da cultura (a possibilidade de realizar o proibido), torna remotas as possibilidades de que tal paraíso seja alcançado.

Esse mecanismo de defesa, entretanto, é fustigado pelo retorno de conteúdos inconscientes, que foram recalcados por um, digamos, “acordo social”. É o caso da proibição do incesto, maneira pela qual as culturas primitivas estabeleceram um tabu que contribuiu para a diversificação genética com a celebração do casamento fora dos clãs. A monogamia também se impôs à poligamia como padrão cultural visando garantir o controle da propriedade privada. O desejo por uma mulher que não seja a esposa está recalcado há milênios e faz parte do rol de proibições de leis religiosas muito antigas. Mesmo em sociedades poligâmicas, como a muçulmana, o adultério é punido rigorosamente. Nas sociedades ocidentais, como a nossa, o adultério não chega a ser ilegal e, pode-se dizer, ocorre com certa freqüência. Há, contudo, uma punição moral que estigmatiza a pessoa adúltera e, particularmente, a pessoa traída pelo parceiro, que perde prestígio junto à sociedade. (Os mecanismos de defesa estão expostos de forma mais pormenorizada no capítulo 5, destinado à Psicanálise.)

Ao expor o apelo sexual ou conteúdos que são restringidos aos vários segmentos sociais, a propaganda oferece um objeto de desejo imaginário (uma relação inconsciente), que se concretiza no produto anunciado. O produto não é motivo de restrição e, ao mesmo tempo, faz alusão ao desejo proibido ou de difícil realização (o conteúdo que foi recalcado no inconsciente no processo de desenvolvimento de uma cultura). [pg. 281]

O circuito se fecha quando, depois de capturado por essa dinâmica inconsciente, o consumidor justifica o uso constante do produto por suas características racionais. Assim, ninguém poderá confessar que compra determinado produto por associá-lo aos recônditos desejos sexuais, ou de poder, ou de aventura (tais desejos têm peso e valor diferentes, sendo que alguns são mais confessáveis que outros). O fumante, então, atribui ao sabor e à suavidade do cigarro sua preferência por tal marca. Escolhe-se determinada bebida alcoólica pelas suas características organolépticas (ligadas ao paladar) e o dentifrício “x” pelo sabor de menta ou pelo flúor que previne contra a cárie. Nós temos plena certeza de que o sabor de certo achocolatado é melhor que o de todas as outras marcas disponíveis no mercado. Curiosamente, “testes cegos” (quando a pessoa não sabe qual o produto experimentado) têm demonstrado que as pessoas não são capazes de reconhecer o produto da sua preferência quando comparado a um similar. Neste caso, cai por terra boa parte dos argumentos racionais apresentados para a escolha de um produto. Quem já fez um teste rigoroso com várias marcas de detergente em pó para saber qual delas lava mais branco? O que temos, na realidade, é a impressão de que a marca que utilizamos é a melhor e a propaganda é que nos garante a eficiência do produto.

A linguagem da sedução

A artimanha utilizada para o convencimento não precisa ser sofisticada ou trabalhar sempre com recônditos desejos. Ela pode estar embutida de forma sutil na construção lingüística da mensagem. Um fabricante de biscoito tem anunciado seu produto com uma pergunta: “Tostines é mais fresquinho porque vende mais ou vende mais porque é fresquinho?”. Há na pergunta uma tautologia (uma forma circular) que leva o consumidor, seja qual for a resposta, a considerar tal biscoito sempre [pg. 282] “fresquinho” e, portanto, melhor que os biscoitos concorrentes. Entretanto, os consumidores sabem que as outras marcas também oferecem biscoitos “fresquinhos”. A forma como a mensagem é apresentada conduz o consumidor incauto a considerar, de forma sutil (pois ninguém se detém a fazer análises lingüísticas dos comerciais), que aquela marca faz os melhores biscoitos (ao menos os mais “fresquinhos”). Evidentemente que, no caso do biscoito — um produto relativamente barato e acessível —, a mensagem não é o único critério que influi na decisão de compra. A experimentação do biscoito escolhido e do produto da concorrência também é um critério decisivo, pois será utilizado posteriormente na decodificação da mensagem. O comercial que promete um benefício não comprovado pelo consumidor durante a experimentação do produto ou serviço certamente será alvo de forte descrédito. A história do marketing apresenta inúmeros casos de produtos que foram lançados com um apoio de mídia muito bem elaborado e sofisticado e que, devido a promessas mal-equacionadas, resultaram em estrondosos fracassos de venda.

Propaganda ideológica

Um outro campo muito próximo do que acabamos de ver é o da propaganda ideológica. Neste caso, usa-se menos a técnica de comunicação para atingir mecanismos inconscientes que propiciem o convencimento para a compra de determinado produto (e, em alguns casos, de mecanismos conscientes e, na maioria dos casos, das duas formas combinadas). A propaganda ideológica trabalha com conteúdos ideacionais, com crenças que procuram alterar o campo cognitivo das pessoas. Sabe-se que a opinião é garantida por três fatores: a ação do indivíduo em relação a sua crença, o afeto dedicado à crença e o próprio conhecimento da existência do objeto de crença.

Se alguém for impedido de agir de acordo com a sua crença, esse impedimento produzirá um quadro de dissonância, o qual levará a pessoa a tentar superar o conflito criado pela proibição. Assim, o indivíduo ou tenderá a evitar a situação de controle de seu comportamento ou mudará sua crença. É evidente que, em muitas situações, as pessoas encontram maneiras de resistir às formas de controle e esta é uma característica humana muito valorizada. Os judeus foram duramente perseguidos desde a antiguidade e, no entanto, [pg. 283] sua cultura se mantém até hoje graças à resistência desse povo ao controle que lhes tentaram impor. A proibição ao culto judaico não foi obstáculo para a realização desta celebração.

Os fatores cognitivo e afetivo são os mais utilizados pela propaganda ideológica. Ambos podem ser alterados de acordo com a informação que temos sobre o objeto da comunicação. Exemplo: os conflitos étnicos registrados atualmente na Europa geram campanhas de parte a parte, nas quais procura-se conferir ao campo inimigo um atributo (mensagem que pode ou não ser verdadeira) até então desconhecido pela população a que se dirige a mensagem. A informação de que os sérvios promoveram verdadeiros massacres entre os muçulmanos da Bósnia visando uma “limpeza étnica” abalou qualquer simpatia que a opinião pública mundial poderia alimentar pela causa sérvia. Neste caso, um dado cognitivo novo (o massacre de muçulmanos) mudou a base afetiva em relação a um objeto da comunicação (a causa sérvia).

Muitas vezes, a propaganda contra uma causa é feita sem que informações objetivas sejam veiculadas. Apresenta-se o objeto da informação com a intenção de gerar, no receptor, antipatia pelo conteúdo trabalhado. Um exemplo disso é a capa da revista Veja na qual o líder do Movimento Sem-Terra (MST), Pedro Stedelli, foi colocado sob um fundo vermelho, com o semblante irado e o rosto avermelhado. A mensagem não era desfavorável (nem favorável) ao MST, mas Stedelli foi veiculado como se fosse o próprio diabo. Neste caso, o desconforto causado pela apresentação [pg. 284] da capa pode gerar antipatia dos leitores que tenham alguma restrição ao MST ou mesmo adotem uma posição de neutralidade. A antipatia (fator afetivo) é o componente que facilitará a mudança de posição em relação ao movimento que, de positiva, passará a negativa (fator cognitivo).

A construção da linguagem cinametográfica

A técnica de veiculação da imagem, desenvolvida principalmente pela linguagem cinematográfica e muito usada na propaganda ideológica e comercial, também é fonte de manipulação ideológica. Durante e após a Segunda Guerra Mundial, o próprio cinema foi muito utilizado pelos estadunidenses com objetivos publicitários. Os alemães também usavam o mesmo recurso e Goebbels, ministro da propaganda de Hitler, foi considerado um gênio publicitário pela maneira como conseguiu convencer boa parte do povo alemão dos ideais nazistas. O nazismo, felizmente, foi derrotado e os estadunidenses, por sua vez, passaram a usar a indústria cinematográfica para convencer o mundo de que o seu modo de vida era (é) o melhor. O padrão cultural estadunidense foi se espalhando pelo mundo, principalmente através do cinema e, mais recentemente, através da TV.

A linguagem cinematográfica é a linguagem da imagem, da expressão iconográfica da qual deriva um caráter subjetivo muito forte. Alguns autores dizem que a decodificação da imagem cinematográfica pode produzir um certo fragor, o que poderíamos traduzir por um incômodo na busca da significação. Assim, quando o cineasta escolhe um determinado plano de exposição da imagem, estará também escolhendo uma reação do público. Por exemplo, se o cineasta quiser transmitir à platéia a sensação de poder de uma personagem, usará um plano denominado sub-plongé, cuja tomada se dá com a câmera colocada de baixo para cima, a partir da cintura da personagem. Este recurso foi utilizado por Orson Welles num dos maiores clássicos de todos os tempos — Cidadão Kane. A platéia entende imediatamente o significado da imagem porque acompanha desde o início do filme a forma como Kane acumula riqueza e poder. Não é necessária nenhuma explicação mais elaborada. A imagem diz tudo.

Entretanto, quando esta técnica de linguagem cinematográfica é utilizada sem uma história que a sustente, como, por exemplo, [pg. 285] para apresentar ao público um determinado político, tal procedimento gera uma dissonância que, por sua vez, produzirá o fragor — uma forma de incômodo. A maneira encontrada para aplacar este incômodo será atribuir, ao político em questão, uma condição de poder que ele pode não possuir. É a forma como freqüentemente a mídia estadunidense apresenta o líder cubano Fidel Castro. Evidentemente, todos sabemos que Cuba não possui um milésimo do poderio militar dos Estados Unidos, mas os cubanos e, particularmente, seu líder, são apresentados como uma ameaça latente ao povo estadunidense. A imagem de Fidel Castro andando tranqüilamente entre os cubanos, em Havana, cumprimentando pessoas, conversando nas ruas, jamais é transmitida. Por sua vez, a imagem com tomadas sub-plongé são veiculadas ao extremo, corroborando a imagem “tirânica” construída pelos estadunidenses. No Iraque, pode-se dizer que Saddam Hussein utiliza este mesmo procedimento para satanizar a figura dos estadunidenses e convencer a população iraquiana de que a intervenção dos Estados Unidos no Oriente Médio é ilegítima; em Cuba, os meios de comunicação estão constantemente lembrando o povo cubano do perigo yankee (como são conhecidos os estadunidenses).

O recurso de propaganda ideológica sempre é acompanhado da contrapropaganda, e as técnicas utilizadas por um lado serão rapidamente assimiladas por outro. Num sentido bem mais estrito e doméstico, é o que vemos em nossas campanhas eleitorais pela televisão. O argumento de um candidato será imediatamente neutralizado pelo do seu concorrente. Para que as mensagens — com seus recursos objetivos e subjetivos — sejam assimiladas e decodificadas pelo receptor e para que este confira-lhes credibilidade para formar uma nova opinião sabre o assunto, é preciso que ele esteja predisposto a isso. A predisposição é avaliada pelos antecedentes de caráter social, os quais determinam não só a experiência com o fenômeno — no caso, o político — mas a opinião anterior sobre tal fenômeno. Se um candidato ao governo pretende mudar a sua imagem de corrupto junto à maior parte do eleitorado, ele poderá trabalhar a idéia de que realiza mais obras e, por isso, é mais competente para governar. Ele evita falar dos seus pontos fracos e atribui [pg. 286] ao desespero dos adversários os ataques à sua honra. Entretanto, para que a mensagem deste candidato tenha algum efeito, é preciso que a maioria do eleitorado esteja, naquele momento, desconsiderando questões éticas como parâmetro para o seu voto. Ou considere que esta questão não seja superior às necessidades de obras ou de maior policiamento.

Nas campanhas eleitorais, todos os recursos disponíveis de mídia e de linguagem cinematográfica são utilizados na apresentação de propostas de governo ou de atuação parlamentar, tornando tais campanhas cada dia mais próximas da linguagem publicitária (surgem os “marqueteiros” políticos) e distanciando-as do campo ideológico. Entretanto, temos, também, em nosso País, campanhas que trabalham como um divisor de águas ideológico.

São campanhas nas quais um candidato defende posições claramente sociais (de cunho socialista) ou neoliberais (que priorizam a economia de mercado). Neste caso, trata-se de uma discussão mais aberta, em que o eleitorado poderá debater e escolher a proposta de governo em campos ideológicos distintos. Ainda aqui, uma outra questão importante deve ser levantada: a interferência, neste campo ideológico, dos meios de comunicação de massa. Como a mídia está concentrada nas mãos dos empresários (principalmente os veículos de grande circulação ou audiência), os pontos de vista destes empresários são veiculados por suas empresas de comunicação, seja em editoriais, seja como notícia, podendo influenciar o eleitorado de forma decisiva em relação a determinada concepção política. Assim, voltamos ao início deste capítulo, quando falávamos do poder dos meios de comunicação de massa. Mas esse é um assunto que tem mais que ver com a construção da cidadania do que com as bases teóricas relacionadas à mídia.

Psicologia - Psicologia social
7/29/2021 12:43:29 PM | Por Ana Mercês Bahia Bock
A escola

A escola apresenta-se, hoje, como uma das mais importantes instituições sociais por fazer, assim como outras, a mediação entre o indivíduo e a sociedade. Ao transmitir a cultura e, com ela, modelos sociais de comportamento e valores morais, a escola permite que a criança “humanize-se”, cultive-se, socialize-se ou, numa palavra, eduque-se. A criança, então, vai deixando de imitar os comportamentos adultos para, aos poucos, apropriar-se dos modelos e valores transmitidos pela escola, aumentando, assim, sua autonomia e seu pertencimento ao grupo social. Sem a intenção de aprofundarmos o desenvolvimento da escola em nossa sociedade, valeria a pena introduzirmos alguns elementos desta história, pois a escola não existiu sempre: ela é uma criação social do homem.

Educar já significou, e talvez signifique ainda, em algumas regiões do Terceiro Mundo, apenas viver a vida cotidiana do grupo social ao qual se pertence. Assim, acompanhava-se os adultos em suas atividades e, com o passar do tempo, aprendia-se a “fazer igual”. Plantar, caçar, localizar água, entender os sinais do tempo, escutar histórias e participar de rituais eram atividades do grupo adulto, as quais iam sendo acompanhadas pelas crianças que, aos poucos, adquiriam instrumentos de trabalho e interiorizavam valores morais e comportamentos socialmente desejados. Não havia uma instituição especializada nessas tarefas. O meio social, em seu conjunto, era o contexto educativo. Todos os adultos ensinavam a partir da experiência pessoal. Aprendia-se fazendo.

A partir da Idade Média a educação tornou-se produto da escola. Pessoas especializaram-se na tarefa de transmitir o saber, e espaços específicos passaram a ser reservados para essa atividade. Poucos iam à escola, que era destinada às elites. Serviu aos nobres e, depois, à burguesia. A cultura da aristocracia e os conhecimentos religiosos eram o material básico a ser transmitido. [pg. 261] Enfim, as atividades desempenhadas pelos grupos dominantes na sociedade passavam a ser, cuidadosamente, ensinadas e isso fez da escola ora lugar de aprendizado da guerra, ora das atividades cavalheirescas, ora do saber intelectual humanístico ou religioso. A escola desenvolvia-se como uma instituição social especializada, que atendia aos filhos das famílias de poder na sociedade.

Com as revoluções do século 19, a escola passou por transformações, sendo a principal delas a tendência à universalização, ou seja, ela deveria atender a todas as crianças da sociedade (pelo menos em tese). O que permitiu tais transformações? Por que a escola precisou mudar?

O desenvolvimento da industrialização foi, sem dúvida, o fator decisivo das grandes mudanças ocorridas nos séculos 19 e 20. A industrialização deslocou o local do trabalho da casa para a fábrica, transformando, com isso, os espaços das casas e das cidades. Na casa, os lugares tornaram-se privativos, isto é, cada um conquistou seu espaço individual, como quartos, suítes, escritórios de estudo; na cidade, a organização urbana adaptou-se à existência das fábricas e à necessidade de os trabalhadores deslocarem-se de suas residências para os locais de trabalho. Assim, construíram-se vias públicas para os transportes coletivos levarem os trabalhadores de um lugar a outro da cidade. O trabalho ingressou na esfera pública, deixando de ocupar os espaços da casa.

Outra conseqüência desta mudança ocorreu na família, que não podia mais, sozinha, preparar seus filhos para o trabalho e para a vida social. Era preciso entregar essa função a uma instituição que soubesse educar, não mais para a vida privada, do círculo familiar e do trabalho caseiro, mas para o trabalho que se encontrava no âmbito da vida pública, cujas regras, leis e rotinas iam além dos conhecimentos adquiridos pela família. A escola tornava-se, assim, esta instituição especializada.

Além disso, a Revolução Industrial sofisticou o trabalho com a implantação das máquinas, exigindo do trabalhador o aprendizado da tecnologia. Esta sofisticação do trabalho levou novas funções para a escola, como a de preparar o indivíduo para o trabalho, ensinando-lhe o manuseio de técnicas até então desconhecidas, ou a [pg. 262] de fornecer-lhe os conhecimentos básicos da língua e do cálculo. A escola ganhou importância e ampliou suas funções.

A luta pela democratização da escola empreendida pelas classes trabalhadoras, até então alijadas desta instituição, foi outro fator gerador de  mudanças. As classes trabalhadoras, conforme foram se fortalecendo e se organizando, passaram a exigir o direito de ter seus filhos na escola, isto é, o direito de acesso à cultura e ao conhecimento dominantes. A escola, pressionada, “abriu” suas portas para atender a outras camadas sociais que não somente a burguesia e a aristocracia. A escola universalizava-se.

Estes fatores contribuíram para que a escola adquirisse as características que possui hoje em nossa sociedade: uma instituição da sociedade, trabalhando a serviço desta sociedade e por ela sustentada a fim de responder a necessidades sociais e, para isso, a escola precisa exercer funções especializadas. A escola cumpre, portanto, o papel de preparar as crianças para viverem no mundo adulto. Elas aprendem a trabalhar, a assimilar as regras sociais, os conhecimentos básicos, os valores morais coletivos, os modelos de comportamento considerados adequados pela sociedade. A escola estabelece, assim, uma mediação entre a criança (ou jovem) e a sociedade que é técnica (enquanto aprendizado das técnicas de base, como a leitura, a escrita, o cálculo, as técnicas corporais e musicais etc.) e social (enquanto aprendizado de valores, de ideais e modelos de comportamento). Apreender esses elementos sempre foi necessário. A escola é a forma moderna de operar essa transmissão.

Até aqui parece que tudo está perfeito. Quais são os problemas da escola?

Problemas da escola

São muitos e vamos comentar alguns deles. Para deixar mais clara a nossa apresentação, chamamos a sua atenção para dois aspectos presentes nos problemas da escola: o aspecto teórico da educação, que se refere às concepções apresentadas nas teorias pedagógicas, e o prático, que se refere ao cotidiano da educação escolar. Os problemas da escola situam-se nestas duas esferas: nas concepções pedagógicas e na realidade cotidiana. [pg. 263]

A claurura escolar

As teorias pedagógicas, ao conceberem a escola como instituição isolada da sociedade, criaram-lhe um dos seus principais problemas. A escola, que deveria fazer a mediação entre o indivíduo e a sociedade, tornou-se uma instituição fechada, destinada a proteger a criança desta mesma sociedade — construiu-se, então, uma fortaleza da infância e da juventude. Para proteger contra o quê? Contra os perigos que advêm da sociedade, responsabilizada por todos os males e corrupções.

É interessante registrarmos aqui que a escola, criada e sustentada pela sociedade com a finalidade de preparar o indivíduo para viver na sociedade e cujos elementos são todos advindos do meio social — conhecimentos, técnicas, desafios —, passa a ser pensada, nas teorias pedagógicas, como instituição isolada deste meio, como se nele não estivesse imersa. Criou-se, então, a ilusão de ser possível preparar o indivíduo para viver o cotidiano da sociedade estando ele de fora deste cotidiano, em um desvio — o desvio escolar. Assim pensada, a escola acaba por ensinar um conhecimento distante da realidade social. Nesta concepção, chega-se, de fato, a erguer muros para que a realidade não entre na escola; criam-se regras diferentes das vigentes na sociedade, enfim, substitui-se a realidade social pela realidade escolar. Enclausuram-se as crianças e os jovens em nome da educação.

A clausura escolar é ilusória, pois a realidade social entra pela porta dos fundos, invade as salas de aula, podendo ser encontrada nos livros, nos valores ensinados e nas atividades desenvolvidas. Mas, apesar de ilusória, esta clausura determina o distanciamento da escola do cotidiano vivido pelos seus integrantes. Assim, os conteúdos são ensinados como se nada tivesse que ver com a realidade social; as regras são tomadas como absolutas e naturais; a autoridade na escola é inquestionável; a vida de cada um fica (mesmo que ilusoriamente) do lado de fora da escola. Os uniformes igualam a todos; as notas de aproveitamento são tomadas como resultantes apenas do trabalho realizado na escola e pela escola; o esforço pessoal torna-se fator decisivo do sucesso ou do fracasso escolar. Aliás, o fracasso é explicado basicamente pela falta de empenho e esforço do aluno. No máximo, chega-se a responsabilizar os pais pelo insucesso do filho. Nunca a escola!, que sai ilesa destas avaliações.

Talvez você esteja se perguntando: por que este distanciamento da escola em relação à realidade social é visto como um problema? Por dois motivos. Primeiro: porque este distanciamento não é verdadeiro. A escola reproduz os valores sociais, os modelos de comportamento, os ideais da sociedade; ensina o conteúdo que está sendo aplicado na produção da riqueza e da sobrevivência do [pg. 264] grupo social. Quando ensina estes conteúdos sem explicar que integram nossa vida cotidiana, a escola dificulta o surgimento dos questionamentos, ou seja, universaliza este saber, impedindo que outros saberes possam ser também veiculados e valorizados — é como se só existissem esses saberes. Segundo: a escola, ao escolher este distanciamento, opta também por um modelo de homem a educar — um homem passivo perante o seu meio social, pois não sabe aplicar os conhecimentos aprendidos na escola para melhor entender o seu mundo e nele atuar de forma mais eficiente.

A escola não deve ser pensada como fortaleza da infância, como instituição que enclausura seus alunos para melhor prepará-los. É preciso articular a vida escolar com a vida cotidiana; articular o conhecimento escolar com os acontecimentos do dia-a-dia da sociedade.

O saber é o instrumento básico na escola. Para quê?

Outro problema da escola é a forma como concebe e lida com o saber — seu instrumento básico no trabalho de desenvolver os indivíduos. No entanto, algo que parece tão simples — transmitir o saber acumulado — pode se tornar fonte de variados problemas. Um primeiro já pode ser levantado: como a escola entende a finalidade de sua missão social? As finalidades da escola são colocadas, nas teorias pedagógicas e no cotidiano, como sendo culturais: transmitir o conhecimento acumulado pela humanidade para que as pessoas possam se aperfeiçoar e cumprir funções sociais importantes. Assim, para as teorias pedagógicas, o lugar social que o indivíduo ocupará na sociedade depende do grau de cultura que adquirir. A escola atesta o saber através de diplomas, que se tornam passaportes para a vida social. O grau de cultura que o diploma atesta é tomado como a possibilidade de o indivíduo diplomado ocupar lugares na sociedade. Há mentiras no discurso sobre a escola e esta é uma delas. Assim, um médico e um advogado ocupam estes lugares porque, por esforço próprio, adquiriram o grau de cultura necessário para o exercício dessas funções. Contudo, não é menos evidente que o grau de cultura adquirido pelo indivíduo decorre do lugar social ocupado por sua família, ou seja, este lugar social da família define o grau de cultura que seu membro poderá obter. Assim, o garoto da favela dificilmente será advogado. Mesmo que este garoto se esforce para obter um maior grau de cultura, dificilmente alcançará seu objetivo. Ele terá de superar inúmeras dificuldades, como manter-se na escola, entendendo sua linguagem e sua dinâmica; arcar com todos os gastos que ela acarreta — condução, uniforme ou roupa adequada, material, atividades externas [pg. 265] etc. Por outro lado, o garoto da família rica ou de classe média, mesmo que decida não freqüentar a escola, dificilmente perderá seu padrão de vida e seu lugar social. Assim, se decidir ser motorista de caminhão, logo poderá se tornar um empresário do transporte.
Um outro problema também está relacionado cora a dificuldade demonstrada pela escola de lidar com o saber, pois, ou ensina as respostas aos alunos sem que eles tenham feito as perguntas, ou estimula as perguntas e menospreza a importância de se obter respostas. As escolas mais tradicionais, por exemplo, não acreditam que seus alunos possam ter assuntos interessantes para contar ou perguntas estimuladoras para fazer. Assim, colocam-nos quietos, olhando para o professor que, sobre um tablado, ensina o conhecimento necessário.

Mas, para que serve este conhecimento? Esta é a pergunta que fica. Nas escolas mais renovadas, o problema aparece de forma invertida. Diversos recursos são utilizados para estimular o aluno a fazer perguntas sobre os mais variados assuntos. O importante é perguntar. Muitas vezes, no entanto, as crianças acabam não tendo as respostas adequadas para as suas perguntas, e o ato de perguntar vai se esvaziando lentamente, até perder todo o seu sentido.

Saber é perguntar. Saber é conhecer respostas. A escola precisa articular adequadamente estas duas atividades.

A escola como meio que prepara para a vida

Nas teorias pedagógicas e no cotidiano escolar, a escola também é definida como um meio que prepara para a vida. Mas como pode fazer isso sendo um meio fechado, que volta as costas para a realidade social? A escola tem se organizado a partir, apenas e fundamentalmente, da noção de cultura. Acredita que “cultivando” o indivíduo, isto é, ensinando-lhe a cultura acumulada pela humanidade, conseguirá desenvolver o que nele há de melhor. Veja bem, a escola pressupõe que há um indivíduo a ser desenvolvido dentro de cada um de nós que, por natureza, é bom. Ou seja, trazemos uma sementinha dentro de nós que desabrochará no contato com a cultura e nos tornará bons cidadãos. Por isso as escolas para a infância se chamavam [pg. 266] “jardim-de-infância”. Prepara-se o indivíduo no que ele tem de bom para, após um certo tempo, entregá-lo à sociedade a fim de transformá-la na direção do que é naturalmente bom nos homens. E uma leitura possível, não resta dúvida. Mas é preciso cuidado com tal concepção, pois se permite pensar a escola como uma instituição que isola os indivíduos para protegê-los, permite também pensá-la de outra forma, ou seja, apropriando-se deste discurso de proteção para criar indivíduos à imagem e semelhança dos valores sociais dominantes.

Na verdade, a escola, como instituição social, estabelece um vínculo ambíguo com a sociedade. É parte dela e, por isso, trabalha para ela, formando os indivíduos necessários à sua manutenção. No entanto, é tarefa da escola zelar pelo desenvolvimento da sociedade e, para isso, precisa criar indivíduos capazes de produzir riquezas, de criar, inventar, inovar, transformar. Diante desse desafio, a escola não pode ficar presa ao passado, ao antigo, à tradição. Esta brecha abre a possibilidade para o surgimento de uma escola crítica e inovadora. E preciso ter clareza desta ambigüidade da escola no trabalho educacional, pois esta ambigüidade ao mesmo tempo nos coloca a necessidade de estarmos presos à realidade social e de sermos críticos e inovadores. Esta é a brecha da escola transformadora. A escola, como dissemos no início, faz a mediação entre o indivíduo e a sociedade. Conhecer a sociedade, seus modelos e seus valores é sua tarefa. Aprender os modelos como sociais (e não como naturais), que respondem às necessidades do momento histórico, que variam no tempo e nos grupos sociais, é tarefa da escola que se pretende crítica. A vida escolar deve estar articulada com a vida social. Outros problemas ainda existem:

  • A escola surgiu para responder a necessidades sociais de preparo do indivíduo para a vida pública. A família ficou apenas com a formação moral de seus filhos. Hoje, a escola ocupa grande parte da vida de seus alunos. Ensina técnicas, valores e ideais, ou seja, vem cada vez mais substituindo as famílias na orientação para a vida sexual, profissional, enfim, para a vida como um todo. A escola está preparada para essa tarefa? Os professores dispõem de métodos e técnicas adequadas para cumprir tal função? [pg. 267]
  • Cada vez mais aumenta a pressão para a alfabetização precoce. As crianças entram no 1º ano do ensino fundamental sabendo ler e escrever. O que exigiu essa antecipação? E as crianças que não freqüentaram as pré-escolas? Os efeitos individuais e sociais da alfabetização precoce ainda são desconhecidos. É preciso compreender melhor o fenômeno que está mudando a escola para que possamos realizar o trabalho escolar conscientes das novas tarefas que nos são colocadas.
  • Outro conjunto de problemas refere-se à concepção de aluno. Como o professor o vê e o concebe? Como as famílias e os alunos vêem e concebem o professor? A forma de significar é importante para entendermos a relação que se estabelece entre professores e alunos. — Alunos podem ser vistos como receptáculos, onde o conhecimento deve ser depositado. — Professores podem ser vistos como adultos autoritários que impõem atividades e conteúdos sem importância ou valor. Estas duas visões dificultam a relação entre professores e alunos. Confrontos, violência, abusos de autoridade, atos delinqüentes são fatos que surgem no cenário da escola, lugar designado pela sociedade como de preparo para a vida social. O vínculo professor-aluno é o sustentáculo da vida escolar. Tal vínculo deve se estabelecer de forma a viabilizar todo o trabalho de ensino-aprendizagem. Precisamos ter professores preparados, que estabeleçam uma parceria com seus alunos, a qual permita o diálogo com o conhecimento. Muitas vezes o aluno é visto como alguém que tem pouco a contribuir no processo educacional, devendo acompanhar, em silêncio e atento, o que o professor ensina. Como a geração da MTV (Music Television) e da Rádio Transamérica (cuja programação está voltada para a dance music) poderá ficar tão parada por tanto tempo? Um mundo de silêncio e imobilidade tem caracterizado a escola.
  • Nada que se refira às brincadeiras e ao lazer tem lugar na sala de aula. A seriedade deste espaço opõe-se ao brinquedo, à brincadeira, ao riso, ao lúdico. A escola vem se tornando um lugar “carrancudo”, e ela não precisa ser assim. Pode desenvolver seu trabalho, com autoridade, em um ambiente descontraído e alegre. Deve haver uma possibilidade de o aluno ser feliz na escola!
  • A realidade dos jornais não é apresentada na escola, pois pressupõe-se que tal realidade não tem nada que ver com o que se está aprendendo na sala de aula. É preciso injetar realidade na escola. [pg. 268] É preciso falar da vida cotidiana, pois o conhecimento aprendido deve ampliar o conhecimento que temos do mundo e, conseqüentemente, contribuir para torná-lo um lugar cada vez melhor para se viver.
  • As regras morais são rigidamente cobradas. Ao aluno cabe escutar, obedecer, acreditar e submeter-se. Ao professor cabe saber, ordenar, decidir, punir. Ambos predestinados a papéis rigorosamente definidos. Sanções estão previstas  para os deslizes. As regras não podem ser ensinadas como verdades absolutas. Elas precisam ser ensinadas como “acordos sociais” para melhorar nossas relações. Esta é a única função das regras sociais. Mas se elas tornam-se instrumentos de tortura e fonte de conflitos, há que se perguntar se algo não está errado.
  • A escola tem sido uma continuidade da vida das crianças das classes média e alta de nossa sociedade. Elas viajam, vão a museus, conhecem outros países, outras línguas, têm uma riqueza de informações e estimulações que pode ser trabalhada e aprofundada na escola. No entanto, para as crianças e os jovens que têm o mundo do trabalho como seu espaço cotidiano, a escola é uma quebra. As rotinas escolares, as atividades e os conteúdos apresentados estão distantes de suas vidas e não há como ver na escola qualquer utilidade para seu desenvolvimento. Apenas o discurso da sociedade e a exigência do diploma na hora de obter um emprego melhor lhes dão a certeza de que é preciso insistir. A maior parte de nossas crianças pobres são “evadidas” da escola. Uma seqüência de tensões, dificuldades, fracassos, desinteresses dos professores, desencorajamento e reprovação afastam-nas da escola — um mundo que fala de coisas estranhas, em linguagem estranha, comandado por adultos estranhos. É preciso fazer a escola para os alunos e não o inverso.
  • As crianças não chegam às escolas em pé de igualdade, pois tiveram experiências de vida muito diferentes. Os programas universais, cora o discurso da busca da igualdade, colaboram para a manutenção das desigualdades. Os programas escolares não levam em conta as diferenças sociais. Exigem os mesmos produtos, avaliam da mesma forma, ensinam da mesma maneira a crianças que têm vidas muito diferentes. Ignorar as diferenças é trabalhar para aprofundá-las. [pg. 269]

Mas se a escola é tão ruim assim, por que mantê-la? Nos anos 60, autores como Ivan Illich, Bourdieu e Passeron pregaram o fim da escola. Alegavam ser tal instituição um aparelho ideológico do Estado com a finalidade de reproduzir a mão-de-obra submissa e a ideologia dominante. Hoje, há argumentos convincentes para mantermos a credibilidade da escola e enveredarmos esforços para transformá-la.

A escola constitui um importante local de troca, de obtenção de informação e de aprendizado da investigação. É na escola que formulamos grande parte das respostas e das perguntas necessárias à compreensão de nossas vidas, de nossa sociedade e de nosso cotidiano; é o espaço no qual podemos adquirir a idéia do tempo histórico e da transformação que a humanidade produziu. Na escola podemos aprender que nem todas as pessoas pensam e agem da mesma forma e que essa diferença no modo de pensar e agir deve ser valorizada por todos nós. Muito do aprendizado para o trabalho acontece no ambiente escolar. A escola precisa ser transformada e a busca por tal transformação constitui um desafio que não pode ser confundido com a defesa do fim desta instituição.

Podemos retomar aquela ambigüidade já citada e usá-la como primeiro argumento de defesa da escola: as contradições apresentadas pela escola criam brechas para o trabalho crítico.

Valores básicos na sociedade capitalista, como liberdade individual, autonomia, criatividade e capacidade de tomar decisões, exigirão da escola uma abertura em seu conservadorismo e autoritarismo.

Segundo argumento: entendemos a escola como uma das várias instituições existentes na sociedade. Portanto, ela não pode ser considerada a única responsável pela criação da mão-de-obra submissa e pela reprodução dos valores dominantes. A escola participa deste jogo social, mas as transformações sociais ocorrem de forma mais ampla, abrangendo outras instituições sociais, como a família, os meios de comunicação de massa, o Congresso Nacional e as leis. Os educadores progressistas reivindicam para a escola o direito de participar deste jogo social e contribuir para a transformação da sociedade. Não será extinguindo a escola que tais anseios serão alcançados.

Terceiro e último argumento: necessitamos da escola que, como já dissemos, faz a mediação entre as crianças e os modelos sociais. A escola pode e deve ensiná-los de maneira crítica. Deve ensinar às crianças a historicidade dos modelos e como eles foram se modificando no tempo, conforme os homens foram transformando suas formas de vida e suas necessidades. A simples imersão da criança e do jovem no meio social não lhes garantirá um aprendizado crítico dos modelos. A escola, nesta perspectiva, torna-se fator de mudança, de movimento, de transformação. Ela pode e deve assumir este papel. [pg. 270]

Como você pôde perceber, se por um lado a escola apresenta problemas — não são poucos! —, por outro não faltam propostas para solucioná-los. Esperamos tê-lo convencido do importante papel desempenhado por esta instituição em nossa sociedade. Agora, deixamos para você e para o seu professor o desafio de encontrar um jeito mais gostoso, mais lúdico, motivador, interessante e socialmente necessário de “fazer escola”. Sabemos que não é fácil, senão teríamos colocado aqui todas as receitas. Mas também sabemos que o difícil não é impossível. Para você não dizer que lhe deixamos a parte difícil, colocamos, como estímulo para o debate, algumas considerações:

  • A escola precisa ser articulada com a vida.
  • O conhecimento acumulado pela humanidade não é intocável, ou seja, deve estar sempre se renovando e se reconstruindo. Afinal, fazemos parte da humanidade que produz conhecimento, o qual deve ser aprendido como resposta a perguntas feitas pelos homens no momento em que o produziam. Que perguntas os homens já se fizeram? A que perguntas os conhecimentos que estamos aprendendo hoje respondem?
  • Quais são as principais regras que conduzem nossos comportamentos? Que modelos nossa sociedade valoriza e nos ensina? Por que tais modelos e regras? É importante perceber as regras como formas que os homens encontraram de melhorar a convivência. Elas são necessárias, o que não nos impede de compreender a que necessidades sociais procuram atender.
  • Alunos e professores devem ser parceiros no diálogo com o conhecimento. Precisamos ver o trabalho escolar como um diálogo com o conhecimento já acumulado. Dialogar é perguntar, ousar respostas, tentar compreender por que algo é assim e não de outro modo. É preciso dialogar com o conhecimento mediado pelo professor, que deve ser visto como parceiro no processo educacional.
  • Escola para quê? É importante trabalhar esta pergunta. Não é preciso encontrar uma resposta, mas “ensaiar” encontrá-la. O mesmo procedimento deve ser adotado a cada conteúdo introduzido. Para que este conhecimento? Deve-se ressaltar aqui que nem todos os conhecimentos têm aplicação imediata. São úteis porque desenvolvem a possibilidade da reflexão e aumentam nossa compreensão sobre a realidade que nos cerca.
  • Nossa última consideração: a realidade que nos cerca, esta sim, é a finalidade da escola. Todo o trabalho desta instituição social está e deve estar voltado para a realidade, da qual buscamos melhorar nossa compreensão para transformá-la permanentemente. Os homens criaram a escola com essa finalidade, aperfeiçoaram-na para isso e sucatearam-na para impedir a compreensão e a transformação da realidade. Cabe retomar a finalidade primeira da escola. [pg. 271]
Psicologia - Psicologia Escolar e Educacional
7/28/2021 2:42:56 PM | Por Ana Mercês Bahia Bock
Família, o que esta acontecendo com ela

Até um tempo atrás — não faz muito tempo! — o modelo de família consistia em pai-mãe-prole. Esse modelo de estrutura familiar era considerado ideal pelo modo dominante de pensar na sociedade e, por isso, bastante usado para classificar todos os outros modos de organização familiar como desestruturados, desorganizados e problemáticos. Nesta compreensão de família há, sem dúvida, um julgamento que não é científico, mas moralista, pois utiliza um padrão como referência e considera os outros inadequados. Atualmente, é impossível não-enxergar — vários estudos antropológicos e mesmo reportagens em revistas, jornais e TV mostram — que existem muitas e inúmeras formas de estrutura familiar: a família de pais separados que realizam novas uniões das quais resulta uma convivência entre os filhos dos casamentos anteriores de ambos e os novos filhos do casal; a família chefiada por mulher (em todas as classes sociais), a nuclear, a extensa, a homossexual, enfim, observa-se uma infinidade de tipos que a cultura e os novos padrões de relações humanas vão produzindo. Isso sem considerarmos culturas bastante diferentes, como os grupos indígenas, por exemplo. [pg. 247]

Para entendermos as mudanças na concepção de família, a função social desta instituição (a família é uma instituição social) e a produção de subjetividade que ocorre em seu interior, é necessário (como sempre!) recorrer à história.

A família monogâmica é um ponto de partida histórico — sempre precisamos partir de um ponto! —, embora devamos considerá-la como produto de muitas e diversificadas formas anteriores de o homem organizar-se para dar conta da sua reprodução e da sobrevivência da espécie (desde o estado selvagem até a barbárie). Pesquisas realizadas pelo antropólogo estadunidense L. H. Morgan (1818-1881) demonstraram que, desde a origem da humanidade, houve, sucessivamente:

  • a família consangüínea — intercasamento de irmãos e irmãs carnais e colaterais no interior de um grupo;
  • a família punaluana — o casamento de várias irmãs, carnais e colaterais, com os maridos de cada uma das outras; e, os irmãos também se casavam com as esposas de cada um dos irmãos. Isto é, o grupo de homens era conjuntamente casado com o grupo de mulheres;
  • a família sindiásmica ou de casal — o casamento entre casais, mas sem obrigação de morarem juntos. O casamento existia enquanto ambos desejassem;
  • a família patriarcal — o casamento de um só homem com diversas mulheres;
  • e, finalmente, a família monogâmica, que se funda sobre o casamento de duas pessoas, com obrigação de coabitação exclusiva... a fidelidade, o controle do homem sobre a esposa e os filhos, a garantia de descendência por consangüinidade e, portanto, a garantia do direito de herança aos filhos legítimos, isto é, a garantia da propriedade privada. A idéia de propriedade — criar, possuir e regular através de direitos legais sua transmissão hereditária — introduz esta forma de organização familiar: é necessário ter certeza sobre a paternidade dos filhos e de que o patrimônio não irá sair da família, ou seja, o reino, as terras, os castelos, os escravos, a fábrica, o banco, as ações da Bolsa etc.

Vamos percebendo, então, que a família, como a conhecemos hoje, não é uma organização natural nem uma determinação divina. A organização familiar transforma-se no decorrer da história do homem. A família está inserida na base material da sociedade ou, dito de outro modo, as condições históricas e as mudanças sociais determinam a forma como a família irá se organizar para cumprir sua função social, ou seja, garantir a manutenção da propriedade e do status quo das classes superiores e a reprodução da força de trabalho — a procriação e a educação do futuro trabalhador — das classes subalternas. [pg. 248]

Por assumir papel fundamental na sociedade — é chamada de célula mater da sociedade — a família é forte transmissora de valores ideológicos1. A função social atribuída à família é transmitir os valores que constituem a cultura, as idéias dominantes em determinado momento histórico, isto é, educar as novas gerações segundo padrões dominantes e hegemônicos de valores e de condutas. Neste sentido, revela-se o caráter conservador e de manutenção social que lhe é atribuído: sua função social.

Não podemos nos esquecer de que a família — lugar reconhecido como de procriação — é responsável pela sobrevivência física e psíquica das crianças, constituindo-se no primeiro grupo de mediação do indivíduo — daquele bebê, que está ali no berço — com a sociedade. É na família que ocorrem os primeiros aprendizados dos hábitos e costumes da cultura. Exemplo: o aprendizado da língua, marca da identidade cultural e ferramenta imprescindível para que a criança se aproprie do mundo à sua volta. É na família que se concretiza, em primeira instância, o exercício dos direitos da criança e do adolescente: o direito aos cuidados essenciais para seu crescimento e desenvolvimento físico, psíquico e social.

A família, do ponto de vista do indivíduo e da cultura, é um grupo tão importante que, na sua ausência, dizemos que a criança ou o adolescente precisam de uma “família substituta” ou devem ser abrigados em uma instituição que cumpra as funções materna e paterna, isto é, as funções de cuidado e de transmissão dos valores e normas culturais — condição para a posterior participação na coletividade. Portanto, inexistindo a família de origem — consangüínea, biológica —, outro grupo deverá dar conta de sua função.

Ao mesmo tempo, observamos que estas funções são repartidas com outras agências [pg. 249] socializadoras: as instituições educacionais — creches, pré-escolas, jardins-de-infância, escolas — e os meios de comunicação de massa. Em todas as classes, as crianças estão indo cada vez mais cedo para as instituições educacionais. Os motivos são os mais diversos, sendo que um deles deve ser ressaltado: a entrada da mulher no mercado de trabalho, quer para garantir a renda familiar, quer como projeto de vida profissional.

E aí estamos de novo diante de uma mudança cultural — no caso, o papel da mulher —, um fator econômico produzindo efeitos no interior da família, na relação mãe-filho e na qualidade deste vínculo.

É interessante perceber como a família vive as interferências do mundo social, de novas realidades históricas que vão produzindo pessoas diferentes e novas subjetividades.

Outro aspecto relevante a ser observado é o importante papel que os meios de comunicação de massa (particularmente a TV) têm cumprido na educação da criança e do adolescente, os quais estão expostos, cada vez mais cedo, às influências destas agências socializadoras. Observe a criança de três anos vestida como aquela apresentadora famosa da TV, ou a que pede de presente a roupa do super-herói do momento.

Mesmo que a função socializadora, de formação das novas gerações, não seja delegada exclusivamente a estas instituições — escola, meios de comunicação de massa — constatamos que, cada vez mais, elas influenciam as novas gerações: no seu modo de ser e estar no mundo... agora e mais tarde.

Apontar estas questões em um capítulo sobre a família é necessário para que possamos estar atentos — o tempo todo — às múltiplas determinações do humano, do mais íntimo de si, desde o nascimento. Facilita, também, compreender por que o homem que nasceu em meados do século 20 e passava os primeiros anos de vida no interior da família, grudado a “barra da saia da mãe”, sem ouvir conversas de adulto, cora muitos assuntos considerados tabus (doenças, tragédias, sexo), é tão diferente do que hoje vai para o berçário com 120 dias, está exposto a uma grande variedade de estímulos visuais e auditivos desde que nasce e, precocemente, assiste às telenovelas, “participa” de todas as conversas domésticas, escolhe a roupa que vai vestir. Portanto, voltando ao tema do capítulo — saímos dele? —, há uma citação do psicanalista francês Jacques Lacan, em Os Complexos Familiares, que permite sintetizar o que foi colocado até aqui e avançar. Lacan define assim a família:

“Entre todos os grupos humanos, a família desempenha um papel primordial na transmissão de cultura. Se as tradições espirituais, a manutenção dos ritos e dos [pg. 250] costumes, a conservação das técnicas e do patrimônio são com ela disputados por outros grupos sociais, a família prevalece na primeira educação, na repressão dos instintos, na aquisição da língua acertadamente chamada de materna. Com isso, ela preside os processos fundamentais do desenvolvimento psíquico.”

Por que Lacan afirma que a família preside os processos fundamentais do desenvolvimento psíquico da criança? Se considerarmos os três pontos levantados pelo autor — a primeira educação, a repressão do desejo e a aquisição da linguagem — teremos a resposta.

A primeira educação

Mesmo antes do nascimento do filho, vemos a preocupação dos pais com a cor de sua roupa. E já podemos perguntar por que azul e não rosa para o menino? Outra preocupação refere-se à escolha do nome: do santo de devoção, daquele avô tão querido ou do artista de sucesso?

Antes de nascer, a criança vai ocupando um lugar na família, no cenário social, e o que a espera são os hábitos da cultura metabolizados pela sua família, já revelados no modo diferente de esperar a chegada do menino e da menina. Isto porque às diferenças biológicas são atribuídas representações sociais, expectativas de conduta para cada gênero.

Tudo parece tão natural que é estranho, a qualquer um de nós, imaginar uma luva de boxe como enfeite do quarto de maternidade em que se encontra uma menina, ou uma bonequinha pendurada na porta do quarto de um menino.

É com essa naturalidade que se processa a primeira educação. Tudo parece óbvio. O exemplo mais claro é o da educação em função da diferença anatômica dos sexos. As crianças encontram nos pais os modelos de como os adultos comportam-se — como atendem ao telefone e às visitas; como se portam à mesa, resolvem conflitos e lidam com a dor; o que pensam sobre os acontecimentos do mundo etc. Os pais são os primeiros modelos de como é ser homem e ser mulher: padrões de conduta que, em nossa cultura, são marcadamente diferentes. [pg. 251]

Assim, a família reproduz, em seu interior, a cultura que a criança internalizará. É importante considerar aqui o poder que a família e os adultos têm no controle da conduta da criança, pois ela depende deles para sua sobrevivência física e psíquica. Basta lembrar que uma criança de oito meses depende de alguém para obter alimentos e que uma criança de três anos depende de alguém para levá-la ao médico, A criança necessita, também, das ligações afetivas estabelecidas com seus cuidadores e as quais ela não quer (não pode!) perder. O medo de perder o amor (e os cuidados) desses adultos que lhe são tão importantes é um poderoso controlador de sua conduta e ela, pela “vigésima” vez, recita para o vizinho aquela poesia que tanto a aborrece, mas faz a alegria do pai no exercício de exibição dos dotes do seu filho.

A importância da primeira educação é tão grande na formação da pessoa que podemos compará-la ao alicerce da construção de uma casa. Depois, ao longo da sua vida, virão novas experiências que continuarão a construir a casa/indivíduo, relativizando o poder da família.

Mas essa já é outra história.

A repressão do desejo

Ao nascer, a criança encontra-se numa fase de indiferenciação com o mundo — não existe mundo externo (o outro) nem interno (o eu). O mundo, neste momento da vida, significa a mãe. Esta é a díade fundamental que cada pessoa vivencia ao nascer. A marca desta relação é a fusão, isto é, não existe, para quem acabou de nascer, o eu e o outro (o mundo). Esta diferenciação vai se estabelecendo paulatinamente, e uma experiência importante desse desenvolvimento é o tempo (cronológico) que a criança espera para a satisfação de suas necessidades. Ela começa a registrar que há um desconforto — a fome, por exemplo — e que este estado não é automaticamente superado; a criança precisa esperar que algo aconteça: o seio ou a mamadeira deve chegar... e, para isso, depende de alguém — a mãe ou sua substituta nesta função.

A diferenciação do ego — magistralmente descrita por Freud em A Psicologia de massa e a análise do ego — é um processo em que, ao princípio do prazer (que rege o funcionamento psíquico), interpola-se o princípio da realidade, isto é, surgem os limites impostos pela realidade. Assim, a satisfação, para ser obtida, deve ser postergada (esperar) e, às vezes, substituída por outro objeto de satisfação (ao invés do bico do seio, aparece uma [pg. 252] chupeta... que estranho!) ou (com freqüência) ocorrem as primeiras vivências de frustração, de não-satisfação. A frustração marca a experiência humana desde o nascimento e é algo constitutivo da humanidade de todos nós.

Ao lado desse aspecto intrínseco à constituição psíquica, existe outro que vai construindo a subjetividade da criança e é fundante da vida psíquica: a interdição — lei social que se ancora na subjetividade ao marcar a repressão do desejo, seja dos impulsos agressivos, seja dos impulsos eróticos. Em nossa cultura, o tabu do incesto é um exemplo clássico desta marca da repressão. O filho não pode ter relações sexuais com a mãe, nem a filha com o pai, embora mãe e pai sejam seus primeiros objetos de amor erótico (segundo a Psicanálise, é claro!). Este desejo é inconsciente e a repressão coloca sua marca neste inconsciente; “é como se nada houvesse existido”. No jogo da vida familiar, a criança irá incorporando outras proibições relativas à obtenção do prazer e à expressão de seus sentimentos hostis. “Tira a mão daí, é feio!” é uma frase que muitas crianças ouvem quando estão se masturbando; ou esta outra: “Não pode bater no amiguinho, tem que conversar”.

A aquisição da linguagem

A linguagem é a condição básica para que a criança “entre” no mundo, aproprie-se dele — do que significam as coisas, os objetos, as situações — e nele interfira. Isso é o que realiza a dimensão humana e social de cada pessoa. A linguagem é uma ferramenta necessária e imprescindível para a troca e comunicação com o mundo e, também, para a relação consigo mesma. Através da linguagem, a criança nomeia seus afetos e desejos, troca-os com o outro e os compreende, dando sentido ao que ocorre dentro de si.

Na fase anterior à aquisição da linguagem, os impulsos estão livres e o inconsciente prepondera. É no contato com a realidade — que se dá, principalmente, através da linguagem — e pela compreensão dos mecanismos que a regulam que a criança vai discriminando o seu desejo e o que é ou não permitido satisfazer. A linguagem é o instrumento privilegiado que possibilita a compreensão dessa realidade. A família, como primeiro grupo de pertencimento do indivíduo, é, por excelência, em nossa sociedade, o espaço em que este aprendizado ocorre, embora possa ocorrer também em qualquer grupo humano do qual participe em seus primeiros anos de vida. [pg. 253]

Outras considerações importantes sobre a família

  1. Pedro volta e meia briga feio com Francisco. Até já chegou a dar uns tapas nele. Hoje, Pedro brigou na escola com Tiago porque este tirava um “sarro” de Francisco, numa rodinha de amigos. Qual a relação de parentesco entre Pedro e Francisco? Não há dúvida... são irmãos. Uma relação de amor, rivalidade, cuidado, hostilidade. Uma relação humana rica, cheia de ambivalência, multifacetada; com desvantagens — dividir o amor dos pais, a atenção deles, o quarto, as roupas — e muitas vantagens — a possibilidade de companheirismo, de solidariedade, de cumplicidade e, principalmente (a vantagem invisível), de vivenciar, no cotidiano, a aprendizagem das relações sociais com iguais, algo extremamente facilitador como treino de participação social nos mais diferentes grupos humanos. Este vínculo significativo e a característica da ambivalência — a existência do amor e do ódio — denunciam o que é próprio de todo o vínculo em que existe proximidade, intimidade: a possibilidade de expressar o amor e, também, a raiva. Em suma, a garantia de que não perderá o amor e de que este prevalecerá sobre a raiva permite a expressão da hostilidade. Estas expressões de raiva e amor são reguladas pelos pais. Há um limite para as brigas, ofensas e agressões físicas. Neste limite, constatamos como essa relação é um modelo de conduta de cada indivíduo em outras relações entre iguais ao longo da vida.
  2. O vínculo, em seus aspectos biológico (o cordão umbilical), social (o grupo familiar e suas responsabilidades, inclusive legais) e afetivo (o acolhimento) é condição para o crescimento e desenvolvimento global da criança. Não há possibilidade de sobrevivência física e psíquica no desamor. As doenças mentais e mesmo as físicas, em crianças pequenas, denunciam a fragilidade de vínculos familiares, a dificuldade dos adultos em criar um ambiente estável e seguro — isto é, amoroso —, a negligência, os maus-tratos. Abordar a importância deste elo de ligação, o vínculo, é dizer que sempre existe ou deve existir um outro significativo que lhe assegura as condições de vida, de crescimento e desenvolvimento (senão a criança adoece, morre). Nesta perspectiva, é necessário dizer que o vínculo tem mão dupla para ser significativo, ou seja, a criança também é importante para os pais, muda suas vidas, ocupa-os. Aliás, por serem as crianças e os adolescentes importantes para os pais é que estes tornam-se importantes para eles. [pg. 254] Dois exemplos de situações bastante delicadas que demonstram esta ligação dos pais com seus filhos: no primeiro, os pais exibem o filho ou aspectos dele como se fossem seus; no segundo, projetam no filho a possibilidade de estes realizarem sonhos e projetos pessoais que não conseguiram realizar em suas próprias vidas.
  3. A família, como lugar de proteção e cuidados, é, em muitos casos, um mito. Muitas crianças e adolescentes sofrem ali suas primeiras experiências de violência: a negligência, os maus-tratos, a violência psicológica, a agressão física, o abuso sexual. As pesquisas demonstram que, no interior da família, a principal vítima da violência física é o menino e, do abuso sexual, a menina. O pai biológico constitui-se no principal agressor. O fenômeno da violência doméstica é, infelizmente, universal — atinge países ricos e pobres — e pode ser observado em todas as classes sociais — não ocorre exclusivamente nas famílias pobres. A violência doméstica não é um fenômeno atual, embora sua intensificação e divulgação pelos meios de comunicação a transformem em algo dramático e que tem chamado a atenção de muitas instituições e de autoridades da área da família, da infância e adolescência. No Brasil, um exemplo do aspecto histórico do fenômeno é o relato colhido por pesquisadores em documentos dos séculos 18 e 19 sobre a vitimação de crianças escravas. Outro dado muito importante, comprovado por pesquisas nacionais e internacionais, é que 90% dos agressores foram vítimas de algum tipo de violência na infância ou adolescência. Isto demonstra a necessidade do tratamento psicológico das crianças e dos adolescentes vítimas de violência, fazendo-se necessário também interromper este ciclo de violência que, em muitos casos, é encoberto pelo segredo familiar ao longo de várias gerações.
  4. O direito a ter uma família e a importância dela para a criança estão colocados no artigo 6 da Declaração dos Direitos da Criança (20/11/1959), da qual o Brasil é signatário. [pg. 255]

Princípio 6º
Para o desenvolvimento completo e harmonioso de sua personalidade, a criança precisa de amor e compreensão. Criar-se-á, sempre que possível, aos cuidados e sob a responsabilidade dos pais e, em qualquer hipótese, num ambiente de afeto e de segurança moral e material; salvo circunstâncias excepcionais, a criança de tenra idade não será apartada da mãe. À sociedade e às autoridades públicas caberá a obrigação de propiciar cuidados especiais às crianças sem família e àquelas que carecem de meios adequados de subsistência. É desejável a prestação de ajuda oficial e de outra natureza em prol da manutenção dos filhos de famílias numerosas.

No Brasil, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) — Lei 8.069, de 13/7/1990, que regula os direitos da criança e do adolescente — coloca, no Capítulo 3 — “Do Direito à Convivência Familiar e Comunitária” —, artigo 19: “Toda criança ou adolescente tem direito a ser criado e educado no seio de sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente livre da presença de pessoas dependentes de substâncias entorpecentes”.

Esta lei de proteção dos direitos da criança e do adolescente é considerada uma das mais avançadas do mundo. Sua importância reside em vários aspectos. No que concerne ao tema deste capítulo — família — a lei garante, por exemplo, a igualdade de direitos aos filhos próprios da relação do casamento e aos filhos adotivos (isto é, proíbe qualquer discriminação). Além disso, afirma que o “pátrio poder será exercido, em igualdade de condições, pelo pai e pela mãe...”. A novidade aí é a inclusão da mãe.

Neste sentido, esta lei acaba incorporando, na ordem jurídica, as mudanças culturais e históricas que vão se processando na sociedade e repercutem na família. Portanto, a família monogâmica apresenta-se diferente hoje. E, mais, coexiste com outros modos de organização familiar em que, como foi sinalizado no parágrafo anterior, a mãe pode ser considerada chefe da família.

Assim, o modelo de família pai-mãe-prole torna-se um entre vários modelos possíveis de estrutura e organização deste grupo humano. [pg. 256]

Uma última observação

Além dos aspectos abordados aqui, poder-se-ia levantar vários outros considerando a importância desta instituição, a complexidade e riqueza dos processos sociais e psicológicos que nela se processam e, principalmente, o fato de as famílias apresentarem muitas semelhanças e também muitas, muitas diferenças em sua dinâmica interna.

Psicologia - Psicologia social
7/28/2021 2:02:34 PM | Por Ana Mercês Bahia Bock
A sexualidade

Nosso desconhecimento e, portanto, nossas dúvidas sobre a nossa sexualidade são inúmeras. Apesar de ser a nossa sexualidade, ela nos aparece como algo incógnito, cheio de preconceitos, de moralismo, de dúvidas, de informações incorretas. Este paradoxo — do desconhecimento de algo tão nosso — tem feito do sexo um tabu. A inclusão da disciplina Educação Sexual nos currículos escolares tem sido sistematicamente barrada por forças reacionárias, que não a consideram assunto de escola, ou acreditam que educação sexual se restrinja às informações da fisiologia e anatomia do corpo e do mecanismo da reprodução. Mas sexo é mais do que isto. Sexo é prazer, é desejo. E é também proibição, perigo, erro e culpa.

A questão sexual da juventude parece estar sempre no limite entre o desejo e a repressão. Você já parou para pensar e discutir seriamente com seus pais, ou amigos, ou professores, o que sabe e o que não sabe sobre o sexo?

Uma pesquisa feita por Carmen Barroso e Cristina Bruschini, com jovens paulistas, em 1979, mostrava que um dos saldos positivos das sessões onde se debatia o sexo era a “conquista da palavra, a viabilização de um discurso até então interdito. Se alguma forma de comunicação — por pouco articulada, distorcida ou mal informada que fosse — ainda existia entre [pg. 229] os amigos íntimos do mesmo sexo, ela era praticamente inexistente entre jovens de sexo diferente, que podiam até ser namorados com alguma intimidade sexual, mas que permaneciam incapazes de um intercâmbio honesto, com exposição das diferenças existenciais, os receios, as dúvidas, a fantasia”1. E, assim, o sexo fica como um discurso nunca dito. Vemos na televisão, no cinema, lemos nos livros, vemos até mesmo na rua e nada dizemos, nada perguntamos. Namoramos e temos vários receios e dúvidas, mas preferimos não dizer.

O controle da reprodução, por exemplo, é de interesse de qualquer jovem que mantenha relacionamento heterossexual. Decidir o grau de intimidade que se permitirá durante o namoro é um momento difícil para o jovem, pois entram aí inúmeros fatores: desejo, fantasia, medo, falta de informação, pressão social do grupo de amigos, pressão da família etc.

Na pesquisa de Barroso e Bruschini, no capítulo sobre a reprodução, temos ainda aspectos muito interessantes de serem retomados aqui. As pesquisadoras encontraram entre os jovens de classe média e alta uma combinação de liberalismo e autoritarismo. “Liberalismo, quando se referem aos direitos de todos os indivíduos, isto é, os de sua própria classe, de controlar a sua reprodução, e de autoritarismo, quando se trata de impor aos pobres o dever de evitar filhos. Repetidamente, a educação das massas, a ‘conscientização do povo’, aparece como instrumento privilegiado para tornar indolor essa coação. Trata-se de convencê-los a ter apenas o número de filhos que lhes permite a sua condição (...) A questão que permanece é: quando também defendem a necessidade de educação do povo para decidir conscientemente sobre o número de filhos, esses jovens estão incorporando acriticamente um elemento da ideologia reacionária ou, pelo contrário, estão reconhecendo que a limitação da natalidade pode, dialeticamente, contribuir para criar condições concretas que permitam mudanças radicais na estrutura de poder e de distribuição de recursos que hoje prevalece?”2.

Além do controle da reprodução, muitas outras questões atormentam os jovens: o homossexualismo — doença, vício ou comportamento alternativo? O orgasmo — um privilégio masculino? O aborto — um crime ou uma opção? Os métodos contraceptivos, a masturbação, enfim, tudo o que diz respeito à nossa sexualidade é algo (des) conhecido e produtor de ansiedade para a maioria dos jovens. [pg. 230]

O crescimento intelectual decorrente da informação, que demonstre ao jovem a variabilidade de comportamentos e valores, que esclareça sobre a sexualidade, é essencial para a auto-aceitação sem temores e angústias.

A Psicologia e o estudo da sexualidade

A Psicologia já sabe há um bom tempo que a questão sexual, pelos aspectos morais a ela vinculados, é fonte de angústia para o jovem que se inicia nesses segredos. Mas não é somente o jovem que sofre angústia cora a sexualidade; o adulto e o velho também. Procurando o caminho para aplacar essa angústia, nossa ciência tem tentado superar o moralismo que envolve o tema (nem sempre com sucesso) e procurado descobrir as fontes e os caminhos da sexualidade.

Muitas áreas, além da Psicologia, tratam da sexualidade humana: a Biologia e a Medicina dão conta dos seus aspectos anatômicos e  fisiológicos; a Antropologia estuda sua evolução cultural; e a Sociologia e a História mostram-nos a gênese da repressão do comportamento sexual. Hoje também encontramos uma área específica de estudos da sexualidade, que procura englobar diferentes áreas do conhecimento, conhecida como Sexologia.
Como a questão sexual envolve muitas disciplinas, a Psicologia poderá responder só em parte às questões colocadas anteriormente. De acordo com a competência da Psicologia, poderemos dizer o que é o prazer, que sentimentos vêm junto com a sexualidade e, mesmo, qual a diferença entre sexo e sexualidade.

Sexo é instinto?

Quando sentimos um forte desejo sexual, tendemos a associá-lo a uma justificativa muito comum: “Isso é natural, pois temos um instinto sexual”. É como se fosse uma coisa animal e deve estar ligado à preservação da espécie.

Não é bem assim que a coisa se dá. É verdade que existe um instinto sexual entre os animais. Quando uma cadela se encontra no cio, um cão não poderá recusá-la. Ele lutará com outros pretendentes e, vencendo a luta, será o candidato escolhido. A cadela também não poderá recusar. Ela apenas espera a definição do mais [pg. 231] apto. Nenhum cachorro pensará em abandonar a luta porque a cadelinha não é muito simpática.
Com o homem ocorre um fenômeno diferente. Já vimos no capítulo 10 que o homem difere dos outros animais pela consciência. Isso significa que a escolha do parceiro sexual, no caso da nossa espécie, não é feita [apenas] instintivamente, mas tem um componente racional que avalia a escolha. Pouca coisa resta no homem de caráter instintivo, e a escolha sexual é feita mais pelo prazer que ela nos dá individualmente do que pela pressão da necessidade de reproduzir a espécie. Isto significa dizer que o prazer passa a ser o dado fundamental para a sexualidade humana.

Qual é a fonte do prazer?

Freud, um dos pioneiros nos estudos da sexualidade humana nos seus aspectos psicológicos, em sua obra Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, escrita em 1905, mostra que a sexualidade ocorre nas crianças quase desde o seu nascimento, e que a prática sexual entre os adultos pode ser bem mais livre do que supunham os teóricos moralistas do começo do século.

Estas conclusões causaram impacto na época, já que a puberdade era considerada como o marco inicial da vida sexual. Isso porque é na puberdade que aparecem os caracteres sexuais secundários, como os pêlos pubianos, a menstruação e o crescimento dos seios nas meninas, e o engrossamento da voz e crescimento de pêlos no corpo dos meninos. É também nessa fase que aparece o interesse sexual no sentido genital. Acreditava-se que o sexo, antes da puberdade, estaria inativo e que só seria ativado com o desencadeamento de hormônios sexuais, por volta dos 11 anos de idade.

Como alguém poderia dizer que uma criança de cinco, três, dois anos e até recém-nascida tem vida sexual? As objeções ao pensamento de Freud eram que o sexo sempre estaria ligado à reprodução da espécie, e que qualquer prática que não a implicasse seria considerada como desvio de conduta. A criança, mesmo Freud concordaria, não está preparada para reproduzir-se sexualmente.

Mas o psicanalista tinha outra visão da sexualidade.

A criança, assim que nasce, está preparada para lutar pela sua sobrevivência. Ela irá sugar o leite materno, auxiliada por um reflexo conhecido como reflexo de sucção. Este reflexo é acompanhado do prazer do contato da mucosa bucal com o seio materno. Parece óbvio pensar que tal função (alimentação), tão fundamental para o recém-nascido, não pode ser desagradável, ainda mais sabendo [pg. 232] que o reflexo de sucção logo desaparecerá. Em pouco tempo, a criança aprenderá que o contato do seu próprio dedo com a boca também causa prazer. Neste caso, o prazer não está mais vinculado à finalidade de sobrevivência, mas é apenas o prazer pelo prazer. Freud chama este tipo de prazer de erotismo e considera seu aparecimento como a primeira manifestação da sexualidade. Ora, essa tão singela e inocente descoberta será fundamental para que a criança percorra o caminho que a levará à busca do prazer sexual, que também está desvinculado de suas finalidades, já que a relação sexual se dá pelo prazer que ela oferece ao indivíduo, e não por um reflexo da espécie.

O desenvolvimento da sexualidade

Para Freud, a busca do prazer é a maneira que temos para dar vazão ao forte impulso sexual que chamamos de libido. Conhecemos as regras sociais que permitem e normatizam tal vazão. Sabemos que em determinado momento da vida a sentimos presente — nesse instante temos consciência da atração sexual por outra pessoa. Entretanto, esse momento não acontece de maneira mágica, mas, como todos os outros fenômenos psicológicos, depende de desenvolvimento e maturação.

Chamamos essa maturação de desenvolvimento da libido. Ela tem início desde os primeiros contatos da criança com o mundo e irá completar-se na puberdade. Assim, como ocorre com outros fatores do desenvolvimento infantil (o falar, o andar), a criança irá desenvolvendo paulatinamente a sua sexualidade. Ela precisa aprender a engatinhar ou ficar em pé antes de andar. Antes de aprender a investir libido numa outra pessoa, isto é, ver o outro como objeto erótico, ela precisa aprender o que é o prazer. 

Ao prazer oral, o primeiro momento dessa maturação, sucede-se o prazer anal da retenção e expulsão das fezes e, mais adiante ainda, o prazer fálico que torna prazerosa a manipulação dos genitais (o pênis, no menino, e o clitóris, na menina). Com o crescimento da criança, o impulso sexual vai ganhando um contorno cada vez mais nítido. Aos cinco anos de idade a criança já tem a sexualidade razoavelmente definida. Dos cinco anos até a puberdade, [pg. 233] ela passará por uma fase de adaptação chamada pela Psicanálise de fase de latência, quando realizará o abandono do objeto sexual no interior das relações parentais para, daí em diante, fazer sua escolha fora da família.

E essa história de que a gente sente atração sexual pela própria mãe? Isso já não é um exagero?

Ora, não podemos entender a atração sexual na criança como atração no sentido genital, da maneira como ela ocorre depois da puberdade. A sexualidade no adulto, salvo algumas exceções, buscará sempre que possível o contato genital. Na criança não existe a sexualidade no sentido genital, mas seria muito difícil dizer que o prazer que crianças de três anos sentem ao manipular o pênis ou o clitóris não é sexual. Esse prazer da manipulação demonstra o despertar das zonas erógenas. A criança gosta do carinho e pedirá carinho. Ocorre que a ligação afetiva mais forte e a pessoa em quem ela mais confia é a mãe, e neste caso não é estranho que a criança espere e exija seu carinho. Esta ligação carinhosa e afetiva entre mãe e filho (ou entre pai e filha) é que irá propiciar a caracterização do famoso complexo de Édipo.

Com esse percurso, demonstra-se que a sexualidade aparece no ser humano desde muito cedo, e que as suas primeiras manifestações não têm caráter genital, mas trata-se mais da organização do impulso da libido, que, mais tarde, será fundamental na busca do prazer sexual. É por isso que costumamos denominar sexualidade esse processo, para dar-lhe um conteúdo mais amplo que sexo, no sentido mais estrito do termo.

Estar amando

No decorrer de nossas vidas investimos energia sexual ou libido em diferentes objetos que nos dão prazer.

O outro, a quem amamos, é um objeto no qual investimos libido.

Por que investimos naquele objeto e não em outro? A resposta a essa pergunta não pode ser dada aqui como uma regra, pois os fatores inconscientes envolvidos nessa escolha são muitos e diferem de pessoa para pessoa. O objeto amado pode ser, para o menino, alguém que se assemelhe à figura materna e, para a menina, à figura paterna; pode ser, ainda, alguém que possua algo que se deseja e que não se possui, ou alguém que possua o que a gente possui e, assim, ama-se a si próprio no outro.

O objeto do desejo é algo tão difícil, que Jacques Lacan, famoso psicanalista francês, disse que não é todo dia que encontramos [pg. 234] aquilo que é a imagem exata de nosso desejo. Mas, quando encontramos, sabemos identificar. Assim, nós temos uma imagem formada de nosso objeto de desejo e procuramos nos objetos do mundo algo que se assemelhe a ele. Quando o identificamos, investimos libido nele — nós o amamos.

A paixão

Existe ainda um estado do estar amando que conhecemos como paixão. A paixão é o extremo do investimento libidinal no outro, ou seja, o indivíduo investe tanta libido no outro (objeto de desejo), que seu eu fica empobrecido e enfraquecido, a ponto de seguir e fazer tudo o que o outro desejar. É a entrega total ao outro.

Na paixão, ao contrário da identificação, o eu do indivíduo se empobrece e torna-se fraco, cego. É preciso que o indivíduo, num movimento de defesa de seu eu, volte a investir libido em si próprio, o que pode significar um amadurecimento do sentimento, que, de paixão (entrega total), transforma-se em amor (investimento libidinal com enriquecimento do eu).

A amizade

O amigo, este que pode estar aí ao seu lado neste instante, é um objeto em que investimos libido. Mas a amizade é um investimento de libido que foi inibida em sua finalidade genital.

Com isso, queremos dizer que toda relação afetiva, seja de amor ou amizade, é, do ponto de vista da Psicanálise, um investimento de energia sexual. Isto é relativamente simples de entender se pensarmos em termos evolutivos. O homem atual (homo sapiens) vem se desenvolvendo nos últimos 30 mil anos e, nesse período (pequeno, se considerarmos que a espécie homo tem 1,6 milhões de anos), foi também desenvolvendo formas de relações afetivas a [pg. 235] partir do que tinha em comum com o mundo animal — a atração sexual. Ao estabelecer as relações de parentesco, o homem aprendeu a desviar a forma instintiva de atração sexual aplicada no comportamento e afeto necessários à corte (tanto da parte do macho quanto da fêmea). Trabalhamos, neste capítulo, com a hipótese de que a energia libidinal aplicada ao comportamento e afeto ligados à corte vai sendo paulatinamente “dessexualizada”, ou seja, vai perdendo sua base de atração sexual, transformando-se em forma de afeto parental e fraternal (relacionados à família) e, posteriormente, na forma altruísta (amor ao próximo). Assim, expressamos afeto pelos amigos, por pessoas que não conhecemos e, de uma forma geral, pela humanidade (quando, por exemplo, ficamos condoídos com o despejo de uma família pobre da periferia de uma grande cidade, família que nunca vimos e cuja história foi matéria de jornal). Com isso, podemos dizer que existem vários tipos de amor, todos originados da forma primitiva de atração sexual, os quais estão hoje tão dissociados dela (dizemos “inibidos em sua finalidade”) que não conseguimos perceber essa ligação.

Essa forma de elaboração do amor fraterno é fundamental para o tipo de sociedade e de relação pessoal que escolhemos na constituição de nosso processo civilizatório. Denominamos de identificação essa forma de elaboração na qual investimos libido no outro de uma maneira diferente da usada no investimento amoroso (sexualizado). É através do processo de identificação que enriquecemos e formamos nossa própria personalidade. É como se “recolhêssemos parte” da pessoa e a trouxéssemos para dentro de nosso psiquismo, construindo assim nossa personalidade. Você é capaz de identificar este processo ocorrendo com você mesmo, quando admira muito alguém e passa a imitar ou a possuir características que eram do outro e que, graças à identificação, agora são suas.

O processo de identificação reflete-se em brincadeiras infantis nas quais as crianças se fantasiam do super-herói favorito, na idolatria juvenil por astros da música pop e nos modelos adultos de comportamento e ética transmitidos, por exemplo, pelos meios de comunicação de massa.

A Homossexualidade

É o processo de identificação invertido (a forma de inversão não é muito conhecida e se dá de forma inconsciente) que ocorre durante a formação do Complexo de Édipo (veja capítulo sobre a Psicanálise), portanto, por volta dos três anos. Nesse processo, o menino escolhe o pai como objeto de amor e a mãe como objeto [pg. 236] de identificação, o que explica a escolha homossexual (com a menina, ocorre o inverso: ela escolhe a mãe como objeto de amor e o pai como objeto de identificação). Assim, do ponto de vista psicológico, o homoerotismo é uma escolha realizada pela criança que não tem sentido patológico (não é considerada doença ou desvio de comportamento) e, muito menos, moral (uma escolha influenciada por maus costumes). Se, por um lado, não sabemos claramente o que determina essa “escolha” — aqui colocada entre aspas porque, rigorosamente, não a percebemos como uma escolha consciente, na qual a criança opta por alternativas previamente conhecidas —, por outro, sabemos que não se trata de nenhum desvio comportamental ou doença adquirida, ou mesmo de disfunção neurológica. A própria Organização Mundial de Saúde (organismo ligado à ONU) reconhece isso. Neste caso, podemos afirmar, categoricamente, que se trata de uma opção legítima de investimento de afeto e que, na sociedade atual, só enfrenta a intransigência e a intolerância de grupos conservadores que, por motivos morais, não conseguem aceitar uma escolha sexual diferente da considerada padrão.

As restrições à sexualidade

E por que será que o sexo é algo tão complicado, tão cheio de restrições em nossa sociedade?

Uma das respostas a esta questão foi dada pela Psicanálise. Sem entrar em muitos dos detalhes que Freud apresentou, é possível compreender isto da seguinte maneira: a energia sexual, para a Psicanálise, é a energia que utilizamos para tudo — para trabalhar, ligar-nos às outras pessoas, divertir-nos, produzir conhecimentos, enfim, a energia responsável pela criação do que conhecemos como a civilização humana. Para que este fenômeno seja possível, é preciso transferir a energia sexual para estas produções humanas. Portanto, a civilização, criada pelo homem para garantir sua sobrevivência, impõe a ele restrições na utilização de sua energia sexual, deslocando-a para outros fins que não o estritamente sexual.

A civilização consegue essa façanha impondo normas e proibições. O casamento monogâmico, a restrição na escolha dos parceiros, as restrições sexuais impostas às crianças são exemplos dos mecanismos que a civilização criou para obter energia para se manter enquanto civilização. Freud chega mesmo a dizer que o homem, em determinado momento da sua história enquanto espécie, trocou o prazer pela segurança. [pg. 237]

A este mecanismo de desvio da energia sexual para fins não-sexuais e importantes, do ponto de vista social, chamamos de sublimação. Neste momento em que você está lendo este livro, estudando para a aula de Psicologia, você está desviando sua energia sexual, está sublimando libido.
Marcuse, um teórico alemão, considera que em nossa sociedade capitalista, baseada na exploração do trabalho humano, há uma repressão da energia sexual que vai além do necessário para nossa sobrevivência. Para que o capital pudesse desenvolver-se, foi necessário desviar um quantum (quantidade) de energia sexual muito grande. A sociedade capitalista “dessexualizou” o homem, reprimiu sua libido e a utilizou para a produção de riquezas, de acordo com o interesse de um grupo dominante na sociedade: os capitalistas.

Retomando, então, diríamos que, para manter a civilização com todas as garantias de sobrevivência para os seres humanos, é preciso reprimir energia sexual. A dominação social e a exploração levaram esta repressão a um nível mais elevado do que o necessário — a este fenômeno Marcuse dá o nome de mais repressão.

Assim, nossa sociedade tem uma moral sexual repressiva. Quando, no decorrer de nossa socialização, internalizamos as normas e regras sociais, estamos tornando nossa essa moral sexual, com todos os seus tabus, necessários à manutenção da sociedade capitalista de exploração da força de trabalho humana, ou seja, exploração da sexualidade.

Internalizados os valores, o jovem rapaz será pressionado pelo grupo e pela sua própria consciência a ser forte, sensual, potente e experimentado. A garota viverá o drama da virgindade, o medo da gravidez, as conseqüências da inexperiência sexual aliadas ao fato de ter um companheiro que sabe tão pouco de sexualidade e de prazer a dois quanto ela.

Infelizes sexualmente, nossos cidadãos poderão dedicar-se, com todo vigor, ao trabalho.

A liberdade sexual

Mas não é verdade que sejamos tão reprimidos. Vemos na tevê a todo instante relações sexuais, homens e mulheres que sensualmente exibem seus corpos; vemos homossexuais, mães solteiras, relações sexuais fora e anteriores ao casamento etc.

E isto significa que estejamos vivendo uma época de maior liberdade sexual?

Não, não significa. Como diz Michel Foucault, filósofo francês, o domínio do discurso é também uma forma de poder. Domina-se a fala da sexualidade hoje em dia, mas, quanto à prática da sexualidade, esta é tão reprimida ou tão “liberada” quanto no século passado.

O que ocorre em nossa era é uma programação da utilização da libido: as casas de massagem, as ginásticas, a “curtição do corpo”, a possibilidade de mantermos relações sexuais antes ou fora do casamento não significa liberdade sexual, e sim que estamos nos comportando sexualmente exatamente da forma como a sociedade permite.

A sociedade capitalista foi capaz de ajustar também o nosso prazer. E esta é uma das armas mais poderosas para se exercer o poder. Temos, assim, uma consciência feliz, o que não significa liberdade.

A possibilidade de uma sexualidade que corresponda aos nossos desejos (mesmo considerando que, para haver civilização, deva haver um nível de controle e repressão) dependerá de uma luta que o jovem deve enfrentar por uma nova moral sexual, que supere o poder castrador e passe para uma fase do encontro entre o prazer e a responsabilidade.

Por uma nova moral sexual

À medida que introjetamos os valores sociais, não há mais necessidade de cintos de castidade, pois o policiamento é interno ao indivíduo. Se ele apenas deseja, mesmo que não realize seu desejo, já é suficiente para sentir culpa.

Culpabilidade e sexo têm caminhado juntos nesta passagem para o terceiro milênio. No final do século 20, o campo da sexualidade — que vinha quebrando tabus a partir da chamada “revolução sexual”, iniciada nos anos 60 — foi tomado por um componente perverso: o aparecimento do vírus HIV e, conseqüentemente, da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida — a AIDS (do inglês Acquired [pg. 239] Immunological Deficiency Syndrome). O HIV é contraído pelo contato de fluidos corpóreos (sangue, esperma, corrimento vaginal) que geralmente ocorre durante as relações sexuais, nas transfusões de sangue e no consumo de drogas injetáveis. A força e a letalidade desse vírus influenciaram de forma significativa o comportamento sexual do final do século 20. Nunca a sexualidade esteve tão presente nos meios de comunicação. A necessidade de divulgar formas de prevenir o contágio do HIV acabou por dinamitar o que restava do puritanismo e do moralismo em relação à sexualidade (e ao consumo de drogas, mas essa é uma outra história!). O incentivo ao uso da camisinha, como principal forma de prevenção, passou a fazer parte do nosso cotidiano. A camisinha, de produto vendido de forma “secreta”, quase clandestina, passou a ser divulgada de forma massiva, deixando de causar pudor mesmo entre as camadas mais conservadoras da sociedade. Admitiu-se o óbvio — os jovens, em geral, mantinham relações sexuais e a possibilidade de que tais relações ocorressem fora do casamento era bem maior do que se supunha (dado verificado pelo contágio de parceiros de homens e mulheres casados).

Ao mesmo tempo em que era superado o falso moralismo presente em consideráveis extratos da sociedade, alteravam-se, pelo medo do contágio, as formas mais liberais de relação sexual entre parceiros eventuais. A fidelidade entre os casais de namorados passou a ser cobrada de forma mais intensa, valorizando-se o parceiro fixo. O medo da contração do vírus, ao mesmo tempo que liberava a discussão sobre a sexualidade, também exigia um comportamento mais conservador. Neste sentido, o cartum do Glauco, exibido na página 238, apesar da boa piada, não está consoante com os novos tempos. O erro do cartum está no fato de aquela garota ter mantido relações sexuais com o namorado sem ter usado camisinha, caso contrário, não estaria preocupada com uma possível gravidez indesejada. Os pais, por sua vez, demonstram muito mais preocupação cora o fato de sua filha estar ou não mantendo relações sexuais do que com o comportamento imprudente da garota, que aumenta o risco de contágio do HIV. E claro que, nas famílias mais conservadoras, o risco do contágio será utilizado como uma forma de pressão a mais para a manutenção de um comportamento sexual também conservador (entenda-se: abstinência). O “argumento”, agora, apresenta uma objetividade muito mais convincente que os argumentos de ordem moral: a manutenção da própria saúde. Todavia, tanto os jovens quanto os pais (e todas as pessoas que mantêm relações sexuais freqüentemente ou não) devem se conscientizar de que o caminho mais razoável é o da proteção, o do sexo seguro. Deve-se falar franca e abertamente sobre sexualidade, introjetando os mecanismos [pg. 240] necessários para o sexo seguro (como o uso da camisinha) e o cuidado de nunca negligenciá-los (nas relações eventuais ou mesmo numa única relação sexual).

Estas questões podem representar fator de outros riscos para a juventude no campo da sexualidade, particularmente a contradição entre a disseminação do discurso sobre a sexualidade e a possibilidade de crescimento da visão moralista sobre o tema. A falta do diálogo franco e aberto entre jovens, pais e educadores, coloca o jovem distante das informações básicas sobre sua própria sexualidade. Em publicação recente3, a psicóloga e jornalista Rosely Sayão responde a inúmeras perguntas feitas, em sua maioria, por adolescentes.

Gravidez precoce

É impressionante como os jovens desconhecem as informações básicas sobre fecundação, prazer, sexo seguro etc. É provável que tal desinformação seja uma das causas do aumento da gravidez precoce — a gravidez da adolescente. Precisamos considerar, no entanto, que hoje em dia torna-se mais fácil identificar a gravidez precoce, pois sua ocorrência já não é tão escamoteada como em outros tempos. Aliás, não devemos recuar muito no tempo porque, se voltarmos para o início do século 20, constataremos que muitas mulheres casavam muito cedo (aos 13, 14, 15 anos) e logo engravidavam, não existindo, contudo, o conceito de gravidez precoce. Trata-se, evidentemente, de um conceito para um padrão social em que a mulher tem filho por volta dos 20 anos de idade (e cada vez mais tarde). O fato é que a gravidez precoce tem se mostrado um problema pelas suas implicações sociais e decorrências pessoais para a adolescente, para o jovem pai do futuro bebê, para os pais de ambos (o que tem chamado a atenção de médicos, psicólogos, assistentes sociais e outros profissionais da área de saúde). E a gravidez indesejada geralmente é conseqüência da falta de informação e diálogo sobre a sexualidade.

Que postura, então, assumir nessas situações de conflito, em que desejo e culpa muitas vezes se confundem, deixando uma forte angústia como resultado? A resposta ainda está por se fazer e você é parte dela. A discussão do papel da sexualidade nas nossas relações, a discussão ética do significado das regras sociais e sua justa ou injusta interdição do prazer são questões que, discutidas, ajudarão a superar a angústia da culpa, que certamente trabalha no território do não-saber. [pg. 241]

Psicologia - Psicologia do Desenvolvimento
7/27/2021 4:14:22 PM | Por Ana Mercês Bahia Bock
Processo grupal

A nossa vida cotidiana é demarcada pela vida em grupo. Estamos o tempo todo nos relacionando com outras pessoas. Mesmo quando ficamos sozinhos, a referência de nossos devaneios são os outros: pensamos em nossos amigos, na próxima atividade — que pode ser assistir a aula de inglês ou realizar nova tarefa no trabalho (que, provavelmente, envolverá mais de uma pessoa); pensamos no nosso namoro, em nossa família. Raramente encontraremos uma pessoa que viva completamente isolada, mesmo o mais asceta dos eremitas levará, para o exílio voluntário, suas lembranças, seu conhecimento, sua cultura. Por encontrarmos determinantes sociais em qualquer circunstância humana1, podemos afirmar que toda Psicologia é, no fundo, uma Psicologia Social.

Talvez seja por isso que nossas vidas encontram sempre uma certa regularidade, que é necessária para a vida em grupo.

As pessoas precisam combinar algumas regras para viverem juntas. Se estiver num ponto de ônibus às sete horas da manhã, eu preciso ter alguma certeza de que o transporte aguardado passará por ali mais ou menos neste horário. Alguém combinou isso com o motorista. Dependemos do outro em nosso cotidiano. Um funcionário precisou abrir o portão da escola, cujas dependências já estavam devidamente limpas; um professor nos espera; ao chegar à escola, encontro colegas que também têm aulas no mesmo horário. A esse tipo de regularidade normatizada pela vida em grupo, chamamos de institucionalização.

Dada a importância da vida dos grupos (e em grupo) e do processo de institucionalização, estes dois temas têm se destacado [pg. 214] ultimamente no campo da Psicologia Social. O primeiro é recorrente e pode-se dizer que, apesar de sua atualidade, é um tema clássico. Estamos falando da Psicologia dos Grupos, a qual preferimos chamar de Processo Grupal. O segundo tema — Psicologia Institucional — só é encontrado na literatura especializada a partir da metade do século 20. De certa maneira, estes temas estão interligados, e isso nos levou a abordá-los em um mesmo capítulo.

Para entendermos a Psicologia Institucional, precisamos, primeiro, conhecer o processo de institucionalização que ocorre em nossas sociedades. Na realidade, vivemos mergulhados em instituições e, por isso, antes de entrarmos no assunto, devemos desfazer algumas confusões muito comuns geradas pelos vários entendimentos do que seja “instituição”. O termo é utilizado, de forma corriqueira, para designar o local onde se presta um determinado tipo de serviço — geralmente público, como os serviços de saúde e social. Freqüentemente ouvimos alguém mencionar que trabalha na instituição tal, ou somos orientados a procurar determinada instituição para resolver um tipo de problema. É o caso dos hospitais e centros de saúde, ou dos locais que atendem a crianças e adolescentes. O termo instituição também pode ser empregado para determinadas organizações sociais, como a família —
 “A família é uma instituição modelar” — frase mencionada com certa freqüência. Entretanto, quando falarmos aqui no termo instituição, não estaremos nos referindo a esses sentidos mais conhecidos e utilizados no nosso dia-a-dia. Mas, antes de definirmos o termo, vamos identificar a origem do processo de institucionalização da sociedade, o que nos permitirá entender melhor a referência teórica na qual estamos nos fundamentando.

O processo de institucionalização

O processo de institucionalização, de acordo com Berger e Luckmann — autores muito usados para definir como se dá a construção social da nossa realidade — começa com o estabelecimento de regularidades comportamentais. As pessoas vão, aos poucos, descobrindo a forma mais rápida, simples e econômica de desempenhar as tarefas do cotidiano. Vamos imaginar o homem primitivo: no momento em que começou a ter consciência da realidade que o cercava, ele passou a estabelecer essas regularidades. Um grupo social que vivesse, fundamentalmente, da pesca, estabeleceria formas práticas que garantissem a maior eficiência possível na realização [pg. 215] da tarefa. Pode-se dizer que um hábito se estabelece quando uma dessas formas repete-se muitas vezes. Um hábito estabelecido por razões concretas, com o passar do tempo e das gerações, transforma-se em tradição. E o que acontece? As bases concretas, estabelecidas com o decorrer do tempo, não são mais questionadas. A tradição se impõe porque é uma herança dos antepassados. Se eles determinaram que essa é a melhor forma, é porque tinham alguma razão. Quando se passam muitas gerações e a regra estabelecida perde essa referência de origem (o grupo de antepassados), dizemos, então, que essa regra social foi institucionalizada.

A monogamia — o casamento somente entre duas pessoas — pode ser considerada uma dessas instituições. É sabido que as sociedades primitivas não a conheciam. Os casamentos eram poligâmicos. A monogamia surge, então, na Grécia antiga e no Oriente Médio com o estabelecimento da propriedade privada e a descoberta da paternidade biológica. Entre os povos primitivos, o papel de pai era atribuído ao irmão materno mais velho; as famílias eram matrilineares (baseadas na linhagem materna) e, provavelmente, imperava o matriarcado. No início do modo de produção escravagista da organização social antiga (como foi o caso da Grécia), o surgimento das cidades, da propriedade privada e a descoberta da paternidade biológica colocavam o homem da época diante de uma questão: a herança. As pessoas (no caso, os homens) que acumulavam riquezas durante sua vida não tinham para quem deixá-las. A família paterlinear e o casamento monogâmico foi a forma de organização encontrada que definia, claramente, uma maneira de perpetuar a propriedade através da herança. O filho passou a ser o herdeiro dos bens paternos. Para isso, estes homens proprietários passaram a estabelecer, como regra, que suas mulheres deveriam manter relações sexuais somente com eles próprios (em função da descoberta do funcionamento da paternidade biológica) e, assim, teriam certeza de que o filho lhes pertencia. Hoje, qualquer pessoa de nossa sociedade ocidental, se questionada sobre a monogamia, dirá que o casamento se dá desta forma porque “é natural”. Curiosamente, ainda hoje temos culturas, como a muçulmana, que não adotam a monogamia como regra e, apesar dessa evidência contrária, alguém de nossa cultura continuará considerando a monogamia natural. A este fenômeno chamamos de instituição. [pg. 216]

Instituições, organizações e grupos

A instituição é um valor ou regra social reproduzida no cotidiano com estatuto de verdade, que serve como guia básico de comportamento e de padrão ético para as pessoas, em geral. A instituição é o que mais se reproduz e o que menos se percebe nas relações sociais. Atravessa, de forma invisível, todo tipo de organização social e toda a relação de grupos sociais. Só recorremos claramente a estas regras quando, por qualquer motivo, são quebradas ou desobedecidas.

Se a instituição é o corpo de regras e valores, a base concreta da sociedade é a organização. As organizações, entendidas aqui de forma substantiva, representam o aparato que reproduz o quadro de instituições no cotidiano da sociedade. A organização pode ser um complexo organizacional — um Ministério, como, por exemplo, o Ministério da Saúde; uma Igreja, como a Católica; uma grande empresa, como a Volkswagen do Brasil; ou pode estar reduzida a um pequeno estabelecimento, como uma creche de uma entidade filantrópica. As instituições sociais serão mantidas e reproduzidas nas organizações. Portanto, a organização é o pólo prático das instituições.

O elemento que completa a dinâmica de construção social da realidade é o grupo — o lugar onde a instituição se realiza. Se a instituição constitui o campo dos valores e das regras (portanto, um campo abstrato), e se a organização é a forma de materialização destas regras através da produção social, o grupo, por sua vez, realiza as regras e promove os valores. O grupo é o sujeito que reproduz e que, em outras oportunidades, reformula tais regras. É também o sujeito responsável pela produção dentro das organizações e pela singularidade — ora controlado, submetido de forma acrítica a essas regras e valores, ora sujeito da transformação, da rebeldia, da produção do novo.

A Importância do estudo dos grupos na Psicologia

Quando falamos em grupos, estamos abordando um tema que, de certa forma, é o tema fundante da Psicologia Social. Os primeiros estudos sobre os grupos foram realizados no final do século 19 pela então denominada Psicologia das Massas ou Psicologia das Multidões. Um dos primeiros pesquisadores deste assunto foi Gustav Le Bon, autor de um conhecido tratado intitulado “Psicologia das Massas” (Psicologie des Foules, no francês). Pode-se dizer que, de uma certa maneira, os pesquisadores do final do século 19 foram [pg. 217] influenciados pela Revolução Francesa2 e, mais precisamente, pelo impacto que causou nos pensadores do século 18 (como foi o caso de Hegel). Os pesquisadores se perguntavam o que teria sido capaz de mobilizar tamanho contingente humano, como o que fora mobilizado durante essa revolução. O que se perguntava no campo da Psicologia era o que levaria uma multidão a seguir a orientação de um líder mesmo que, para isso, fosse preciso colocar em risco a própria vida. Qual psicológico possibilitaria a coesão das massas? Estas durante o processo de ascensão do governo do 3 o Reich —Adolf Hitler — na Alemanha, na década de 30. Este triste episódio, que levou o mundo à 2a Grande Guerra (de 1939 a 1945), exemplificou as possibilidades de manipulação das massas.

O caso da Alemanha nazista foi surpreendente porque demonstrou até que ponto é possível produzir uma forma de hipnotismo coletivo. Entretanto, nem sempre os episódios de mobilização popular podem ser considerados um fenômeno irracional em que as pessoas perdem momentaneamente sua capacidade de discernir a realidade, ficando à mercê de um líder carismático que, na verdade, tenciona manipulá-las em função de interesses particulares ou políticos. Hoje, sabemos que, em diversas ocasiões, as pessoas se unem e formam massas compactas muito organizadas e autônomas, com objetivos claros e racionais. Um exemplo dessa capacidade de mobilização ocorreu em nosso País, em 1984, por ocasião da campanha das Diretas Já, episódio importante para a queda da ditadura militar. Milhões de pessoas que foram às ruas e aos comícios estavam conscientes de sua participação. [pg. 218] Apesar de a Psicologia Social surgir com o estudo das massas, será com grupos menores, os quais possuem objetivos claramente definidos, que se desenvolverá a pesquisa de grupos. Esse desenvolvimento ocorre a partir de 1930, com a chegada, aos Estados Unidos, de Kurt Lewin — professor alemão refugiado do nazismo. Lewin passou a pesquisar no Massachusetts Institute of Technology (MIT) — um renomado instituto estadunidense — onde desenvolveu a primeira teoria consistente sobre grupos. Essa teoria influenciou tanto a Psicologia, que a partir dela surgiu um campo na Psicologia Social denominado Cognitivismo. O trabalho de Lewin também influenciou bastante o desenvolvimento de uma teoria organizacional psicológica que, nas empresas, é aplicada no estudo das relações humanas no trabalho.

A possibilidade de aplicação imediata desta teoria ao campo organizacional impulsionou o desenvolvimento dos estudos sobre grupos nos Estados Unidos. Tanto as indústrias quanto as Forças Armadas investiram recursos financeiros na produção de pesquisas que revelassem como os grupos funcionavam e como poderiam ser motivados para o trabalho. Na década de 30, Elton Mayo realizou uma pesquisa que se tornaria o paradigma dos estudos motivacionais na área organizacional. Aplicada na fábrica Hawthorne, da Western Electric Company (empresa estadunidense de eletricidade), tinha, como objetivo, estudar a relação de fadiga nos operários a partir de uma série de variações experimentais [pg. 219] introduzidas na relação de trabalho, como a freqüência de pausa para descanso, a quantidade de horas trabalhadas, a natureza dos incentivos salariais. No entanto, Mayo e seus colaboradores depararam-se com um outro fenômeno: o das relações interpessoais (entre os operários, entre os operários e a administração). A observação dessas relações deu novo rumo à pesquisa, que priorizou o estudo da organização social do grupo de trabalho, das relações sociais entre o supervisor e os subordinados, dos padrões informais que dirigem o comportamento dos participantes num grupo de trabalho, dos motivos e das atitudes dos operários no contexto do grupo3. Esta pesquisa praticamente inaugurou a área da Psicologia Organizacional e mudou, consideravelmente, o pensamento sobre os problemas industriais.

A Dinâmica dos grupos

Exemplos mais detalhados da teoria dos grupos elaborada por Lewin e levada adiante por seus colaboradores podem ser encontrados no compêndio escrito por Cartwright e Zander, editado pela primeira vez em 1953, nos Estados Unidos. Os dois volumes trazem uma síntese de tudo o que foi produzido sobre dinâmica de grupo a partir dos estudos iniciais de Kurt Lewin. Exemplos de temas abordados: coesão do grupo (condições necessárias para a sua manutenção); pressões e padrão do grupo (argumentos reais ou imaginários, manifestos ou velados que seus membros utilizam para garantir a fidelidade dos demais aos objetivos do grupo e ao padrão de conduta estabelecido); motivos individuais e objetivos do grupo (elementos que garantem fidelidade e que estão relacionados com a escolha que cada indivíduo faz ao decidir participar de um grupo); liderança e realização do grupo (força de convencimento — carisma — exercida por um ou mais indivíduos sobre os outros e o tipo de atividade exercida pelo grupo); e, por fim, as propriedades estruturais dos grupos (padrões de comunicação, desempenho de papéis, relações de poder etc.).

Como já foi dito anteriormente, as pessoas vivem, em nossa sociedade, em campos institucionalizados. Geralmente moram com suas famílias, vão à escola, ao emprego, à igreja, ao clube; convivem com grupos informais, como o grupo de amigos da rua, do bar, do centro acadêmico ou grêmio estudantil etc. Em alguns casos, a institucionalização nos obriga a conviver com pessoas que não escolhemos. Quando conhecemos nossa primeira classe no ensino médio ou na universidade, descobrimos que vamos conviver com um grupo de 20, 30 ou 40 pessoas com as quais — como geralmente [pg. 220] acontece — não tínhamos nenhum contato. A essa forma de convívio que independe da nossa escolha chamamos de solidariedade mecânica. A afiliação a um grupo independe da nossa vontade no que diz respeito à escolha dos seus integrantes. A solidariedade orgânica é a forma de convívio na qual nos afiliamos a um grupo porque escolhemos nossos pares. É o caso do grupo de amigos que se reúne nos finais de semana para jogar futebol ou que decide formar uma banda. A afinidade pessoal é levada em consideração para a escolha do grupo. Nos grupos em que predomina a solidariedade mecânica, geralmente formam-se subgrupos que se caracterizam pela solidariedade orgânica, como é o caso das “panelinhas” em sala de aula ou do grupo de amigos em uma fábrica ou escritório.

No campo teórico até aqui mencionado, pode-se definir o grupo como um todo dinâmico (o que significa dizer que ele é mais que a simples soma de seus membros), e que a mudança no estado de qualquer subparte modifica o estado do grupo como um todo. O grupo se caracteriza pela reunião de um número de pessoas (que pode variar bastante) com um determinado objetivo, compartilhado por todos os seus membros, que podem desempenhar diferentes papéis para a execução desse objetivo.

Quando um grupo se estabelece (uma “panelinha” na sala de aula, um grupo religioso ou uma gangue de adolescentes), os fenômenos grupais anteriormente mencionados passam a atuar sobre as pessoas individualmente e sobre o grupo, ao que chamamos de processo grupal. A coesão é a forma encontrada pelos grupos para que seus membros sigam as regras estabelecidas.
Quando alguém começa a participar de um novo grupo, terá seu comportamento avaliado para verificação do grau de adesão. Os membros mais antigos já não sofrem esse tipo de avaliação e se, eventualmente, quebram alguma regra (que não seja muito importante), não são cobrados por isso. Ocorre que, no caso dos membros mais antigos, é conhecido o grau de aderência ao grupo e sabe-se que eles não jogam contra a manutenção do grupo. Esta “certeza” da fidelidade dos membros é o que chamamos de coesão grupal. Os grupos, de acordo com suas características, apresentam maior ou menor coesão grupal. [pg. 221] Uma torcida organizada de futebol, como as do Flamengo, Corinthians, Atlético Mineiro ou Grêmio (para citar algumas), exigirá de seus membros um grau de fidelidade bem forte porque necessita de um grau de coesão alto para manter o grupo. Já um grupo de jovens que participam de reuniões religiosas nos finais de semana numa igreja católica, precisaria de alguma coesão para manter o grupo, mas não em alto grau. Grupos com baixo grau de coesão tendem a se dissolver, como geralmente acontece com associações de pais em colégios. Além de reunirem-se eventualmente, poucos membros participam das reuniões (por isso, carinhosamente chamamos o grupo de “grupo dos que vêm”).

É possível notar que, de certa forma, os outros elementos, como pressões e padrão do grupo, motivos individuais e objetivos do grupo, já estão presentes na definição da coesão. A fidelidade ao grupo dependerá do tipo de pressão exercida pelo grupo em relação aos novatos e aos outros membros visando manter a concepção central, ou seja, os objetivos que levaram à sua fundação. Os motivos individuais são importantes para a adesão ao grupo. Alguém que pretenda ingressar num grupo jovem de góticos (jovens que costumam andar cora roupas escuras, visitar cemitérios, ouvir música do gênero gótico etc.) está se dispondo, individualmente, a mudar o seu modo de ser. Outro aspecto que envolve a individualidade é a resposta que o grupo dá às diferenças individuais. Elas serão admitidas desde que não interfiram nos objetivos centrais do grupo, na sua idéia central ou nas suas características básicas. O participante de uma torcida organizada não pode querer mudar de time (virar a casaca) e argumentar que se trata de uma questão individual. Seria, evidentemente, excluído do grupo. Mas poderia ir ao jogo sem a camisa do clube, argumentando não ter tido tempo de passar em casa e se preparar. Os objetivos do grupo irão sempre prevalecer aos motivos individuais, mas dependendo desse objetivo, as diferenças individuais poderão ser admitidas. Quanto mais o grupo precisar garantir sua coesão, mais ele impedirá manifestações individuais que não estejam claramente de acordo com seus objetivos.

A questão da liderança pode representar um capítulo à parte na discussão sobre a teoria dos grupos. Foi entre 1935 e 1946 que Kurt Lewin desenvolveu uma teoria consistente, que avaliava o clima grupal e a influência das lideranças na produção da atmosfera dos grupos. Lewin argumentava que o clima democrático, autoritário ou o laissez-faire dependiam da vocação do grupo e do estabelecimento de lideranças que os viabilizassem. Assim, um grupo com vocação autoritária (entenda-se: um grupo cujos membros acreditassem nesta [pg. 222] forma de organização na sua relação grupal) necessitaria de um líder autoritário. Um grupo democrático exigiria uma liderança democrática e um grupo sem preocupações com sua organização, ou não teria liderança, ou teria um líder que não lhe daria direção (seria um estilo anárquico, no sentido mais geral do termo). O importante desta classificação feita por Lewin foi a descoberta de que os grupos democráticos são, a longo prazo, os mais eficientes. Já os autoritários têm uma eficiência imediata, na medida em que são muito centralizados e dependem praticamente de seu líder. Mas são pouco produtivos, pois funcionam a partir da demanda do líder, e seus membros são, geralmente, cumpridores de tarefas. Os grupos democráticos exigem maior participação de todos os membros, que dividem a responsabilidade da realização da tarefa cora sua liderança. Este tipo de grupo pode tornar-se mais competente ainda quando sua liderança for emergente, isto é, quando se desenvolver de acordo com o objetivo ou tarefa proposta pelo grupo.

Muitos foram os autores que sucederam Lewin na discussão da estrutura e do funcionamento dos grupos. Neste livro, você tomou conhecimento das diversas formas que podemos definir a Psicologia. O mesmo ocorre com a definição de grupo, do qual teremos uma visão de acordo com a teoria em pauta. Seria muito extenso e cansativo relatar aqui toda a história das definições de grupo no campo da Psicologia. Mas algumas são muito importantes para quem quiser se aprofundar nesse assunto, como a de Jacob Moreno (Psicodrama), a de Didier Anzieu (vale conferir sua discussão sobre grupos), e a de W. Bion (visão psicanalítica).

Grupos operativos

A abordagem de trabalho em grupo (a qual denominou “Grupos Operativos”) baseado tanto na tradição legada por Lewin quanto nos conhecimentos psicanalíticos. De acordo com o psicólogo Saidon, estudioso da obra de Pichon-Rivière,

“o grupo operativo se caracteriza por estar centrado, de forma explícita, em uma tarefa que pode ser o aprendizado, a cura (no caso da psicoterapia), o diagnóstico de dificuldades etc. Sob essa tarefa, existe outra implícita subjacente à primeira, que aponta para a ruptura das estereotipias que dificultam o aprendizado e a comunicação.4“ [pg. 223]

Na verdade, o grupo operativo configura-se como um modo de intervenção, organização e resolução de problemas grupais, baseado em uma teoria consistente, desenvolvida por Pichon-Rivière e conhecida como Teoria do Vínculo. Tal abordagem transformou-se num poderoso instrumento de intervenção em situações organizacionais e é muito usada hoje em dia. Através de sua aplicação, é possível acompanhar determinado grupo durante a realização de tarefas concretas e avaliar o campo de fantasias e simbolismos encobertos nas relações pessoais e organizacionais dos seus diferentes membros.

O processo grupal

O desenvolvimento de uma Psicologia Social Crítica, a partir de 1970, levou tanto Silvia Lane quanto Martin-Baró5, cada um a seu modo, a desenvolver uma consistente crítica aos modelos teóricos existentes. Tal crítica procura resguardar aspectos funcionais da dinâmica dos grupos — no que concordam com Lewin. No entanto, Lane e Baró questionam os autores cognitivistas (os seguidores de Lewin) pela maneira estática como enquadram o grupo. Da mesma forma, consideram positivo o enquadramento psicanalítico, o qual leva em conta a dinâmica interna dos grupos, criticando, contudo, a visão anistórica destes teóricos. A teoria de Pichon-Rivière também sofrerá algumas críticas. O fundamental nesta visão é considerar que não existe grupo abstrato mas, sim, um processo grupal que se reconfigura a cada momento. Silvia Lane detecta categorias de produção grupal, que define como:

  1. Categoria de produção — a produção das satisfações de necessidades do grupo está diretamente relacionada com a produção das relações grupais. O processo grupal caracteriza-se como atividade produtiva de caráter histórico.
  2. Categoria de dominação — os grupos tendem a reproduzir as formas sociais de dominação. Mesmo um grupo de características democráticas tende a reproduzir certas hierarquias comuns ao modo de produção dominante (no nosso caso, o modo de produção capitalista).
  3. Categoria grupo-sujeito (de acordo com Lourau) — trata-se do nível de resistência à mudança apresentada pelo grupo. Grupos [pg. 224] com menor resistência à autocrítica e, portanto, com capacidade de crescimento através da mudança, são considerados grupos-sujeitos. Os grupos que se submetem cegamente às normas institucionais e apresentam muita dificuldade para a mudança são os grupos-sujeitados.

A categoria de produção pode ser entendida como a influência subjetiva da dinâmica do grupo no seu produto final, na realização de seus objetivos. Mas é também o resultado da influência das relações concretas possíveis numa determinada sociedade. Um grupo que se organiza para formar um conjunto de rap estará, necessariamente, submetido às condições históricas do momento de sua organização. Por exemplo, o grupo certamente terá, como objetivo, algum ganho financeiro, já que é um imperativo do tipo de sociedade em que vivemos (a sociedade capitalista) a comercialização da produção social. Este fator interfere na dinâmica do grupo, que terá de discutir a forma de cobrir as suas despesas e a divisão do lucro. Quem compõe a música, ou quem tem maior prestígio entre os fãs, deve ganhar mais que os outros ou esse lucro será dividido igualmente entre todos? Conforme a decisão, poderá surgir um tipo de hierarquia no grupo. A base da produção da hierarquia não precisa ser pecuniária, podendo advir do prestígio de alguns membros do grupo. O vocalista pode exigir algumas regalias, como ter sua foto em destaque, e isso também será fator de hierarquização. Com isso, queremos dizer que a construção das lideranças e do clima democrático ou autoritário depende da condição histórica e concreta do tipo de produção do grupo e de como ela se insere no contexto social. Um grupo de rap terá algumas opções, mas o grupo formado no escritório de uma empresa multinacional terá uma ordem de organização determinada pelos objetivos ligados à produção daquela empresa. E aqui já entramos na segunda categoria descrita por Lane: a dominação. A hierarquização dos grupos de forma mais verticalizada ou horizontalizada dependerá de como estão inseridos no sistema produtivo.

De acordo com a maneira como a sociedade define seu sistema produtivo, ela estabelece valores sociais que, de uma maneira geral, serão reproduzidos pelos grupos, estejam eles mais ou menos diretamente ligados ao sistema produtivo. Assim, quando se trata do trabalho numa fábrica, o grupo tenderá a ser bastante verticalizado (diretor, gerente, chefe, encarregado e operários) e esta verticalização poderá ser transferida, como valor, para o grupo familiar do operário (o pai, a mãe, o filho mais velho e os mais novos). [pg. 225]

Entretanto, existe a possibilidade de o grupo (ou alguns de seus membros) exercer a negação deste processo de imposição social (na realidade, é isso que cria uma dinâmica social mais rica e variada). Chegamos à terceira categoria: grupo-sujeito. O grupo-sujeito é aquele que critica as formas autoritárias de organização e procura estabelecer uma contranorma. Isto somente é possível quando o grupo consegue esclarecer a base de dominação social, historicamente determinada, e encontra formas de organização alternativas (como é o caso das formas autogestionárias de organização grupal).

Psicologia - Psicologia social
7/27/2021 2:00:37 PM | Por Ana Mercês Bahia Bock
A identidade

Vemos uma pessoa desconhecida em uma festa, no pátio da escola ou no ponto de ônibus. Não sabemos nada a seu respeito. É um enigma a ser desvendado. Será? Nem tanto... A partir do momento que a olhamos, já começamos a conhecê-la: discriminamos seu sexo (homem ou mulher), sua faixa etária (criança, jovem, adulto), sua etnia. E, se prestamos mais atenção, podemos perceber alguns “detalhes” que fornecem outros indicadores sobre este desconhecido, ou seja, o modo de se vestir e os piercings o situam em determinado grupo; o broche na roupa — uma estrela vermelha — “fala” de sua opção por determinado partido político...

Aí, nos aproximamos da pessoa e vem a “famosa” pergunta: — Qual o seu nome? Depois dessa primeira pergunta, podemos fazer muitas outras... mais ou menos como aquelas da ficha para procurar emprego, do formulário para fazer crediário ou das entrevistas iniciais com o psicólogo — onde mora e estuda, a idade, a religião, se trabalha ou não, o que gosta e o que não gosta de fazer, enfim, um roteiro que pode ser interminável e se referir ao presente, ao passado e ao futuro desse desconhecido que começa a deixar de sê-lo.

Conhecer o outro é querer saber quem ele é.

— Quem é você? Quem sou eu?

Perguntas não tão simples de serem respondidas e que acompanham a história da humanidade.

Na Grécia Antiga, na cidade de Delfos, havia o oráculo do deus Apolo, em cujo frontispício havia o lema: “Conhece-te a ti [pg. 202] mesmo”. Na famosa tragédia de Sófocles (Édipo rei), em dúvida quanto à sua origem, Édipo procura este oráculo para saber quem ele é — sua identidade — e a resposta é aterradora: Édipo é aquele que dormiria com a própria mãe e mataria o pai.

Muitos séculos depois, Shakespeare escreveria uma peça — Hamlet — cujo mote se vulgarizou: “ser ou não ser... eis a questão”. No início deste século, Machado de Assis escreve um romance — Dom Casmurro — que é um primor enquanto desafio para a compreensão de quem é a personagem principal, Capitu.

Portanto, saber quem é o outro é uma questão aparentemente simples e se constitui desafio em cada novo encontro e, mesmo nos antigos, porque as pessoas mudam, embora continuem elas mesmas.

Para compreender esse processo de produção do sujeito, que lhe permite apresentar-se ao mundo e reconhecer-se como alguém único, a Psicologia construiu o conceito de identidade.

Este conceito, como muitos outros em Psicologia, tem várias compreensões e utiliza contribuições de outras áreas do conhecimento. Vamos elencar as principais.

Carlos R. Brandão, antropólogo e educador1, diz que a identidade explica o sentimento pessoal e a consciência da posse de um eu, de uma realidade individual que torna cada um de nós um sujeito único diante de outros eus; e é, ao mesmo tempo, o reconhecimento individual dessa exclusividade: a consciência de minha continuidade em mim mesmo. A referência do autor ao eu em oposição aos outros eus, leva-nos a considerar algo bastante importante: é em relação a um outro — diferente de nós — que nos constituimos e nos reconhecemos como sujeito único. Este aspecto será abordado quando falarmos de identificação e identidade: dois conceitos que, no senso comum, muitas vezes são usados como sinônimos, mas se referem a processos bastante diferentes.

Segundo o psicanalista André Green, o conceito de identidade agrupa várias idéias, como a noção de permanência, de manutenção de pontos de referência que não mudam com o passar do tempo, como o nome de uma pessoa, suas relações de parentesco, sua nacionalidade. São aspectos que, geralmente, as pessoas carregam a vida toda. Assim, o termo identidade aplica-se à delimitação que permite a distinção de uma unidade. Por fim, a identidade permite uma relação com os outros, propiciando o reconhecimento de si. [pg. 203]

Entretanto, tais propriedades — constância, unidade e reconhecimento — descrevem um determinado momento da identidade de alguém, mas não são capazes de acompanhar o processo de sua produção e de sua transformação.

Várias correntes da Psicologia (e a Psicanálise, inclusive) nos ensinam que o reconhecimento do eu se dá no momento em que aprendemos a nos diferenciar do outro. Eu passo a ser alguém quando descubro o outro e a falta de tal reconhecimento não me permitiria saber quem sou, pois não teria elementos de comparação que permitissem ao meu eu destacar-se dos outros eus. Dessa forma, podemos dizer que a identidade, o igual a si mesmo, depende da sua diferenciação em relação ao outro. O primeiro “outro” importante é a mãe (sempre ela!), de quem o bebê vai se diferenciando, aprendendo que não é uma extensão dela.

São duas pessoas e, ao mesmo tempo, é  o olhar da mãe sobre o bebê que vai dando a ele o seu valor como pessoa. Por isso, as primeiras relações são tão importantes na vida de todas as pessoas. Neste processo de diferenciação, a criança começa a escolher outras pessoas como objeto de identificação, isto é, pessoas significativas que funcionam como modelo em relação ao qual o sujeito vai se apropriando de algumas características, através do processo de identificação, e vai formando sua identidade: o que sou e quero ser, sendo que o que quero ser (o futuro!) já constitui o que sou (o presente). É importante, aqui, esclarecer que o conjunto de experiências, ao longo da vida, permite a cada um “montar” o seu próprio modelo do que pretende ser como homem ou mulher, como profissional, como cidadão etc. Isto porque, o que quero ser como mulher, por exemplo, tem como referência várias mulheres que foram importantes para mim, ao longo de minha vida: é um amálgama de características de minha mãe, daquela professora tão especial, da heroína de um romance e da mãe de uma amiga minha. Este é um modelo com o qual me identifico e vou procurando construir minha identidade.

Como continuo vivendo e tendo experiências com novas pessoas, posso alterar este modelo e, neste momento, podemos perguntar: alguém é sempre igual a si mesmo? Há a possibilidade de mudança de identidade? Se a resposta for afirmativa, estará ocorrendo perda de identidade? [pg. 204]

Estas perguntas são importantes porque introduzem a idéia fundamental de que a identidade é algo mutável, em permanente transformação. Assim, chegamos a um ponto bastante interessante!

Como é possível alguém mudar e continuar sendo igual a si mesmo? E é exatamente isso o que acontece. Pense em si até onde sua memória alcança e repare que você e as pessoas nunca duvidaram que você seja você mas, ao mesmo tempo, quantas mudanças ocorreram! Você deixou de ser filho único, não é mais o primeiro aluno da classe; você descobriu que pensa diferente de seus pais em muitas coisas e se deu conta que seu corpo mudou muito — você, que sempre sonhou em ser aeromoça ou bailarina, agora está pensando seriamente em se profissionalizar na área de enfermagem... e quantas mudanças ainda ocorrerão!

Para compreender esse processo do ponto de vista teórico, o professor da PUC-SP, Antonio da Costa Ciampa, desenvolveu uma concepção psicossocial da identidade em que esta aparece em sua dimensão de processo. Para este autor, a identidade tem o caráter de metamorfose, ou seja, está em constante mudança. Entretanto, ela se apresenta — a cada momento — como em uma fotografia, como “estática”, como não-metamorfose, escamoteando sua dinâmica real de permanente transformação. Estas transformações referem-se tanto àquelas que são inexoráveis: a passagem da infância para a adolescência e, posteriormente, idade adulta, como àquelas que dependem das oportunidades sociais e do acesso aos bens culturais: a possibilidade de estudar, de cursar uma faculdade, de viajar e de ter acesso a outras experiências culturais, por exemplo.

Para esclarecer melhor este aspecto, o autor utiliza o belíssimo poema de João Cabral de Melo Neto, Morte e Vida Severina. Ao dar nome a alguém, torno esse alguém determinado, substantivo. No poema, o retirante se apresenta ao leitor dizendo assim:

O meu nome é Severino, não tenho outro de pia. Como há muitos Severinos, que é santo de romaria, deram então de me chamar

 Severino de Maria; como há muitos Severinos com mães chamadas Maria, fiquei sendo o da Maria do finado Zacarias... [pg. 205]

Para não ser confundido com outros tantos Severinos, o retirante procura definir, de uma forma substantiva, quem ele é — um determinado Severino. Mas, ao falar de sua identidade, ele também está falando de uma realidade social. A realidade social em que está inserido, as condições de vida no sertão do Nordeste brasileiro. Ele fala de como a família se estrutura fragilmente (a falta de sobrenome — não tem outro nome de pia, isto é, de batismo), fala da religiosidade do nordestino (o nome do santo de romaria, a quem se pede e se homenageia dando seu nome aos filhos), da morte prematura das pessoas nessa região (o Severino da Maria do finado Zacarias).

Ao falar do contexto social, ele percebe que, cada vez mais, é semelhante a tantos outros Severinos e que não tem como se apresentar. A sua substantivação não é suficiente para definir sua identidade. Ele só consegue expressar a sua particularidade quando, no final desse trecho, nos diz:

Mas, para que me conheçam melhor Vossas Senhorias
e melhor possam seguir
a história de minha vida, passo a ser o Severino que em vossa presença emigra.
Assim, ficamos sabendo exatamente quem é esse Severino, não
na sua definição, na sua substantivação, mas na sua ação, na sua predicação.

É a atividade que constrói a identidade. A predicação é a predicação de uma atividade anterior, que “presentifica” o ser. Entretanto, pelo fato de estarmos inseridos nas organizações, a ação é fragmentada. Eu sou o que faço naquele momento, e não é possível repor o tempo todo minhas outras facetas, minha ação em outros grupos. Na escola, sou reconhecido como um bom estudante ou um bom jogador de basquete; no meu emprego sou um bom arquivista e, junto aos amigos, sou um bom conselheiro. O bom conselheiro não inclui o arquivista, embora ambos se refiram a mim.

A atividade “coisifica-se” sob a forma de personagem. A forma como apresentamos o exemplo já denuncia isso. Sou arquivista porque arquivo e um bom conselheiro porque dou conselhos. Se desistir de arquivar, não serei mais arquivista.

Entretanto, a construção da personagem congela a atividade, e perco a dinâmica de minha própria transformação. A identidade, então, que é metamorfose, apresenta-se como não-metamorfose.

A identidade é sempre pressuposta mas, ao mesmo tempo, tal pressuposição é negada pela atividade, já que, ao fazer, eu me transformo, [pg. 206] o que faz da identidade um processo em permanente movimento. Como a personagem que eu represento é congelada pela pressuposição, eu procuro repor a minha identidade pressuposta durante a atividade. O processo de reposição cria a ilusão de que “o mesmo” está produzindo esta nova ação. Isso gera a identidade-mito (personagem congelada, independente da ação), em que a atividade aparece padronizada previamente, e passo a ter uma certa ilusão de substancialidade. A personagem subsiste mesmo que já não exista mais a atividade, como é o caso de Severino, que, chegando à cidade, é visto como lavrador — um lavrador que já não lavra, que agora lava carros, trabalha como peão na construção civil ou recolhe sucata nas ruas.

Identidade e crise

É importante que tenha ficado claro que a identidade é um processo de construção permanente, em contínua transformação — desde antes de nascer até a morte! — e, neste processo de mudança, o novo — quem sou, agora — amalgama-se com o velho — quem fui ontem, quando era adolescente, criança! E isto que dá o fio da história de cada um, mesmo que, pela aparência, seja difícil discernir, por trás do presidente neoliberal, o sociólogo marxista perseguido pela ditadura ou, por trás do apresentador de TV milionário, o antigo camelô das ruas de São Paulo. Um olhar atento, para além das aparências e dos preconceitos, perceberá que o antigo está no novo.

Contudo, há situações em que esse processo de mudança contínuo ocorre de modo intenso, confuso e, muitas vezes, angustiante e doloroso. Falamos, então, em crise de identidade.

São momentos, períodos importantíssimos da vida de uma pessoa em que ela procura, com maior ou menor grau de consciência dessa crise, redefinir ou ratificar seu modo de ser e estar no mundo... sua identidade: para si e para os outros.

Um caso exemplar de crise de identidade, em função inclusive de seu caráter inexorável, e que pode ser vivida com mais ou menos sofrimento, é a adolescência. Este período de vida marca a passagem da infância para a juventude quando, independentemente da vontade do indivíduo, grandes mudanças ocorrem em todos os níveis: o corpo transforma-se, o funcionamento bioquímico altera-se, a capacidade intelectual realiza-se com maior flexibilidade — a capacidade [pg. 207] de operar com abstrações, de pensar sobre o pensamento — os interesses mudam; o mundo não se restringe ao universo familiar e escolar, e os grupos de pertencimento passam a ter outras expectativas de conduta sobre o adolescente, como a autonomia, o saber cuidar de si, enfim, ocorre uma revolução! E como dar conta de tudo isso que ocorre dentro e fora de mim?! Não sou mais criança, não quero ser e, ao mesmo tempo, gosto de deitar no colo da minha mãe. Posso ou não posso? Não quero desagradar meu pai e tenho uma curiosidade enorme de fumar maconha, no que sou incentivado pelos meus amigos. Como dou conta disso? Sou a única garota da minha turma que ainda não transou, tenho medo da AIDS, meu namorado vive me pressionando para dormirmos juntos e eu também morro de tesão e... de medo! Fui preparado, mesmo antes de nascer, para ser a sétima geração de advogados da minha família, que já teve até um ministro da justiça e, neste momento, o que mais quero é estudar música, ser músico. Como enfrentar a família inteira com o meu desejo?

Quantos conflitos! Quantas dúvidas! “Ser ou não ser, eis a questão!”

Embora marcada por intensa “turbulência interna”, essa crise pode significar — e, na maioria das vezes, o é — um período de “confusão” criadora, em que há o luto da perda do corpo infantil e a estranheza quanto àquele corpo adulto (ele mesmo!) que o adolescente desconhece e deseja, e que vai se constituindo, inexoravelmente. Às mudanças do corpo correspondem mudanças em sua subjetividade. “O novo corpo é habitado por uma nova mente” (José Outeiral, Adolescer — estudos sobre adolescência, ed. Artes Médicas, Porto Alegre, 1994). Novas influências amalgamadas: o grupo de pares; personagens do mundo intelectual, artístico, esportivo, político; aquele professor fantástico; os pais que, sem dúvida, continuam sendo importantes figuras de identificação.

E, de tudo isso produz-se alguém novo, com rupturas mais ou menos intensas com a sua história pregressa mas que, sem dúvida, estará inscrita na sua biografia e, portanto, será constitutivo de sua identidade tudo o que já viveu. A crise de identidade na adolescência é algo inevitável, contudo, existem outras crises que são construídas e produzidas pelo próprio indivíduo e/ou por circunstâncias sociais e biográficas.

Uma situação dessa é descrita por Maria Lúcia V. Violante no livro O Dilema do Decente Malandro, quando estuda a situação dilemática vivida por jovens autores de ato infracional abrigados em uma instituição de privação de liberdade, em São Paulo: ser “malandro”, isto é, permanecer na criminalidade, ou “decente”, isto é, romper com a trajetória da criminalidade e escolher um projeto de vida de inserção na coletividade. A situação de conflito é concretizada [pg. 208] pelas duas referências de identificação que se tornam igualmente importantes: o discurso dos educadores e o discurso dos colegas do seu grupo de referência. Não é fácil decidir: do ponto de vista deste jovem, há perdas e ganhos em qualquer uma das opções.

Estigma

Uma introdução ao estudo da identidade não seria completa se não abordássemos o estigma. O que é isso? O estigma refere-se as marcas — atributos sociais que um indivíduo, grupo ou povo carregam e cujo valor pode ser negativo ou pejorativo. Imagine o que significa para um indivíduo, em termos pessoais e sociais, ser egresso da prisão ou de instituição psiquiátrica; ser homossexual, prostituta ou portador do vírus HIV? Imagine o que significou, para o indivíduo, ser judeu na Alemanha nazista, ou negro na África do Sul durante o Apartheid?

Estes são atributos facilmente reconhecíveis como carregados de um valor negativo para a maioria das pessoas e determinam, para o indivíduo, um destino de exclusão ou a perspectiva de reivindicação social pelo direito de ser bem tratado e ter oportunidades iguais. O estigma revela que a sociedade tem dificuldade de lidar com o diferente. Esta dificuldade é “perpetuada”, ao longo das gerações, pela educação familiar, pela escola, pelos meios de comunicação de massa, por cada um de nós em nosso cotidiano, o que leva à construção de uma carreira moral para o indivíduo estigmatizado, isto é, sua identidade vai incorporar este atributo ao qual corresponde um valor social negativo. Um exemplo chocante e ilustrativo dessa incorporação ocorreu na década de 90, quando uma menina de seis anos foi proibida de freqüentar uma pré-escola e, expulsa de outra, por ser portadora do HIV. Existem inúmeros exemplos como esse, cujo modo de a sociedade lidar vai demonstrando que há um percurso, um destino que estas pessoas devem assumir.

Um aspecto bastante importante desse processo, que pode envolver um indivíduo, um grupo ou um povo inteiro e acompanhar o indivíduo desde o seu nascimento (uma característica física, por exemplo) ou ser adquirido ao longo da vida (assumir a própria homossexualidade) é o atributo negativo pode ser internalizado pelo indivíduo e constituir aspecto importante de sua auto-imagem e auto-estima. [pg. 209]

Nesse sentido, é importante prestar atenção a situações semelhantes ao processo de estigmatização que pode permear a vida cotidiana. Exemplo: na escola, a professora que reiteradas vezes afirma que determinado aluno “tem dificuldades”, “é burro”, “cabeça-dura”, “difícil de aprender”, sem dúvida poderá ser uma experiência marcante para ele, que, se internalizar tais comentários, passará a ver a si próprio da forma como a professora o vê e diz ser, e este aluno, que não tem dificuldades, poderá realizar a profecia de fracasso pregada por ela.

PARA FINALIZAR... Agora que você conhece os vários fatores e processos envolvidos na construção da identidade, imagine um encontro casual com uma pessoa desconhecida. Ao vê-la, você saberá responder às perguntas: Quem é ela? Qual a sua identidade? — Não. Mas, você já sabe algumas “coisas” importantes. E, uma delas, é que a aparência (que inclui o comportamento observável) é um ponto de partida para conhecer esta pessoa.

Os atributos visíveis da identidade são sinais importantes para iniciar a longa trajetória de descoberta do outro. Mas, não são suficientes. Lembre-se: as aparências podem enganar ou... as pessoas estão em contínuo processo de mudança...

Psicologia - Psicologia social
7/27/2021 1:32:32 PM | Por Ana Mercês Bahia Bock
Vida afetiva

“O coração tem razões que a própria razão desconhece.” Quais são essas razões? São nossos afetos que dão o colorido especial à conduta de cada um e às nossas vidas. Eles se expressam nos desejos, sonhos, fantasias, expectativas, nas palavras, nos gestos, no que fazemos e pensamos. É o que nos faz viver.

Para falarmos de afetos, seria preferível dar a palavra aos poetas. Estes sim, expressam-nos de uma maneira tão clara, tão precisa, que traduzem com perfeição estados internos que não cabem na racionalidade científica:

Quanto mais desejo

Um beijo seu 

Muito mais eu vejo

Gosto em viver.1 [pg. 189]

Por que os psicólogos precisam falar da vida afetiva?

Porque ela é parte integrante de nossa subjetividade. Nossas expressões não podem ser compreendidas, se não considerarmos os afetos que as acompanham. E, mesmo os pensamentos, as fantasias — aquilo que fica contido em nós — só têm sentido se sabemos o afeto que os acompanham. Por exemplo, aquela idéia de que o melhor amigo irá se sair mal em uma competição, só adquire sentido quando descobrimos que sua origem está na inveja que se tem dele. O Psicólogo, em seu trabalho, não pode deixar de lado esse aspecto constitutivo da subjetividade — a vida afetiva — e estudar apenas a vida cognitiva e racional dos indivíduos. Agindo assim, certamente não irá compreendê- los em sua totalidade.

Por tanto amor
Por tanta emoção
A vida me fez assim Doce ou atroz
Manso ou feroz
Eu, caçador de mim.2

Pense em quantas vezes você já programou uma forma de agir e, na hora “H”, comportou-se completamente diferente. Por exemplo, uma jovem soube algo de seu namorado que a aborreceu, mas ela racionalmente resolveu não criar caso e pensou: “Quando ele chegar, vou ser carinhosa e não vou deixar transparecer que me aborreci” e, de repente, quando o tem à sua frente, ela se vê esbravejando, agredindo, enciumada. Seus afetos a traíram. Foi difícil ou, no caso, impossível contê-los. Tanto nesse exemplo, como em muitas situações de vida, não há a mediação do pensamento — são os afetos que determinam nosso comportamento. É nesta circunstância que se ouve aquela frase tão corriqueira: “Como ele é impulsivo!”. Por isso, os afetos são importantes para os psicólogos.

Marx afirmou “que o homem se define no mundo objetivo não somente em pensamento, senão com todos os sentidos (...). Sentidos que se afirmam, como forças essenciais humanas (...). Não só os cinco sentidos, mas os sentidos espirituais (amor, vontade...)”3. [pg. 190]

O estudo da vida afetiva

O estudo da razão tem sido privilegiado no interesse dos homens, principalmente na ciência, pois os afetos têm sido vistos como deformadores do conhecimento objetivo. Mesmo na Psicologia, não são todas as teorias que consideram a importância da vida afetiva, tendo, muitas delas, priorizado apenas o estudo da cognição, das funções intelectivas.

Consideramos que estudar apenas alguns aspectos do homem é considerá-lo como um ser fragmentado, correndo-se o risco de deixar de analisar aspectos importantes.

Como diz Bader Sawaya:

“O homem se afirma no mundo objetivo, não só no ato do pensar, mas com todos os sentidos, até com os sentidos mentais (vontade, amor e emoção)”4.

Minha mãe achava estudo
A coisa mais fina do mundo,
Não é.
A coisa mais fina do mundo é o sentimento. Aquele dia de noite, o pai fazendo serão, Ela falou comigo: “Coitado, até essa hora no serviço pesado”. Arrumou pão e café, deixou tacho no fogo com Água quente.
Não me falou em amor,
Essa palavra de luxo.5

A vida afetiva, ou os afetos, abarca muitos estados pertencentes à gama prazer-desprazer, como, por exemplo, a angústia em seus diferentes aspectos — a dor, o luto, a gratidão, a despersonalização — os afetos que sustentam o temor do aniquilamento e a afânise, isto é, o desaparecimento do desejo sexual.

Ao procurarmos compreender a vida afetiva, é importante adotarmos a terminologia adequada por tratar-se de uma área de estudo repleta de nuances. Portanto, se até o século 19 usavam-se, indiscriminadamente, termos como emoção e sentimento, hoje, no estudo da vida afetiva, já fazemos uma distinção mais precisa entre esses termos:

  • a emoção: estado agudo e transitório. Exemplo: a ira.
  • o sentimento: estado mais atenuado e durável. Exemplo: a gratidão, a lealdade. [pg. 191]

Os afetos

Os afetos podem ser produzidos fora do indivíduo, isto é, a partir de um estímulo externo — do meio físico ou social — ao qual se atribui um significado com tonalidade afetiva: agradável ou desagradável, por exemplo. A origem dos afetos pode também nascer, surgir do interior do indivíduo.

O universo dos afetos é comunicável na medida que as representações de coisa e palavra formam, com os afetos, um complexo psíquico inteligível. É importante lembrar aqui que, para a Psicanálise, não há afeto sem representação, isto é, sem idéia. Se assim fosse, poderíamos ter a impressão que existe afeto solto dentro de nós — uma sensação de mal-estar, por exemplo —, isso porque a idéia à qual o afeto se refere pode estar inconsciente.

O prazer e a dor são as matrizes psíquicas dos afetos, ou se constituem em afetos originários. Entre estes dois extremos encontram- se inúmeras tonalidades, intensidades de afetos, que podem ser vagos, difíceis de nomear ou discriminados.

Com açúcar, com afeto

Fiz seu doce predileto

Pra você parar em casa.6 

Existem dois afetos que constituem a vida afetiva: o amor e o ódio. Estão sempre presentes na vida psíquica — de modo mais ou menos integrado —, associados aos pensamentos, às fantasias, aos sonhos e se expressam de diferentes modos na conduta de cada um.

Freud, quando postulou a teoria do Complexo de Édipo, concebeu-o como conflito desses afetos básicos (ambivalência de sentimentos), pois uma das suas principais dimensões é a oposição entre “um amor fundamentado e um ódio não menos justificado, ambos dirigidos à mesma pessoa”7.

As aparências enganam 

Aos que odeiam e aos que amam

Porque o amor e o ódio

Se irmanam na fogueira das paixões8. [pg. 192]

Os afetos ajudam-nos a avaliar as situações, servem de critério de valoração positiva ou negativa para as situações de nossa vida; eles preparam nossas ações, ou seja, participam ativamente da percepção que temos das situações vividas e do planejamento de nossas reações ao meio. Essa função é caracterizada como função adaptativa.

Quando olhaste bem
Nos olhos meus
E o teu olhar era de adeus Juro que não acreditei Eu te estranhei
Me debrucei sobre o teu corpo E duvidei
E me arrastei.9

Os afetos também têm uma outra característica — eles estão ligados à consciência, o que nos permite dizer ao outro o que sentimos, expressando, através da linguagem, nossas emoções. E é isso o que fazem, incessantemente, os poetas, até mesmo quando não querem falar:

Não quero falar, Pois sinto.
Não tenho de amar, Pois amo.10

Contudo, muitas vezes os afetos são enigmáticos para quem os sente. Exemplos: quando temos muitos motivos para não gostar de alguém de quem gostamos; ou quando deveríamos ser gratos a alguém de quem temos raiva. Há motivos dos afetos que estão fora do campo da consciência; nem mesmo quem os vivência consegue explicar — só sente a estranheza daquele sentimento que parece “fora do lugar”.

Eu queria ficar triste
Mas não consigo parar de rir...11 [pg. 193]

Os afetos também podem ser enigmáticos para aqueles que os supõem em nós a partir de alguma expressão, isso porque, muitas vezes, nossa reação não condiz com o que sentimos (com que o outro esperava), ou seja, nem sempre o comportamento está em conformidade com os nossos afetos, os quais não queremos (ou não podemos) demonstrar.

Nada ficou no lugar
Eu quero quebrar essas xícaras Eu vou enganar o diabo
Eu quero acordar sua família Eu vou escrever no seu muro
E violentar o seu gosto
Eu quero roubar no seu jogo
Eu já arranhei os seus discos.

Que é pra ver se você volta Que é para ver se você vem
Que é pra ver se você olha pra mim12.

As emoções

As emoções são expressões afetivas acompanhadas de reações intensas e breves do organismo, em resposta a um acontecimento inesperado ou, às vezes, a um acontecimento muito aguardado (fantasiado) e que, quando acontece...

Nas emoções é possível observar uma relação entre os afetos e a organização corporal, ou seja, as reações orgânicas, as modificações que ocorrem no organismo, como distúrbios gastrointestinais, cardiorrespiratórios, sudorese, tremor. Um exemplo comum é a alteração do batimento cardíaco.

Meu coração
Não sei por quê
Bate feliz
Quando te vê.13 [pg. 194]

Durante muito tempo, acreditou-se no coração como o lugar da emoção, talvez pelo fato de, ao manifestar-se, vir freqüentemente acompanhada de fortes batimentos cardíacos. Por isso, até hoje desenhamos corações para dizer que estamos apaixonados.

Amigo é coisa pra se guardar Debaixo de sete chaves Dentro do coração.14

Outras reações orgânicas acompanham as emoções e revelam vivências ou estados emocionais do indivíduo: tremor, riso, choro, lágrimas, expressões faciais etc. As reações orgânicas fogem ao nosso controle. Podemos “segurar o choro”, mas não conseguimos deixar de “chorar por dentro”, sentindo aquele nó na garganta e, às vezes, tentamos, mas não conseguimos segurar duas ou três lágrimas que escorrem, traindo-nos, demonstrando nossa emoção. Assim como o riso e a aceleração dos batimentos cardíacos, o choro — cantado e recantado pelos poetas como expressão de amor, saudade e desejo — é uma das reações mais freqüentes e comuns em nossa cultura.

Você partiu Saudades me deixou Eu chorei15.

Quem parte leva saudades De alguém que fica16.

Todas essas reações de que vimos falando são importantes descargas de tensão do organismo emocionado, pois as emoções [pg. 195] são momentos de tensão em um organismo, e as reações orgânicas são descargas emocionais.

Se eu chorasse

Talvez desabafasse

O que sinto no peito

E não posso dizer

Só porque não sei chorar

Eu vivo triste a sofrer17.

Infelizmente, nossa cultura estimula algumas reações emocionais e reprime outras. Os homens sabem bem disso. “Homem não chora” é uma das frases mais comuns na educação de nossos jovens. Infelizmente, o senso comum não foi sensível para aprender com os poetas que se chora, sim, e que choro é expressão de vida afetiva, de amor e de ódio; de força de um organismo que se adapta a uma situação de tensão — nunca sinal de fraqueza!

Por outro lado, as reações emocionais orgânicas são, até certo ponto, aprendidas, ou seja, nosso organismo pode responder de diversas maneiras a uma situação, mas a cultura “escolhe” algumas formas como sendo mais adequadas a determinadas situações ou tipo de pessoas (por exemplo, de acordo com a idade, o sexo ou a posição social). Durante nossa socialização, aprendemos essas formas de expressão das emoções aceitas pelo grupo a que pertencemos.

Assim, passamos a associar reações do organismo às emoções, as quais podemos distinguir. Por exemplo, distinguimos o choro de tristeza do choro de alegria; o riso de alegria do riso de nervoso.

As emoções são muitas: surpresa, raiva, nojo, medo, vergonha, tristeza, desprezo, alegria, paixão, atração física — ora são mais difusas, ora mais conscientes; às vezes encobertas, às vezes não.

As emoções, por estarem ligadas diretamente à vida afetiva — aos afetos básicos de amor e ódio — estão ligadas também à sexualidade (amor). [pg. 196]

Quando transmites o calor

De tua mão para o meu corpo

Que te espera

Me deixas louca

E quando sinto que teus braços

Se cruzaram em minhas costas

Desaparecem as palavras

Outros sons enchem o espaço

Você me abraça

A noite passa

Me deixas louca.18

Não temos por que esconder nossas emoções. Elas são nossa própria vida, uma espécie de linguagem na qual expressamos percepções internas; são sensações que ocorrem em resposta a fatores geralmente externos. São fortes, passageiras; intensas, mas não imutáveis. Isto quer dizer que o que hoje nos emociona, poderá amanhã não nos emocionar mais.

Essa força e mutabilidade foi expressa neste poema de Vinícius de Moraes:

De tudo, ao meu amor serei atento

Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto

Que mesmo em face do maior encanto

Dele se encante mais meu pensamento

Quero vivê-lo em cada vão momento

E em seu louvor hei de espalhar meu canto

E rir meu riso e derramar meu pranto

Ao seu pesar ou seu contentamento

E assim, quando mais tarde me procure

Quem sabe a morte, angústia de quem vive

Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa me dizer do amor (que tive):

Que não seja imortal, posto que é chama

Mas que seja infinito enquanto dure.19 [pg. 197]

Os sentimentos

Os afetos básicos (amor e ódio), além de manifestarem-se como emoções, podem expressar-se como sentimentos.

Os sentimentos diferem das emoções por serem mais duradouros, menos “explosivos” e por não virem acompanhados de reações orgânicas intensas.

Assim, consideramos a paixão uma emoção, e o enamoramento, a ternura, a amizade, consideramos sentimentos, isto é, manifestações do mesmo afeto básico — o amor.

O importante é compreender que a vida afetiva — emoções e sentimentos — compõe o homem e constitui um aspecto de fundamental importância na vida psíquica. As emoções e os sentimentos são como alimentos de nosso psiquismo e estão presentes em todas as manifestações de nossa vida. Necessitamos deles porque dão cor e sabor à nossa vida, orientam-nos e nos ajudam nas decisões. Enfim, são elementos importantes para nós, que não podemos nos compreender sem os sentimentos e as emoções.

Socorro, não estou sentindo nada.

Nem medo, nem calor, nem fogo.

Não vai dar mais pra chorar.

Nem pra rir.

Socorro, alguma alma, mesmo que penada, me empreste suas penas.

Já não sinto amor nem dor,

Já não sinto nada.

Socorro, alguém me dê um coração,

Que esse já não bate nem apanha.

Por favor, uma emoção pequena,

Qualquer coisa.

Qualquer coisa que se sinta,

Tem tantos sentimentos,

Deve ter algum que sirva.

Socorro, alguma rua que me dê sentido,

Em qualquer cruzamento,

Acostamento,

Encruzilhada.

Socorro, eu já não sinto nada.20 [pg. 198]

Saber e compreender o mundo que nos rodeia é fundamental para que possamos estar nele. A apreensão do real é feita de modo sensível e reflexivo e, portanto, realizada pelo pensar, sentir, sonhar, imaginar.

Para finalizar este capítulo — o poeta não poderia estar ausente! — escolhemos o trecho de uma poesia cujos versos destacam a importância da vida afetiva:

O que pode o sentimento não pode o saber
nem o mais claro proceder
nem o mais amplo pensamento. (...)
Só o amor com sua ciência nos torna tão inocentes.21

Psicologia - Neuropsicologia
7/26/2021 1:57:38 PM | Por Ana Mercês Bahia Bock
O estudo da inteligência

Somos seres pensantes. Pensamos sobre as coisas passadas, projetamos nosso futuro, resolvemos problemas, criamos, sonhamos, fantasiamos, somos até capazes de pensar sobre nós mesmos, isto é, somos capazes de nos tornar objetos da nossa própria investigação. Fazemos ciência, poesia, música, construímos máquinas incríveis, transformamos o mundo em símbolos e códigos, criando a linguagem que nos permite a comunicação e o pensamento. Não há dúvida de que somos uma incrível espécie de seres1

Essa capacidade de pensar, da qual somos dotados, sempre foi objeto de curiosidade dos filósofos, dos cientistas e, dentre eles, dos psicólogos.
Como pensamos? Como resolvemos os problemas que se nos colocam?

Foi a partir de questões assim que se iniciaram investigações científicas para a compreensão da gênese do pensamento humano, ou seja, de como se elabora, como se estrutura esta capacidade.

Um dos mais pesquisados aspectos do pensamento foi a inteligência. [pg. 179]

Concepções de inteligência

“... uma decisão inteligente.” Provavelmente você conhece um comercial de cigarros que utiliza esse slogan. Neste comercial podemos identificar uma das concepções que o senso comum apresenta sobre a inteligência: qualidade que as pessoas possuem para resolver corretamente um problema. O comercial coloca como problema o excesso de nicotina e de alcatrão que os cigarros possuem, o qual seria inteligentemente resolvido pela mudança de marca de cigarro, pois a anunciada possui (assim eles dizem) menos alcatrão e menos nicotina, “sem tirar o prazer de fumar”.

Outras concepções de inteligência incluem a qualidade de adaptar-se a situações novas e aprender com facilidade. As concepções científicas da inteligência não são muito diferentes destas do senso comum. Gohara Yehia conta no livro Avaliação da inteligência que, em um

“simpósio sobre inteligência realizado em 1921, grande número de psicólogos expôs suas opiniões a respeito da natureza da inteligência. Alguns consideravam um indivíduo inteligente na medida em que fosse capaz de um pensamento abstrato; para outros, a inteligência era a capacidade de se adaptar ao ambiente ou a capacidade de se adaptar a situações relativamente novas ou, ainda, a capacidade de aquisição de novos conhecimentos. Houve várias teorias sobre inteligência: as que postulavam a existência de uma inteligência geral, as que postulavam a existência de várias faculdades diferenciadas e as que defendiam a existência de múltiplas aptidões independentes”2.

Grosso modo podemos dizer que os psicólogos dividiram-se em dois grandes blocos, quanto à compreensão desse aspecto do pensamento (cognição) humano: a abordagem da Psicologia diferencial e a abordagem dinâmica. [pg. 180]

A abordagem da Psicologia diferencial

A Psicologia diferencial, baseando-se na tradição positivista, acredita que a tarefa da ciência é estudar aquilo que é observável (positivo) e mensurável. Portanto, a inteligência, para ser estudada, deve-se tornar observável. Esta capacidade humana foi, então, decomposta em inúmeros aspectos e manifestações. Nós não observamos diretamente a inteligência, mas podemos medi-la através dos comportamentos humanos, que são expressões da capacidade cognitiva.

Assim, “vemos” e medimos a inteligência das pessoas através de sua capacidade de verbalizar idéias, compreender instruções, perceber a organização espacial de um desenho, resolver problemas, adaptar-se a situações novas, comportar-se criativamente frente a uma situação. A inteligência, nesta abordagem, seria um composto de habilidades e poderia ser medida por meio dos conhecidos testes psicológicos de inteligência.

Os testes de inteligência

Em 1904, na França, Alfred Binet (1857-1911) criou os primeiros testes de inteligência, que tinham como objetivo verificar os progressos de crianças deficientes do ponto de vista intelectual. Programas especiais eram realizados para o progresso dessas crianças, e os testes tornaram-se necessários para que se pudesse avaliar a eficiência desses programas, isto é, o progresso obtido.

Binet partiu daquilo que as crianças poderiam realizar em cada idade. Vários itens ou problemas eram colocados para as crianças, e, se a maioria delas, numa certa idade, conseguisse realizá-los e a maioria das crianças de uma faixa de idade inferior não conseguisse, esses itens eram considerados como discriminatórios, isto é, estava caracterizada a realização normal de crianças daquela idade.

Ao se examinar uma criança, tornava-se possível avaliar se seu desenvolvimento intelectual acompanhava ou não o das crianças de sua idade.
Os resultados de quase todos os testes de inteligência são apresentados pelo que se denominou Quociente Intelectual (Q.I.). Este quociente é obtido relacionando a idade da criança com o seu desempenho no teste, ou seja, verifica-se se ela está no nível de desenvolvimento intelectual considerado normal para sua idade.

Sabemos que uma das curiosidades mais comuns entre os leigos é saber se o quociente intelectual modifica-se ou não no decorrer de nossas vidas. Moreira Leite responde a esta curiosidade afirmando que

“nada existe, teoricamente, que impeça a modificação do Q.l. para mais ou para menos. Para entender esse processo, podemos pensar [pg. 181] no que ocorre com o desenvolvimento do corpo: uma criança pode nascer com muita saúde e ter possibilidades de bom desenvolvimento físico; no entanto, se for subalimentada durante vários anos, é provável que apresente um desenvolvimento físico pior do que uma criança que nasceu mais fraca, mas teve melhores condições de alimentação e higiene. Está claro que, nos casos extremos, essas diferenças de ambiente não chegam a eliminar as diferenças de constituição. Por exemplo, se uma criança nasce com graves defeitos físicos, pode continuar deficiente, apesar de condições muito favoráveis para seu desenvolvimento. Não existe razão para que o mesmo não ocorra com o desenvolvimento da inteligência (...) Concluindo, pode-se dizer que o Q.l. tende a ser estável quando as condições de desenvolvimento da criança também o são: se tais condições se modificarem para melhor ou pior, o mesmo acontecerá com o Q.l.”3.

Problemas dos testes de inteligência

Com a utilização dos testes de inteligência, alguns questionamentos foram surgindo:

  1. O termo inteligência era compreendido de diferentes maneiras pelos psicólogos construtores dos testes e os testes refletiam essas diferenças. E, apesar de diferentes testes serem considerados como avaliadores da inteligência, o que se viu na prática é que estavam medindo fatores parecidos ou completamente diferentes. Alguns testes avaliavam, fundamentalmente, o aspecto ou fator verbal, enquanto outros, o fator percepção espacial. Assim, um mesmo indivíduo poderia ter um alto quociente intelectual aqui e um baixo ali.
  2. A utilização freqüente dos testes levantou um outro questionamento — a rotulação ou classificação das crianças. Avaliadas pelos testes de inteligência e classificadas como deficientes, normais ou superdotadas, as crianças eram fechadas dentro destas classificações, os pais e professores passavam a agir em função das expectativas que as classificações geravam, e a criança era induzida a corresponder às expectativas, comportando-se de acordo com o novo papel imposto.
  3. Os testes sofreram também sérios questionamentos pela tendenciosidade que apresentavam, pois eram construídos em função de fatores valorizados pela sociedade, ou seja, fatores que os grupos dominantes apresentavam e que eram considerados como desejáveis. Falar bem, resolver problemas com facilidade, apresentar facilidade para aprender. [pg. 182]

A abordagem dinâmica

A abordagem clínica da personalidade, que questionou fundamentalmente a decomposição da totalidade humana em diversos aspectos ou fatores, introduziu, na Psicologia, uma nova forma de interpretar os dados obtidos por meio dos testes psicológicos.

“Os dados obtidos nos testes deixaram de ser considerados como medidas da inteligência. Passaram a ser vistos como medidas apenas de eficiência do sujeito e as alterações dessa eficiência encaradas como sintomas de perturbações globais e não como indicadores de potencial intelectual deficiente”4.

Assim, nesta abordagem, o termo inteligência é questionado, porque supõe uma existência distinta do organismo na sua totalidade. A inteligência existiria como algo, ou algum fator no indivíduo, que poderia ser medido e avaliado. Nesta abordagem dinâmica, a inteligência passa a ser um adjetivo — inteligente — que qualifica a produção cognitiva e intelectual do homem. Por isso, nesta abordagem, os dados obtidos nos testes não são medidas da inteligência, mas medidas da eficiência intelectual do indivíduo.

Cabe ressaltar ainda que os níveis baixos nos testes não implicam pouca inteligência, pois nesta abordagem o indivíduo é visto na sua globalidade. A criança que apresenta dificuldades de verbalizar, de resolver problemas, ou de aprender o que lhe é ensinado deve ser compreendida, não como uma criança deficiente intelectual ou pouco [pg. 183] inteligente, mas como uma criança que, provavelmente, vive, naquele momento, dificuldades psicológicas, conflitos relacionados ao seu desenvolvimento, sendo um de seus sintomas um rebaixamento da produção intelectual. Esta criança deve ser recuperada em todas as suas capacidades, na sua globalidade.

Os testes passam a ser instrumentos auxiliares na identificação de dificuldades, as quais são encaradas como sintomas de conflitos; tornam-se instrumentos para iniciar um trabalho de recuperação, e não instrumentos para finalizar um trabalho de classificação. Além disso, nesta abordagem, os testes tornam-se muitas vezes dispensáveis.

O estudo do comportamento intelectual ou cognitivo do indivíduo, ou outro qualquer, é feito em função de sua personalidade e de seu contexto social. O indivíduo faz parte de um meio, no qual age, manipula, transforma, desenvolvendo concomitantemente suas estruturas psíquicas.

A inteligência deixa de ser estudada como uma capacidade isolada, para ser pensada como capacidade cognitiva e intelectual que integra a globalidade humana. Assim, quando é enfocada uma produção intelectual do homem, esta é analisada nos seus componentes cognitivos, afetivos e sociais.

A inteligência nesta abordagem não tem lugar de destaque. A noção de unidade do organismo e totalidade de reações enfatizou a impossibilidade de se decompor a personalidade em funções isoladas.

A inteligência, compreendida como capacidade cognitiva ou intelectual, não pode ser estudada, analisada, nem compreendida, isolada da totalidade de aspectos, aptidões, capacidades do ser humano.

Todas as expressões do homem são carregadas de elementos psíquicos, decorrentes de sua capacidade cognitiva, afetiva, corporal. E os atos, que são adjetivados como inteligentes, não estão isentos de componentes afetivos, além dos cognitivos.

Nesta abordagem dinâmica, supõe-se que o indivíduo, quando está bem do ponto de vista da vida psíquica, conseguindo lidar adequadamente com seus conflitos, tem todas as condições para enfrentar o mundo, realizando atos “inteligentes”, ou seja, resolvendo adequadamente problemas que se apresentam, sendo criativo, verbalizando bem suas idéias etc.

E aqui é fácil dar um exemplo: quando você tem alguma preocupação ou algum conflito que toma grande parte de seu pensamento, você apresenta maior dificuldade para aprender um conteúdo novo ou resolver problemas ou, mesmo, para expressar seus pensamentos. [pg. 184]

“O homem não tem natureza, o homem tem história"

Com a afirmação acima, de Ortega y Gasset5, gostaríamos de enfatizar o aspecto histórico na determinação das capacidades intelectuais do homem. Foi o trabalho, a atividade, a ação do homem sobre o mundo real que possibilitou o surgimento da espécie humana como seres pensantes, como vimos no capítulo anterior; e foi também a ação sobre o mundo que possibilitou a gênese do pensamento em cada um de nós, no decorrer de nosso desenvolvimento. E, sem dúvida, o inverso também se deu. Ao transformar-se em ser pensante, o homem modificou sua forma de agir no mundo. Sua ação passou a ser uma ação consciente, seu trabalho proposital e não mais instintivo, como nos animais. Marx comparou, assim, o trabalho humano ao trabalho animal:

“Uma aranha desempenha operações que se parecem com a de um tecelão, e a abelha envergonha muito arquiteto na construção de seu cortiço. Mas o que distingue o pior dos arquitetos da melhor das abelhas é que o arquiteto figura na mente sua construção antes de transformá-la em realidade. No fim do processo de trabalho aparece um resultado que já existia antes idealmente na imaginação do trabalhador. Ele não transforma apenas o material sobre o qual opera; ele imprime ao material o projeto que tinha conscientemente em mira”6. [pg. 185]

Em cada indivíduo, o aspecto histórico deve estar sempre presente. Para compreendermos a expressão de um ser, seus comportamentos e dificuldades, devemos sempre inseri-lo em sua história pessoal, em sua história social.

Citamos então M. Mannoni: “Tanto o nível do Q.l. como a gravidade dos transtornos da atenção, as dificuldades no campo da abstração ou um transtorno escolar têm sentido somente no seio de uma história”7.

Psicologia - Neuropsicologia
7/26/2021 1:54:41 PM | Por Ana Mercês Bahia Bock
A Multideterminação do Humano: Uma visão em Psicologia

“Pau que nasce torto, não tem jeito, morre torto!” Eis aqui um provérbio popular que expressa por inteiro o que pretendemos questionar e discutir neste texto. E não é só na crença popular que está presente a idéia de que o ser humano nasce já dotado das qualidades que, no decorrer de sua vida, irão ou não se manifestar. Na Filosofia encontraremos, em diversas correntes, idéias semelhantes a esta. Bleger, em seu livro Psicologia da conduta, sistematiza pelo menos três mitos filosóficos, que influenciaram as ciências humanas em geral e a Psicologia em particular, e que apresentam a idéia de que o homem nasce pronto.

- O mito do homem natural: concebe o homem como possuidor de uma essência original que o caracteriza como bom, possuindo qualidades que, por influência da organização social, se manifestariam, perderiam ou modificariam, isto é, o homem nasce bom, mas a sociedade o corrompe.

- O mito do homem isolado: supõe o homem como, originária e primitivamente, um ser isolado, não-social, que desenvolve gradualmente a necessidade de relacionar-se com os outros indivíduos.

Alguns teóricos consideram necessário, para esse relacionamento, um instinto especial, que Le Bon, um dos pioneiros da Psicologia social, denominou instinto gregário. Sem esse instinto, o homem não conseguiria relacionar-se com seus semelhantes, e seria impossível a
formação da sociedade.

- O mito do homem abstrato: nessa concepção, o homem surge como um ser cujas características independem das situações de vida. O ser está isolado das situações históricas e presentes em que transcorre sua vida. O homem é estudado como o “homem em geral”, e seus atributos ou propriedades passam a ser apresentados como universais, independentes do momento histórico e tipo de sociedade em que se insere e das relações que vive. Neste caso, uma pessoa que viveu na época do Brasil Colônia não diferiria de uma pessoa do Brasil atual, como se o desenvolvimento econômico e tecnológico não interferisse na formação do indivíduo.

Sob o nosso ponto de vista, o homem não pode ser concebido como ser natural, porque ele é um produto histórico, nem pode ser estudado como ser isolado, porque ele se torna humano em função de ser social, nem ser concebido como ser abstrato, porque o homem é o conjunto de suas relações sociais. E é disto que iremos tratar neste texto.

QUEM É O HOMEM?

Essa pergunta tem instigado poetas, filósofos, cientistas e homens de todos os tempos, e mais uma vez nos deparamos com ela.

O poeta Carlos Drummond de Andrade, também preocupado com o homem, pergunta em sua poesia:
 
Mas que coisa é homem, que há sob o nome: uma geografia? um ser metafísico? uma fábula sem signo que a desmonte?
Como pode o homem sentir-se a si mesmo, quando o mundo some?
Como vai o homem junto de outro homem, sem perder o nome?
E não perde o nome e o sal que ele come nada lhe acrescenta nem lhe subtrai da doação do pai?
Como se faz um homem?
Apenas deitar, copular, à espera de que do abdômen brote a flor do homem?
Como se fazer a si mesmo, antes de fazer o homem?
Fabricar o pai e o pai e outro pai e um pai mais remoto
que o primeiro homem?
(...)
 

Então, quem é o homem?

Várias respostas podem ser dadas a esta pergunta, expressando diferentes pontos de vista ou diferentes visões de homem. Nós escolhemos uma delas para apresentar aqui, e que é, na verdade, a concepção de homem que fundamenta este texto:

O HOMEM É UM SER SÓCIO-HISTÓRICO

Mas, para que essa concepção fique mais clara, é necessário desenvolvê-la melhor.

A primeira coisa que podemos dizer sobre o homem é que ele pertence a uma espécie animal — Homo sapiens. Todos nós dependemos dos genes que recebemos de nossos ancestrais para formar nosso corpo, obedecendo às características de nossa espécie.
 
No entanto, a Biologia já nos ensinou que os genes se manifestam sob determinadas condições ambientais (físicas e sociais). Experiências demonstram que peixes com determinado gene para cor de olho, quando nascidos em um meio experimental distinto de seu meio natural, apresentam olhos de outra cor. É por isso que se diz que todos os traços, físicos ou mentais, normais ou não, são ao mesmo tempo genéticos e ambientais.

Temos, portanto, um conjunto de traços herdados que, em contato com um ambiente determinado, têm como resultado um ser específico, individual e particular.

O que a natureza (o biológico) dá ao homem quando ele nasce não basta, porém, para garantir sua vida em sociedade. Ele precisa adquirir várias aptidões, aprender as formas de satisfazer as necessidades, apropriar-se, enfim, do que a sociedade humana criou no decurso de seu desenvolvimento histórico.

Se você pensar nas coisas que sabe fazer — escovar os dentes, comer com talheres, beber água no copo, jogar futebol e video game, escrever, ler este texto, discuti-lo —, compreenderá que nossas aptidões, nosso saber-fazer, não são transmitidos por hereditariedade biológica, mas adquiridos no decorrer da vida, por um processo de apropriação da cultura criado pelas gerações precedentes.

O HOMEM APRENDE A SER HOMEM

Não queremos dizer com isso que o homem esteja subtraído do campo de ação das leis biológicas, mas que as modificações biológicas hereditárias não determinam o desenvolvimento sócio-histórico do homem e da humanidade: dão-lhe sustentação. As condições biológicas permitem ao homem apropriar-se da cultura e formar as capacidades e funções psíquicas.

A única aptidão inata no homem é a aptidão para a formação de outras aptidões.

Essas aptidões se formarão a partir do contato com o mundo dos objetos e com fenômenos da realidade objetiva, resultado da experiência sócio-histórica da humanidade. E o mundo da ciência, da arte, dos instrumentos, da tecnologia, dos conceitos e idéias. Para se apropriar desse mundo, o homem desenvolve atividades que reproduzem os traços essenciais da atividade acumulada e cristalizada nesses produtos da cultura. São exemplos esclarecedores a aprendizagem do manuseio de instrumentos e a da linguagem.

Os instrumentos humanos levam em si os traços característicos da criação humana. Estão neles fixadas as operações de trabalho historicamente elaboradas. Pense numa enxada ou em um lápis. A mão humana, que produziu esses objetos, subordina-se a eles, reorganizando os movimentos naturais do homem e formando capacidades motoras novas, capacidades que ficaram incorporadas nesses instrumentos.

Também o domínio da linguagem não é outra coisa senão o processo de apropriação das significações e das operações fonéticas fixadas na língua.
Assim, a assimilação pelo homem de sua cultura é um processo de reprodução no indivíduo das propriedades e aptidões historicamente formadas pela espécie humana. A criança, colocada diante do mundo dos objetos humanos, deve agir adequadamente nesse mundo para se apropriar da cultura, isto é, deve aprender a utilizar os objetos. Torna-se, então, condição fundamental para que isso ocorra, que as relações do indivíduo com o mundo dos objetos sejam mediadas pelas relações com os outros indivíduos. A criança é introduzida no mundo da cultura por outros indivíduos, que a guiam nesse mundo.

H. Piéron resume esse pensamento em uma frase bastante interessante:

“A criança, no momento do nascimento, não passa de um candidato à humanidade, mas não a pode alcançar no isolamento: deve aprender a ser um homem na relação com os outros homens”.

Duas imagens são interessantes aqui: ainda que coloquemos os objetos da cultura humana na gaiola de um animal, isso não torna possível a manifestação das propriedades específicas que estes objetos têm para o homem. O animal não se apropria desses objetos e das aptidões cristalizadas neles. Pode manuseá-los, mas eles não passarão de elementos do meio natural. O homem, ao contrário, aprenderá com os outros indivíduos a utilizá-los, extraindo do objeto aptidões motoras.

Outra imagem é a de uma catástrofe no planeta que eliminasse todos os adultos e preservasse as crianças pequenas. A história seria interrompida, como afirma Leontiev.

“Os tesouros da cultura continuariam a existir fisicamente, mas não existiria ninguém capaz de revelar às novas gerações o seu uso. As máquinas deixariam de funcionar, os livros ficariam sem leitores, as obras de arte perderiam a sua função estética. A história da humanidade teria de recomeçar”.

Se retomarmos agora a formação biológica de cada indivíduo, com cargas genéticas diferentes, poderemos postular aqui que as disposições inatas que individualizam cada homem, deixando marcas no seu desenvolvimento, não interferem no conteúdo ou na qualidade das possibilidades de desenvolvimento, mas apenas em alguns traços particulares da sua atividade. Assim, a partir do aprendizado ou da apropriação de uma língua tonal, os indivíduos, independentemente de suas cargas hereditárias, formarão o ouvido tonal (capaz de discernir a
altura de um complexo sonoro e distinguir as relações tonais). No entanto, nessa população, alguém poderá ter herdado de seus pais ouvido absoluto, o que lhe dará uma acuidade auditiva diferenciada, possibilitando-lhe tornar-se um músico brilhante.

Essas diferenças entre os indivíduos existem, mas não são elas que justificam as grandes diferenças que temos em nossa sociedade.

Pois, repetindo, essas diferenças biológicas geram apenas alguns traços particulares na atividade dos indivíduos. Ou seja, todos aprendem a fazer, só que colorem seu fazer com alguns traços particulares, singulares, individuais. As nossas diferenças sociais são muito maiores — temos crianças que sabem fazer e outras que não aprenderam e, portanto, não desenvolveram certas aptidões. Essas diferenças estão fundadas no acesso à cultura, que em nossa sociedade se dá de forma desigual. Existem crianças que não têm brinquedos sofisticados, e até aquelas que não têm os mais comuns; crianças que não manuseiam talheres ou lápis; crianças que não andam de bicicleta, ou que nunca viajaram. Temos até muitos adultos que não aprenderam a ler e escrever e, portanto, nunca leram um livro; que nunca saíram do local onde nasceram e não sabem que o homem já vai à Lua; nunca viram um avião, nem imaginam o que seja um computador. Esses são alguns exemplos. Não precisamos nos alongar, porque você, com certeza, já percebeu essas diferenças. Ora, se desenvolvemos nossa humanidade a partir da apropriação das realizações do progresso histórico, é claro que, numa sociedade onde essa igualdade não ocorre, fica excluída a possibilidade de igualdade entre os indivíduos.

“É por isso que a questão das perspectivas de desenvolvimento psíquico do homem e da humanidade põe antes de mais nada o problema de uma organização equitativa e sensata da vida da sociedade humana — de uma organização que dê a cada um a possibilidade prática de se apropriar das realizações do progresso histórico e participar enquanto criador no crescimento destas realizações“, podendo cada um desenvolver seu potencial para que se se expressem suas particularidades.

O QUE CARACTERIZA O HUMANO?

Quando nos colocamos essa questão, estamos querendo explicitar as propriedades ou características que fazem do animal homem um ser humano. O que nos distingue dos outros seres? Quais são nossas particularidades enquanto seres humanos?

O HOMEM TRABALHA E UTILIZA INSTRUMENTOS

Inicialmente, salientamos como característica humana o trabalho e o uso de instrumentos. Alguns animais, talvez a maioria deles, executam atividades que se assemelham ao trabalho humano: a aranha que tece a teia, a abelha que fabrica a colméia e as formigas que incessantemente carregam folhas e restos de animais para sua “cidadela”. E poderíamos dizer que as operações desses animais se assemelham às de trabalhadores humanos — tecelões, arquitetos e operários. Mas o mais inábil trabalhador humano difere do mais “habilidoso” animal, pois, antes de iniciar seu trabalho, já o planejou em sua cabeça. No término do processo de trabalho, o homem obtém como resultado algo que já existia em sua mente. O trabalho humano está subordinado à vontade e ao pensamento conceitual.

O uso de instrumentos também não é exatamente uma novidade no mundo animal. O castor, o macaco, algumas espécies de aves também fazem uso de instrumentos. Mas esse uso está marcado pelo fato de o animal não ter consciência disso. Se um macaco vê à sua frente um pedaço de pau, poderá com ele tentar apanhar uma fruta em local pouco acessível, mas, se não há nenhum instrumento à vista, ele fica sem a fruta. O macaco não tem condições de raciocinar: “Poxa, e aquele pauzinho que eu usei ontem, onde será que eu deixei?”.

O macaco tem a imagem do instrumento, mas não tem o conceito de instrumento. Ele aprende a utilizá-lo, mas não pode dizer ou pensar para que serve.

Uma breve história de um experimento poderá ajudar a entendermos esta afirmação de que o macaco aprende mas não conceitua.
Numa oportunidade, exatamente para testar este ponto, alguns psicólogos treinaram um macaco de laboratório para apagar fogo — um macaco bombeiro. Primeiro, sabendo que o macaco gostava muito de maçã, eles o treinaram para apanhar uma maçã em uma plataforma um pouco distante de sua gaiola. Sempre que tocava um sinal, o macaco corria em direção à maçã. O próximo passo, sabendo do verdadeiro pavor que os macacos têm do fogo, foi colocar em volta da maçã um pequeno círculo de fogo. Naturalmente, o macaco desistiu da maçã.

Em seguida, por meio de condicionamento, ensinaram o pequeno animal a usar um balde com água para apagar o fogo. Depois de bem treinado, veio o passo final. Colocaram a plataforma com a maçã e o círculo de fogo no meio de um tanque com água com altura suficiente para o macaco atravessá-lo. Resultado: o macaco foi até o lugar onde estava a maçã, viu o fogo, saiu do tanque e foi apanhar o balde com água para apagá-lo.
Veja só, o macaco aprendeu a usar o conteúdo do balde para apagar o fogo, mas não foi capaz de conceitualizá-lo, já que não percebeu que o conteúdo do balde era o mesmo do tanque. Entretanto, se estivesse com sede, ele beberia indistintamente tanto o conteúdo do tanque como o do balde.

Então, para que o instrumento seja considerado um instrumento de trabalho, é necessário que a sua representação na mente seja conceitualizada e, desta maneira, transforme-se em um primeiro dado de consciência.

O HOMEM CRIA E UTILIZA A LINGUAGEM

Para o psicólogo Alexis Leontiev, a linguagem é o elemento concreto que permite ao homem ter consciência das coisas. Mas, para chegar até a linguagem, houve alguns antecedentes. Se raciocinarmos em termos evolutivos (teoria evolucionista de Darwin), o homem teve sua origem a partir de um antropóide.

As condições para que o homem chegasse até a linguagem foram as seguintes:
 
1. esse antropóide aprendeu a andar sem usar as mãos, ficou ereto e com as mãos livres;
2. esse antropóide vivia em grupo (como ocorreu com muitas espécies de macacos);
3. esse grupo de antropóides tinha dedo opositor, o que permitia a utilização de instrumentos (por exemplo, um pedaço de pau para apanhar alimentos);
4. o sistema nervoso dispunha de suporte mínimo para o desenvolvimento da linguagem.
 
No decorrer da evolução do homem atual (são cerca de 5 milhões de anos desde o aparecimento do australopithecus aferensis, primeiro antropóide ou macaco com características humanóides, até o homo neanderthalensi e o homo sapiens primitivos — nossos antepassados diretos, que provavelmente surgiram há 30 mil anos), aprendemos a transformar o instrumento em instrumento de trabalho (instrumento com objetivo determinado), a registrá-lo simbolicamente em nosso sistema nervoso central (aparecimento da consciência) e a denominá-lo (aparecimento da linguagem).

Este desenvolvimento foi, evidentemente, muito lento (5 milhões de anos representam muito, mas muito tempo mesmo...). Cada avanço representou uma enorme conquista para o desenvolvimento da humanidade. A descoberta de que a vocalização (transformação de um grunhido em som com significado) poderia ser usada na comunicação equivale, nos tempos atuais, à descoberta dos chips eletrônicos.

O fato é que o instrumento de trabalho induz o aparecimento da consciência (isso ocorre de forma concomitante) e cria as condições para o surgimento da linguagem — três condições que impulsionam o desenvolvimento humano.

O HOMEM COMPREENDE O MUNDO AO SEU REDOR

Todos nós já observamos o comportamento de uma pequena aranha na sua teia. A teia é tecida para garantir sua alimentação e, quando um desavisado inseto bate nessa teia, fica preso a ela. Pronto, o almoço está garantido! O inseto, que também luta pela sobrevivência, debate-se tentando escapar da armadilha. Esta vibração é uma espécie de aviso para a aranha, que dispara em direção a ela e envolve o inseto, aplicando-lhe seu veneno. Se nós pegarmos um diapasão e vibrarmos esse instrumento junto à teia da aranha, estaremos simulando uma situação parecida com a vibração causada pelo inseto. O resultado é que a aranha irá ao encontro do ponto de vibração e envolverá com seu fio aquele ponto vibrante sem nenhum inseto. Esta simples experiência demonstra que o comportamento da aranha é predeterminado, geneticamente marcado

Psicologia - Psicologia do indivíduo
Todos os textos
Todos Psicologia
Construindo a partir do “terceiro pilar”: comunidades positivas

Quando formulava pela primeira vez a psicologia positiva, Marty Seligman visualizava três-pilares-em sua sustentação: o estudo e o avanço de:

  • bem-estar subjetivo positivo (felicidade, satisfação com a vida, otimismo),
  •  caráter positivo (criatividade, coragem, compaixão, integridade, autocontrole, lide­rança, sabedoria, espiritualidade) e
  • grupos, comunidades e culturas positivas.

Tendo edificado substancialmente os dois primeiros pilares, uma tarefa do século XXI reside em construir o terceiro, com uma ecologia social que estimule famílias que prospe­rem, bairros que sejam espaços públicos, escolas eficazes, meios de comunicação responsá­veis e diálogo social.

Em resposta ao crescente individualismo do último meio século e à saúde social em declínio - estamos “jogando sozinhos” com mais frequência, como observa Robert Putnam em Bowling alone, e também votando, visitando, entretendo, dando caronas, confiando, juntando-nos e nos encontrando menos - há um movimento de renovação social positiva em andamento. A rede chamada Communitarian Network demanda o equilíbrio do indivi­dualismo com a preocupação com o bem-estar público. O National Marriage Project visa fortalecer o estado de nossas uniões. E uma iniciativa da psicologia positiva baseada na família se unirá a eles para estimular uma sociedade que respeite os direitos humanos ao mesmo tempo em que sustenta os vínculos humanos.

<<Expandir>>
Abraham Maslow

Abraham Harold (Abe) Maslow teve, talvez, a infância mais solitária e miserável de todas as pessoas discutidas neste livro. Nascido em Manhattan, Nova York, em 1 de abril de 1908, passou sua infância infeliz no Brooklin. Maslow era o mais velho de sete filhos nascidos de Samuel Maslow e Rose Schilosky Maslow. Quando criança, sua vida foi re­pleta de intensos sentimentos de timidez, inferioridade e depressão.
Maslow não era mais próximo de nenhum dos pais, mas tolerava seu pai frequentemente ausente, um imigran­te russo judeu que ganhava a vida preparando barris. Por sua mãe, no entanto, Maslow sentia ódio e uma animosi­dade profunda, não somente durante a infância, mas até o dia em que ela morreu, apenas alguns dias antes da morte do próprio Maslow. Apesar de vários anos de psicanálise, ele nunca superou o intenso ódio pela mãe e se recusou a ir ao funeral dela, apesar dos apelos de seus irmãos que não compartilhavam de seus sentimentos por ela. Um ano antes de sua morte, Maslow (1969) registrou a seguinte re­ flexão em seudiário: [169] 

Aquilo contra o que eu reagia e odiava e rejeitava com­pletamente não era apenas sua aparência física, mas também seus valores e sua visão do mundo, sua mes­quinhez, seu total egoísmo, sua falta de amor por qual­quer um no mundo, mesmo pelo marido e pelos filhos... seu pressuposto de que qualquer um que discordasse dela estava errado, sua falta de interesse por seus netos, sua falta de amigos, seu desleixo e sua sujeira, sua falta de sentimento familiar pelos próprios pais e irmãos... Sempre me perguntei de onde vieram minha utopia, ética, humanismo, ênfase na bondade, amor, amizade e todo o resto. Eu sabia certamente das conseqüências di­retas de não ter amor materno. Mas todo o impulso de minha filosofia de vida e minha pesquisa e teorização também possuem suas raízes em um ódio e uma repul­sa por tudo o que ela defendia, (p. 958)

Edward Hoffman (1988) relatou uma história que des­creve vividamente a crueldade de Rose Maslow. Um dia, o jovem Maslow encontrou dois gatinhos abandonados na vizinhança. Com pena, ele levou os filhotes para casa, colo­cou-os no porão e lhes deu leite em um pires. Quando sua mãe viu os gatinhos, ficou furiosa e, enquanto o menino assistia, ela bateu as cabeças dos animais contra a parede do porão até que estivessem mortos.

A mãe de Maslow também era uma mulher muito religiosa, que, com frequência, ameaçava o menino com punições de Deus. Quando jovem, Maslow decidiu testar as ameaças de sua mãe, comportando-se mal de propósi­to. Quando nenhuma retaliação divina recaiu sobre si, ele raciocinou que as advertências da mãe não eram cientifi­camente sólidas. Com essas experiências, Maslow apren­deu a odiar e a suspeitar da religião e se tornou um ateu engajado.

Apesar de sua visão ateísta, ele sentiu o tormento do antissemitismo, não somente na infância, mas também durante a idade adulta. Possivelmente como uma defe­sa contra as atitudes antissemitas de seus colegas, ele se voltou para os livros e para as conquistas acadêmicas. Ele adorava ler, mas, para alcançar a segurança da biblioteca pública, tinha que evitar as gangues antissemitas que perambulavam pela sua vizinhança no Brooklin e que não precisavam de desculpas para aterrorizar o jovem Maslow e outros meninos judeus.

Sendo bem-dotado intelectualmente, Abe encontrou algum consolo durante seus anos na Boys High School, no Brooklin, onde suas notas eram apenas um pouco me­lhores do que a média. Ao mesmo tempo, desenvolveu uma amizade próxima com seu primo Will Maslow, uma pessoa extrovertida e socialmente ativa. Por meio desse relacionamento, o próprio Abe aprimorou algumas habili­dades sociais e se envolveu em várias atividades escolares (Hoffman, 1988).

Depois que Maslow se formou na Boys High School, seu primo Will o encorajou a se candidatar à Universidade Cornell, mas, por falta de autoconfiança, escolheu a menos prestigiosa City College of New York. Mais ou menos nes­sa época, seus pais se divorciaram, e ele e seu pai ficaram menos distantes emocionalmente. O pai de Maslow que­ria que seu filho mais velho fosse advogado, e, enquanto freqüentava o City College, Maslow se inscreveu no curso de direito. No entanto, abandonou-o certa noite, deixando seus livros para trás. Para ele, o direito lidava demais com pessoas más e não estava suficientemente preocupado com o bem. Seu pai, embora inicialmente desapontado, acabou aceitando a decisão de Maslow de interromper o curso (M. H. Hall, 1968).

Como estudante no City College, Maslow se saía bem em filosofia e em outras matérias que despertavam seu interesse. Entretanto, naquelas de que não gostava, ele se saía tão mal que era colocado em dependência acadêmica. Após três semestres, ele se transferiu para a Universidade Cornell, no interior de Nova York, em parte para ficar mais perto do primo Will, que freqüentava aquela univer­sidade, mas também para se distanciar da prima Bertha Goodman, por quem estava apaixonado (Hoffman, 1988). Em Cornell, o trabalho escolástico de Maslow continuava apenas medíocre. Seu professor de psicologia introdutória era Edward B. Titchener, um renomado pioneiro em psico­logia que ministrava suas aulas vestindo toga acadêmica. Maslow não ficava impressionado. Ele considerava a abor­dagem de Tichener da psicologia fria, "desumana” e nada tendo a ver com as pessoas.

Depois de um semestre em Cornell, Maslow voltou para o City College of New York, agora para ficar mais pró­ximo de Bertha. Abe e Bertha se casaram, não sem antes se defrontarem com a resistência dos pais dele. Os pais de Maslow faziam objeção ao casamento, em parte porque ele tinha apenas 20 anos e ela, 19. Entretanto, o temor maior era que um casamento entre primos em pri­meiro grau pudesse resultar em defeitos hereditários nos possíveis filhos. Esse medo era irônico à luz do fato de que os próprios pais de Maslow eram primos em primeiro grau e tiveram seis filhos saudáveis (uma filha morreu durante a infância, mas não por causa de algum defeito genético).

Um semestre antes do casamento, Maslow se matri­culou na Universidade de Wisconsin, na qual fez bacha­relado em filosofia. Além disso, ficou muito interessado no behaviorismo de John B. Watson, e esse interesse o estimulou a fazer cursos de psicologia suficientes para obter um doutorado. Como estudante de pós-graduação, trabalhou nesse campo com Harry Harlow, que estava começando sua pesquisa com macacos. A pesquisa para a tese de Maslow sobre dominância e comportamento se­xual dos macacos sugeria que a dominância social era um motivo mais poderoso do que o sexo, pelo menos entre os primatas (Blum, 2002).

Em 1934, Maslow recebeu seu doutorado, mas não conseguiu encontrar um cargo acadêmico, tanto por causa [170] da Grande Depressão quanto pelo preconceito antissemita ainda forte em muitos campi norte-americanos naquela época. Assim, ele continuou a ensinar em Wisconsin por um curto período, ao mesmo tempo em que cursava medi­cina nessa mesma universidade. No entanto, ele rechaçava a atitude fria e desapaixonada dos cirurgiões, que conse­guiam cortar fora partes doentes do corpo sem emoção discernível. Para Maslow, o curso de medicina - assim como o de direito - refletia uma visão não emocional e negativa das pessoas, e ele ficou perturbado e entediado com suas experiências nessa área. Sempre que Maslow se entediava com algo, ele o abandonava, e a medicina não foi uma exce­ção (Hoffman, 1988).
No ano seguinte, Maslow voltou a Nova York para se tornar assistente de pesquisa de E. L. Thorndike, na Tea­chers College, Universidade de Columbia. Maslow, um alu­no medíocre durante seus dias no City College e no Cornell, teve um escore de 195 no teste de inteligência de Thorndi­ke, motivando este a dar a seu assistente carta branca para agir como quisesse. A mente fértil de Maslow prosperou nessa situação; mas, depois de um ano e meio fazendo pes­quisas sobre dominância humana e sexualidade, deixou Columbia para se associar ao corpo docente do Brooklyn College, uma escola recém-fundada, cujos alunos eram pre­ponderantemente adolescentes brilhantes provenientes de lares da classe operária, muito parecidos com o próprio Maslow 10 anos antes (Hoffman, 1988).

Viver em Nova York durante as décadas de 1930 e 1940 deu a Maslow uma oportunidade de entrar em con­tato com muitos dos psicólogos europeus que haviam escapado do domínio nazista. De fato, Maslow presumia que, de todas as pessoas que já tinham vivido, ele possuía os melhores professores (Goble, 1970). Entre outros, co­nheceu e aprendeu com Erich Fromm, Karen Horney, Max Wertheimer e Kurt Goldstein. Foi influenciado por todos estes, a maioria dos quais fazia conferências na New School for Social Research. Maslow também se associou a Alfred Adler, que estava morando em Nova York naquela época. Adler realizava seminários em sua casa nas noites de sexta-feira, e Maslow era um visitante freqüente dessas sessões, assim como Julian Rotter.

Ruth Benedict, uma antropóloga da Universidade de Columbia, também foi mentora de Maslow. Em 1938, Benedict encorajou-o a conduzir estudos antropológicos entre os índios Blackfoot, no Norte de Alberta, Canadá. Seu trabalho com esses nativos americanos ensinou-lhe que as diferenças com as culturas eram superficiais e que os Blackfoot do Norte eram, em primeiro lugar, pessoas e somente em segundo lugar eram índios. Essa percepção ajudou Maslow, em anos posteriores, a ver que sua famosa hierarquia de necessidades aplicava-se igualmente a todos.
Durante a metade da década de 1940, a saúde de Mas­low começou a se deteriorar. Em 1946, aos 38 anos, sofreu de uma estranha doença que o deixou fraco, desanimado e exausto. No ano seguinte, tirou uma licença médica e, com Bertha e suas duas filhas, mudou-se para Pleasanton, Cali­fórnia, onde, apenas no nome, ele era diretor de fábrica da Maslow Cooperage Corporation. O cronograma de traba­lho leve possibilitou a Maslow ler biografias e histórias, na busca por informações sobre pessoas autorrealizadas. Após um ano, sua saúde havia melhorado, e ele voltou a ensinar no Brooklyn College.

Em 1951, Maslow assumiu um cargo como diretor do departamento de psicologia na recém-fundada Universi­dade Brandeis, em Waltham, Massachusetts. Durante os anos em Brandeis, começou a escrever intensamente em seus diários, anotando, em intervalos regulares, seus pensamentos, opiniões, sentimentos, atividades sociais, con­versas importantes e preocupações com a saúde (Maslow, 1979).

Apesar de ganhar fama durante a década de 1960, Maslow foi ficando cada vez mais desencantado com sua vida em Brandeis. Alguns alunos se rebelaram contra seus métodos de ensino, reivindicando um envolvimento mais experiencial e uma abordagem menos intelectual e científica.
Além dos problemas relacionados ao trabalho, Maslow sofreu um grave ataque cardíaco em dezembro de 1967. Então, ficou sabendo que sua estranha doença 20 anos an­tes tinha sido um ataque cardíaco não diagnosticado. Ago­ra com a saúde fraca e decepcionado com a atmosfera aca­dêmica em Brandeis, aceitou a oferta de se associar à Saga Administrative Corporation, em Menlo Park, Califórnia. Lá ele não tinha um trabalho em particular e era livre para pensar e escrever como quisesse. Ele gostava daquela liber­dade, mas, em 8 de junho de 1970, abruptamente sofreu um colapso e morreu de um ataque cardíaco fulminante. Maslow tinha 62 anos.

Maslow recebeu muitas honrarias durante sua vida, in­cluindo a eleição para a presidência da American Psycholo­gical Association para o período de 1967 a 1968. Na época de sua morte, ele era muito conhecido não somente dentro da profissão da psicologia, mas também entre pessoas ins­truídas em geral, particularmente em gestão de negócios, marketing, teologia, aconselhamento, educação, enferma­gem e outros campos relacionados à saúde.

A vida pessoal de Maslow foi repleta de dor, tanto fí­sica quanto psicológica. Quando adolescente, ele era terri­velmente tímido, infeliz, isolado e autorrejeitado. Em anos posteriores, ele estava com a saúde física fraca, sofrendo de uma série de doenças, incluindo distúrbios cardíacos crônicos. Seus diários (Maslow, 1979) são repletos de refe­rências a sua saúde frágil. Em seu último registro no diário (7 de maio de 1970), um mês antes de sua morte, ele se queixou das pessoas que esperavam que ele fosse um líder e porta-voz corajoso. Ele escreveu: “Não sou corajoso' por temperamento. Minha coragem é realmente uma superação de todos os tipos de inibição, cortesia, gentileza, [171] timidez - e sempre me custou muito em fadiga, tensão, apreensão, noites maldormidas." (p. 1307). [172]

7/26/2021 1:52:48 PM | Por Ana Mercês Bahia Bock
A Psicologia como profissão

A Psicologia, no Brasil, é uma profissão reconhecida por lei, ou seja, a Lei 4.119, de 1962, reconhece a existência da Psicologia como profissão. São psicólogos, habilitados ao exercício profissional, aqueles que completam o curso de graduação em Psicologia e se registram no órgão profissional competente. O exercício da profissão, na forma como se apresenta na Lei 4.119, está relacionado ao uso (que é privativo dos psicólogos) de métodos e técnicas da Psicologia para fins de diagnóstico psicológico, orientação e seleção profissional, orientação psicopedagógica e solução de problemas de ajustamento. Mas essas são “formalidades da profissão” que você não precisa saber em profundidade. Aqui, nosso papo pode ser outro. Podemos refletir, a partir de questões formuladas por jovens que estão escolhendo seu futuro profissional, ou por estudantes que fazem a disciplina em cursos de 2o ou 3o graus, ou, ainda, pelos próprios alunos dos cursos de Psicologia. Então, vamos às questões: [pg. 150]

  • O psicólogo adivinha o que os outros pensam?
  • Quando fazemos um curso de Psicologia, passamos a nos conhecer melhor?
  • Que diferença há entre a ajuda prestada por um psicólogo e um bom amigo?
  • O que diferencia o trabalho do psiquiatra do trabalho do psicólogo? Qual a finalidade do trabalho do psicólogo?
  • Quais as áreas e os locais em que o psicólogo atua?
  • Há usos e também abusos da Psicologia. Certo?

Claro que não pretendemos esgotar todas as dúvidas sobre Psicologia existentes entre os estudantes. Mas acreditamos serem essas as mais freqüentes. Esperamos que as suas estejam dentre essas, pois gostaríamos muito de ajudá-lo a esclarecê-las. Então, vamos ao desafio das respostas.

Antes, porém, gostaríamos de alertá-lo de que as nossas respostas expressam posições pessoais dos autores. Por isso, sempre que você encontrar um psicólogo, não se acanhe e volte a levantar suas dúvidas.

O Psicólogo não adivinha nada

Psicólogo não tem bola de cristal nem é bruxo da sociedade contemporânea. Ele dispõe, apenas, de um conjunto de técnicas e de conhecimentos que lhe possibilitam compreender o que o outro diz, compreender as expressões e gestos que o outro faz, integrando tudo isso em um quadro de análise que busca descobrir as razões dos atos, dos pensamentos, dos desejos, das emoções. O psicólogo possui instrumentos teóricos para desvendar o que está implícito, encoberto, não-aparente e, nesse sentido, a pessoa, grupo ou instituição tem um papel fundamental, pois o psicólogo não pode ver nada na bola de cristal ou nas cartas. Para poder trabalhar, ele precisa que as pessoas falem de si, contem sua história, dialoguem, exponham suas reflexões. O psicólogo pode, junto com o paciente, desvendar razões e compreender dificuldades, caracterizando-se, assim, sua intervenção.

Poderíamos dizer, de uma forma talvez um pouco exagerada, que as pessoas sabem muito sobre si mesmas; no entanto, o psicólogo possui instrumentos adequados para auxiliar o indivíduo a compreender, organizar e aplicar esse saber, permitindo a sua transformação e a mudança da sua ação sobre o meio. [pg. 151]

A Psicologia ajuda as pessoas a se conhecerem melhor

A Psicologia, como ciência humana, permitiu-nos ter um conhecimento abrangente sobre o homem. Sabemos mais sobre suas emoções, seus sentimentos, seus comportamentos; sabemos sobre seu desenvolvimento e suas formas de aprender; conhecemos suas inquietações, vivências, angústias, alegrias. Apesar do grande desenvolvimento alcançado pela Psicologia, ainda há muito o que pesquisar sobre o psiquismo humano e, tentar conhecê-lo melhor, é sempre uma forma de tentar conhecer-se melhor. Mas é importante fazermos aqui alguns esclarecimentos sobre isso...
Os conhecimentos científicos, construídos pelo homem, estão todos voltados para ele. Mesmo aqueles que lhe parecem mais distantes foram construídos para permitir ao homem uma compreensão maior sobre o mundo que o cerca, e isso significa saber mais sobre si mesmo.

O que estamos querendo dividir com você é a idéia de que o aprendizado dos conhecimentos científicos possibilita sempre um melhor conhecimento sobre a vida humana. A Biologia, por exemplo, permite-nos um tipo de conhecimento sobre o homem: seu corpo, sua constituição e sua origem. A História possibilita-nos compreender o homem enquanto parte da humanidade, isto é, o homem que, no decorrer do tempo, foi construindo formas de vida e, portanto, formas de ser. A Economia abrange outro conhecimento sobre o homem, na medida em que nos ajuda a compreender as formas de construção da sobrevivência. Não há dúvida: todos os conhecimentos permitem um saber sobre o mundo e, portanto, aumentam seu conhecimento sobre você mesmo.

O Psicólogo é diferente de um bom amigo

O apoio de qualquer pessoa pode, sem dúvida alguma, ter uma função de ajuda para a superação de dificuldades — assim como fazer ginástica, ouvir música, dançar, tomar uma cervejinha no bar com os amigos. [pg. 152] No entanto, o psicólogo, em seu trabalho, utiliza o conhecimento científico na intervenção técnica. A Psicologia dispõe de técnicas e de instrumentos apropriados e cientificamente elaborados, que lhe possibilitam diagnosticar os problemas; possui, também, um modelo de interpretação e de intervenção.

A intervenção do psicólogo é intencional, planejada e feita com a utilização de conhecimentos específicos do campo da Ciência. Portanto, difere do amigo que não planeja sua intervenção, não usa conhecimentos específicos nem pretende diagnosticar ou intervir em algum aspecto percebido como crucial.

Mesmo quando os psicólogos não atuam para curar, mas para promover a saúde já existente, eles o fazem a partir de um planejamento e da perspectiva da Ciência.

Fazer ginástica pode ser algo muito prazeroso e pode também ajudá-lo a aliviar tensões e preocupações do seu dia-a-dia. Mas não é uma atividade psicoterapêutica porque não está sendo feita a partir de um planejamento terapêutico nem foi iniciada com um psicodiagnóstico. Claro que, se o psicólogo utilizar a ginástica como instrumento de intervenção psicoterapêutica, aí sim, a ginástica passa a fazer parte de uma atividade com essa finalidade.

Vale aqui lembrar que, se a ginástica for utilizada com outra finalidade terapêutica que não a de intervenção no processo psicológico do sujeito, ela deixa de ser psicoterapêutica e passa a ser, de acordo com a nova finalidade, fisioterapêutica, por exemplo.

No entanto, podemos não ser tão rigorosos e dizer que os homens construíram, ao longo de sua história, formas de ajudarem uns aos outros na busca de uma vida melhor e mais feliz. Amigos são, sem dúvida, uma “invenção” muito boa (já dizia o poema: “Amigo é coisa pra se guardar, do lado esquerdo do peito...”). As religiões e as ciências também são tentativas humanas de melhorar a vida. Não devemos, contudo, confundir estas tentativas com a atuação especializada do psicólogo.

O psicólogo é um profissional que desenvolve uma intervenção no processo psicológico do homem, uma intervenção que tem a finalidade de torná-lo saudável, isto é, capaz de enfrentar as dificuldades do cotidiano; e faz isso a partir de conhecimentos acumulados pelas pesquisas científicas na área da Psicologia. A Psicologia, em seu desenvolvimento histórico como ciência, criou teorias explicativas da realidade psicológica (por exemplo, a Psicanálise), ou descritivas do comportamento (por exemplo, o Behaviorismo), bem como métodos e técnicas próprias de investigação da vida psicológica e do comportamento humano. [pg. 153]

Hoje, a Psicologia possui instrumentos próprios para obter dados sobre a vida psíquica, como os testes psicológicos (de personalidade, de atenção, de inteligência, de interesses etc.); as técnicas de entrevista (individual ou grupal); as técnicas aprimoradas de observação e registro de dados do comportamento humano.

Os dados coletados por meio de testes, entrevistas ou observações devem ser compreendidos a partir de modelos psicológicos, isto é, cada teoria em Psicologia tem ou se constitui em um modelo de análise dos dados coletados. Por exemplo, numa abordagem psicanalítica, a análise dos sonhos poderá ser feita a partir da associação livre do paciente cora cada um dos elementos presentes no sonho que relata, e estes dados analisados a partir da teoria do aparelho psíquico postulada por Freud.

Com a coleta e análise dos dados, o psicólogo pensará sua intervenção, que pode ser uma terapia (existem inúmeras: a rogeriana, a psicanalítica, a comportamental, o psicodrama etc.), um treinamento, um trabalho de orientação de grupo ou qualquer outro tipo de intervenção individual, grupal ou institucional, no sentido da promoção da saúde.

Psicólogos e psiquiatras aproximam-se em suas práticas

A Psicologia e a Psiquiatria são áreas do saber fundadas em campos de preocupações diferentes. Desde Wundt, a Psicologia tem seu objeto de estudo marcado pela busca da compreensão do funcionamento da consciência, enquanto a Psiquiatria tem trabalhado para construir e catalogar um saber sobre a loucura, sobre a doença mental. Os conhecimentos alcançados pela Psicologia permitiram realçar a existência de uma “normalidade”, bem como compreender os processos e o funcionamento psicológicos, não assumindo compromisso com o patológico. A Psiquiatria, por sua vez, desenvolveu uma sistematização do conhecimento e, mais precisamente, dos aspectos e do funcionamento psicológicos que se desviavam de uma normalidade, sendo entendidos e significados socialmente como patológicos, como doenças. De certa forma, poderíamos dizer, correndo o risco de um certo exagero ou reducionismo, que, enquanto a Psiquiatria se constitui como um saber da doença mental ou psicológica, a Psicologia tornou-se um saber sobre o funcionamento mental ou psicológico.

O médico Sigmund Freud, com suas teorizações, foi responsável pela aproximação entre essas duas áreas por ter dado continuidade ao funcionamento normal e patológico. Freud postulou que o patológico [pg. 154] não era mais do que uma exacerbação do funcionamento normal, ou seja, uma exacerbação entre o que era normal e doentio no mundo psíquico, ocorrendo apenas uma diferença de grau. Com isso, as duas áreas estavam articuladas e as respectivas práticas se assemelharam e se aproximaram muito, a ponto de estarmos aqui ocupando este espaço para esclarecermos a você as diferenças entre elas.

Mas se Freud aproximou esses saberes em suas preocupações, a década de 50, no século 20, traria o desenvolvimento da psicofarmacologia, o qual foi responsável por uma retomada das bases biológicas e orgânicas da Psiquiatria, tributária dos métodos e das técnicas da Medicina. Assim, ocorreu um novo distanciamento entre a Psicologia e a Psiquiatria, sobretudo em relação aos métodos e técnicas de intervenção utilizados por estas duas especialidades profissionais. A Psicologia deu continuidade à expansão de seus conhecimentos por outros campos, sempre marcada pela busca da compreensão dos processos de funcionamento do mundo psicológico, dedicando-se a processos, como o da aprendizagem, o dos condicionamentos, o da relação entre os comportamentos e as relações sociais, ou entre os comportamentos e o meio ambiente, o do mundo afetivo, o das diversas possibilidades humanas; enfim, centrou-se nos variados aspectos que foram sendo apontados como constitutivos do mundo subjetivo, do mundo psicológico do homem.

As fronteiras entre a Psicologia e a Psiquiatria, excetuando-se as práticas profissionais farmacológicas, tendem a diminuir no campo profissional no que diz respeito às intervenções nos processos patológicos da subjetividade humana. Os afazeres desses profissionais realmente se aproximam muito. Os psiquiatras têm buscado muitos conhecimentos e técnicas na Psicologia, e os psicólogos têm se dedicado mais à compreensão das patologias para qualificar seus afazeres profissionais. Quando se toma, especificamente, a patologia, a loucura, a doença mental ou os distúrbios psicológicos como temas ou objetos de trabalho, os pontos de contato dessas áreas são muitos e o desenvolvimento de um trabalho interdisciplinar tem sido a meta de ambos os profissionais. Mas, se sairmos desse campo e entrarmos no campo da “normalidade”, da saúde, do desenvolvimento, os psicólogos aparecerão acompanhados de outros profissionais, como os assistentes sociais, os pedagogos, os administradores, os sociólogos, os antropólogos e outros mais. Neste campo, as possibilidades teóricas e técnicas da Psicologia são outras: intervenções nas relações sociais e nas relações institucionais; desenvolvimento de trabalhos em Educação e de programas de intervenção no trânsito, nos esportes, nas questões jurídicas, em projetos de urbanização, nas artes; enfim, a Psicologia pretende contribuir com a promoção da saúde. [pg. 155]

A finalidade do trabalho do Psicólogo

Uma das concepções que vêm ganhando espaço é a do psicólogo como profissional de saúde. Um profissional que, ao lado de muitos outros, aplica conhecimentos e técnicas da Psicologia para promover a saúde.

Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), saúde é o “estado de bem-estar físico, mental e social”. Ampliando um pouco essa concepção, ao falarmos de saúde, estamos fazendo referência a um conjunto de condições, criadas coletivamente, que permitem a continuidade da própria sociedade. Estamos falando, portanto, das condições (de alimentação, de educação, de lazer, de participação na vida social etc.) que permitem a um conjunto social produzir e reproduzir- se de modo saudável.

Nessa perspectiva, o psicólogo, como profissional de saúde, deve empregar seus conhecimentos de Psicologia na promoção de condições satisfatórias de vida, na sociedade em que vive e trabalha, isto é, em que está comprometido como cidadão e como profissional.

Assim, o psicólogo tem seu trabalho relacionado às condições gerais de vida de uma sociedade, embora atue enfocando a subjetividade dos indivíduos e/ou suas manifestações comportamentais. Pensar a saúde dos indivíduos significa pensar as condições objetivas e subjetivas de vida, de modo indissociado.

Reafirmamos que a profissão do psicólogo deve-se caracterizar pela aplicação dos conhecimentos e técnicas da Psicologia na promoção da saúde. Este trabalho pode estar sendo realizado nos mais diversos locais: consultórios, escolas, hospitais, creches e orfanatos, empresas e sindicatos de trabalhadores, bairros, presídios, instituições de reabilitação de deficientes físicos e mentais, ambulatórios, postos e centros de saúde e outros. [pg. 156]

Neste ponto, é importante lembrar que o compromisso do psicólogo com a promoção da saúde não o impedirá de intervir quando se defrontar com a doença e a necessidade da cura. Isto é, deparando-se com indivíduos que apresentem certa ordem de distúrbios e sofrimentos psíquicos, que necessitem de uma intervenção curativa, poderá buscar a cura através de terapias verbais ou corporais (o psicólogo não pode valer-se de medicamentos, pois esta é uma prática restrita aos médicos — no caso, os psiquiatras).

Assim, a prática do psicólogo como profissional de saúde irá caracterizar-se pela aplicação dos conhecimentos psicológicos no sentido de uma intervenção específica junto a indivíduos, grupos e instituições, com o objetivo de autoconhecimento, desenvolvimento pessoal, grupal e institucional, numa postura de promoção da saúde.

Mas o que significa trabalhar para a promoção da saúde?

Mantendo o parâmetro colocado no trecho anterior, de que pensar a saúde dos indivíduos significa pensar as condições objetivas e subjetivas de vida, de modo indissociado, podemos especificar um pouco mais essa questão, quando nos referimos ao psicólogo ou à Psicologia.

A Psicologia tem, como objeto de estudo, o fenômeno psicológico, como já vimos no capítulo 1. Esse fenômeno se refere a processos internos ao indivíduo. E a subjetividade, o seu mundo interior, que é, como não podemos deixar de lembrar, construído no decorrer da vida, a partir das relações sociais com toda sua riqueza, com todas as suas possibilidades e limitações. Aqui vamos falar de saúde mental dos indivíduos, significando a possibilidade de o indivíduo pensar-se como ser histórico, perceber a construção da sua subjetividade ao longo de uma vida. Perceber a si próprio é, aqui, sinônimo de compreender-se como síntese de muitas determinações. [pg. 157] Ter e manter uma condição saudável do psiquismo é conseguir pensar-se como um indivíduo inserido em uma sociedade, numa teia de relações sociais, que é o espaço onde ele torna-se homem.

Assim, a saúde mental do indivíduo está diretamente ligada às condições materiais de vida, pois a miséria material caracterizada por fome, falta de habitação, desemprego, analfabetismo, altas taxas de mortalidade infantil torna-se, nessa visão, a condição que prejudica o desenvolvimento do indivíduo. Poderíamos usar a seguinte imagem para tornar mais claro nosso pensamento: como construir um mundo psíquico, se não há matéria-prima adequada? As construções serão frágeis. Retomando e sintetizando, o psicólogo trabalha para promover saúde, isto é, trabalha para que as pessoas desenvolvam uma compreensão cada vez maior de sua inserção nas relações sociais e de sua constituição histórica e social enquanto ser humano. Quanto mais clareza se tiver sobre isso, maiores serão as possibilidades de o indivíduo lidar com a situação cotidiana que o envolve, decidindo o que fazer, projetando intervenções para alterar a realidade, compreendendo as relações que vive e, portanto, compreendendo a si mesmo e aos outros.

As áreas de atuação do psicólogo

Colocada a finalidade do trabalho do psicólogo, podemos agora falar das áreas e locais nos quais ele trabalha.

Nos consultórios, nas clínicas psicológicas, hospitais, ambulatórios e centros de saúde, para citar apenas algumas instituições de saúde, os psicólogos estarão atuando para promover saúde. Nesses locais, a doença poderá estar presente, merecendo intervenções terapêuticas. Aí o psicólogo precisará do conhecimento da Psicologia para fazer um diagnóstico, intervir e avaliar. A atuação do psicólogo nesse campo é
muito conhecida; conhecemos muitas de suas técnicas, como testes, entrevistas e terapias. Esse tipo de atuação aparece nas novelas, nos filmes e nos livros. As pessoas comumente se referem a esse psicólogo como “o terapeuta”.

Na escola ou nas instituições educacionais (creches, orfanatos etc.), o processo pedagógico vai se colocar como realidade principal. Todo o trabalho do psicólogo estará em função deste processo e para ele direcionado. E isso irá obrigá-lo a escolher técnicas em Psicologia que se adaptem aos limites que sua intervenção terá, dada a realidade educacional. Estará sendo psicólogo porque estará utilizando o conhecimento da ciência psicológica para compreender e intervir, só que, neste caso, com o objetivo de promover saúde num espaço que é educacional. [pg. 158]
Na empresa ou indústria, as relações de trabalho e o processo produtivo vão ser colocados como realidade principal do psicólogo. Portanto, os conhecimentos, as técnicas que utilizará estarão em função da realidade e das exigências que elas colocam para o profissional. A promoção da saúde naquele espaço de trabalho é seu objetivo maior.

Sempre que falamos nessa área, citamos as empresas e indústrias, isto porque são as organizações mais conhecidas do trabalho dos psicólogos. Mas, na verdade, sempre que estivermos pensando em promover saúde a partir da intervenção nas relações de trabalho, estaremos dentro desse campo. Hoje já existem psicólogos que fazem trabalhos junto a sindicatos, centrais sindicais, centros de referência dos trabalhadores, núcleos de pesquisa do trabalho etc. São psicólogos que têm como realidade principal de intervenção o processo de trabalho ou as relações de trabalho. Se pensarmos assim, esse profissional poderá estar atuando num hospital ou numa escola, desde que sua intervenção se dê no processo de trabalho, e não no processo de tratamento da saúde ou no processo educacional.

Estamos querendo dizer, com isso, que não há uma Psicologia Clínica, outra Escolar, e ainda outra Organizacional, mas há a Psicologia, como corpo de conhecimento científico, que é aplicada a processos individuais ou a relações entre pessoas, nas escolas, nas indústrias e nas clínicas, assim como em hospitais, presídios, orfanatos, ambulatórios, centros de saúde etc. Claro que não podemos negar que, na medida em que os psicólogos iniciam suas atuações nesses campos, passam a desenvolver discussões e reflexões que especificam uma intervenção. Isso pode levar, tem levado e é desejável que leve à construção de conhecimentos específicos de cada campo: sua clientela, seus processos, sua problemática, criando assim, como áreas de conhecimento dentro da Psicologia, a Psicologia Educacional, com todos os seus ramos: aprendizagem, alfabetização, relação professor-aluno, análise institucional do espaço escolar, fracasso escolar, educação de deficientes etc. a Psicologia Clínica, cora todo seu conhecimento sobre populações específicas, como a Psicologia da gravidez e do puerpério, a Psicologia da terceira idade etc. seus conhecimentos sobre os estados psíquicos alterados, sobre a angústia, a ansiedade, o luto, suicídio etc. E a Psicologia do Trabalho, também com seus conhecimentos: o stress, conseqüências psíquicas do trabalho, a saúde do trabalhador, as técnicas de seleção, treinamento, avaliação de desempenho etc. [pg. 159]

Há, ainda, a possibilidade de o psicólogo se dedicar ao magistério de ensino superior e à pesquisa. Esses profissionais estão mais ligados à Ciência Psicológica enquanto corpo de conhecimentos, produzindo-os ou transmitindo-os. Essas são consideradas atuações de base na profissão, pois, para atuar, os psicólogos dependem da produção do conhecimento e da formação de profissionais. E também ao magistério do ensino profissional (antigo ensino técnico), como pode ser o caso de seu professor. Esse profissional trabalha no sentido de contribuir com a formação dos jovens, dando-lhes mais uma possibilidade de enriquecer a leitura e compreensão que têm do mundo.

Devido aos conhecimentos que possui sobre o psiquismo humano, o psicólogo tem sido requisitado também para o trabalho nas áreas de publicidade — na produção de imagens (de políticos, por exemplo); Marketing, pesquisas de mercado etc. Ele está conquistando espaços na área esportiva, junto à Justiça, nos presídios e nas instituições chamadas de reeducação ou reabilitação. Pode-se citar, também, uma área menos acessível para o psicólogo, mas na qual sua contribuição tem sido prestimosa, que é a de planejamento urbano.

Fica claro, portanto, que a Psicologia possui um conhecimento importante para a compreensão da realidade e por isso é utilizada, pelos psicólogos ou por outros profissionais, em vários locais de trabalho, em vários campos. Mas os psicólogos também precisam dos conhecimentos de outras áreas da ciência para construir uma visão mais globalizante do fenômeno estudado. Na Educação, por exemplo, o psicólogo tem necessidade dos conhecimentos da Pedagogia, da Sociologia e da Filosofia.

Na maioria dos locais de trabalho, os psicólogos não estão sozinhos. Nesses locais, o profissional necessita compor-se em equipes multidisciplinares, onde cada um, com seu conhecimento específico, procura integrar suas análises e ter, assim, uma compreensão globalizante do fenômeno estudado e uma prática integrada.

Usos e abusos da Psicologia

A Psicologia, além de usada pelos psicólogos, tem sido também “abusada” por eles. O sentido do abuso, ou melhor, o critério do abuso da Psicologia pode ser dado pelo fato de não estar sendo usado o conhecimento para a promoção da saúde da coletividade. Não gostaríamos aqui de apontar locais ou processos onde esse fato estaria ocorrendo, pois ele poderá acontecer em qualquer prática de qualquer psicólogo — na clínica, na escola, no hospital psiquiátrico ou na empresa. No entanto, um deles não deve deixar [pg. 160] de ser citado: a utilização da Psicologia para práticas repressivas, que podem existir nas escolas, presídios, instituições educacionais e/ou de reabilitação, hospitais psiquiátricos etc.

Isto se torna possível porque o conhecimento da Psicologia, ao permitir que saibamos promover a saúde mental, permite também que saibamos promover a loucura, o medo, a insegurança, com o objetivo de coagir o indivíduo.

Psicologia - História da Psicologia
7/16/2021 5:02:48 PM | Por Ana Mercês Bahia Bock
A velha e a nova Psicologia social

Psicologia social é a área da Psicologia que procura estudar a interação social. E assim que Aroldo Rodrigues, psicólogo brasileiro, define essa área. Diz ele que a Psicologia social é o estudo das “manifestações comportamentais suscitadas pela interação de uma pessoa com outras pessoas, ou pela mera expectativa de tal interação”1. A interação social, a interdependência entre os indivíduos, o encontro social são os objetos investigados por essa área da Psicologia. Assim, vamos falar dos principais conceitos da Psicologia social a partir do ponto de vista do encontro social.

Dessa perspectiva, os principais conceitos são: a percepção social; a comunicação; as atitudes; a mudança de atitudes; o processo de socialização; os grupos sociais e os papéis sociais.

Percepção social

Nós, autores deste livro, encontramo-nos com você. Essa é nossa suposição e nosso ponto de partida. O primeiro processo desencadeado é o da percepção social. Percebemo-nos um ao outro. E percebemos não só a presença do outro, mas o conjunto de características que apresenta, o que nos possibilita “ter uma impressão” dele. [pg. 135] Essa impressão é possível porque, a partir de nossos contatos com o mundo, vamos organizando estas informações em nossa cognição (organização do conhecimento no nível da consciência), e é esta organização que nos permitirá compreender ou categorizar um novo fato. Assim, se você estiver vestido de calça jeans, camiseta, tênis e com cadernos e livros nas mãos, a sua aparência nos permitirá percebê-lo como um estudante. E nós, com o dobro de sua idade e um estilo semelhante de vestir, seremos categorizados como professores.

A percepção é, pois, um processo que vai desde a recepção do estímulo pelos órgãos dos sentidos até a atribuição de significado ao estímulo.

Comunicação

Quando percebemos (condição para o encontro), podemos dizer envolve codificação (formação de um sistema de códigos) e decodificação (a forma de procurar entender a codificação) de mensagens. Essas mensagens permitem a troca de informações entre os indivíduos.

— Muito prazer, dizemos nós a você. Esta é a mensagem que lhe enviamos. Para isso utilizamos o código que é comum entre nós. Você recebe esta mensagem, decodifica-a e então tem condições de nos responder: — Eu também tenho prazer em conhecê-los (nova mensagem, no mesmo código, e que, por sua vez, será decodificada por nós).

A percepção do outro é uma forma de comunicação que depende da atribuição de significado à situação vivida. A comunicação não é constituída apenas de código verbal.

Também utilizamos para a comunicação expressões de rosto, gestos, movimentos, desenhos e sinais.

A partir deste esquema básico da comunicação: transmissor (aquele que codifica), mensagem (transmitida utilizando um código), receptor (aquele que decodifica), a Psicologia social estudou o processo de interdependência e de influência entre as pessoas que se comunicam, respondendo a questões do tipo: como se dá a influência, quais as características da mensagem, como aumentar nosso poder de persuasão através da comunicação e quais os processos psicológicos envolvidos na comunicação? [pg. 136]

Atitudes

A partir da percepção do meio social e dos outros, o indivíduo vai organizando estas informações, relacionando-as com afetos (positivos ou negativos) e desenvolvendo uma predisposição para agir (favorável ou desfavoravelmente) em relação às pessoas e aos objetos presentes no meio social. A essas informações com forte carga afetiva, que predispõem o indivíduo para uma determinada ação (comportamento), damos o nome de atitudes.

Portanto, para a Psicologia social, diferentemente do senso comum, nós não tomamos atitudes (comportamento, ação), nós desenvolvemos atitudes (crenças, valores, opiniões) em relação aos objetos do meio social.

As atitudes possibilitam-nos uma certa regularidade na relação com o meio. Temos atitudes positivas em relação a determinados objetos ou pessoas, o que nos predispõe a uma ação favorável em relação a eles. Isto porque os componentes da atitude — informações, afeto e predisposição para a ação — tendem a ser congruentes. 

Assim, se você se apresenta como estudante e traz em suas mãos este livro escrito por nós, a possibilidade de desenvolvermos uma atitude positiva em relação a você é muito grande, pois já temos anteriormente informações e afetos positivos em relação a estudantes, principalmente
aos que estão lendo nosso livro. Dessa forma, é de se esperar que nosso comportamento em relação a você seja “favorável”: iremos cumprimentá- lo, convidá-lo para tomar um café na cantina etc.

As atitudes são, assim, bons preditores de comportamentos.

No entanto, não é com tanta facilidade que conseguimos prever o comportamento de alguém a partir do conhecimento de sua atitude, pois nosso comportamento é resultante também da situação dada e de várias atitudes mobilizadas em determinada situação. Então, por exemplo, se estamos atrasados para um compromisso no momento em que encontramos você, é possível que nossa previsão de comportamento favorável não se concretize, pois a situação dada apresenta outros elementos que modificam o comportamento esperado.

Mudança de atitudes

Nossas atitudes podem ser modificadas a partir de novas informações, novos afetos ou novos comportamentos ou situações.

Assim, podemos mudar nossa atitude em relação a um determinado objeto porque descobrimos que ele faz bem à saúde ou nos [pg. 137] ajuda de alguma forma. Por exemplo, se você desenvolveu uma atitude negativa em relação ao nosso livro porque não gostou da capa, esperamos que após sua leitura você possa modificá-la pela constatação de que ele o ajuda, de alguma forma, a compreender melhor o mundo.

Podemos ainda mudar uma atitude quando somos obrigados a nos comportar em desacordo com ela. Exemplo: você não gosta dos rapazes que moram no seu prédio (atitude negativa), mas será obrigado a conviver com eles, porque passaram a estudar na mesma classe. Para evitar uma tensão constante, que o levaria a um conflito, você tentará descobrir aspectos positivos neles (como o fato de serem bons alunos ou muito requisitados pelas garotas), que permitam uma aproximação e a mudança de atitude (atitude positiva).

Existe uma forte tendência a manter os componentes das atitudes em consonância. Informações positivas sobre os rapazes, por exemplo, levarão a afeto positivo. Informação positiva e afeto positivo levam a um comportamento favorável na direção do objeto.

Processo de socialização

Nesse nosso encontro, vimos que nossas atitudes são importantes, pois, em certo sentido, são elas que norteiam nosso comportamento. Ainda há a influência dos motivos, interesses e necessidades com que nos apresentamos na situação. Este conjunto de aspectos psicológicos permite-nos compreender, atribuir significado e responder ao outro.

E você deve estar então se perguntando: “De onde vem este conjunto de aspectos tão importantes?”.

A formação do conjunto de nossas crenças, valores e significações dá-se no processo que a Psicologia social denominou socialização. Nesse processo, o indivíduo torna-se membro de um determinado conjunto social, aprendendo seus códigos, suas normas e regras básicas de relacionamento, apropriando-se do conjunto de conhecimentos já sistematizados e acumulados por esse conjunto.

Grupos sociais

Claro que existem as organizações ou elementos que servem de intermediários entre o conjunto social mais amplo e o indivíduo. Essa intermediação é feita pelos grupos sociais. [pg. 138]

Assim, quando se dá esse nosso encontro, poderíamos dizer que estão-se encontrando representantes de diferentes grupos sociais: você, representando sua família, seus grupos de amigos, seu grupo racial, seu grupo religioso etc, e, de outro lado, nós, representando nossos grupos de pertencimento ou de referência, que são aqueles a que pertencemos ou em que nos referenciamos para saber como nos comportar, o que dizer, como perceber o outro, do que gostar ou não gostar.

Os grupos sociais são pequenas organizações de indivíduos que, possuindo objetivos comuns, desenvolvem ações na direção desses objetivos. Para garantir essa organização, possuem normas; formas de pressionar seus integrantes para que se conformem às normas; um funcionamento determinado, com tarefas e funções distribuídas entre seus membros; formas de cooperação e de competição; apresentam aspectos que atraem os indivíduos, impedindo que abandonem o grupo.

A Psicologia social dedicou grande parte de seus estudos à compreensão desses processos grupais, como veremos no capítulo 15.

Papéis sociais

E para terminarmos esse nosso encontro social precisamos falar um pouco ainda dos papéis sociais.

Entendida a sociedade como um conjunto de posições sociais (como a posição de médico, de professor, de aluno, de filho, de pai), todas as expectativas de comportamento estabelecidas pelo conjunto social para os ocupantes das diferentes posições sociais determinam o chamado papel prescrito. Assim, sabemos o que esperar de alguém que ocupa uma determinada posição.

Portanto, no nosso encontro, ao sabermos que você é um estudante, saberemos também alguns comportamentos que deveremos esperar de você, e, por sua vez, você saberá o que esperar de nós, professores.

Todos os comportamentos que manifestamos no nosso encontro são chamados, na Psicologia social, de papel desempenhado. Tais
comportamentos, por sua vez, podem ou não estar de acordo com a prescrição social, isto é, as normas prescritas socialmente para o desempenho de um determinado papel. [pg. 139]

Os papéis sociais permitem-nos compreender a situação social, pois são referências para a nossa percepção do outro, ao mesmo tempo que são referências para o nosso próprio comportamento. Se no encontro social nos apresentamos como ocupantes da posição de professores ou autores de um livro, sabemos como nos comportar, porque aprendemos, no decorrer de nossa socialização, o que está prescrito para os ocupantes dessas posições. Se formos convidados a proferir uma palestra na sua escola, não iremos vestidos como se estivéssemos indo para o clube.

E aqui vale a pena ressaltar que, quando aprendemos um papel social, aprendemos também o papel complementar, isto é, quando aprendemos a nos comportar como alunos, desde o início de nossa vida escolar, estamos também aprendendo o papel do outro com quem interagimos — o papel do professor.

Os diferentes papéis sociais e a nossa enorme plasticidade como seres humanos permitem que nos adaptemos às diferentes situações sociais e que sejamos capazes de nos comportar diferentemente em cada uma delas. Aprender os nossos papéis sociais é, na realidade, aprender o conjunto de rituais que nossa sociedade criou.

Para finalizar, gostaríamos de deixar registrado que cada encontro social, cada momento de comunicação e interação entre as pessoas são sempre momentos de nosso processo de socialização, que é ininterrupto no decorrer de nossas vidas.

E assim nos despedimos: — Foi um prazer conhecê-lo e esperamos nos encontrar novamente. Obrigado pela atenção.

Críticas à Psicologia social

Aqui um novo encontro se inicia, pois temos algumas coisas a dizer sobre o nosso encontro passado. A teoria da Psicologia social, que orientou o nosso encontro anterior, tem recebido, hoje em dia, inúmeras críticas. Apontamos agora as principais:

  1. É uma Psicologia social baseada em um método descritivo, ou seja, um método que se propõe a descrever aquilo que é observável, fatual. É uma psicologia que organiza e dá nome aos processos observáveis dos encontros sociais.
  2. É uma Psicologia social que tem seu desenvolvimento comprometido com os objetivos da sociedade norte-americana do pós-guerra, que precisava de conhecimentos e de instrumentos que possibilitassem a intervenção na realidade, de forma a obter resultados [pg. 140] imediatos, com a intenção de recuperar uma nação, garantindo o aumento da produtividade econômica. Não é para menos que os temas mais desenvolvidos foram a comunicação persuasiva, a mudança de atitudes, a dinâmica grupal etc., voltados sempre para a procura de “fórmulas de ajustamento e adequação de comportamentos individuais ao contexto social”2.
  3. É uma Psicologia social que parte de uma noção estreita do social, Este é considerado apenas como a relação entre pessoas — a interação social —, e não como um conjunto de produções humanas capazes de, ao mesmo tempo em que vão construindo a realidade social, construir também o indivíduo. Esta concepção será a referência para a construção de uma nova Psicologia social.

Uma nova Psicologia social

Com uma posição mais crítica em relação à realidade social e à contribuição da ciência para a transformação da sociedade, vem sendo desenvolvida uma nova Psicologia social, buscando a superação das limitações apontadas anteriormente.

A Psicologia social mantém-se aqui como uma área de conhecimento da Psicologia, que procura aprofundar o conhecimento da natureza social do fenômeno psíquico. O que quer dizer isso?

A subjetividade humana surge do contato entre os homens e dos homens com a Natureza, isto é, esse mundo interno que possuímos e suas expressões são construídas nas relações sociais.

Assim, a Psicologia social como área de conhecimento, passa a estudar o psiquismo humano, objeto da Psicologia, buscando compreender como se dá a construção desse mundo interno a partir das relações sociais vividas pelo homem. O mundo objetivo passa a ser visto não como fator de influência para o desenvolvimento da subjetividade, mas como fator constitutivo. [pg. 141]

Numa concepção como essa, o comportamento deixa de ser “o objeto de estudo”, para ser uma das expressões do mundo psíquico e fonte importante de dados para a compreensão da subjetividade, pois ele se encontra no nível do empírico e pode ser observado; no entanto, essa nova Psicologia social pretende ir além do que é observável, ou seja, além do comportamento, buscando compreender o mundo invisível do homem.

Além disso, essa Psicologia social abandona por completo a diferença entre comportamento em situação de interação ou não-interação. O homem é um ser social por natureza. Entende-se aqui que cada indivíduo aprende a ser um homem nas relações com os outros homens, quando se apropria da realidade criada pelas gerações anteriores, apropriação que se dá pelo manuseio dos instrumentos e pelo aprendizado da cultura humana. O homem como um ser social, como um ser de relações sociais, está em permanente movimento. Estamos sempre nos transformando, apesar de aparentemente nos mantermos iguais. Isso porque nosso mundo interno se alimenta dos conteúdos que vêm do mundo externo e, como nossa relação com esse mundo externo não cessa, estamos sempre como que fazendo a “digestão” desses alimentos e, portanto, sempre em movimento, em processo de transformação.

Ora, se estamos em permanente movimento, não podemos ter um conjunto teórico onde os conceitos paralisam nosso objeto de estudo. Se nos limitarmos a falar das atitudes, da percepção, dos papéis sociais e acreditarmos que com isso compreendemos o homem, não estaremos percebendo que, ao desempenhar esse papel, ao perceber o outro e ao desenvolver ou falar sobre sua atitude, o homem estará em movimento.

Por isso, nossa metodologia e nosso corpo teórico devem ser capazes de captar esse homem em movimento.

É, superando esse conceitual da antiga Psicologia social, a nova irá propor, como conceitos básicos de análise, a atividade, a consciência e a identidade, que são as propriedades ou características essenciais do homem e expressam o movimento humano. Esses conceitos e concepções foram e vêm sendo desenvolvidos por vários autores. Citamos, entre eles: Vigotski, Alexis Leontiev e Luria, autores soviéticos que produziram até a década de 60; Silvia Lane e Antônio Ciampa, que são brasileiros e trabalham ativamente na PUC-SP.

Atividade

É a unidade básica fundamental da vida do sujeito material. É através da atividade que o homem se apropria do mundo, ou seja, é a atividade que propicia a transição daquilo que está fora do homem [pg. 142] para dentro dele. Pense na criança, onde isso tudo fica mais evidente. Ela se apropria do mundo engatinhando, andando ou percorrendo com os olhos o mundo circundante. Ela manuseia os objetos, desmonta-os (infelizmente, nós compreendemos isso, às vezes, como destruição), monta-os, balança, lambe, ouve, vê, enfim, do ponto de vista da Psicologia social, coloca-os para dentro de si, transforma-os em imagens e em idéias que passam a habitar seu mundo interno.

A prática humana, ou, como estamos chamando aqui, a atividade humana, é a base do conhecimento e do pensamento do homem. Estamos considerando que os indivíduos apresentam uma necessidade de manter uma relação ativa com o mundo externo. Para existirmos, precisamos atuar sobre o mundo, transformando-o de acordo com nossas necessidades. Ao fazer isso, estamos construindo a nós mesmos.

Esperamos que você tenha notado que o homem constrói o seu mundo interno na medida em que atua e transforma o mundo externo. Mundos externo e interno são, portanto, imbricados, pois são construídos num mesmo processo, e a existência de um depende da do outro.

Atuar no mundo é uma propriedade do homem, isto é, a atividade é uma das suas determinações.

Consciência

A consciência humana expressa a forma como o homem se relaciona com o mundo objetivo. As aranhas constroem suas teias e reagem à vibração nelas produzida por insetos que ali ficam presos.

Essa é a forma como as aranhas reagem ao mundo externo. As abelhas, os pássaros, os peixes e todos os animais apresentam uma maneira específica de relação com o mundo. O homem também apresenta o seu modo de reagir ao mundo objetivo: ele o compreende, isto é, transforma-o em idéias e imagens e estabelece relações entre essas informações, de modo a compreender o que se produz na realidade ambiente. A consciência é, assim, um certo saber. Nós reagimos ao mundo compreendendo-o, “sabendo-o”. [pg. 143]

A consciência não se limita apenas ao saber lógico. Ela inclui o saber das emoções e sentimentos do homem, o saber dos desejos, o saber do inconsciente.

Como maneira de reagir ao mundo, a consciência está em permanente movimento.

E como será que ela surge?

A consciência não é manifestação de alguma capacidade mística no cérebro humano. A consciência do homem é produto das relações sociais que os homens estabelecem. Sem dúvida, foi necessário um aperfeiçoamento do cérebro humano para que se tornasse capaz de pensar o mundo através de imagens, símbolos e de estabelecer relações entre os objetos desse mundo, tornando-se mesmo capaz de antecipar a realidade. Mas acredita-se que somente o aperfeiçoamento do cérebro não seria suficiente para propiciar o surgimento da consciência humana, ou melhor, que esse aperfeiçoamento não teria lugar, se não houvesse condições externas ao homem que o estimulassem.

Essas condições externas estão hoje pensadas como o trabalho, a vida social e a linguagem.

A consciência, como produto subjetivo, como apropriação pelo homem do mundo objetivo, produz-se em um processo ativo, que tem como base a atividade sobre o mundo, a linguagem e as relações sociais.

O homem encontra um mundo de objetos e significados já construídos pelos outros homens. Nas relações sociais, ele se apropria desse mundo cultural e desenvolve o “sentido pessoal”. Produz, assim, uma compreensão sobre o mundo, sobre si mesmo e os outros, compreensão construída no processo de produção da existência, compreensão que tem sua matéria-prima na realidade objetiva e na realidade social, mas que é própria do indivíduo, pois é resultado de um trabalho seu.

E você agora deve estar perguntando: e como eu posso estudar a consciência dos indivíduos, se ela é invisível, dado que é mundo interno e não tem uma forma corpórea, física?

Estuda-se a consciência através de suas mediações. No mundo observável, vamos encontrar, por exemplo, as representações sociais, veiculadas pela linguagem, que são expressões da consciência. Quando alguém discursa ou simplesmente fala sobre algum assunto, está se referindo ao mundo real e expressa sua consciência através das representações sociais. A representação social é a denominação dada ao conjunto de idéias que articula os significados sociais, isto é, o sentido construído coletivamente para o objeto, [pg. 144] com o sentido pessoal. Envolve crenças, valores e imagens que os indivíduos constroem, no decorrer de suas vidas, a partir da vivência na sociedade.

Identidade

Outro conceito importante nessa nova Psicologia social é o de identidade (veja capítulo 14).

Se a consciência está em movimento, se o homem, conseqüentemente, está em movimento, a consciência que desenvolve sobre o “eu mesmo” não poderia estar parada. Ela também está em movimento.

O indivíduo, nessa concepção, é um eterno transformar-se, mesmo que aparentemente continue com os mesmos olhos, cabelos e até consiga manter seu peso. Isso é só aparência. Estamos nos transformando a cada momento, a cada nova relação com o mundo social e sabemos disso. A consciência que desenvolvemos sobre “quem sou eu” acompanha esse movimento do real, às vezes com mais facilidade, às vezes com menos, mas acompanha.

Identidade é a denominação dada às representações e sentimentos que o indivíduo desenvolve a respeito de si próprio, a partir do conjunto de suas vivências. A identidade é a síntese pessoal sobre o si-mesmo, incluindo dados pessoais (cor, sexo, idade), biografia (trajetória pessoal), atributos que os outros lhe conferem, permitindo uma representação a respeito de si.

Este conceito supera a compreensão do homem enquanto conjunto de papéis, de valores, de habilidades, de atitudes etc., pois compreende todos estes aspectos integrados — o homem como totalidade — e busca captar a singularidade do indivíduo, produzida no confronto com o outro. A mudança nas situações sociais, a mudança na história de vida e nas relações sociais determinam um processar contínuo na definição de si mesmo.

Neste sentido, a identidade do indivíduo deixa de ser algo estático e acabado, para ser um processo contínuo de representações de seu “estar sendo” no mundo. [pg. 145]

Uma última questão

Que diferença há entre essa nova Psicologia social e aquela do início do capítulo?

Há muitas diferenças. A do início do capítulo é uma Psicologia descritiva. Procura organizar e dar nome aos processos observáveis que ocorrem nas interações sociais. A nova proposta busca ser explicativa ou compreensiva. Deseja-se explicar/compreender a relação que o indivíduo mantém com a sociedade e os processos subjetivos que vão ocorrendo nessa relação. Outro aspecto bastante significativo, que merece destaque nessa diferenciação, é a maneira de conceber o homem. A Psicologia social tradicional pensa o homem como um ser que reage às estimulações externas, atribui-lhes significado e se comporta. O homem é um ser no espaço social. A nova Psicologia social o concebe como um ser de natureza social. O homem é um ser social, que constrói a si próprio, ao mesmo tempo que constrói, com os outros homens, a sociedade e sua história. A nova Psicologia social desvincula-se da tradição norte-americana de ciência pragmática, com intenções de prever o comportamento e manipulá-lo, optando por uma ciência que, ao melhorar a compreensão que se tem da realidade social e humana, permita ao homem transformá-la. Assim, é um conhecimento que se busca produzir para ser divulgado, distribuído, discutido por um número maior de pessoas, extrapolando os muros das universidades. Esses aspectos são muito importantes, porque abrem a possibilidade para uma ciência comprometida com a transformação, abandonando de vez os modelos de ciência que servem para justificar a desumanidade existente em nossa sociedade, por considerar naturais todas as desigualdades e formas de exploração.

Essa nova Psicologia social permite que se compreenda o que acontece conosco na sociedade brasileira, pois ela parte desta realidade para compreender os elementos do mundo interno que estão sendo construídos: como estamos representando a juventude ou a infância? como estamos representando a nossa sexualidade? nosso trabalho? quem somos nós, os brasileiros? Para responder a questões como essas, a Psicologia social vai recorrer aos conceitos de atividade, consciência e identidade, promovendo um estudo sobre o fazer, o pensar e o agir dos homens em nossa sociedade, e será a articulação entre esses elementos que permitirá a resposta à questão. [pg. 146]

Psicologia - Psicologia social
7/16/2021 2:27:05 PM | Por Ana Mercês Bahia Bock
Psicologia da aprendizagem

Qualquer um de nós é capaz de responder sem pestanejar a perguntas do tipo: O que você aprendeu hoje na escola? e sabemos também justificar nossas habilidades, por exemplo, de escrever e ler, consertar alguma coisa ou dançar, dizendo que aprendemos. Usamos o termo aprender sem dificuldades, pois sabemos que, se somos capazes de fazer algo que antes não fazíamos, é porque aprendemos. No entanto, para a Psicologia, o conceito de aprendizagem não é tão simples assim. Há diversas possibilidades de aprendizagem, ou seja, há diversos fatores que nos levam a apresentar um comportamento que anteriormente não apresentávamos, como o crescimento físico, descobertas, tentativas e erros, ensino etc. Nós mesmos temos uma amiga que sabe uma poesia inteira em francês, porque copiou 10 vezes como castigo, há 20 anos, e tem apenas uma vaga idéia do que está dizendo quando a declama. Podemos dizer que ela aprendeu a poesia? Essas diferentes situações e processos não podem ser englobados num só conceito.

E, assim, a Psicologia transforma a aprendizagem em um processo a ser investigado. São muitas as questões consideradas importantes pelos teóricos da aprendizagem: Qual o limite da aprendizagem? Qual a participação do aprendiz no processo? Qual a natureza da aprendizagem? Há ou não motivação subjacente ao processo? As respostas a essas questões têm originado controvérsias entre os estudiosos. [pg. 114]

Teorias da aprendizagem

Encontramos um número bastante grande de teorias da aprendizagem. Essas teorias poderiam ser genericamente reunidas em duas categorias: as teorias do condicionamento e as teorias cognitivistas.

No primeiro grupo, estão as teorias que definem a aprendizagem pelas suas conseqüências comportamentais e enfatizam as condições ambientais como forças propulsoras da aprendizagem.

Aprendizagem é a conexão entre o estímulo e a resposta. Completada a aprendizagem, estímulo e resposta estão de tal modo unidos, que o aparecimento do estímulo evoca a resposta1.

No segundo grupo estão as teorias que definem a aprendizagem como um processo de relação do sujeito com o mundo externo e que tem conseqüências no plano da organização interna do conhecimento (organização cognitiva). A concepção de Ausubel, apresentada no livro Aprendizagem significativa — a teoria de David Ausubel, de Moreira e Masini, que se enquadra neste grupo, diz que a aprendizagem é um elemento que provém de uma comunicação com o mundo e se acumula sob a forma de uma riqueza de conteúdos cognitivos. É o processo de organização de informações e integração do material pela estrutura cognitiva.

O indivíduo adquire, assim, um número crescente de novas ações como forma de inserção em seu meio.

Controvérsias básicas entre estas concepções

De maneira geral, poderíamos apontar três controvérsias. A primeira refere-se à questão do que é aprendido e como.

Para os teóricos do condicionamento, aprendemos hábitos, isto é, aprendemos a associação entre um estímulo e uma resposta [pg. 115] e aprendemos praticando; para os cognitivistas, aprendemos a relação entre idéias (conceitos) e aprendemos abstraindo de nossa experiência.
A segunda controvérsia refere-se à questão do que mantém o comportamento que foi aprendido.

Para os teóricos do condicionamento, o comportamento é mantido pelo seqüenciamento de respostas. Explicando melhor: uma resposta é, na realidade, um conjunto de respostas. Quando falamos no comportamento de abrir uma porta, é fácil perceber que ele é composto de diversas respostas intermediárias: pegar a chave na posição certa para que entre na fechadura, encaixá-la na fechadura, virar corretamente e abaixar então a maçaneta. São essas diversas respostas que, reforçadas (bem-sucedidas), preparam a etapa seguinte e mantêm a cadeia de respostas até que o objetivo do comportamento seja atingido.

Para os cognitivistas, o que mantém um comportamento são os processos cerebrais centrais, tais como a atenção e a memória, que são integradores dos comportamentos.

A terceira controvérsia refere-se à maneira como solucionamos uma nova situação-problema (transferência da aprendizagem).

Para os teóricos do condicionamento, evocamos hábitos passados apropriados para o novo problema e respondemos, quer de acordo com os elementos que o problema novo tem em comum com outros já aprendidos, quer de acordo com aspectos da nova situação, que são semelhantes à situação já encontrada. Por exemplo, quando a criança aprende a dar laço nos sapatos, saberá dar laço em presentes, no vestido ou na fita do cabelo.

Os cognitivistas acreditam que, mesmo no caso de haver toda a experiência possível com as diversas partes do problema, como saber todas as etapas para dar um laço, isso não garante que a solução do problema seja alcançada. Seremos capazes de solucionar um problema, se este for apresentado de uma forma, mas não de outra, mesmo que ambas as formas requeiram as mesmas experiências passadas para serem solucionadas. De acordo com os cognitivistas, o método de apresentação do problema permite uma estrutura perceptual que leva ao insight, isto é, à compreensão interna das relações essenciais do caso em questão. Por exemplo, quando montamos um quebra-cabeça e “sacamos” o lugar de uma peça sem termos feito tentativas anteriormente. [pg. 116]

A Teoria cognitivista da aprendizagem

Desenvolveremos alguns conceitos básicos dessa abordagem através da teoria de David Ausubel.

Cognição

Inicialmente, vale a pena esclarecer o conceito de cognição. Cognição é o “processo através do qual o mundo de significados tem origem. A medida que o ser se situa no mundo, estabelece relações de significação, isto é, atribui significados à realidade em que se encontra. Esses significados não são entidades estáticas, mas pontos de partida para a atribuição de outros significados. Tem origem, então, a estrutura cognitiva (os primeiros significados), constituindo-se nos ‘pontos básicos de ancoragem’ dos quais derivam outros significados”2.

Por exemplo, quando precisamos ensinar à criança a noção de sociedade, podemos levá-la a dar uma volta no quarteirão e observar com ela tudo o que lá existe. A criança atribuirá significados aos elementos dessa experiência e poderá, posteriormente, compreender a sociedade.

O cognitivismo está, pois, preocupado com o processo de compreensão, transformação, armazenamento e utilização das informações, no plano da cognição.

Aprendizagem

O processo de organização das informações e de integração do material à estrutura cognitiva é o que os cognitivistas denominam aprendizagem.
A abordagem cognitivista diferencia a aprendizagem mecânica da aprendizagem significativa.

  1. Aprendizagem mecânica — refere-se à aprendizagem de novas informações com pouca ou nenhuma associação com conceitos já existentes na estrutura cognitiva. Você se lembra da nossa amiga que decorou a poesia em francês? É um exemplo deste tipo de aprendizagem, pois o conteúdo não se relacionava com nada que ela já possuísse em sua estrutura cognitiva (por isso ela não entendia o que dizia, apenas sabia a poesia de cor). O conhecimento assim adquirido fica arbitrariamente distribuído na estrutura cognitiva, sem se ligar a conceitos específicos. [pg. 117]
  2. Aprendizagem significativa — processa-se quando um novo conteúdo (idéias ou informações) relaciona-se com conceitos relevantes, claros e disponíveis na estrutura cognitiva, sendo assim assimilado por ela. Estes conceitos disponíveis são os pontos de ancoragem para a aprendizagem. Por exemplo, nós estamos aqui apresentando a você um novo conceito — o de aprendizagem significativa. Para que este conceito seja assimilado por sua estrutura cognitiva, é necessário que a noção de aprendizagem apresentada pelos cognitivistas já esteja lá, como ponto de ancoragem. E esta nova noção de aprendizagem significativa, sendo assimilada, servirá de ponto de ancoragem para o conteúdo que se seguirá.

Os pontos de ancoragem

Os pontos de ancoragem são formados com a incorporação, à estrutura cognitiva, de elementos (informações ou idéias) relevantes para a aquisição de novos conhecimentos e com a organização destes, de forma a, progressivamente, generalizarem-se, formando conceitos. Por exemplo, crianças pequenas podem, inicialmente, ter contato com sementinhas, que, plantadas num canteiro, surgem como folhinhas; ter contato com animais, que geram novos animais; e ainda ter contato com as pedras e a areia da rua.

Estes contatos podem ser explorados até que as crianças tenham condições cognitivas de perceber as diferenças entre os seres e, assim, adquirir as noções de seres vivos — vegetais e animais — e seres inanimados. A partir da aquisição destas noções básicas, as crianças estarão aptas a aprender outros conteúdos e a diferenciar e categorizar os diferentes seres. Podemos, então, dizer que as noções de seres vivos e não-vivos são pontos de ancoragem para outros conhecimentos.

O exemplo acima poderá dar a impressão de que falamos de pontos de ancoragem apenas na aprendizagem realizada por crianças. Não, falamos de aprendizagem significativa e de pontos de ancoragem sempre que algum conteúdo novo deva ser aprendido. Assim, na disciplina de Física, com certeza seu professor trabalha inicialmente a noção de energia e/ou eletricidade, para desenvolver os outros conteúdos que supõem compreensão desses conceitos. [pg. 118]

E, indo um pouco mais além, podemos dizer que não estamos falando apenas da aprendizagem que se dá na escola. Pense em alguém que nunca tenha visto, nem ouvido falar do jogo de futebol, isto é, não tenha pontos de ancoragem para as informações que lhe chegam através da televisão na transmissão de uma partida. Com certeza, não entenderá nada ou, aos poucos, com base em informações que possua de outros jogos, começará a organizar as informações recebidas, vindo mesmo a entender o que se passa.

Uma teoria de Ensino: Bruner

A partir de concepções, como esta de Ausubel, sobre o processo de aprendizagem, alguns pesquisadores desenvolveram teorias sobre o ensino, procurando discutir e sistematizar o processo de organização das condições para a aprendizagem.

Entre esses teóricos, ressaltaremos a contribuição de Jerome Bruner.

Bruner concebeu o processo de aprendizagem como “captar as relações entre os fatos”, adquirindo novas informações, transformando-as e transferindo-as para novas situações. Partindo daí, ele formulou uma teoria de ensino.

O ensino, para Bruner, envolve a organização da matéria de maneira eficiente e significativa para o aprendiz. Assim, o professor deve
 preocupar-se não só com a extensão da matéria, mas, principalmente, com sua estrutura.

A estrutura da matéria

A aprendizagem, que deve ser sempre capaz de nos levar adiante, está na dependência de como se domina a estrutura da matéria estudada, isto é, a natureza geral do fenômeno; as idéias mais gerais, elementares e essenciais da matéria. Para se garantir este “ir adiante”, é necessário ainda o desenvolvimento de uma atitude de investigação.

Para se dar conta do primeiro aspecto (estrutura da matéria), Bruner propõe que os especialistas nas disciplinas auxiliem a estruturar o conteúdo de ensino a partir dos conceitos mais gerais e essenciais da matéria e, a partir daí, desenvolvam-no como uma espiral — sempre dos conceitos mais gerais para os particulares, aumentando gradativamente a complexidade das informações. Por exemplo, em Física é necessário começarmos pela noção de energia, em Psicologia pela noção da vida psíquica e em História pelas noções de Homem, Natureza e Cultura. [pg. 119]

Quanto à atitude de investigação, Bruner sugere que se utilize o método da descoberta como método básico do trabalho educacional. O aprendiz tem plenas condições de percorrer o caminho da descoberta científica, investigando, fazendo perguntas, experimentando e descobrindo.

O ensino, para Bruner, deve estar voltado para a compreensão. Compreensão das relações entre os fatos e entre as idéias, única forma de se garantir a transferência do conteúdo aprendido para novas situações. Este princípio geral norteia a proposta de Bruner até no que diz respeito ao trabalho com o erro do aprendiz. O erro deve ser instrutivo, diz Bruner. O professor deverá reconstituir com o aprendiz o caminho de seu raciocínio, para encontrar o momento do erro e, a partir daí, reconduzi-lo ao raciocínio correto.

Bruner ainda postula que “qualquer assunto pode ser ensinado com eficiência, de alguma forma intelectualmente honesta, a qualquer criança, em qualquer estágio de desenvolvimento”3. Para que isto seja possível, é necessário que o professor apresente a matéria à criança em termos da visualização que ela tem das coisas. Isto é, a criança poderá aprender qualquer coisa, se a linguagem do professor lhe for acessível e se seus conhecimentos anteriores lhe possibilitarem a compreensão do novo conteúdo. O trabalho do professor é um verdadeiro trabalho de tradução: da linguagem da ciência para a linguagem da criança. Para isto, Bruner propõe que o professor se utilize da teoria de Piaget, onde as possibilidades e limites da criança em cada fase do desenvolvimento estão claramente definidos. Bruner e Piaget podem auxiliar muito o professor na organização de seu ensino, mas será sempre necessário que o professor conheça a realidade de vida de seu aluno — sua classe social, suas experiências de vida, suas dificuldades, a realidade de sua família etc. — para que o programa possa ter algum significado e importância para ele; isto é, não basta conhecer teoricamente o educando, é preciso conhecê-lo concretamente.

Motivação

A motivação continua sendo um complexo tema para a Psicologia e, particularmente, para as teorias de aprendizagem e ensino.

Atribuímos à motivação tanto a facilidade quanto a dificuldade para aprender. Atribuímos às condições motivadoras o sucesso ou o fracasso dos professores ao tentar ensinar algo a seus alunos. E, [pg. 120] apesar de dificilmente detectarmos o motivo que subjaz a algum tipo de comportamento, sabemos que sempre há algum.

O estudo da motivação considera três tipos de variáveis:

  1. o ambiente;
  2. as forças internas ao indivíduo, como necessidade, desejo, vontade, interesse, impulso, instinto;
  3. o objeto que atrai o indivíduo por ser fonte de satisfação da força interna que o mobiliza.

A motivação é, portanto, o processo que mobiliza o organismo para a ação, a partir de uma relação estabelecida entre o ambiente, a necessidade e o objeto de satisfação. Isso significa que, na base da motivação, está sempre um organismo que apresenta uma necessidade, um desejo, uma intenção, um interesse, uma vontade ou uma predisposição para agir. Na motivação está também incluído o ambiente que estimula o organismo e que oferece o objeto de satisfação. E, por fim, na motivação está incluído o objeto que aparece como a possibilidade de satisfação da necessidade.

A gíria possui um termo bastante apropriado para a significação de motivação: “estar a fim”. Quando dizemos “estamos a fim de”, estamos expressando nossa motivação. E vejamos num exemplo: “Estou a fim de ler este livro todo” (esperamos que não seja um exemplo absurdo!) — o livro aparece como o elemento do ambiente que satisfará minha necessidade ou desejo de conhecer um pouco de Psicologia. O próprio ambiente, de alguma forma, gerou em mim este interesse, ou porque li outros livros que falavam do assunto, ou porque meu colega citou a Psicologia como uma ciência interessante, ou porque vi um psicólogo em um filme e me interessei. Ambiente — organismo — interesse ou necessidade — objeto de satisfação. Está montada a cadeia da motivação.

Retomando, podemos dizer que a motivação é um processo que relaciona necessidade, ambiente e objeto, e que predispõe o organismo para a ação em busca da satisfação da necessidade. E, quando esse objeto não é encontrado, falamos em frustração.

Motivação e o processo ensino-aprendizagem

A motivação está presente como processo em todas as esferas de nossa vida — no trabalho, no lazer, na escola.

A preocupação do ensino tem sido a de criar condições tais, que o aluno “fique a fim” de aprender. Sem dúvida, não é fácil, pois acabamos de dizer que precisa haver uma necessidade ou desejo, e o objeto precisa surgir como solução para a necessidade. [pg. 121] Duplo desafio: criar a necessidade e apresentar um objeto adequado para sua satisfação.

Resolver este problema é, sem dúvida, a tarefa mais difícil que o professor enfrenta. Consideraremos abaixo alguns pontos:

  1. uma possibilidade é que o trabalho educacional parta sempre das necessidades que o aluno já traz, introduzindo ou associando a elas outros conteúdos ou motivos;
  2. outra possibilidade, não excludente, é criar outros interesses no aluno.

E como podemos pensar em criar interesses?

  1. Propiciando a descoberta. Bruner é defensor desta proposta. O aluno deve ser desafiado, para que deseje saber, e uma forma de criar este interesse é dar a ele a possibilidade de descobrir.
  2. Desenvolver nos alunos uma atitude de investigação, uma atitude que garanta o desejo mais duradouro de saber, de querer saber sempre. Desejar saber deve passar a ser um estilo de vida. Essa atitude pode ser desenvolvida com atividades muito simples, que começam pelo incentivo à observação da realidade próxima ao aluno — sua vida cotidiana —, os objetos que fazem parte de seu mundo físico e social. Essas observações sistematizadas vão gerar dúvidas (por que as coisas são como são?) e aí é preciso investigar, descobrir.
  3. Falar ao aluno sempre numa linguagem acessível, de fácil compreensão.
  4. Os exercícios e tarefas deverão ter um grau adequado de complexidade. Tarefas muito difíceis, que geram fracasso, e tarefas fáceis, que não desafiam, levam à perda do interesse. O aluno não “fica a fim”.
  5. Compreender a utilidade do que se está aprendendo é também fundamental. Não é difícil para o professor estar sempre retomando em suas aulas a importância e utilidade que o conhecimento tem e poderá ter para o aluno. Somos sempre “a fim” de aprender coisas que são úteis e têm sentido para nossa vida. [pg. 122]

Teorias atuais

As teorias de Vigotski e Piaget (que embasaram a produção de Emília Ferreiro) são, hoje, referência na questão da aprendizagem e, o mais interessante, é que essas duas teorias são muito antigas na Psicologia.

Vigostki

Este autor produziu toda a sua obra no início do nosso século, pois morreu cedo, deixando aos colegas de trabalho a tarefa de completar sua teoria. Hoje, 60 anos depois de sua morte, o autor volta à tona com o merecido reconhecimento pela sua contribuição à Educação e a Psicologia.
Na década de 20 e início dos anos 30, Vigotski dedicou-se à construção da crítica à noção de que se poderia construir conhecimento sobre as funções psicológicas superiores humanas a partir de experiências com animais. Ele criticou, também, as concepções que afirmavam serem as propriedades intelectuais dos homens resultado da maturação do organismo, como se o desenvolvimento estivesse predeterminado e, o seu afloramento, vinculado apenas a uma questão de tempo. Vigotski buscou as origens sociais destas capacidades humanas. Além disso, via o pensamento marxista como uma fonte científica de grande valor para a solução dos paradoxos científicos fundamentais que incomodavam a Psicologia no início do século.

 Alguns pontos da concepção de Vigotski valem a pena ser sistematizados aqui (para complementar, faça a leitura do capítulo 7):

  • Os fenômenos devem ser estudados em movimento e compreendidos como em permanente transformação. Na Psicologia, isso significa estudar o fenômeno psicológico em sua origem e no curso de seu desenvolvimento.
  • A história dos fenômenos é caracterizada por mudanças qualitativas e quantitativas. Assim, o fenômeno psicológico transforma-se no decorrer da história da humanidade, e processos elementares tornam-se complexos.
  • As mudanças na “natureza do homem” são produzidas por mudanças na vida material e na sociedade.
  • O sistema de signos (a linguagem, a escrita, o sistema de números) é pensado como um sistema de instrumentos, os quais foram criados pela sociedade, ao longo de sua história. Esse sistema muda a forma social e o nível de desenvolvimento cultural da [pg. 123] humanidade. A internalização desses signos provoca mudanças no homem. Seguindo a tradição marxista, Vigotski considera que as mudanças que ocorrem em cada um de nós têm sua raiz na sociedade e na cultura.

Vigotski tem parte de sua obra dedicada às questões escolares e é por isso que, neste capítulo, vamos reunir algumas considerações importantes feitas por ele e que podem contribuir para olharmos os chamados “problemas de aprendizagem” sob uma nova perspectiva: a das relações sociais que caracterizam o processo de ensino- aprendizagem.

Para Vigotski, a aprendizagem sempre inclui relações entre as pessoas. A relação do indivíduo com o mundo está sempre mediada pelo outro. Não há como aprender e apreender o mundo se não tivermos o outro, aquele que nos fornece os significados que permitem pensar o mundo a nossa volta. Veja bem, Vigotski defende a idéia de que não há um desenvolvimento pronto e previsto dentro de nós que vai se atualizando conforme o tempo passa ou recebemos influência externa. O desenvolvimento não é pensado como algo natural nem mesmo como produto exclusivo da maturação do organismo, mas como um processo em que estão presentes a maturação do organismo, o contato com a cultura produzida pela humanidade e as relações sociais que permitem a aprendizagem. E aí aparece o “outro” como alguém fundamental, pois este outro é quem nos orienta no processo de apropriação da cultura.

Para Vigotski, o desenvolvimento é um processo que se dá de fora para dentro. É no processo de ensino-aprendizagem que ocorre a apropriação da cultura e o conseqüente desenvolvimento do indivíduo.

A aprendizagem da criança inicia-se muito antes de sua entrada na escola, isto porque desde o primeiro dia de vida, ela já está exposta aos elementos da cultura e à presença do outro, que se torna o mediador entre ela e a cultura. A criança vai aprendendo a falar e a gesticular, a nomear objetos, a adquirir informações a respeito do mundo que a rodeia, a manusear objetos da cultura; ela vai se comportando de acordo com as necessidades e as possibilidades. Em todas essas atividades está o “outro”. Parceiro de todas as horas, é ele que lhe diz o nome das coisas, a forma certa de se comportar; é ele que lhe explica o mundo, que lhe responde aos “porquês”, enfim, é o seu grande intérprete do mundo. São esses elementos apropriados do mundo exterior que possibilitam o desenvolvimento do organismo e a aquisição das capacidades superiores que caracterizam o psiquismo humano.

A escola surgirá, então, como lugar privilegiado para este desenvolvimento, pois é o espaço em que o contato com a cultura é [pg. 124] feito de forma sistemática, intencional e planejada. O desenvolvimento — que só ocorre quando situações de aprendizagem o provocam — tem seu ritmo acelerado no ambiente escolar. O professor e os colegas formam um conjunto de mediadores da cultura que possibilita um grande avanço no desenvolvimento da criança.

A criança não possui instrumentos endógenos para o seu desenvolvimento. Os mecanismos de desenvolvimento são dependentes dos processos de aprendizagem, estes, sim, responsáveis pela emergência de características psicológicas tipicamente humanas, que transcendem à programação biológica da espécie. O contato e o aprendizado da escrita e das operações matemáticas fornecem a base para o desenvolvimento de processos internos altamente complexos no pensamento da criança. O aprendizado, quando adequadamente organizado, resulta em desenvolvimento mental, pondo em movimento processos que seriam impossíveis de acontecer. Esses princípios diferenciam-se de visões que pensam o desenvolvimento como um processo que antecede à aprendizagem, ou como um processo já completo, que a viabiliza.

A partir destas concepções, Vigotski construiu o conceito de zona de desenvolvimento proximal, referindo-se às potencialidades da criança que podem ser desenvolvidas a partir do ensino sistemático. A zona de desenvolvimento proximal é a distância entre o nível de desenvolvimento real, que se costuma determinar através da solução independente de problemas pela criança, e o nível de desenvolvimento potencial, determinado pela solução de problemas sob a orientação de um adulto ou em colaboração com companheiros. Este conceito é importante porque nos possibilita delinear o futuro imediato da criança e seu estado dinâmico de desenvolvimento. Além disso, permite ao professor olhar seu educando de outra perspectiva, bem como o trabalho conjunto entre colegas. Aliás, Vigotski acreditava que a noção de zona de desenvolvimento proximal já estava presente no bom senso do professor, quando este planejava seu trabalho.

Assim, Vigotski insistia na importância de a Educação pensar o desenvolvimento da criança de forma prospectiva, e não retrospectiva, como era feito. Sua crítica foi contundente. Segundo Vigotski, a escola pensa a criança e planeja o ensino de forma retrospectiva por considerar, como condição para a aprendizagem, o nível de desenvolvimento já conquistado pela criança. No seu entender, a escola deveria inverter esse raciocínio e pensar o ensino das possibilidades que o aprendizado já obtido traz. O bom ensino é aquele que se volta para as funções psicológicas emergentes, potenciais, e pode ser facilmente estimulado pelo contato com os colegas que já aprenderam determinado conteúdo. [pg. 125]

A aprendizagem é, portanto, um processo essencialmente social, que ocorre na interação com os adultos e os colegas. O desenvolvimento é resultado desse processo, e a escola, o lugar privilegiado para essa estimulação. A Educação passa, então, a ser vista como processo social sistemático de construção da humanidade.

Sintetizando, poderíamos dizer que, para Vigotski, as relações entre aprendizagem e desenvolvimento são indissociáveis. O indivíduo, imerso em um contexto cultural, tem seu desenvolvimento movido por mecanismos de aprendizagem acionados externamente. A matéria-prima deste desenvolvimento encontra-se, fundamentalmente, no mundo externo, nos instrumentos culturais construídos pela humanidade. Assim, o homem, ao buscar respostas para as necessidades de seu tempo histórico, cria, junto com outros homens, instrumentos que consolidam o desenvolvimento psicológico e fisiológico obtido até então. Os homens de outra geração, ao manusearem estes instrumentos, apropriam-se do desenvolvimento ali consolidado. Eles aprendem e se desenvolvem ao mesmo tempo, adquirindo possibilidades de responder a novas necessidades com a construção de novos instrumentos. E assim caminha a humanidade...

A partir destas concepções de Vigotski, a escola torna-se um novo lugar — um espaço que deve privilegiar o contato social entre seus membros e torná-los mediadores da cultura. Alunos e professores devem ser considerados parceiros nesta tarefa social. O aluno jamais poderá ser visto como alguém que não aprende, possuidor de algo interno que lhe dificulta a aprendizagem. O desafio está colocado. Todos são responsáveis no processo. Não há aprendizagem que não gere desenvolvimento; não há desenvolvimento que prescinda da aprendizagem. Aprender é estar com o outro, que é mediador da cultura.

Qualquer dificuldade neste processo deverá ser analisada como uma responsabilidade de todos os envolvidos. O professor torna-se figura fundamental; o colega de classe, um parceiro importante; o planejamento das atividades torna-se tarefa essencial e a escola, o lugar de construção humana.

Jean Piaget

Produziu uma extensa obra entre 1918 e 1980. Procurou explicar o aparecimento de inovações, mudanças e transformações no percurso do desenvolvimento intelectual, assim como dos mecanismos responsáveis por estas transformações. Por tais [pg. 126] atributos, sua teoria é classificada como construtivista. Este caráter da obra de Piaget torna-se marcante a partir da década de 70, quando passa a trabalhar, exclusivamente, com investigações sobre os mecanismos de transição que explicam a evolução do desenvolvimento cognitivo. Para Piaget, a formação das operações cognitivas no homem está subordinada a um processo geral de equilibração para o qual tende o desenvolvimento cognitivo, como um todo.

É preciso lembrar que, naquela época, as teorias associacionistas e empiristas enfatizavam o papel da experiência com os estímulos do ambiente. Sem deixar de reconhecer este papel, Piaget assentou, em sua obra, a existência de uma organização própria dos sujeitos da experiência sensível, organização que submete os estímulos do meio à atividade interna do sujeito.

O homem, dotado de estruturas biológicas, herda uma forma de funcionamento intelectual, ou seja, uma maneira de interagir com o ambiente que o leva à construção de um conjunto de significados. A interação deste sujeito com o ambiente permitirá a organização desses significados em estruturas cognitivas. Durante a vida, serão vários os modos de organização dos significados, marcando, assim, diferentes estágios de desenvolvimento. A cada estágio corresponderá um tipo de estrutura cognitiva que permitirá formas diferentes de interação com o meio. São as diferentes estruturas cognitivas que permitem prever o que se pode conhecer naquele momento da evolução.

Piaget utilizou, para a construção de suas idéias, o modelo biológico: o homem é guiado pela busca do equilíbrio entre as necessidades biológicas fundamentais de sobrevivência e as agressões ou restrições colocadas pelo meio para a satisfação destas necessidades. Nesta relação, a organização — enquanto capacidade do indivíduo de condutas seletivas — é o mecanismo que permite ao homem ter condutas eficientes para atender às suas necessidades, isto é, à sua demanda de adaptação.

A adaptação — que envolve a assimilação e a acomodação numa relação indissociável — é o mecanismo que permite ao homem não só transformar os elementos assimilados, tornando-os parte da estrutura do organismo, como possibilitar o ajuste e a acomodação deste organismo aos elementos incorporados.

Neste sentido, a inteligência é uma adaptação — é assimilação, pois incorpora dados da experiência do indivíduo e, ao mesmo tempo, acomodação, uma vez que o sujeito modifica suas estruturas mentais para incorporar os novos elementos da experiência. [pg. 127]

O desenvolvimento intelectual resulta da construção de um equilíbrio progressivo entre assimilação e acomodação, o que propicia o aparecimento de novas estruturas mentais. Isso é um processo em evolução.

No decorrer de sua evolução, a inteligência apresenta formas diversas (estágios) e essas formas vão caracterizando as possibilidades de relação com seu meio ambiente. Assim, o homem aprende o mundo de maneira diversa a cada momento de seu desenvolvimento.

Piaget não desenvolveu uma teoria do processo de ensino-aprendizagem, mas formulou referências claras que, na década de 80, seriam utilizadas por Emília Ferreiro na elaboração da sua teoria sobre a aprendizagem da escrita. Piaget, na verdade, foi e é referência para muitos teóricos na Psicologia, mas dada a importância atual do trabalho de Ferreiro, vamos destacá-lo aqui.

Emília Ferreiro

Esta autora tem suas idéias publicadas a partir dos anos 80. Argentina de nascimento, psicopedagoga de formação, doutorou-se em Genebra, orientada por Jean Piaget. Na década de 80, estabeleceu-se na cidade do México, onde vem trabalhando até hoje. Seus trabalhos de pesquisa demonstram uma preocupação em integrar os objetivos científicos a um compromisso com a realidade social e cultural da América Latina. Suas análises sobre o fracasso escolar das populações marginalizadas — atribuído a um problema social — demonstram este compromisso. Ferreiro contribuiu significativamente para a compreensão do processo de aprendizagem, demonstrando a existência de mecanismos no sujeito que aprende, mecanismos estes que surgem da interação com a linguagem escrita, e que emergem de uma forma muito particular em cada um dos sujeitos. Assim, as crianças interpretam o ensino que recebem, transformando a escrita convencional e produzindo escritas estranhas ao adulto. São, na verdade, do ponto de vista de Ferreiro, aplicações de esquemas de assimilação ao objeto de aprendizagem; são formas de interpretar e compreender o mundo das coisas. [pg. 128]

Para Ferreiro, existe um sujeito que conhece e que, para conhecer, emprega mecanismos de aprendizagem. Há, na sua concepção, um papel ativo do sujeito na interação com os objetos da realidade. Dessa forma, o que a criança aprende não corresponde ao que lhe é ensinado, pois existe um espaço aberto de elaboração do sujeito. O educador deve estar atento a esses processos para promover, adequadamente, a aprendizagem.

Além disso, Ferreiro entende que a aprendizagem da escrita tem um caráter evolutivo, no qual é relativamente tardia a descoberta de que a escrita representa a fala, não sendo necessário que se estabeleça, de início, a associação entre letras e sons. Outro aspecto importante nesta evolução refere-se ao aspecto conceitual da escrita. Para que as crianças possam descobrir o caráter simbólico da escrita, é preciso oferecer-lhes situações em que a escrita se torne objeto de seu pensamento. Este aprendizado é considerado fundamental, ao lado de outras habilidades que as concepções tradicionais já foram capazes de apontar, como as relacionadas à percepção e à motricidade.

Ferreiro valoriza, assim, as histórias ouvidas e contadas pelas crianças (que devem ser escritas pelo professor), bem como as tentativas de escrever seus nomes ou bilhetes. Essas atividades assumem grande importância no processo, pois são geradoras de espaço para a descoberta dos usos sociais da linguagem — que se escreve. É importante colocar a criança em situações de aprendizagem, em que possa utilizar suas próprias elaborações sobre a linguagem, sem que se exija dela ainda o domínio das técnicas e convenções da norma culta. O objetivo de Ferreiro é integrar o conhecimento espontâneo da criança ao ensino, dando-lhe maior significado.

A noção do caráter evolutivo da escrita também pode ser bem aproveitada para eliminar o caráter patológico de algumas expressões infantis. Saber, por exemplo, que os primeiros registros da sílaba são feitos com apenas uma letra, à qual se agregarão outras, posteriormente, levou Ferreiro à interpretação de que estes são fatos naturais do percurso, ou seja, são erros naturais e necessários à construção da aprendizagem.
Emília Ferreiro trouxe, assim, grande contribuição ao processo de alfabetização, indicando a necessidade de conhecer o processo de aprendizagem em todas as suas formas evolutivas. “Despatologizou” os erros comuns entre as crianças; valorizou a participação delas no processo de ensino-aprendizagem; apropriou-se das atividades infantis como formas de ensino; enfim, Emília Ferreiro revolucionou a forma de se conceber e trabalhar na alfabetização de crianças. [pg. 129]

Psicologia - Psicologia Escolar e Educacional
7/15/2021 5:29:35 PM | Por Ana Mercês Bahia Bock
O Desenvolvimento Humano

Esta área de conhecimento da Psicologia estuda o desenvolvimento do ser humano em todos os seus aspectos: físico-motor, intelectual, afetivo-emocional e social — desde o nascimento até a idade adulta, isto é, a idade em que todos estes aspectos atingem o seu mais completo grau de maturidade e estabilidade. Existem várias teorias do desenvolvimento humano em Psicologia. Elas foram construídas a partir de observações, pesquisas com grupos de indivíduos em diferentes faixas etárias ou em diferentes culturas, estudos de casos clínicos, acompanhamento de indivíduos desde o nascimento até a idade adulta. Dentre essas teorias, destaca-se a do psicólogo e biólogo suíço Jean Piaget (1896-1980), pela sua produção contínua de pesquisas, pelo rigor científico de sua produção teórica e pelas implicações práticas de sua teoria, principalmente no campo da Educação.

O desenvolvimento humano

O desenvolvimento humano refere-se ao desenvolvimento mental e ao crescimento orgânico. O desenvolvimento mental é uma construção contínua, que se caracteriza pelo aparecimento gradativo de estruturas mentais. Estas são formas de organização da atividade mental que se vão aperfeiçoando e solidificando até o momento em que todas elas, estando plenamente desenvolvidas, caracterizarão um estado de equilíbrio superior quanto aos aspectos da inteligência, vida afetiva e relações sociais.

Algumas dessas estruturas mentais permanecem ao longo de toda a vida. Por exemplo, a motivação está sempre presente como desencadeadora da ação, seja por necessidades fisiológicas, seja por necessidades afetivas ou intelectuais. Essas estruturas mentais que permanecem garantem a continuidade do desenvolvimento. Outras estruturas são substituídas a cada nova fase da vida do indivíduo. Por exemplo, a moral da obediência da criança pequena é substituída pela autonomia moral do adolescente ou, outro exemplo, a noção de que o objeto existe só quando a criança o vê (antes dos 2 anos) é substituída, posteriormente, pela capacidade de atribuir ao objeto sua conservação, mesmo quando ele não está presente no seu campo visual.

A Importância do estudo do desenvolvimento humano

A criança não é um adulto em miniatura. Ao contrário, apresenta características próprias de sua idade. Compreender isso é compreender a importância do estudo do desenvolvimento humano. Estudos e pesquisas de Piaget demonstraram que existem formas de perceber, compreender e se comportar diante do mundo, próprias de cada faixa etária, isto é, existe uma assimilação progressiva do meio ambiente, que implica uma acomodação das estruturas mentais a este novo dado do mundo exterior.

Estudar o desenvolvimento humano significa conhecer as características comuns de uma faixa etária, permitindo-nos reconhecer as individualidades, o que nos torna mais aptos para a observação e interpretação dos comportamentos.

Todos esses aspectos levantados têm importância para a Educação. Planejar o que e como ensinar implica saber quem é o educando. Por exemplo, a linguagem que usamos com a criança de 4 anos não é a mesma que usamos com um jovem de 14 anos.

E, finalmente, estudar o desenvolvimento humano significa descobrir que ele é determinado pela interação de vários fatores.

Os fatores que influenciam o desenvolvimento humano

Vários fatores indissociados e em permanente interação afetam todos os aspectos do desenvolvimento. São eles

Hereditariedade — a carga genética estabelece o potencial do indivíduo, que pode ou não desenvolver-se. Existem pesquisas que comprovam os aspectos genéticos da inteligência. No entanto, a inteligência pode desenvolver-se aquém ou além do seu potencial, dependendo das condições do meio que encontra.

Crescimento orgânico — refere-se ao aspecto físico. O aumento de altura e a estabilização do esqueleto permitem ao indivíduo comportamentos e um domínio do mundo que antes não existiam. Pense nas possibilidades de descobertas de uma criança, quando começa a engatinhar e depois a andar, em relação a quando esta criança estava no berço com alguns dias de vida.

Maturação neurofisiológica — é o que torna possível determinado padrão de comportamento. A alfabetização das crianças, por exemplo, depende dessa maturação. Para segurar o lápis e manejá-lo como nós, é necessário um desenvolvimento neurológico que a criança de 2, 3 anos não tem. Observe como ela segura o lápis. 

Meio — o conjunto de influências e estimulações ambientais altera os padrões de comportamento do indivíduo. Por exemplo, se a estimulação verbal for muito intensa, uma criança de 3 anos pode ter um repertório verbal muito maior do que a média das crianças de sua idade, mas, ao mesmo tempo, pode não subir e descer com facilidade uma escada, porque esta situação pode não ter feito parte de sua experiência de vida.

Aspectos do desenvolvimento humano

O desenvolvimento humano deve ser entendido como uma globalidade, mas, para efeito de estudo, tem sido abordado a partir de quatro aspectos básicos:

Aspecto físico-motor — refere-se ao crescimento orgânico, à maturação neurofisiológica, à capacidade de manipulação de objetos e de exercício do próprio corpo. Exemplo: a criança leva a Chupeta à boca ou consegue tomar a mamadeira sozinha, por volta dos 7 meses, porque já coordena os movimentos das mãos

Aspecto intelectual — é a capacidade de pensamento, raciocínio. Por exemplo, a criança de 2 anos que usa um cabo de vassoura para puxar um brinquedo que está embaixo de um móvel ou o jovem que planeja seus gastos a partir de sua mesada ou salário.

Aspecto afetivo-emocional — é o modo particular de o indivíduo integrar as suas experiências. É o sentir. A sexualidade faz parte desse aspecto. Exemplos: a vergonha que sentimos em algumas situações, o medo em outras, a alegria de rever um amigo querido.

Aspecto social — é a maneira como o indivíduo reage diante das situações que envolvem outras pessoas. Por exemplo, em um grupo de crianças, no parque, é possível observar algumas que espontaneamente buscam outras para brincar, e algumas que permanecem sozinhas.

Se analisarmos melhor cada um desses exemplos, vamos descobrir que todos os outros aspectos estão presentes em cada um dos casos. E é sempre assim. Não é possível encontrar um exemplo “puro”, porque todos estes aspectos relacionam-se permanentemente. Por exemplo, uma criança tem dificuldades de aprendizagem, repete o ano, vai-se tornando cada vez mais “tímida” ou “agressiva”, com poucos amigos e, um dia, descobre-se que as dificuldades tinham origem em uma deficiência auditiva. Quando isso é corrigido, todo o quadro reverte-se. A história pode, também, não ter um final feliz, se os danos forem graves.

Todas as teorias do desenvolvimento humano partem do pressuposto de que esses quatro aspectos são indissociados, mas elas podem enfatizar aspectos diferentes, isto é, estudar o desenvolvimento global a partir da ênfase em um dos aspectos. A Psicanálise, por exemplo, estuda o desenvolvimento a partir do aspecto afetivo-emocional, isto é, do desenvolvimento da sexualidade. Jean Piaget enfatiza o desenvolvimento intelectual.

A teoria do desenvolvimento humano de Jean Piaget

Este autor divide os períodos do desenvolvimento humano de acordo com o aparecimento de novas qualidades do pensamento, o que, por sua vez, interfere no desenvolvimento global.

1°  período:  Sensório-motor (0 a 2 anos);

2°  período:  Pré-operatório (2 a 7 anos);

3°  período: Operações concretas (7 a 11 ou 12 anos);

4°  período: Operações formais (11 ou 12 anos em diante)

Segundo Piaget, cada período é caracterizado por aquilo que de melhor o indivíduo consegue fazer nessas faixas etárias. Todos os indivíduos passam por todas essas fases ou períodos, nessa seqüência, porém o início e o término de cada uma delas dependem das características biológicas do indivíduo e de fatores educacionais, sociais. Portanto, a divisão nessas faixas etárias é uma referência, e não uma norma rígida.

Período sensório-motor

(o recém-nascido e o lactente — 0 a 2 anos)

Neste período, a criança conquista, através da percepção e dos movimentos, todo o universo que a cerca.

No recém-nascido, a vida mental reduz-se ao exercício dos aparelhos reflexos, de fundo hereditário, como a sucção. Esses reflexos melhoram com o treino. Por exemplo, o bebê mama melhor no 10° dia de vida do que no 2° dia. Por volta dos cinco meses, a criança consegue coordenar os movimentos das mãos e olhos e pegar objetos, aumentando sua capacidade de adquirir hábitos novos.

No final do período, a criança é capaz de usar um instrumento como meio para atingir um objeto. Por exemplo, descobre que, se puxar a toalha, a lata de bolacha ficará mais perto dela. Neste caso, ela utiliza a inteligência prática ou sensório-motora, que envolve as percepções e os movimentos.

Neste período, fica evidente que o desenvolvimento físico-acelerado é o suporte para o aparecimento de novas habilidades. Isto é, o desenvolvimento ósseo, muscular e neurológico permite a emergência de novos comportamentos, como sentar-se, andar, o que propiciará um domínio maior do ambiente.

Ao longo deste período, irá ocorrer na criança uma diferenciação progressiva entre o seu eu e o mundo exterior. Se no início o mundo era uma continuação do próprio corpo, os progressos da inteligência levam-na a situar-se como um elemento entre outros no mundo. Isso permite que a criança, por volta de 1 ano, admita que um objeto continue a existir mesmo quando ela não o percebe, isto é, o objeto não está presente no seu campo visual, mas ela continua a procurar ou a pedir o brinquedo que perdeu, porque sabe que ele continua a existir.

Esta diferenciação também ocorre no aspecto afetivo, pois o bebê passa das emoções primárias (os primeiros medos, quando, por exemplo, ele se enrijece ao ouvir um barulho muito forte) para uma escolha afetiva de objetos (no final do período), quando já manifesta preferências por brinquedos, objetos, pessoas etc.

No curto espaço de tempo deste período, por volta de 2 anos, a criança evolui de uma atitude passiva em relação ao ambiente e pessoas de seu mundo para uma atitude ativa e participativa. Sua integração no ambiente dá-se, também, pela imitação das regras. E, embora compreenda algumas palavras, mesmo no final do período só é capaz de fala imitativa.

Período pré-operatório

(a 1a infância — 2 a 7 anos)

Neste período, o que de mais importante acontece é o aparecimento da linguagem, que irá acarretar modificações nos aspectos intelectual, afetivo e social da criança.

A interação e a comunicação entre os indivíduos são, sem dúvida, as conseqüências mais evidentes da linguagem. Com a palavra, há possibilidade de exteriorização da vida interior e, portanto, a possibilidade de corrigir ações futuras. A criança já antecipa o que vai fazer.

Como decorrência do aparecimento da linguagem, o desenvolvimento do pensamento se acelera. No início do período, ele exclui toda a objetividade, a criança transforma o real em função dos seus desejos e fantasias (jogo simbólico); posteriormente, utiliza-o como referencial para explicar o mundo real, a sua própria atividade, seu eu e suas leis morais; e, no final do período, passa a procurar a razão causal e finalista de tudo (é a fase dos famosos “porquês”). E um pensamento mais adaptado ao outro e ao real.

Como várias novas capacidades surgem, muitas vezes ocorre a superestimação da capacidade da criança neste período. É importante ter claro que grande parte do seu repertório verbal é usada de forma imitativa, sem que ela domine o significado das palavras; ela tem dificuldades de reconhecer a ordem em que mais de dois ou três eventos ocorrem e não possui o conceito de número. Por ainda estar centrada em si mesma, ocorre uma primazia do próprio ponto de vista, o que torna impossível o trabalho em grupo. Esta dificuldade mantém-se ao longo do período, na medida em que a criança não consegue colocar-se do ponto de vista do outro.

No aspecto afetivo, surgem os sentimentos interindividuais, sendo que um dos mais relevantes é o respeito que a criança nutre pelos indivíduos que julga superiores a ela. Por exemplo, em relação aos pais, aos professores. É um misto de amor e temor. Seus sentimentos morais refletem esta relação com os adultos significativos — a moral da obediência —, em que o critério de bem e mal é a vontade dos adultos. Com relação às regras, mesmo nas brincadeiras, concebe-as como imutáveis e determinadas externamente. Mais tarde, adquire uma noção mais elaborada da regra, concebendo-a como necessária para organizar o brinquedo, porém não a discute.

Com o domínio ampliado do mundo, seu interesse pelas diferentes atividades e objetos se multiplica, diferencia e regulariza, isto é, torna-se estável, sendo que, a partir desse interesse, surge uma escala de valores própria da criança. E a criança passa a avaliar suas próprias ações a partir dessa escala.

É importante, ainda, considerar que, neste período, a maturação neurofisiológica completa-se, permitindo o desenvolvimento de novas habilidades, como a coordenação motora fina — pegar pequenos objetos com as pontas dos dedos, segurar o lápis corretamente e conseguir fazer os delicados movimentos exigidos pela escrita.

Período das operações concretas

(a infância propriamente dita — 7 a 11 ou 12 anos)

O desenvolvimento mental caracterizado no anterior pelo egocentrismo intelectual e social é superado neste período pelo início da construção lógica, isto é, a capacidade da criança de estabelecer relações que permitam a coordenação de pontos de vista diferentes. Estes pontos de vista podem referir-se a pessoas diferentes ou à própria criança, que “vê” um objeto ou situação com aspectos diferentes e, mesmo, conflitantes. Ela consegue coordenar estes pontos de vista e integrá-los de modo lógico e coerente. No plano afetivo, isto significa que ela será capaz de cooperar com os outros, de trabalhar em grupo e, ao mesmo tempo, de ter autonomia pessoal.

O que possibilitará isto, no plano intelectual, é o surgimento de uma nova capacidade mental da criança: as operações, isto é, ela consegue realizar uma ação física ou mental dirigida para um fim (objetivo) e revertê-la para o seu início. Num jogo de quebra-cabeça, próprio para a idade, ela consegue, na metade do jogo, descobrir um erro, desmanchar uma parte e recomeçar de onde corrigiu, terminando-o. As operações sempre se referem a objetos concretos presentes ou já experienciados.

Outra característica deste período é que a criança consegue exercer suas habilidades e capacidades a partir de objetos reais, concretos. Portanto, mesmo a capacidade de reflexão que se inicia, isto é, pensar antes de agir, considerar os vários pontos de vista simultaneamente, recuperar o passado e antecipar o futuro, se exerce a partir de situações presentes ou passadas, vivenciadas pela criança.

Em nível de pensamento, a criança consegue:

  • estabelecer corretamente as relações de causa e efeito e de meio e fim;
  • seqüenciar idéias ou eventos;
  • trabalhar com idéias sob dois pontos de vista, simultaneamente;
  • formar o conceito de número (no início do período, sua noção de número está vinculada a uma correspondência com o objeto concreto).

A noção de conservação da substância do objeto (comprimento e quantidade) surge no início do período; por volta dos 9 anos, surge a noção de conservação de peso; e, ao final do período, a noção de conservação do volume.

No aspecto afetivo, ocorre o aparecimento da vontade como qualidade superior e que atua quando há conflitos de tendências ou intenções (entre o dever e o prazer, por exemplo). A criança adquire uma autonomia crescente em relação ao adulto, passando a organizar seus próprios valores morais. Os novos sentimentos morais, característicos deste período, são: o respeito mútuo, a honestidade, o companheirismo e a justiça, que considera a intenção na ação. Por exemplo, se a criança quebra o vaso da mãe, ela acha que não deve ser punida se isto ocorreu acidentalmente. O grupo de colegas satisfaz, progressivamente, as necessidades de segurança e afeto.

Nesse sentido, o sentimento de pertencer ao grupo de colegas torna-se cada vez mais forte. As crianças escolhem seus amigos, indistintamente, entre meninos e meninas, sendo que, no final do período, a grupalização com o sexo oposto diminui.

Este fortalecimento do grupo traz a seguinte implicação: a criança, que no início do período ainda considerava bastante as opiniões e idéias dos adultos, no final passa a “enfrentá-los”.

A cooperação é uma capacidade que vai-se desenvolvendo ao longo deste período e será um facilitador do trabalho em grupo, que se torna cada vez mais absorvente para a criança. Elas passam a elaborar formas próprias de organização grupal, em que as regras e normas são concebidas como válidas e verdadeiras, desde que todos as adotem e sejam a expressão de uma vontade de todos. Portanto, novas regras podem surgir, a partir da necessidade e de um “contrato” entre as crianças. 

Período das operações formais

(a adolescência — 11 ou 12 anos em diante)

Neste período, ocorre a passagem do pensamento concreto para o pensamento formal, abstrato, isto é, o adolescente realiza as operações no plano das idéias, sem necessitar de manipulação ou referências concretas, como no período anterior. É capaz de lidar cora conceitos como liberdade, justiça etc. O adolescente domina, progressivamente, a capacidade de abstrair e generalizar, cria teorias sobre o mundo, principalmente sobre aspectos que gostaria de reformular. Isso é possível graças à capacidade de reflexão espontânea que, cada vez mais descolada do real, é capaz de tirar conclusões de puras hipóteses.

O livre exercício da reflexão permite ao adolescente, inicialmente, “submeter” o mundo real aos sistemas e teorias que o seu pensamento é capaz de criar. Isto vai-se atenuando de forma crescente, através da reconciliação do pensamento com a realidade, até ficar claro que a função da reflexão não é contradizer, mas se adiantar e interpretar a experiência.

Do ponto de vista de suas relações sociais, também ocorre o processo de caracterizar-se, inicialmente, por uma fase de interiorização, em que, aparentemente, é anti-social. Ele se afasta da família, não aceita conselhos dos adultos; mas, na realidade, o alvo de sua reflexão é a sociedade, sempre analisada como passível de ser reformada e transformada. Posteriormente, atinge o equilíbrio entre pensamento e realidade, quando compreende a importância da reflexão para a sua ação sobre o mundo real. Por exemplo, no início do período, o adolescente que tem dificuldades na disciplina de Matemática pode propor sua retirada do currículo e, posteriormente, pode propor soluções mais viáveis e adequadas, que considerem as exigências sociais.

No aspecto afetivo, o adolescente vive conflitos. Deseja libertar-se do adulto, mas ainda depende dele. Deseja ser aceito pelos amigos e pelos adultos. O grupo de amigos é um importante referencial para o jovem, determinando o vocabulário, as vestimentas e outros aspectos de seu comportamento. Começa a estabelecer sua moral individual, que é referenciada à moral do grupo.

Os interesses do adolescente são diversos e mutáveis, sendo que a estabilidade chega com a proximidade da idade adulta.

Juventude: projeto de vida

Conforme Piaget, a personalidade começa a se formar no final da infância, entre 8 e 12 anos, com a organização autônoma das regras, dos valores, a afirmação da vontade. Esses aspectos subordinam-se num sistema único e pessoal e vão-se exteriorizar na construção de um projeto de vida. Esse projeto é que vai nortear o indivíduo em sua adaptação ativa à realidade, que ocorre através de sua inserção no mundo do trabalho ou na preparação para ele, quando ocorre um equilíbrio entre o real e os ideais do indivíduo, isto é, de revolucionário no plano das idéias, ele se torna transformador, no plano da ação.

É importante lembrar que na nossa cultura, em determinadas classes sociais que “protegem” a infância e a juventude, a prorrogação do período da adolescência é cada vez maior, caracterizando-se por uma dependência em relação aos pais e uma postergação do período em que o indivíduo vai se tornar socialmente produtivo e, portanto, entrará na idade adulta.

Na idade adulta não surge nenhuma nova estrutura mental, e o indivíduo caminha então para um aumento gradual do desenvolvimento cognitivo, em profundidade, e uma maior compreensão dos problemas e das realidades significativas que o atingem. Isto influencia os conteúdos afetivo-emocionais e sua forma de estar no mundo.

O enfoque interacionista do desenvolvimento humano: Vigotski

Ao falarmos de desenvolvimento humano, hoje, não podemos deixar de citar o autor soviético Vigotski. Lev Semenovich Vigotski nasceu em 1896, na Belarus, e faleceu prematuramente aos 37 anos de idade. Vigotski foi um dos teóricos que buscou uma alternativa dentro do materialismo dialético para o conflito entre as concepções idealista e mecanicista na Psicologia. Ao lado de Luria e Leontiev, construiu propostas teóricas inovadoras sobre temas como relação pensamento e linguagem, natureza do processo de desenvolvimento da criança e o papel da instrução no desenvolvimento.

Vigotski foi ignorado no Ocidente, e mesmo na ex-União Soviética a publicação de suas obras foi suspensa entre 1936 e 1956. Atualmente,  no entanto, seu trabalho vem sendo estudado e valorizado no mundo todo.

Um pressuposto básico da obra de Vigotski é que as origens das formas superiores de comportamento consciente — pensamento, memória, atenção voluntária etc. —, formas essas que diferenciam o homem dos outros animais, devem ser achadas nas relações sociais que o homem mantém. Mas Vigotski não via o homem como um ser passivo, conseqüência dessas relações. Entendia o homem como ser ativo, que age sobre o mundo, sempre em relações sociais, e transforma essas ações para que constituam o funcionamento de um plano interno.

A visão do desenvolvimento infantil

O desenvolvimento infantil é visto a partir de três aspectos: instrumental, cultural e histórico. E é Luria que nos ajuda a compreendê- los

  • O aspecto instrumental refere-se à natureza basicamente mediadora das funções psicológicas complexas. Não apenas respondemos aos estímulos apresentados no ambiente, mas os alteramos e usamos suas modificações como um instrumento de nosso comportamento. Exemplo disso é o costume popular de amarrar um barbante no dedo para lembrar algo. O estímulo — o laço no dedo — objetivamente significa apenas que o dedo está amarrado. Ele adquire sentido, por sua função mediadora, fazendo-nos lembrar algo importante.
  • O aspecto cultural da teoria envolve os meios socialmente estruturados pelos quais a sociedade organiza os tipos de tarefa que a criança em crescimento enfrenta, e os tipos de instrumento, tanto mentais como físicos, de que a criança pequena dispõe para dominar aquelas tarefas. Um dos instrumentos básicos criados pela humanidade é a linguagem. Por isso, Vigotski deu ênfase, em toda sua obra, à linguagem e sua relação com o pensamento.
  • O aspecto histórico, como afirma Luria, funde-se com o cultural, poisos instrumentos que o homem usa, para dominar seu ambiente e seu próprio comportamento, foram criados e modificados ao longo da história social da civilização. Os instrumentos culturais expandiram os poderes do homem e estruturaram seu pensamento, de maneira que, se não tivéssemos desenvolvido a linguagem escrita e a aritmética, por exemplo, não possuiríamos hoje a organização dos processos superiores que possuímos.

Assim, para Vigotski, a história da sociedade e o desenvolvimento do homem caminham juntos e, mais do que isso, estão de tal forma intrincados, que um não seria o que é sem o outro. Com essa perspectiva, é que Vigotski estudou o desenvolvimento infantil.

As crianças, desde o nascimento, estão em constante interação com os adultos, que ativamente procuram incorporá-las a suas relações e a sua cultura. No início, as respostas das crianças são dominadas por processos naturais, especialmente aqueles proporcionados pela herança biológica. É através da mediação dos adultos que os processos psicológicos mais complexos tomam forma. Inicialmente, esses processos são interpsíquicos (partilhados entre pessoas), isto é, só podem funcionar durante a interação das crianças com os adultos. À medida que a criança cresce, os processos acabam por ser executados dentro das próprias crianças — intrapsíquicos.

É através desta interiorização dos meios de operação das informações, meios estes historicamente determinados e culturalmente organizados, que a natureza social das pessoas tornou-se igualmente sua natureza psicológica.

No estudo feito por Vigotski, sobre o desenvolvimento da fala, sua visão fica bastante clara: inicialmente, os aspectos motores e verbais do comportamento estão misturados. A fala envolve os elementos referenciais, a conversação orientada pelo objeto, as expressões emocionais e outros tipos de fala social. Como a criança está cercada por adultos na família, a fala começa a adquirir traços demonstrativos, e ela começa a indicar o que está fazendo e de que está precisando. Após algum tempo, a criança, fazendo distinções para os outros com o auxílio da fala, começa a fazer distinções para si mesma. E a fala vai deixando de ser um meio para dirigir o comportamento dos outros e vai adquirindo a função de autodireção.

Fala e ação, que se desenvolvem independentes uma da outra, em determinado momento do desenvolvimento convergem, e esse é o momento de maior significado no curso do desenvolvimento intelectual, que dá origem às formas puramente humanas de inteligência. Forma-se, então, um amálgama entre fala e ação; inicialmente a fala acompanha as ações e, posteriormente, dirige, determina e domina o curso da ação, com sua função planejadora.

O desenvolvimento está, pois, alicerçado sobre o plano das interações. O sujeito faz sua uma ação que tem, inicialmente, um significado partilhado. Assim, a criança que deseja um objeto inacessível apresenta movimentos de alcançá-lo, e esses movimentos são interpretados pelo adulto como “desejo de obtê-lo”, e então lhe dá o objeto. Os movimentos da criança afetam o adulto e não o objeto diretamente; e a interpretação do movimento pelo adulto permite que a criança transforme o movimento de agarrar em gesto de apontar. O gesto é criado na interação, e a criança passa a ter controle de uma forma de sinal, a partir das relações sociais.

Todos os movimentos e expressões verbais da criança, no início de sua vida, são importantes, pois afetam o adulto, que os interpreta e os devolve à criança com ação e/ou com fala. A fala egocêntrica, por exemplo, foi vista por Vigotski como uma forma de transição entre a fala exterior e a interior. A fala inicial da criança tem, portanto, um papel fundamental no desenvolvimento de suas funções psicológicas.

Para Vigotski, as funções psicológicas emergem e se consolidam no plano da ação entre pessoas e tornam-se internalizadas, isto é, transformam-se para constituir o funcionamento interno. O plano interno não é a reprodução do plano externo, pois ocorrem transformações ao longo do processo de internalização. Do plano interpsíquico, as ações passam para o plano intrapsíquico. 

Considera, portanto, as relações sociais como constitutivas das funções psicológicas do homem. Essa visão de Vigotski deu o caráter interacionista à sua teoria.

Vigotski deu ênfase ao processo de internalização como mecanismo que intervém no desenvolvimento das funções psicológicas complexas. Esta é reconstrução interna de uma operação externa e tem como base a linguagem. O plano interno, para Vigotski, não preexiste, mas é constituído pelo processo de internalização, fundado nas ações, nas interações sociais e na linguagem

Vigotski e Piaget

Se compararmos os dois maiores teóricos do desenvolvimento humano, podemos dizer, correndo algum risco de sermos simplistas, que Piaget apresenta uma tendência hiperconstrutivista em sua teoria, com ênfase no papel estruturante do sujeito. Maturação, experiências físicas, transmissões sociais e culturais e equilibração são fatores desenvolvidos na teoria de Piaget. Vigotski, por outro lado, enfatiza o aspecto interacionista, pois considera que é no plano intersubjetivo, isto é, na troca entre as pessoas, que têm origem as funções mentais superiores.

A teoria de Piaget apresenta também a dimensão interacionista, mas sua ênfase é colocada na interação do sujeito com o objeto físico; e, além disso, não está clara em sua teoria a função da interação social no processo de conhecimento.

A teoria de Vigotski, por outro lado, também apresenta um aspecto construtivista, na medida em que busca explicar o aparecimento de inovações e mudanças no desenvolvimento a partir do mecanismo de internalização. No entanto, temos na teoria sócio-interacionista apenas um quadro esboçado, que apresenta sugestões e caminhos, mas necessita de estudos e pesquisas que explicitem os mecanismos característicos dos processos de desenvolvimento. [pg. 110]

Se tivéssemos agora que apontar um desacordo entre essas teorias, resgataríamos as palavras de Lúria:

Quando a obra de Piaget, A linguagem e o pensamento da criança, chegou a nosso conhecimento, nós a estudamos cuidadosamente. Um desacordo fundamental da interpretação da relação entre a linguagem e o pensamento distinguia nosso trabalho da obra desse grande psicólogo suíço... discordamos fundamentalmente da idéia de que a fala inicial da criança não apresenta um papel importante no pensamento1

Psicologia - Psicologia do Desenvolvimento
7/14/2021 4:09:57 PM | Por Ana Mercês Bahia Bock
A Psicologia sócio-histórica

As tendências teóricas apresentadas nos capítulos 3, 4 e 5 — Behaviorismo, Gestalt e Psicanálise, respectivamente — constituíram-se em matrizes do desenvolvimento da ciência psicológica, propiciando o surgimento de inúmeras abordagens da Psicologia contemporânea. Do Behaviorismo, por exemplo, surgiram as abordagens do Behaviorismo Radical (B. F. Skinner) e do Behaviorismo Cognitivista (A. Bandura e, atualmente, K. Hawton e A. Beck). A Gestalt (do ponto de vista de uma teoria com bases psicofisiológicas) praticamente desapareceu. No entanto, a tradição filosófica que a fundamenta — a Fenomenologia — avançou por um caminho diferente, buscando a compreensão do ser no mundo e, de certa maneira, associou-se ao campo da Psicologia Existencialista. Hoje, essa vertente da Psicologia discute as bases da consciência através dos ensinamentos de Jean Paul Sartre. Outra vertente da Fenomenologia faz essa discussão através do Existencialismo de Martin Heiddeger, desenvolvendo uma profícua corrente denominada Dasein Análise, que tem no psiquiatra suíço Medard Boss, uma das figuras mais destacadas. Outra corrente derivada da Gestalt e que segue um caminho diferente do traçado pela Fenomenologia, é a da Gestalt Terapia. Fundada por Pearls, esta corrente trabalha [pg. 85] os níveis da conscientização humana com a consciência corporal, nossa consciência do “aqui e agora” etc.

Da Psicanálise originaram-se inúmeras abordagens, como a Psicologia Analítica (Carl G. Jung) e a Reichiana (W. Reich) — dissidências que construíram corpos próprios de conhecimento; ou a Psicanálise Kleiniana (Melanie Klein) e a Lacaniana (J. Lacan), que deram continuidade à teoria freudiana.

Como você pôde perceber, a Psicologia não ficou estagnada no tempo. Pelo contrário: desenvolveu-se e, ao desenvolver-se, construiu abordagens que deram prosseguimento às já existentes, retomando conhecimentos antigos e superando-os. Enfim, a Psicologia é uma ciência em constante processo de construção.

Neste capítulo, abordaremos uma vertente teórica que surgiu no início do século 20 e ficou restrita ao Leste europeu até os anos 60, quando explodiria na Europa e nos Estados Unidos como uma nova possibilidade teórica. Estamos falando da Psicologia Sócio-Histórica, que chegou ao Brasil nos anos 80 através da Psicologia Social e da Psicologia da Educação, ganhando rapidamente importância e espaço no meio acadêmico.

VIgotski e a Psicologia Sócio-Histórica

A Psicologia, como você já deve ter percebido, está em permanente movimento, isto é, novas abordagens vão se constituindo, gerando uma permanente transformação teórica.

Escolhemos apresentar-lhe uma vertente teórica que nasceu na ex-União Soviética, embalada pela Revolução de 1917 e pela teoria marxista. No Ocidente, a teoria Sócio-Histórica ganharia importância nos anos 70, tornando-se referência para a Psicologia do Desenvolvimento, a Psicologia Social e para a Educação.

Tendo como referência esta nova abordagem teórica formulada por Vigotski, buscava-se construir uma Psicologia que superasse as tradições positivistas e estudasse o homem e seu mundo psíquico como uma construção histórica e social da humanidade. Para Vigotski, o mundo psíquico que temos hoje não foi nem será sempre assim, pois sua caracterização está diretamente ligada ao mundo material e às formas de vida que os homens vão construindo no decorrer da história da humanidade. [pg. 86]

Princípios da teoria

Vigotski morreu muito cedo e não pôde completar sua obra, mas deixou alguns princípios aos seus seguidores:

  • A compreensão das funções superiores do homem não pode ser alcançada pela psicologia animal, pois os animais não têm vida social e cultural.
  • As funções superiores do homem não podem ser vistas apenas como resultado da maturação de um organismo que já possui, em potencial, tais capacidades.
  • A linguagem e o pensamento humano têm origem social. A cultura faz parte do desenvolvimento humano e deve ser integrada ao estudo e à explicação das funções superiores.
  • A consciência e o comportamento são aspectos integrados de uma unidade, não podendo ser isolados pela Psicologia.

Vigotski desenvolveu, também, uma estrutura teórica marxista para a Psicologia:

  • Todos os fenômenos devem ser estudados como processos em permanente movimento e transformação.
  • O homem constitui-se e se transforma ao atuar sobre a natureza com sua atividade e seus instrumentos.
  • Não se pode construir qualquer conhecimento a partir do aparente, pois não se captam as determinações que são constitutivas do objeto. Ao contrário, é preciso rastrear a evolução dos fenômenos, pois estão em sua gênese e em seu movimento as explicações para sua aparência atual.
  • A mudança individual tem sua raiz nas condições sociais de vida. Assim, não é a consciência do homem que determina as formas de vida, mas é a vida que se tem que determina a consciência.

O desafio de Vigotski foi assumido por outros teóricos, entre eles Luria e Leontiev, seus parceiros de trabalho. Sua obra ficou, por muitos anos, restrita à ex-União Soviética. Hoje, na Europa, nos Estados Unidos e em países do Terceiro Mundo, como o Brasil, Vigotski vem sendo estudado e utilizado, principalmente, nas áreas de Psicologia da Educação e Psicologia Social. No Brasil, essas duas áreas foram influenciadas pela obra de Vigotski na década de 80 — na Educação, através das teorias construtivistas da aprendizagem, principalmente a partir da influência de Emília Ferreiro; na Psicologia Social, pela atuação da professora Silvia Lane, que contribuiu significativamente para a construção de uma Psicologia Social crítica, permitindo que, ao se pensar o psiquismo humano, se falasse das condições sociais que são constitutivas deste mundo psicológico. [pg. 87]

Hoje, Vigotski é um autor conhecido e seu pensamento é fundamento da corrente denominada Psicologia Sócio-Histórica ou Psicologia de Orientação Sócio-Cultural.

As noções básicas da Psicologia Sócio-Histórica no Brasil 

A Psicologia Sócio-Histórica, no Brasil, tem se constituído, fundamentalmente, pela crítica à visão liberal de homem, na qual encontramos idéias como:

  • O homem visto como ser autônomo, responsável pelo seu próprio processo de individuação.
  • Uma relação de antagonismo entre o homem e a sociedade, em que esta faz eterna oposição aos anseios que seriam naturais do homem. • Uma visão de fenômeno psicológico, na qual este é tomado como uma entidade abstrata que tem, por natureza, características positivas que só não se manifestam se sofrerem impedimentos do mundo material e social. O fenômeno psicológico, visto como enclausurado no homem, é concebido como um verdadeiro eu.

A Psicologia Sócio-Histórica entende que essas concepções liberais construíram uma ciência na qual o mundo psicológico foi completamente deslocado do campo social e material. Esse mundo psicológico passou, então, a ser definido de maneira abstrata, como algo que já estivesse dentro do homem, pronto para se desenvolver — semelhante à semente que germina. Esta visão liberal naturalizou o mundo psicológico, abolindo, da Psicologia, as reflexões sobre o mundo social.

No Brasil, os teóricos da Psicologia Sócio-Histórica buscam construir uma concepção alternativa à liberal. Retomaremos um pouco essas reflexões a partir de algumas idéias fundamentais.

Não existe natureza humana.

Não existe uma essência eterna e universal do homem, que no decorrer de sua vida se atualiza, gerando suas pontencialidades e faculdades. Tal idéia de natureza humana tem sido utilizada como fundamento da maioria das correntes psicológicas e faz, na verdade, um trabalho de ocultamente das condições sociais, que são determinantes das individualidades. [pg. 88] Esta idéia está ligada à visão de indivíduo autônomo, que também não é aceita na Psicologia Sócio-Histórica. O indivíduo é construído ao longo de sua vida a partir de sua intervenção no meio (sua atividade instrumental) e da relação com os outros homens. Somos únicos, mas não autônomos no sentido de termos um desenvolvimento independente ou já previsto pela semente de homem que carregamos.

Existe a condição humana.

A concepção de homem da Psicologia Sócio-Histórica pode ser assim sintetizada: o homem é um ser ativo, social e histórico. É essa sua condição humana. O homem constrói sua existência a partir de uma ação sobre a realidade, que tem, por objetivo, satisfazer suas necessidades. Mas essa ação e essas necessidades têm uma característica fundamental: são sociais e produzidas historicamente em sociedade. As necessidades básicas do homem não são apenas biológicas; elas, ao surgirem, são imediatamente socializadas. Por exemplo, os hábitos alimentares e o comportamento sexual do homem são formas sociais e não naturais de satisfazer necessidades biológicas.

Através da atividade, o homem produz o necessário para satisfazer essas necessidades. A atividade de cada indivíduo, ou seja, sua ação particular, é determinada e definida pela forma como a sociedade se organiza para o trabalho. Entendido como a transformação da natureza para a produção da existência humana, o trabalho só é possível em sociedade. E um processo pelo qual o homem estabelece, ao mesmo tempo, relação com a natureza e com os outros homens; essas relações determinam-se reciprocamente. Portanto, o [pg. 89] trabalho só pode ser entendido dentro de relações sociais determinadas. São essas relações que definem o lugar de cada indivíduo e a sua atividade. Por isso, quando se diz que o homem é um ser ativo, diz-se, ao mesmo tempo, que ele é um ser social.

A ação do homem sobre a realidade que, obrigatoriamente, ocorre em sociedade, é um processo histórico. E uma ação de transformação da natureza que leva à transformação do próprio homem. Quando produz os bens necessários à satisfação de suas necessidades, o homem estabelece novos parâmetros na sua relação com a natureza, o que gera novas necessidades, que também, por sua vez, deverão ser satisfeitas. As relações sociais, nas quais ocorre esse processo, modificam-se à medida que se desenvolvem as necessidades humanas e a produção que visa satisfazê-las. É um processo de transformação constante das necessidades e da atividade dos homens e das relações que estes estabelecem entre si para a produção de sua existência. Esse movimento tem por base a contradição: o desenvolvimento das necessidades humanas e das formas de satisfazê-las, ao mesmo tempo em que só são possíveis diante de determinadas relações sociais, provocam a necessidade transformação mesmas de dessas relações e condicionam o aparecimento de novas relações sociais. Esse processo histórico é construído pelo homem e é esse processo histórico que constrói o homem. Assim, o homem é um ser ativo, social e histórico.

O homem é criado pelo homem. Não há uma natureza humana pronta, nem mesmo aptidões prontas. A “aptidão” do homem está, justamente, no fato de poder desenvolver várias aptidões. Esse desenvolvimento se dá na relação com os outros homens através do contato com a cultura já constituída e das atividades que realiza neste meio.

Os objetos produzidos pelos homens materializam a história e cristalizam as “aptidões” desenvolvidas pelas gerações anteriores. Quando os manuseia e deles se apropria, o homem desenvolve atividades que reproduzem os traços essenciais das atividades acumuladas e cristalizadas nos objetos. A criança que aprende a manusear um lápis, está de alguma forma submetida à forma, à consistência, [pg. 90] às possibilidades e aos limites do lápis. Isso envolve não apenas uma questão “física”, material, mas, necessariamente, uma condição social e histórica do uso e significado do lápis. As habilidades humanas, que utilizam o lápis como seu instrumento, estão cristalizadas na forma, na consistência e nas possibilidades do lápis, bem como nos seus limites e significados. Nas relações com os outros homens ocorre a “descristalização” destas possibilidades — a “mágica” acontece — e, do lápis, o pequeno homem retira suas habilidades de rabiscar, escrever e desenhar, colocando-se, assim, no “patamar” da história, tornando-se capaz de recuperá-la e transformá-la. Portanto, é do instrumento e das relações sociais, nas quais esse instrumento é utilizado, que o homem retira suas possibilidades humanas.

Esse processo acontece com todas as suas aptidões. O homem, ao nascer, é candidato à humanidade e a adquire no processo de apropriação do mundo. Nesse processo, converte o mundo externo em um mundo interno e desenvolve, de forma singular, sua individualidade. Assim, através da mediação das relações sociais e das atividades que desenvolve, o homem se individualiza, torna-se homem, desenvolve suas possibilidades e significa seu mundo.

A linguagem é instrumento fundamental nesse processo e, como instrumento, também é produzida social e historicamente, e dela também o homem deve se apropriar.

A linguagem materializa e dá forma a uma das aptidões humanas: a capacidade de representar a realidade. Juntamente com a atividade, o homem desenvolve o pensamento. Através da linguagem, o pensamento objetiva-se, permitindo a comunicação das significações e o seu desenvolvimento.

Mas o pensamento humano, historicamente transforma-se em algo mais complexo, justamente por representar, cada vez melhor, a complexidade da vida humana em sociedade. Transforma-se em consciência. A linguagem é instrumento essencial na construção da consciência, na construção de um mundo interno, psicológico. Permite a representação não só da realidade imediata, mas das mediações que ocorrem na relação do homem com essa realidade. Assim, a linguagem apreende e materializa o mundo de significações, que é construído no processo social e histórico.

Quando se apropria da linguagem enquanto instrumento, o indivíduo tem acesso a um mundo de significações historicamente produzido. Além disso, a linguagem também é instrumento de mediação na apropriação de outros instrumentos. Por isso, quando se torna indivíduo — o que só ocorre socialmente — o homem apropria-se de todos os significados sociais. Mas, por ser ativo, também atribui significados, ou seja, apropria-se da história, apreende o [pg. 91] mundo, atribuindo-lhe um sentido pessoal construído a partir de sua atividade, de suas relações e dos significados aprendidos. Esse processo de apropriação do mundo social permite o desenvolvimento da consciência no homem.

O homem concreto é objeto de estudo da Psicologia.

A Psicologia deve buscar compreender o indivíduo como ser determinado histórica e socialmente. Esse indivíduo jamais poderá ser compreendido senão por suas relações e vínculos sociais, pela sua inserção em uma determinada sociedade, em um momento histórico específico.

O homem existe, age e pensa de certa maneira porque existe em um dado momento e local, vivendo determinadas relações.

A consciência humana revela as determinações sociais e históricas do homem — não diretamente, de maneira imediata, porque não é assim, mecanicamente, que se processa a consciência. As mediações devem ser desvendadas, pois passam pelas formas de atividade e relações sociais, pelos significados atribuídos nesse processo a toda realidade na qual vivem os homens. É necessário conhecer além da aparência, buscando a essência deste processo, que revela o movimento de transformação constante a partir da contradição, entendida como princípio fundamental do movimento da realidade.

Assim, para conhecer o homem é preciso situá-lo em um momento histórico, identificar as determinações e desvendá-las. Para entender o movimento contraditório da totalidade na qual se encontram os indivíduos, deve-se partir do geral para o particular — para o processo individual de relação entre atividade e consciência. É necessário perceber o singular e seu movimento como parte do movimento geral e, ao revelar essas mediações, compreender não só o geral, mas o particular. É dessa forma que o indivíduo deve ser entendido pela Psicologia fundamentada no materialismo histórico e dialético.

Subjetividade social e subjetividade individual.

Nesta teoria, os fenômenos sociais não são externos aos indivíduos nem são fenômenos que acontecem na sociedade e pouco têm que ver com cada um de nós. Os fenômenos sociais estão, de forma simultânea, dentro e fora dos indivíduos, isto é, estão na subjetividade individual e na subjetividade social.

A subjetividade deve ser compreendida como “um sistema integrador do interno e do externo, tanto em sua dimensão social, como individual, que por sua gênese é também social... A subjetividade não é interna nem externa: ela supõe outra representação teórica na qual o interno e o externo deixam de ser dimensões excludentes [pg. 92] e se convertem em dimensões constitutivas de uma nova qualidade do ser: o subjetivo. Como dimensões da subjetividade ambos (o interno e o externo) se integram e desintegram de múltiplas formas no curso de seu desenvolvimento, no processo dentro do qual o que era interno pode converter-se em externo e vice-versa”.

A subjetividade individual representa a constituição da história de relações sociais do sujeito concreto dentro de um sistema individual. O indivíduo, ao viver relações sociais determinadas e experiências determinadas em uma cultura que tem idéias e valores próprios, vai se constituindo, ou seja, vai construindo sentido para as experiências que vivencia. Este espaço pessoal dos sentidos que atribuímos ao mundo se configura como a subjetividade individual. A subjetividade social é exatamente a aresta subjetiva da constituição da sociedade. Refere-se “ao sistema integral de configurações subjetivas (grupais ou individuais), que se articulam nos distintos níveis da vida social...” Assim, para a Psicologia Sócio-Histórica, não há como se saber de um indivíduo sem que se conheça seu mundo. Para compreender o que cada um de nós sente e pensa, e como cada um de nós age, é preciso conhecer o mundo social no qual estamos imersos e do qual somos construtores; é preciso investigar os valores sociais, as formas de relação e de produção da sobrevivência de nosso mundo, e as formas de ser de nosso tempo.

Para facilitar a compreensão dessas noções básicas da Psicologia Sócio-Histórica, sugerimos-lhe que reflita sobre o que sente, pensa e como age, identificando em seu mundo social os espaços nos quais estas formas se configuram, pois, com certeza, é nelas que você busca a matéria-prima para construir sua forma particular de ser. Mesmo sem perceber, você as reforça ou reconstrói diariamente, atuando para que elas se mantenham. Há um movimento constante que vai de você para o mundo social e que lhe vem deste mesmo mundo. O instrumento básico para esta relação é a linguagem. Para a teoria Sócio-Histórica, os fenômenos do mundo psíquico não são naturais do mundo psíquico, mas fenômenos que vão se constituindo conforme o homem atua no mundo e se relaciona com os outros homens. O mundo social deixa de ser visto como um espaço de oposição a nossas vontades e impulsos, passando a ser visto como o lugar no qual nosso mundo psicológico se constitui. [pg. 93]

Psicologia - Psicologia social
7/13/2021 4:51:23 PM | Por Ana Mercês Bahia Bock
A Psicanálise

SIGMUND FREUD - As teorias científicas surgem influenciadas pelas condições da vida social, nos seus aspectos econômicos, políticos, culturais etc. São produtos históricos criados por homens concretos, que vivem o seu tempo e contribuem ou alteram, radicalmente, o desenvolvimento do conhecimento. - Sigmund Freud (1856-1939) foi um médico vienense que alterou, radicalmente, o modo de pensar a vida psíquica. Sua contribuição é comparável à de Karl Marx na compreensão dos processos históricos e sociais. Freud ousou colocar os “processos misteriosos” do psiquismo, suas “regiões obscuras”, isto é, as fantasias, os sonhos, os esquecimentos, a interioridade do homem, como problemas científicos. A investigação sistemática desses problemas levou Freud à criação da Psicanálise1.

O termo psicanálise é usado para se referir a uma teoria, a um método de investigação e a uma prática profissional. Enquanto teoria caracteriza-se por um conjunto de conhecimentos sistematizados sobre o funcionamento da vida psíquica. Freud publicou uma extensa obra, durante toda a sua vida, relatando suas descobertas e formulando leis gerais sobre a estrutura e o funcionamento da psique humana. A Psicanálise, enquanto método de investigação, caracteriza-se pelo método interpretativo, que busca o significado oculto daquilo que é manifesto por meio de ações e palavras ou pelas produções imaginárias, como os sonhos, os delírios, as associações livres, os atos falhos. A prática profissional refere-se à forma de tratamento — a Análise — que busca o autoconhecimento ou a [pg. 70] cura, que ocorre através desse autoconhecimento. Atualmente, o exercício da Psicanálise ocorre de muitas outras formas. Ou seja, é usada como base para psicoterapias, aconselhamento, orientação; é aplicada no trabalho com grupos, instituições. A Psicanálise também é um instrumento importante para a análise e compreensão de fenômenos sociais relevantes: as novas formas de sofrimento psíquico, o excesso de individualismo no mundo contemporâneo, a exacerbação da violência etc.

Compreender a Psicanálise significa percorrer novamente o trajeto pessoal de Freud, desde a origem dessa ciência e durante grande parte de seu desenvolvimento. A relação entre autor e obra torna-se mais significativa quando descobrimos que grande parte de sua produção foi baseada em experiências pessoais, transcritas com rigor em várias de suas obras, como A interpretação dos sonhos e A psicopatologia da vida cotidiana, dentre outras.

Compreender a Psicanálise significa, também, percorrer, no nível pessoal, a experiência inaugural de Freud e buscar “descobrir” as regiões obscuras da vida psíquica, vencendo as resistências interiores, pois se ela foi realizada por Freud, “não é uma aquisição definitiva da humanidade, mas tem que ser realizada de novo por cada paciente e por cada psicanalista”2.

A Gestação da Psicanálise

Freud formou-se em Medicina na Universidade de Viena, em 1881, e especializou-se em Psiquiatria. Trabalhou algum tempo em um laboratório de Fisiologia e deu aulas de Neuropatologia no instituto onde trabalhava. Por dificuldades financeiras, não pôde dedicar-se integralmente à vida acadêmica e de pesquisador. Começou, então, a clinicar, atendendo pessoas acometidas de “problemas nervosos”. Obteve, ao final da residência médica, uma bolsa de estudo para Paris, onde trabalhou com Jean Charcot, psiquiatra francês que tratava as histerias com hipnose. Em 1886, retornou a [pg. 71] Viena e voltou a clinicar, e seu principal instrumento de trabalho na eliminação dos sintomas dos distúrbios nervosos passou a ser a sugestão hipnótica3.

Em Viena, o contato de Freud com Josef Breuer, médico e cientista, também foi importante para a continuidade das investigações. Nesse sentido, o caso de uma paciente de Breuer foi significativo. Ana O. apresentava um conjunto de sintomas que a fazia sofrer: paralisia com contratura muscular, inibições e dificuldades de pensamento. Esses sintomas tiveram origem na época em que ela cuidara do pai enfermo. No período em que cumprira essa tarefa, ela havia tido pensamentos e afetos que se referiam a um desejo de que o pai morresse. Estas idéias e sentimentos foram reprimidos e substituídos pelos sintomas.

Em seu estado de vigília, Ana O. não era capaz de indicar a origem de seus sintomas, mas, sob o efeito da hipnose, relatava a origem de cada um deles, que estavam ligados a vivências anteriores da paciente, relacionadas com o episódio da doença do pai. Com a rememoração destas cenas e vivências, os sintomas desapareciam. Este desaparecimento não ocorria de forma “mágica”, mas devido à liberação das reações emotivas associadas ao evento traumático — a doença do pai, o desejo inconsciente da morte do pai enfermo.

Breuer denominou método catártico o tratamento que possibilita a liberação de afetos e emoções ligadas a acontecimentos traumáticos que não puderam ser expressos na ocasião da vivência desagradável ou dolorosa. Esta liberação de afetos leva à eliminação dos sintomas.

Freud, em sua Autobiografia, afirma que desde o início de sua prática médica usara a hipnose, não só com objetivos de sugestão, mas também para obter a história da origem dos sintomas. Posteriormente, passou a utilizar o método catártico e, “aos poucos, foi modificando a técnica de Breuer: abandonou a hipnose, porque nem todos os pacientes se prestavam a ser hipnotizados; desenvolveu a técnica de ‘concentração’, na qual a rememoração sistemática era feita por meio da conversação normal; e por fim, acatando a sugestão (de uma jovem) anônima, abandonou as perguntas ‘— e com elas a direção da sessão — para se confiar por completo à fala desordenada do paciente”4. [pg. 72]

A descoberta do inconsciente

“Qual poderia ser a causa de os pacientes esquecerem tantos fatos de sua vida interior e exterior...?”5, perguntava-se Freud.

O esquecido era sempre algo penoso para o indivíduo, e era exatamente por isso que havia sido esquecido e o penoso não significava, necessariamente, sempre algo ruim, mas podia se referir a algo bom que se perdera ou que fora intensamente desejado. Quando Freud abandonou as perguntas no trabalho terapêutico com os pacientes e os deixou dar livre curso às suas idéias, observou que, muitas vezes, eles ficavam embaraçados, envergonhados com algumas idéias ou imagens que lhes ocorriam. A esta força psíquica que se opunha a tornar consciente, a revelar um pensamento, Freud denominou resistência. E chamou de repressão o processo psíquico que visa encobrir, fazer desaparecer da consciência, uma idéia ou representação insuportável e dolorosa que está na origem do sintoma. Estes conteúdos psíquicos “localizam-se” no inconsciente.

Tais descobertas 

“(...) constituíram a base principal da compreensão das neuroses e impuseram uma modificação do trabalho terapêutico. Seu objetivo (...) era descobrir as repressões e suprimi-las através de um juízo que aceitasse ou condenasse definitivamente o excluído pela repressão. Considerando este novo estado de coisas, dei ao método de investigação e cura resultante o nome de psicanálise em substituição ao de catártico”6.

A primeira teoria sobre a estrutura do aparelho psíquico

Em 1900, no livro A interpretação dos sonhos, Freud apresenta a primeira concepção sobre a estrutura e o funcionamento da personalidade. Essa teoria refere-se à existência de três sistemas ou instâncias psíquicas: inconsciente, pré-consciente e consciente.

  • O inconsciente exprime o “conjunto dos conteúdos não presentes no campo atual da consciência”7. É constituído por conteúdos reprimidos, que não têm acesso aos sistemas pré-consciente/consciente, pela ação de censuras internas. Estes conteúdos [pg. 73] podem ter sido conscientes, em algum momento, e ter sido reprimidos, isto é, “foram” para o inconsciente, ou podem ser genuinamente inconscientes. O inconsciente é um sistema do aparelho psíquico regido por leis próprias de funcionamento. Por exemplo, é atemporal, não existem as noções de passado e presente;
  • O pré-consciente refere-se ao sistema onde permanecem aqueles conteúdos acessíveis à consciência. É aquilo que não está na consciência, neste momento, e no momento seguinte pode estar;
  • O consciente é o sistema do aparelho psíquico que recebe ao mesmo tempo as informações do mundo exterior e as do mundo interior. Na consciência, destaca-se o fenômeno da percepção, principalmente a percepção do mundo exterior, a atenção, o raciocínio.

A descoberta da sexualidade infantil

Freud, em suas investigações na prática clínica sobre as causas e o funcionamento das neuroses, descobriu que a maioria de pensamentos e desejos reprimidos referiam-se a conflitos de ordem sexual, localizados nos primeiros anos de vida dos indivíduos, isto é, que na vida infantil estavam as experiências de caráter traumático, reprimidas, que se configuravam como origem dos sintomas atuais, e confirmava-se, desta forma, que as ocorrências deste período da vida deixam marcas profundas na estruturação da pessoa. As descobertas colocam a sexualidade no centro da vida psíquica, e é postulada a existência da sexualidade infantil. Estas afirmações tiveram profundas repercussões na sociedade puritana da época, pela concepção vigente da infância como “inocente”.

Os principais aspectos destas descobertas são:

  • A função sexual existe desde o princípio da vida, logo após o nascimento, e não só a partir da puberdade como afirmavam as idéias dominantes;
  • O período de desenvolvimento da sexualidade é longo e complexo até chegar à sexualidade adulta, onde as funções de reprodução e de obtenção do prazer podem estar associadas, tanto no homem como na mulher. Esta afirmação contrariava as idéias predominantes de que o sexo estava associado, exclusivamente, à reprodução;
  • A libido, nas palavras de Freud, é “a energia dos instintos sexuais e só deles”8. [pg. 74]

No processo de desenvolvimento psicossexual, o indivíduo, nos primeiros tempos de vida, tem a função sexual ligada à sobrevivência, e, portanto, o prazer é encontrado no próprio corpo. O corpo é erotizado, isto é, as excitações sexuais estão localizadas em partes do corpo, e há um desenvolvimento progressivo que levou Freud a postular as fases do desenvolvimento sexual em: fase oral (a zona de erotização é a boca), fase anal (a zona de erotização é o ânus), fase fálica (a zona de erotização é o órgão sexual); em seguida vem um período de latência, que se prolonga até a puberdade e se caracteriza por uma diminuição das atividades sexuais, isto é, há um “intervalo” na evolução da sexualidade. E, finalmente, na puberdade é atingida a última fase, isto é, a fase genital, quando o objeto de erotização ou de desejo não está mais no próprio corpo, mas era um objeto externo ao indivíduo — o outro. Alguns autores denominam este período exclusivamente como genital, incluindo o período fálico nas organizações pré-genitais, enquanto outros autores denominam o período fálico de organização genital infantil.

No decorrer dessas fases, vários processos e ocorrências sucedem-se. Desses eventos, destaca-se o complexo de Édipo, pois é em torno dele que ocorre a estruturação da personalidade do indivíduo. Acontece entre 3 e 5 anos, durante a fase fálica. No complexo de Édipo, a mãe é o objeto de desejo do menino, e o pai é o rival que impede seu acesso ao objeto desejado. Ele procura então ser o pai para “ter” a mãe, escolhendo-o como modelo de comportamento, passando a internalizar as regras e as normas sociais representadas e impostas pela autoridade paterna. Posteriormente, por medo da perda do amor do pai, “desiste” da mãe, isto é, a mãe é “trocada” [pg. 75] pela riqueza do mundo social e cultural, e o garoto pode, então, participar do mundo social, pois tem suas regras básicas internalizadas através da identificação com o pai. Este processo também ocorre com as meninas, sendo invertidas as figuras de desejo e de identificação. Freud fala em Édipo feminino.

Explicando alguns conceitos

Antes de prosseguirmos um pouco mais acerca das descobertas fundamentais de Freud, é necessário esclarecer alguns conceitos que permitem compreender os dados e informações colocados até aqui, de um modo dinâmico e sem considerá-los processos mecânicos e compartimentados. Além disso, estes aspectos também são postulações de Freud, e seu conhecimento é fundamental para se compreender a continuidade do desenvolvimento de sua teoria.

  1. No processo terapêutico e de postulação teórica, Freud, inicialmente, entendia que todas as cenas relatadas pelos pacientes tinham de fato ocorrido. Posteriormente, descobriu que poderiam ter sido imaginadas, mas com a mesma força e conseqüências de uma situação real. Aquilo que, para o indivíduo, assume valor de realidade é a realidade psíquica. E é isso o que importa, mesmo que não corresponda à realidade objetiva.
  2. O funcionamento psíquico é concebido a partir de três pontos de vista:
    • o econômico (existe uma quantidade de energia que “alimenta” os processos psíquicos),
    • o tópico (o aparelho psíquico é constituído de um número de sistemas que são diferenciados quanto a sua natureza e modo de funcionamento, o que permite considerá-lo como “lugar” psíquico) e
    • o dinâmico (no interior do psiquismo existem forças que entram em conflito e estão, permanentemente, ativas. A origem dessas forças é a pulsão). Compreender os processos e fenômenos psíquicos é considerar os três pontos de vista simultaneamente 
  3. A pulsão refere-se a um estado de tensão que busca, através de um objeto, a supressão deste estado. Eros é a pulsão de vida e abrange as pulsões sexuais e as de autoconservação. Tanatos é a pulsão de morte, pode ser autodestrutiva ou estar dirigida para fora e se manifestar como pulsão agressiva ou destrutiva.
  4. Sintoma, na teoria psicanalítica, é uma produção — quer seja um comportamento, quer seja um pensamento — resultante de um conflito psíquico entre o desejo e os mecanismos de defesa. O sintoma, ao mesmo tempo que sinaliza, busca encobrir um conflito, substituir a satisfação do desejo. Ele é ou pode ser o ponto de partida da investigação psicanalítica na tentativa de descobrir os processos [pg. 76] psíquicos encobertos que determinam sua formação. Os sintomas de Ana O. eram a paralisia e os distúrbios do pensamento; hoje, o sintoma da colega da sala de aula é recusar-se a comer.

A segunda teoria do aparelho psíquico

Entre 1920 e 1923, Freud remodela a teoria do aparelho psíquico e introduz os conceitos de id, ego e superego para referir-se aos três sistemas da personalidade.

O id constitui o reservatório da energia psíquica, é onde se “localizam” as pulsões: a de vida e a de morte. As características atribuídas ao sistema inconsciente, na primeira teoria, são, nesta teoria, atribuídas ao id. É regido pelo princípio do prazer.

O ego é o sistema que estabelece o equilíbrio entre as exigências do id, as exigências da realidade e as “ordens” do superego. Procura “dar conta” dos interesses da pessoa. É regido pelo princípio da realidade, que, com o princípio do prazer, rege o funcionamento psíquico. É um regulador, na medida em que altera o princípio do prazer para buscar a satisfação considerando as condições objetivas da realidade. Neste sentido, a busca do prazer pode ser substituída pelo evitamento do desprazer. As funções básicas do ego são: percepção, memória, sentimentos, pensamento.

O superego origina-se com o complexo de Édipo, a partir da internalização das proibições, dos limites e da autoridade. A moral, os ideais são funções do superego. O conteúdo do superego refere-se a exigências sociais e culturais.

Para compreender a constituição desta instância — o superego — é necessário introduzir a idéia de sentimento de culpa. Neste estado, o indivíduo sente-se culpado por alguma coisa errada que fez — o que parece óbvio — ou que não fez e desejou ter feito, alguma coisa considerada má pelo ego mas não, necessariamente, perigosa ou prejudicial; pode, pelo contrário, ter sido muito desejada. Por que, então, é considerada má? Porque alguém importante para ele, como o pai, por exemplo, pode puni-lo por isso. E a principal punição é a perda do amor e do cuidado desta figura de autoridade.

Portanto, por medo dessa perda, deve-se evitar fazer ou desejar fazer a coisa má; mas, o desejo continua e, por isso, existe a culpa.

Uma mudança importante acontece quando esta autoridade externa é internalizada pelo indivíduo. Ninguém mais precisa lhe dizer “não”. É como se ele “ouvisse” esta proibição dentro de si. Agora, não importa mais a ação para sentir-se culpado: o pensamento, o desejo de fazer algo mau se encarregam disso. E não há [pg. 77] como esconder de si mesmo esse desejo pelo proibido. Com isso, o mal-estar instala-se definitivamente no interior do indivíduo. A função de autoridade sobre o indivíduo será realizada permanentemente pelo superego. É importante lembrar aqui que, para a Psicanálise, o sentimento de culpa origina-se na passagem pelo Complexo de Édipo.

O ego e, posteriormente, o superego são diferenciações do id, o que demonstra uma interdependência entre esses três sistemas, retirando a idéia de sistemas separados. O id refere-se ao inconsciente, mas o ego e o superego têm, também, aspectos ou “partes” inconscientes.

É importante considerar que estes sistemas não existem enquanto uma estrutura vazia, mas são sempre habitados pelo conjunto de experiências pessoais e particulares de cada um, que se constitui como sujeito em sua relação com o outro e em determinadas circunstâncias sociais. Isto significa que, para compreender alguém, é necessário resgatar sua história pessoal, que está ligada à história de seus grupos e da sociedade em que vive.

Os mecanismos de defesa, ou a realiadade como ela não é

A percepção de um acontecimento, do mundo externo ou do mundo interno, pode ser algo muito constrangedor, doloroso, desorganizador. Para evitar este desprazer, a pessoa “deforma” ou suprime a realidade — deixa de registrar percepções externas, afasta determinados conteúdos psíquicos, interfere no pensamento.

São vários os mecanismos que o indivíduo pode usar para realizar esta deformação da realidade, chamados de mecanismos de defesa. São processos realizados pelo ego e são inconscientes, isto é, ocorrem independentemente da vontade do indivíduo.

Para Freud, defesa é a operação pela qual o ego exclui da consciência os conteúdos indesejáveis, protegendo, desta forma, o aparelho psíquico. O ego — uma instância a serviço da realidade externa e sede dos processos defensivos — mobiliza estes mecanismos, que suprimem ou dissimulam a percepção do perigo interno, em função de perigos reais ou imaginários localizados no mundo exterior.

Estes mecanismos são:

  • Recalque: o indivíduo “não vê”, “não ouve” o que ocorre. Existe a supressão de uma parte da realidade. Este aspecto que não é percebido pelo indivíduo faz parte de um todo e, ao ficar invisível, altera, deforma o sentido do todo. É como se, ao ler esta página, [pg. 78] uma palavra ou uma das linhas não estivesse impressa, e isto impedisse a compreensão da frase ou desse outro sentido ao que está escrito. Um exemplo é quando entendemos uma proibição como permissão porque não “ouvimos” o “não”. O recalque, ao suprimir a percepção do que está acontecendo, é o mais radical dos mecanismos de defesa. Os demais referem-se a deformações da realidade.
  • Formação reativa: o ego procura afastar o desejo que vai em determinada direção, e, para isto, o indivíduo adota uma atitude oposta a este desejo. Um bom exemplo são as atitudes exageradas — ternura excessiva, superproteção — que escondem o seu oposto, no caso, um desejo agressivo intenso. Aquilo que aparece (a atitude) visa esconder do próprio indivíduo suas verdadeiras motivações (o desejo), para preservá-lo de uma descoberta acerca de si mesmo que poderia ser bastante dolorosa. É o caso da mãe que superprotege o filho, do qual tem muita raiva porque atribui a ele muitas de suas dificuldades pessoais. Para muitas destas mães, pode ser aterrador admitir essa agressividade em relação ao filho;
  • Regressão: o indivíduo retorna a etapas anteriores de seu desenvolvimento; é uma passagem para modos de expressão mais primitivos. Um exemplo é o da pessoa que enfrenta situações difíceis com bastante ponderação e, ao ver uma barata, sobe na mesa, aos berros. Com certeza, não é só a barata que ela vê na barata.
  • Projeção: é uma confluência de distorções do mundo externo e interno. O indivíduo localiza (projeta) algo de si no mundo externo e não percebe aquilo que foi projetado como algo seu que considera indesejável. É um mecanismo de uso freqüente e observável na vida cotidiana. Um exemplo é o jovem que critica os colegas por serem extremamente competitivos e não se dá conta de que também o é, às vezes até mais que os colegas.
  • Racionalização: o indivíduo constrói uma argumentação intelectualmente convincente e aceitável, que justifica os estados “deformados” da consciência. Isto é, uma defesa que justifica as outras. Portanto, na racionalização, o ego coloca a razão a serviço do irracional e utiliza para isto o material [pg. 79] fornecido pela cultura, ou mesmo pelo saber científico. Dois exemplos: o pudor excessivo (formação reativa), justificado com argumentos morais; e as justificativas ideológicas para os impulsos destrutivos que eclodem na guerra, no preconceito e na defesa da pena de morte.

Além destes mecanismos de defesa do ego, existem outros: denegação, identificação, isolamento, anulação retroativa, inversão e retorno sobre si mesmo. Todos nós os utilizamos em nossa vida cotidiana, isto é, deformamos a realidade para nos defender de perigos internos ou externos, reais ou imaginários. O uso destes mecanismos não é, em si, patológico, contudo distorce a realidade, e só o seu desvendamento pode nos fazer superar essa falsa consciência, ou melhor, ver a realidade como ela é.

Psicanálise: aplicações e contribuições sociais

A característica essencial do trabalho psicanalítico é o deciframento do inconsciente e a integração de seus conteúdos na consciência. Isto porque são estes conteúdos desconhecidos e inconscientes que determinam, em grande parte, a conduta dos homens e dos grupos — as dificuldades para viver, o mal-estar, o sofrimento.

A finalidade deste trabalho investigativo é o autoconhecimento, que possibilita lidar com o sofrimento, criar mecanismos de superação das dificuldades, dos conflitos e dos submetimentos em direção a uma produção humana mais autônoma, criativa e gratificante de cada indivíduo, dos grupos, das instituições.

Nesta tarefa, muitas vezes bastante desejada pelo paciente, é necessário que o psicanalista ajude a desmontar, pacientemente, as resistências inconscientes que obstaculizam a passagem dos conteúdos inconscientes para a consciência.

A representação social (a idéia) da Psicanálise ainda é bastante estereotipada em nosso meio. Associamos a Psicanálise com o divã, com o trabalho de consultório excessivamente longo e só possível para as pessoas de alto poder aquisitivo. Esta idéia correspondeu, durante muito tempo, à prática nesta área que se restringia, exclusivamente, ao consultório.

Contudo, há várias décadas é possível constatar a contribuição da Psicanálise e dos psicanalistas em várias áreas da saúde mental. Historicamente, é importante lembrar a contribuição do [pg. 80] psiquiatra e psicanalista D. W. Winnicott, cujos programas radiofônicos transmitidos na Europa, durante a Segunda Guerra Mundial, orientavam os pais na criação dos filhos, ou a contribuição de Ana Freud para a Educação e, mais recentemente, as contribuições de Françoise Dolto e Maud Mannoni para o trabalho com crianças e adolescentes em instituições — hospitais, creches, abrigos.

Psicologia - Psicanálise
7/13/2021 1:25:56 PM | Por Ana Mercês Bahia Bock
Gestalt, a psicologia da forma

A Psicologia da Gestalt é uma das tendências teóricas mais coerentes e coesas da história da Psicologia. Seus articuladores preocuparam-se em construir não só uma teoria consistente, mas também uma base metodológica forte, que garantisse a consistência teórica. Gestalt é um termo alemão de difícil tradução. O termo mais próximo em português seria forma ou configuração, que não é utilizado, por não corresponder exatamente ao seu real significado em Psicologia. No final do século passado muitos estudiosos procuravam compreender o fenômeno psicológico em seus aspectos naturais (principalmente no sentido da mensurabilidade). A Psicofísica estava em voga.

Ernst Mach (1838-1916), físico, e Christian von Ehrenfels (1859-1932), filósofo e psicólogo, desenvolviam uma psicofísica com estudos sobre as sensações (o dado psicológico) de espaço-forma e tempo-forma (o dado físico) e podem ser considerados como os mais diretos antecessores da Psicologia da Gestalt.

Max Wertheimer (1880-1943), Wolfgang Köhler (1887-1967) e Kurt Koffka (1886-1941), baseados nos estudos psicofísicos que relacionaram a forma e sua percepção, construíram a base de uma teoria eminentemente psicológica.

Eles iniciaram seus estudos pela percepção e sensação do movimento. Os gestaltistas estavam preocupados em compreender quais os processos psicológicos envolvidos na ilusão de ótica, quando o estímulo físico é percebido pelo sujeito como uma forma diferente da que ele tem na realidade. [pg. 59]

É o caso do cinema. Quem já viu uma fita cinematográfica sabe que ela é composta de fotogramas estáticos. O movimento que vemos na tela é uma ilusão de ótica causada pela pós-imagem retiniana (a imagem demora um pouco para se “apagar” em nossa retina). Como as imagens vão-se sobrepondo em nossa retina, temos a sensação de movimento. Mas o que de fato está na tela é uma fotografia estática.

A Percepção

A percepção é o ponto de partida e também um dos temas centrais dessa teoria. Os experimentos com a percepção levaram os teóricos da Gestalt ao questionamento de um princípio implícito na teoria behaviorista — que há relação de causa e efeito entre o estímulo e a resposta — porque, para os gestaltistas, entre o estímulo que o meio fornece e a resposta do indivíduo, encontra-se o processo de percepção. O que o indivíduo percebe e como percebe são dados importantes para a compreensão do comportamento humano.

O confronto Gestalt/Behaviorismo pode ser resumido na posição que cada uma das teorias assume diante do objeto da Psicologia — o comportamento, pois tanto a Gestalt quanto o Behaviorismo definem a Psicologia como a ciência que estuda o comportamento.

O Behaviorismo, dentro de sua preocupação cora a objetividade, estuda o comportamento através da relação estímulo-resposta, procurando isolar o estímulo que corresponderia à resposta esperada e desprezando os conteúdos de “consciência”, pela impossibilidade de controlar cientificamente essas variáveis.

A Gestalt irá criticar essa abordagem, por considerar que o comportamento, quando estudado de maneira isolada de um contexto mais amplo, pode perder seu significado (o seu entendimento) para o psicólogo.

Na visão dos gestaltistas, o comportamento deveria ser estudado nos seus aspectos mais globais, levando em consideração as condições que alteram a percepção do estímulo. Para justificar essa postura, eles se baseavam na teoria do isomorfismo, que supunha uma unidade no universo, onde a parte está sempre relacionada ao todo.

Quando eu vejo uma parte de um objeto, ocorre uma tendência à restauração do equilíbrio da forma, garantindo o entendimento do que estou percebendo.

Esse fenômeno da percepção é norteado pela busca de fechamento, simetria e regularidade dos pontos que compõem uma figura (objeto).

Rudolf Arnheim dá um bom exemplo da tendência à restauração do equilíbrio na relação parte-todo: “De que modo o sentido [pg. 60] da visão se apodera da forma? Nenhuma pessoa dotada de um sistema nervoso perfeito apreende a forma alinhavando os retalhos da cópia de suas partes (...) o sentido normal da visão (...) apreende um padrão global1”.

Nós percebemos a figura 1 como um quadrado, e não como uma figura inclinada ou um perfil (figura 2), apesar de essas últimas também conterem os quatro pontos. Se forem acrescentados mais quatro pontos à figura 1, o padrão mudará, e perceberemos um círculo (figura 3). Na figura 4 é possível ver círculos brancos ou quadrados no centro das cruzes, mesmo não havendo vestígio dos seus contornos.

A Boa-forma

A Gestalt encontra nesses fenômenos da percepção as condições para a compreensão do comportamento humano. A maneira como percebemos um determinado estímulo irá desencadear nosso comportamento. [pg. 61]

Muitas vezes, os nossos comportamentos guardam relação estreita com os estímulos físicos, e outras, eles são completamente diferentes do esperado porque “entendemos” o ambiente de uma maneira diferente da sua realidade. Quantas vezes já nos aconteceu de cumprimentarmos a distância uma pessoa conhecida e, ao chegarmos mais perto, depararmos com um atônito desconhecido. Um “erro” de percepção nos levou ao comportamento de cumprimentar o desconhecido. Ora, ocorre que, no momento em que confundimos a pessoa, estávamos “de fato” cumprimentando nosso amigo. Esta pequena confusão demonstra que a nossa percepção do estímulo (a pessoa desconhecida) naquelas condições ambientais dadas é mediatizada pela forma como interpretamos o conteúdo percebido.

Se nos elementos percebidos não há equilíbrio, simetria, estabilidade e simplicidade, não alcançaremos a boa-forma.

O elemento que objetivamos compreender deve ser apresentado em aspectos básicos, que permitam a sua decodificação, ou seja, a percepção da boa-forma.

O exemplo da figura 5 ilustra a noção de boa-forma. Geralmente percebemos o segmento de reta a maior que o segmento de reta b, mas, na realidade, isso é uma ilusão de ótica, já que ambos são idênticos.

A maneira como se distribuem os elementos que compõem as duas figuras não apresenta equilíbrio, simetria, estabilidade ensimplicidade suficientes para garantir a boa-forma, isto é, para superar a ilusão de ótica.

A tendência da nossa percepção em buscar a boa-forma permitirá a relação figura-fundo. Quanto mais clara estiver a forma (boa-forma), mais clara será a separação entre a figura e o fundo. Quando isso não ocorre, torna-se difícil distinguir o que é figura e o que é fundo. , como é o caso da figura 6. Nessa figura ambígua, fundo e figura substituem-se, dependendo da percepção de quem os olha. Faça o teste: é possível ver a taça e os perfis ao mesmo tempo? [pg. 62]

Meio geográfico e meio comportamental

O comportamento é determinado pela percepção do estímulo e, portanto, estará submetido à lei da boa-forma. O conjunto de estímulos determinantes do comportamento (lembre-se da visão global dos gestaltistas) é denominado meio ou meio ambiental. São conhecidos dois tipos de meio: o geográfico e o comportamental.

O meio geográfico é o meio enquanto tal, o meio físico em termos objetivos. O meio comportamental é o meio resultante da interação do indivíduo com o meio físico e implica a interpretação desse meio através das forças que regem a percepção (equilíbrio, simetria, estabilidade e simplicidade). No exemplo, a pessoa que cumprimentamos era um desconhecido — esse deveria ser o dado percebido, se só tivéssemos acesso ao meio geográfico. Ocorre que, no momento em que vimos a pessoa, a situação (encontro casual no trânsito em movimento, por exemplo) levou-nos a uma interpretação diferente da realidade, e acabamos por confundi-la com uma pessoa conhecida. Esta particular interpretação do meio, onde o que percebemos agora é uma “realidade” subjetiva, particular, criada pela nossa mente, é o meio comportamental. Naturalmente, o comportamento é desencadeado pela percepção do meio comportamental.

Certamente, a semelhança entre as duas pessoas do exemplo (a que vimos e a que conhecemos) foi a causa do engano. Nesse caso, houve uma tendência a estabelecer a unidade das semelhanças entre as duas pessoas, mais que as suas diferenças. Essa tendência a “juntar” os elementos é o que a Gestalt denomina de força do campo psicológico.

O campo psicológico é entendido como um campo de força que nos leva a procurar a boa-forma. Funciona figurativamente como um campo eletromagnético criado por um ímã (a força de atração e repulsão). Esse campo de força psicológico tem uma tendência que garante a busca da melhor forma possível em situações que não estão muito estruturadas. [pg. 63]

Esse processo ocorre de acordo com os seguintes princípios:

  • Proximidade — os elementos mais próximos tendem a ser agrupados.

  • Semelhança — os elementos semelhantes são agrupados.

  • Fechamento — ocorre uma tendência de completar os elementos faltantes da figura para garantir sua compreensão.

Insight

A Psicologia da Gestalt, diferentemente do associacionismo, vê a aprendizagem como a relação entre o todo e a parte, onde o todo tem papel fundamental na compreensão do objeto percebido, enquanto as teorias de S-R (Associacionismo, Behaviorismo) acreditam que aprendemos estabelecendo relações — dos objetos mais simples para os mais complexos.

Exemplificando, é possível a uma criança de 3 anos, que não sabe ler, distinguir a logomarca de um refrigerante e nomeá-lo corretamente. Ela separou a palavra na sua totalidade, distinguindo a figura (palavra) e o fundo. No caso, a criança não aprendeu [pg. 64] a ler a palavra juntando as letras, como nos ensinaram, mas dando significação ao todo.

Nem sempre as situações vividas por nós apresentam-se de forma tão clara que permita sua percepção imediata. Essas situações dificultam o processo de aprendizagem, porque não permitem uma clara definição da figura-fundo, impedindo a relação parte/todo.

Acontece, às vezes, de estarmos olhando para uma figura que não tem sentido para nós e, de repente, sem que tenhamos feito nenhum esforço especial para isso, a relação figura-fundo elucida-se.

A esse fenômeno a Gestalt dá o nome de insight. O termo designa uma compreensão imediata, enquanto uma espécie de “entendimento interno”.

A Teoria de Campo de Kurt Lewin

Kurt Lewin (1890-1947) trabalhou durante 10 anos com Wertheimer, Koffka e Köhler na Universidade de Berlim, e dessa colaboração cora os pioneiros da Gestalt nasceu a sua Teoria de Campo. Entretanto não podemos considerar Lewin como um gestaltista, já que ele acaba seguindo um outro rumo. Lewin parte da teoria da Gestalt para construir um conhecimento novo e genuíno. Ele abandona a preocupação psicofisiológica (limiares de percepção) da Gestalt, para buscar na Física as bases metodológicas de sua psicologia.

O principal conceito de Lewin é o do espaço vital, que ele define como a totalidade dos fatos que determinam o comportamento do indivíduo num certo momento2. O que Lewin concebeu como campo psicológico foi o espaço de vida considerado dinamicamente, onde se levam em conta não somente o indivíduo e o meio, mas também a totalidade dos fatos coexistentes e mutuamente interdependentes.

Segundo Garcia-Roza, o “campo não deve, porém, ser compreendido como uma realidade física, mas sim fenomênica. Não são apenas os fatos físicos que produzem efeitos sobre o comportamento. O campo deve ser representado tal como ele existe para o indivíduo em questão, em um determinado momento, e não como ele é em si. Para a constituição desse campo, as amizades, os objetivos conscientes e inconscientes, os sonhos e os medos são tão essenciais como qualquer ambiente físico”3. [pg. 65]

A realidade fenomênica em Lewin pode ser compreendida como o meio comportamental da Gestalt, ou seja, a maneira particular como o indivíduo interpreta uma determinada situação. Entretanto, para Lewin, esse conceito não está se referindo apenas à percepção (enquanto fenômeno psicofisiológico), mas também a características de personalidade do indivíduo, a componentes emocionais ligados ao grupo e à própria situação vivida, assim como a situações passadas e que estejam ligadas ao acontecimento, na forma em que são representadas no espaço de vida atual do indivíduo.

Como exemplo de campo psicológico e espaço vital, contaremos um breve encontro:

Um rapaz, ao chegar a sua casa, surpreende os pais num final de conversa e escuta o seguinte: “Ele chegou, é melhor não falarmos disso agora”. Ele entende que os pais conversavam sobre um problema muito sério, de que ele não deveria tomar conhecimento. Resolve não fazer nenhum comentário sobre o assunto. Dias depois, chegando novamente em casa, encontra seus pais na sala com dois homens em ternos escuros. Imediatamente, associa esses homens ao final da conversa escutada e entende que eles, de alguma forma, estariam relacionados às preocupações dos pais.

Ocorre que a conversa referia-se a uma surpresa que os pais preparavam para o seu aniversário, e os dois homens eram antigos colegas de faculdade de seu pai, que aproveitavam a passagem pela cidade para fazer uma visita ao colega que há tanto tempo não viam.

Nessa história, o campo psicológico é representado pelas “linhas de força” (como no campo da eletromagnética), que “atraem” a percepção e lhe dão significado. O rapaz interpretou a situação pelo seu aspecto fenomênico e não pelo que ocorria de fato. A sua interpretação ganhou consistência com a visita de duas pessoas que ele não conhecia e, nesse sentido, as linhas de força estavam fazendo um corte no tempo. Isso foi possível porque o rapaz havia memorizado a situação anterior e a ela associado a seguinte. A partir da experiência anterior, a nova ganhou significado. O espaço vital esteve representado pela situação mais imediata, que determinou o comportamento. Foi o caso do rapaz quando surpreendeu os pais conversando e procurou fingir que nada havia escutado ou a surpresa ao encontrar aqueles homens na sua casa.

O entendimento desse espaço vital depende diretamente do campo psicológico.

Como Lewin considerava que o comportamento deve ser visto em sua totalidade, não demorou muito para chegar ao conceito de grupo. Praticamente todos os momentos de nossas vidas se dão no interior de grupos. Segundo Lewin, a característica essencialmente definidora do grupo é a interdependência de seus membros. [pg. 66] Isto significa que o grupo, para ele, não é a soma das características de seus membros, mas algo novo, resultante dos processos que ali ocorrem. Assim, a mudança de um membro no grupo pode alterar completamente a dinâmica deste. Lewin deu muita ênfase ao pequeno grupo, por considerar que a Psicologia ainda não possui instrumental suficiente para o estudo de grandes massas.

Transportando a noção de campo psicológico para a Psicologia social, Lewin criou o conceito de campo social, formado pelo grupo e seu ambiente. Outra característica do grupo é o clima social, onde uma liderança autocrática, democrática ou laissez-faire irá determinar o desempenho do grupo. Através de um minucioso trabalho experimental, Lewin pesquisou a dinâmica grupal e foi, sem dúvida alguma, um dos psicólogos que mais contribuições trouxeram para a área da Psicologia, contribuições que estão presentes até hoje, embasando as teorias e as técnicas de trabalho com os grupos.

Psicologia - Gestalt
7/12/2021 3:45:53 PM | Por Ana Mercês Bahia Bock
O Behaviorismo

O termo Behaviorismo foi inaugurado pelo americano John B. Watson, em artigo publicado em 1913, que apresentava o título “Psicologia: como os behavioristas a vêem”. O termo inglês behavior significa “comportamento”; por isso, para denominar essa tendência teórica, usamos Behaviorismo — e, também, Comportamentalismo, Teoria Comportamental, Análise Experimental do Comportamento, Análise do Comportamento.

Watson, postulando o comportamento como objeto da Psicologia, dava a esta ciência a consistência que os psicólogos da época vinham buscando — um objeto observável, mensurável, cujos experimentos poderiam ser reproduzidos em diferentes condições e sujeitos. Essas características foram importantes para que a Psicologia alcançasse o status de ciência, rompendo definitivamente com a sua tradição filosófica. Watson também defendia uma perspectiva funcionalista para a Psicologia, isto é, o comportamento deveria ser estudado como função de certas variáveis do meio. Certos estímulos levam o organismo a dar determinadas respostas e isso ocorre porque os organismos se ajustam aos seus ambientes por meio de equipamentos hereditários e pela formação de hábitos. Watson buscava a construção de uma Psicologia sem alma e sem mente, livre de conceitos mentalistas e de métodos subjetivos, e que tivesse a capacidade de prever e controlar.

Apesar de colocar o “comportamento” como objeto da Psicologia, o Behaviorismo foi, desde Watson, modificando o sentido desse termo. Hoje, não se entende comportamento como uma [pg. 45] ação isolada de um sujeito, mas, sim, como uma interação entre aquilo que o sujeito faz e o ambiente onde o seu “fazer” acontece. Portanto, o Behaviorismo dedica-se ao estudo das interações entre o indivíduo e o ambiente, entre as ações do indivíduo (suas respostas) e o ambiente (as estimulações).

Os psicólogos desta abordagem chegaram aos termos “resposta” e “estímulo” para se referirem àquilo que o organismo faz e às variáveis ambientais que interagem com o sujeito. Para explicar a adoção desses termos, duas razões podem ser apontadas: uma metodológica e outra histórica.

A razão metodológica deve-se ao fato de que os analistas experimentais do comportamento tomaram, como modo preferencial de investigação, um método experimental e analítico.

Com isso, os experimentadores sentiram a necessidade de dividir o objeto para efeito de investigação, chegando a unidades de análise.

A razão histórica refere-se aos termos escolhidos e popularizados, que foram mantidos posteriormente por outros estudiosos do comportamento, devido ao seu uso generalizado.

Comportamento, entendido como interação indivíduo-ambiente, é a unidade básica de descrição e o ponto de partida para uma ciência do comportamento. O homem começa a ser estudado a partir de sua interação com o ambiente, sendo tomado como produto e produtor dessas interações.

A análise experimental do comportamento

O mais importante dos behavioristas que sucedem Watson é B. F. Skinner (1904-1990).

O Behaviorismo de Skinner tem influenciado muitos psicólogos estadunidenses e de vários países onde a Psicologia estadunidense tem grande penetração, como o Brasil. Esta linha de estudo ficou conhecida por Behaviorismo radical, termo cunhado pelo próprio Skinner, em 1945, para designar uma filosofia da Ciência do Comportamento (que ele se propôs defender) por meio da análise experimental do comportamento.

A base da corrente skinneriana está na formulação do comportamento operante. Para desenvolver este conceito, retrocederemos um pouco na história do Behaviorismo, introduzindo as noções de comportamento reflexo ou respondente, para então chegarmos ao comportamento operante. Vamos lá. [pg. 46]

O comportamento respondente

O comportamento reflexo ou respondente é o que usualmente chamamos de “não-voluntário” e inclui as respostas que são eliciadas (“produzidas”) por estímulos antecedentes do ambiente. Como exemplo, podemos citar a contração das pupilas quando uma luz forte incide sobre os olhos, a salivação provocada por uma gota de limão colocada na ponta da língua, o arrepio da pele quando um ar frio nos atinge, as famosas “lágrimas de cebola” etc.

Esses comportamentos reflexos ou respondentes são interações estímulo-resposta (ambiente-sujeito) incondicionadas, nas quais certos eventos ambientais confiavelmente eliciam certas respostas do organismo que independem de “aprendizagem”. Mas interações desse tipo também podem ser provocadas por estímulos que, originalmente, não eliciavam respostas em determinado organismo. Quando tais estímulos são temporalmente pareados com estímulos eliciadores podem, em certas condições, eliciar respostas semelhantes às destes. A essas novas interações chamamos também de reflexos, que agora são condicionados devido a uma história de pareamento, o qual levou o organismo a responder a estímulos que antes não respondia. Para deixar isso mais claro, vamos a um exemplo: suponha que, numa sala aquecida, sua mão direita seja mergulhada numa vasilha de água gelada. A temperatura da mão cairá rapidamente devido ao encolhimento ou constrição dos vasos sangüíneos, caracterizando o comportamento como respondente. Esse comportamento será acompanhado de uma modificação semelhante, e mais facilmente mensurável, na mão esquerda, onde a constrição vascular também será induzida. Suponha, agora, que a sua mão direita seja mergulhada na água gelada um certo número de vezes, em intervalos de três ou quatro minutos, e que você ouça uma campainha pouco antes de cada imersão. Lá pelo vigésimo pareamento do som da campainha com a água fria, a mudança de temperatura nas mãos poderá ser eliciada apenas pelo som, isto é, sem necessidade de imergir uma das mãos.

Neste exemplo de condicionamento respondente, a queda da temperatura da mão, eliciada pela água fria, é uma resposta incondicionada, enquanto a queda da temperatura, eliciada pelo som, é uma resposta condicionada (aprendida): a água é um estímulo incondicionado, e o som, um estímulo condicionado. [pg. 47]

No início dos anos 30, na Universidade de Harvard (Estados Unidos), Skinner começou o estudo do comportamento justamente pelo comportamento respondente, que se tornara a unidade básica de análise, ou seja, o fundamento para a descrição das interações indivíduo-ambiente. O desenvolvimento de seu trabalho levou-o a teorizar sobre um outro tipo de relação do indivíduo com seu ambiente, a qual viria a ser nova unidade de análise de sua ciência: o comportamento operante. Esse tipo de comportamento caracteriza a maioria de nossas interações com o ambiente.

O comportamento operante

O comportamento operante abrange um leque amplo da atividade humana — dos comportamentos do bebê de balbuciar, de agarrar objetos e de olhar os enfeites do berço aos mais sofisticados, apresentados pelo adulto. Como nos diz Keller, o comportamento operante “inclui todos os movimentos de um organismo dos quais se possa dizer que, em algum momento, têm efeito sobre ou fazem algo ao mundo em redor. O comportamento operante opera sobre o mundo, por assim dizer, quer direta, quer indiretamente”.

A leitura que você está fazendo deste texto é um exemplo de comportamento operante, assim como escrever uma carta, chamar o táxi com um gesto de mão, tocar um instrumento etc.

Para exemplificarmos melhor os conceitos apresentados até aqui, vamos relembrar um conhecido experimento feito com ratos de laboratório. Vale informar que animais como ratos, pombos e macacos — para citar alguns — foram utilizados pelos analistas experimentais do comportamento (inclusive Skinner) para verificar como as variações no ambiente interferiam nos comportamentos. Tais experimentos permitiram-lhes fazer afirmações sobre o que chamaram de leis comportamentais.

Um ratinho, ao sentir sede em seu habitat, certamente manifesta algum comportamento que lhe permita satisfazer a sua necessidade orgânica. Esse comportamento foi aprendido por ele e se mantém pelo efeito proporcionado: saciar a sede. Assim, se deixarmos [pg. 48] um ratinho privado de água durante 24 horas, ele certamente apresentará o comportamento de beber água no momento em que tiver sede. Sabendo disso, os pesquisadores da época decidiram simular esta situação em laboratório sob condições especiais de controle, o que os levou à formulação de uma lei comportamental.

Um ratinho foi colocado na “caixa de Skinner” — um recipiente fechado no qual encontrava apenas uma barra. Esta barra, ao ser pressionada por ele, acionava um mecanismo (camuflado) que lhe permitia obter uma gotinha de água, que chegava à caixa por meio de uma pequena haste.

Que resposta esperava-se do ratinho? — Que pressionasse a barra. Como isso ocorreu pela primeira vez? — Por acaso. Durante a exploração da caixa, o ratinho pressionou a barra acidentalmente, o que lhe trouxe, pela primeira vez, uma gotinha de água, que, devido à sede, fora rapidamente consumida. Por ter obtido água ao encostar na barra quando sentia sede, constatou-se a alta probabilidade de que, estando em situação semelhante, o ratinho a pressionasse novamente.

Neste caso de comportamento operante, o que propicia a aprendizagem dos comportamentos é a ação do organismo sobre o meio e o efeito dela resultante — a satisfação de alguma necessidade, ou seja, a aprendizagem está na relação entre uma ação e seu efeito.

Este comportamento operante pode ser representado da seguinte maneira: R —► S, em que R é a resposta (pressionar a barra) e S (do inglês stimuli) o estímulo reforçador (a água), que tanto interessa ao organismo; a flecha significa “levar a”.

Esse estímulo reforçador é chamado de reforço. O termo “estímulo” foi mantido da relação R-S do comportamento respondente para designar-lhe a responsabilidade pela ação, apesar de ela ocorrer após a manifestação do comportamento. O comportamento operante refere-se à interação sujeito-ambiente. Nessa interação, chama-se de relação fundamental à relação entre a ação do indivíduo (a emissão da resposta) e as conseqüências. É considerada fundamental porque o organismo se comporta (emitindo esta ou [pg. 49] aquela resposta), sua ação produz uma alteração ambiental (uma conseqüência) que, por sua vez, retroage sobre o sujeito, alterando a probabilidade futura de ocorrência. Assim, agimos ou operamos sobre o mundo em função das conseqüências criadas pela nossa ação. As conseqüências da resposta são as variáveis de controle mais relevantes.

Pense no aprendizado de um instrumento: nós o tocamos para ouvir seu som harmonioso. Há outros exemplos: podemos dançar para estar próximo do corpo do outro, mexer com uma garota para receber seu olhar, abrir uma janela para entrar a luz etc.

Reforçamento

Chamamos de reforço a toda conseqüência que, seguindo uma resposta, altera a probabilidade futura de ocorrência dessa resposta.

O reforço pode ser positivo ou negativo.

O reforço positivo é todo evento que aumenta a probabilidade futura da resposta que o produz.

O reforço negativo é todo evento que aumenta a probabilidade futura da resposta que o remove ou atenua.

Assim, poderíamos voltar à nossa “caixa de Skinner” que, no experimento anterior, oferecia uma gota de água ao ratinho sempre que encostasse na barra. Agora, ao ser colocado na caixa, ele recebe choques do assoalho. Após várias tentativas de evitar os choques, o ratinho chega à barra e, ao pressioná-la acidentalmente, os choques cessam. Com isso, as respostas de pressão à barra tenderão a aumentar de freqüência. Chama-se de reforçamento negativo ao processo de fortalecimento dessa classe de respostas (pressão à barra), isto é, a remoção de um estímulo aversivo controla a emissão da resposta. É condicionamento por se tratar de aprendizagem, e também reforçamento, porque um comportamento é apresentado e aumentado em sua freqüência ao alcançar o efeito desejado.

O reforçamento positivo oferece alguma coisa ao organismo (gotas de água com a pressão da barra, por exemplo); o negativo permite a retirada de algo indesejável (os choques do último exemplo).

Não se pode, a priori, definir um evento como reforçador. A função reforçadora de um evento ambiental qualquer só é definida por sua função sobre o comportamento do indivíduo. [pg. 50]

Entretanto, alguns eventos tendem a ser reforçadores para toda uma espécie, como, por exemplo, água, alimento e afeto. Esses são denominados reforços primários. Os reforços secundários, ao contrário, são aqueles que adquiriram a função quando pareados temporalmente com os primários. Alguns destes reforçadores secundários, quando emparelhados com muitos outros, tornam-se reforçadores generalizados, como o dinheiro e a aprovação social.

No reforçamento negativo, dois processos importantes merecem destaque: a esquiva e a fuga.

A esquiva é um processo no qual os estímulos aversivos condicionados e incondicionados estão separados por um intervalo de tempo apreciável, permitindo que o indivíduo execute um comportamento que previna a ocorrência ou reduza a magnitude do segundo estímulo. Você, com certeza, sabe que o raio (primeiro estímulo) precede à trovoada (segundo estímulo), que o chiado precede ao estouro dos rojões, que o som do “motorzinho” usado pelo dentista precede à dor no dente. Estes estímulos são aversivos, mas os primeiros nos possibilitam evitar ou reduzir a magnitude dos seguintes, ou seja, tapamos os ouvidos para evitar o estouro dos trovões ou desviamos o rosto da broca usada pelo dentista. Por que isso acontece?

Quando os estímulos ocorrem nessa ordem, o primeiro torna-se um reforçador negativo condicionado (aprendido) e a ação que o reduz é reforçada pelo condicionamento operante. As ocorrências passadas de reforçadores negativos condicionados são responsáveis pela probabilidade da resposta de esquiva.

No processo de esquiva, após o estímulo condicionado, o indivíduo apresenta um comportamento que é reforçado pela necessidade de reduzir ou evitar o segundo estímulo, que também é aversivo, ou seja, após a visão do raio, o indivíduo manifesta um comportamento (tapar os ouvidos), que é reforçado pela necessidade de reduzir o segundo estímulo (o barulho do trovão) — igualmente aversivo. [pg. 51]

Outro processo semelhante é o de fuga. Neste caso, o comportamento reforçado é aquele que termina com um estímulo aversivo já em andamento.

A diferença é sutil. Se posso colocar as mãos nos ouvidos para não escutar o estrondo do rojão, este comportamento é de esquiva, pois estou evitando o segundo estímulo antes que ele aconteça. Mas, se os rojões começam a pipocar e só depois apresento um comportamento para evitar o barulho que incomoda, seja fechando a porta, seja indo embora ou mesmo tapando os ouvidos, pode-se falar em fuga. Ambos reduzem ou evitam os estímulos aversivos, mas em processos diferentes. No caso da esquiva, há um estímulo condicionado que antecede o estímulo incondicionado e me possibilita a emissão do comportamento de esquiva. Uma esquiva bem-sucedida impede a ocorrência do estímulo incondicionado. No caso da fuga, só há um estímulo aversivo incondicionado que, quando apresentado, será evitado pelo comportamento de fuga. Neste segundo caso, não se evita o estímulo aversivo, mas se foge dele depois de iniciado.

Extinção

Outros processos foram sendo formulados pela Análise Experimental do Comportamento. Um deles é o da extinção.

A extinção é um procedimento no qual uma resposta deixa abruptamente de ser reforçada. Como conseqüência, a resposta diminuirá de freqüência e até mesmo poderá deixar de ser emitida. O tempo necessário para que a resposta deixe de ser emitida dependerá da história e do valor do reforço envolvido.

Assim, quando uma menina, que estávamos paquerando, deixa de nos olhar e passa a nos ignorar, nossas “investidas” tenderão a desaparecer.

Punição

A punição é outro procedimento importante que envolve a conseqüenciação de uma resposta quando há apresentação de um estímulo aversivo ou remoção de um reforçador positivo presente.

Os dados de pesquisas mostram que a supressão do comportamento punido só é definitiva se a punição for extremamente intensa, isto porque as razões que levaram à ação — que se pune — não são alteradas cora a punição.

Punir ações leva à supressão temporária da resposta sem, contudo, alterar a motivação. [pg. 52]

Por causa de resultados como estes, os behavioristas têm debatido a validade do procedimento da punição como forma de reduzir a freqüência de certas respostas. As práticas punitivas correntes na Educação foram questionadas pelo Behaviorismo — obrigava-se o aluno a ajoelhar-se no milho, a fazer inúmeras cópias de um mesmo texto, a receber “reguadas”, a ficar isolado etc. Os behavioristas, respaldados por crítica feita por Skinner e outros autores, propuseram a substituição definitiva das práticas punitivas por procedimentos de instalação de comportamentos desejáveis. Esse princípio pode ser aplicado no cotidiano e em todos os espaços em que se trabalhe para instalar comportamentos desejados. O trânsito é um excelente exemplo. Apesar das punições aplicadas a motoristas e pedestres na maior parte das infrações cometidas no trânsito, tais punições não os têm motivado a adotar um comportamento considerado adequado para o trânsito. Em vez de adotarem novos comportamentos, tornaram-se especialistas na esquiva e na fuga.

Controle de estímulos

Tem sido polêmica a discussão sobre a natureza ou a extensão do controle que o ambiente exerce sobre nós, mas não há como negar que há algum controle. Assumir a existência desse controle e estudá-la permite maior entendimento dos meios pelos quais os estímulos agem.

Assim, quando a freqüência ou a forma da resposta é diferente sob estímulos diferentes, diz-se que o comportamento está sob o controle de estímulos. Se o motorista pára ou acelera o ônibus no cruzamento de ruas onde há semáforo que ora está verde, ora vermelho, sabemos que o comportamento de dirigir está sob o controle de estímulos.

Dois importantes processos devem ser apresentados: discriminação e generalização. [pg. 53]

Discriminação

Diz-se que se desenvolveu uma discriminação de estímulos quando uma resposta se mantém na presença de um estímulo, mas sofre certo grau de extinção na presença de outro. Isto é, um estímulo adquire a possibilidade de ser conhecido como discriminativo da situação reforçadora. Sempre que ele for apresentado e a resposta emitida, haverá reforço. Assim, nosso motorista de ônibus vai parar o veículo quando o semáforo estiver vermelho, ou melhor, esperamos que, para ele, o semáforo vermelho tenha se tornado um estímulo discriminativo para a emissão do comportamento de parar.

Poderíamos refletir, também, sobre o aprendizado social. Por exemplo: existem normas e regras de conduta para festas — cumprimentar os presentes, ser gentil, procurar manter diálogo com as pessoas, agradecer e elogiar a dona da casa etc. No entanto, as festas podem ser diferentes: informais ou pomposas, dependendo de onde, de como e de quem as organiza. Somos, então, capazes de discriminar esses diferentes estímulos e de nos comportarmos de maneira diferente em cada situação.

Generalização

Na generalização de estímulos, um estímulo adquire controle sobre uma resposta devido ao reforço na presença de um estímulo similar, mas diferente. Freqüentemente, a generalização depende de elementos comuns a dois ou mais estímulos. Poderíamos aqui brincar com as cores do semáforo: se fossem rosa e vermelho, correríamos o risco dos motoristas acelerarem seus veículos no semáforo vermelho, pois poderiam generalizar os estímulos. Mas isso não acontece com o verde e com o vermelho, que são cores muito distintas e, além disso, estão situadas em extremidades opostas do semáforo — o vermelho, na superior, e o verde, na inferior, permitindo a discriminação dos estímulos.

Na generalização, portanto, respondemos de forma semelhante a um conjunto de estímulos percebidos como semelhantes.

Esse princípio da generalização é fundamental quando pensamos na aprendizagem escolar. Nós aprendemos na escola alguns conceitos básicos, como fazer contas e escrever. Graças à generalização, podemos transferir esses aprendizados para diferentes situações, como dar ou receber troco, escrever uma carta para a namorada distante, aplicar conceitos da Física para consertar aparelhos eletrodomésticos etc.

Na vida cotidiana, também aprendemos a nos comportar em diferentes situações sociais, dada a nossa capacidade de generalização no aprendizado de regras e normas sociais. [pg. 54]

Behaviorismo: sua aplicação

Uma área de aplicação dos conceitos apresentados tem sido a Educação. São conhecidos os métodos de ensino programado, o controle e a organização das situações de aprendizagem, bem como a elaboração de uma tecnologia de ensino.

Entretanto, outras áreas também têm recebido a contribuição das técnicas e conceitos desenvolvidos pelo Behaviorismo, como a de treinamento de empresas, a clínica psicológica, o trabalho educativo de crianças excepcionais, a publicidade e outras mais. No Brasil, talvez a área clínica seja, hoje, a que mais utiliza os conhecimentos do Behaviorismo.

Na verdade, a Análise Experimental do Comportamento pode nos auxiliar a descrever nossos comportamentos em qualquer situação, ajudando-nos a modificá-los.

Psicologia - História da Psicologia
7/12/2021 1:02:52 PM | Por Ana Mercês Bahia Bock
A evolução da ciência psicológica

Toda e qualquer produção humana — uma cadeira, uma religião, um computador, uma obra de arte, uma teoria científica — tem por trás de si a contribuição de inúmeros homens, que, em um tempo anterior ao presente, fizeram indagações, realizaram descobertas, inventaram técnicas e desenvolveram idéias, isto é, por trás de qualquer produção material ou espiritual, existe a História.

Compreender, em profundidade, algo que compõe o nosso mundo significa recuperar sua história. O passado e o futuro sempre estão no presente, enquanto base constitutiva e enquanto projeto. Por exemplo, todos nós temos uma história pessoal e nos tornamos pouco compreensíveis se não recorremos a ela e à nossa perspectiva de futuro para entendermos quem somos e por que somos de uma determinada forma.

Esta história pode ser mais ou menos longa para os diferentes aspectos da produção humana. No caso da Psicologia, a história tem por volta de dois milênios. Esse tempo refere-se à Psicologia no Ocidente, que começa entre os gregos, no período anterior à era cristã.

Para compreender a diversidade com que a Psicologia se apresenta hoje, é indispensável recuperar sua história. A história de sua construção está ligada, em cada momento histórico, às exigências de conhecimento da humanidade, às demais áreas do conhecimento humano e aos novos desafios colocados pela realidade econômica e social e pela insaciável necessidade do homem de compreender a si mesmo. [pg. 31]

A Psicologia entre os gregos: os primórdios

A história do pensamento humano tem um momento áureo na Antiguidade, entre os gregos, particularmente no período de 700 a.e.c. até a dominação romana, às vésperas da era cristã.

Os gregos foram o povo mais evoluído nessa época. Uma produção minimamente planejada e bem-sucedida permitiu a construção das primeiras cidades-estados (pólis). A manutenção dessas cidades implicava a necessidade de mais riquezas, as quais alimentavam, também, o poderio dos cidadãos (membros da classe dominante na Grécia Antiga). Assim, iniciaram a conquista de novos territórios (Mediterrâneo, Ásia Menor, chegando quase até a China), que geraram riquezas na forma de escravos para trabalhar nas cidades e na forma de tributos pagos pelos territórios conquistados.

As riquezas geraram crescimento, e este crescimento exigia soluções práticas para a arquitetura, para a agricultura e para a organização social. Isso explica os avanços na Física, na Geometria, na teoria política (inclusive com a criação do conceito de democracia).

Tais avanços permitiram que o cidadão se ocupasse das coisas do espírito, como a Filosofia e a arte. Alguns homens, como Platão e Aristóteles, dedicaram-se a compreender esse espírito empreendedor do conquistador grego, ou seja, a Filosofia começou a especular em torno do homem e da sua interioridade.

É entre os filósofos gregos que surge a primeira tentativa de sistematizar uma Psicologia. O próprio termo psicologia vem do grego psyché, que significa alma, e de logos, que significa razão. Portanto, [pg. 32] etimologicamente, psicologia significa “estudo da alma”. A alma ou espírito era concebida como a parte imaterial do ser humano e abarcaria o pensamento, os sentimentos de amor e ódio, a irracionalidade, o desejo, a sensação e a percepção.

Os filósofos pré-socráticos (assim chamados por antecederem Sócrates, filósofo grego) preocupavam-se em definir a relação do homem com o mundo através da percepção. Discutiam se o mundo existe porque o homem o vê ou se o homem vê um mundo que já existe. Havia uma oposição entre os idealistas (a idéia forma o mundo) e os materialistas (a matéria que forma o mundo já é dada para a percepção).

Mas é com Sócrates (469-399 a.e.c.) que a Psicologia na Antiguidade ganha consistência. Sua principal preocupação era com o limite que separa o homem dos animais. Desta forma, postulava que a principal característica humana era a razão. A razão permitia ao homem sobrepor-se aos instintos, que seriam a base da irracionalidade. Ao definir a razão como peculiaridade do homem ou como essência humana, Sócrates abre um caminho que seria muito explorado pela Psicologia. As teorias da consciência são, de certa forma, frutos dessa primeira sistematização na Filosofia.

O passo seguinte é dado por Platão (427-347 a.e.c.), discípulo de Sócrates. Esse filósofo procurou definir um “lugar” para a razão no nosso próprio corpo.

Definiu esse lugar como sendo a cabeça, onde se encontra a alma do homem. A medula seria, portanto, o elemento de ligação da alma com o corpo. Este elemento de ligação era necessário porque Platão concebia a alma separada do corpo. Quando alguém morria, a matéria (o corpo) desaparecia, mas a alma ficava livre para ocupar outro corpo. Aristóteles (384-322 a.e.c), discípulo de Platão, foi um dos mais importantes pensadores da história da Filosofia. Sua contribuição foi inovadora ao postular que alma e corpo não podem ser dissociados. Para Aristóteles, a psyché seria o princípio ativo da vida.

Tudo aquilo que cresce, se reproduz e se alimenta possui a sua psyché ou alma. Desta forma, os vegetais, os animais e o homem teriam alma. Os vegetais teriam a alma vegetativa, que se define pela função de alimentação e reprodução. Os animais teriam essa alma e a alma sensitiva, que tem a função de percepção e movimento. E o homem teria os dois níveis anteriores e a alma racional, que tem a função pensante.

Esse filósofo chegou a estudar as diferenças entre a razão, a percepção e as sensações. Esse estudo está sistematizado no Da anima, que pode ser considerado o primeiro tratado em Psicologia. [pg 33] Portanto, 2 300 anos antes do advento da Psicologia científica, os gregos já haviam formulado duas “teorias”: a platônica, que postulava a imortalidade da alma e a concebia separada do corpo, e a aristotélica, que afirmava a mortalidade da alma e a sua relação de pertencimento ao corpo.

A Psicologia no Império romano e na Idade média 

Às vésperas da era cristã, surge um novo império que iria dominar a Grécia, parte da Europa e do Oriente Médio: o Império Romano. Uma das principais características desse período é o aparecimento e desenvolvimento do cristianismo — uma força religiosa que passa a força política dominante. Mesmo com as invasões bárbaras, por volta de 400 e.c., que levam à desorganização econômica e ao esfacelamento dos territórios, o cristianismo sobrevive e até se fortalece, tornando-se a religião principal da Idade Média, período que então se inicia. [pg. 34]

E falar de Psicologia nesse período é relacioná-la ao conhecimento religioso, já que, ao lado do poder econômico e político, a Igreja Católica também monopolizava o saber e, conseqüentemente, o estudo do psiquismo.

Nesse sentido, dois grandes filósofos representam esse período: Santo Agostinho (354-430) e São Tomás de Aquino (1225-1274). Santo Agostinho, inspirado em Platão, também fazia uma cisão entre alma e corpo.

Entretanto, para ele, a alma não era somente a sede da razão, mas a prova de uma manifestação divina no homem. A alma era imortal por ser o elemento que liga o homem a Deus. E, sendo a alma também a sede do pensamento, a Igreja passa a se preocupar também com sua compreensão.

São Tomás de Aquino viveu em um período que prenunciava a ruptura da Igreja Católica, o aparecimento do protestantismo — uma época que preparava a transição para o capitalismo, com a revolução francesa e a revolução industrial na Inglaterra. Essa crise econômica e social leva ao questionamento da Igreja e dos conhecimentos produzidos por ela.

Dessa forma, foi preciso encontrar novas justificativas para a relação entre Deus e o homem. São Tomás de Aquino foi buscar em Aristóteles a distinção entre essência e existência. Como o filósofo grego, considera que o homem, na sua essência, busca a perfeição através de sua existência. Porém, introduzindo o ponto de vista religioso, ao contrário de Aristóteles, afirma que somente Deus seria capaz de reunir a essência e a existência, em termos de igualdade. Portanto, a busca de perfeição pelo homem seria a busca de Deus. São Tomás de Aquino encontra argumentos racionais para justificar os dogmas da Igreja e continua garantindo para ela o monopólio do estudo do psiquismo.

A Psicologia no renascimento

Pouco mais de 200 anos após a morte de São Tomás de Aquino, tem início uma época de transformações radicais no mundo europeu. É o Renascimento ou Renascença. O mercantilismo leva à descoberta de novas terras (a América, o caminho para as Índias, a rota [pg. 35] do Pacífico), e isto propicia a acumulação de riquezas pelas nações em formação, como França, Itália, Espanha, Inglaterra. Na transição para o capitalismo, começa a emergir uma nova forma de organização econômica e social. Dá-se, também, um processo de valorização do homem.

As transformações ocorrem em todos os setores da produção humana. Por volta de 1300, Dante escreve A Divina Comédia; entre 1475 e 1478, Leonardo da Vinci pinta o quadro Anunciação; em 1484, Boticelli pinta o Nascimento de Vênus; em 1501, Michelangelo esculpe o Davi; e, em 1513, Maquiavel escreve O Príncipe, obra clássica da política.

As ciências também conhecem um grande avanço. Em 1543, Copérnico causa uma revolução no conhecimento humano mostrando que o nosso planeta não é o centro do universo. Em 1610, Galileu estuda a queda dos corpos, realizando as primeiras experiências da Física moderna. Esse avanço na produção de conhecimentos propicia o início da sistematização do conhecimento científico — começam a se estabelecer métodos e regras básicas para a construção do conhecimento científico.

Neste período, René Descartes (1596-1659), um dos filósofos que mais contribuiu para o avanço da ciência, postula a separação entre mente (alma, espírito) e corpo, afirmando que o homem possui uma substância material e uma substância pensante, e que o corpo, desprovido do espírito, é apenas uma máquina. Esse dualismo mente-corpo torna possível o estudo do corpo humano morto, o que era impensável nos séculos anteriores (o corpo era considerado sagrado pela Igreja, por ser a sede da alma), e dessa forma possibilita o avanço da Anatomia e da Fisiologia, que iria contribuir em muito para o progresso da própria Psicologia. [pg. 36]

A Origem da Psicologia científica

No século 19, destaca-se o papel da ciência, e seu avanço tornasse necessário. O crescimento da nova ordem econômica — o capitalismo — traz consigo o processo de industrialização, para o qual a ciência deveria dar respostas e soluções práticas no campo da técnica. Há, então, um impulso muito grande para o desenvolvimento da ciência, enquanto um sustentáculo da nova ordem econômica e social, e dos problemas colocados por ela.

Para uma melhor compreensão, retomemos algumas características da sociedade feudal e capitalista emergente, sendo esta responsável por mudanças que marcariam a história da humanidade.

Na sociedade feudal, com modo de produção voltado para a subsistência, a terra era a principal fonte de produção. A relação do senhor e do servo era típica de uma economia fechada, na qual uma hierarquia rígida estava estabelecida, não havendo mobilidade social.

Era uma sociedade estável, em que predominava uma visão de um universo estático — um mundo natural organizado e hierárquico, em que a verdade era sempre decorrente de revelações. Nesse mundo vivia um homem que tinha seu lugar social definido a partir do nascimento. A razão estava submetida à fé como garantia de centralização do poder. A autoridade era o critério de verdade. Esse mundo fechado e esse universo finito refletiam e justificavam a hierarquia social inquestionável do feudo.

O capitalismo pôs esse mundo em movimento, com a necessidade de abastecer mercados e produzir cada vez mais: buscou novas matérias-primas na Natureza; criou necessidades; contratou o trabalho de muitos que, por sua vez, tornavam-se consumidores das mercadorias produzidas; questionou as hierarquias para derrubar a nobreza e o clero de seus lugares há tantos séculos estabilizados.

O universo também foi posto em movimento. O Sol tornou-se o centro do universo, que passou a ser visto sem hierarquizações. O homem, por sua vez, deixou de ser o centro do universo (antropocentrismo), passando a ser concebido como um ser livre, capaz de construir seu futuro. O servo, liberto de seu vínculo com a terra, pôde escolher seu trabalho e seu lugar social. Com isso, o capitalismo tornou todos os homens consumidores, em potencial, das mercadorias produzidas.

O conhecimento tornou-se independente da fé. Os dogmas da Igreja foram questionados. O mundo se moveu. A racionalidade do homem apareceu, então, como a grande possibilidade de construção do conhecimento. [pg. 37]

A burguesia, que disputava o poder e surgia como nova classe social e econômica, defendia a emancipação do homem para emancipares também. Era preciso quebrar a idéia de universo estável para poder transformá-lo. Era preciso questionar a Natureza como algo dado para viabilizar a sua exploração em busca de matérias-primas.

Estavam dadas as condições materiais para o desenvolvimento da ciência moderna. As idéias dominantes fermentaram essa construção: o conhecimento como fruto da razão; a possibilidade de desvendar a Natureza e suas leis pela observação rigorosa e objetiva. A busca de um método rigoroso, que possibilitasse a observação para a descoberta dessas leis, apontava a necessidade de os homens construírem novas formas de produzir conhecimento — que não era mais estabelecido pelos dogmas religiosos e/ou pela autoridade eclesial. Sentiu-se necessidade da ciência.

Nesse período, surgem homens como Hegel, que demonstra a importância da História para a compreensão do homem, e Darwin, que enterra o antropocentrismo com sua tese evolucionista. A ciência avança tanto, que se torna um referencial para a visão de mundo. A partir dessa época, a noção de verdade passa, necessariamente, a contar com o aval da ciência. A própria Filosofia adapta-se aos novos tempos, com o surgimento do Positivismo de Augusto Comte, que postulava a necessidade de maior rigor científico na construção dos conhecimentos nas ciências humanas. Desta forma, propunha o método da ciência natural, a Física, como modelo de construção de conhecimento. [pg. 38] É em meados do século 19 que os problemas e temas da Psicologia, até então estudados exclusivamente pelos filósofos, passam a ser, também, investigados pela Fisiologia e pela Neurofisiologia em particular. Os avanços que atingiram também essa área levaram à formulação de teorias sobre o sistema nervoso central, demonstrando que o pensamento, as percepções e os sentimentos humanos eram produtos desse sistema.

É preciso lembrar que esse mundo capitalista trouxe consigo a máquina. Ah! A máquina! Que criação fantástica do homem! E foi tão fantástica que passou a determinar a forma de ver o mundo. O mundo como uma máquina; o mundo como um relógio. Todo o universo passou a ser pensado como uma máquina, isto é, podemos conhecer o seu funcionamento, a sua regularidade, o que nos possibilita o conhecimento de suas leis. Esta forma de pensar atingiu também as ciências do homem.

Para se conhecer o psiquismo humano passa a ser necessário compreender os mecanismos e o funcionamento da máquina de pensar do homem — seu cérebro. Assim, a Psicologia começa a trilhar os caminhos da Fisiologia, Neuroanatomia e Neurofisiologia.

Algumas descobertas são extremamente relevantes para a Psicologia. Por exemplo, por volta de 1846, a Neurologia descobre que a doença mental é fruto da ação direta ou indireta de diversos fatores sobre as células cerebrais.

A Neuroanatomia descobre que a atividade motora nem sempre está ligada à consciência, por não estar necessariamente na dependência dos centros cerebrais superiores. Por exemplo, quando alguém queima a mão em uma chapa quente, primeiro tira-a da chapa para depois perceber o que aconteceu. Esse fenômeno chama-se reflexo, e o estímulo que chega à medula espinhal, antes de chegar aos centros cerebrais superiores, recebe uma ordem para a resposta, que é tirar a mão.

O caminho natural que os fisiologistas da época seguiam, quando passavam a se interessar pelo fenômeno psicológico enquanto estudo científico, era a Psicofísica. Estudavam, por exemplo, a fisiologia do olho e a percepção das cores. As cores eram estudadas como fenômeno da Física, e a percepção, como fenômeno da Psicologia.

Por volta de 1860, temos a formulação de uma importante lei no campo da Psicofísica. É a Lei de Fechner-Weber, que estabelece a relação entre estímulo e sensação, permitindo a sua mensuração. Segundo Fechner e Weber, a diferença que sentimos ao aumentarmos a intensidade de iluminação de uma lâmpada de 100 para 110 [pg. 39] watts será a mesma sentida quando aumentamos a intensidade de iluminação de 1000 para 1100 watts, isto é, a percepção aumenta em progressão aritmética, enquanto o estímulo varia em progressão geométrica.

Essa lei teve muita importância na história da Psicologia porque instaurou a possibilidade de medida do fenômeno psicológico, o que até então era considerado impossível. Dessa forma, os fenômenos psicológicos vão adquirindo status de científicos, porque, para a concepção de ciência da época, o que não era mensurável não era passível de estudo científico.

Outra contribuição muito importante nesses primórdios da Psicologia científica é a de Wilhelm Wundt (1832-1926). Wundt cria na Universidade de Leipzig, na Alemanha, o primeiro laboratório para realizar experimentos na área de Psicofisiologia. Por esse fato e por sua extensa produção teórica na área, ele é considerado o pai da Psicologia moderna ou científica.

Wundt desenvolve a concepção do paralelismo psicofísico, segundo a qual aos fenômenos mentais correspondem fenômenos orgânicos. Por exemplo, uma estimulação física, como uma picada de agulha na pele de um indivíduo, teria uma correspondência na mente deste indivíduo. Para explorar a mente ou consciência do indivíduo, Wundt cria um método que denomina introspeccionismo. Nesse método, o experimentador pergunta ao sujeito, especialmente treinado para a auto-observação, os caminhos percorridos no seu interior por uma estimulação sensorial (a picada da agulha, por exemplo).

A Psicologia científica

O berço da Psicologia moderna foi a Alemanha do final do século 19. Wundt, Weber e Fechner trabalharam juntos na Universidade de Leipzig. Seguiram para aquele país muitos estudiosos dessa nova ciência, como o inglês Edward B. Titchner e o estadunidense William James.

Seu status de ciência é obtido à medida que se “liberta” da Filosofia, que marcou sua história até aqui, e atrai novos estudiosos e pesquisadores, que, sob os novos padrões de produção de conhecimento, passam a: [pg. 40]

• definir seu objeto de estudo (o comportamento, a vida psíquica, a consciência);

• delimitar seu campo de estudo, diferenciando-o de outras áreas de conhecimento, como a Filosofia e a Fisiologia;

• formular métodos de estudo desse objeto;

• formular teorias enquanto um corpo consistente de conhecimentos na área.

Essas teorias devem obedecer aos critérios básicos da metodologia científica, isto é, deve-se buscar a neutralidade do conhecimento científico, os dados devem ser passíveis de comprovação, e o conhecimento deve ser cumulativo e servir de ponto de partida para outros experimentos e pesquisas na área.

Os pioneiros da Psicologia procuraram, dentro das possibilidades, atingir tais critérios e formular teorias. Entretanto os conhecimentos produzidos inicialmente caracterizaram-se, muito mais, como postura metodológica que norteava a pesquisa e a construção teórica.

Embora a Psicologia científica tenha nascido na Alemanha, é nos Estados Unidos que ela encontra campo para um rápido crescimento, resultado do grande avanço econômico que colocou os Estados Unidos na vanguarda do sistema capitalista. É ali que surgem as primeiras abordagens ou escolas em Psicologia, as quais deram origem às inúmeras teorias que existem atualmente.

Essas abordagens são: o Funcionalismo, de William James (1842-1910), o Estruturalismo, de Edward Titchner (1867-1927) e o Associacionismo, de Edward L. Thorndike (1874-1949).

O Funcionalismo

O Funcionalismo é considerado como a primeira sistematização genuinamente estadunidense de conhecimentos em Psicologia. Uma sociedade que exigia o pragmatismo para seu desenvolvimento econômico acaba por exigir dos cientistas estadunidenses o mesmo espírito.

Desse modo, para a escola funcionalista de W. James, importa responder “o que fazem os homens” e “por que o fazem”. Para responder a isto, W. James elege a consciência como o centro de suas preocupações e busca a compreensão de seu funcionamento, na medida em que o homem a usa para adaptar-se ao meio. [pg. 41]

O Estruturalismo

O Estruturalismo está preocupado com a compreensão do mesmo fenômeno que o Funcionalismo: a consciência. Mas, diferentemente de W. James, Titchner irá estudá-la em seus aspectos estruturais, isto é, os estados elementares da consciência como estruturas do sistema nervoso central. Esta escola foi inaugurada por Wundt, mas foi Titchner, seguidor de Wundt, quem usou o termo estruturalismo pela primeira vez, no sentido de diferenciá-la do Funcionalismo. O método de observação de Titchner, assim como o de Wundt, é o introspeccionismo, e os conhecimentos psicológicos produzidos são eminentemente experimentais, isto é, produzidos a partir do laboratório.

O Associacionismo

O principal representante do Associacionismo é Edward L. Thorndike, e sua importância está em ter sido o formulador de uma primeira teoria de aprendizagem na Psicologia. Sua produção de conhecimentos pautava-se por uma visão de utilidade deste conhecimento, muito mais do que por questões filosóficas que perpassam a Psicologia.

O termo associacionismo origina-se da concepção de que a aprendizagem se dá por um processo de associação das idéias — das mais simples às mais complexas. Assim, para aprender um conteúdo complexo, a pessoa precisaria primeiro aprender as idéias mais simples, que estariam associadas àquele conteúdo.

Thorndike formulou a Lei do Efeito, que seria de grande utilidade para a Psicologia Comportamentalista. De acordo com essa lei, todo comportamento de um organismo vivo (um homem, um pombo, um rato etc.) tende a se repetir, se nós recompensarmos (efeito) o organismo assim que este emitir o comportamento. Por outro lado, o comportamento tenderá a não acontecer, se o organismo for castigado (efeito) após sua ocorrência. E, pela Lei do Efeito, o organismo irá associar essas situações com outras semelhantes. Por exemplo, se, ao apertarmos um dos botões do rádio, formos “premiados” com música, em outras oportunidades apertaremos o mesmo botão, bem como generalizaremos essa aprendizagem para outros aparelhos, como toca-discos, gravadores etc. [pg. 42]

As principais teorias da Psicologia no século XX

A Psicologia enquanto um ramo da Filosofia estudava a alma. A Psicologia científica nasce quando, de acordo com os padrões de ciência do século 19, Wundt preconiza a Psicologia “sem alma”. O conhecimento tido como científico passa então a ser aquele produzido em laboratórios, com o uso de instrumentos de observação e medição. Se antes a Psicologia estava subordinada à Filosofia, a partir daquele século ela passa a ligar-se a especialidades da Medicina, que assumira, antes da Psicologia, o método de investigação das ciências naturais como critério rigoroso de construção do conhecimento.

Essa Psicologia científica, que se constituiu de três escolas — Associacionismo, Estruturalismo e Funcionalismo —, foi substituída, no século 20, por novas teorias.

As três mais importantes tendências teóricas da Psicologia neste século são consideradas por inúmeros autores como sendo o Behaviorismo ou Teoria (S-R) (do inglês Stimuli-Respond — Estímulo- Resposta), a Gestalt e a Psicanálise.

  • O Behaviorismo, que nasce com Watson e tem um desenvolvimento grande nos Estados Unidos, em função de suas aplicações práticas, tornou-se importante por ter definido o fato psicológico, de modo concreto, a partir da noção de comportamento (behavior);
  • A Gestalt, que tem seu berço na Europa, surge como uma negação da fragmentação das ações e processos humanos, realizada pelas tendências da Psicologia científica do século 19, postulando a necessidade de se compreender o homem como uma totalidade. A Gestalt é a tendência teórica mais ligada à Filosofia.
  • A Psicanálise, que nasce com Freud, na Áustria, a partir da prática médica, recupera para a Psicologia a importância da afetividade e postula o inconsciente como objeto de estudo, quebrando a tradição da Psicologia como ciência da consciência e da razão.

Nos próximos três capítulos, desenvolveremos cada uma dessas principais tendências teóricas, a partir da apresentação de alguns de seus conceitos básicos. Em um quarto capítulo, apresentaremos a Psicologia Sócio-Histórica como uma das vertentes teóricas em construção na Psicologia atual. [pg. 43]

Psicologia - História da Psicologia
7/11/2021 9:11:35 PM | Por Ana Mercês Bahia Bock
A Psicologia ou as Psicologias

Quantas vezes, no nosso dia-a-dia, ouvimos o termo psicologia? Qualquer um entende um pouco dela. Poderíamos até mesmo dizer que “de psicólogo e de louco todo mundo tem um pouco”. O dito popular não é bem este (“de médico e de louco todo mundo tem um pouco”), mas parece servir aqui perfeitamente. As pessoas em geral têm a “sua psicologia”.

Usamos o termo psicologia, no nosso cotidiano, com vários sentidos. Por exemplo, quando falamos do poder de persuasão do vendedor, dizemos que ele usa de “psicologia” para vender seu produto; quando nos referimos à jovem estudante que usa seu poder de sedução para atrair o rapaz, falamos que ela usa de “psicologia”; e quando procuramos aquele amigo, que está sempre disposto a ouvir nossos problemas, dizemos que ele tem “psicologia” para entender as pessoas.

Será essa a psicologia dos psicólogos? Certamente não. Essa psicologia, usada no cotidiano pelas pessoas em geral, é denominada de psicologia do senso comum. Mas nem por isso deixa de ser uma psicologia. O que estamos querendo dizer é que as pessoas,

normalmente, têm um domínio, mesmo que pequeno e superficial, do conhecimento acumulado pela Psicologia científica, o que lhes permite explicar ou compreender seus problemas cotidianos de um ponto de vist psicológico.

É a Psicologia científica que pretendemos apresentar a você. Mas, antes de iniciarmos o seu estudo, faremos uma exposição da relação ciência/senso comum; depois falaremos mais detalhadamente sobre ciência e, assim, esperamos que você compreenda melhor a Psicologia científica.

O senso comum: conhecimento da realidade

Existe um domínio da vida que pode ser entendido como vida por excelência: é a vida do cotidiano. É no cotidiano que tudo flui, que as coisas acontecem, que nos sentimos vivos, que sentimos a realidade. Neste instante estou lendo um livro de Psicologia, logo mais estarei numa sala de aula fazendo uma prova e depois irei ao cinema. Enquanto isso, tenho sede e tomo um refrigerante na cantina da escola; sinto um sono irresistível e preciso de muita força de vontade para não dormir em plena aula; lembro-me de que havia prometido chegar cedo para o almoço. Todos esses acontecimentos denunciam que estamos vivos. Já a ciência é uma atividade eminentemente reflexiva. Ela procura compreender, elucidar e alterar esse cotidiano, a partir de seu estudo sistemático.

Quando fazemos ciência, baseamo-nos na realidade cotidiana e pensamos sobre ela. Afastamo-nos dela para refletir e conhecer além de suas aparências. O cotidiano e o conhecimento científico que temos da realidade aproximam-se e se afastam: aproximam-se porque a ciência se refere ao real; afastam-se porque a ciência abstrai a realidade para compreendê-la melhor, ou seja, a ciência afasta-se da realidade, transformando-a em objeto de investigação — o que permite a construção do conhecimento científico sobre o real.

Para compreender isso melhor, pense na abstração (no distanciamento e trabalho mental) que Newton teve de fazer para, partindo da fruta que caía da árvore (fato do cotidiano), formular a lei da gravidade (fato científico).

Ocorre que, mesmo o mais especializado dos cientistas, quando sai de seu laboratório, está submetido à dinâmica do cotidiano, que cria suas próprias “teorias” a partir das teorias científicas, seja como forma de “simplificá- las” para o uso no dia-a-dia,

Mesmo não dispondo de instrumentos, sabemos avaliar a distância e a velocidade de um veículo quando atravessamos a rua. ou como sua maneira peculiar de interpretar fatos, a despeito das considerações feitas pela ciência. Todos nós — estudantes, psicólogos, físicos, artistas, operários, teólogos — vivemos a maior parte do tempo esse cotidiano e as suas teorias, isto é, aceitamos as regras do seu jogo.

O fato é que a dona de casa, quando usa a garrafa térmica para manter o café quente, sabe por quanto tempo ele permanecerá razoavelmente quente, sem fazer nenhum cálculo complicado e, muitas vezes, desconhecendo completamente as leis da termodinâmica. Quando alguém em casa reclama de dores no fígado, ela faz um chá de boldo, que é uma planta medicinal já usada pelos avós de nossos avós, sem, no entanto, conhecer o princípio ativo de suas folhas nas doenças hepáticas e sem nenhum estudo farmacológico. E nós mesmos, quando precisamos atravessar uma avenida movimentada, com o tráfego de veículos em alta velocidade, sabemos perfeitamente medir a distância e a velocidade do automóvel que vem em nossa direção. Até hoje não conhecemos ninguém que usasse máquina de calcular ou fita métrica para essa tarefa. Esse tipo de conhecimento que vamos acumulando no nosso cotidiano é chamado de senso comum. Sem esse conhecimento intuitivo, espontâneo, de tentativas e erros, a nossa vida no dia-a-dia seria muito complicada.

A necessidade de acumularmos esse tipo de conhecimento espontâneo parece-nos óbvia. Imagine termos de descobrir diariamente que as coisas tendem a cair, graças ao efeito da gravidade; termos de descobrir diariamente que algo atirado pela janela tende a cair e não a subir; que um automóvel em velocidade vai se aproximar rapidamente de nós e que, para fazer um aparelho eletrodoméstico funcionar, precisamos de eletricidade.

O senso comum, na produção desse tipo de conhecimento, percorre um caminho que vai do hábito à tradição, a qual, quando estabelecida, passa de geração para geração. Assim, aprendemos com nossos pais a atravessar uma rua, a fazer o liqüidificador funcionar, a plantar alimentos na época e de maneira correta, a conquistar a pessoa que desejamos e assim por diante.

E é nessa tentativa de facilitar o dia-a-dia que o senso comum produz suas próprias “teorias”; na realidade, um conhecimento que, numa interpretação livre, poderíamos chamar de teorias médicas, físicas, psicológicas etc.

Senso comum: uma visão de mundo

Esse conhecimento do senso comum, além de sua produção característica, acaba por se apropriar, de uma maneira muito singular, de conhecimentos produzidos pelos outros setores da produção do saber humano. O senso comum mistura e recicla esses outros saberes, muito mais especializados, e os reduz a um tipo de teoria simplificada, produzindo uma determinada visão-de-mundo.

O que estamos querendo mostrar a você é que o senso comum integra, de um modo precário (mas é esse o seu modo), o conhecimento humano. E claro que isto não ocorre muito rapidamente. Leva um certo tempo para que o conhecimento mais sofisticado e especializado seja absorvido pelo senso comum, e nunca o é totalmente. Quando utilizamos termos como “rapaz complexado”, “menina histérica”, “ficar neurótico”, estamos usando termos definidos pela Psicologia científica. Não nos preocupamos em definir as palavras usadas e nem por isso deixamos de ser entendidos pelo outro. Podemos até estar muito próximos do conceito científico mas, na maioria das vezes, nem o sabemos. Esses são exemplos da apropriação que o senso comum faz da ciência.

Áreas do conhecimento

Somente esse tipo de conhecimento, porém, não seria suficiente para as exigências de desenvolvimento da humanidade. O homem, desde os tempos primitivos, foi ocupando cada vez mais espaço neste planeta, e somente esse conhecimento intuitivo seria muito pouco para que ele dominasse a Natureza em seu próprio proveito. Os gregos, por volta do século 4 a.C, já dominavam complicados cálculos matemáticos, que ainda hoje são considerados difíceis por qualquer jovem colegial. Os gregos precisavam entender esses cálculos para resolver seus problemas agrícolas, arquitetônicos, navais etc. Era uma questão de sobrevivência. Com o tempo, esse tipo de conhecimento foi-se especializando cada vez mais, até atingir o nível de sofisticação que permitiu ao homem atingir a Lua. A este tipo de conhecimento, que definiremos com mais cuidado logo adiante, chamamos de ciência.

Mas o senso comum e a ciência não são as únicas formas de conhecimento que o homem possui para descobrir e interpretar a realidade.

Povos antigos, e entre eles cabe Registro de crenças e tradições para as futuras gerações, sempre mencionar os gregos, preocuparam-se com a origem e com o significado da existência humana. As especulações em torno desse tema formaram um corpo de conhecimentos denominado filosofia. A formulação de um conjunto de pensamentos sobre a origem do homem, seus mistérios, princípios morais, forma um outro corpo de conhecimento humano, conhecido como religião. No Ocidente, um livro muito conhecido traz as crenças e tradições de nossos antepassados e é para muitos um modelo de conduta: a Bíblia. Esse livro é o registro do conhecimento religioso judaico-cristão. Um outro livro semelhante é o livro sagrado dos hindus: Livro dos Vedas. Veda, em sânscrito (antiga língua clássica da Índia), significa conhecimento.

Por fim, o homem, já desde a sua pré-história, deixou marcas de sua sensibilidade nas paredes das cavernas, quando desenhou a sua própria figura e a figura da caça, criando uma expressão do conhecimento que traduz a emoção e a sensibilidade. Denominamos arte a esse tipo de conhecimento.

Arte, religião, filosofia, ciência e senso comum são domínios do conhecimento humano.

A Psicologia científica

Apesar de reconhecermos a existência de uma psicologia do senso comum e, de certo modo, estarmos preocupados em defini-la, é com a outra psicologia que este livro deverá ocupar-se — a Psicologia científica. Foi preciso definir o senso comum, para que o leitor pudesse demarcar o campo de atuação de cada uma, sem confundi-las.

Entretanto a tarefa de definir a Psicologia como ciência é bem mais árdua e complicada. Comecemos por definir o que entendemos por ciência (que também não é simples), para depois explicarmos por que a Psicologia é hoje considerada uma de suas áreas.

O que é ciência

A ciência compõe-se de um conjunto de conhecimentos sobre fatos ou aspectos da realidade (objeto de estudo), expresso por meio de uma linguagem precisa e rigorosa. Esses conhecimentos devem ser obtidos de maneira programada, sistemática e controlada, para que se permita a verificação de sua validade. Assim, podemos apontar o objeto dos diversos ramos da ciência e saber exatamente como determinado conteúdo foi construído, possibilitando a reprodução da experiência. Dessa forma, o saber pode ser transmitido, verificado, utilizado e desenvolvido.

Essa característica da produção científica possibilita sua continuidade: um novo conhecimento é produzido sempre a partir de algo anteriormente desenvolvido. Negam-se, reafirmam-se, descobrem-se novos aspectos, e assim a ciência avança. Nesse sentido, a ciência caracteriza-se como um processo.

Pense no desenvolvimento do motor movido a álcool hidratado. Ele nasceu de uma necessidade concreta (crise do petróleo) e foi planejado a partir do motor a gasolina, com a alteração de poucos componentes deste. No entanto, os primeiros automóveis movidos a álcool apresentaram muitos problemas, como o seu mau funcionamento nos dias frios. Apesar disso, esse tipo de motor foi-se aprimorando.

A ciência tem ainda uma característica fundamental: ela aspira à objetividade. Suas conclusões devem ser passíveis de verificação e isentas de emoção, para, assim, tornarem-se válidas para todos.

Objeto específico, linguagem rigorosa, métodos e técnicas específicas, processo cumulativo do conhecimento, objetividade fazem da ciência uma forma de conhecimento que supera em muito o conhecimento espontâneo do senso comum. Esse conjunto de características é o que permite que denominemos científico a um conjunto de conhecimentos.

Objeto de estudo da psicologia

Observatório Nacional — Rio de Janeiro. Estudar o fenômeno físico é pensar sobre algo externo ao homem. Estudar o homem é pensar sobre si mesmo. Dissemos um para ser considerado científico, requer um objeto específico de estudo. O objeto da Astronomia são os astros, e o objeto da Biologia são os seres vivos. Essa classificação bem geral demonstra que é possível tratar o objeto dessas ciências com uma certa distância, ou seja, é possível isolar o objeto de estudo. No caso da Astronomia, o cientista-observador está, por exemplo, num observatório, e o astro observado, a anos-luz de distância de seu telescópio. Esse cientista não corre o mínimo risco de confundir-se com o fenômeno que está estudando.

O mesmo não ocorre com a Psicologia, que, como a Antropologia, a Economia, a Sociologia e todas as ciências humanas, estuda o homem.

Certamente, esta divisão é ampla demais e apenas coloca a Psicologia entre as ciências humanas. Qual é, então, o objeto específico de estudo da Psicologia?

Se dermos a palavra a um psicólogo comportamentalista, ele dirá: “O objeto de estudo da Psicologia é o comportamento humano”. Se a palavra for dada a um psicólogo psicanalista, ele dirá: “O objeto de estudo da Psicologia é o inconsciente”. Outros dirão que é a consciência humana, e outros, ainda, a personalidade.

Diversidade de objetos da psicologia

A diversidade de objetos da Psicologia é explicada pelo fato de este campo do conhecimento ter-se constituído como área do conhecimento científico só muito recentemente (final do século 19), a despeito de existir há muito tempo na Filosofia enquanto preocupação humana. Esse fato é importante, já que a ciência se caracteriza pela exatidão de sua construção teórica, e, quando uma ciência é muito nova, ela não teve tempo ainda de apresentar teorias acabadas e definitivas, que permitam determinar com maior precisão seu objeto de estudo.

Um outro motivo que contribui para dificultar uma clara definição de objeto da Psicologia é o fato de o cientista — o pesquisador — confundir-se com o objeto a ser pesquisado. No sentido mais amplo, o objeto de estudo da Psicologia é o homem, e neste caso o pesquisador está inserido na categoria a ser estudada. Assim, a concepção de homem que o pesquisador traz consigo “contamina” inevitavelmente a sua pesquisa em Psicologia. Isso ocorre porque há diferentes concepções de homem entre os cientistas (na medida em que estudos filosóficos e teológicos e mesmo doutrinas políticas acabam definindo o homem à sua maneira, e o cientista acaba necessariamente se vinculando a uma destas crenças). É o caso da concepção de homem natural, formulada pelo filósofo francês Rousseau, que imagina que o homem era puro e foi corrompido pela sociedade, e que cabe então ao filósofo reencontrar essa pureza perdida. Outros vêem o homem como ser abstrato, com características definidas e que não mudam, a despeito das condições sociais a que esteja submetido. Nós, autores deste livro, vemos esse homem como ser datado, determinado pelas condições históricas e sociais que o cercam.

Na realidade, este é um “problema” enfrentado por todas as ciências humanas, muito discutido pelos cientistas de cada área e até agora sem perspectiva de solução. Conforme a definição de homem adotada, teremos uma concepção de objeto que combine com ela.

Como, neste momento, há uma riqueza de valores sociais que permitem várias concepções de homem, diríamos simplificada-mente que, no caso da Psicologia, esta ciência estuda os “diversos homens” concebidos pelo conjunto social. Assim, a Psicologia hoje se caracteriza por uma diversidade de objetos de estudo.

Por outro lado, essa diversidade de objetos justifica-se porque os fenômenos psicológicos são tão diversos, que não podem ser acessíveis ao mesmo nível de observação e, portanto, não podem ser sujeitos aos mesmos padrões de descrição, medida, controle e interpretação. O objeto da Psicologia deveria ser aquele que reunisse condições de aglutinar uma ampla variedade de fenômenos psicológicos. Ao estabelecer o padrão de descrição, medida, controle e interpretação, o psicólogo está também estabelecendo um determinado critério de seleção dos fenômenos psicológicos e assim definindo um objeto.

Esta situação leva-nos a questionar a caracterização da Psicologia como ciência e a postular que no momento não existe uma psicologia, mas Ciências psicológicas embrionárias e em desenvolvimento.

A Subjetividade como objeto da psicologia

Considerando toda essa dificuldade na conceituação única do objeto de estudo da Psicologia, optamos por apresentar uma definição que lhe sirva como referência para os próximos capítulos, uma vez que você irá se deparar com diversos enfoques que trazem definições específicas desse objeto, (o comportamento, o inconsciente, a consciência etc.).

A identidade da Psicologia é o que a diferencia dos demais ramos das ciências humanas, e pode ser obtida considerando-se que cada um desses ramos enfoca o homem de maneira particular. Assim, cada especialidade — a Economia, a Política, a História etc. — trabalha essa matéria-prima de maneira particular, construindo conhecimentos distintos e específicos a respeito dela. A Psicologia colabora com o estudo da subjetividade: é essa a sua forma particular, específica de contribuição para a compreensão da totalidade da vida humana.

Nossa matéria-prima, portanto, é o homem em todas as suas expressões, as visíveis (nosso comportamento) e as invisíveis (nossos sentimentos), as singulares (porque somos o que somos) e as genéricas (porque somos todos assim) — é o homem-corpo, homem-pensamento, homem-afeto, homem-ação e tudo isso está sintetizado no termo subjetividade.

A subjetividade é a síntese singular e individual que cada um de nós vai constituindo conforme vamos nos desenvolvendo e vivenciando as experiências da vida social e cultural; é uma síntese que nos identifica, de um lado, por ser única, e nos iguala, de outro lado, na medida em que os elementos que a constituem são experienciados no campo comum da objetividade social. Esta síntese — a subjetividade — é o mundo de idéias, significados e emoções construído internamente pelo sujeito a partir de suas relações sociais, de suas vivências e de sua constituição biológica; é, também, fonte de suas manifestações afetivas e comportamentais.

O mundo social e cultural, conforme vai sendo experienciado por nós, possibilita-nos a construção de um mundo interior. São diversos fatores que se combinam e nos levam a uma vivência muito particular. Nós atribuímos sentido a essas experiências e vamos nos constituindo a cada dia.

A subjetividade é a maneira de sentir, pensar, fantasiar, sonhar, amar e fazer de cada um. É o que constitui o nosso modo de ser: sou filho de japoneses e militante de um grupo ecológico, detesto Matemática, adoro samba e black music, pratico ioga, tenho vontade mas não consigo ter uma namorada. Meu melhor amigo é filho de descendentes de italianos, primeiro aluno da classe em Matemática, trabalha e estuda, é vascaíno fanático, adora comer sushi e navegar pela Internet. Ou seja, cada qual é o que é: sua singularidade. Entretanto, a síntese que a subjetividade representa não é inata ao indivíduo. Ele a constrói aos poucos, apropriando-se do material do mundo social e cultural, e faz isso ao mesmo tempo em que atua sobre este mundo, ou seja, é ativo na sua construção. Criando e transformando o mundo (externo), o homem constrói e transforma a si próprio.

Um mundo objetivo, em movimento, porque seres humanos o movimentam permanentemente com suas intervenções; um mundo subjetivo em movimento porque os indivíduos estão permanentemente se apropriando de novas matérias-primas para constituírem suas subjetividades.

De um certo modo, podemos dizer que a subjetividade não só é fabricada, produzida, moldada, mas também é automoldável, ou seja, o homem pode promover novas formas de subjetividade, recusando-se ao assujeitamento e à perda de memória imposta pela fugacidade da informação; recusando a massificação que exclui e estigmatiza o diferente, a aceitação social condicionada ao consumo, a medicalização do sofrimento. Nesse sentido, retomamos a utopia que cada homem pode participar na construção do seu destino e de sua coletividade.

Por fim, podemos dizer que estudar a subjetividade, nos tempos atuais, é tentar compreender a produção de novos modos de ser, isto é, as subjetividades emergentes, cuja fabricação é social e histórica. O estudo dessas novas subjetividades vai desvendando as relações do cultural, do político, do econômico e do histórico na produção do mais íntimo e do mais observável no homem — aquilo que o submissão da subjetividade (como dizia o filósofo francês Michel Foucault).

O movimento e a transformação são os elementos básicos de toda essa história. E aproveitamos para citar Guimarães Rosa, que em Grande Sertão: Veredas, consegue expressar, de modo muito adequado e rico, o que aqui vale a pena registrar:

“O importante e bonito do mundo é isso: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas, mas que elas vão sempre mudando. Afinam e desafinam”.

Convidamos você a refletir um pouco sobre esse pensamento de Guimarães Rosa. As pessoas não estão sempre iguais. Ainda não foram terminadas. Na verdade, as pessoas nunca serão terminadas, pois estarão sempre se modificando. Mas por quê? Como? Simplesmente porque a subjetividade — este mundo interno construído pelo homem como síntese de suas determinações — não cessará de se modificar, pois as experiências sempre trarão novos elementos para renová-la.

Talvez você esteja pensando: mas eu acho que sou o que sempre fui — eu não me modifico! Por acompanhar de perto suas próprias transformações (não poderia ser diferente!), você pode não percebê-las e ter a impressão de ser como sempre foi. Você é o construtor da sua transformação e, por isso, ela pode passar despercebida, fazendo-o pensar que não se transformou. Mas você cresceu, mudou de corpo, de vontades, de gostos, de amigos, de atividades, afinou e desafinou, enfim, tudo em sua vida muda e, com ela, suas vivências subjetivas, seu conteúdo psicológico, sua subjetividade. Isso acontece com todos nós.

Bem, esperamos que você já tenha uma noção do que seja subjetividade e possamos, então, voltar a nossa discussão sobre o objeto da Psicologia.

A Psicologia, como já dissemos anteriormente, é um ramo das Ciências Humanas e a sua identidade, isto é, aquilo que a diferencia, pode ser obtida considerando-se que cada um desses ramos enfoca de maneira particular o objeto homem, construindo conhecimentos distintos e específicos a respeito dele. Assim, com o estudo da subjetividade, a Psicologia contribui para a compreensão da totalidade da vida humana.

É claro que a forma de se abordar a subjetividade, e mesmo a forma de concebê-la, dependerá da concepção de homem adotada pelas diferentes escolas psicológicas. No momento, pelo pouco desenvolvimento da Psicologia, essas escolas acabam formulando um conhecimento fragmentário de uma única e mesma totalidade — o ser humano: o seu mundo interno e as suas manifestações. A superação do atual impasse levará a uma Psicologia que enquadre esse homem como ser concreto e multideterminado. Esse é o papel de uma ciência crítica, da compreensão, da comunicação e do encontro do homem com o mundo em que vive, já que o homem que compreende a História (o mundo externo) também compreende a si mesmo (sua subjetividade), e o homem que compreende a si mesmo pode compreender o engendramento do mundo e criar novas rotas e utopias.

Algumas correntes da Psicologia consideram-na pertencente ao campo das Ciências do Comportamento e, outras, das Ciências Sociais. Acreditamos que o campo das Ciências Humanas é mais abrangente e condizente com a nossa proposta, que vincula a Psicologia à História, à Antropologia, à Economia etc.

A Psicologia e o misticismo

A Psicologia, como área da Ciência, vem se desenvolvendo na história desde 1875, quando Wilhelm Wundt (1832-1926) criou o primeiro Laboratório de Experimentos em Psicofisiologia, em Leipzig, na Alemanha. Esse marco histórico significou o desligamento das idéias psicológicas de idéias abstratas e espiritualistas, que defendiam a existência de uma alma nos homens, a qual seria a sede da vida psíquica. A partir daí, a história da Psicologia é de fortalecimento de seu vínculo com os princípios e métodos científicos. A idéia de um homem autônomo, capaz de se responsabilizar pelo seu próprio desenvolvimento e pela sua vida, também vai se fortalecendo a partir desse momento.

Hoje,  a  Psicologia  ainda  não  consegue  explicar  muitas  coisas sobre  o  homem,  pois  é  uma  área  da  Ciência  relativamente  nova  (com pouco  mais  de  cem  anos).  Além  disso,  sabe-se  que  a Ciência  não esgotará   o   que   há   para   se   conhecer,   pois   a   realidade   está   em permanente movimento e novas perguntas surgem a cada dia, o homem está  em  movimento  e  em  transformação,  colocando  também  novas perguntas   para   a   Psicologia.   A   invenção   dos   computadores,   por exemplo,  trouxe  e  trará  mudanças  em  nossas  formas  de  pensamento, em   nossa   inteligência,   e   a   Psicologia   precisará   absorver   essas transformações em seu quadro teórico. Alguns   dos   “desconhecimentos”   da   Psicologia   têm   levado   os psicólogos  a  buscarem  respostas  em  outros  campos  do  saber  humano. Com  isso,  algumas  práticas  não-psicológicas  têm  sido  associadas  às práticas psicológicas. O tarô, a astrologia, a quiromancia, a numerologia, entre  outras  práticas  adivinhatórias  e/ou  místicas,  têm  sido  associadas ao fazer e ao saber psicológico.

Estas não são práticas da Psicologia. São outras formas de saber —  de  saber  sobre  o  humano  —  que  não  podem  ser  confundidas  com  a Psicologia, pois: •  não  são  construídas  no  campo  da  Ciência,  a  partir  do  método  e  dos princípios científicos; •  estão  em  oposição  aos  princípios  da  Psicologia,  que  vê  não  só  o homem  como  ser  autônomo,  que  se  desenvolve  e  se  constitui  a  partir de  sua  relação  com  o  mundo  social  e  cultural,  mas  também  o  homem sem destino pronto, que constrói seu futuro ao agir sobre o mundo. As práticas místicas têm pressupostos opostos, pois nelas há a concepção de  destino,  da  existência  de  forças  que  não  estão  no  campo  do humano e do mundo material. A Psicologia, ao relacionar-se com esses saberes, deve ser capaz  de  enfrentá-los  sem  preconceitos,  reconhecendo  que o  homem construiu  muitos  “saberes”  em  busca  de  sua  felicidade.  

Mas  é  preciso demarcar  nossos  campos.  Esses  saberes  não  estão  no campo  da Psicologia, mas podem se tornar seu objeto de estudo. É possível estudar as práticas adivinhatórias e descobrir o que elas têm  de  eficiente,  de  acordo  com  os  critérios  científicos,  e  aprimorar  tais aspectos  para  um  uso  eficiente  e  racional.  Nem  sempre  esses  critérios científicos têm sido observados e alguns psicólogos acabam por usar tais práticas sem o devido cuidado e observação. Esses casos, seja daquele que usa a prática mística como acompanhamento psicológico, seja o do psicólogo  que  usa  desse  expediente  sem  critério  científico  comprovado, são  previstos  pelo  código  de  ética  dos  psicólogos  e,  por  isso,  passíveis de  punição.  

No  primeiro  caso,  como  prática  de  charlatanismo  e,  no segundo, como desempenho inadequado da profissão. Entretanto,  é  preciso  ponderar  que  esse  campo  fronteiriço  entre  a Psicologia  científica  e  a  especulação  mística  deve ser  tratado  com  o devido  cuidado.  Quando  se  trata  de  pessoa,  psicóloga  ou  não,  que decididamente  usa  do  expediente  das  práticas  místicas  como  forma  de tirar   proveito   pecuniário   ou   de   qualquer   outra   ordem,   prejudicando terceiros,  temos  um  caso  de  polícia  e  a  punição  é  salutar.  Mas  muitas vezes  não  é  possível  caracterizar  a  atuação  daqueles  que  se  utilizam dessas  práticas  de  forma  tão  clara.  Nestes  casos,  não  podemos  tornar absoluto    o    conhecimento    científico    como    o    “conhecimento    por excelência” e dogmatizá-lo a ponto de correr o risco de criar um tribunal semelhante  ao  da  Santa  Inquisição.  E  preciso  reconhecer  que  pessoas que  acreditam  em  práticas  adivinhatórias  ou  místicas  têm  o  direito  de consultar  e  de  serem  consultadas,  e  também  temos  de  reconhecer,  nós cientistas,  que  não  sabemos  muita  coisa  sobre  o  psiquismo  humano  e que,  muitas  vezes,  novas  descobertas  seguem  estranhos  e  insondáveis caminhos.

O verdadeiro cientista deve ter os olhos abertos para o novo. Enfim, nosso alerta aqui vai em dois sentidos: •  Não  se  deve  misturar  a  Psicologia  com  práticas  adivinhatórias  ou  místicas  que  estão  baseadas  em  pressupostos  diversos  e  opostos  ao da Psicologia. •  “Mente  é  como  pára-quedas:  melhor  aberta.”  É  preciso  estar  aberto para o novo, atento a novos conhecimentos que, tendo sido estudados no  âmbito  da  Ciência,  podem  trazer  novos  saberes,  ou  seja,  novas respostas para perguntas ainda não respondidas. A  Ciência,  como  uma  das  formas  de  saber  do  homem,  tem  seu campo de atuação com métodos e princípios próprios, mas, como forma de saber, não está pronta e nunca estará. A Ciência é, na verdade, um  processo  permanente  de  conhecimento  do  mundo,  um  exercício de diálogo entre o pensamento humano e a realidade, em todos os seus aspectos.  Nesse  sentido,  tudo  o  que  ocorre  com  o  homem  é  motivo  de interesse  para  a  Ciência,  que  deve  aplicar  seus  princípios  e  métodos para construir respostas.

Psicologia - Psicologia do Desenvolvimento
Todos os textos
Todos Psicologia
12/27/2019 8:00:14 PM | MenteCérebro, n.141
Drogas ou divã, não tão distantes assim

Médicos e psicólogos divergem sobre o tratamento adequado para transtornos mentais, os primeiros têm em mira o cérebro enfermo; os últimos os conflitos psíquicos. Mas essa rigorosa separação está ultrapassada, dizem pesquisadores.

Psicologia - Psicanálise
12/28/2019 5:45:14 PM | MenteCérebro, n.141
Prazer, hormônios e vínculo

Pesquisas recentes lançam nova luz sobre os mecanismos do prazer e do amor e mostram semelhanças entre desejo sexual e vontade de comer chocolate. Romeu e Julieta só estariam viciados um no outro?

5/1/2018 1:05:48 PM | MenteCérebro n.141
Acordes na cabeça

Ouvir música não envolve só a audição, mas também experiências visuais, táteis e emocionais. cada pessoa processa sons musicais em regiões diferentes do cérebro.

1/19/2022 3:07:56 PM | Psicologia, n. 14
Fobia social

O transtorno de ansiedade social pode causar fobia extrema diante de coisas cotidianas, como falar ou comer em público.

Todas as matérias
Todas Psicologia
Textos com indicação para psicólogos ou estudantes
1/19/2021 5:26:08 PM | Por Charles Richard Snyder
Intercedendo para prevenir o que é ruim e potencializar o que bom

Ávida para começar, uma nova clien­te de psicoterapia anunciou apaixonadamente: “Quero fazer que as coisas ruins parem de acontecer, mas não só isso... que­ro mais coisas boas!”. Suas palavras dão conta das duas categorias amplas de inter­venção que exploramos neste capítulo. A primeira categoria, interromper o que é ruim, envolve esforços para prevenir que coisas negativas ocorram posterior­mente, e pode ser dividida em prevenções primárias e secundárias. As prevenções pri­márias reduzem ou eliminam os problemas físicos ou psicológicos antes que eles sur­jam. As prevenções secundárias reduzem os problemas após seu surgimento. Esse se­gundo processo costuma ser chamado de psicoterapia.

A segunda categoria, produzir mais coisas boas, significa potencializar aquilo que as pessoas querem de suas vidas; ela também pode ser dividida em tipos primá­rio e secundário. As potencializações primá­rias estabelecem um bom funcionamento e uma boa satisfação. As potencializações secundárias vão ainda mais longe, contu­do, partindo de funcionamento e satisfa­ção já bons para chegar a experiências máximas. As potencializações primárias tornam as coisas boas (criam experiências ótimas), ao passo que as secundárias si­tuam as coisas no melhor que elas podem ser (criam experiências máximas).

Se cada uma dessas abordagens pri­márias e secundárias à prevenção e potencialização tivesse que ter um slogan, suge­riríamos os seguintes:

  • Prevenção primária: “parar o que é ruim antes que aconteça”.
  • Prevenção secundária (psicoterapia): “consertar o problema”.
  • Potencialização primária: “tomar a vida boa”.
  • Potencialização secundária: “fazer da vida o melhor possível”.

Prevenção primária: interromper o que é ruim antes que aconteça 

Definição

Como mostrado na extrema esquer­da da Figura 15.1, as prevenções primá­rias refletem as ações que as pessoas rea­lizam para reduzir ou eliminar a probabi­lidade de ter dificuldades psicológicas (Heller, Wyman e Allen, 2000) ou proble­mas físicos (Kaplan, 2000) subsequentes. Com as prevenções primárias, as pessoas ainda não estão manifestando quaisquer problemas, e é só mais tarde que esses [312] problemas vão aparecer, se não forem dados passos para proteção, ou profiláticos (Snyder, Feldman, Taylor, Schroeder e Adams, 2000). Quando a prevenção pri­mária é dirigida à população de uma co­munidade inteira, chama-se de prevenção universal (por exemplo, vacinações em crianças); quando visam a uma determi­nada população em risco, chama-se pre­venção seletiva (como visitas aos domicí­lios em busca de crianças que nascem abai­xo do peso; Munoz e Mendelson, 2004).

Figura 15.1

As atividades de prevenção primária se baseiam na esperança em relação ao futuro. Como expressam Snyder e colabo­radores (2000, p. 256), “sugeriríamos que a prevenção é, em seu âmago, um ato de esperança, uma visão positiva, fortalecida, sobre a capacidade da pessoa de agir com vistas a conquistar melhores amanhãs”. Como um exemplo intrigante (descrito em Munoz e Mendelson, 2004) do fato de que a prevenção não precisa implicar um en­tendimento completo de um determinado problema ou doença, consideremos o sur­to de cólera em Londres, no século XIX. Embora John Snow ainda não soubesse qual era o verdadeiro fator causal em ní­vel bioquímico, ele sabia o suficiente para conseguir interromper a epidemia ao re­mover a alavanca da bomba de água na Rua Broad! O palpite de Snow era de que a cólera era transmitida por alguma coisa na água que vinha da bomba desse local.

De fato, ele conseguiu impedir a difusão da cólera ao cortar essa fonte.

A prevenção primária pode ocorrer em nível governamental. Ao estabelecer e aplicar as leis que permitem que as pesso­as tenham sucesso em função de seus mé­ritos e seus esforços, por exemplo, um go­verno pode reduzir as conseqüências ne­gativas para seus cidadãos (Snyder e Feldman, 2000). Havendo uma legislação contra práticas contratuais danosas, como racismo e sexismo, os cidadãos individuais provavelmente permanecerão satisfeitos porque percebem que têm oportunidades iguais de obter os empregos que desejam. Da mesma forma, quando os cidadãos per­cebem que as leis possibilitam oportunida­des iguais de ir em busca de atividades vol­tadas a objetivos, eles deveriam

  1. sentir-se menos frustrados a agressivos (um aspecto da hipótese de frustração-agressão [Zillman, 1979]);
  2. continuar a fazer esforços em seus am­bientes profissionais e pessoais (o re­sultado negativo, nesse caso, foi cha­mado de desamparo aprendido [Peter­son, Maier e Seligman, 1993]); e
  3. ter menos probabilidades de cometer suicídios (Rodriguez-Hanley e Snyder, 2000).

Sobre esse último aspecto, em um estudo realizado em diversos países, Krauss [313] e Krauss (1968) examinaram o grau em que os cidadãos consideravam que seus governos os bloqueavam em suas diversas atividades voltadas a objetivos. Os pesqui­sadores concluíram que os maiores blo­queios percebidos tinham uma correlação significativa com taxas de suicídio mais ele­vadas entre os diversos países.

O que quer que se possa fazer para aumentar os níveis educacionais, em ter­mos locais e nacionais, servirá a propósi­tos de prevenção primária ao reduzir as chances de que os cidadãos venham a ter má saúde e ser psicologicamente infelizes (Diener, 1984; Veroff, Douvan e Kulka, 1981). Além disso, quaisquer ações reali­zadas para promover o emprego devem impedir que as pessoas incorram em desa­justes psicológicos e físicos (Mathers e Schofield, 1998; Smith, 1987).

Aprevenção primária é eficaz?

Em termos gerais, as intervenções pri­márias são bastante eficazes (Albee e Gullotta, 1997; Durlak, 1995; Durlak e Wells, 1997; Mrazek e Haggerty, 1994; Yoshikawa, 1994). Para entender a magni­tude dos efeitos das iniciativas de preven­ção primária, considere os resultados de uma meta-análise (uma técnica estatística que possibilita que os pesquisadores com­binem resultados de vários estudos para descobrir tendências comuns) realizada por Durlak e Wells (1997). Durlak e Wells examinaram a eficácia dos programas de prevenção para problemas comportamentais e sociais de crianças e adolescentes, concluindo que a prevenção dava resulta­dos eficazes semelhantes em magnitude (e, em alguns casos, superiores) aos procedi­mentos médicos, como quimioterapia para câncer ou cirurgia para implantação de ponte de coronária.

Além disso, os autores observaram que, com relação a participan­tes de grupos de controle, os que partici­param de programas de prevenção estavam em algum ponto entre 59 e 82% melhores em termos de redução de problemas e au­mento de competências.

Componentes das prevenções primárias eficazes

Heller e colaboradores (Heller et al., 2000, p. 663-664) apresentaram cinco su­gestões para implementar prevenções pri­márias com sucesso. Em primeiro lugar, as populações-alvo devem receber informa­ções sobre o comportamento de risco a ser prevenido. Em segundo, o programa deve ser atraente, devendo motivar os partici­pantes potenciais a aumentar os compor­tamentos desejados e reduzir os indesejados. Em terceiro, o programa deve ensi­nar habilidades de solução de problemas e como resistir a retomar aos padrões con­traproducentes anteriores. Quarto, deve mudar quaisquer normas ou estruturas so­ciais que reforcem comportamentos con­traproducentes. Sobre esse último aspecto, são necessários o apoio e a aprovação social para superar as qualidades gratificantes dos comportamentos problemáticos. Quinto, devem-se coletar dados para possibilitar a avaliação das conquistas do programa. Es­ses dados de avaliação podem ser usados posteriormente para argumentar em nome da implementação de programas de pre­venção primária em outros ambientes.

O programa Head Start: um exemplo de prevenção primária

Talvez o exemplo mais destacado de prevenção primária seja o programa Head Start, que teve início na década de 1960, como parte da guerra contra a pobreza, do presidente Lyndon Johnson. O programa foi implementado em resposta a amplas preo­cupações de que crianças pobres dos Esta­dos Unidos não estivessem recebendo [314] estimulação cognitiva e intelectual suficientes para ter os benefícios adequados de seus estudos. Infelizmente, algumas crianças eram reprovadas com frequência, desde o momento em que ingressavam na escola.

O objetivo era dar às crianças pobres um nível de preparação que refletisse aquele de seus colegas economicamente mais privilegiados. Além de seus componentes educacionais, o Head Start acrescentou refeições nutritivas, triagens médicas e for­mação para os pais. Esta se revelou especi­almente eficaz, com os resultados tendo mostrado que, quando as crianças freqüen­tavam o programa por pelo menos três dias por semana, durante dois anos ou mais, e quando os pais estavam envolvidos, os be­nefícios em termos de desempenho esco­lar eram sólidos e duradouros (Ramey e Ramey, 1998). O Head Start também mos­trou a crianças e seus pais que eles não precisavam retomar comportamentos con­traproducentes anteriores; além disso, esse programa mostrou que era possível uma vida melhor para as crianças. Por fim, com­parado a vários outros programas de pre­venção, o Head Start foi testado exaustiva e repetidamente para mostrar que funcio­nava. Talvez o resultado mais fundamental tenha sido que as crianças que participa­ram do programa tiveram melhores resul­tados acadêmicos do que seus colegas que não participaram (Ramey e Ramey, 1998).

Prevenções primárias para minorias étnicas

Em uma versão modificada dos pro­gramas de redução de risco para crianças da área rural, de Bierman (1997), Alvy (1988) desenvolveu um programa eficaz de formação de pais voltado a afro-americanos. Esse programa enfatizava o orgu­lho, as habilidades de estudo e a obediên­cia às autoridades. Da mesma forma, ensi­nou-se aos pais a importância de dar apoio familiar a seus filhos. Alvy teve o cuidado de usar funcionários de diversas origens raciais, tanto em nível local quanto nacio­nal, com especialistas afro-americanos. Um programa igualmente eficaz foi implemen­tado para a formação de mães mexicano-americanas (D. L. Johnson, 1988).

O fato de membros da família e da comunidade terem sido abordados de for­mas culturalmente sensíveis parece ter sido um importante fator para o sucesso desses programas. Além disso, todos os programas destacam que o apoio da comunidade de inserção é crucial para a adoção de novas atitudes (orgulho, estudo, disciplina, etc.) Por fim, embora tenha havido alguma testagem empírica da eficácia desses pro­gramas, devem-se continuar as análises para examinar suas utilidades, dentro e fora das culturas das minorias envolvidas.

Prevenções primárias para crianças

Vários programas de prevenção pri­mária visavam a crianças e jovens em situa­ção de risco. O trabalho de Shure e Spivak (Shure, 1974; Shure e Spivak, 1988; Spivak e Shure, 1974) é exemplar para ensinar ha­bilidades de solução de problemas a crian­ças que tinham probabilidades de usar res­postas impulsivas e inadequadas ao se de­parar com problemas interpessoais. Projetavam-se vidas infelizes para essas crian­ças, nas quais elas recorreriam ao crime e a comportamentos agressivos. Como antí­doto a esses problemas previstos, as crian­ças aprenderam a produzir outras soluções para seus problemas, que não as explosões agressivas. Esses exitosos programas de prevenção primária com base na solução de problemas foram ampliados a turmas de 5a a 8a séries (Elias, Gara, Ubriaco, Rothbaum, Clabby e Schuyler, 1986) e a adolescentes identificados com probabili­dades de usar drogas (Botvin e Torn, 1988), engravidar (Weissberg, Barton e Shriver, 1997) ou contrair o HIV (Jemmot, Jemmot e Fong, 1992).

Discutimos agora um programa que teve bastante êxito em ajudar crianças em [315] risco de depressão. Usando o modelo de otimismo aprendido de Seligman (vide o Capítulo 9), Gillham, Reivich, Jaycox e Seligman (1995) implementaram um pro­grama de prevenção primária de 12 sema­nas, para crianças de 5a a 6a séries. O pro­grama de prevenção ajudou as crianças a identificar visões negativas de si mesmas e a mudar suas atribuições para outras, mais otimistas e realistas. Em relação a um gru­po de controle de crianças que não recebe­ram esse pacote de prevenção, as que par­ticiparam do grupo experimental tiveram depressão significativamente mais baixa. Essas conclusões estavam diretamente liga­das a sua aprendizagem de atribuições mais otimistas. (Para conclusões análogas com estudantes do ensino médio, vide Clarke, Hawkins, Murphy, Sheeber, Lewinsohn e Seeley [1995].) O programa de Seligman é especialmente elogiável porque tem ava­liado sua eficácia permanentemente em termos de resultados positivos das crian­ças participantes que, caso contrário, estariam em risco de depressão grave.

Prevenções primárias para idosos

Os programas de prevenção destina­dos a idosos podem se concentrar em mui­tos objetivos diferentes, incluindo a tria­gem para reduzir a probabilidade de pro­blemas de saúde física e doenças posterio­res (Ory e Cox, 1994), a verificação das condições de moradia para remover riscos físicos que podem levar a quedas e outros acidentes (Stevens et al., 1992) e tentati­vas de maximizar o envolvimento profis­sional, social e interpessoal dos idosos (Payne, 1977). Um desses intrigantes pro­gramas de prevenção, chamado Grandma Please, faz que as crianças telefonem para seus avós depois da escola (Szendre e Jose, 1996). Embora tenham sido variados, os resultados desse programa se baseiam na premissa contundente de que manter os idosos envolvidos e participando ativamen­te em suas famílias os impede de entrar em uma espiral de vida marcada pelo iso­lamento e a depressão. Infelizmente, esses programas para idosos não geraram ne­cessariamente resultados uniformes. Por exemplo, Baumgarten, Thomas, Poulin de Courval e Infante-Rivard (1988) partiram do pressuposto de que fazer com que os adultos mais velhos ajudassem seus vizi­nhos debilitados seria benéfico para os pri­meiros, mas acabaram não encontrando re­sultados positivos. Em relação a essa últi­ma ausência de resultados esperados, pode ser o caso de que passar tempo com a fa­mília seja mais importante para os idosos nessas atividades de prevenção do que passá-lo com novos amigos (Thompson e Heller, 1990). Obviamente, é necessário fa­zer mais pesquisas para entender quais ti­pos de prevenção realmente funcionam para os idosos, e isso se tornará mais importante à medida que a grande coorte de nascidos na explosão demográfica posteri­or à Segunda Guerra Mundial tenha uma idade mais avançada.

Advertências com relação à prevenção primária

Vários fatores dificultam a implemen­tação de programas de prevenção primá­ria. Em primeiro lugar, as pessoas tendem a acreditar que o futuro resultará em coi­sas boas que acontecerão a elas, enquanto as coisas ruins acontecerão aos outros. Esse fenômeno foi chamado de ilusão da sin­gularidade (Snyder e Fromkin, 1980) ou invulnerabilidade singular (Snyder, 1997). Uma forma de redução dessas vi­sões falsas é proporcionar às pessoas in­formações estatísticas sobre o quanto é tí­pico se deparar com problemas. Isso faz que pareça mais “normal” ter o problema, e os receptores dessa informação ficam mais dispostos a buscar ajuda antes que o problema cresça a um tamanho tal que seja difícil de tratar.

Em um teste empírico dessa aborda­gem, Snyder e Ingram (1983) disseram a [316]  estudantes universitários, metade dos quais tinha ansiedade elevada em testes, que havia alta prevalência de ansiedade entre universitários. Os resultados mostraram que apenas os estudantes com alta ansie­dade passaram a percebê-la como normal e tiveram mais probabilidades de procurar tratamento. Uma abordagem parecida é mostrar anúncios de televisão curtos ou es­trelas de filmes contando que buscaram tra­tamento e agora estão melhores (Snyder e Ingram, 2000b). Resumindo, ao normali­zar o problema, as pessoas que o têm po­dem estar mais dispostas a buscar ajuda para tratá-lo.

Outra força que sabota as atividades de prevenção é a dificuldade de convencer as pessoas de que esses programas são efi­cazes e valem o esforço. As pessoas ten­dem a permanecer passivas e a acreditar que “as coisas vão acabar dando certo”. Além disso, as instituições de financiamen­to podem não enxergar o ganho, ou seja, que fazer alguma coisa agora vai ter bene­fícios anos mais tarde. Uma maneira de corrigir essa percepção equivocada é reali­zar pesquisas para mostrar os ganhos dire­tos em termos de aumento de produtivida­de e dinheiro economizado por essas instituições onde se podem ampliar as preven­ções (empresas, organizações governamen­tais, etc.) (Snyder e Ingram, 2000b). Se as pesquisas mostrarem a uma empresa que iniciativas de prevenção primária podem economizar seu dinheiro no longo prazo, ela provavelmente investirá dinheiro nes­sas atividades.

Por fim, ainda que tenha havido avanços na área de prevenção, é necessário um tempo considerável até que essas conclu­sões sejam publicadas e se tornem parte da base de conhecimento da psicologia (Clark, 2004). Embora tenhamos bastante conhecimento sobre como intervir contra as psicopatologias (em função da aplica­ção ampla do modelo anterior de patolo­gias), temos muito menos entendimento de prevenção para promover a saúde e redu­zir futuros problemas entre populações identificadas (Holden e Black, 1999). Mes­mo assim, a prevenção primária pode ser aplicada com eficácia a comportamentos-alvo relacionados à saúde psicológica e fí­sica. A prevenção primária pode ajudar a manter as enfermidades físicas contidas e aumentar a qualidade psicológica da vida nos anos seguintes (Kaplan, 2000; Kaplan, Alcaraz, Anderson e Weisman, 1996; Ka­ plan e Anderson, 1996).

Prevenção secundária (psicoterapia): "consertar o problema"

A prevenção secundária trata de um problema quando ele começa a surgir. Comparada com a prevenção primária, portanto, ela ocorre mais tarde na seqüên­cia temporal do problema que se desen­volve (vide a Figura 15.1). Snyder e cola­boradores (2000, p. 256) descreveram a prevenção secundária como algo que ocorre quando “o indivíduo produz ensina­mentos ou ações para eliminar, reduzir ou conter o problema uma vez que este apa­receu”. Sendo assim, o tempo em relação ao problema é um fator de diferenciação fundamental nesses dois tipos de preven­ção, com a prevenção primária envolven­do ações iniciadas antes do problema se de­senvolver e a secundária, ações realizadas depois que o problema apareceu.

A prevenção secundária é sinônimo de intervenções psicoterápicas. Embora a maioria das pessoas provavelmente se dê conta de que há muitas formas de psicoterapia, muitos se surpreendem ao saber que os profissionais atualmente estão pratican­do mais de 400 tipos diferentes de inter­venção (Roth, Fonagy e Parry, 1996).

Consideramos a psicoterapia como um excelente exemplo de prevenção secun­dária porque as pessoas que vêm a esse tipo de tratamento sabem que têm [317] determinados problemas que estão além de suas ca­pacidades de enfrentamento, e é isso que as leva a buscar ajuda (Snyder e Ingram, 2000a). De fato, a literatura relacionada revela que os problemas específicos dos fatores de estresse na vida desencadeiam a busca de ajuda psicológica (Norcross e Prochaska, 1986; Wills e DePaulo, 1991). É claro que, quando a psicoterapia é bem sucedida, ela também pode produzir a ca­racterística de prevenção primária de re­duzir ou prevenir a recorrência de proble­mas semelhantes no futuro.

A prevenção secundária é eficaz?

Desde as sínteses mais antigas sobre a eficácia da psicoterapia (por exemplo. Smith, Glass e Miller, 1980) às mais con­temporâneas (vide Ingram, Hayes e Scott, 2000), há evidências constantes de que ela melhora a vida de adultos e crianças. Quan­do dizemos que a psicoterapia “funciona”, queremos dizer que há uma redução da gravidade e/ou frequência dos problemas e sintomas do cliente. Em média, por exem­plo, uma pessoa que fez psicoterapia me­lhorou na magnitude de 1 desvio-padrão (ou seja, está cerca de 34% melhor) em vários indicadores de resultado, em rela­ção à que não fez (Landman e Dawes, 1982; Shapiro e Shapiro, 1982). Sendo assim, existe sustentação científica consistente para a eficácia do que chamamos de tratamentos baseados em evidências para adultos (Chambless et al., 1998; Chambless e Hollon, 1998; Chambless et al., 1996), crianças (Casey e Berman, 1985; Kasdin, Siegel e Bass, 1990; Roberts, Vemberg e Jackson, 2000; Weisz, Weiss, Alicke e Klotz, 1987), idosos (Gallagher-Thompson et al., 2000; Woods e Roth, 1996) e para mino­rias étnicas (Malgady, Rogler e Costantino, 1990). Além disso, os clientes que passa­ram por tratamentos psicoterápicos infor­mam estar muito satisfeitos com suas experiências (Seligman, 1995).

Para o leitor interessado em panora­mas de tratamentos eficazes para depres­sões, transtornos bipolares, fobias, trans­tornos de ansiedade generalizada, agorafobias, transtornos obsessivo-compulsivos, transtornos alimentares, esquizofrenia, transtornos de personalidade, dependência e abuso de álcool e disfunções sexuais, recomendamos o livro de 1996, What works for whom? A critical review of psychotherapy research, organizado por Anthony Roth e Peter Fonagy. As intervenções eficazes para problemas específicos são resumidas no Anexo A, dispostas nas páginas 334-335.

Componentes comuns das intervenções secundárias

Sobre a eficácia da psicoterapia, o renomado psiquiatra e estudioso da psico­terapia Jerome Frank (1968, 1973, 1975) sugeriu que a esperança seria o processo subjacente comum a todos os enfoques bem-sucedidos da psicoterapia. Partindo das idéias pioneiras de Frank, Snyder e colaboradores (Snyder, Ilardi, Cheavens, et al., 2000; Snyder, Ilardi, Michael e Chea­ vens, 2000; Snyder, Parenteau, Shorey, Kahle e Berg, 2002) usaram a teoria da es­perança (vide o Capítulo 9) para demons­trar como o pensamento dirigido a objeti­ vos, baseado em caminhos e em agência, facilita os bons resultados na psicoterapia. Aprofundamos, a seguir, a discussão sobre a aplicação desses processos de agência e caminhos a processos de psicoterapia.

Os efeitos placebo na pesquisa em psicoterapia representam o quanto os clien­tes iriam melhorar se fossem motivados a acreditar que as mudanças iriam aconte­cer. Portanto, se o tamanho do efeito de resultado terapêutico do placebo for com­parado com o tamanho do efeito terapêutico para clientes que não recebem ex­pectativas motivacionais, podemos produ­zir aquilo que eqüivale a um efeito-agência (ou motivação). Igualmente, se [318] tomar-mos o efeito de resultado total do trata­mento (incluindo agência e mais os cami­nhos do tratamento) e subtrairmos o efei­to placebo (agência), permanece havendo um efeito de tipo caminhos. Já se mostrou que o tamanho do efeito da agência típico é de 0,47 desvios-padrão em magnitude (isto é, os clientes ficam 16% melhores do que estariam se não tivessem recebido tra­tamento), e o efeito de caminhos foi de 0,55 desvios-padrão em magnitude (isto é, os clientes ficam 19% melhores do que es­tariam se não tivessem recebido tratamen­to; dados de Barker, Funk e Houston, 1988). Somando-se esses efeitos de agência e caminhos, tem-se o tamanho geral do efeito da esperança, de 1,02 desvios-padrão (isto é, os clientes ficam cerca de 35% melhores do que estariam se não tivessem recebido tratamento). Como é mostrado na Figura 15.2, podemos ver que cerca de me­tade do importante efeito de resultado da psicoterapia está relacionado à motivação de agência, e a outra metade do efeito da psicoterapia está relacionada aos caminhos aprendidos em intervenções específicas.

Programas de prevenção secundária para adultos

A maioria dos enfoques de psicote­rapia usou o que Berg e de Shazer (1992) chamam de “discurso do problema” em lugar do “discurso da solução”. Ou seja, o foco tradicional tem estado na redução dos pensamentos e comportamentos negativos em lugar de se concentrar na construção de pensamentos e comportamentos positi­vos (Lopez, Floyd, Ulven e Snyder, 2000). Embora o enfoque do comportamento hu­mano com base na patologia ainda seja o modelo predominante, nos últimos anos muitos terapeutas têm começado a prestar atenção às qualidades dos clientes. Igual­mente, às vezes é necessário que um clien­te desaprenda pensamentos e comporta­mentos negativos antes de aprender os positivos.

Figura 15.2

Antes de tratar de exemplos de abor­dagens terapêuticas mais novas da psico­logia positiva, seria interessante descrever abordagens anteriores que se mostraram eficazes para reduzir os problemas dos [319] clientes. Nesse sentido, algumas interven­ções de psicoterapia envolvem a autogestão (Rokke e Rehm, 2001). Uma delas é o modelo de autoeficácia de Bandura, dis­cutido anteriormente, no Capítulo 9. Se­gundo esse modelo, um cliente pode apren­der visões de eficácia por meio de

  1. conquistas reais em termos de desem­penho na área problemática;
  2. seguir o modelo de outra pessoa que está enfrentando de forma eficaz;
  3. persuasão verbal por parte do profissio­nal da ajuda e
  4. controle de processos cognitivos nega­tivos ao aprender a implementar humo­res positivos (Forgas, Bower e Moylan, 1990).

É importante observar que existem comportamentos-alvo específicos nessas abordagens baseadas na autoeficácia.

Um segundo tipo de autogestão en­volve a formação autodidática de Meichenbaum (1977), que geralmente se destina a tratar problemas de ansiedade. A etapa inicial dessa abordagem é coletar informa­ções sobre o problema, incluindo cognições mal-adaptativas. Isso se consegue quando o profissional pede que o cliente imagine o problema e descreva o diálogo interno que está ocorrendo. Na segunda etapa da abordagem de tratamento de Meichenbaum, ensinam-se diálogos internos mais adaptativos ao cliente. Por fim, o cliente pratica esses novos diálogos de enfrentamento para fortalecer a probabilidade de vir a usá-los de verdade.

Uma terceira abordagem baseada na autogestão é o modelo de autocontrole em três etapas, de Kanfer (1970), que costuma ser usado com problemas de ansiedade. Na primeira etapa, de automonitoramento, o cclente observa o comportamento problemá­tico no contexto de seus antecedentes e con­seqüências. Na segunda, de autoavaliação, o cliente aprende a comparar o comporta­mento problemático atual com o padrão melhorado de desempenho que se deseja, e entende que está ficando abaixo dele. Na terceira etapa, a de autorreforço, o cliente aprende a se reforçar (com recompensas ou punições) para o controle do comportamen­to indesejado. Além disso, o cliente deve es­tar comprometido a mudar e deve perceber que os comportamentos em questão estão sob seu controle.

Não podemos descrever todas as prin­cipais abordagens psicoterapêuticas em detalhes aqui. Para revisões das várias abor­dagens, vide o 2000 handbook of psycholo­gical change: psychotherapy processes & practicesfor the 21stcentury, organizado por C. R. Snyder e R. E. Ingram, e o 2004 handbook of psychotherapy and behavior change, organizado por M. J. Lambert. Os principais modelos de psicoterapia incluí­ram abordagens psicodinâmicas, técnicas comportamentais, estratégias cognitivo-comportamentais, modelos humanistas e abordagens do sistema de família, junto com o possível uso de medicações psicotrópicas (Plante, 2005).

Voltemos agora às abordagens de pre­venção secundária que são descritas den­tro do novo campo da psicologia positiva. Para uma revisão dessas abordagens da psicoterapia, recomendamos 2004 positive psychology in practice, organizado por E A. Linley e S. Joseph.

Seligman usou sua teoria do otimis­mo aprendido como uma estrutura de retreinamento de atribuições para desen­volver uma abordagem terapêutica à de­pressão. Para visões gerais de sua terapia de adultos, sugerimos o livro de 1991 de Seligman, Learned optimism e Authentic happiness, de 2002.

O retreinamento de atribuições para adultos de Seligman começa por ensinar às pessoas os ‘ABCs” relacionados a even­tos negativos em suas vidas. Especificamen­te, A é de adversidade, B para crença (belief) em relação à razão por trás do even­to negativo e C é de conseqüências em ter­mos de sentimentos (geralmente negativos ou deprimidos). A seguir, o autor ensina o adulto a acrescentar o D à seqüência ABC. [320]

Esse D representa a aprendizagem por par­te do cliente de confrontar e questionar a crença anterior, contraproducente e que gera depressão, com evidências contunden­tes e precisas. Por exemplo, na seqüência a seguir, considere um cliente hipotético, cha­mado Jack:

Adversidade = A percepção de Jack de que seu amigo Bob o tem ignorado.
Belief (a crença de Jack) = Bob não gosta dele porque Jack “não é divertido”.
Conseqüência = Jack se sente mal.

Com o treinamento para questionar com vistas a aprender outras explicações para o comportamento de Bob, Jack con­seguirá se sentir melhor consigo mesmo. Por exemplo, observe a seqüência a seguir, na qual se acrescenta o questionamento:

Adversidade = Bob não fala com Jack du­rante toda a tarde, no trabalho.
Belief (a crença de Jack) = Bob não gosta de Jack.
Conseqüência = Jack se sente mal.
Questionamento = Jack invoca a atri­buição mais otimista de que Bob também tem estado silencioso com outras pessoas no trabalho. Jack observa que, na verdade, Bob havia falado com ele no intervalo do café, pela manhã. Sendo assim, tendo feito essas atribuições mais otimistas, Jack con­segue se sentir muito melhor com a situação.

Além de aprender a terapia do oti­mismo, prestou-se um pouco de atenção à implementação do que se chamou de “te­rapia da esperança” em cenários de conta­to individual (Lopez et al., 2000; Lopez et al., 2004; McDermott e Snyder, 1999), com casais (Worthington et al., 1997) e em gru­pos (Klausner et al., 1998). Por exemplo, Klausner e colaboradores (Klausner et al., 1998; Klausner, Snyder e Cheavens, 2000) desenvolveram uma intervenção grupal válida para adultos mais velhos deprimi­dos. Especificamente, em uma série de 10 sessões de grupo, aprender as atividades direcionadas a objetivos que são inerentes à teoria da esperança reduziu a depressão e levantou os níveis de atividade física para pessoas mais velhas deprimidas. Além dis­so, essas melhorias baseadas no tratamen­to por meio da esperança foram superio­res às obtidas por um grupo de compara­ção que se submeteu à terapia grupal das reminiscências de Butler (1974), que im­plica que os idosos relembrem épocas ante­riores de suas vidas, mais prazerosas.

Também usando a teoria da esperan­ça como base, Cheavens e colaboradores (Cheavens, Feldman, Gum, Michael e Snyder, no prelo; Cheavens et al., 2001) desenvol­veram uma intervenção eficaz de oito ses­sões, para adultos deprimidos.

Em mais uma aplicação terapêutica da esperança, pacientes que faziam consultas em um centro de saúde mental comunitá­rio receberam uma preparação terapêutica pré-tratamento com base na teoria da espe­rança (isto é, aprenderam os princípios bá­sicos dessa teoria) e receberam as interven­ções psicoterápicas normais que são aplica­das nessa instituição. Os resultados mostra­ram que as pessoas que receberam instruções pré-tratamento na teoria da esperança melhoraram mais nos tratamentos subse­quentes do que as que não receberam essas preparações prévias (Irving et al., 2004). Deve-se enfatizar que todos os clientes nes­se estudo receberam tratamentos reais com­paráveis, mas o grupo que recebeu forma­ção pré-tratamento na teoria da esperança aproveitou melhor suas intervenções. Em mais uma intervenção com base na espe­rança, Trump (1997) formulou um trata­mento gravado em videoteipe usando nar­rativas esperançosas de mulheres que ha­viam sobrevivido ao incesto na infância. Os resultados mostraram que assistir a essa fita aumentava os níveis de esperança dessas mulheres em relação aos que assistiram a uma fita de controle.

Como mostrado no Anexo B (página 336), que é uma planilha para se usar na implementação da teoria da esperança com adultos, o cliente que passa pela terapia [321] da esperança é investigado em relação a seus objetivos em diferentes áreas da vida. A seguir, pede-se que escolha um domínio da vida específico, para nele trabalhar. Nas sessões seguintes, o terapeuta ajuda o clien­te a esclarecer os objetivos ao apontar referências concretas que sejam visíveis, para avaliar o progresso em atingir esses objeti­vos. Várias vias para se atingir os objetivos são ensinadas a seguir, junto com formas de motivar a pessoa para usar realmente essas vias. Os impedimentos aos objetivos desejados são previstos, e os clientes rece­bem instruções sobre como instituir rotas alternativas para os objetivos. À medida que diferentes objetivos são praticados ao longo do tempo, os clientes aprendem como aplicar a terapia da esperança natu­ralmente, em suas buscas cotidianas de objetivos. O propósito geral é ensiná-los a usar os princípios da terapia da esperança para atingir objetivos de vida atuais, espe­cialmente quando se encontram obstácu­los (Cheavens, Feldman, Woodward e Snyder, no prelo).

Prevenções secundárias para minorias étnicas

Os comentários a seguir, sobre psicoterapia para clientes que sejam membros de minorias étnicas, devem ser considera­ dos à luz do fato de que as pessoas de cor tendem a não buscar tratamento. Por exem­plo, enquanto os membros de grupos minoritários representam cerca de 30% da população dos Estados Unidos, eles perfa­zem apenas 10% dos que buscam psicoterapia (Vessey e Howard, 1993). Esse pro­blema é aumentado pelo fato de que mem­bros de grupos minoritários que entram em psicoterapia têm mais probabilidades do que os caucasianos de encerrar o tratamen­to antes (Gray-Little e Kaplan, 2000).

Mencionamos esses fatos para desta­car que o sistema não é eficaz para chegar às pessoas de cor e ajudá-las. Além disso, foi feita tão pouca pesquisa com clientes de psicoterapia que sejam de origem afri­cana, hispânica ou asiática, que atualmen­te não se podem fazer declarações em re­lação às melhores abordagens para tais tra­tamentos. Ao comentar a falta de amos­tras suficientes de clientes de minorias, Gray-Little e Kaplan (2000, p. 608) escre­veram: “Nossa revisão nos fez sentir como o convidado para jantar que comentou que a comida foi decepcionante e que ‘as por­ções eram muito pequenas!”’. Obviamen­te, uma das missões da psicologia positiva deveria ser entender as razões para a subutilização dos profissionais de saúde mental por membros de grupos minori­tários, bem como aumentar suas propensões a buscar esses serviços e se manter em tratamento.

Prevenção secundária para crianças

Para panoramas de prevenções secun­dárias para crianças, consulte as duas pá­ginas na internet http://www.state.hi.us/ doh/camhd/index.html e http://www.clinicalchildpsychology.org. Trataremos ago­ra de intervenções de psicologia positiva específicas para crianças. Anteriomente, neste capítulo, discutimos a abordagem de Seligman para o otimismo e seu uso como programa de prevenção primária para de­pressão em alunos de 5a série (vide, tam­bém, Jaycox, Reivich, Gillham e Seligman, 1994). Ém seu livro de 1995, The optimistic child, Martin Seligman mostra a professo­res e pais como educar as crianças para atingir as habilidades de vida necessárias de forma a diminuir a depressão. Esse pro­grama também melhora a autoconfiança, o desempenho escolar e a saúde física.

Usando a teoria da esperança como a desenvolveram Snyder e colaboradores, também tem havido programas explora­tórios para elevar a esperança de crianças. Nesses programas de treinamento para a esperança, as crianças aprendem a estabe­lecer objetivos claros e a encontrar várias rotas viáveis para chegar a eles. A seguir, ]322]  aprendem a se motivar para usar as rotas que levem aos objetivos desejados. Em seu livro Hope for the journey, Snyder, McDer­mott, Cook e Rapoff (2004) usam histórias para implantar pensamentos e comporta­mentos esperançosos nas crianças. Além disso, os programas iniciais nas escolas de ensino fundamental (McDermott et al., 1996) e nas de ensino médio (Lopez, 2000) usaram histórias para promover modestos aumentos na esperança. Da mesma forma, McNeal (1998) informou que a esperança das crianças aumentou após seis meses de psicoterapia, e Brown e Roberts (2000) concluíram que uma colônia de férias de seis semanas resultou em melhoras signi­ficativas nos escores de esperanças das cri­anças (essas mudanças se mantiveram após quatro meses). (Para mais um panorama das intervenções com base em esperança voltadas a crianças, leia The great big book of hope, de McDermott e Snyder [2000].)

Prevenções secundárias para idosos

A depressão é o problema mais fre­qüente entre pessoas mais velhas que vêm à psicoterapia. Nas palavras de Blazer (1994), a depressão é como o resfriado na vida psicológica dos idosos. A abordagem terapêutica mais predominante com os ido­sos é a cognitivo-comportamental (Thomp­son, 1996), embora a psicodinâmica (Newton, Brauer, Gutmann e Grimes, 1986), a interpessoal (enfatizar as habilidades de comunicação; Klerman, Weissman, Roun- saville e Chevron, 1984) e a das reminiscências (Butler, 1974) também tenham sido usadas com eficácia. Como os idosos ge­ralmente enfrentam eventos negativos qua­se inevitáveis (redução de renda e saúde, perda de amigos e cônjuge, etc.), o desen­volvimento de visões mais adaptativas em relação às próprias circunstâncias e a si mesmos é especialmente aplicável (Galla- gher-Thompson et al., 2000). Nessa abor­dagem, é importante se certificar de que o cliente idoso:

  1. tem expectativas apropriadas daquilo que virá à tona no tratamento;
  2. consegue ouvir e ver claramente nas sessões; e
  3. tem sessões estruturadas para avançar com a calma necessária para que as lições sejam absorvidas.

Embora a abordagem usual seja con­duzir esse tratamento em um setting indi­vidual, os formatos grupais também podem funcionar. Nesse sentido, a abordagem psicoeducacional com adultos de mais ida­de será cada vez mais importante no futu­ro. (Para um manual sobre como conduzir uma aula dessas, vide Thompson, Gallagher e Lovett, 1992).

Uma advertência sobre intervenções secundárias

Infelizmente, há um estigma relacio­nado a consultar um profissional de saúde mental para fazer psicoterapia. Embora a maioria das pessoas não tenha problemas em consultar outros profissionais de saú­de, como oftalmologistas ou cirurgiões, elas ficam reticentes em relação a ver um psi­quiatra ou um psicólogo profissional. Um exemplo claro desse estigma ocorreu na eleição presidencial de 1972 nos Estados Unidos, quando o candidato democrata George McGovern escolheu o senador Thomas Eagleton como seu candidato a vice-presidente. Quando o público norte- americano descobriu que o senador Eagleton havia feito tratamento para depressão clí­nica com terapia eletroconvulsiva de cho­que, houve uma preocupação de que uma pessoa depressiva pudesse estar a “a um passo da presidência” se alguma coisa acon­tecesse a McGovern (caso ele fosse eleito presidente). O estigma associado à depres­são acabou fazendo que McGovern retiras­se Eagleton da chapa.

Outro exemplo vem da ex-primeira dama Rosalynn Carter (Carter, 1977), que escreveu, [323] 

Quando eu era criança em Plains, no Es­tado da Geórgia, eu não ouvia falar em “saúde mental” e “doença mental”. Com os anos, escutei que um vizinho nosso teve um “colapso nervoso” e outro amigo “não estava muito bem”, e que um primo dis­tante havia sido colocado em uma instituição do Estado na qual, supus, todo mundo era louco. Lembro-me claramen­te de quando meu primo veio para casa uma vez visitar a família. Acho que me lembro da ocasião com tanta clareza por­que ele correu atrás de mim pela rua - e eu nunca me senti tão apavorada. Eu não sabia porque deveria fugir... Como nação, ainda estamos fugindo de pessoas que ti­veram ou ainda têm transtornos mentais e emocionais. E o estigma ligado à sua sina é uma desgraça não merecida... Em suma, a doença mental ainda não é acei­tável em nossa sociedade” (p. D4).

Os meios de comunicação tocam nes­ses assuntos em programas de televisão ocasionais, como The Bob Newhart Show e Frasier, em que rimos do humor inerente ao comportamento de psicoterapeutas es­quisitos. Esse tipo de televisão nada faz para reduzir o estigma, contudo, e pode muito bem alimentar os estereótipos ne­gativos. De fato, restam poucas dúvidas de que esse estigma persiste na sociedade dos Estados Unidos, pois a maioria das pessoas ainda evita falar de seu cuidado com a saú­de mental. A tragédia, nesse caso, é que esse estigma impede muitas pessoas de buscar o tratamento de que necessitam. Além disso, se as pessoas conseguirem pro­curar tratamento nas primeiras fases de seus problemas psicológicos, a probabili­dade de que tenham resultados eficazes no tratamento aumenta. Entretanto, elas po­dem esperar até que o problema psicológi­co se torne tão grave que seja extremamen­ te difícil intervir de forma eficaz. Talvez a psicologia positiva possa trabalhar para re­duzir esse pensamento preconceituoso fa­zendo com que as pessoas pensem em psicoterapia não apenas como uma solução para problemas, mas também como o for­talecimento das qualidades da pessoa e seus talentos, para que ela se torne mais produtiva e mais feliz. Em outras palavras, com o crescimento da psicologia positiva, o estigma associado à psicoterapia pode se reduzir, pois as pessoas passariam a ver o tratamento como algo que envolve proces­sos para aumentar seus recursos.

Potencialização primária: "tornar a vida boa" 

A potencialização primária é o es­forço para estabelecer funcionamento e sa­tisfação ótimos. Como mostrado no lado es­ querdo da Figura 15.3, a potencialização primária envolve tentativas de aumentar o bem-estar hedônico ao maximizar o que é agradável ou aumentar o bem-estar eudaimônico ao estabelecer e atingir objetivos (Ryan e Deci, 2001; Waterman, 1993). En­quanto as potencializações primárias hedônicas visam à indulgência no prazer e à satisfação de apetites e necessidades, as potencializações primárias eudaimônicas enfatizam o funcionamento eficaz e a feli­cidade, como resultado desejável do proces­so de busca de objetivos (Seligman, 2002; Shmotkin, 2005). Nesse aspecto, deve-se observar que a pesquisa de análise fatorial sustentou a distinção entre motivações hu­manas hedônicas e eudaimônicas (Compton, Smith, Cornish e Qualls, 1996; Keyes, Shmotkin e Ryff, 2000).

Figura 15.3

Antes de descrever as várias rotas para a potencialização primária, são necessários alguns comentários sobre o papel da evolu­ção. Em um sentido evolutivo, determina­das atividades são biologicamente predis­postas a produzir satisfação (Buss, 2000; Pinker, 1997). Uma premissa evolutiva é que as pessoas vivenciam o prazer sob circuns­tâncias favoráveis à propagação da espécie humana (Carr, 2004). Assim, a felicidade é resultado de laços interpessoais íntimos, es­pecialmente os que levam ao acasalamento e à proteção da prole. De fato, as pesquisas mostram que a felicidade vem: [324]

  1. de uma unidade de vida segura e que proporcione apoio, com pessoas que tra­balham juntas;
  2. de um ambiente que seja fértil e produ­tor de alimentação;
  3. da ampliação dos limites de nosso cor­po por meio do exercício e da busca de objetivos dotados de senti­do no trabalho (Diener, 2000; Kahne- man, Diener e Schwartz, 1999; Lykken, 1999).

Mais uma advertência cabe aqui. Muitas das experiências que estão na cate­goria de potencialização primária também se encaixam na de potencialização secun­dária, envolvendo experiências de pico. A divisão entre uma experiência ótima e uma experiência de pico pode ser muito sutil.

Potencialização primária: saúde psicológica

Muitas pessoas em seus leitos de mor­te podem pensar: “Eu queria ter passado mais tempo com minha família”. Isso su­gere que nossos relacionamentos são cru­ciais para a satisfação na vida. De fato, para maioria das pessoas, os relacionamentos interpessoais com parceiros amorosos, pa­rentes e bons amigos são as fontes mais poderosas de bem-estar e satisfação na vida (Berscheid e Reis, 1998; Reis e Gable, 2003).

Realizar atividades compartilhadas que sejam agradáveis aumenta o bem-es­tar psicológico (Watson, Clark e Tellegen, 1988), especialmente se essa participação conjunta gera excitação e atividades novas (Aron, Norman, Aron, McKenna e Heyman, 2000). Igualmente, é benéfico para ambas as partes enfrentar atividades intrinsecamente motivadas, nas quais podem com­partilhar aspectos de suas vidas deixando-se absorver pelo flow atual de seus com­portamentos (Csikszentmihalyi, 1990).

Para além do relacionamento com o parceiro amoroso, as satisfações da poten­cialização primária também podem advir de outras relações, por exemplo, com ami­gos e parentes. As circunstâncias de vida para estar em proximidade física com a família também podem produzir os apoios sociais que são tão cruciais para a felicida­de. A rede formada por alguns amigos ín­timos também pode gerar contentamento. Por fim, há argumentos evolutivos contun­dentes (Argyle, 2001) e pesquisa empírica (Diener e Seligman, 2002) para sustentar as razões pelas quais esses relacionamen­tos com parentes e amigos são fundamen­tais para a felicidade.

Outro relacionamento que gera feli­cidade é o envolvimento em questões de [325] religião e espirituais (Myers, 2000; Pied­ mont, 2004). Em parte, isso pode ser um reflexo do fato de que a religiosidade e a oração estão relacionadas à esperança ele­vada (Laird, Snyder, Rapoff e Green, 2004; Snyder, 2004c). Da mesma forma, parte da satisfação com a religião provavelmente provém dos contatos sociais que ela proporciona (Carr, 2004). A felicidade tam­bém pode resultar da espiritualidade oriun­da dos relacionamentos de uma pessoa com uma força superior. Sobre esse aspecto, há evidências de um possível vínculo genéti­co com as necessidades espirituais das pes­soas (vide Hamer, 2004).

O trabalho gratifícante também é uma importante fonte de felicidade (Argyle, 2001). Se as pessoas estiverem satisfeitas com seu tra­balho, elas também ficarão mais felizes (uma correlação geral de 0,4 entre estar empregado e o nível de felicidade; Diener e Lucas, 1999). A razão para essa conclu­são é que, para muitas pessoas, o trabalho proporciona uma rede social e também pos­sibilita testar talentos e habilidades. Para adquirir esse tipo de satisfação no traba­lho, contudo, é fundamental que os em­pregos ofereçam bastante variedade nas atividades realizadas. Além disso, as tare­fas devem ser adequadas às habilidades e aos talentos do trabalhador. Também aju­da ter um chefe que apoie e estimule a au­tonomia (Warr, 1999) e, ao mesmo tem­po, possibilite ao trabalhador individual en­tender e assumir como sendo seus os obje­tivos mais amplos da empresa (Hogan e Kaiser, 2005).

As atividades de lazer também podem gerar prazer (Argyle, 2001). Relaxar, des­cansar e fazer uma boa refeição têm todos o efeito de curto prazo de fazer que as pes­soas se sintam melhor. As atividades recre­ativas, como praticar esportes, dançar e escutar música, possibilitam às pessoas es­tabelecer contatos prazerosos com as ou­tras. Embora possa parecer incoerente com o termo lazer, as pessoas costumam ser muito ativas ao participar de atividades desse tipo. Portanto, às vezes a felicidade vem da estimulação e de uma sensação de excitação positiva, ao passo que, em ou­tras vezes, ela reflete um processo tranqüilo e de repor as energias.

Sejam quais forem as atividades es­pecíficas de potencialização primária, as ações totalmente absorventes são as mais agradáveis. Csikszentmihalyi e colaborado­ res (Csikszentmihalyi, 1990; Nakamura e Csikszentmihalyi, 2002) estudaram as cir­cunstâncias que levam a uma sensação de envolvimento total. Essas atividades cos­tumam ser intrinsecamente fascinantes por levar os talentos a níveis satisfatórios, nos quais as pessoas se deixam levar e perdem a noção do tempo. Esse tipo de potencia­lização primária já foi chamado de expe­riência de flow, e artistas, cirurgiões e ou­tros profissionais relatam ter esse tipo de flow em seu trabalho (vide o Capítulo 11, para mais discussão sobre flow).

Uma outra via para se atingir uma sensação de contentamento é a contempla­ção, no momento presente, do ambiente externo e interno da pessoa. Uma linha comum no pensamento oriental é a de que se tem imenso prazer por meio de “ser” ou vivenciar. Mesmo nas sociedades ociden­tais, contudo, a meditação sobre as expe­riências internas ou pensamentos ganhou muitos seguidores (Shapiro, Schwartz e Santerre, 2002). A meditação foi definida como “uma família de técnicas que têm em comum uma tentativa consciente de con­centrar atenção de forma não analítica e uma tentativa de não se manter no pensa­mento discursivo, ruminativo” (Shapiro, 1980, p. 14). Por exemplo, a meditação mindfulness (Langer, 2002) envolve uma atenção sem julgamento, que possibilita uma sensação de paz, serenidade e prazer. Kabat-Zinn (1990) propôs as sete qualida­des a seguir em relação à meditação mind­fulness: não-julgar, aceitar, abrir-se, não lutar, ter paciência, ter confiança e desvencilhar-se (vide o Capítulo 11). Igualmente, naquilo que se chama de meditação con­centrada, a consciência é restringida por [326]  meio da concentração em um único pen­ samento ou objeto, como um mantra pes­ soal, a própria respiração, uma palavra (Benson e Proctor, 1984), ou mesmo um som (Carrington, 1998).

Outro processo que se assemelha à meditação em sua forma de operação é a apreciação (savoring), que envolve pensa­mentos e ações que visam apreciar e, tal­vez, amplificar, uma experiência positiva de algum tipo (vide Bryant, 2004; Bryant e Veroff, 2006). Segundo Fred Bryant (2005), psicólogo que cunhou esse termo e que produziu as principais pesquisas e teorias a respeito, a apreciação pode assu­mir três formas temporais:

  1. Antecipação, ou o prazer por um even­to positivo vindouro.
  2. Estar no momento, ou pensar e fazer coisas para intensificar e, talvez, pro­longar um evento positivo à medida que ele ocorra.
  3. Reminiscência, ou se lembrar de um evento positivo para resgatar os senti­mentos e pensamentos favoráveis.

Além disso, a apreciação pode assu­mir a forma de:

  • Compartilhar com outras pessoas.
  • Tirar “fotografias mentais” para cons­truir a própria memória.
  • Congratular-se.
  • Comparar com o que se sentiu em ou­tras circunstâncias.
  • Afiar os sentidos por meio da concen­tração.
  • Ser absorvido pelo momento.
  • Expressar-se por intermédio do compor­tamento (rir, gritar, dar socos no ar).
  • Dar-se conta do quão fugaz e preciosa é a experiência.
  • Contar as próprias bênçãos.

Como exemplo de apreciação, veja os comentários (retirados de seu diário), de Bertrand Piccard (1999), quando este con­templava a última noite de sua viagem de balão ao redor do mundo, quando que­brou recordes

Na última noite, saboreei mais uma vez o rela­cionamento ínti­mo que estabele­cemos com nos­so planeta. Sen­tindo calafrios no assento do piloto, tenho a sensação de ter saído da cápsula para voar sob as estrelas que engoliram nosso ba­lão. Sinto-me tão privilegiado que quero desfrutar cada segundo deste mundo aé­reo... Em seguida, ao clarear do dia, [o balão] aterrissará na areia do Egito... [e eu] precisarei imediatamente encontrar palavras para satisfazer a curiosidade do público. Mas agora, silenciado dentro de minha japona, deixo que a mordida fria da noite me lembre de que ainda não ater­rissei, de que ainda estou vivendo um dos momentos mais bonitos da minha vida... a única maneira por meio da qual posso fazer que este instante dure é compar­tilhá-lo com outras pessoas (p. 44).

Ainda há mais que as pessoas podem fazer, para além da apreciação. Nesse sen­tido, a psicóloga Barbara Fredrickson (2002), da Universidade da Carolina do Norte, desenvolveu seu pioneiro modelo “ampliar e potencializar” (vide o Capítulo 7, para uma discussão mais detalhada do modelo) após observar que as emoções negativas, como a raiva e a ansiedade, ten­dem a limitar o repertório de pensamento e ação de uma pessoa. Ou seja, quando sentem emoções negativas, as pessoas se interessam por proteção - e seus pensa­mentos e ações passam a estar limitados a umas poucas opções restritas, que visam a se manter “em segurança”. Por outro lado, Fredrickson propôs que, ao experimentar emoções positivas, as pessoas se abrem e se tornam flexíveis em seus pensamentos e em seus comportamentos. Dessa forma, [327] as emoções positivas ajudam a produzir uma mentalidade voltada a “ampliar e potencializar”, na qual acontece um carros­sel positivo de emoções, pensamentos e ações subsequentes. Portanto, qualquer coisa que a pessoa possa fazer para vivenciar alegria, talvez por meio de diver­são ou outras atividades, pode render be­nefícios psicológicos.

Em sua pesquisa, Fredrickson (1999, 2001, 2002) induziu emoções positivas, fa­zendo que os participantes se lembrassem de um evento alegre, ouvissem uma música favorita, assistissem a um bom filme e rece­bessem avaliações positivas acerca de si mesmos, para citar alguns exemplos. Essas induções emocionais positivas, por sua vez, tornam as pessoas mais felizes, mais perceptivas, melhores na solução de problemas, com mais facilidade nas interações sociais, e assim por diante. O ciclo de “am­pliar e potencializar” é mostrado no Capí­tulo 7, na Figura 7.3. As emoções positivas abrem a pessoa às circunstâncias em que ela está inserida, bem como às importantes pistas que são relevantes às tarefas nessas circunstâncias. Além disso, as emoções po­sitivas lembram a pessoa de outros episódios de sucesso em sua vida, elevando, assim, a possibilidade percebida de se sair bem nas condições atuais. Portanto, o modelo de “ampliar e potencializar”, de Fredrickson, põe em movimento um carrossel positivo.

O psicólogo Steve Ilardi e colabora­dores da Universidade do Kansas, inicia­ram um novo tratamento para a preven­ção da depressão e para o aumento da feli­cidade pessoal, chamado de Mudança te­rapêutica de estilo de vida, Therapeutic Lifestyle Change ([TLC], Ilardi e Karwoski, 2005; para mais informações sobre o programa, consulte a página na internet www.psych.ku.edu/TLC). O preceito básico do TLC é o de que o desenvolvimento de determinadas postu­ras em relação ao estilo de vida, especial­mente as atividades que eram parte natu­ral da vida de nossos ancestrais que vive­ram há muito tempo, gera uma redução da depressão e um aumento da felicidade.

Os componentes do TLC são o exer­cício, suplementos de ácidos graxos ômega- 3, exposição à luz, menos ruminação e pre­ocupações, apoio social e bom sono. Inicial­mente, são recomendados 35 minutos de exercício aeróbico ao menos três vezes por semana. A ideia é fazer que o batimento cardíaco da pessoa chegue entre 120 e 160 por minuto. Segundo, os suplementos de ácidos graxos ômega-3 (óleos de peixe, vendidos sem prescrição médica) podem ser comprados em farmácias. Parece que nossos ancestrais consumiam quantidades mais altas de peixe do que nós consumi­mos hoje. Em terceiro, tente obter pelo menos 30 minutos de luz do sol por dia. Pode-se fazer isso naturalmente, ficando ao sol ou se sentando próximo a uma caixa de luz especial que emite luz muito bri­lhante (10.000 lux). Quarto, pare de rumi­nar. Entre as coisas que funcionam para re­duzir essa preocupação estão telefonar a um amigo, exercitar-se, colocar os pensa­mentos negativos em um diário ou reali­zar outras atividades prazerosas. Em quin­to lugar, certifique-se de estar com outras pessoas. Isso também ajuda a distraí-lo da ruminação. Sexto, durma ao menos 8 ho­ras por noite. Faça isso assumindo um ritu­al para a hora de dormir e evite cafeína e álcool muitas horas antes de deitar. Em sín­tese, o TLC parece ser uma nova aborda­gem promissora (com base em ações hu­manas muito antigas) que pode aumentar nossa felicidade. Além disso, deve-se regis­trar que o TLC envolve inerentemente vá­rios processos já discutidos nesta seção e cobre a potencialização primária da saúde psicológica.

Martin Seligman e colaboradores rea­lizaram um programa de pesquisa voltado a encontrar intervenções que fossem [328] eficazes para potencializações primárias (vide Seligman, Steen, Park e Peterson, 2005). Especificamente, Seligman recrutou 577 adultos que visitaram a página na internet de seu livro Authentic happiness (Seligman, 2002). A maioria dessas pessoas era de origem caucasiana, com alguma instrução universitária, entre 35 e 40 anos de idade, e 58% eram mulheres. Antes e depois de passar pela intervenção de potencialização primária, cada participante realizou medi­das de autoavaliação da felicidade. (Em­bora os participantes tenham sido desig­nados aleatoriamente a condições diversas, tratamos de uma condição de controle e três condições de intervenção para poten­cialização primária.)

A condição de controle para compa­ração era um exercício placebo no qual os participantes escreviam durante uma sema­na sobre suas memórias mais antigas. Os participantes colocados na intervenção de gratidão receberam uma semana para “entregar pessoalmente uma carta de gra­tidão a alguém que tivesse sido especial­mente gentil com eles, mas que nunca hou­vesse recebido os devidos agradecimentos (Seligman et al., 2005, p. 416). Os partici­pantes designados à condição que envol­via três coisas boas na vida deveriam es­crever, durante uma semana, sobre três coisas que foram bem a cada dia, junto com as causas por trás de cada uma delas. Por fim, pediu-se que um grupo de partici­pantes examinasse suas qualidades de ca­ráter de uma nova maneira, durante uma semana.

Os resultados mostraram que cada uma dessas três intervenções de potencia­lização primária teve efeitos positivos consistentes para revelar os níveis de feli­cidade dos participantes em relação aos que estavam na condição de controle/placebo. A visita de gratidão gerou os maiores aumentos em felicidade, mas eles duraram apenas por um mês. Além disso, escrever sobre três coisas boas que tivessem acontecido, junto com o uso de qualidades pessoais aplicados de uma nova maneira, tornou as pessoas mais fe­lizes, e essas mudanças positivas duraram até 6 meses.

Tomadas em seu conjunto, essas con­clusões sugerem que os psicólogos podem ajudar a desenvolver e a implementar in­tervenções de potencialização primária que elevem a felicidade das pessoas. Em seus comentários finais sobre essas descobertas pioneiras, Seligman e colaboradores (2005, p. 421) concluíram que “a psicoterapia é, há muito tempo, o lugar aonde se vai para falar dos problemas... Sugerimos que a psicoterapia do futuro também possa ser o lugar aonde se vai falar das próprias quali­dades”.

Antes de encerrarmos esta seção so­bre potencialização primária na saúde psi­cológica, a observação a seguir pode surpreendê-lo: um objetivo que não parece se adequar à potencialização primária é a busca de saúde financeira pessoal. Além de garantir as necessidades básicas da vida, o dinheiro pouco faz para melhorar o bem-estar (Diener e Biswas-Diener, 2002; Myers, 2000). Pense nas pessoas que você conhe­ce. É provável que as que se dedicam a obter riqueza provavelmente não sejam tão felizes. Na verdade, como apontamos em nosso capítulo anterior sobre os anteceden­tes da felicidade (Capítulo 7), adquirir muito dinheiro não é o caminho das pe­dras para a satisfação na vida.

Potencialização primária: saúde física

O exercício é um caminho comum para se obter uma sensação de condicio­namento físico, boa forma e força. Um as­pecto importante do exercício e da boa for­ma é dar às pessoas maior segurança de suas capacidades de realizar as atividades que formam suas rotinas cotidianas. Mais do que as melhorias fisiológicas que resul­tam dos exercícios, a segurança que eles geram também aumenta a felicidade e o bem-estar (Biddle, Fox e Boutcher, 2000). Embora os exercícios elevem os humores [329] positivos no curto prazo, é no longo prazo que eles produzem maior felicidade (Argyle, 2001; Sarafino, 2002). Nesse sentido, pode-se acrescentar o exercício à seção anterior sobre potencialização primária e saúde psicológica.

Parte da motivação para o exercício pode ser ter boa aparência e obter uma imagem física melhor (Leary, Tchividijian e Kraxberger, 1994). Outra razão por trás disso pode ser o desejo de ter boa saúde física. Sobre isso, algumas pessoas encon­tram prazer em ingerir vitaminas e alimentação nutritiva.

Atividades físicas regulares produzem benefícios psicológicos e físicos. Por exem­plo, a atividade física está relacionada aos seguintes benefícios (de Mutrie e Faulkner, 2004, p. 148):

  1. menores chances de morrer prematu­ramente;
  2. menos probabilidade de morrerprema­turamente de doenças cardíacas;
  3. menos riscos de diabete;
  4. menos probabilidade de desenvolver pressão sanguínea elevada;
  5. menos chances de desenvolver câncer de colo;
  6. perda e controle do peso e 
  7. ossos, músculos e articulações saudáveis.

Uma advertência sobre a potencialização primária

As pessoas devem tomar cuidado, em potencializações primárias, para não exa­gerar nessas atividades. Quando são se­duzidas pelos prazeres que derivam da po­tencialização de suas qualidades, as pes­soas podem perder a noção de equilíbrio nas atividades de sua vida. Assim como ocorre com qualquer atividade, pode ser necessária moderação.

Potencialização secundária: "Fazer da vida o melhor possível"

Em comparação com a potencializa­ção primária - na qual a pessoa busca um desempenho ótimo e uma satisfação por meio da busca de objetivos na potencialização secundária o objetivo é aumen­tar níveis já positivos para chegar ao máximo em termos de desempenho e satisfação (vide o lado direto da Figura 15.3). Em um sentido temporal, as atividades de potencialização secundária acontecem após terem sido atin­gidos níveis básicos de desempenho e satis­fação com a potencialização primária.

Potencialização secundária: saúde psicológica

A potencialização secundária da saú­de psicológica permite que as pessoas ma­ximizem seus prazeres partindo de sua saú­de mental positiva pré-existente. Momen­tos psicológicos de pico muitas vezes en­volvem importantes conexões humanas, como o nascimento de um filho, um casa­mento, a formatura de uma pessoa queri­da ou, talvez, o amor apaixonado e com­panheiro em relação ao parceiro.

Existem experiências psicológicas co­letivas cujo propósito é ajudar as pessoas a atingir prazeres extremos por meio do re­lacionamento profundo com outras. Já na década de 1950, por exemplo, os grupos de treinamento, ou grupos T, como eram chamados (Benne, 1964), enfatizavam a forma como as pessoas poderiam se juntar para vivenciar integralmente suas emoções positivas (Forsyth e Corazinni, 2000). (Por vezes, esses grupos eram chamados de “treinamento para a sensibilidade” [F. Johnson, 1988].)

A contemplação existencialista do sentido da vida é mais uma abordagem [330] para se chegar a uma experiência trans­cendentemente gratificante. Viktor Frankl (1966, 1992), ao analisar a questão de “qual é a natureza do sentido”, concluiu que o máximo em termos de vivenciar o sentido da vida vem de pensar sobre nos­sos objetivos e nossos propósitos. Mais do que isso, especulamos que a satisfação maior vem de contemplar nossos propósi­tos em tempos nos quais estamos sofren­do. Os pesquisadores da psicologia positi­va relataram que esse sentido na vida está relacionado à esperança muito elevada (Feldman e Snyder, 2005). Para o leitor interessado em instrumentos de autoapoio relacionados ao sentido na vida, reco­mendamos o Teste do propósito da vida (Purpose in life test, Crumbaugh e Maholick, 1964; Crumbaugh e Maholick, 1981), o índice de Interesse na Vida (Life Regard Index, Battista e Almond, 1973) e a Escala de sensação de coerência (Sense of cohe­rence scale, Antonovsky e Sagy, 1986).

Às vezes, ocorrem potencializações psicológicas secundárias em contextos em que as pessoas conseguem competir umas com as outras. Essas “competições normais” (vide Snyder e Fromkin, 1980) estão rela­cionadas ao envolvimento em disputas competitivas. Há regras para essas dispu­tas, e com o tempo uma ou mais pessoas surgem como vencedores. O elevado nível de prazer que esses vencedores sentem é descrito muitas vezes como “pura alegria”.

Ocasionalmente, os níveis máximos de prazer são resultado de maior envolvi­mento do que qualquer pessoa pode atin­gir sozinha (Snyder e Feldman, 2000). Tra­balhando juntas, as pessoas conseguem lutar por conquistas que seriam impensá­veis para qualquer indivíduo (vide Lemer, 1996). Depois, como parte dessa unidade coletiva, elas podem experimentar uma sensação de sentido e emoções que fazem parte dessa escala mais grandiosa. A histó­ria está cheia desses casos de triunfo cole­tivo diante da adversidade. Da mesma for­ma, a literatura costuma detalhar o inten­so êxtase vivenciado por pessoas que tra­balharam juntas para superar obstáculos difíceis e desafiadores para atingir seus objetivos coletivos. Alguns psicólogos já deram início a experiências com enfrentamento de ambientes selvagens, nas quais um pequeno grupo de pessoas aprende o júbilo supremo de cooperar como grupo para conseguir realizar diversas tarefas em ambientes difíceis e naturais (mergulho, canoagem, rafting, escaladas, etc.).

Ajudar os outros também faz com que as pessoas se sintam muito bem consigo mesmas. Outra experiência transcendente é ver outra pessoa fazendo algo que seja tão es­pecial que inspire admiração ou eleve. Nes­sas circunstâncias, é como se tivéssemos tido a dádiva de testemunhar o que de melhor há nas pessoas, e assistir a isso pro­duz um estado de profunda admiração (vide Haidt, 2000, 2002). Considere um exemplo real dessa admiração que (C.R.S.) tive o privilégio de testemunhar. O que aconteceu foi o seguinte: eu tinha tido um dia muito ruim. Não apenas as coisas ti­nham ido mal no trabalho (tinham-me dito que minha solicitação de bolsa havia sido negada), como também eu estava me sen­tindo mal fisicamente. Fui almoçar com meus colegas na associação dos estudan­tes apenas para descobrir que eles, tam­bém, não estavam em um bom momento. De repente, um jovem que vestia um abri­go da Universidade do Kansas correu até uma mesa do outro lado do corredor e ad­ministrou a manobra de Heimlich em um homem mais velho que estava se engas­gando. A cantina imediatamente ficou em [331] silêncio enquanto as pessoas assistiam a esse ato heroico que pode ter salvado a vida do homem. Quando a comida foi retirada da garganta dele, rompeu-se o silêncio à medida que as pessoas aplaudiam o ato do jovem. Com uma aparência um pouco constrangida, ele sorriu e foi saindo. Senti uma tremenda elevação que durou o resto do dia (e os vários dias que se seguiram). Foi um dos eventos mais comoventes em [332] que jamais estive envolvido, e meu único papel foi o de testemunhar essa ação im­pressionante e altruísta. Sem sombra de dúvida, observar um ato como esse, ver­dadeiramente excepcional, pode gerar um tipo de potencialização secundária.

Finalmente, por meio das artes, como a música, a dança, o teatro e a pintura, são proporcionados grandes prazeres às mas­sas. Assistir a apresentações artísticas im­portantes pode elevar públicos aos mais altos níveis de satisfação e prazer (Snyder e Feldman, 2000). Podemos estimular adul­tos de mais idade a resgatar algumas das alegrias e prazeres que vêm com a explo­ração e com as conquistas de novas habilidades quando somos mais jovens. 

Potencialização secundária: saúde física

A potencialização secundária da saú­de física diz respeito aos níveis de pico da saúde física, níveis esses que estão além daqueles das pessoas em boa condição. As pessoas que buscam potencialização secun­dária lutam por níveis de condicionamen­to físico que ultrapassam em muito os que geralmente são atingidos por pessoas que simplesmente realizam exercícios. Não per­ca de vista, contudo, que essas pessoas não precisam ser atletas de nível olímpico que competem contra outros atletas de elite com o objetivo de chegar ao máximo de­ sempenho em um esporte. Em lugar disso, os atletas que buscam os níveis mais ele­vados de competição podem ver a forma física como meio de aumentar as probabi­lidades de vencer. Por outro lado, as pes­soas que tipificam a potencialização secun­dária da saúde física são motivadas para atingir os níveis mais altos de proeza física por si só. Esse último nível superior de for­ma física reflete aquilo que Dienstbier (1989) definiu como robustez (toughness').

Advertências com relação à potencialização secundária

Por mais estranho que possa soar, as pessoas podem se tornar quase viciadas nas experiências de pico que refletem a poten­cialização secundária. Há uma força de equilíbrio natural, contudo, no fato de que as atividades mundanas da vida necessi­tam que as pessoas prestem atenção a elas, o que as deixa com pouco tempo para ir em busca de potencialização primária e secundária.

Também temos uma preocupação sé­ria com o desenvolvimento potencial de ins­trutores pessoais para ajudar as pessoas a atingir experiências de pico em termos de potencialização secundária. Nossa preo­cupação é que apenas os ricos tenham con­dições de pagar esses instrutores, o que se­ria antiético em relação ao espírito de igual­dade que acreditamos que deva guiar o cam­po da psicologia positiva. A proliferação de instrutores pessoais de psicologia positiva deve acontecer de tal forma que as pessoas de todos os grupos étnicos e socioeconômicos possam ter acesso a eles. Como já dis­ semos em outros momentos, a psicologia positiva deve ser para muitos, e não para uns poucos (Snyder e Feldman, 2000).

O equilíbrio entre sistemas de prevenção e potencialiação

Neste capítulo, descrevemos separa­damente as intercessões de prevenção e potencialização. As prevenções primárias e secundárias implicam esforços para ga­rantir que os resultados negativos não aconteçam, ao passo que as potencializações primárias e secundárias refletem iniciativas para garantir que os resultados positivos aconteçam. Libertas de seus pro­blemas por meio de prevenções primárias e secundárias, as pessoas podem dar aten­ção a potencializações primárias e secun­dárias com vistas a atingir experiências e [333] satisfação na vida em níveis ótimos ou até mesmo de pico (Snyder, Thompson e Heinze, 2003). Juntas, prevenções e potencializações formam uma díade podero­sa para o enfrentamento e a excelência.

Note-se que a prevenção e a potencialização têm um paralelo com as duas maio­res motivações da psicologia. A prevenção reflete processos voltados a evitar resulta­dos prejudiciais, enquanto a potencialização reflete os processos que tratam de atin­gir resultados benéficos. A justaposição dos sistemas de evitação e aproximação tem uma longa tradição na psicologia, incluin­do as primeiras idéias sobre defesas, na teoria psicanalítica de Freud (1915/1957), a pesquisa comportamental (Miller, 1944), a pesquisa fenomenológica (Lewin, 1951) sobre o tema do conflito humano e, mais recentemente, a psicologia da saúde (Carver e Scheier, 1993, 1994).

Embora o sistema de evitação tenha sido retratado como contraproducente (para uma revisão, vide Snyder e Pulvers, 2001), essas primeiras visões ignoraram a possibilidade de que, por meio do pensa­mento de evitação, as pessoas estejam pen­sando e se comportando de maneira pró-ativa para evitar um resultado ruim mais tarde. Essa última definição está no centro das abordagens de prevenção primária e secundária, as quais têm benefícios eviden­tes. Em lugar de sugerir que a evitação é sempre “ruim”, fechamos este capítulo su­gerindo que os processos de evitação e aproximação (ou, como são chamados às vezes, processos aversivos e apetentes) fun­cionam, ambos, para ajudar a pessoa a enfrentar. Dessa forma, as intercessões de potencialização proporcionam desafios que as pessoas devem equilibrar em suas vidas cotidianas. [334]

Psicologia - Psicologia positiva
1/5/2021 11:45:24 AM | Por David Sullivan
Metanálise

O objetivo deste capítulo é introduzir o método de revisão da literatura quantitativa ou metanálise. Isso envolve um conjunto de técnicas de testagem de hipóteses estatís­ticas que supõem uma abordagem de “confirmação" de modelo. O capítulo elucidará brevemente alguns dos principais desafios envolvidos nas efetivas revisões de literatura e depois introduzirá os conceitos básicos da metanálise. Ele pretende mostrar como fazer uso efetivo dessa estratégia ao fornecer um exemplo elaborado do caso mais simples. Embora maiores detalhes possam ser requeridos para grande parte das apli­cações, pretende-se que este capítulo encoraje estudantes e pesquisadores a explorar mais a rica matriz de métodos metanalíticos e a considerar seriamente o uso dessa abordagem como uma parte essencial do processo de revisão da literatura em sua área de pesquisa. [455]

22.1 Introdução

Em psicologia é raro que um único projeto de pesquisa responda uma questão de uma vez por todas. Existem diversas razões por que isso deva ser assim, particularmente nas ciências comportamentais. As principais razões referem-se à natureza do objeto de estudo e aos métodos de pesquisa utilizados. Há sempre uma tensão entre, de um lado, os ambientes fechados baseados no laboratório em que tudo é controlado de tal modo que a validade ecológica se torna questionável e, de outro, os vagos ambientes baseados no campo, onde o controle das variáveis é difícil. De uma perspectiva geral, isso não é necessariamente problemático, pois a complexidade das questões psicológicas precisa ser estudada a partir de múltiplos pontos de vista. De fato, apegar-se rigidamente a pontos de vantagem metodológi­cos pode resultar em pontos cegos, com a resultante ausência de progresso.

Outro fator é a lógica probabilística que utilizamos para determinar se a con­tribuição de uma pesquisa apresenta um efeito. Podemos descrevê-la do seguin­te modo: não podemos nunca estar realmente seguros quanto à existência de um efeito, mas, com a aplicação da análise estatística apropriada, podemos determinar a probabilidade de o resultado ser a conseqüência do acaso. Embora tentemos nos guardar contra ele tanto quanto possamos, há sempre o acaso de um resultado positivo falso ou negativo falso. É por essa razão que a confiança excessiva em re­sultados isolados pode afinal provar-se enganosa.

Finalmente, temos de aceitar que grande parte de nossos resultados está ba­seada na amostra e no ambiente particular do estudo. Embora haja a expectativa de que esses resultados sejam generalizáveis, isso não pode ser garantido. Assim, por exemplo, resultados de estudos sobre estudantes universitários altamente in­teligentes que focalizam o funcionamento cognitivo podem ter pouca relevância para amostras mais gerais.

Por todas essas razões, e outras mais, precisamos utilizar os resultados múlti­plos da pesquisa na exploração de uma área determinada. Isso fica muito evidente em qualquer apresentação dos resultados de uma pesquisa. A introdução, ou revi­são da literatura, satisfaz o propósito de identificar a pesquisa relevante na área, situando-a em uma ordem avaliativa e fornecendo um esquema de apreciação so­bre o qual o valor da contribuição da pesquisa atual pode ser baseado. Isso significa que nossas revisões da literatura requerem de nós a identificação e a acumulação de evidência em favor ou contra uma posição particular. A metanálise é um termo usado para descrever a situação em que nossa apreciação qualitativa da literatura é sustentada por uma quantificação da evidência.

Como em todas as ciências, o desenvolvimento da psicologia é um processo contínuo de acumulação e de refinamento do conhecimento. Mesmo uma olhadela superficial sobre a literatura pode demonstrar que a demanda pela acumulação de conhecimento está sendo satisfeita. O número de periódicos que estão sendo pu­blicados cresce de ano para ano e, no entanto, parece haver mais artigos do espaço disponível nos periódicos. O refinamento do conhecimento pode ser desafiante em psicologia em virtude do modo não linear mediante o qual ele é produzido. Como em qualquer outra atividade, ele é uma função da complexidade do estudo da men­te e do comportamento humanos. Acrescente-se a isso metodologias diferentes, amostras e falta de acordo quanto às definições e à complexidade da tarefa se [456] torna evidente. A tarefa de refinamento do conhecimento não é tanto julgar sobre o valor ou a significação de uma obra particular quanto identificar as tendências e os prin­cípios subjacentes dentro de um corpo de obra. A revisão de literatura procura alcançar esse objetivo. Contudo, o esquema de uma revisão de literatura enquanto um método de metanálise não é sem dificuldades. A realização de uma revisão de literatura abrangente é dificultada pelo imenso volume de pesquisa que é pu­blicada. Obter domínio sobre isso é um desafio contínuo para os pesquisadores profissionais e se torna uma tarefa cada vez mais difícil para clínicos que lutam por uma prática baseada na evidência. Com essa imensa base de conhecimento, a revisão de literatura narrativa torna-se de difícil manejo e desproporcional em relação à tarefa. Além disso, nessas circunstâncias, a habilidade da mente humana para executar confiável e validamente essa tarefa é questionável (Glass, McGraw e Smith, 1981).

Para executar o trabalho de revisão na forma de um artigo ou de uma argu­mentação e gerir o material que precisa ser assimilado, analisado e interpretado, o pesquisador tem de ser seletivo quanto ao material a ser utilizado para extrair conclusões. Desse modo, a tarefa de cobrir todo esse material se transforma, de inclusiva, em seletiva, avaliando as fontes mais importantes. Inevitavelmente, o pesquisador deve tomar uma série de decisões subjetivas que podem introduzir viés. Somos predispostos a organizar o caos em padrões: geralmente percebemos formas e objetos quando, de fato, nenhuma dessas coisas existe. Essa tendência a procurar por padrões ou por resultados positivos aumenta em face dos níveis crescentes de conhecimento. A evidência negativa ou não confirmatória pode fa­cilmente ser negligenciada. Dados os vieses inerentes a nosso sistema cognitivo, sabemos que esse pode não ser o melhor método em que se possa basear um es­crutínio científico. Além disso, o método de seleção de estudos não é claro e tem levado à objeção segundo a qual os revisores podem escolher estudos por razões outras que uma avaliação completa do valor científico (Wolf, 1986, p. 10).

Como podemos estar seguros de que os autores não omitiram estudos porque eles não concordavam com seus propósitos (Knipschild, 1994)? De fato, uma das falhas das revisões narrativas tradicionais é que elas silenciam sobre como a me­todologia dos estudos foi avaliada (Knipschild, 1994). Essa falta de abrangência na cobertura dos estudos e a possibilidade de introdução de viés tornam as revisões narrativas de literatura uma maneira insegura de refinar o conhecimento, parti­cularmente nos contextos em que a sociedade precisa de respostas a questões de uma natureza psicológica que têm sido obtidas de um modo confiável.

22.2 Quantificando o processo de revisão

Embora a revisão de literatura possa ser considerada como uma forma de me­tanálise, no sentido mais vago do termo, é provavelmente mais apropriado passar­mos a uma definição mais estrita nesse momento. De agora em diante considera­remos que o termo designa o conjunto de métodos e de procedimentos estatísticos por meio do qual são combinados dados de diferentes estudos (Moncrieff, 1998) e a subsequente interpretação desses resultados. Nessa etapa é também impor­tante delinear o tipo de estudos que são acessíveis para a metanálise, na medida em que a redução da definição tem implicações aqui. Estamos examinando dados [457] empíricos» e nâo contribuições teóricas, os dados precisam ser quantitativos e não qualitativos, os resultados precisam ser configurados (ou aptos a ser configurados) de uma forma estatística que é comparável, e os construtos que estão sendo exa­minados devem ser os mesmos ou similares. O modo como esse último ponto é operacionalizado é importante. Pode variar desde a comparação de estudos em que há uma pura replicaçâo até aqueles em que há replicaçâo conceitual. A difi­culdade com a replicaçâo conceitual é que o pesquisador pode estar comparando estudos que na realidade são diferentes uns dos outros - o problema das maçãs e laranjas, não comparando igual com igual. As conclusões que o pesquisador extrai podem não ser relevantes. O modo de superar esse embaraço consiste em somen­te comparar estudos em que há replicaçâo pura. No entanto, o pesquisador pode acabar com muito poucos estudos para comparar e, consequentemente, tornar ne­cessária a generalizabilidade de suas conclusões. Alcançar esse equilíbrio é uma tarefa delicada.

Embora a metanálise resolva alguns dos problemas postos pelas revisões de nar­rativa. ela também traz alguns benefícios importantes para o processo de síntese de pesquisa, Knipschild (1994) apresenta duas dessas vantagens que podem também atuar como preparação para a realização de um teste. Uma vantagem é que uma revisão sistemática permitirá que a área possa ser estudada de forma abrangente, e, desse modo, um pesquisador saberá em que medida um novo teste acrescentará ao conhecimento. Esse é um modo efetivo de aumentar o valor das iniciativas de pesquisa propostas. Por sua própria natureza, a metanálise requererá que o pesqui­sador faça contato com os principais autores da área. É importante localizar, como veremos mais adiante, testes que falharam em produzir um resultado significativo. Esses testes tendem a não ser publicados, mas armazenados em arquivos, levando ao bem conhecido problema da gaveta (Rosenthal, 1979). Testes negativos podem fornecer boa informação sobre o que não funcionou, e, desse modo, o pesquisador, em vez de repetir todos os erros clássicos, aprende com a experiência dos outros pesquisadores da área.

Historicamente, o primeiro passo dado no sentido de combinar os resultados de estudos foi usar cada estudo como um voto em um referendo sobre a questão de pesquisa a ser respondida. Todos os estudos que abordaram essa questão foram identificados, e seus votos, se eles descobriram um efeito ou não, foram considera­dos como válidos. O resultado baseou-se nesse número total de votos. Essa é uma ideia intuitivamente atrativa, mas falha. Ela vai contra a natureza probabilística da testagem de hipóteses. Um resultado negativo não significa que não havia nenhum efeito. Significa que um efeito, se algum houve, pode não ser detectado dentro de limites aceitáveis. Consequentemente, um resultado negativo pode não ser um voto contra a questão, na medida em que não temos nenhum modo de distinguir entre resultados negativos verdadeiros e resultados negativos falsos. É claro que o oposto também pode ocorrer, pois temos alguns resultados positivos falsos entre nossos votos validados. Esse é o eterno problema dos erros de Tipo I e de Tipo II. Um pragmatista poderia argumentar que esses equilibrariam a si próprios e que, se uma questão paira sobre um ou dois votos ela não deveria ser trazida à baila. No entan­to, há uma questão prática aqui, referente ao ajuste aplicado. Estudos de tratamen­to podem frequentemente falhar em alcançar níveis significativos, não porque não exista nenhum efeito de tratamento, mas porque, devido a números [458] necessariamente pequenos, não é possível detectar o efeito estatisticamente, embora o efeito tenha um impacto clínico (Moncrieff, 1998). Um exemplo será suficiente para ilustrar os problemas que isso pode causar.

Suponhamos que eu esteja tentando avaliar a efetividade de um novo tipo de intervenção na habilidade de leitura de leitores disléxicos. Tem havido evidência anedótica de que essa abordagem é mais efetiva do que os métodos tradicionais de ensino da leitura, e uns poucos testes foram realizados. Eu gostaria de ver o que a pesquisa tem a dizer antes de me comprometer com um custoso programa de re-treinamento para professores da área. Antes de qualquer coisa, estabeleço critérios de inclusão:

  1. Os estudos incluídos devem ter envolvido uma intervenção que utiliza essa técnica de ensino particular.
  2. Os estudos devem ter tido um grupo de comparação que tenha recebido o ensino terapêutico convencional.
  3. O grupo de tratamento deve ter sido composto de indivíduos que tenham sido diagnosticados como portadores de uma dificuldade de leitura que é explicada e que está de acordo com a definição de dislexia.
  4. Os participantes devem ter sido aleatoriamente designados ou ao grupo de controle ou ao grupo de tratamento.

Em seguida, desenvolvo uma estratégia para encontrar estudos relevantes. Co­meço com uma busca de bancos de dados, de bibliografias, de atas de conferências, etc., relevantes. A partir dos elementos identificados, contato com os autores e sigo citações de modo a identificar mais estudos. Minha busca produz quatro estudos. Eu os coloco em uma tabela de contingência (ver Tabela 22.1) e, tendo contado os “votos”, resolvo a questão de saber se essa nova forma de ensino é mais efetiva do que os métodos convencionais.

Diante disso, resolve-se o problema: apenas um dos quatro estudos constata que esse tipo de intervenção foi efetivo. Assim, fica claro que o uso desse tipo de interven­ção não está justificado. Entretanto, os dados são problemáticos. Antes de qualquer coisa, sabemos que a falta de um resultado significativo pode ser a conseqüência de um teste não ter poder estatístico suficiente, e isso ocorre muito frequentemente, devido ao fato de um teste ter números baixos. Esse padrão certamente parece ficar evidente com os estudos A-C, e esses são estudos antigos. Também sabemos, a partir da leitura desses estudos, que, embora os efeitos não tenham sido estatisticamente significativos, os autores argumentaram que houve resultados presentes que [459] mostraram significação clínica. Essa, o leitor suspeitará, é a razão por que um teste (estudo D) com uma amostra maior e poder suficiente para detectar o suposto efeito foi encomendado. Embora seja, à primeira vista, uma tarefa simples, a interpretação dos dados da Tabela 22.1 está longe de ser não problemática.

Tabela 22.1

Seguir nossa intuição e interpretar os resultados com base no teste D, o qual sentimos fornecer a melhor representação do que está acontecendo, é cair na armadilha da revisão narrativa: escolher testes representativos por razões não objetivas. Em face disso, o único modo de seguir adiante é que devemos examinar pelo menos mais três testes que têm resultados positivos e eliminar aquele que suspeitamos ser um resultado errado.

Independentemente de qualquer coisa, isso resultaria em um grande dispêndio de esforço e, igualmente importante, teria o cheiro da má-fé científica dos que elegem testes para obter o resultado que dese­jam. Deve haver um modo de usar os dados de que dispomos para responder nossa questão original.

Esse foi o passo seguinte no desenvolvimento da técnica metanalítica. Em vez de examinar o nível de significação apenas, examinamos o efeito do tratamento dos testes e combinamos esses efeitos através de todos os testes. Combinando dados de diferentes estudos, o poder pode ser aumentado. Além disso, combinando estudos em uma variedade de ajustes, o total de efetividade do tratamento pode ser mensu­rado (Monerieff, 1998).

Houve um problema similar a esse, o debate sobre a efetividade da psícoterapia como um tratamento, que introduziu as técnicas da metanálise na psicologia. Em uma obra seminal, Eysenck (1952) concluiu que, depois de 20 anos de avaliação e de centenas de testes, o esforço de pesquisa fracassou em demonstrar que a psíco­terapia tenha qualquer efeito. Efetivamente, Eysenck tinha uma espécie de malote com um total dos votos. Sua controversa conclusão foi calorosamente e, às vezes, sordidamente debatida, então, como é ainda hoje. Demorou 25 anos para que uma contrarresposta pudesse aparecer. Smith e Glass (1977) abandonaram a testagem de significação pura e, em vez disso, examinaram a direção e a magnitude dos efeitos de tratamento através dos estudos. Usando essa abordagem, concluíram que a psicoterapia, de fato, funciona. Ao método de análise utilizado, eles chamaram meta­nálise. A introdução da metanálise na psicologia ilustra a fertilização recíproca que ocorre entre as áreas da investigação científica. Ela baseou-se nas idéias de Tippett [460] (1931) que ao interpretar os resultados de testes de campo agrícolas, concluiu que considerar em conjunto as probabilidades de uma série de estudos poderia deter­minar se um resultado era conseqüência de uma nova técnica agrícola ou do acaso. Foi Cochran (1937) que inventou um método para combinar tamanhos de efeitos de estudos independentes, o qual estabeleceu o fundamento estatístico para a aborda­gem metanalítica que foi usada por Smith e Glass.

Uma conclus&o interessante do trabalho de Smith e Glass (1977) é que eles não encontraram nenhuma grande diferença no impacto médio de vários tipos de tera­pia. As próprias terapias se diferenciam umas das outras principalmente conforme as teorias da natureza e do desenvolvimento humanos, as técnicas e as estratégias de intervenção. E, no entanto, na medida em que se constatou que funcionam de modo similar, elas devem funcionar, presumivelmente, por razões outras que o mé­todo e/ou a orientação teórica.

22.3 Passos na condução da metanálise

Voltemos agora ao que pretendemos que seja uma explicação mais prática do processo da metanálise. O leitor deve ter presente que se trata apenas de um pro­vador; para aguçar ainda mais seu apetite, diremos apenas que vários detalhes e aplicações mais amplas são discutidos na literatura sobre a metanálise.

22.3.1 Formulando o problema

A partir da teoria e da pesquisa em uma área específica, é possível localizar questões que ainda aguardam respostas? Embora o material bruto para a metaná­lise seja anterior ao conhecimento, a síntese dos estudos existentes deveria levar a um conhecimento novo. Em uma larga medida, a técnica tem sido associada com o exame das diferenças de grupo, particularmente na área dos efeitos de tratamento. Essa era a abordagem clássica capturada por Glass, McGraw e Smith (1981). Con­tudo, tanto quanto as diferenças constatadas entre grupos criados experimental­mente, também as diferenças entre grupos que ocorrem naturalmente podem ser examinadas. Além das diferenças entre os grupos, também podem ser exploradas as associações entre variáveis; essa abordagem pode ser usada na pesquisa da di­ferença individual ou na generalização da validade. Dentro dessa mistura de abor­dagens, a metanálise pode ser usada no tratamento de três questões amplas. Em primeiro lugar, que pesquisa tem sido produzida na área (se alguma)? Em segundo lugar, qual o melhor modo de resumir a pesquisa disponível? Se os pesquisadores estão interessados na replicação conceituai, mais do que na replicação pura, obser­varão que geralmente há uma grande quantidade de variabilidade entre os estudos em termos de, por exemplo, características de amostra, mensurações de resultados, etc. Nessa situação, os pesquisadores talvez estejam em posição de responder uma terceira e ampla questão e identificar a variabilidade entre os estudos e explicar por que essa tem levado a resultados diferentes. Não há nenhuma razão pela qual - cer­tamente as duas primeiras e, frequentemente, todas as três questões - não possam ser respondidas em uma metanálise. De fato, a metanálise está bem posicionada para responder a essas questões. [461]

22.3.2 A identificação dos estudos

Essa é a etapa mais importante do método metanalítico. A metanálise sintetiza os resultados de um grande número de estudos, e é porque ela resume todos os da­dos disponíveis, em vez de seções selecionadas deles, que suas conclusões se forta­lecem. Essa também é a etapa mais difícil. Embora o advento dos bancos de dados com dispositivos de busca torne mais fácil a localização de estudos apropriados, o fato é que, como veremos mais adiante, essas fontes também trazem consigo seus próprios problemas. Além disso, por sua própria natureza, os bancos de dados são
especializados e não há qualquer garantia de que todos os estudos relevantes te­nham sido indexados. Um exemplo ilustrativo será útil aqui.

Torgerson, Porthouse e Brooks (2003) estavam interessados em localizar e sintetizar os resultados de in­tervenções dentro da área da capacidade de ler e escrever e da capacidade aritmé­tica adultas. Seus termos de pesquisa incluíam capacidade de ler e escrever adulta; capacidade aritmética adulta; educação básica adulta; educação profissional; edu­cação no local de trabalho. Eles pesquisaram eletronicamente os seguintes bancos de dados: Psyclnfo, Educational Resources Information Centre (ERIC) [Centro de Informação de Recursos Educacionais], Social Science Citation Index (SSCI) [Index de Citação da Ciência Social], o Campbell Colaborations Social, Psychological, Edu­cational and Criminological Trials Register (C2-SPECTR) [Registro de Testes Sociais, Psicológicos, Educacionais e Criminológicos da Colaboração Campbell], System for Information on Grey Literature in Europe (SINGLE) [Sistema de Informação sobre Literatura Adulta na Europa] e Criminal Justice Abstracts (CJA) [Resumos da Justiça Criminal]. Utilizando bibliografias de revisões incluídas, eles conduziram uma pes­quisa manual em busca de testes potenciais que não tinham sido identificados nas pesquisas eletrônicas.

Eles identificaram 4.555 artigos que tinham um interesse possível. Seu passo se­guinte foi identificar entre esses os artigos relevantes. Por sua própria natureza, esse é um processo de seleção em que o julgamento do pesquisador (ou dos pesquisa­dores) é acionado. É importante que essa etapa seja conduzida tão objetivamente quanto possível. O fracasso aqui atrai a crítica quanto ao caráter subjetivo desse pro­cesso de seleção que tem sido dirigida contra as revisões narrativas. De fato, é impor­tante, ao avaliar a metanálise, estar consciente de como a subjetividade, introduzin­do um viés de seleção, tem influência sobre as conclusões extraídas. Esse problema pode ser evitado com o uso de critérios explícitos de inclusão e de exclusão e, depois, aplicando-os de um modo que seja confiável e repetíveL

Torgerson e colaboradores (2003) examinaram, então, essa massa de 4.555 ar­tigos segundo seus critérios de inclusão de “avaliações e de intervenções que pre­tenderam aumentar a capacidade de ler e escrever ou a capacidade aritmética no estudo de populações de adultos”. Os estudos teriam de ser testes controlados alea­tórios, testes controlados ou uma revisão desses. Além disso, eles deveriam ter sido executados em um país de língua inglesa e escritos em inglês. O critério final era que eles teriam de ser ou publicados ou não publicados entre os anos de 1980 e 2002. Havia também uma série de critérios de exclusão. Os estudos não poderiam ser es­tudos em que a primeira língua dos participantes não fosse o inglês ou se algum ou todos os participantes tivessem menos que 18 anos. Além disso, eles não poderiam ser estudos que fossem intervenções de um projeto precedente ou posterior e nem [462] estudos feitos sem o uso de intervenções. Na triagem inicial títulos e resumos foram usados. Para os quatro principais bancos de dados (Psydnfo, ERIC, CIA e SINGLE), dois dos pesquisadores, trabalhando independentemente, aplicaram os critérios de inclusão e de exclusão. A triagem dos artigos pertencentes aos dois bancos de da­dos menores (SSCI e C2-SPECTR) foi feita por apenas um pesquisador. Isso resultou em um conjunto de 168 artigos. Essa segunda dupla triagem foi baseada nos artigos completos. Todos os desacordos quanto a exclusão ou inclusão foram discutidos e resolvidos, de modo que um acordo total foi obtido.

22.3.3 Codificação e coleta dos dados

Torgerson e colaboradores (2003) codificaram seus estudos ou como RCT (en­saio controlado aleatorizado), ou como CT (ensaio controlado) ou como revisão. O propósito dessa codificação era fornecer uma descrição dos resultados em geral e também, se havia variabilidade dentro do conjunto dos estudos selecionados, uma descrição do modo como os estudos diferiam uns dos outros levando em conside­ração seus aspectos críticos. A fim de resumir ou de comparar estudos uns com os outros, os dados precisam ser extraídos dos estudos de um modo padronizado e cujo foco esteja bem definido.

Os dados precisam capturar o estudo de um modo relevante e precisam ser ex­traídos dos estudos consistentemente. De relevância seria o nome do estudo ou, no caso de uso do anonimato, o número, a fonte dos dados e o tipo de projeto do estudo. Além disso, deve haver uma descrição dos grupos de estudo: quantos grupos foram usados, quantos participantes em cada grupo, a distribuição de idade e sexo dos grupos e como os grupos foram originados. Se houve uma intervenção, em que ela consistiu e quanto tempo durou. Do mesmo modo, quais eram as variáveis depen­dentes e como foram mensuradas. Os resultados também precisam ser resumidos, o que incluiria a estatística descritiva das medidas dependentes dos grupos, bem
como a estatística de teste, os graus de liberdade e os valores-P. O protocolo pode precisar ser orientado sobre uns poucos estudos antes que o formato final seja fixa­do (Berman e Parker, 2002).

22.3.4 Análise dos dados

É o uso do tamanho de efeito que torna a metanálise possível. Ao sintetizar os dados da pesquisa não estamos mais interessados em saber se houve um resulta­ do significativo ou não; em vez disso, estamos interessados no efeito de, digamos, uma intervenção, em sua força e em sua direção. Usando o tamanho de efeito so­mos capazes de codificar os resultados da pesquisa em uma escala que é indepen­dente do número de participantes que tomam parte no estudo. Existem muitas e diferentes medidas de tamanho de efeito, algumas das quais são particularmente adequadas para tipos específicos de situações de pesquisa. De fato, algumas me­didas de tamanho de efeito podem ser computadas de diferentes modos. Isso é mencionado, não para aumentar a confusão, mas, antes, para diminuí-la, pois en­contramos estatísticas e métodos de computação de tamanho de efeito na litera­tura. Entretanto, pode-se dizer que existem dois principais tipos de estatística que são encontrados - medidas de tamanho de efeito para diferenças entre grupos e medidas para associações entre variáveis. [463]

Alguns estudos fornecerão estimativas do tamanho de efeito. Para aqueles que as omitem, elas têm de ser calculadas. Wolf (1986. p. 25) fornece uma fórmula bá­sica para diferenças de grupo, conhecida como uma diferença padronizada e de­ signada como d:

Equação 1

Essa diferença padronizada é o tamanho de efeito e é igual à diferença entre a média do grupo de tratamento e a média do grupo de controle, dividida por uma medida do desvio padrão. Geralmente, é o desvio padrão ou do grupo-controle ou do grupo pré-teste que é usado. Isso ocorre porque esses grupos não são afetados pelo tratamento ou pela intervenção (Glass et al., 1981), embora cada desvio padrão pos­sa ser usado, desde que a homogeneidade das variâncias seja suposta (Wolf, 1986, p. 25). Para os estudos correlacionais, a computação básica é fazer a média da correla­ção das duas variáveis nos dois estudos. Geralmente, o coeficiente da correlação de Pearson é usado (Wolf, 1986, p. 28-29).

Vamos retomar ao exemplo fictício que mencionamos anteriormente, quando usamos a imagem dos votos no método da votação. Embora os tamanhos de efeito não estejam informados nesses estudos, é relativamente fácil calculá-los a partir da estatística descritiva apresentada nos artigos. Isso feito, elaborar o tamanho de efei­to médio é fácil; a soma dos tamanhos de efeito divididos pelo número de estudos (Wolf, 1986, p. 26). Para os dados da Tabela 22.2, o tamanho de efeito médio é:

Equação 2

Como sabemos, uma das vantagens de usar uma medida de tamanho de efeito na estatística inferencial é que a medida não é afetada pelo tamanho da amostra e, desse modo, os resultados obtidos com diferentes tamanhos de amostra podem ser comparados uns com os outros. Não estamos interessados na amostra perse, mas no que ela nos diz sobre a população da qual ela foi extraída. Contudo, cada tamanho de efeito representa o verdadeiro tamanho do efeito de população mais o erro, e, como ocorre com todas as estatísticas, quanto maior a amostra, maior a probabilidade de que o tamanho de efeito seja uma estimativa verdadeira do tamanho de efeito da população (Clark-Carter, 2003).

Tabela 22.2

Com isso em mente, e examinando os dados da Tabela 22.2, não seria absurdo argumentar que, na medida em que o estudo D teve muitos participantes, esse [464] estudo pode fornecer a melhor estimativa do tamanho de efeito verdadeiro. Estendendo esse argumento, o cálculo do tamanho de efeito deveria levar isso em consideraçáo para minimizar a quantidade de erro, em vez de conferir a cada tamanho de efeito um peso igual. Vários métodos têm sido utilizados para produzir um tamanho de efeito ponderado (TEP) dos estudos individuais desse modo. Um modo intuitivamente atraente é usar o número de participantes como o peso. Uma fórmula que levaria isso em consideração seria multiplicar cada tamanho de efeito pelos graus de liberdade e depois dividi-los pela soma dos graus de liberdade:

Equação 3

Para os dados da Tabela 22.2 isso resultaria em:

Equação 4

Isso representa uma distribuição de 17% entre os escores dos grupos de trata­mento e de controle em favor do grupo de tratamento.

22.3.5 Interpretando a estatística do tamanho de efeito

Uma vez que tenhamos calculado o tamanho de efeito, precisamos estar em con­dições de dizer o que ele significa. Um dos tamanhos de efeito mais conhecidos é o d de Cohen (1988), que é usado para quantificar o grau de diferença entre médias de grupo. O r de Pearson pode ser usado para representar o tamanho de uma relação e também o grau de diferença entre médias de grupo. De fato, muitas medidas de tamanho de efeito podem ser convertidas umas nas outras (Rosenthal, 1991). Cohen forneceu uma métrica confortável para interpretar tamanhos de efeito que pode ser vista na Tabela 22.3.

Para o exemplo utilizado anteriormente, poderíamos interpretar o tamanho de efeito encontrado como sendo um efeito, de pequeno a médio. Embora o uso de di­retrizes convencionais possa ser útil, elas devem ser aplicadas com cuidado, pois diferentes áreas terão diferentes tamanhos de efeito, que são considerados como pratica ou clinicamente significativos. Como observaram Welkowitz, Ewen e Cohen (1982), essas diretrizes não devem ser usadas se o tamanho de efeito relevante para uma área particular é conhecido. Em geral, isso pode ser determinado consultando a literatura da área. É claro, se a área é nova, isso pode ser problemático. Uma saída, como Glass e colaboradores (1981) sugerem, é examinar a literatura de uma área conexa. Contudo, no caso de nenhuma estimativa de tamanho ter sido estabelecida, a orientação convencional talvez seja a única opção disponível.

Tabela 22.3

Nessa situação, a interpretação de um tamanho de efeito pequeno pode ser difícil, partícularmente quando se trata de avaliar tratamentos e especialmente quando esses tratamentos têm conseqüências em termos de vida ou morte. Embora os tratamentos psicológi­cos não sejam em geral considerados como tendo esse tipo de impacto, o contra-argumento pode ser formulado em relação às intervenções comportamentais dentro de ambientes médicos.

A questão consiste em saber como um efeito de tratamento expresso como um decimal do desvio padrão - tal como 0,01 ou 0,06 - se relaciona com sua significação prática ou clínica. O debate sobre essa questão tem levado ao reco­nhecimento de que um tamanho de efeito pequeno não implica que o efeito do tratamento seja similarmente pequeno (Lipsey e Wilson, 1993). Por exemplo, Ro­senthal (1991) relata que o efeito da aspirina sobre ataques cardíacos era conside­rado como conclusivo quando o tamanho de efeito alcançava 0,07. Se as diretrizes utilizadas fossem as de Cohen (1988), esse seria um tamanho de efeito pequeno, e teria representado 3,596 da diferença entre os grupos em tratamento com aspirina e os grupos não tratados desse modo. No entanto, em virtude de seu impacto em termos de vida ou morte, essa diferença foi considerada como clinicamente
significativa.

Relacionada a essas questões de interpretação do tamanho de efeito está a questão de saber se o tamanho de efeito é uma superestimativa do tamanho de efeito da população e, se é, em que medida. Essa é uma questão problemática por duas razões. Estudos com resultados positivos são mais propensos a serem submetidos para publicação. Greenwald (1975) estimou que aqueles estudos que tinham resultados significativos são oito vezes mais propensos a serem submeti­dos. Além disso, uma vez submetidos, tais estudos são mais propensos a serem publicados. Isso ocorre porque os editores frequentemente usam a significação estatística como uma medida de controle de qualidade para selecionar estudos para publicação (Gillet, 2001) e, como indicado anteriormente, uma falta de resul­tado significativo não implica a ausência de um efeito de tratamento. Esse viés de publicação significa que aqueles estudos que têm os efeitos mais fortes são mais propensos a serem publicados, e, consequentemente, qualquer metanálise desses estudos tende a superestimar o efeito de tratamento de população. Esse não é um problema insignificante, pois a metodologia rigorosa da metanálise pode dar cre­denciais científicas a conclusões errôneas (Begg, 1994). e esse é um sério abuso da metanálise. Além disso, aqueles que fazem metanálise também fazem julgamentos sobre os estudos que devem ser incluídos. Esse processo de seleção é elaborado no intento de evitar o problema das maçãs e laranjas. No entanto, ele pode também introduzir elementos de viés.

Há vários modos mediante os quais essa tendência pode ser minimizada. É importante definir explicitamente os critérios de inclusão e de exclusão que foram usados para selecionar os estudos. Além disso, a estratégia usada para resgatar os estudos precisa ser explicitada. Essa estratégia deve incluir tanto os bancos de dados óbvios quanto os não tão óbvios em acréscimo a outras fontes de es­tudos, tais como atas de conferência e bibliografias, bem como contatar autores no caso de estudo que são inéditos. Na medida em que esses passos são tornados explícitos, o leitor está apto a formar juízos sobre a possibilidade de presença de viés. Localizar estudos inéditos não é uma tarefa trivial, e nunca é possível saber se todos eles foram localizados. Rosenthal (1979) abordou esse problema de um ângulo diferente, que utilizava o método à prova de falhas. Ele desenvolveu uma fórmula para estimar quantos estudos não significativos o pesquisador precisa­ria encontrar, os quais, presumivelmente, se encontrariam na literatura inédita, para mostrar que não havia nenhum efeito. Certamente, se o pesquisador precisa de poucos estudos, então esses estudos poderiam estar escondidos na gaveta de alguém. Nessas circunstâncias, seria sábio não prestar muita atenção no efeito relatado. Revisar os participantes dos estudos usados também pode nos ajudar a formar um juízo. Estudos com números maiores de participantes são mais [467] propensos a ter tamanhos de efeito que são mais próximos do tamanho de efeito de população. Se a metanálise compreendesse estudos com tamanhos de amos­tra pequenos, isso deixaria alertas nossas suspeitas. Mais provavelmente, have­ria uma mistura, e a presença de estudos pequenos com tamanhos de amostra pequenos talvez distorcesse o tamanho de efeito. Aqui, procuraríamos ver se os tamanhos de efeito individuais dos estudos foram ponderados com base em seu tamanho de amostra. Evitar positivos falsos (erro de Tipo I), bem como assegurar que a descoberta de novas relações não está suprimida (negativos falsos, erro de Tipo II) é um problema perene não apenas para a metanálise, mas também para toda a psicologia científica.

Nem todas as metanálises são feitas com base em grandes conjuntos de estudos.

Shoham-Salomon, Avner e Neeman (1989) conduziram uma sobre intervenções pa­radoxais usando apenas 10 estudos. Aqui, o terapeuta encoraja o comportamento que o cliente está tentando mudar - os ansiosos, por assim dizer, são encorajados a se preocupar. Por alguma razão, isso sempre tem o efeito oposto. Eles descobriram que o efeito era muito forte e que funcionava tão efetivamente quanto uma série de outras terapias. Isso dito, com essa pequena base não foi possível determinar como e por que o procedimento funcionou. Contudo, o valor da metanálise que usa pe­quenas quantidades de estudos está mais em focalizar a pesquisa futura do que em obter conclusões firmes.

22.4 CONCLUSÃO

Este capítulo introduziu o conceito de metanálise. No espaço disponibilizado não é possível explorar os múltiplos e mais sofisticados desenvolvimentos nessa área. O leitor interessado pode consultar a literatura discutida abaixo. Nossa ex­pectativa é que o leitor deste capítulo esteja em uma posição de criticar as meta­nálises que são publicadas e possa ser inspirado a aplicar esses princípios a seu próprio trabalho.

22.5 LEITURAS RECOMENDADAS

Hunt (1997) fornece uma apresentação clara e abrangente da metanálise consi­derando sua história e sua contribuição para o progresso científico em uma série de campos de pesquisa. O texto de Wolf(1986) é uma boa fonte de muitas das fórmulas estatísticas e de seus usos, bem como de sua base lógica. Uma fonte alternativa é o texto de Lipsey e Wilson (2001), que é bom no que diz respeito à elaboração de exemplos práticos. Seria errado não apresentar os argumentos contra a metanálise: Eysenck é um crítico fervoroso, e a discussão de seu texto “Meta-analysis and its pro­blems” [“A metanálise e os seus problemas’] (1994) é digna de leitura.

Ralf Schwarzer tem elaborado um programa de computador disponível gratuita­mente para executar metanálises, e esse programa vem acompanhado de um exce­lente manual. Ele pode ser obtido em: http://www.fu-berlin.de/gesund/gasu_engl/ meta e.htm. [468]

Psicologia - Epistemologia
12/3/2020 12:19:34 PM | Por Ryan Niemiec
Forças de assinatura, pesquisa e prática

Na publicação Character strengths and virtues (Peterson & Seligman, 2004), que articulou o critério, o desenvolvimento e o enquadramento para a classificação VIA, houve mais de 2 mil referências acadêmicas e 800 páginas de discussão das 24 forças de caráter, porém não mais que duas frases abor­daram o tema das “forças de assinatura”. Entretanto, aquelas poucas palavras foram o suficiente, pois inúmeros estudos sobre forças de assinatura surgiram desde 2004, articulando os benefícios e o valor das forças de assinatura. Os estudos têm examinado a correlação, a causalidade, os mediadores, os mo­deradores, as populações, a avaliação e as intervenções na tentativa de com­preender esse robusto tema. Este capítulo revisa os achados de pesquisas e oferece estratégias práticas para trabalhar com as forças de caráter.

Por que as forças de caráter são importantes?

A importância das forças de assinatura pode ser rapidamente defendida, não apenas pela ciência que surgiu durante as últimas duas décadas, mas também pela perspectiva do problema do desengajamento crônico em muitas organizações, relacionamentos e indivíduos. Eis um resumo de ambos.

  • Desengajamento de indivíduos - falta de florescimento. As pesquisas mos­tram que menos de 25% da população dos EUA está florescendo (Keyes, 2003), e resultados semelhantes são encontrados na Nova Zelândia (Hone, Jarden, Duncan, & Schofield, 2015). Isso significa que as pessoas não estão funcionando com um alto nível de bem-estar, social e psicologicamente. [65]
    • Apoio para as forças Um estudo mostrou que as pessoas que as pessoas que utilizam muito suas forças são 18 vezes mais propensas a florescer do que as quo não as utilizam (Hone et al., 2015). Cada um dos elementos essenciais do florescimento - emoções positivas, engajamento, significado, relacionamentos positivos e realização (Seligman, 2011) - está significativamente associado às forças de caráter.
  • Desengajamento de indivíduos - desconhecimento geral das forças. As pesquisas demonstram que dois terços das pessoas desconhecem suas forças (Linley, 2008). Dessa forma, se as pessoas não sabem quem são e do que são capazes, como se pode esperar que tenham um bom desempenho no trabalho e na vida?
    • Apoio para as forças. Uma amostra representativa de trabalhadores na Nova Zelândia revelou que aqueles que conheciam bem suas forças eram nove vezes mais propensos a florescer do que aqueles que as desconhe ciam (Hone et al., 2015). As forças de caráter têm sido associadas ao engajamento em vários estudos (por exemplo, Peterson et al., 2007).
  • Desengajamento de casais. Os relacionamentos estão sofrendo com altas taxas de divórcio para novos casamentos.
    • Apoio para as forças. Pesquisas crescentes apontam não apenas para o valor da apreciação, mas também em particular para a apreciação das forças. Em estudos com casais, aqueles que relatam que seu parceiro reconhece e aprecia suas forças de assinatura têm maior satisfação no relacionamento, são mais comprometidos com o relacionamento, e re­latam que suas necessidades básicas estão sendo satisfeitas (Kashdan et al., 2017). Diversos estudos fazem conexões entre as forças de cará­ter e a saúde do relacionamento (por exemplo, Lavy, Littman-Ovadia, & Bareli, 2014a, 2014b).
  • Desengajamento de funcionários. As taxas de desengajamento dos trabalha­dores estão acima de 79%, segundo a Organização Gallup, e há um desalinhamento entre as forças de caráter exigidas dos indivíduos e as forças de caráter que são naturais deles (Money, Hillenbrand, & Camara, 2008).
    • Apoio para asforças. A utilização das forças de assinatura está associa­da a engajamento no trabalho, produtividade, satisfação na vida e tra­balho como um chamado (por exemplo, Harzer & Ruch, 2015, 2016; Lavy & Littman-Ovadia, 2016; Littman-Ovadia & Davidovitch, 2010). [66] Uma análise de três anos do engajamento dos funcionários mostrou que as forças de assinatura eram um dos motivadores mais cruciais (Crabb, 2011). A Organização Gallup constatou que os funcionários que têm a oportunidade de utilizar suas forças são seis vezes mais propensos a se engajar em seu trabalho (Sorenson, 2014).

O desengajamento parece ser extremamente alto em muitos domínios de nossa vida. Isso exige uma nova ação. As forças de assinatura estão surgindo em domínios não apenas como uma fonte importante de engajamento, mas também como um caminho central. 

Conceitos centrais

As forças de assinatura são um dos conceitos mais pesquisados e praticados na psicologia positiva. Trabalhar com as forças de assinatura tem muitos dos diferenciais do sucesso:

  • É muito fácil de fazer: os praticantes não precisam mudar seu estilo ou abordagem.
  • Os clientes encontram benefícios imediatos.
  • Há suporte científico.
  • É diferente e único para os clientes que estão acostumados a focar no que está errado com eles.

As forças de assinatura têm sido bastante discutidas em fóruns acadêmicos e de consumidores. A publicação original sobre a classificação VIA, Character Strengths and Virtues, discute as forças de assinatura como traços pessoais po­sitivos que um indivíduo possui, celebra e exercita frequentemente (Peterson [67] & Sclignwn, 2004). Desta forma, as forças de assinatura estão associadas à Identidade da pessoa e ao conceito de quem são, e essas não podem ser con­sideradas à parte do contexto.

Seligman (2002) propôs diversas formas de pensar sobre as forças de as­sinatura, sugerindo que uma força de assinatura satisfaria a maioria, se não a todos esses critérios:

  • Um senso de apropriação e autenticidade (“Este sou eu de verdade”).
  • Um sentimento de entusiasmo ao demonstrar a força.
  • Uma rápida curva de aprendizagem quando a força é primeiramente em­pregada.
  • Um senso de anseio por encontrar novas maneiras de utilizar a força.
  • Um sentimento de inevitabilidade para utilizar a força (“Tente me parar”).
  • Revigoramento, em vez de exaustão após empregar a força.
  • Criação e busca de projetos pessoais que girem em torno da força.
  • Alegria, entusiasmo e até êxtase ao empregar a força.

A convenção entre os pesquisadores da psicologia positiva tem sido focar nas cinco forças do topo do perfil do indivíduo como suas forças de assinatura. Pesquisas iniciais sugerem que os indivíduos têm entre três e sete forças de assinatura (Peterson & Seligman, 2004). O Instituto VIA de Caráter investi­gou o construto com profundidade e conduziu quatro estudos, examinando o conceito inicial conforme discutido nos dois textos anteriores, em uma ten­tativa de compreender a quantidade de forças de assinatura nos indivíduos (Mayerson, 2013). Foram empregadas diferentes estratégias, juntamente com níveis variáveis de rigor no critério utilizado para determinar uma força de assinatura. As forças de assinatura mostraram ter pontuações VIA significati­vamente mais altas que as demais forças, desse modo, destacando as forças de assinatura como uma categoria distinta de forças. Alguns anos mais tarde, Ro­bert McGrath conduziu três estudos para desenvolver e validar o Questionário de Forças de Assinatura (Signature Strenghts Survey, SSS). O primeiro estudo examinou as diferenças da média entre as forças nos dados do Questionário VIA de quase meio milhão de pessoas, e o segundo estudo envolveu admi­nistrar o SSS preliminar e, depois, entrevistar os participantes sobre seus pa­drões de resposta. Quando foi pedido que fornecessem uma justificativa para [68] suas escolhas de forças de assinatura, a resposta mais comum foi que a força é "parte de quem sou". Esses estudos informaram uma iteração final do SSS, que foi administrado (terceiro estudo) em 41.31 pessoas e levou à identifcação de 5,5 forças de assinatura, em média. Esses resultados apoiam o construto das forças de assinatura que as pessoas acham que têm é consistente com o que os pesquisadores de psicologia positiva propuseram anteriormente, embora os critérios sejam mais rigorosos do que originalmente hipotetizados. O critério para determinar uma força de assinatura que parece ser a mais importante, o qual tem sido corroborado por outras pesquisas, é se a força é ou não vista como central ou essencial para quem a pessoa é.

Outra estratégia para pensar as forças de assinatura. que esclarece sua importância central em nossa vida, é engajar-se em um exercício de subtração mental. Considere como seria a vida se você não tivesse uma de suas forças de assinatura. Você pode imaginar como seria sua vida se não pudesse expressar sua força da criatividade? E se a força da curiosidade fosse tirada de você? Ao conduzir esse exercício experimental em milhares de pessoas, descobri que muitos respondem a ele com uma reação de “ah-ha”, e não é incomum ouvir suspiros de choque e horror com o pensamento de eles não terem suas forças centrais. Aqui estão algumas respostas típícas:

  • “Seria como se estivesse sufocado sem minha criatividade. Como se esti­vesse ofegante tentando respirar*.
  • “Prudência e cautela são quem eu sou. Isso é o que faço. Como você tiraria isso de mim?*
  • "Não ter minha curiosidade na vida seria como estar minimamente sobrevivendo".
  • “Sem minha inteligência social, não sei como iria interagir com as pessoas". [68]

As forças são apresentadas e exibidas por toda parte ao nosso redor, especialmente na mídia. Meu colega, Danny Wedding, e eu escrevemos sobre mais de 1.500 exemplos de filmes que exibem cada uma das forças de caráter da classificação VIA (Niemiec & Wedding, 2014). Nos filmes, aprendemos sobre as forças de assinatura de cada personagem, e com frequência vemos nossas próprias forças de assinatura refletidas de volta para nós. Podemos também voltar-nos para livros, shows de televisão, websites, blogs e redes sociais, e observar as forças de assinatura dos indivíduos sendo demonstradas ou fazendo a criação.

Ao ler um livro, pergunte-se: Quais são as forças de assinatura do narrador e dos personagens coadjuvantes? Quais são as forças de assinatura das celebridades na televisão? Dos líderes no governo ou na empresa? Para onde quer que olhemos, podemos identificar forças e nomear as forças de assinatura dos indivíduos ou personagens. Esse tipo de abordagem tem recebido crescente atenção nas escolas (por exemplo, White & Waters, 2014), Considere o ganhador do Oscar de Melhor Filme, O discurso do rei (2010), Este filme apresenta a metáfora perfeita para ilustrar o que as forças de assinatura realmente significam - ser autêntico e expressar nosso verdadeiro eu. No filme o rei George VI, da Grã-Bretanha (Colin Firth), sofre de um severo transtorno de gagueira, sendo incapaz de falar com clareza para ajudar a Informar e amenizar o pânico do povo na iminência da Segunda Guerra Mundial, o rei começa a trabalhar com um treinador de discursos (Geofrey Rush), que utiliza um alto grau de criatividade, curiosidade, bondade e perspectiva para ajuda-Io a encontrar sua voz. O “encontrar sua voz” é uma metáfora para a expressão das forças de assinatura. Lionel encoraja o rei a “ter fé em sua própria voz", e uma interação comovente, na qual o rei supera a gagueira e expressa-se claramente, acontece assim:

Rei: Escute-me!

Lionel: Escutar você? Com que direito?

Rei: Pelo direito divino se quer mesmo saber, eu sou seu rei.

Lionel: Não, você não é, você mesmo disse-me. Você não queria isso, Por que perderia meu tempo escutando?

Rei: Por que tenho o direito de ser ouvido. Eu tenho voz!... [pausa]  

Lionel: Sim, você tem... Você tem tanta perseverança, Bertie, você é o homem mais valente que conheço. [70]

 É nessa conversa que o rei encontra sua voz (seu eu autêntico, essencial); ela é clara, contundente e genuína. Lionel utiliza uma variedade de abordagens no papel de “treinador” - intervenção paradoxal, confrontação, resistência, conselheiro e apoiador - que ajuda o rei a reconhecer que seu verdadeiro eu é importante e que ele pode expressá-lo. No diálogo anterior, o telespectador pode observar a afiada percepção de Lionel para identificar e valorizar duas das forças de assinatura do rei - bravura e perseverança.
Podemos perceber as forças de assinatura dos indivíduos em praticamente qualquer situação. Considere o seguinte obituário:
Infelizmente, a própria Mary sofreu muitas tragédias durante sua vida. tanto exterior como interiormente. Suas forças de caráter foram a determinação e a vontade de supe­rar a adversidade. Com frequência, sua compaixão por outros tinha mais importância que sua doença (Pocono Record, 2012).

Essas três frases no obituário informam que Mary era uma mulher com as forças de assinatura da perseverança e bondade - ela superou obstáculos internos e externos e continuou lutando, além disso, emanava um senso de cuidado pelos outros ao longo do caminho.

Pesquisas sobre forças de assinatura

Forças de assinatura de novas maneiras

Na atual pesquisa sobre intervenção mais citada na psicologia positiva, Seligman et al. (2005) conduziram um estudo duplo-cego, de atribuição randomizada, controlado por placebo - um estudo padrão-ouro em termos de boa pesquisa. O estudo consistiu na participação de 577 adultos distribuídos [71] aleatoriamente em um dos cinco grupos, ou no grupo de placebo. Aqui estão os grupos e a tarefa principal de intervenção:

  • Visita da gratidão. Escreva e entregue em mãos uma carta de gratidão para alguém que foi especial para você, mas a quem você não agradeceu adequadamente.
  • Três coisas boas. Escreva sobre três coisas que foram boas e explique a causa, todas as noites.
  • Você no melhor de si. Escreva a respeito de um momento que você estava expressando o melhor de si e reflita sobre as forças demonstradas na histó­ria; revise essa história e as forças uma vez por dia.
  • Utilizando as forças de assinatura de uma nova maneira. Responda ao Questionário VIA, revise as cinco forças do topo e utilize uma dessas for­ças de uma maneira nova e diferente a cada dia.
  • Identificando as forças. Responda ao Questionário VIA de Forças, revise suas forças do topo e utilize-as mais durante a semana.
  • Placebo. Escreva sobre uma memória antiga a cada noite.

Embora tenha havido benefícios iniciais para cada grupo de intervenção, os benefícios duradouros foram observados em dois grupos: o grupo das “três coisas boas” (também chamado “contando as bênçãos” ou “praticando a grati­dão”), e o grupo de “utilizando as forças de assinatura de uma nova maneira”. Esses dois grupos tiveram aumentos significativos de felicidade e diminuição da depressão com efeitos duradouros por mais de seis meses. Os efeitos não apenas são fantásticos, mas também é impressionante notar que as interven­ções foram realizadas on-line e sem a assessoria pessoal de um praticante oferecendo apoio e orientação. Se essas intervenções fossem pinturas, seriam consideradas “minimalistas”.

As intervenções duraram apenas uma semana; no entanto, Seligman et al. (2005) verificaram que aqueles que apresentaram os resultados mais eficazes decidiram continuar a intervenção por si mesmos por um período de tempo. Isso mostra como pode ser intrinsecamente gratificante trabalhar com as forças de as­sinatura, assim como é preciso tempo e persistência para se criar novos hábitos.

A intervenção de utilizar as forças de assinatura de novas maneiras, com­parada a grupos de controle e a outras intervenções, tem sido replicada ou [72] parcialmente replicada em diversos ambientes, populações e culturas. Os benefícios em longo prazo (seis meses) da utilização das forças de assinatura foram replicados em uma amostra europeia (Gander, Proyer, Ruch, & Wyss, 2013), e benefícios foram encontrados em outros países, como Canadá (Mongrain & Anselmo-Matthews, 2012), Austrália (MHcheft, Stanimtrovíc, Klein, & Vella-Brodrick, 2009), RU (Linley, Nielsen, Gtflett, & Bsfwas-Diener, 2010), e China (Duan & Bu, 2017; Duan, Ho, Tang, Lí, ScZhang, 2013). Outro estudo mostrou que as três intervenções e o placebo tiveram efeitos positivos (por exemplo, elevações significativas de felicidade), com a intervenção em forças de assinatura melhorando o máximo em uma margem substancial, e o grupo de placebo de forma compreensível melhorando o mínimo após seis meses. O estudo, no entanto, sofreu uma alta taxa de desistência, no qual menos de um quarto dos sujeitos que iniciaram o estudo o completou (Woodworth, O’Brien-Malone, Diamond, & Schüz, 2017).

Populações de jovens a adultos mais idosos têm focado nas forças de as­sinatura com sucesso. Por exemplo, jovens que trabalharam suas forças de assinatura juntamente com definição de metas de significado experimentaram um aumento no engajamento e na esperança (Madden et aL, 2011). Em uma população de adultos mais idosos (de 50 a 79 anos), o grupo designado para trabalhar com uma força de assinatura de uma nova maneira teve a interven­ção mais eficiente de forma geral, e isso levou tanto ao aumento da felicidade como à diminuição da depressão. Outras intervenções foram parcialmente
eficazes comparadas ao placebo; por exemplo, conduzir a visita de gratidão e lembrar-se de três coisas boas beneficiaram os níveis de felicidade, enquanto lembrar de três coisas engraçadas reduziram os níveis de depressão (Prover, Gander et al., 2014a).
Outro estudo controlado e randomizado designou indivíduos para (1) um grupo instruído a utilizar duas forças de assinatura, (2) um grupo instruído a utilizar uma força de assinatura e uma força de baixo, ou 3) um grupo de controle. Os resultados revelaram ganhos significativos em satisfação com a vida para ambos os grupos de tratamento (Rust, Diessner, & Reade, 2009). Os participantes dos dois grupos de tratamento escreveram sobre um evento ou ocorrência no passado em que utilizaram suas forças de caráter de maneira bem-sucedida. A cada semana, eles também escreveram sobre um plano ou situação para a semana seguinte, em que poderiam aplicar a força. De [73] maneira semelhante, em um estudo não randomizado, Rashid (2004) observou que os grupos de estudantes que trabalharam com as forças de assinatura ou com ouras forças experimentaram aumento significativo de bem-estar, comparado ao grupo de controle. Uma pesquisa com estudantes de direito mostrou que a utilização das forças do topo levou à diminuição da depressão e do estresse, bem como ao aumento da satisfação dos estudantes (Peterson & Peterson, 2008). Outro experimento randomizado mostrou que o grupo de intervenção que trabalhoucom as forças e outros exercícios de gratidão e bondade melhorou o equilíbrio do afeto positivo e negativo ao longo do tempo, comparado ao grupo de controle (Drozd, Mork, Nielsen, Reader, & Bjiorkli, 2014). Em um estudo longitudinal, a utilização das forças em geral (não as forças VIA de caráter) mostrou ser um importante preditor do bem-estar e levou a menos estresse e aumento do afeto positivo, vitalidade e autoestima aos três meses e aos seis meses de acompanhamento (Wood, Linley, Matlby, Kashdan, & Hurling, 2011).

As forças de assinatura em diversos contextos

As intervenções com torças de assinatura tem sido aplicadas de maneira bem sucedida em uma variedade de contextos psicológicos com efeitos positivos; por exemplo, em uma unidade de internação para pessoas com depressão e comportamentos suicidas (Huffman et al.2014), em uma unidade de neuropsicologia para pessoas com traumatismo cranioencefalico (Andrew Walker. & O'Neill. 2014), em uma unidade ambulatorial para adultos com psicose (Riches, Schrank. Rashid. & Slade. 2016), em uma Administração de Reabilitação de Veteranos em que os veteranos colocaram um aviso para não [75] se esquecerem de utilizar as forças (Kbau et al. 2011), e em um contexto de aconselhamento de carreira (Littman-Ovadia, Lazar-Butbul, & Benjamin, 2014). No último estudo, o aconselhamento de carreira baseado nas forças foi comparado ao aconselhamento de carreira convencional, e os dois grupos de clientes tiveram um aumento na utilização diaria das forças, mas apenas o primeiro teve melhora na autoeatima. Em trés meses de acompanhamcmo, o grupo de aconselhamento de carreira baseado nas lorças teve uma taxa mais alta de emprego (81%) do que o grupo de aconselhamento convencional da carreira (60%).

A psicoterapia positiva é uma abordagem de terapia que foca na construção de emoções positivas, forças e significado na vida dos clientes paia promovera felicidade. Experimentos preliminares constataram que essa abordagem é superior ao tratamento convencional para depressão (Rashld & Anjum, 2008; Seligman, Rashid. & Parks, 2006). Tayyah Rashid notou que bem mais de 50% da psicoterapia positiva gira em torno da utilização e da prática das forças de caráter (Rashid, comunicação pessoal, 2011). As sessões focam nas intervenções gerais de forças de caráter (por exemplo, duas sessões para identificar e cultivar as forças de assinatura; duas sessões sobre a “árvore de forças da família” e “presente do tempo" para promover significado), forças específicas (por exemplo, uma sessão sobre perdão; uma sessão sobre gratidão), e promoção de um tema central da psicologia positiva (por exemplo, amor para cultivar engajamento; esperança para cultivar prazer).

Resultados bem-sucedidos associados ao foco nas forças (não as forças de caráter) têm também sido mostrados nas pesquisas do Minhas (2010) e Cox (2006); o último autor mostrou que a abordagem baseada nas forças (quando também validada e praticada pelo terapeuta) levou à redução na pontuação de vários comportamentos sociais e emocionais problemáticos.

As intervenções com forças de caráter são com frequência integradas em programas mais abrangentes que focam na construção do bem estar, resiliência, realização e outras áreas dentro do campo da psicologia positiva. Com frequência, a abordagem adotada nesses programas envolve ajudar os participantes a identificar suas forças de assinatura e então entrar em ação de alguma maneira com essas forças. Esses programas têm incluído uma variedade de contextos, como o educacional, organizacional e o serviço militar. Embora os resultados dessas iniciativas de programas sejam muito encorajadores e, em [75]  alguns casos, revolucionários e altamente influentes, os pesquisadores geral­mente não separam as contribuições feitas pelas forças de assinatura e outros componentes das forças de caráter de outras intervenções da psicologia posi­tiva. Apesar de as forças de assinatura serem, com frequência, descritas como “centrais” em muitos desses programas, perguntas como as seguintes perma­necem: Qual o elemento mais crucial desses programas abrangentes? Quanto valor os componentes das forças de caráter trazem para esses programas?
O que se segue são domínios comuns em que as forças de caráter, espe­cialmente o trabalho com as forças de assinatura, estão sendo aplicadas. Re­sultados de pesquisas são apresentados aqui e mencionados por todo o livro.

Organização

O contexto organizacional/local de trabalho tem sido um domínio par­ticularmente robusto de estudo para a ciência do caráter (veja Mayerson, 2015). Claudia Harzer e Willibald Ruch têm conduzido vários estudos no ambiente de trabalho. Eles constataram que os funcionários que utilizaram quatro ou mais de suas forças de assinatura no trabalho tiveram mais expe­riências positivas no trabalho e o trabalho como um chamado, do que os que utilizaram menos de quatro forças (Harzer & Ruch, 2012), e que as forças de assinatura estão conectadas às experiências positivas de trabalho, indepen­dentemente de quais sejam as forças mais altas (Harzer & Ruch, 2013). Em outros estudos, eles observaram que as forças de caráter estavam conectadas ao desempenho no trabalho (Harzer & Ruch, 2014), e ao enfrentamento do estresse (Harzer & Ruch, 2015). Finalmente, em um estudo de intervenção, eles descobriram que o alinhamento das forças de caráter dos funcionários com suas tarefas levou ao aumento da visão do trabalho como um chamado (Harzer & Ruch, 2016).

Um estudo sobre apoio supervisionado mostrou que os funcionários que receberam apoio do supervisor (mas não o apoio de colegas) aumentaram a utilização de suas forças no dia seguinte (Lavy, Littman-Ovadia, & Boiman-Meshita, 2016). Esses mesmos pesquisadores publicaram outro estudo sobre o ambiente de trabalho mostrando que a utilização de todos os tipos de forças (forças de assinatura, forças de felicidade, forças menores) estava associada com resultados positivos. Por exemplo, as forças de assinatura foram o maior contribuidor para o desempenho no trabalho, comportamentos de cidadania organizacional, e menos comportamentos contraprodutivos no trabalho; e as forças de felicidade foram o maior contribuidor para o significado, engaja­mento e satisfação no trabalho (Littman-Ovadia, Lavy, & Boiman-Meshita, 2016). Um estudo qualitativo examinou a utilização das forças de caráter por mulheres no local de trabalho e constatou que, em todos os casos, as forças levaram a um círculo virtuoso no qual a utilização das forças as ajudou a superar barreiras que haviam impedido o emprego das forças (Elston & Boniwell, 2011). Todos os sujeitos obtiveram benefícios de valor único utilizando as forças de caráter no trabalho. Outro estudo com funcionários mostrou que empregar as forças de assinatura de novas maneiras combinado a uma reunião estruturada de dez minutos foi benéfico para aumentar a utilização das forças e o número de metas traçadas, comparado ao grupo que utilizou apenas for­ças de assinatura de novas maneiras (Butina, 2016).

Recomenda-se que as organizações encontrem formas de ajudar seus co­laboradores a utilizar suas forças mais frequentemente no trabalho, pois a utilização das forças, em geral (não respondendo ao Questionário VIA), tem sido associada a níveis de autoeficácia e comportamento proativo dos colabo­radores (van Woerkom, Oerlemans, & Bakker, 2016), a afeto positivo e capital psicológico (Meyers & van Woerkom, 2016), e a absentismo reduzido (van Woerkom, Bakker, & Nishii, 2016). O clima de uma organização pode tam­bém apoiar os colaboradores a empregar suas forças. Em um estudo com 442 colaboradores de 39 departamentos em oito organizações, o clima psicológico baseado nas forças estava associado ao afeto positivo e ao desempenho no trabalho (van Woerkom & Meyers, 2014). A Organização Gallup tem focado suas pesquisas nas forças no local de trabalho e constatou que os dois previsores mais importantes da retenção dos colaboradores e da satisfação são; (1) relatar a utilização das forças do topo no trabalho e (2) relatar que um supervi­sor próximo reconheça as forças do topo do funcionário. Infelizmente, o Gal­lup observou que apenas 20% dos colaboradores acham que seus supervisores conhecem suas forças e um terço dos colaboradores diz ter a oportunidade de fazer o que faz melhor todos os dias. Quando a liderança de uma organização não foca nas forças do indivíduo, as chances de o colaborador estar engajado são de 9%; no entanto, quando a liderança foca nas forças do colaborador, essas chances aumentam para 73% (para mais detalhes, ver Asplund et al., 2007; Clifton & Harter, 2003; Hodges & Clifton, 2004). [77]  

Educação

Os achados mostram que as forças de caráter não foram apenas uma importante fonte de bem-estar entre estudantes (Gillham et al., 2011), mas tambem têm sido o grande foco dos programas de educação positiva ao redor do mundo. Em um artigo seminal, que argumenta sobre a integração das forças de caráter na educação, Linkins, Niemiec, Gillham e Mayerson (2015) desta­cam por que as abordagens educacionais tradicionais sobre caráter nos EUA e em outros países deveriam mudar todas as abordagens monilíticas e unifor­mizadas (a autoridade escolar escolhe algumas forças para todos os estudantes construírem), em vez de abordagens individualizadas que funcionam com as forças únicas de assinatura dos estudantes.

Embora as forças de caráter desempenhem um papel importante para criar bem-estar positivo (Oppenheimer, Fialkov, Ecker, & Portnoy, 2014) e resulta­dos positivos na sala de aulas (Weber e Ruch, 2012b; Weber et al., 2016), elas têm sido incorporadas a todos na escola, envolvendo colaboradores, professo­res, estudantes e líderes dos programas. Alguns programas empregam as forças de caráter como o único foco (ver Fox Eades, 2008; Proctor & Fox Eades, 2011), assim como o foco principal (ver Yeager, Fisher, & Shearon, 2011). A Academia das Forças (Strentghs Gym), criada por Carmel Proctor e Jennifer Fox Eades, é um exemplo de programa de intervenção em psicologia positiva baseado nas forças no qual crianças e adolescentes participam de várias atividades envolvendo forças de caráter aplicadas diretamente aos estudantes e Integradas na grade curricular da escola. Um estudo avaliou o impacto da Aca­demia das Forças em adolescentes e descobriu que os que participaram dos exercícios com forças tiveram satisfação na vida significativamente mais alta do que os adolescentes que não participaram (Proctor et al., 2011). Em um contexto educacional chinês, uma intervenção de treinamento com as forças (que envolvia perceber quando, onde e como as forças do topo são utilizadas, e escrever sobre isso), foi eficaz para promover a satisfação na vida em curto e longo prazo. Os pesquisadores excluíram o efeito placedo, informando a alguns participantes o propósito do estudo e não a outros, e saber/não saber o propósito não teve efeito em longo prazo na satisfação com a vida (Duan et al, 2013).

Os programas de educação positiva demonstraram aumentar as notas aca­dêmicas, as habilidades sociais, a apreciação e o engajamento na escola, assim [78] como melhorar as forças de caráter da curiosidade, do amor ao aprendizado e da criatividade (Seligman, Ernst, Gillham, Reivich, & Linkins. 2009). Resultados preliminares de acompanhamento de três anos de um programa de educação positiva (Gillham, 2011) mostraram que a educação positiva teve um impacto no engajamento e realização, mas não no bem-estar subjetivo. Programas extensivos de educação positiva têm sido implementados em diver­sas escolas, como a Escola Primaria Geelong e a Faculdade St. Peter, ambas de muito prestigio na Austrália, e isso têm resultado em muitas descrições de treinamentos, utilização criativa das forças de caráter e outros métodos de im­plementação da psicologia positiva (ver Norrish. 2015; White & Murray, 2015, respectivamente), O trabalho com as forças de caráter é geralmente visto como o fundamento desse programa, em geral ensinado nas primeiras sessões, e envolve identificar as forças de caráter, escrever narrativas sobre momentos do melhor eu, entrevistar membros da família sobre forças, aprender como utilizar as forças para superar desafios, desenvolver as forças mais baixas e identificar professores e líderes no campus, os quais os alunos acreditam ser modelos de uma força específica. O trabalho com as forças de caráter está integrado mais profundamente na grade e atividades escolares, e inclui identificar forças na literatura clássica (por exemplo, A morte de um caxeiro viajante, Macbeth e Me­tamorfose) e infundir as forças nos esportes. White e Waters (2014) descrevem a abordagem na Faculdade St. Peter e detalham exemplos de cinco iniciativas em que as forças de caráter foram integradas nas áreas de esporte, liderança dos estudantes, aconselhamento e grade curricular de inglês.

Trabalhos muito estimulantes estão surgindo também no domínio das escolas públicas. O Instituto VIA fez parceria com a Academia Mayerson, que começou a integrar o programa das forças de caráter em mais de 40 escolas públicas (Bates-Krakoff, McGrath, Graves, & Ochs, 2016), em Cincin­nati, região de Ohio, envolvendo treinamentos de estudantes e professores, aprendizagem com videogames on-line por meio do Happify e coaching dos professores. A avaliação desse programa, chamado Comunidades de Aprendi­zagem do Florescimento (Thriving Learning Communities), mostra resultados preliminares promissores, como aumento da aprendizagem de competências socioemocionais), autoconsciência das forças, capacidade de apreciar a escola, taxas mais baixas de absentismo e disciplina, e ponto médio de classificação mais alto (grade point average, GPA, uma escala de até 4) (Darwish, comuni­cação pessoal, 26 de setembro, 2016). [79]

Serviço militar

As forças de caráter têm sido avaliadas e/ou utilizadas nas várias forças armadas em todo o mundo, como Noruega. Suécia, Argentina, Austrália e índia, entre outras (ver Banth & Singh. 2011; Consentino & Castro, 2012; Gayton & kehoe, 2015; Matthews, Bid, Kelly. Bailey, & Peterson, 2006). O Exército dos EUA é um exemplo de organização que incorporou as forças de caráter como componente central de seu treinamento de psicologia positiva e resiliência, denominado Comprehensive Soldier Fitness Program (Cornum, Matthews, & Seligman, 2011; Reivich, Seligman, & McBride, 2011). As forças de caráter estão entre as principais áreas avaliadas pelo Global Assessment Tool implemen­tado nesse programa (Peterson, Park, & Castro, 2011; Vie, Scheier, Lester, &
Seligman. 2016). Um dos módulos centrais do programa de treinamento inclui a identificação das forças de assinatura, a prática de procurar as forças nos outros e a prática de utilizar as forças individuais e de equipe para superar um desafio ou alcançar uma meta. Após responder ao Questionário VIA, os solda­ dos exploram as seguintes perguntas (Reivich et al., 2011):

  • O que você aprendeu sobre si mesmo?
  • Que forças você desenvolveu durante seu serviço no exército?
  • Como suas forças contribuem para você realizar uma missão e alcançar suas metas?
  • Como você está utilizando suas forças para construir relacionamentos fortes?
  • Quais são os lados obscuros de suas forças e como você pode minimizá-los?

Os soldados engajam-se, então, em exercícios individuais e de equipe envol­vendo revisão das experiências individuais e de equipe sobre superar barreiras e alcançar sucessos, revisar estudo de casos, escrever histórias sobre “força nos desafios” e realizar uma missão em equipe que exige a utilização das forças de caráter de equipe.

Os pesquisadores do serviço militar também têm escrito sobre os benefí­cios de identificar as forças de caráter, como a coragem (Hannah, Sweeney, & Lester, 2007), e sobre a importância do caráter com “C grande” na liderança (Hannah & Jennings, 2013). [80]

Outros domínios e populações

As forças de caráter são importantes em uma infinidade de contextos e em uma variedade de populações. As forças de caráter/forças de assinatura estão sendo estudadas e aplicadas para avaliar e/ou tratar jovens e adultos com va­rias deficiências. Alguns desses incluem jovens com deficiências intelectuais/de desenvolvimento (Biggs & Carter, 2015; Carter et aL, 2015; Shogren, Wehme­yer, Lang, & Níemiec, 2017; Shogren, Wehmeyer, & Niemiec. 2017), interesses vocacionais em adolescentes (Proyer, Stdler, Weber, Sc Ruch, 2012), pais de crianças com deficiências (Fung et al., 2011; Woodard. 2009), adultos com deficiências intelectuais/desenvolvimento (Samson & Antonelli, 2013; Tomasulo, 2014), adultos com deficiências físicas (Chan, Chan, Ditchman, Phillips, & Chou, 2013), pessoas com dislexia (Kannangara, 2015; Kannangara, Griffiths, Carson, & Munasinghe, 2015), e adultos com autismo sem deficiência intelectual (Kirchner, Ruch, & Dziobek, 2016). As aplicações das pesquisas e práticas das pesquisas em forças de caráter têm sido delineadas com adapta­ções sugeridas para pessoas com deficiências intelectuais/de desenvolvimento (Niemiec, Shogren, & Wehmeyer, 2017).

As forças de caráter foram aplicadas ao se examinar as várias dimensões da saúde física, como alimentação saudável, condicionamento físico, higiene pessoal, prevenção do uso de substância e estilo de vida ativo (Proyer, Gander, Wellenzohn, & Ruch, 2013). Em experimentos randomizados e controlados que envolveram milhares de meninas da índia vivendo na pobreza, as meni­nas que receberam uma grade curricular que incorporou as forças de caráter (identificação e utilização das forças de assinatura e exemplos concretos de ou­tras forças) exibiram saúde física significativamente melhor e benefícios de saúde psicossocial, em comparação com aquelas que não receberam nenhuma grade curricular (controles) (Leventhal et aL, 2015,2016).

Uma análise quali­tativa também revelou e explicou como as meninas perceberam que construir as forças de caráter as ajudou a melhorar seu engajamento escolar e evitar matrimônio infantil, violência baseada no gênero, assédio e abandono esco­lar (DeMaria, Andrew, & Leventhal, 2016). Um experimento randomizado e controlado, com crianças gravemente doentes, mostrou que a intervenção de “realizar um desejo” reduziu a náusea e aumentou a satisfação na vida, as emoções positivas e as forças, comparado ao grupo de controle (Chaves, Vazquez, & Hervas, 2016). Em outro estudo, esses pesquisadores constataram [81] que aumentos nas forças de caráter gratidão e amor) e descobertas de benfícios previram satisfação na vida ao longo do tempo em crianças portadoras de doença com risco de morte (Chaves, Hervas, Garcia, & Vasquez, 2016), Com relação a outras populações únicas analisadas, muitos estudos têm examinado as dinâmicas das forças de assinatura e/ou forças de caráter, en­tre as quais: docência (McGovern & Miller, 2008), professores (Chan, 2009; Gradisek, 2012), sobreviventes de abuso (Moore, 2011), moradores de rua (Tweed, Blswas-Diener, & Lehman, 2012), dependências (Krentzman, 2013; Logan, Kilmer, & Marlatt, 2010), tratamento clínico com diferentes populaçóes (Smith & Barros-Gomes, 2015), crianças muito pequenas pela descrição dos pais (Park & Peterson, 2006c), músicos (Güsewell & Ruch, 2015), funcionários de centrais de atendimentos (Moradi, Nima, Ricciardi, Archer, & Garcia, 2014), casais (Goddard, Olson, Galovan, Schramm, & Marshall, 2016; Guo, Wang, & Liu, 2015), experiências de lazer (Coghlan & Filo, 2016), liderança de serviço (Shek & Yu, 2015), adultos que praticam sua religião (Berthold & Ruch, 2014), resultados de torneios esportivos (Proyer, Gander, Wellenzohn, & Ruch, 2014b), pais envolvidos na adaptação escolar dos filhos (Shoshani & ílanit Aviv, 2012), as forças de caráter desejadas em parceiros ro­mânticos adolescentes (Weber & Ruch, 2012a), e estudantes de direito (Kern & Bowling, 2015), para mencionar apenas algumas. 

Amplificar uma força do topo ou remediar uma fraqueza?

O campo da psicologia passou mais de um século focando em remediar deficiências, examinando os problemas e ajudando outros a aliviar o sofrimento. Essa abordagem de “consertar” o que está errado tem permeado muitas [82] disciplinas, incluindo organizações, educação e saúde. Portanto, pedir a um cliente, estudante ou colaborador que passe um tempo refletindo sobre suas forças é uma mudança substancial. É uma pergunta que faz o indiví­duo pensar duas vezes: Você tem certeza? Você não quer que eu fale sobre meu estressor mais recente ou dificuldade? Apesar de décadas de sucessos em pesquisas que apoiam as abordagens baseadas nas deficiências, utilizadas na terapia cognitivo-comportamental (Beck, Rush, Shaw, & Emery, 1979), Cheavens et al. (2012) decidiram colocar a noção de “fraquezas versus for­ças” à prova. Eles designaram, de forma randomizada, adultos com depressão grave (transtorno depressivo maior), para terapeutas treinados que focaram em suas “forças únicas de TCC” ou para terapeutas treinados que focaram em suas “fraquezas únicas de TCC” (as duas primeiras forças do topo, ou as duas últimas forças, respectivamente). As áreas das forças ou fraquezas foram avaliadas em quatro aspectos - habilidades comportamentais, habilidades cog­nitivas, habilidades interpessoais e habilidades de atenção plena - todas im­portantes para a gestão dos sintomas da depressão. Os resultados mostraram que o grupo das forças teve mudanças mais rápidas nos sintomas de depressão e manteve melhora por 16 semanas de tratamento. Comparado ao grupo das fraquezas, o grupo das forças teve melhoras maiores e mais duradouras. Esse estudo, embora precise ser replicado, desafia a sabedoria convencional sobre remediar problemas e deficiências. Ele nos desafia a mudar nossa abordagem, aprimorar e focar no que há de melhor no cliente.

Essa abordagem de focar nas forças do cliente é citada nos estudos de Cheavens como “capitalização”, em outras palavras, capitalizar o que já está funcionando. Um estudo de pesquisadores holandeses também mos­trou os benefícios do modelo da capitalização, em que os participantes que focaram no desenvolvimento das forças demonstraram aumentos mais fortes no crescimento pessoal do que aqueles com foco nas deficiências (Meyers, van Woerkom, de Reuver, Bakk, & Oberski, 2015). O grupo do desenvolvimento das forças envolveu os participantes que receberam feedback de cinco a sete pessoas sobre suas forças (mencionado como exer­cício do melhor eu refletido; Spreitzer, Stephens, & Sweetman, 2009) e pensaram sobre suas forças e as discutiram com um pequeno grupo. Além disso, eles desenharam um pôster destacando como utilizam suas forças na vida diária, compararam seus perfis de forças aos perfis de vagas de [83] emprego, consideraram o ajuste entre as forças e a função do trabalho, e desenvolveram uma descrição em 30 segundos, enfatizando suas forças para um trabalho imaginado. Em outro estudo, o apoio organizacional percebido dos colaboradores para a utilização das torças e  o comportamento da utilização das forças estavam significativamente correlacionados à autoclassificação e à classificação do gestor sobre o desempenho do trabalho, enquanto o apoio organizacional percebido para a correção da deficiência e o comportamento de correção da deficiência não estavam relacionados ao desempenho (van Wocrkom Mostert et ah, 2016).

Esses estudos se associam a algumas das perguntas mais comuns formu­ladas pelos praticantes que estão aprendendo sobre forças: Deve ser dada atenção às forças de assinatura ou às forças mais baixas? Embora as forças mais baixas no perfil de forças de caráter do cliente não sejam vistas como fraquezas, a sabedoria desses estudos sobre capitalizar as melhores qualidades
pode ser acatada. Isso não significa que não há valor em se trabalhar as forças mais baixas, pois as pesquisas têm oferecido algum apoio para isso também (por exemplo. Rust et al., 2009), Um estudo examinou mais de perto algumas das diferenças entre os que focam nas forças do topo versus as forças de baixo. Esse experimento randomizado e controlado dividiu os participantes em três grupos: adultos que focaram em suas cinco forças do topo, adultos que focaram em suas cinco forças de baixo e um grupo de placebo. Os dois grupos de intervenções mostraram benefícios em felicidade por até três meses, assim como benefícios em depressão. Aqueles participantes com níveis inicialmente mais altos de forças tenderam a se beneficiar mais trabalhando com as forças mais baixas, ao passo que aqueles com níveis inicialmente mais baixos tende­ram a se beneficiar mais trabalhando com as forças mais altas (Proyer, Gander, Wellenzohn, & Ruch, 2015).

Atualmente, a partir de pesquisas, concluiu-se que trabalhar com qualquer força é benéfico quando o indivíduo pratica ações positivas para melhorar a si mesmo. Embora isso não tenha sido muito estudado, é razoável acreditar que trabalhar com as forças de assinatura seja superior a trabalhar com as forças mais baixas em longo prazo. pois as forças do topo são mais reforçadoras e energizantes e levam o indivíduo a sentir-se mais autêntico do que tentar construir uma força que pode esgotar a energia ou não ser tão motivadora internamente. [84]  

Porque e como as forças de caráter funcionam?

Após determinar o sucesso de uma prática, uma próxima pergunta natural, é adquirir um melhor entendimento das razões pelas quais a prática foi bem-sucedida. Em termos práticos, é provavelmente óbvio para a maioria que, se uma pessoa torna-se impossibilitada de expressar suas forças de assinatura, em breve, sentirá um sentimento de vazio (por exemplo, Escandón, Martinez & Flaskerud, 2016), mas é importante compreender também essa questão da perspectiva científica. Quais são os mecanismos de ação que ajudam a explicar o sucesso da intervenção? Alex Linley e sua equipe levaram adiante essa investigação e encontraram evidência inicial para apoiar as razóes por que a utilização das forças de assinatura está associada ao bem estar (Linley et al, 2010). Eles constataram que empregar as forças de assinatura está relacionado ao progresso das metas da pessoa e à satisfação das necessidades psicológicas básicas de autonomia, afinidade e competência, ou seja, os elementos essen­ciais da teoria da autodeterminação (Deci & Ryan, 2000). Isso cria um sentido bom e prático: as forças de assinatura surgem naturalmente em nós e são a expressão de quem somos. Portanto, quando permitimos que nossa parte es­sencial seja expressa, estamos satisfazendo as necessidades básicas humanas que têm a ver com fazer conexões em nossos relacionamentos e realizar, tanto quanto podemos, nessa vida. O sucesso com as metas flui naturalmente com isso. Como resultado, experimentamos maior felicidade. Essa explicação, en­tretanto, é apenas parcial.

Em outro estudo, a utilização das forças de assinatura elevou os indivíduos a uma “paixão harmoniosa”, que se refere a indivíduos que realizam atividades escolhidas livremente e sem limitações, as quais são altamente importantes e parte da identidade do indivíduo. A paixão harmoniosa levou, então, a maior bem-estar (Forest et al., 2012). A autoestima tem sido outro mecanismo que
vincula as forças de caráter com a satisfação na vida (Douglass & Duffy, 2015). Quinlan, Swain e Vella-Brodrick (2011) sugerem uma variedade de outros mecanismos pelos quais as forças de caráter podem influenciar o bem-estar.

Eles observam a distinção dos efeitos que estão “entre nós” (isto é, sociais), dos que estão “em nós” (isto é, pessoais), e criam hipóteses sobre os seguintes mecanismos:

  • As forças aumentam nosso esforço e perseverança, portanto, aumen­tam o bem-estar (Dweck, 1986). [85]
  • As forças aumentam a satisfação nos relacionamentos (Gable, Reis, impett, & Asher, 2004).
  • As forças ajudam os indivíduos a superar a adaptação hedônica (Diener. Lucas, & Scollon. 2006).

A autoconcordância é outra explicação ou mecanismo envolvido. Os cien­tistas constataram que há muitos benefícios em se traçar e alcançar metas e ter progresso em direção às metas (Miller & Frisch, 2009; Sheldon & Elliot, 1999; Sheldon & Houser-Marko, 2001). Mais especificamente, quando traça­mos uma meta que está alinhada com nossos valores e interesses, isso é cha­mado de metas autoconcordantes. As pesquisas mostram que experimentamos maior felicidade quando alcançamos uma meta autoconcordante, em vez de alcançarmos uma meta que não seja consistente com quem somos (Sheldon & Kasser, 1998). Valorizamos claramente nossas forças de assinatura e senti­mos energia e alegria ao expressá-las, portanto, alinhar metas e forças é uma maneira de ter mais sucesso ao criar a vida que queremos viver.

Em outro estudo, que constatou benefícios significativos para a utilização das forças de assinatura de novas maneiras, comparado ao placebo padrão, Mongrain e Anselmo-Matthews (2012) sugerem que o acesso do indivíduo à informação autorrelevante e positiva pode ser o mecanismo que explica os benefícios dessa intervenção. Wellenzohn, Proyer e Ruch (2016b) examinaram a força de caráter do humor em um estudo de intervenção que mostrou um aumento da felicidade e diminuição da depressão e estudaram alguns mecanis­mos diferentes: eles constataram que houve mudança da atenção em direção ao positivo nas intervenções voltadas para o presente e o futuro, e houve savoring das emoções positivas nas intervenções voltadas para o passado e o presente.

No contexto organizacional, o afeto positivo foi um mediador que explicou a conexão entre a utilização das forças de assinatura e uma variedade de resul­tados no ambiente de trabalho, tais como engajamento, significado, satisfação e desempenho no trabalho, comportamento de cidadania organizacional e comportamentos contraprodutivos no trabalho (Littman-Ovadia et al. 2016). Em outro estudo, o afeto positivo mostrou ser um mediador para a utilização das forças de caráter e bem-estar no trabalho (Meyers & van Woerkom, 2016).

De modo semelhante, em outro estudo, as emoções positivas e o engajamento explicaram a conexão entre a utilização das forças de caráter no trabalho e a [86] produtividade, comportamento de cidadania organizacional e satisfação no trabalho (Lavy & Littman-Ovadia, 2016). Esse mecanismo de afeto positivo, assim como outros mecanismos discutidos anteriormente, como o acesso às qualidades positivas internas e a definição de metas, tem forte associação com a teoria de expandir e construir de Barbara Fredrickson (2001), conforme originalmente aplicada às emoções positivas. Essa teoria afirma que as emo­ções positivas expandem o repertório de potenciais de ações no presente e constroem recursos para o indivíduo no futuro. Esse processo cria uma espiral ascendente de bem-estar (Fredrickson & loiner, 2012). Talvez as forças de caráter, especialmente se vistas pela perspectiva dos traços como distribuições de densidade dos estados emocionais (Fleeson, 2001), possam ser considera­das do ponto de vista da teoria do expandir e construir. Isso significa que as forças estão conectadas ao bem-estar porque expandem as possibilidades para a ação ótima no momento e, simultaneamente, constroem nossos recursos pessoais para ação posterior.

Em um estudo que examinou as relações (moderadores) da utilização das forças de assinatura, nível das forças de assinatura, chamado na vida e satis­fação na vida, os indivíduos com baixo chamado e altos níveis de forças de caráter tiveram a conexão mais forte entre a utilização das forças de assinatura e satisfação na vida (Allan & Duffy, 2013). Um achado-chave nesse estudo foi que o emprego das forças de assinatura é particularmente importante para aqueles com baixo significado e propósito.

No estudo de intervenção mais longo já realizado na psicologia positiva, Proyer, Wellenzohn et al. (2014) examinaram as conexões entre várias inter­venções positivas (por exemplo, forças de assinatura de novas maneiras, três coisas boas) e o tipo de intervenção adequado à pessoa, para predizer felicidade/depressão. Eles pretendiam examinar sob quais condições as forças de assinatura e outras intervenções positivas funcionam melhor em longo prazo. Com base no conceito de Lyubomirsky e Layous (2013) do melhor ajuste en­tre pessoa-atividade, Proyer e colegas constataram que os quatro elementos seguintes foram particularmente importantes como preditores da felicidade/depressão três anos e meio depois da intervenção:

  • Prática continuada. A continuação voluntária da prática além do tem­po designado (como observado de modo fortuito por Seligman et al., 2005). A prática continuada ajuda a facilitar o desenvolvimento de um hábito (Lyubomirksy, Sheldon, & Schkade, 2005). [87] 
  • Esforço. Como as pessoas trabalham com a intervenção, se completam mais, ou se menos, no tempo orientado.
  • Preferência. Se a pessoa gosta ou percebe os benefícios da intervenção (uma importante variável encontrada em um estudo de preferências de Schueller, 2010).
  • Reatividade precoce. Como as pessoas reagem à intervenção. Elas mostram uma resposta rápida, como um aumento imediato das emoções positivas?

Eles constataram que a combinação desses quatro indicadores foi muito bem-sucedida para prever a felicidade e a depressão em longo prazo. Eles explicaram que “a maneira como as pessoas pensam sobre as intervenções de psicologia positiva, a maneira como trabalham com elas, e a maneira como rea­gem a elas desempenha um papel na predição do bem-estar, posteriormente"
(Proyer, Wellenzohn et al., 2014, p. 14). São esses elementos do ajuste entre a pessoa e a intervenção que contribuem para os benefícios em longo prazo.

Como está provavelmente claro, há um número de fatores que explica a relação entre forças de caráter e bem-estar. Cada um desses nos fornece expli­cações mais profundas sobre a razão de a utilização das forças, especialmente das forças de assinatura, ser uma intervenção bem-sucedida. A medida que o mecanismo torna-se mais claramente compreendido, é provável que os achados alinhem-se à tendência natural que os seres humanos têm de desenvolver suas capacidades essenciais, de utilizar seus potenciais naturais e de se tornar tudo aquilo que podem ser (Buckingham & Clifton, 2001; Linley & Harring­ ton, 2006). Linley e Harrington (2006, p. 42), em seus argumentos para pro­moção do coaching baseado nas forças, resumem a base histórica substancial na qual as abordagens baseadas nas forças se apoiam:

E, mais fundamentalmente, uma abordagem baseada nas forças é solidamente alicer­çada no estabelecimento da aprendizagem e abordagens psicológicas que remetem à linhagem de Aristóteles, passando por Carl Jung, Karen Horney e Carl Rogers, até as abordagens do coaching moderno de Whitmore e Gallwey, integrando-se finalmente com a definição da psicologia do coaching, que agora sustenta os desenvolvimentos e a direção dessa nova disciplina.

Questões-chave no trabalho com as forças de assinatura

Esta seção analisa os importantes tópicos que os praticantes devem consi­derar com atenção, que estão relacionados à expressão das forças de caráter, [88] e começa a se aprofundar explorando o "como" do trabalho com as forças de aaainatura. Há multas formas de trabalhar com as forcas de carater, como você lerá a respeito em cada capitulo desta obra. Esta seção destaca algumas ideias essenciais para ajudá-Io a começar a explorar suas próprias forças de assinatura e aquelas de seus clientes.

Tipos do cegueira das forças

A fim de aprofundar a compreensão e apreciação das forças de assinatura, é importante primeiro considerar o conceito e o problema da cegueira das forças. ... Niemiec (2014a) apresentou quatro categorias de cegueira das forças, que são apresentadas em ordem de grau de desconhecimento, começando com o que é mais provável de representar ao menos conhecido.

  1. Desconhecimento geral dos forças

Essa categoria reflete uma falta generalizada de autoconsciência ou desconexão da pessoa com quem ela é (identidade). Muitas pessoas têm dificuldades de reconhecer suas forças (Linley & Harrington, 2006). Não é incomum encontrar  indivíduos que ficam atônitos, como um cervo sob a luz dos faróis, quando lhes perguntam quais são suas forças em uma entrevista de trabalho ou em uma primeira sessão de coaching ou psicoterapia. Alguns desses indivíduos não são reflexivos e não têm compreensão psicológica de si e de outros, enquanto outros simplesmente nunca pensaram sobre o assunto de “suas forças". Pessoalmente, continuo a sentir uma onda de tristeza quando pergunto a um cliente quais são suas forças e ele diz: “Não sei” ou “Não tenho nenhuma” e olha para baixo, para seus sapatos. Infelizmente, essa tem sido uma resposta muito comum.

  1. Desconexão com um significado

Pesquisas com questionários têm mostrado que apenas um terço das pessoas tem consciência significativa de suas forças (Linley, 2008), apesar de haver razões para acreditar que esse número cresça no contexto do trabalho (McQuaid & VIA Institute on Character, 2015). Alguns indivíduos apresentam uma resposta superficial à pergunta geral sobre nomear suas melhores forças, mas a resposta deles não é substanciosa. As respostas são vagas (por exemplo: “Tenho boas qualidades”), ou confundem forças de caráter com outros domínios de [89] forças, como um Interesse (por exemplo, "Gosto de ouvir música”), e talento/ habilidade (por exemplo, *Sou bom em futebol”). Uma pessoa pode dizer que tem desempenho melhor que a média em bascbol recreativo, no entanto, é o caráter que faz a conexão com o significado e a substância. Nesse exemplo, são as forças da perseverança, trabalho em equipe e autocontrole no campo de basebol que começam a nos dizer algo sobre as forças desse indivíduo.

  1. Ver as forças como ordinárias em vez de extraordinárias

As vezes, os indivíduos minimizam ou desvalorizam suas forças, ou são indi­ferentes sobre terem forças (Biswas-Dicner et al., 2011). Nesses casos, o indiví­duo responde ao Questionário VIA e reage com uma resposta do tipo “Sim, eu já sabia disso, não é nada demais”. Esse tipo de indiferença é uma bandeira ver­melha para a cegueira das forças. Pode ser verdade que a pessoa teria um palpite sobre quais são suas forças mais altas, mas esse não é o ponto. É provável que o indivíduo não esteja apreciando seu engajamento em algo que tem o potencial de ser um trampolim para muitos resultados positivos, como conhecer suas pró­prias metas pessoais. Em vez de ter um mindset de crescimento e curiosidade, eles veem a si mesmos com um mindset fixo. Eles passam por cima de seus tra­ços essenciais e não fazem conexões ativas entre as forças e suas experiências, não se engajam na conversa sobre forças no momento, e não fazem brainstorm para buscar ativamente maneiras de crescer com a expressão das forças.

A subutilização das forças é um fenômeno que provavelmente fundamenta cada uma das três categorias mencionadas. Acredito que todas as pessoas uti­lizam pouco suas forças periodicamente. Em outras palavras, 100% de nós te­mos pontos cegos sobre nosso autoconhecimento acerca das forças de caráter. Há sempre novas abordagens, ajustes, utilização e perspectivas que podem ser considerados quando se trata da utilização das forças, especialmente ao se incorporar o mindset de crescimento com as forças de assinatura (Dweck, 2006). Um dado indivíduo pode estar cego para utilizar uma de suas forças em certo contexto ou situação particular, cego a respeito de como uma força pode estar presente, mas disfarçada, ou não estar consciente de como suas forças se apresentam nas rotinas diárias, ao surgirem estressores, ou ao traba­lhar em direção a uma meta específica. Nesse sentido, é provavelmente justo dizer que a maioria das pessoas poderia beneficiar-se de maior mindfulness ao compreender e aplicar suas forças de caráter. [90] 

  1. A superutilizaçâo das forças

A superutilizaçâo das forças de caráter é um quarto tipo especial de ce­gueira. Ela ocorre quando um individuo emprega sua(s) força(s) de maneira muito forte em uma situação específica. Uma pessoa pode expressar tanta curiosidade que se torna intrometida, ou tanta liderança que parece contro­ladora. Frequentemente, a superutilizaçâo das forças tem um impacto nos relacionamentos, e o indivíduo que está superutilizando não está consciente (ou seja, cego) desse impacto ou pelo menos da extensão do impacto. Outras vezes, o indivíduo pode estar cego a respeito do que fazer sobre seu pesado es­forço de prudência no trabalho, ou da superutilizaçâo da humildade que deixa sua individualidade de lado.

Uma maneira de trabalhar com cada um dos tipos de cegueira das forças é integrar mindfulness e forças de caráter. O cultivo de mindfulness para melho­rar a utilização das forças de caráter é chamado de “utilização consciente das forças”, e a utilização das forças de caráter para promover uma prática de mind­fulness é referida como “mindfulness forte” (Niemiec, 2012; Niemiec, Rashid, & Spinella, 2012). O programa personalizado, chamado prática das forças ba­seada em mindfulness (mindfulness-based strengths practice - MBSP), para in­tegrar e melhorar ambos os fenômenos, tem mostrado resultados promissores (Ivtzan, Niemiec, & Briscoe, 2016; Niemiec, 2014a; Niemiec & Lissing, 2016).

A principal ideia desta seção é que a cegueira das forças pode ser disse­minada. Aqui está um exemplo: um de meus filhos apresenta alguns atrasos no desenvolvimento e está muito atrás de seus colegas para engatinhar e an­dar. Ele foi a vários especialistas e praticantes de intervenção precoce para receber auxílio. Passei muitas horas conversando com esses ajudantes, com membros da família e outros sobre o que deveríamos fazer e as estratégias para chegar lá. Expressei preocupação, de forma rotineira, sobre os atrasos no desenvolvimento e o impacto potencial em seu cérebro em desenvolvimento e relacionamentos sociais. Em uma de minhas discussões com a colaboradora de uma creche, a respeito da minha agenda para a equipe manter uma série de estratégias na tentativa de fazê-lo engatinhar, ela fez o seguinte comentário: “Ele está se movimentando para todos os lugares! Ele está conseguindo chegar onde precisa ir. Apesar de não engatinhar, ele está se movendo muito bem! Ele vê um brinquedo ou um grupo de crianças do outro lado da sala onde [91] quer chegar e vai até tá”. Foi aí que percebi. Meu filho já estava expressando diversas forças e enfrentando as dificuldades no desenvolvimento relacionadas a exploração, curiosidade e mobilidade de causa e efeito, indo do ponto A ao ponto B. Eu não estava sabendo - ou pelo menos valorizando - esse fato, que estava bem à minha frente! Estava mais entrincheirado em uma abordagem de deficiência, gastando meu tempo e recursos no que ele não estava fazendo ou no que ele deveria estar fazendo, em vez de estudar e celebrar o que ele estava fazendo (e fazendo muito bem). Seus deslocamentos - embora muito menos tradicionais do que os da maioria das crianças - foi algo que ele construiu. Essa conversa levou-me imediatamente para o modo savoring. Saboreei seus deslocamentos, sabendo que ele iria em breve superar esse estágio interes­sante e maravilhoso. Criei oportunidades para ele praticar esses movimentos, o que encheu meu coração de alegria (e meu celular de vídeos). Não ignorei os aspectos baseados no problema, em vez disso construi sobre eles, em vez de paredes os problemas tornaram-se um trampolim. Naquela situação, essa colaboradora ajudou-me a interromper minha cegueira das forças. [92]

O paradoxo das forças

Existe um paradoxo interessante no trabalho com as forças. Por um lado, os indivíduos tendem a não estar muito sintonizados com suas melhores qua­lidades na maior parte do tempo. Portanto, as forças são facilmente ignoradas, esquecidas e tratadas como comuns. Por outro lado, quando os indivíduos estão dispostos a explorar suas melhores qualidades, rapidamente encontram as forças em suas histórias e conversas com outros. Em geral, é fácil falar sobre forças de caráter e identificar-se com elas, e até mesmo as complexida­des sobre as forças são facilmente compreendidas se aos indivíduos é dada a oportunidade. Isso foi mostrado em um estudo que explorou as forças de caráter VIA com estudantes do ensino médio (Steen, Kachorek, & Peterson, 2003). Até mesmo crianças muito pequenas podem facilmente compreender cada uma das 24 forças quando se dedica tempo para ensiná-las (Fox Eades, 2008). E os praticantes que lideram discussões sobre forças com os clientes - mesmo aqueles muito deprimidos ou desengajados - percebem que esses se interessam e se engajam. É como se uma nova porta fosse aberta, permitindo ao cliente ver as coisas de uma nova maneira.

Denomino essa discrepância, entre o desconhecimento das forças e o alto potencial para sua utilização, de “paradoxo das forças”. Os praticantes po­dem aprender a utilizar o paradoxo das forças em seu favor. Nossas forças de assinatura parecem ser, em grande parte, pré-conscientes (para roubar um termo de Freud de um século atrás). É como se nossas forças de assinatura e as conversas sobre forças estivessem esperando para serem exploradas bem abaixo do conhecimento consciente. Isso significa que há um grande potencial para todo cliente romper com seus pontos cegos, mover-se além da superfície de sua consciência e deixar a qualidade positiva fluir.

Tenho me referido às forças de assinatura como um verdadeiro “divisor de águas”, especialmente quando trabalho com clientes (Niemiec, 2014a). As forças de assinatura ajudam os praticantes a preencher a lacuna do paradoxo das forças. Em todo evento esportivo há, com frequência, um momento em que a dinâmica muda em favor de um time, mobilizando a energia, o traba­lho em equipe, a liderança e impulsionando aquele time rumo à vitória. Isso pode ser um grito arrebatador de um jogador, um roubo defensivo, um gol de placa, ou um esforço abrupto. As forças de assinatura podem ser esse divisor [93] cegos. Portanto, quando as forças são trazidas para a atenção deles, há com frequência uma reação do tipo "Ah sim, é claro!",

Além da consciência dos forças de caráter

Não há praticamente discordância entre nenhum dos líderes da psicologia das forças e do couching de forças de que conhecer as próprias forças de as­sinatura seja importante e necessário para o bem-estar (Biswas-Diener et al., 2011; Buckingham & Clifton, 2001; Cooperrider & Whitney, 2005; Duttro, 2003; Forster, 2009; Kauffman, Silberman, & Sharpley, 2008; Linley, 2008; Lopez, 2008; Madden et al., 2011; Niemiec, 2012; Peterson, 2006a; Proctor & Fox Eades, 2011; Rashid, 2009; Rath, 2007; Seligman et al., 2005). E é notável que alguns têm relatado benefícios em apenas identificar suas forças de caráter com o Questionário VIA, em uma variedade de populações (por exemplo, Kobau et al., 2011; Seligman et al., 2005; Sims, Barker, Price, & Fornells-Ambrojo, 2015).

Todavia, conhecer as próprias forças é provavelmente necessário, mas não é o suficiente para resultados particularmente importantes, tal como o florescimento humano. É a expressão das forças de caráter que parece promover benefícios substanciais. E está se tornando mais claro que as forças de caráter podem ser desenvolvidas deliberadamente (por exemplo, Biswas-Diener et al., 2011; Louis, 2011; Seligman et al., 2005).

As pesquisas têm corroborado importantes benefícios da utilização das forças de caráter como diferentes de apenas ter consciência (Littman-Ova- dia & Steger, 2010). Isso tornou-se mais claro em um estudo que mencionei anteriormente - com uma amostra representativa de colaboradores da Nova Zelândia, de Lucy Hone e colegas (2015), que examinaram a consciência das forças, a utilização das forças e os níveis de florescimento. Esses pesquisa­dores constataram que os colaboradores que estavam altamente conscientes de suas forças foram nove vezes mais propensos a florescer do que os que não estavam conscientes delas, mas aqueles que relataram alta quantidade na utilização das forças foram 18 vezes mais propensos a florescer do que os que relataram quantidade muito baixa na utilização das forças. Embora esses números não signifiquem que o conhecimento ou a utilização das forças cause o florescimento nessas taxas, é interessante ver as distinções não apenas entre a consciência das forças e o desconhecimento das forças, mas também entre a consciência das forças e sua utilização. [94] 

Muitas pessoas que respondem ao Questionário VIA reconhecem isso ao examinar seu perfil de forças de caráter e, ao acumular alguma autoconsciência sobre suas forças, deparam-se com a utilidade prática de seu uso, dizendo: “Tudo bem, respondi ao Questionário VIA, e agora o que faço?"

Muitos praticantes caem na armadilha da abordagem simplista do trabalho com as forças e “pulam” imediatamente do “identificar” para o “utilizar", o que é geralmente insuficiente como abordagem (Biswas-Diener et al., 2011). Niemiec (2013) notou que há um passo básico, mas crucial, que tais pratican­tes perdem, e que ocorre depois de identificar as forças e antes de estabelecer um plano de ação - ajudar o cliente a explorar suas forças.

Dois conceitos gerais são cruciais quando se trabalha com as forças de caráter: a) priorizar as forças de assinatura e b) todas as 24 forças importam. Ajudar o cliente a focar, sintonizar-se e dominar suas forças de assinatura em vários contextos provavelmente lhe dará mais benefícios e mais flexibilidade para alcançar suas metas. Ao mesmo tempo, os clientes preci­sam ser lembrados de que têm muitas forças que podem ser desenvolvidas e utilizadas. Para um cliente novo no mundo das forças ou novo em colocar os “óculos das forças”, pode ser intimidante - se não impossível - tentar focar ou construir todas as 24 forças. Dessa forma, é geralmente melhor começar por onde eles sentem-se energizados e entusiasmados e podem expressar-se natu­ralmente (forças de assinatura), e, depois, partir desse ponto. Considerando isso, muitas pessoas ao longo dos tempos têm sistematicamente passado pelas principais virtudes ou forças tentando construí-las uma a uma. O estadista norte-americano do século XVIII, Benjamin Franklin (1962), escreveu sobre como monitorou, manteve um diário, discutiu e tentou melhorar várias virtu­des, focando em uma virtude diferente a cada semana.

As pessoas às vezes acham surpreendentemente desafiador descobrir novas maneiras de utilizar uma de suas forças de assinatura. Isso acontece porque não temos prática em utilizar nossas forças e, quando as utilizamos, fazemos isso sem muita conscienciosidade. Por exemplo, você tem prestado bastante atenção em sua força de autocontrole enquanto se veste? Em seu nível de prudência ou bondade ao dirigir? Em sua humildade durante uma reunião de equipe? [95]

Como utilizar as forças de assinatura de novas maneiras

À medida que as pesquisas sobre a utilização das forças de assinatura de novas maneiras tornam-se sólidas e continuam a expandir-se, os praticantes e clientes ficam ansiosos para empregá-las. Por isso, apresento aqui quatro estratégias: comportamentos simples, ancoragem, mapeamento dos contextos e mapeamento holistico.

Essas dicas práticas, algumas das quais menciono na obra Character streng­ths matter (Polly & Britton, 2015), ajudarão você e seus clientes a desenvolver suas forças de caráter e tornarão esse exercício mais prático, fácil de fazer e até mesmo revigorante. Os leitores podem desejar retornar à Tabela 1.2 no Capítulo 1 para revisar exemplos de “pequenos" usos das forças no dia a dia que ofereci para cada uma das 24.

 

Comportamentos simples

Para iniciar, muitos praticantes e clientes acham útil começar com uma lista dos comportamentos das forças de assinatura. A Tabela 2.1 inclui duas idéias para a utilização de cada força de caráter de uma nova maneira. [96]

Tabela 2.1 - Utilizando as forças de assinatura de novas maneiras

Ancoragem

Ancore as forças de assinatura a uma atividade diária que você já faz. O que você faz todos os dias que faz parte de sua rotina? Dirigir, preparar o almoço, participar de uma reunião, de escrita criativa, brincar com seus filhos, relaxar com seu cônjuge, enviar e-mails para amigos. Comece escolhendo uma dessas atividades de rotina, e comprometa-se a utilizar uma ou mais de suas forças de assinatura durante aquela atividade. Por exemplo, se você ancorar a imparciali­dade à conversa com seu cônjuge, poderá, conscientemente, assegurar-se de lhe permitir uma quantidade igual de tempo para que ele compartilhe sobre seu dia e que escolha a atividade relaxante para vocês dois realizarem juntos. Se você an­corar a bondade ao dirigir, poderá, de forma deliberada, encontrar uma ou duas maneiras em cada viajem de ser sensível às necessidades potenciais de outros mo­toristas, e sair de seu caminho para sorrir/acenar para eles e dirigir com cuidado.

Mapeamento do contexto

Quando considerar os principais domínios de sua vida - trabalho, escola, família, relacionamentos, comunidade - tome nota do grau em que você ex­pressa, confortavelmente e regularmente, todas as suas forças de caráter em cada domínio. Muitas pessoas acham que há uma lacuna no grau em que expressam uma força em um ou dois domínios, em comparação a outros domí­nios. Gere alguns exemplos da expressão de suas forças de caráter, escrevendo sobre como você utiliza suas forças do topo em cada domínio. Em que domí­nios sua escrita é mais fluida e rica? Em que domínios você tem dificuldades de pensar em exemplos? Permita a cada domínio informar outros ao gerar mais e mais idéias sobre como utilizar suas forças de assinatura de novas maneiras. [99]

Mapeamento holístico

Originalmente baseadas no modelo de dois fatores de Peterson (2006a), as forças de caráter foram mapeadas em duas continuas (VIA Institute. 2014): forças que são do coração (por exemplo, sentimento, corpo, emoção, intuição), ou da cabeça (por exemplo, lógica, análise, raciocínio), e forças que são mais in­terpessoais (com outros), ou intrapessoais (quando se está sozinho). A Figura 2.1 retrata o gráfico circumplexo da classificação VIA, denominado “gráfico do equilíbrio de dois fatores” dos dados analisados por Robert MacGrath, em 2014 (veja também um relatório de amostra com o mapeamento circumplexo em http://www.viacharacter.org/www/ Portals/O/VIA%20Pro%20Report,pdf).

Mapear cada força de assinatura em quatro aspectos é ainda outra maneira de expandir seus pensamentos e ações sobre como você pode utilizar suas forças de assinatura. Isso permite uma visão mais completa e holística de si mesmo e serve para acionar a potencialidade de cada força de caráter. Veja a Tabela 2.2 para um exemplo da utilização da força de gratidão. [100]

Tabela 2.2 - Mapeamento holístico da força de gratidão.

 

Psicologia - Psicologia positiva
10/30/2020 1:34:25 PM | Por Gregory J. Feist
Teoria centrada na pessoa, pressupostos básicos

Ainda que o conceito de humanidade de Rogers tenha per­manecido basicamente inalterado desde o início da década de 1940 até sua morte, em 1987, sua terapia e teoria pas­saram por várias mudanças de denominação. Durante os primeiros anos, sua abordagem era conhecida como “não diretiva”, um termo infeliz que permaneceu associado ao nome dele por muito tempo. Depois, sua abordagem foi denominada, com variações, como “centrada no cliente", “centrada na pessoa”, “centrada no aluno”, “centrada no grupo" e “de pessoa para pessoa”. Usamos o rótulo centrada no cliente em referência à terapia de Rogers e a expressão mais inclusiva centrada na pessoa para fazer referência à teoria da personalidade rogeriana.

No Capítulo 1, referimos que as teorias claramente formuladas costumam ser expressas em uma estrutura, se-então. De todas as teorias deste livro, a teoria centrada na pessoa de Rogers é a que mais se aproxima de tal padrão. Um exemplo de uma construção se-então é: Se existirem certas condições, então ocorrerá um processo; se esse pro­cesso ocorrer, então determinados resultados poderão ser esperados. Um exemplo mais específico é encontrado na terapia. Se o terapeuta for congruente e comunicar uma consideração positiva incondicional e empatia acura­da para o cliente, então ocorrerá mudança terapêutica; se ocorrer mudança terapêutica, então o cliente experimenta­rá mais autoaceitação, maior confiança em si, e assim por diante. 

Pressupostos básicos

Quais são os pressupostos básicos da teoria centrada na pessoa? Rogers postulou dois pressupostos amplos: a ten­dência formativa e a tendência atualizante.

Tendência formativa

Rogers (1978,1980) acreditava haver uma tendência de que toda matéria, tanto orgânica quanto inorgânica, desenvol­ve-se de formas mais simples para mais complexas. Para o universo inteiro, um processo criativo, em vez de desintegrativo, está em operação. Rogers denominou esse processo [94] de tendência formativa e apontou muitos exemplos na natureza. Por exemplo, galáxias complexas de estrelas se formam a partir de uma massa menos organizada; cristais como os flocos de neve emergem do vapor informe; orga­nismos complexos se desenvolvem a partir de uma única cé­lula; e a consciência humana evolui do inconsciente primi­tivo até uma consciência (awareness) altamente organizada.

Tendência atualizante

Um pressuposto inter-relacionado e mais pertinente é a tendência atualizante, ou a tendência de todos os hu­manos (e de outros animais e plantas) a se moverem em direção à conclusão ou à realização dos potenciais (Rogers, 1959,1980). Tal tendência é o único motivo que as pessoas possuem. A necessidade de satisfazer o impulso da fome, de expressar emoções profundas quando elas são sentidas e de aceitar o próprio self são todos exemplos do motivo único da atualização. Como cada pessoa opera como um or­ganismo completo, a atualização envolve o indivíduo como um todo - nas esferas psicológica e intelectual, racional e emocional, consciente e inconsciente.

As propensões a manter e a melhorar o organismo estão incluídas na tendência atualizante. A necessidade de manutenção é semelhante aos níveis mais baixos da hierarquia de necessidades de Maslow. Ela inclui necessidades básicas como comida, ar e segurança; mas também engloba a tendência a resistir à mudança e a buscar o status quo. A natureza conservadora das necessi­dades de manutenção é expressa no desejo das pessoas de protegerem seu autoconceito confortável atual. As pessoas lutam contra idéias novas; elas distorcem experiências que não se encaixam; elas consideram a mudança dolorosa e o crescimento assustador.

Ainda que as pessoas tenham um forte desejo de man­ter o status quo, elas estão dispostas a aprender e a mudar. Essa necessidade de se tornar mais, desenvolver-se e atin­gir o crescimento é chamada de aperfeiçoamento. A ne­cessidade de aperfeiçoamento do self é vista na disposição para aprender coisas que não são imediatamente gratificantes. Além do aperfeiçoamento, o que motiva uma crian­ça a caminhar? Engatinhar pode satisfazer a necessidade de mobilidade, enquanto caminhar está associado a queda e dor. A posição de Rogers é que as pessoas estão dispos­tas a enfrentar a ameaça e a dor devido a uma tendência de base biológica do organismo para cumprir sua natureza básica.

As necessidades de aperfeiçoamento são expressas de várias formas, incluindo curiosidade, alegria, autoexploração, amizade e confiança de que é possível atingir o cresci­mento psicológico. As pessoas têm dentro de si a força cria­tiva para resolver problemas, alterar seus autoconceitos e se tornar cada vez mais autodirecionadas. Os indivíduos percebem suas experiências como realidade e conhecem
a própria realidade melhor do que qualquer outra pessoa. Eles não precisam ser direcionados, controlados, exortados ou manipulados para serem incitados à atualização.

A tendência à atualização não está limitada aos hu­manos. Outros animais e até plantas têm uma tendência inerente a crescer para atingir seu potencial genético - con­tanto que determinadas condições estejam presentes. Por exemplo, para que um pimentão atinja seu potencial produtivo completo, ele precisa ter água, luz solar e um solo nutriente. Do mesmo modo, a tendência à atualização hu­mana é realizada somente sob certas condições. De forma mais específica, as pessoas precisam estar envolvidas em um relacionamento com um parceiro que seja congruente, ou autêntico, e que demonstre empatia e consideração positi­va incondicional Rogers (1961) enfatizou que ter um parcei­ro que possui essas três qualidades não causa o movimento para uma mudança pessoal construtiva de um indivíduo. No entanto, permite concretizar a tendência inata para a autoatualização.

Rogers discutia que sempre que congruência, conside­ração positiva incondicional e empatia estiverem presentes em um relacionamento, o crescimento psicológico ocorrerá invariavelmente. Por essa razão, ele considerava essas três condições como necessárias e suficientes para um pessoa se tomar plenamente funcional ou autoatualizada. Ainda que as pessoas compartilhem a tendência atualizante com as plantas e com outros animais, somente os humanos têm um conceito de atualização.

O self e a autoatualização

De acordo com Rogers (1959), os bebês começam a desen­volver um conceito vago de self quando uma parte de sua experiência se torna personalizada e diferenciada em cons­ciência (awareness) como experiências de “eu" ou “mim”. Os bebês, aos poucos, se tornam conscientes da própria iden­tidade, conforme aprendem o que tem gosto bom e o que tem gosto ruim, o que é agradável e o que não é. Eles, então, começam a avaliar as experiências como positivas ou nega­tivas, usando como critério a tendência atualizante. Como a nutrição é um requisito para a atualização, os bebês valo­rizam a comida e desvalorizam a fome. Eles também valo­rizam o sono, o ar fresco, o contato físico e a saúde, porque cada um desses aspectos é necessário para a atualização.

Depois que os bebês estabelecem uma estrutura de eu rudimentar, sua tendência a atualizar o começa a se desenvolver. A autoatualização é um subgrupo da tendência à atualização e, portanto, não é sinônimo dela. A tendência à atualização se refere a experiências do organismo do indi­víduo; isto é, refere-se à pessoa como um todo - consciente e inconsciente, fisiológica e cognitiva. Todavia, autoatuali­zação é a tendência a atualizar o self como percebido na cons­ciência (awareness). Quando o organismo e o percebido [95] estão em harmonia, as duas tendências à atualização são quase idênticas; porém, quando as experiências do organis­mo não estão em harmonia com sua visão de self, existe uma discrepância entre a tendência à atualização e a ten­dência à autoatualização. Por exemplo, se a experiência do organismo de um homem é de raiva em relação à esposa e se a raiva pela esposa é contrária à sua percepção de self, então sua tendência à atualização e sua autoatualização são incongruentes e ele experimenta conflito e tensão interna. Rogers (1959) postulou dois subsistemas: o autoconceito e o self ideal.

O autoconceito

O autoconceito inclui todos os aspectos do ser e das ex­periências que são percebidos na consciência ( awareness ) (embora nem sempre com precisão) pelo indivíduo. O au­toconceito não é idêntico ao self do organismo. Partes do self do organismo podem ir além da consciência ( awareness ) da pessoa ou simplesmente não ser daquela pessoa. Por exemplo, o estômago faz parte do do organismo, mas, a menos que ele não funcione bem e cause preocupação, não é provável que faça parte do autoconceito do indivíduo. De forma semelhante, as pessoas podem repudiar certos aspec­tos de seu self, como experiências de desonestidade, quando tais experiências não são coerentes com seu autoconceito.
Assim, depois de formar o autoconceito a mudança e as aprendizagens significativas passam a ser consideradas muito difíceis. As experiências que são incoerentes com seu autoconceito em geral são negadas ou aceitas apenas de forma distorcida.

Um autoconceito estabelecido não torna uma mudan­ça impossível, mas apenas difícil. A mudança ocorre mais prontamente em uma atmosfera de aceitação pelos outros, o que possibilita à pessoa reduzir a ansiedade e a ameaça e tomar posse das experiências antes rejeitadas.

O self ideal

O segundo subsistema é self ideal, definido como a visão do self como a pessoa deseja que ele seja. O self ideal contém todos os atributos, geralmente positivos, que as pessoas desejam possuir. Uma grande discrepância entre o self ideal e o autoconceito indica incongruência e perso­nalidade não sadia. Os indivíduos psicologicamente sadios percebem pouca discrepância entre o seu autoconceito e o que eles, idealmente, gostariam de ser.

Consciência (awareness)

Sem consciência (awareness), o autoconceito e o self ideal não existiriam. Rogers (1959) definiu consciência (awareness) como “a representação simbólica (não necessariamente em símbolos verbais) de parte de nossa experiência” (p. 198). Ele usou o termo como sinônimo de consciência e simbolização.

Níveis de consciência (awareness)

Rogers (1959) reconheceu três níveis de consciência (awa­reness). Primeiro, alguns eventos são experimentados abai­xo do limiar da consciência (awareness) e são ignorados ou negados. Uma experiência ignorada pode ser ilustrada por uma mulher que caminha por uma rua movimentada, ativi­dade que apresenta muitos estímulos potenciais, em [196] especial visuais e sonoros. Como ela não pode prestar atenção a todos eles, muitos permanecem ignorados. Um exemplo de experiência negada pode ser uma mãe que nunca quis ter filhos, mas, a partir da culpa, ela se torna excessivamen­te solícita com eles. A raiva e o ressentimento em relação aos filhos podem ficar ocultos para ela durante anos, nunca alcançando a consciência, mas ainda fazendo parte de sua experiênda e influenciando seu comportamento conscien­te em relação a eles.

Segundo, Rogers (1959) levantou a hipótese de que al­gumas experiêndas são simbolizadas com precisão e livremen­te admitidas na autoestrutura. Tais experiências são não ameaçadoras e coerentes com o autoconceito existente. Por exemplo, se um pianista que tem total confiança em sua ha­bilidade para tocar piano escuta de um amigo que está tocan­do muito bem, ele pode ouvir essas palavras, simbolizá-las com precisão e admiti-las livremente em seu autoconceito.

Um terceiro nível de consciência ( awareness ) envolve experiêndas que são percebidas de forma distorcida. Quan­do nossa experiência não é coerente com nossa visão de self, remodelamos ou distorcemos a experiência de modo que ela possa ser assimilada ao autoconceito existente. Se o pianista talentoso ouvisse de um rival sem credibilidade que está tocando muito bem, ele reagiria de forma muito diferente do que quando escutou as mesmas palavras de um amigo confiável. Ele pode ouvir os comentários, mas distorcer seu significado porque se sente ameaçado. “Por que essa pessoa está tentando me bajular? Isso não faz sentido." Suas experiências são simbolizadas de forma imprecisa na consciência ( awareness ) e assim pode ser distorcidas para que se enquadrem em um autoconceito existente, que em parte diz: “Sou uma pessoa que não con­fia em meus competidores que tocam piano, especialmente aqueles que estão tentando me enganar”.

Negação das experiências positivas

O exemplo do pianista talentoso ilustra que não são apenas as experiências negativas ou depreciativas que podem ser distorcidas ou negadas; muitas pessoas têm dificuldade em aceitar elogios genuínos e feedback positivo, mesmo quan­do merecidos. Uma estudante que se sente inadequada, mas que tira uma nota alta, pode dizer a si mesma: “Sei que esta nota deve ser evidência de minha capacidade escolar, mas, de alguma forma, simplesmente não me sinto assim. Essa matéria é a mais simples do campus. Os outros alunos nem se esforçaram. Minha professora não sabia o que es­ tava fazendo”. Elogios, mesmo aqueles feitos de forma ge­nuína, raras vezes causam influência positiva no autocon­ceito do destinatário. Eles podem ser distorcidos porque a pessoa não confia em quem os fez ou podem ser negados porque o destinatário não se sente merecedor deles; em to­dos os casos, um elogio do outro também implica o direito daquela pessoa de criticar ou condenar, e, assim, o elogio traz consigo uma ameaça implícita (Rogers, 1961).

Tornar-se pessoa

Rogers (1959) discutiu o processo necessário para se tor­nar uma pessoa. Primeiro, um indivíduo precisa fazer con­tato - positivo ou negativo - com outra pessoa. Tal contato é a experiência mínima necessária para tornar-se uma pes­soa. Para sobreviver, um bebê precisa experimentar algum contato com um dos pais ou com outro cuidador.

Quando as crianças (ou os adultos) adquirem consciên­cia de que outra pessoa tem alguma medida de considera­ção por elas, começam a valorizar a consideração positiva e a desvalorizar a consideração negativa. Ou seja, o indiví­duo desenvolve uma necessidade de ser amado, estimado ou aceito por outra pessoa, uma necessidade à qual Rogers (1959) se referiu como consideração positiva. Se percebe­mos que os outros, especialmente os significativos, impor­tam-se, prezam-nos ou valorizam-nos, nossa necessidade de receber consideração positiva é, pelo menos em parte, satisfeita.

A consideração positiva é um pré-requisito para a autoconsideração positiva, definida como a experiência de prezar ou valorizar a si mesmo. Rogers (1959) acreditava que receber consideração positiva dos outros é necessário para a autoconsideração positiva; porém, depois que a autoconsideração positiva está estabelecida, ela se torna inde­pendente da necessidade contínua de ser amado. Essa con­cepção é muito semelhante à noção de Maslow de que precisamos satisfazer nossas necessidades de amor e pertencimento antes que as necessidades de autoestima possam se tornar ativas, mas, depois que começamos a nos sentir confiantes e valorizados, já não precisamos de rea­bastecimento de amor e aprovação dos outros.

A fonte de autoconsideração positiva, portanto, reside na consideração positiva que recebemos dos outros; toda­via, depois de estabelecida, ela é autônoma e autoperpetuada. Como Rogers (1959) afirmou, a pessoa, então, "se transforma, em certo sentido, no próprio outro social significativo” (p. 224).

Obstáculos à saúde psicológica

Nem todos se torram uma pessoa psicologicamente sadia. Ao contrário, a maioria dos indivíduos experimenta con­dições de valor, incongruência, defesas e desorganização.

Condições de valor

Em vez de receber consideração positiva incondicional, a maioria das pessoas recebe condições de valor, isto é, elas percebem que seus pais, pares ou parceiros as amam e as aceitam somente se elas atenderem as expectativas e a aprovação desses indivíduos. “Uma condição de valor surge quando a consideração positiva de uma pessoa sig­nificativa é condicional, quando o indivíduo sente que, em alguns aspectos, ele é valorizado e, em outros, não” (Rogers, 1959, p. 209). [197]

As condições de valor se tornam o critério pelo qual acei­tamos ou rejeitamos nossas experiências. De forma gradual, assimilamos a nossa autoestrutura as atitudes que percebe­mos que os outros expressam em relação a nós e, com o tem­po, começamos a avaliar as experiências sobre essas bases.

Se vemos que os outros nos aceitam de modo independen­te de nossas ações, então passamos a acreditar que somos valorizados incondicionalmente. Porém, se percebemos que alguns de nossos comportamentos são aprovados e outros desaprovados, então vemos que nosso valor é condicional.

Por fim, podemos vir a acreditar nessas avaliações dos outros que são coerentes com nossa visão negativa de self, ignora­mos nossas percepções sensoriais e viscerais e, aos poucos,  nos afastamos de nosso self real. Desde o início da infância, a maioria de nós aprende a desconsiderar as próprias avaliações organísmicas e a olhar para além de nós, buscando direção e orientação. Confor­me introjetamos os valores dos outros, isto é, aceitamos condições de valor, tendemos a ser incongruentes ou fora de equilíbrio. Os valores das outras pessoas podem ser as­similados somente de forma distorcida ou com o risco de criar desequilíbrio e conflito no self.

Nossas percepções da visão que as outras pessoas têm de nós são denominadas avaliações externas. Essas avaliações, sejam elas positivas ou negativas, não estimu­lam a saúde psicológica, mas, ao contrário, impedem de sermos completamente abertos às próprias experiências. Por exemplo, podemos rejeitar experiências prazerosas porque acreditamos que outras pessoas não as aprovam. Quando nossas experiências têm descrédito, distorcemos nossa consciência (awareness) delas, consolidando, assim, a discrepância entre nossa avaliação organísmica e os valo­res que introjetamos dos outros. Em conseqüência, experi­mentamos incongruência (Rogers, 1959).

Incongruência

Já vimos que organismo e self são duas entidades sepa­radas que podem ou não ser congruentes entre si. Vimos também que atualização refere-se à tendência do organis­mo a avançar para a realização, enquanto autoatualização é o desejo do self percebido de atingir a realização. Essas duas tendências são, por vezes, variação uma da outra.

O desequilíbrio psicológico começa quando não re­conhecemos nossas experiências organísmicas como ex­periências próprias, ou seja, quando não simbolizamos com precisão as experiências do organismo na consciência (awareness), porque elas parecem incoerentes com nosso autoconceito emergente. Tal incongruência entre nosso autoconceito e nossa experiência organísmica é a fonte dos transtornos psicológicos. As condições de valor que rece­bemos durante o início da infância conduzem a um auto­ conceito um tanto falso, fundamentado em distorções e negações. O autoconceito que emerge inclui percepções vagas que não estão em harmonia com nossas experiências organísmicas, e essa incongruência entre o self e a expe­riência leva a comportamentos discrepantes e aparente­mente incoerentes. Às vezes, as pessoas se comportam de formas que mantêm ou aumentam a tendência atualizante e, outras vezes, de uma maneira concebida para manter ou aumentar um autoconceito fundamentado nas expectati­vas e nas avaliações que outros indivíduos têm sobre elas.

Vulnerabilidade. Quanto maior a incongruência entre self percebido (autoconceito) e a experiência organísmica, mais vulnerável a pessoa está. Rogers (1959) acreditava que as pessoas são vulneráveis quando não estão cons­cientes da discrepância entre o organismo e a expe­riência significativa. Não tendo consciência (awareness) da incongruência, as pessoas vulneráveis com frequência se comportam de formas que são incompreensíveis não ape­nas para os outros, mas também para elas mesmas.

Ansiedade e ameaça. Mesmo havendo vulnerabilidade quando não temos consciência (awareness) da incongruência dentro de nosso self, ansiedade e ameaça são experimenta­das quando tomamos consciência (awareness) de tal incon­gruência. Quando temos vagamente a consciência de que a discrepância entre nossa experiência organísmica e nosso autoconceito pode se tornar consciente, sentimos ansieda­de. Rogers (1959) definiu ansiedade como “um estado de inquietação ou tensão cuja causa é desconhecida" (p. 204). Quando nos tornamos mais conscientes da incongruência entre nossa experiência organísmica e nossa percepção de self, a ansiedade começa a se desenvolver e a se transformar em uma ameaça: ou seja, uma consciência (awareness) de que nosso self já não é mais uma totalidade ou congruente. An­siedade e ameaça podem representar os passos em direção à saúde psicológica, porque sinalizam que nossa experiência organísmica é incoerente com nosso autoconceito. No en­tanto, esses não são sentimentos agradáveis ou confortáveis.

Defesas

Para prevenir incoerência entre nossa experiência organís­mica e nosso selfpercebido, reagimos de maneira defensi­va. Defesas são meios de proteção do autoconceito contra a ansiedade e a ameaça pela negação ou pela distorção das experiências incoerentes com ele (Rogers, 1959). Como o autoconceito consiste em muitas afirmações autodescritivas, ele é um fenômeno multifacetado. Quando uma de nossas experiências é incoerente com uma parte de nosso autoconceito, comportamo-nos de maneira defensiva para proteger a estrutura atual de nosso autoconceito.
As duas defesas principais são distorção e negação. Com a distorção, interpretamos erroneamente uma ex­periência para que ela se encaixe em algum aspecto de nosso autoconceito. Percebemos a experiência na cons­ciência ( awareness ), mas não entendemos seu verdadeiro [198]  significado. Com a negação, recusamos perceber uma experiência na consciência ( awareness  ) ou, pelo menos, impedimos que algum aspecto dela atinja a simbolização. A negação não é tão comum quanto a distorção, porque a maioria das experiências pode ser alterada ou remodelada para se adequar ao autoconceito atual. De acordo com Ro­gers (1959), tanto a distorção quanto a negação servem ao mesmo propósito: elas mantêm a percepção de nossas experiências organísmicas coerentes com nosso autocon­ceito - o que nos possibilita ignorar ou bloquear experiên­cias que, de outra forma, causariam ansiedade ou ameaça desagradáveis.

Desorganização

A maioria das pessoas se engaja em comportamentos de­fensivos, porém, por vezes, as defesas falham e o compor­tamento se torna desorganizado ou psicótico. Mas por que as defesas não funcionariam?

Para responder a essa pergunta, precisamos traçar o curso do comportamento desorganizado, o qual tem as mesmas origens do comportamento defensivo normal, ou seja, uma discrepância entre a experiência organísmica da pessoa e sua visão de self. A negação e a distorção são adequadas para impedir que as pessoas normais reco­nheçam essa discrepância, mas, quando a incongruência entre o self percebido e a experiência organísmica é muito óbvia ou ocorre de modo muito repentino para ser negada ou distorcida, seu comportamento se torna desorganizado. A desorganização pode ocorrer de for­ma súbita ou gradual ao longo de um período de tempo. O irônico é que as pessoas são particularmente vulnerá­veis à desorganização durante a terapia, em especial se o terapeuta interpreta suas ações com precisão e também insiste para que enfrentem precocemente a experiência (Rogers, 1959).

Em um estado de desorganização, as pessoas, por ve­zes, comportam-se coerentemente com sua experiência organísmica ou de acordo com seu autoconceito abalado. Um exemplo do primeiro caso é uma mulher pudica e so­cialmente adequada que, de repente, começa a usar linguagem explicitamente sexual e escatológica. O segundo caso pode ser de um homem que, como seu autoconceito já não constitui mais uma gestalt ou um todo unificado, começa a se comportar de maneira confusa, incoerente e totalmente imprevisível. Em ambos os casos, o comportamento ain­da é coerente com o autoconceito, porém o autoconceito foi rompido e, assim, o comportamento parece bizarro e confuso.
Ainda que Rogers tenha indicado o caráter provisó­rio de suas explicações quando expressou inicialmente sua visão do comportamento desorganizado, em 1959, ele não fez revisões importantes nessa parte da teoria. Ele nunca hesitou quanto a sua rejeição em usar rótulos  diagnósticos para descrever as pessoas. Classificações tradicionais, como as encontradas no Manual Diagnós­tico e Estatístico de Transtornos Mentais, Quarta Edição (DSM-IV) (American Psychiatric Association, 1994), nunca fizeram parte do vocabulário da teoria centrada na pessoa. De fato, Rogers sempre se sentiu desconfor­tável com os termos "neurótico” e "psicótico”, preferin­do, em vez disso, referir-se a comportamentos “defensi­vos” e “desorganizados”, vocábulos que transmitem com mais precisão a ideia de que o desajustamento psicoló­gico se encontra em um continuum que vai desde a me­nor discrepância entre o self e a experiência até a mais incoerente. [199]

 

Psicologia - Teoria centrada na pessoa
10/27/2020 1:23:26 PM | Por Gregory J. Feist
Medindo a autorrealização

Everett L. Shostrom (1974) desenvolveu o Inventário de Orientação Pessoal (POI) - Personal Orientation Inven­tory - na tentativa de medir os valores e comportamen­tos das pessoas autorrealizadas. O POI consiste em 150 itens de escolha obrigatória, tais como (a) “Posso me sentir confortável com um desempenho menos do que perfeito" versus (b) “Sinto-me desconfortável com tudo menos um desempenho perfeito”; (a) “Duas pessoas vão se dar melhor se cada uma se concentrar em agradar a outra" versus (b) “Duas pessoas podem se dar melhor se cada uma se sentir livre para se expressar”; e (a) “Meus valores morais são di­tados pela sociedade" versus (b) “Meus valores morais são autodeterminados” (Shostrom, 1963). Os sujeitos devem escolher a afirmação (a) ou (b), mas podem deixar a respos­ta em branco se nenhuma das afirmações se aplicar a eles ou se não souberem nada acerca da afirmação.

O POI possui duas escalas principais e 10 subescalas. A primeira escala principal - a de competência no tempo/incompetência no tempo - mede o grau em que as pessoas são orientadas para o presente. A segunda escala principal - a de apoio - é “concebida para mensurar se o modo de reação de um indivíduo é caracteristicamente orientado para o ‘self ou para o outro’” (Shostrom, 1974, p. 4). As 10 subescalas avaliam níveis de (1) valores de autorrealização, (2) flexibilidade na aplicação dos valores, (3) sensibilidade às próprias necessidades e aos próprios sentimentos, (4) espontaneidade na expressão corporal de sentimentos, (5) autoestima, (6) autoaceitação, (7) visão positiva da humanidade, (8) capacidade de ver os opostos da vida como significativamente relacionados, (9) aceitação da agressividade e (10) capacidade de contato íntimo. Escores altos nas duas escalas principais e nas 10 subescalas indicam algum nível de autorrealização; esco­ res baixos não sugerem, necessariamente, patologia, mas fornecem indícios referentes aos valores e aos comporta­ mentos de autorrealização de uma pessoa.

O POI parece ser muito resistente à simulação - a me­nos que o indivíduo esteja familiarizado com a descrição [183] de Maslow de uma pessoa autorrealizada. No manual do POI, Shostrom (1974) citou vários estudos nos quais os examinados eram solicitados a “simular” ou “transmitir uma impressão favorável" ao preencherem o inventário. Quando os participantes seguiam essas instruções, em ge­ral tinham escores mais baixos (na direção que se afastava da autorrealização) do que quando respondiam de modo honesto às afirmações.

Esse achado, de fato, é muito interessante. Por que as pessoas baixavam seus escores quando tentavam parecer bem? A resposta reside no conceito de Maslow de autorrealização. As afirmações que podem ser verdadeiras para os autorrealizados não são, necessariamente, desejáveis no âmbito social e nem sempre se adaptam aos padrões culturais. Por exemplo, itens como “Consigo superar qual­quer obstáculo enquanto acreditar em mim” ou “Minha responsabilidade básica é estar consciente das necessida­des dos outros” podem parecer objetivos desejáveis para alguém que está tentando simular autorrealização, porém uma pessoa autorrealizada provavelmente não endossa­ria nenhum desses itens. Todavia, uma pessoa verdadei­ramente autorrealizada pode escolher itens como “Nem sempre preciso viver de acordo com as regras e os padrões da sociedade” ou “Não me sinto grato quando um estra­nho me faz um favor" (Shostrom, 1974, p. 22). Como uma das características das pessoas autorrealizadas é a re­sistência à enculturaçâo, não deve causar surpresa que as tentativas de passar uma boa impressão possam resultar em fracasso.

É interessante observar que o próprio Maslow pare­cia ter respondido às perguntas honestamente quando preencheu o inventário. Apesar do fato de ter ajudado na construção do POI, os escores de Maslow foram apenas na direção da autorrealização, não sendo tão altos quanto os das pessoas que eram, de fato, autorrealizadas (Shostrom, 1974).

Ainda que o POI tenha demonstrado fidedignidade e va­lidade razoáveis, alguns pesquisadores (Weiss, 1991; Whitson & Olczak, 1991) criticaram o inventário por não distinguir entre autorrealizados conhecidos e não autorrealizados. Além do mais, o POI tem dois problemas práticos; primei­ro, ele é longo, e os participantes levam de 30 a 45 minutos para preencher; segundo, o formato de escolha obrigatória de dois itens pode causar hostilidade nos participantes, que se sentem frustrados pelas limitações de uma opção de esco­lha. Para superar essas limitações práticas, Alvin Jones e Rick Crandall (1986) criaram o índice Curto de Autorrealização (Short Index of Self-Actualization), que toma emprestado 15 itens do POI que estão mais fortemente correlacionados com o escore total de autorrealização. Os itens do índice Curto de Autorrealização estão em uma escala de Likert de 6 pontos (de concordo plenamente até discordo plenamente). Pesquisas (Compton, Smith, Cornish, 8i Qualls, 1996; Rowan, Comp­ ton, & Rust, 1995; Runco, Ebersole, 8t Mraz, 1991) sobre o índice Curto de Autorrealização indicaram tratar-se de uma escala útil para avaliação da autorrealização.

Uma terceira medida de autorrealização é o índice Bre­ve de Autorrealização (Brief Index of Self-Actualization), desenvolvido por John Sumerlin e Charles Bundrick (1996, 1998). O índice original (Sumerlin & Bundrick, 1996) com­ preendia 40 itens, colocados em uma escala de Likert de 6 pontos, o que produziu escores de 40 a 240. A análise fatorial produziu quatro fatores de autorrealização, mas, como alguns itens foram colocados em mais de um fator, os autores (Sumerlin & Bundrick, 1998) revisaram o índice Breve de Autorrealização, eliminando oito itens, de modo que não fosse encontrado um mesmo índice em mais de um fator. Esse inventário produz quatro fatores: (I) autor­realização central ou o uso integral dos próprios potenciais; (II) autonomia, (III) abertura à experiência e (IV) bem-estar ante a solidão. Os itens típicos incluem “Gosto de minhas realizações” (autorrealização central), “Tenho medo de não corresponder a meu potencial” (um item com escore inver­tido medindo autonomia), “Sou sensível às necessidades dos outros" (abertura à experiência) e “Desfruto de minha solidão” (conforto com a solidão). A fidedignidade, a vali­dade e a utilidade do índice Breve de Autorrealização ainda não foram completamente determinadas. [184]

Psicologia - Teoria holístico-dinâmica
10/23/2020 1:53:48 PM | Por Tayyab Rashid
Psicopatologia, sintomas e forças

O conceito principal de psicopatologia em psicoterapia positiva (PPT) reside na noção de que os aspectos positivos (p. ex., forças de caráter, emoções positivas, significado, relações posi­tivas e realizações) são tão centrais quanto os sintomas na avaliação e no tratamento da psicopatologia. Este é um afastamento significa­tivo da visão tradicional da psicopatologia, em que os sintomas ocupam a posição central. Um sistema de classificação puramente baseado nos sintomas é inadequado para compreender as vidas ricas e complexas dos clientes. Antes de apresentarmos nossos argumentos, gostaría­mos de esclarecer que compreendemos as ra­zões por trás do foco exclusivo nos sintomas. De fato, sintomas perturbadores se destacam e são mais prontamente abordados e avaliados em um contexto clínico do que os aspectos po­sitivos.

Experiências negativas geralmente são um convite a um discurso clínico mais comple­xo e mais profundo - para clientes e clínicos. Portanto, não é de causar surpresa que os clientes que procuram serviços clínicos facil­mente se recordem de acontecimentos nega­tivos, reveses e fracassos, ou que os clínicos prontamente avaliem, elaborem e interpretem histórias de conflito, ambivalência, engano e déficits pessoais ou interpessoais. Devido ao seu valor informativo aparentemente maior, os clínicos prestam mais atenção aos aspectos negativos e se engajam em processamento cog­nitivo complexo (p. ex., Peeters & Czapinski, 1990). Assim, a avaliação clínica é tipicamente conduzida para explorar sintomas e transtor­nos. Entretanto, um foco quase exclusivo nos sintomas limita a avaliação clínica de formas importantes, conforme será discutido a seguir.

Sintomas

Os Ingredientes Centrais

Os sintomas são avaliados com um pressupos­to subjacente de que são os ingredientes cen­trais do discurso clínico. Assim, os sintomas justificam uma exploração séria, enquanto os aspectos positivos são considerados subprodu­tos do alívio sintomático que não precisam ser avaliados. Esse pressuposto está tão arraigado que atributos tradicionalmente positivos são frequentemente considerados como defesas. Por exemplo, a ansiedade foi teorizada como uma força propulsora por trás de um trabalho ético que caracterizou a Reforma Protestante (Weber, 2002). Foi teorizado que a depressão se desenvolve como um mecanismo de defesa para afastar sentimentos de culpa, e a compai­xão resulta como compensação por esses senti­mentos (McWilliams, 1994). Na PPT, as forças humanas são tão reais quanto os pontos fracos humanos, tão velhas como o tempo, e valoriza­das em todas as culturas (Peterson & Seligman, 2004). As forças são tão essenciais na avaliação e no tratamento da psicopatologia quanto são os sintomas. As forças não são consideradas como defesas, subprodutos ou compensações. Elas são valorizadas e avaliadas independentemente dos pontos fracos no procedimento de avalia­ção. Por exemplo, humildade não é necessaria­mente um traço utilizado para obter coopera­ção de outras pessoas refreando-se a si mesmo. [25]

Ser útil não é necessariamente uma tentativa de dispersar ou neutralizar uma situação estressante, e criatividade não é apenas aproveitar a ansiedade para a inovação.

Perfis Tendenciosos e Estruturação

A tradicional avaliação e abordagem terapêu­tica orientada para o déficit rotula os clientes dentro das categorias artificias do Manual diagnóstico e estatístico de transtornos men­tais (DSM; American Psychiatric Association, 2013). Rotular não é, por si só, algo indesejá­vel; rótulos classificam e organizam o mundo (Maddux, 2008). No entanto, reduzir ou objetificar os clientes com um rótulo de psicopatologia pode despojá-los de sua rica complexidade (Boisvert & Faust, 2002, Szasz, 1961). Quando ocorre esse foco excessivo no diagnóstico, os diagnósticos baseados no DSM produzem um perfil de personalidade do cliente que descre­ve predominantemente déficits, disfunções e transtornos. A avaliação clínica da personalida­de deve ser um processo híbrido que explore as forças e as fraquezas (Suldo & Shaffer, 2008). Depois que a avaliação clínica estrutura a ques­tão presente como um problema, a redução dos problemas apresentados é vista como uma medida do sucesso da intervenção. No entanto, problemas psicológicos são complexos e multidimensionais e frequentemente têm apresenta­ção idiossincrásica (Harris & Thoresen, 2006). Além disso, a melhora dos sintomas psiquiá­tricos não assegura que os clientes atingiram o bem-estar. O real estado clínico, em termos de tempo e recursos alocados, é finito. Se a maior parte desse estado real for ocupada pela me­lhoria dos sintomas, não restará muito tempo e esforço para a amplificação dos pontos fortes, significado ou propósito.

Estigma

A prática clínica atual é, em grande parte, dire­cionada para a descoberta de traumas infantis, a avaliação dos pensamentos distorcidos e a análise das dificuldades interpessoais e do caos emocional. As pessoas evitam procurar serviços clínicos porque temem ser estigmatizadas caso seus problemas sejam formulados dentro de um diagnóstico psiquiátrico (Corrigan, 2004). As representações de indivíduos com doenças mentais na mídia popular mantêm o estigma contra a saúde mental (Bearse, McMinn, See- gobin, & Free, 2013). Além disso, indivíduos cada vez mais diversos e cosmopolitas nem sempre se encaixam nos rótulos diagnósticos eurocêntricos (Zalaquett et al., 2008).

Psicopatologia como desregulação das forças

Judith Johnson e Alex Wood (2017) defende­ram que a maioria dos construtos estudados pela psicologia positiva e clínica existe em contínuos que oscilam entre positivo e negativo (p. ex., gratidão e ingratidão, calma e ansie­dade), e, portanto, não faz sentido falar de um ou outro campo estudando o “positivo” ou o “negativo”. A psicologia tradicional baseada no déficit se beneficiaria com a integração da psicologia positiva porque

  • Construtos da psicologia positiva, como as forças de caráter e emoções positivas, po­dem de forma independente prever o bem-estar quando contabilizam fatores clínicos tradicionais, tanto transversalmente quanto prospectivamente.
  • Os focos principais dos psicólogos positivos, como as forças e as emoções com valência positiva, interagem com fatores de risco para prever os resultados, dessa forma atribuindo resiliência.
  • As intervenções em psicologia positiva (como a PPT) tipicamente usadas para am­pliar o bem-estar também podem ser usadas para aliviar os sintomas.
  • A pesquisa clínica em grande parte eurocêntrica pode ser adaptada para aplicações transculturais por meio da incorporação de construtos da psicologia positiva.

A luz desses argumentos, convidamos os clínicos a reconceitualizar os transtornos psi­cológicos baseados no DSM. Mais de duas décadas atrás, Evans (1993) postulou que comportamentos ou sintomas negativos têm formas positivas alternativas. Até certo ponto, [26]  essa reciprocidade é uma questão de semân­tica. Os sintomas são definidos na linguagem cotidiana, que sempre pode ser traduzida em opostos simples, embora nem todos os sinto­mas ou transtornos se prestem naturalmente a essa reciprocidade. Por exemplo, coragem pode ser conceituada como a antítese de ansiedade, mas nem todos os indivíduos ansiosos não têm coragem. Evans argumentou que a maioria dos construtos em psicopatologia pode ser escalo­nada em duas dimensões paralelas. Primeiro, o atributo patológico ou indesejável partindo do desvio grave, passando por algum ponto neu­tro até sua não ocorrência positiva. Segundo, o atributo antitético partindo da não ocorrência, passando por algum ponto neutro até sua forma desejável.

De acordo com o mesmo princípio, Peterson (2006) propôs que os transtornos psicológicos podem ser considerados como uma Ausência da força, o Oposto da força ou o Excesso da força (AOE). Peterson argumenta que a ausência de forças de caráter não necessariamente se aplica a transtornos como esquizofrenia e transtorno bipolar, os quais apresentam claros marcadores biológicos. Muitos transtornos de base psicológica (p. ex., depressão, ansiedade, problemas de atenção e conduta e transtornos da persona­lidade) podem ser mais compreendidos holisticamente, tanto em termos da presença de sinto­mas quanto da ausência, oposto ou excesso de forças de caráter. Usando a abordagem AOE de Peterson, conformidade se deve à ausência de originalidade, especialmente quando um grupo inteiro adere à conformidade. A ausência de curiosidade seria desinteresse. O desinteresse que impõe limites ao que uma pessoa pode sa­ber é indesejável. O oposto da curiosidade seria o tédio. Curiosidade exagerada pode ser igual­mente prejudicial, especialmente se alguém é curioso em relação a violência, sexo ou drogas ilícitas. Levar em conta as sensibilidades e as sutilezas clínicas, aplicando-se uma abordagem AOE em um contexto clínico, pode ser desa­fiador. Conceituar os clientes com uma total ausência de forças (p. ex., coragem, otimismo ou gentileza), com opostos das forças (p. ex., banalidade para criatividade, falsidade para ho­nestidade ou preconceito para justiça) ou com exagero das forças (promiscuidade emocional para inteligência emocional, chauvinismo1 para cidadania ou bufonaria2 para humor) pode ser desanimador tanto para os clínicos quanto para os clientes e pode até mesmo não ser teorica­mente plausível. Mas é difícil imaginar que al­guém possa não ter um pingo de gentileza ou que lhe falta coragem completamente. Portan­to, propomos uma visão ligeiramente modifica­da de AOE em relação às forças.

Propomos que os transtornos baseados no DSM sejam revisados em termos de falta ou excesso de forças. Por exemplo, a focalização nas faltas pode resultar em depressão, em parte devido à falta de esperança, otimismo ou entusiasmo, entre outras variáveis; da mesma forma, falta de coragem e paciência pode ex­plicar alguns aspectos de ansiedade; e falta de imparcialidade, equidade ou justiça pode estar subjacente a transtornos da conduta. Inúmeros transtornos psicológicos podem plausivelmente ser conceituados como um excesso de forças específicas. Por exemplo, a depressão pode ser, em parte, um excesso de humildade (relutân­cia em mostrar as próprias necessidades), um excesso de gentileza (em relação aos outros, à custa do autocuidado), um excesso de pers­pectiva (uma visão da realidade restritamente construída) e um excesso de significado (o que leva a um foco excessivo e a um comprome­timento inflexível).

A falta de forças isoladamente é insuficiente para justificar um diagnóstico. No entanto, linhas de pesquisa emergentes feitas por Alex Wood, na Universidade de Sterling, Reino Unido, estão mostrando que a ausência ou a falta de aspectos positivos representa um risco para uma condição clínica. Em um estudo longitudinal com 5.500 participantes, Wood e Joseph (2010) constataram [27] que indivíduos com poucas características posi­tivas— como autoaceitação, autonomia, propósi­to na vida, relações positivas com outras pesso­as, domínio do ambiente e crescimento pessoal – tinham até sete vezes mais probabilidade de experimentar sintomas depressivos na diversida­de clínica. A ausência de características positivas consistia, independentemente, em um fator de risco para transtorno psicológico, ultrapassan­do a presença de inúmeros aspectos negativos, inclusive depressão atual e prévia, neuroticismo e doença-saúde física. Além disso, pessoas com alto nível de características positivas estão pro­tegidas do impacto de acontecimentos negativos na vida, inclusive problemas clínicos (Johnson et al, 2010; Johnson, Gooding, Wood, & Tarrier, 2010).

Como, exatamente, uma falta ou excesso de forças pode atuar segundo uma perspectiva da PPT? Consideremos um exemplo clínico. A Escala de Depressão do Centro para Estudos Epidemiológicos (CES-D; Radloff, 1977) é uma das medidas mais frequentemente usadas de sintomas depressivos. Com 16 itens nega­tivos e 4 positivos, acreditava-se amplamente que essa medida examinava dois fatores sepa­rados – depressão e felicidade (Shafer, 2006). Analisando-se os dados de 6.125 adultos, Alex Wood e colaboradores demonstraram que uma estrutura bidimensional da CES-D é, mais pro­vavelmente, um artefato estatístico: depressão e felicidade podem, em grande parte, ser si­nônimos, e a medida existente pode alcançar diferentes extremidades do mesmo continuum (Wood, Taylor, & Joseph, 2010). Ou seja, de­pressão e felicidade fazem parte do mesmo continuum, e estudá-las separadamente duplica de forma desnecessária o esforço da pesquisa. Igualmente, o Inventário de Ansiedade Traço-Estado (Spielberger et al., 1983) pode ser con­ceituado em um continuum de ansiedade até relaxamento.

Diferenças Individuais

Na PPT, nossa escolha dos traços para des­crever uma falta ou excesso de forças é uma mescla de forças definidas e bem pesquisadas (como gratidão, curiosidade e perdão) e tra­ços que são expressos em experiências na vida cotidiana (como despreocupação, serenidade, reflexão e flexibilidade). Uma forma de reconceituar sintomas é considerar seus opostos – isto é, suas forças – como em falta ou em excesso nas experiências cotidianas. Embora os termos cotidianos que utilizamos para des­crever a falta ou o excesso de forças possam ter diferenças individuais discerníveis e men­suráveis, muitos deles não têm sido foco de exame empírico.

Falta e Excesso de Forças

Percebemos que inúmeros termos usados para descrever uma falta ou excesso de forças podem implicar que sua falta ou excesso é indesejável, tornando as forças normativas. Por exemplo, a falta de perspectiva, moderação e coragem é geralmente considerada um estado indesejável, enquanto excesso de entusiasmo, perseveração e assunção de riscos é geralmente considerado um estado desejável. Nossa abordagem e esfor­ço são para oferecer uma compreensão menos [35] subjetiva e mais científica. Evidências mostram que mais quantidade de gratidão, gentileza, curiosidade, amor e esperança está fortemen­te relacionada a satisfação com a vida (Park, Peterson, & Seligman, 2004), enquanto uma falta de inteligência social, moderação, autorre-gulação e perseverança está associada a proble­mas psicológicos (Aldao, Nolen-Hoeksema, & Schweizer, 2010; Bron et al., 2012).

Dinâmica Situacional

Transtornos psicológicos e sintomas relaciona­dos podem ser mais bem percebidos pela com­preensão de situações complexas e meios culturais nos quais os clientes estão inseridos e dos quais eles frequentemente têm pouco controle para mudar essas dinâmicas. Apresentamos dois exemplos:

Um de nossos clientes, Michel, tinha sintomas de an­siedade social. Ele evitava situações sociais porque era excessivamente cauteloso por medo de dizer algo errado ou inapropriado porque inglês não era sua pri­meira língua. Michel tornou-se socialmente ansioso quando inadvertidamente disse algo inapropriado, o que ofendeu um de seus amigos, que o acusou de discriminá-lo. Examinar os sintomas em termos de uma falta ou excesso de pontos fortes também requer compreensão das características contextuais. Michel não mostrava sinais de ansiedade social en­quanto interagia com amigos que falavam sua língua nativa; nessa situação, ele se sentia confiante, fazia piadas e demonstrava empatia. Uma abordagem orientada para o sintoma provavelmente descreveria a situação como:"o cliente não exibe sintomas de an­siedade social quando interage na sua língua nativa". Uma abordagem baseada nas forças provavelmente descreveria a mesma situação como: "o cliente é ale­gre, socialmente à vontade e empático quando inte­rage na sua língua nativa".

Outra cliente, Sharon, tinha dois empregos de meio período - um em uma loja de luxo e o ou­tro em uma clínica psiquiátrica na qual trabalhava com crianças com problemas de desenvolvimento. Na loja, Sharon precisava ser muito profissional e vigi­lante e prestar atenção aos mínimos detalhes na hora de uma venda. Ela dizia que era muito cautelosa em seu trabalho na loja e gradualmente foi ficando preo­cupada com a possibilidade de cometer erros ou se esquecer de alguma coisa. No outro emprego, apesar de ter a tarefa desafiadora de envolver as crianças em atividades terapêuticas, Sharon se percebia relaxada, alegre e social. Uma abordagem voltada para o sin­toma provavelmente descreveria a situação como: "a cliente experimenta níveis moderados de ansie­dade antecipatória em seu trabalho na loja. Ela não experimenta um nível similar de ansiedade em seu trabalho na clínica psiquiátrica". Uma abordagem baseada nas forças provavelmente descreveria a mes­ma situação como: "a cliente na posição de vendedo­ra é cautelosa e vigilante - algumas vezes mais do que deveria. Assim, ela não é capaz de usar algumas de suas outras forças, como criatividade e alegria. Na instituição psiquiátrica, no entanto, ela é mais capaz de usar suas forças. Ela é alegre, relaxada e se conecta genuinamente com os outros".

É importante levar em conta a dinâmica si­tuacional e como as forças desempenham um papel com muitas nuanças na compreensão das vidas complexas e ricas dos clientes.

Ter Forças versus Desenvolver Forças

Ter uma constelação específica de sintomas que causam acentuado sofrimento e deficiência funcional geralmente produz um diagnóstico clínico. Esse foi o caso com uma de nossas clientes, Yasmin, que chegou à terapia depois de ser diagnosticada com transtorno da personalidade borderline por vários profissionais de saúde mental.

Nos primeiros 10 minutos do nosso tempo juntos, Yasmin narrou seus sintomas quase literalmente conforme listado no DSM. Tudo o que ela via em si mesma era desregulação emocional, dificuldades de relacionamento e impulsividade autodestrutiva. Depois de ter concluído uma avaliação abrangen­te das forças, sem desvalorizar seus sintomas, nós a descrevemos como alguém que basicamente é uma pessoa afetuo­sa a quem faltam competências para expressar amor apropriadamente e como alguém que poderia se beneficiar de compreender e então adquirir as com­petências de construção de empatia, gentileza e pru­dência. Embora Yasmin tenha sido capaz de identifi­car muitos domínios nos quais tendia a demonstrar mau julgamento, também conseguia compartilhar momentos em que exercitava um bom julgamento. Ela compartilhou um incidente em que sua reação espontânea e oportuna salvou a vida de um amigo. Uma avaliação de suas forças a fez perceber que tinha [36]  forças específicas e que, embora essas qualidades se­jam de fato forças, um uso excessivo delas a deixou com problemas. Ao mesmo tempo, ela não tem forças específicas, como prudência, autorregulação e uso adaptativo de entusiasmo, as quais poderia usar para resolver seus problemas.

O mero conhecimento dos sintomas ou for­ças, segundo nossa visão, é insuficiente para estimular a mudança. Pode ocorrer mudança terapêutica quando o clínico ajuda o cliente a desenvolver um uso adaptativo e diversificado de suas forças. A mudança acontece quando o clínico destaca sucessos passados do cliente para lidar com as dificuldades presentes, quan­do é suficientemente proficiente para identifi­car mesmo um pequeno ou breve exemplo de uso ou exibição de forças, quando comunica a autovalorização do cliente por meio de exem­plos concretos das forças e quando não desiste de procurar essas forças.

Grau ou Extensão

O clínico deve averiguar se um cliente apresen­ta quantidade suficiente de uma força particular para que possa aplicá-la efetivamente (Ajzen & Sheikh, 2013). Por exemplo, Julia, uma cliente de meia-idade, estava experimentando sintomas de transtorno de ansiedade generalizada marcados por preocupação excessiva, inquietação e dificuldades de concentração. Se seus sintomas pudessem ser tratados pelo desenvolvimento de forças, então em que medida Julia precisaria ter, por exemplo, pensamento crítico, perspectiva e saborear? Existe um pareamento específico ou constelações de forças que poderiam ser terapeuticamente efetivas? Pesquisas demonstraram que trabalhar em nossas forças de assinatura ou trabalhar em menos forças é igualmente efetivo para aumentar a satisfação com a vida (Gelso, Nutt Williams, & Fretz, 2014; Rashid, 2004; Rust, Diessner, & Reade, 2009). [37]

Psicologia - Psicologia positiva
7/18/2020 2:24:01 PM | Por Maria Ester Garcia Arzeno
O psicodiagnóstico clínico na atualidade

O psicodiagnóstico está recuperando-se de uma época de crise durante a qual poderíamos dizer que havia caído no descrédito da maioria dos profissionais da saúde mental. Considero imprescindível revalorizar a etapa diagnóstica no trabalho clínico e sustento que um bom diagnóstico clínico está na base ea orientação vocacional e profissional, do trabalho como peritos forenses ou trabalhistas, etc. Se somos consultados é porque existe um problema, alguém sofre ou está incomodado e devemos indagar a verdadeira causa disso.

Fazer um diagnóstico psicológico não significa necessariamente o mesmo que fazer um psicodiagnóstico. Este temo implica automaticamente a administração de testes e estes nem sempre são necessários ou convenientes.

Mas um diagnóstico psicológico tão preciso quanto possível é imprescindível por diversas razões:

1.             Para saber o que ocorre e suas causas, de forma a responder ao pedido com o qual foi iniciada a consulta.

2.             Porque iniciar um tratamento sem o questionamento prévio do que realmente ocorre representa um risco muito algo. Significa, para o paciente, a certeza de que poderemos “curá-lo” (usando termos clássicos). E o que ocorre se logo aparecem patologias ou situações complicadas com as quais não sabemos lidar, que vão além daquilo que podemos absorver, através de supervisões e análises? Buscaremos a forma de interromper, através de supervisões e análises? Buscaremos a forma de interromper (consiente ou inconscientemente) o tratamento com a consequinte hostilidade ou decepção do paciente, o qual teá muitas dúvidas antes de tornar a solicitar ajuda.

3.             Para proteger o psicólogo, que ao iniciar um tratamento contrai automaticamente um compromisso em dois sentidos: clínico e ético.Do ponto de vista clínico deve estar certo de poder ser idôneo perante o caso sem cair em posturas ingênuas nem onipotentes. Do ponto de vista ético, deve proteger-se de situações nas quais está implicitamente comprometendo-se a fazer algo que não sabe exatamente o que é. No entanto, as consequências do não cumprimento de um contrato terapêutico são, em alguns países a cassação da carteira profissional.

Por estas razões insisto na importância da etapa diagnóstica, sejam quais forem os instrumentos científicos utilizados na mesma. Na obra “A iniciação do tratamento” Freud fala da importância desta etapa, à qual ele dedicava os primeiros meses do tratamento. Coloque que ela é vantajosa tanto para o paciente quanto para o profissional, que avalia assim se poderá ou não chegar a uma conclusão positiva.

Não sou favorável a ideia de dedicar tanto tempo ao diagnóstico, porque se estabelece assim uma relação transferencial muito difícil de dissolver se a decisão for a de não continuar. Além do mais, dispomos na atualidade de todos os recursos descritos neste livro (e muitos outros) que permitem solucionar as dúvidas em um tempo menor.

Vejamos agora com que finalidades pode ser utilizado o psicodiagnóstico:

1.  Diagnóstico. Conforme o exposto acima é óbvio que a primeira e principal finalidade de um estudo psicodiagnóstico é a de estabelecer um diagnóstico. E cabe esclarecer que isto não equivale a “colocar um rótulo”, mas a explicar o que ocorre além do que o paciente pode descrever conscientemente.

Durante a primeira entrevista elaboramos certas hipóteses presuntivas. Mas a entrevista projetiva, mesmo sendo imprescindível, não é suficiente para um diagnóstico cientificamente fundamentado.

Meninger foi durante muitos anos chefe da Clínica que leva seu nome e apoiou e animou a criação e o desenvolvimento dos testes tanto projetivos como objetivos. Cada paciente que ingressava na clínica era submetido a uma bateria completa de testes (T. A.T., Rorschach, Weschler e outros).

Eu concordo ainda hoje com este modelo de trabalho, porque acredito que a entrevista clínica não é uma ferramente infalível, a não ser quando em mãos de grandes mestres, e às vezes, nem mesmo nesses casos.

Os testes tampouco o são. Mas se utilizarmos ambos os instrumentos de forma complementar há uma margem de segurança maior para chegar a um diagnóstico correto, especialmente se incluirmos testes padronizados.

Além do mais, a utilização de diferentes instrumentos diagnósticos permite estudar o paciente através de todas as vias de comunicação: pode falar livremente, dizer o que vê em uma lâmina, desenhar, imaginar o que gostaria de ser, montar quebra-cabeças, copiar algo, etc. Se por algum motivo o domínio da linguagem verbal não foi alcançado (idade, doença, casos de surdos-mudos, etc.) os testes gráficos e lúdicos facilitam a comunicação. 

A bateria de testes utilizada deve incluir instrumentos que permitam obter ao máximo a projeção de si mesmo.

Por isso, se pedimos ao paciente que desenhe uma figura humana, sabemos que haverá projeção, mas muito mais se lhe pedirmos que desenhe uma casa ou uma árvore, já que ele não pode controlar totalmente o que projeta.

Como disse antes, é importante incluir testes padronizados porque nos dão uma margem de segurança diagnóstica maior.

Lembro o caso de uma jovem que foi consultar devido a fracasso escolar, impossibilidade de concentração nos estudos e dificuldades de compreensão. Considerava-se de baixo nível intelectual. Após ter solicitado a ela o Desenho Livre e o H.T.P., entreguei-lhe o pequeno caderno do Teste de Matrizes Progressivas de Raven. O mesmo dá ao paciente trinta minutos para realiza-lo. Ela o fez em quinze. Eu obsevava as suas anotações e percebi seu excelente resultado. Por isso, quando a tarefa foi concluída, entreguei-lhe a grade de avaliação, para que ela mesma fizesse a correção. Fizemos o cáculo devido e buscamos a cifra na tabela mais apropriada. O resultado final indicava um Q.I. superior à média. Ela ficou surpresa e incrédula, mas os resultados eram irrefutáveis. Voltou à sua casa muito contente. Obviamente, essa não era a solução final do problema. Haviamos desarticulado um mecanismo através do qual ela brincava de “menina boba”. Agora era necessário estudar o porquê. Apareceu então (principalmente pela reinteração de respostas de “uma figura e a outra é o reflexo em um espelho”, no Rorschach) seu enorme narcisismo e seu grau de aspiração de ser a número um em tudo. A ferida narcisistica por não consegui-lo era tão terrível que, inconscientemente, preferia ser “burra” para não se expor.

Outro elemento importante que nos é dado pelo psicodiagnóstico refere-se à relação de transferência-contratransferência.

Ao longo de um processo que se extende entre três e cinco entrevistas aproximadamente, e observando como o paciente se relaciona diante de cada proposta e o que nós sentimos em cada momento, podemos extrair conclusões de grande utilizade para prever como será o vínculo terapêutico (se houver terapia futura), quais serão os momentos mais difíceis do tratamento, os riscos de deserção, etc.

Porém, nem todos os psicólogos, psicanalistas e psicólogos clínicos concordam com este ponto de vista. Alguns reservam a utilização do psicodiagnóstico para casos nos quais surgem dúvidas diagnósticas ou quando querem obter uma informação mais precisa, diante, por exemplo, de uma suspeita de risco de suicídio, dependência de drogas, desestruturação psicótica, etc. Em outras ocasiões o solicitam porque têm dúvidas sobre o tratamento mais aconselhável, se a psicanálise ou uma terapia individual ou vincular. Finalmente, existe outro grupo de profissionais que não concordam em absoluto com este ponto de vista e prescindem totalmente do psicodiagnóstico. Ainda mais, não concedem valor científico algum aos testes projetivos. Alguns vão mais longe, dizendo que de forma alguma é importante fazer um diagnóstico inicial, que isso chega com o tempo, ao longo do tratamento. Ouvi isto de um palestrante estrangeiro durante um congresso internacional, ao que outro especialista replicou: “Então o senhor começaria com antibióticos e transfusões de sangue, mesmo antes de saber qual o problema do paciente?”

Acredito que todas as posições são respeitáveis, porém devem ser fundamentadas cientificamente e, até o momento, não tenho encontrado ninguém que me demonstre, baseado na teoria da projeção e da psicologia da personalidade, que os testes projetivos carecem de validade.

 

2.  Avaliação do tratamento. Outra forma de utilizar o psicodiagnóstico é como meio para avaliar o andamento do tratamento. É o que se denomina “re-testes” e consiste em aplicar novamente a mesma bateria de testes aplicados na primeira ocasião. Havendo suspeita de que o paciente lembre perfeitamente o que fez na primeira vez e se deseje variar, pode-se criar uma bateria paralela selecionando estes equivalentes, como o teste “Z” de Zulliger no lugar do Rorschach.

Algumas vezes isto é feito para apreciar os avanços terapêuticos de forma mais objetiva e também para planejar uma alta. Em outras é para descobrir o motivo de um “impasse” no tratamento e para que tanto o paciente como o terapeuta possam falar sobre isso, estabelecendo, talvez, um novo contrato sobre bases atualizadas. Em outros casos ainda, é porque existe disparidade de opiniões entre eles. Um deles acredita que pode dar fim ao tratamento, enquanto que o outro se opõe.

Estes casos representam um trabalho difícil para o psicólogo, pois passa a ocupar o papel de um árbitro que dará a razão a um dos dois. É então conveniente esclarecer ao paciente que o psicodiagnóstico não será realizado para demonstrar-lhe que estava enganado, mas, como um fotógrafo, ele registrará as situações para depois comentá-las. O mesmo esclarecimento deve ser dado ao terapeuta. Obviamente, é conveniente que a entrevista de devolução seja feita por aquele que realizou o estudo, tendo um cuidado muito especial em mostrar uma atitude imparcial e fundamentando as afirmações no material dado pelo paciente.

Nos tratamentos particulares, o terapeuta é quem decide o momento adequado para um novo psicodiagnóstico (ou talvez para o primeiro). No entanto, nos tratamentos realizados em instituições públicas ou privadas, são elas que fixam os critérios que devem ser levados em consideração. Algumas deixam isto a critério dos terapeutas. Outras decidem pauta-lo, considerando tanto a necessidade de avaliar a eficiência de seus profissionais quanto a de contar com um banco de dados úteis, por exemplo, para fins de pesquisa. Assim é possível que o primeiro psicodiagnóstico seja indicado quando o paciente entra na instituição, e o outro de seis a oito meses após, dependendo isto do período destinado a cada paciente.

3.  Como meio de comunicação.Existem pacientes com dificuldades para conversar espontaneamente sobre sua vida e seus problemas. Outros, como é o caso de crianças muito pequenas, não podem  fazê-lo. Outros emudecem e só dão respostas lacônicas e esporádicas. Com adolescentes e crianças podemos introduzir algumas modificações que muitas vezes despertarão seu entusiasmo. Assim que é sugerido, as crianças começam a desenhar ou a modelar; o jogo do rabisco de Winnicott entusiasma a todos, especialmente porque quebra a assimetria do vínculo.

Favorecer a comunicação é favorecer a tomada de insight, ou seja, contribuir para que aquele que consulta adquira a consciência de sofrimento suficiente para aceitar cooperar na consulta. Também provoca a perda de certas inibições, possibilitando assim um comportamento mais natural.

Não se trata de cair em atitudes condescendentes, mas de realizar a tarefa dentro de um clima ideal de comunicação, na medida do possível. Procura-se também respeitar o timingdo paciente, ou seja, o seu tempo. Alguns estabelecem rapportimediatamente, enquanto que para outros isso pode exigir bastante tempo.

Por isso seria grotesco ficar em silêncio por um longo período, apoiando-se no princípio de que a entrevista é livre e é o consultante quem deve falar, como seria também grotesco interrompê-lo enquanto está relatando algo importante pra impor-lhe a tarefa de desenhar.

O psicodiagnóstico possui um fim em si mesmo, mas é também um meio para outro fim: conhecer esta pessoa que chega porque precisa de nós. A finalidade é conhece-la da forma mais profunda possível. Para isso o bom rapporté imprescindível.

4.  Na investigação. No que se refere à investigação, devemos distinguir dois objetivos: um é a criação de novos instrumentos de exploração da personalidade que podem ser incluídos na tarefa psicodiagnóstica. Outro, o de planejar a investigação para o estudo de uma determinada patologia, algum problema trabalhista, educacional ou forense, etc. Neste caso, usa-se o psicodiagnóstico como uma das ferramentas úteis para chegar a conclusões confiáveis e, portanto, válidas.

Um exemplo do primeiro caso é o que fez o próprio Hermann Rorschach quando criou as manchas e selecionou entre milhares aquelas que demonstravam ser mais estimulantes para os pacientes.

Para dar validade a este teste mostrou as lâminas a um grupo de pacientes selecionados aleatoriamente e, após, a outro grupo já diagsnosticado com o método de entrevista clínica (esquizofrênicos, fóbicos, etc.). Assim pôde estabelecer as respostas populares (próprias da maioria estatística selecionada aleatoriamente) e as diferentes “síndromes” ou perfil de respostas típico de cada quadro patológico.

Da mesma forma procedeu Murray, criador do T.A.T. (Thematic Apperception Test). As respostas estatisticamente mais frequentes foram denominadas “populares”. Os desvios dessas respostas populares eram considerados significativos tanto no aspecto enriquecedor e criativo como no sentido oposto, ou seja, no aspecto patológico, podendo proceder do mesmo modo que Rorschach.

A criação de um teste não é uma tarefa fácil. Não podem ser colhidos alguns registros e deles extraídas conclusões com a pretensão de que sejam válidas para todos. É necessário respeitar aquilo que a psicoestatística indica como modelo de investigação para que as suas conclusões sejam aceitáveis. Também é necessário um conhecimento abrangente e o trabalho em equipe para a correta interpretação dos resultados. Assim, por exemplo, se se pretende criar um teste que avalie a inteligência em crianças surdas-mudas, será imprescindível a presença de um especialista dessa área. Se a intenção é criar um teste para pesquisar determinados conflitos do grupo étnico ao qual pertence o pesquisador, já que, não sendo assim, se a pesquisa tratasse de estudar o mesmo aspecto, mas em crianças suecas ou japonesas, sem a presença de um antropólogo e um psicólogo conhecedores da matéria, como integrantes da equipe pesquisadora, poderiam ser tiradas conclusões incorretas. Em relação ao segundo objetivo, trata-se em primeiro lugar de definir claramente o que se deseja pesquisar. Suponhamos que a finalidade é descobrir se existe um perfil psicológico típico dos homossexuais, dependentes de drogas ou claustrofóbicos. O primeiro passo deve ser selecionar adequadamente os instrumentos a serem utilizados, a ordem que será seguida, as ordens dentro dos quais podemos admitir variações individuais (por exemplo, podemos admitir que desenhe o Bender em mais de uma folha, que queira usar o verso, que acrescente detalhes às figuras, mas não que use borracha, de forma que tudo fique registrado). Isto é o que é chamado de padronizar a forma de administração do psicodiagnóstico. Se cada examinador trabalhasse à sua maneira, seria impossível comparar os registros colhidos e, portanto, não poderíamos pretender tirar deles conclusões cientificamente válidas.

Logo após, administraremos este psicodiagnóstico assim planejado: por um lado, a uma amostra de homossexuais, dependentes de drogas, etc., e por outro lado, o mesmo psicodiagnóstico, à outra amostra chamada de controle, que não registra a mesma patologia do grupo em estudo. Em uma terceira etapa, serão buscadas as recorrências e convergências em ambos os grupos, para poder-se assim chegar a conclusões válidas. Por exemplo, é significativo que os homossexuais desenhem primeiro a figura do sexo oposto, no Teste das Duas Pessoas. Estou usando um exemplo simples com a finalidade de transmitir claramente em que consiste essa tarefa. A utilidade destas pesquisas varia muito. As mais interessantes são aquelas que permitem identificar indicadores que servirão para detectar precocemente problemas clínicos, trabalhistas educacionais, etc., com a consequente economia de sofrimento, problemas e até complicações institucionais.

Método para que o consultante aceite melhor as recomendações

O psicodiagnóstico inclui, além das entrevistas iniciais, os testes, a hora de jogo com crianças, entrevistas familiares, vinculares, etc. As conclusões de todo o material obtido são discutidas com o interessado, com seus pais, ou com a família completa, conforme o caso e o sistema do profissional.

Os testes realizados individualmente são reservados, geralmente, para a entrevista individual com essa pessoa, para a entrega dos resultados. Porém o que tem sido feito e conversado entre todos pode ser mostrado ou assinalado para exemplificar algum conflito que os consultantes minimizam ou negam.

Por exemplo, um rapaz em torno de 25 anos que consultou por se sentir amarrado demais à noiva a à mãe, disse no Questionário Desiderativo que gostaria de ser o vento porque é livre e também um cão porque é uma companhia fiel. Além do restante do registro, estas duas catexias serviram para enfrenta-lo com a própria contradição: querer ser livre como o vento e ao mesmo tempo precisar da companha de alguém que lhe desse afeto. Logo aceitou que isto criava uma situação interna difícil e que não podia pensar que o problema seria solucionado trocando de noiva ou distanciando-se de sua mãe.

Em outra ocasião, com os pais de um menino de doze anos que se recusavam a aceitar a seriedade da doença do mesmo, usei outro recurso. Mostrei-lhes a lâmina III do Rorschach dizendo que o teste não estava sendo feito com eles, mas que a observassem silenciosamente por um instante e logo cada um dissesse o que havia visto. Ambos disseram algo semelhante à resposta popular: “Duas pessoas fazendo algo”. Então disse-lhes que o menino havia respondido: “Dois esqueletos”. Ambos ficaram muito impressionados e começaram a levar mais a sério minhas advertências.

Poderia eu ter tido a surpresa de que eles também dessem respostas muito patológicas. Nesse caso teria comentado de passagem o que o filho tinha visto e desviado a atenção para outro material. Quando as distorções são compartilhadas por pais e filhos, a conclusão inevitável é a de que uma terapia familiar é urgente.

Outro caso é o de uma moça de uns 20 anos que chega a um Serviço de Psicopatologia de um Hospital pedindo um estudo vocacional. Toda a sua conduta na sala de espera e o pedir a entrevista deixava clara uma grave patologia. A ansiedade era enorme, apertava nervosamente as mãos, sentava-se e levantava-se incessantemente, etc. Queria que fosse feito exclusivamente o “teste” vocacional. Com muita relutância, aceitou responder o Desiderativo. Suas respostas foram: 1+, “Gostaria de ser uma pomba”, que é graciosa e alegre”, e no 1- “Não gostaria de ser uma hiena porque vive se alimentando de desperdícios”; 2- Um gladíolo porque me lembra velórios”; 3- “Algo mineral, o carvão. Não me pergunte por quê”.

Entre a aparência alegre e inocente da pomba, inevitavelmente associada à vida e à paz, e a hiena que vive de cadáveres há uma dissociação abismal. As três colocações negativas estão relacionadas com a morte; o gladíolo com velórios, e o carvão é um vegetal sepultado sob a terra durante milênios. Isto facilitou o início da conversa com ela, sobre o quanto a preocupava a ideia da morte e com isso a deixava ansiosa. Ela deixou de insistir com o teste vocacional e começou a relatar fatos da sua vida, especialmente sobre a perda de vários seres queridos. Mesmo assim, recebeu algumas sugestões vocacionais, mas aceitou ir ao Serviço uma vez por semana para continuar falando sobre essas coisas que tanto perturbavam o seu dia-a-dia.

Escolha da estratégia terapêutia mais adequada

Um psicodiagnóstico completo e corretamente administrado permite-nos estimar o prognóstico do caso e a estratégia mais adequada para ajudar o consultante: entrevistas de esclarecimento, de apoio, terapia breve, psicanálise, terapia de grupo familiar ou vincular, sistêmica ou estrutural; análise transacional, gestáltica, etc.

Assim, por exemplo, um paciente trabalhará muito bem na psicanálise se aceitar a sua responsabilidade no conflito, se mostrar colaboração para fazer associações, contar lembranças, entrar em sua vida paticular, em seu passado. Diante da tarefa do Desenho Livre, aceita com prazer e responde com um bom nível de simbolização e riqueza em suas associações. As lâminas menos estruturadas como as do Rorschach não lhe causam impacto. A lâmina em branco do Phillipson o estimula favoravelmente. A entrevista final torna-se agradável de se preocupar, chorar, ou ao menos ficar deprimido na medida certa para empreender a tarefa psicanalítica com uma boa motivação.

Muito diferente seria o caso de outra pessoa que não tolera a entrevista aberta e prefere um inquérito pautado, que se bloqueia no Desenho Livre, no Rorschach e na lâmina branca do Phillipson. Pergunta “O que faço, que desenho?” e sente alívio quando nós damos uma ordem mais precisa, por exemplo “Bem, desenhe uma casa, uma árvore e uma pessoa”. A série A do Phillpson o deixa muito ansioso e gosta mais da B que é mais definida e menos difusa. Esta pessoa trabalhará melhor com uma terapia cara a cara, na qual se combinem interpretações cautelosas com sugestões e alguns direcionamentos. A situação de solidão e de regressão do divã seria para ele, por enquanto, insuportável, e só poderia aceita-la após uma primeira etapa com as características descritas.

As entrevistas diagnósticas vinculares e familiares são de grande utilidade para decidir entre a recomendação de um tratamento individual, vincular ou familiar.

Existem algumas técnicas projetivas idealizadas para serem aplicadas simultaneamente a um casal ou a um grupo (filial, familiar, de trabalho, etc.)

Entre elas posso citar o Teste do Casal em Interação (TPI) do psicólogo de Rosario, Luis Juri, o Teste Cinético da Família de Rana Frank de Verthelyi (adaptação) em suas formas atual e prospectiva; também o teste de Rorshchach com a técnica de consenso.

Estes testes são muito úteis para decidir a capacidade de agrupamento ou não de um indivíduo, ou para fazer um diagnóstico sobre como irá funcionar um grupo em formação.Os terapeutas de grupo têm usado muito, para isto, o teste das bolitas do Dr. Usandivaras. Ester Romano apresentou seu MEP (Modelo Experimental Perceptivo) à Associação Argentina de Psicanálise, idealizado sobre a base de estímulos gráficos ao estilo do Wartegg e não estruturados ao estilo do Rorschach.

No psicodiagnóstico individual, o motivo da consulta manifesto e latente dá-nos uma pauta para recomendar ou não a terapia de grupo. Quando as dificuldades situam-se na relação do indivíduo com os demais (pares, superiores ou subalternos) o mais indicado é recomendar a terapia de grupo. Se, no entanto, o conflito está mais centralizado no intrapsíquico, o mais adequado seria terapia individual.

O teste de Phillipson (especialmente as lâminas grupais AG, BG, e CG) nos dá uma informação muito útil a respeito, já que, se nelas a produção for boa, comprovaria a nossa suspeita de que uma terapia em grupo seria adequada, enquanto que se nelas o paciente se desarticula, sofre impactos, as nega ou distorce a produção, haveria que pensar que, longe de ser uma ajuda, a terapia de grupo aumentaria a sua angústia. De forma que, independentemente do motivo da consulta, isto seria um elemento para contra-indica-lá.

 

Em síntese, tentei resumir as diferentes aplicações que pode ter o psicodiagnóstico, e certamente serão abertos outros novos caminhos ainda não explorados.

Psicologia - Psicodiagnóstico
3/5/2020 1:59:49 PM | Por Lillian M. Frazão
Ser ou não ser na contemporaneidade, eis a questão

Joana tem 35 anos. É uma mulher bonita, elegante, bem-sucedi­da profissionalmente, ocupa um bom cargo numa grande empre­sa. Filha de uma doméstica e de um vendedor ambulante, sempre foi uma pessoa esforçada e obstinada, tendo-se sobressaído nos estudos e conseguido cursar faculdade pelos próprios méritos. Atualmente, mora com o namorado, de quem fala pouco.

Marcou o início da terapia duas ou três vezes, mas precisou desmarcar em virtude de necessidades de trabalho. Quando con­seguiu vir, trouxe como principal demanda sua dificuldade de se relacionar com pessoas, o que a prejudicava profissionalmente. Sem amigos, raramente tem algum lazer, não cultiva hobbies e participa de pouca atividade social além do trabalho. Boa parte de suas noites e de seus fins de semana é ocupada com trabalho. Joana focaliza em sua fala basicamente questões profissionais e insiste em me perguntar o que e como deve fazer para se relacionar com pessoas. O universo do humano lhe parece desco­nhecido e surpreendente. Acredita que haja regras que, uma vez
seguidas, proporcionariam bons relacionamentos com outras pessoas.

Joana parece ser uma representante de boa parte dos jovens bem-sucedidos da atualidade que nos procuram na clínica. Pessoas que, desde muito cedo, são levadas a se preparar para um futuro de sucesso profissional. Esforçam-se para se encaixar nos padrões esperados e para tal aprendem inglês, praticam algum esporte, fazem uma faculdade, vestem-se de acordo com os dita­mes da moda, malham em academias, vivem de regime - pois sempre estão um ou dois quilos acima daquilo que os atuais pa­drões de beleza demandam. Conseguem empregos que lhes possibilitam ter um bom carro, usar roupas de marca, comer fora, vestir-se bem, adquirir os mais sofisticados bens de consumo, viajar etc. No entanto, sem que tenham awareness, vivem aprisio­nadas à sociedade de consumo, que as leva à ilusão de que ter coisas, possuir bens significa realizar-se como indivíduo. As con­dições oferecidas ao acontecer humano na pós-modernidade têm se mostrado bastante inóspitas.

A sociedade contemporânea estimula fortemente o ter em lugar do ser, e cada vez mais falta o suporte e o cuidado necessá­rios para que possamos nos constituir como pessoas; são muitas as dificuldades e vicissitudes da vida para a constituição do ser, bem como as formas que estimulam e respaldam o não ser.

Vivemos um dilema cruel e desafiador: ser ou ter? Necessário e difícil coadunar as duas coisas, ter awareness de suas reais ne­cessidades - sobretudo no âmbito do humano manter contato com o ambiente e fazer escolhas que possibilitem estabelecer in­dividual e singularmente uma hierarquia de dominâncias que permita atender às demandas de cada um em relação a uma e outra coisa.

Qualquer escolha implica perda e incerteza, o que nos gera angústia - a qual, além de ser um sentimento pouco confortável, é absolutamente diferente e única em sua apresentação a cada um de nós. Segundo Safra (2004, p. 24):

[...] a angústia revela as dimensões do sofrimento e da fragilidade humana. Não é um conhecimento que vem de uma aprendizagem ou pedagogia, mas sim do próprio fato de o ser humano ser lançado em meio à existência na busca das condições que possibilitem seu alojamento, mesmo que precário, no mundo com os outros.

Mais adiante, o autor (idem) acrescenta: “O homem se encon­tra na fragilidade do entre: entre o dito e o indizível, entre o desvelar e o ocultar, entre o singular e o múltiplo, entre o encon­tro e a solidão, entre o claro e o escuro, entre o finito e o infinito, entre o viver e o morrer”.

Enfrentar essa angústia é terrível; evitá-la também o é. Deparar com ela implica awareness de nossas reais necessida­des, poder hierarquizá-las, fazer escolhas, contatar nosso verda­deiro ser, confrontar nossa verdade, fundar-nos como pessoas e ter a possibilidade de passar da passividade e da introjeção a uma atuação que, por meio da assimilação, pode se tornar res­ponsável e responsiva. Evitá-la, por seu turno, é também uma escolha infeliz, uma vez que aliena, acomoda-nos a um parecer, faz-nos obedecer, sem nos dar conta, às demandas sociais. Dessa forma, deixamos de nos fundar como pessoas reais e ver­dadeiras.

“Ser ou não ser, eis a questão.” Essa frase, que se tornou clás­sica e conhecida de todos, foi dita por Hamlet na peça “A trágica história de Hamlet, príncipe da Dinamarca”, de Shakespeare. Na verdade, na primeira edição da obra, publicada em 1603, a frase aparece ligeiramente diferente - mostrando-se ainda mais suges­tiva e pertinente a este texto: “To be, or not to be I, theres the point” (Ser ou não ser eu, eis a questão). Infelizmente, a palavra “eu” acabou sendo omitida nas edições subsequentes.

Em resumo, a história é a seguinte: Hamlet era um príncipe dinamarquês querido por todos. Depois da morte do pai, a qual lhe causa muito sofrimento, sua mãe se casa com o cunhado Cláudio, irmão do marido falecido, que assim se torna rei da Dinamarca. Certa ocasião, o fantasma do pai aparece para Hamlet e conta-lhe que não morrera de causa natural, mas fora assassinado pelo tio, visando, depois de casar com a rainha viúva, tornar-se rei. O pai pede ao filho Hamlet que vingue sua morte.

“Há algo de podre no reino da Dinamarca”, diz Hamlet quan­do encontra o fantasma do pai, e passa a questionar se a mãe o manipulava e participara da trama contra o pai e se ele próprio não corria o risco de ser também eliminado. Atormentado por esses pensamentos e angustiado diante da escolha de vingar a morte do pai e tornar-se um assassino ou ser conivente e covarde diante dessa realidade, Hamlet escolhe vin­gar a morte do pai.

Ofélia, seu grande amor, era filha do primeiro-ministro; temeroso de que por essa via seu plano chegasse aos ouvidos do rei, Hamlet decide, com sofrimento e pesar, abrir mão de seu romace com a jovem.

Enquanto espera por ela para lhe dizer que não a ama, Hamlet faz um rico e sugestivo monólogo no qual profere a famosa frase».

HAMLET - Ser ou não ser, eis a questão.

Será mais nobre sofrer na alma

Pedradas e flechadas do destino feroz

Ou pegar em armas contra o mar de angústias

E, combatendo-o, dar-lhe fim?

Morrer; dormir;

Só isso. E com o sono - dizem - extinguir

Dores do coração e as mil mazelas naturais

A que a carne é sujeita; eis uma consumação

Ardentemente desejável.

Morrer, dormir... Dormir! Talvez sonhar. Aí está o obstáculo!

Os sonhos que hão de vir no sono da morte

Quando tivermos escapado ao tumulto vital

Nos obrigam a hesitar: e é essa reflexão

Que dá à desventura uma vida tão longa.

Pois quem suportaria o açoite e os insultos do mundo,

A afronta do opressor, o desdém do orgulhoso,

As pontadas do amor humilhado, as delongas da lei, 

Entendo que essa fala, na atualidade e metaforicamente, po­deria se referir à vivência da angústia, enfrentá-la... pegar em armas contra o mar de angústias ou simplesmente evitá-la... mor­rer, dormir e, assim, fugir ao “ tumulto vital”.

E com o sono - dizem - extinguir

Dores do coração e as mil mazelas naturais

A que a carne é sujeita.

Isso poderia se aplicar a deparar com a angústia (dores do coração) ou evitá-la.

Preferir e suportar males que já temos,

A fugirmos para outros que desconhecemos?

Trata-se da difícil escolha entre o ter e o ser. Os males do ter nos são, de certa forma, conhecidos, enquanto os do ser são, na atualidade, bastante desconhecidos, por isso mesmo angustiantes.

Preferir e suportar males que já temos,

A fugirmos para outros que desconhecemos?

E assim a reflexão faz todos nós covardes.

Essa fala se aplica muito bem à já mencionada angústia que nos acomete a cada escolha e desvio das normas implícitas e am­plamente estimuladas hoje para enfrentar o desconhecido que o ser de cada um envolve. 

E é com esses conflitos que boa parte de nossos pacientes chega ao consultório. Estes impedem a pessoa de ser o que é e, em alguns casos, se fundem como pessoas. Já em 1947, no livro Ego, fome e agressão (2002, p. 202), Perls referiu-se ao complexo de simulacro (traduzido para o português como “complexo de fantoche”), o qual “representa um impedi­mento sério ao desenvolvimento da personalidade, porque não
satisfaz realmente a agressividade, mas a desvia de sua meta bio­lógica, isto é, a satisfação da fome e a obtenção da restauração da integridade do indivíduo”

O contexto clínico e particularmente a Gestalt-terapia, por sua visão de homem sempre em interação com seu ambiente, ofere­cem-nos um espaço ímpar para esclarecer essas questões e lidar com elas a partir da e na relação terapêutica, na qual nossa huma­nidade pode encontrar e confirmar a humanidade do outro.

A presença e o olhar do outro são essenciais para que nos fundemos. Nosso existir demanda o testemunho do outro. Há aqui questões profundas com as quais temos de lidar no exercício de nosso ofício: a impossibilidade de ser no mundo contemporâneo consumista e tecnicista, no qual encontramos poucas possibilidades para o alojamento do humano. Nossos pacientes não tiveram a possibilidade de se constituir como sujei­tos da própria vida e, desse lugar, relacionar-se com seu ambien­te usando sua singularidade, alteridade e humanidade (Frazão, 1999).

Essas pessoas não são (e talvez jamais tenham sido) vistas por outro em sua humanidade. Levinas (1988) assinala a importân­cia do olhar do outro para que possamos nos fundar como pes­soas, com abertura para o OUTRO (aqui também grafado em maiúsculas).

Esta talvez seja nossa tarefa e nossa função primordial na clí­nica: enxergar o outro. Não se trata simplesmente de vê-lo, nem mesmo de buscar apreendê-lo por meio de uma compreensão fenomenológica, mas, antes disso, de enxergá-lo como humano, acolhê-lo em sua angústia, alteridade e diversidade, bem como em sua singularidade existencial.

Além do olhar é preciso confirmá-lo, como nos mostra Buber (1979). Confirmação, como afirmei em outras ocasiões, não sig­nifica concordância. Ao contrário: se nossa função como psicoterapeutas é possibilitar a emergência da humanidade do paciente, às vezes é necessário discordar.

Confirmar a pessoa não implica confirmar o que ela faz ou o que ela tem. Trata-se de confirmá-la como pessoa que é, com seus recursos e potenciali­dades. Discordar daquilo que o indivíduo faz pode significar, em determinadas situações, confirmar aquilo que ele é.

Dou um exemplo: tive um paciente que estivera em terapia comigo em duas ocasiões diferentes e, em virtude de minha mu­dança de endereço, perdera o contato comigo. Depois de certo esforço, conseguiu meu novo endereço e procurou-me para tera­pia, tendo como principal queixa o fato de não conseguir manter um relacionamento estável com uma mulher.

Esse paciente se encaixaria naquilo que Perls (2002, p. 201), como já vimos, chama de simulacro: “Tentam estabilizar qual­quer relacionamento logo na primeira fase do contato; assim, podem ter centenas de relações, mas nenhuma se desenvolve numa amizade real”.

Voltando ao exemplo: ainda que tenhamos feito inúmeros ajus­tes - no preço, no horário, na forma de pagamento, no dia de pa­gamento etc. - para tornar a terapia viável ao rapaz, ele sistematicamente descumpria o acordado. Realizamos três meses de terapia e, depois de constatar que mais uma vez ele descumpriria o acordo referente ao pagamento, eu lhe disse ao fim da sessão que precisávamos conversar. No encontro seguinte, ele começou informando que pararia a terapia devido à minha rigidez. Então disse: “Você parece um soldado alemão”. Para além do que aquilo, como filha de exilados judeus alemães, provocou, tive a oportuni­dade de discordar veementemente do que ele dizia, baseando-me não só na flexibilidade que tive no nosso contrato inicial e na to­lerância nos dois meses que antecederam nossa conversa, mas também em sua longa busca de contato comigo, o que sinalizava que eu era importante para ele. Porém, como acontecia com seus relacionamentos com mulheres, uma vez conquistada eu poderia ser abandonada e até desqualificada. Essa minha discordância foi extremamente confirmadora para ele e permitiu-lhe não só conti­nuar em terapia comigo, mas também finalmente lidar com suas questões mais profundas ligadas a seu relacionamento com mu­lheres, os quais precisariam implicar algum nível de reciprocidade.

O confirmar é também um olhar e o olhar é também uma confirmação... Para muito além das palavras, confirmação é gesto... um gesto que valida o outro como existente, que o reconhece humano, sujeito a falibilidade e incertezas, com recursos e potencialidades.

Trata-se de uma postura ética a qual, segundo Figueiredo e Coelho Junior (2000, p. 7), precisa ser entendida como “posição e como lugar (morada), como postura fundamental, como modo de escutar e falar ao e do outro na sua alteridade”.

É por meio dessa postura que envolve o olhar fundante do terapeuta e também a confirmação do ser do paciente que cada um pode apossar-se de si, ser belo, único e singular em seu ple­ no existir.

Psicologia - Gestalt
Todos os textos
Todos Psicologia
Muito amor ao fazer amor: evitando o caos no relacionamento

O professor John Gottman é o doutor do amor, pelo menos do amor no sentido conven­cional - ele é um pesquisador intemacionalmente conhecido daquilo que faz que um casa­mento dure e do que faz com que se desfaça. Em seu trabalho na Universidade de Washing­ton, ele conseguiu aplicar um alto rigor científico ao que parece ser a mais subjetiva das áreas e popularizou suas conclusões em uma seqüência de livros de grande vendagem (The seven principles for making marriage work é o mais recente deles).

Em seu “laboratório do amor”, próximo à UW, o Dr. Gottman grava em videoteipe casais em seu dia normal “em casa” e acompanha sinais fisiológicos, como batimentos cardíacos e pressão sanguínea, enquanto eles discutem áreas de conflito. Ao somar as interações “posi­tivas” e “negativas”, verificar “tentativas de conserto” durante brigas, observar em busca de incidentes de comportamento desdenhoso, etc., Gottman consegue predizer o destino últi­mo do casal com 90% de precisão, ele diz.

Entretanto, como homem solteiro, eu queria saber como posso me proteger para não entrar em um mau casamento. Isso não nos economizaria um monte de problemas? Cari­nhoso e afável, o professor me encontrou na padaria Grateful Bread, próximo de sua casa, para discutir a questão.

Seattle Weekly: O senhor estuda vários casais que estão em situação difícil e fala sobre os quatro comportamentos que indicam futuro divórcio - a crítica, o desdém, a postura defensiva e competitiva. Mas tenho certeza de que, em algum momento, a maior parte dessas pessoas esteve apaixonada e cheia de sentimentos um pelo outro. Como posso saber se meu atual relacionamento vai acabar assim?

Dr. Gottman: As pessoas costumavam pensar, “bom, você está apaixonado, você está exultante, você não vai fazer muita coisa ruim... não ser desdenhoso em relação a seu parceiro, não ser desrespeitoso”. Não é verdade. Se você ficar voltando no passado e olhan­do os relacionamentos cada vez mais cedo até as últimas fases, existe a mesma variabilida­de [de comportamento] para casais naquele momento quanto para casais em momentos posteriores. Mesmo em namoros - os pesquisadores já investigaram - os mesmos sinais são preditivos. Se vocês estão saindo juntos há seis meses, você pode dar uma olhada no que está acontecendo e decidir se quer ficar nesse relacionamento ou não.

Então, de que forma eu tomo essa decisão? Como posso saber se o relacionamen­to é o adequado ou não? Em primeiro lugar, qual é a qualidade da amizade? Vocês são amigos de verdade? Em outras palavras, é fácil de falar? Por exemplo, antes de você se dar conta, passaram quatro horas. E como uma amizade entre pessoas do mesmo sexo. Tem a ver com estar interessado um no outro, lembrar-se de coisas que são importantes para o outro, ser afetivo e respeitoso, e notar quando seu amigo precisa de alguma coisa de você.

Depois, tem a qualidade do sexo, do romance e da paixão. Você se sente especial para essa pessoa? Você se sente atraente? Você realmente é atraído e excitado por essa pessoa? Há bastante amor quando fazem amor? Há sentimento de paixão?

Mas todo mundo sente essas coisas no início, não? Isso é o que surpreende: as pessoas se casam e não gostam de verdade uma da outra, e não estão fazendo bom sexo, e não acham que seu parceiro está tão interessado assim neles... e se casam de qualquer maneira! Elas não estão observando seu relacionamento com atenção.

Certo, mas então, se for muito apaixonado no início, isso não vai esmorecer? A visão comum de que paixão e bom sexo começam cedo e depois esmorecem é totalmente errada - totalmente errada. A paixão pode crescer com o tempo em um relacionamento se as pessoas prestarem atenção a ela. [Em nossos estudos com casais de longo prazo] o que surgiu entre os que tinham uma ótima vida sexual foi amizade - “permanecemos grandes amigos, somos realmente companheiros, tentamos entender e ajudar um ao outro”.

E as brigas? A partir do que o senhor escreveu, parece que brigar, em si, não é ruim, não é? Certo. O conflito existe, sim; já no início dos relacionamentos românticos, ele vem à tona. [Mas] qual é o balanço, em termos de destrutivo e construtivo? O conflito construtivo tem a ver com aceitar a influência de seu parceiro, com aceitar meios-termos, ao passo que o destrutivo é insultar, ser dominador, ser defensivo, negar qualquer respon­sabilidade, retrair-se. Esses elementos indicam um final ruim para o relacionamento.

Como se enfrenta um momento em que se está sentindo distância, não se tem tanta certeza do relacionamento, ou se está discutindo muito? É possível consertar isso de forma efetiva? É uma espécie de sensação de confiança. Você desenvolve uma sensação de que pode enfrentar qualquer tempestade, e não de que gosta de tempestades. O conflito é inevitável, mas enfrentá-lo é uma forma de cultivar o relacionamento.
E se eu me sentir profundamente apaixonado, perder o chão? Você ficaria surpreso com a porcentagem pequena de relações em que isso acontece. Os psicólogos chamaram essa etapa de “limerance (paixão intensa)”. Você está simplesmente projetando em seu parceiro aquilo que gostaria que estivesse presente. E, quando começamos a entrevistar recém-casados a esse respeito, os casais que haviam vivenciado isso não tinham necessaria­mente um relacionamento melhor. Não parecia necessário ou suficiente, com exceção de que é muito prazeroso de viver. É muito bom se você conseguir construir a partir disso.

O que mais eu poderia observar? Existe uma coisa que se chama “dominação dos sentimentos negativos”.Você tende a andar por aí com um chip em seu ombro, supervigilante em relação a observações degradantes, a maneiras como seu parceiro esteja dizendo “eu não te amo de verdade, você não é tão especial assim para mim”. E, se você está nesse estado, é ruim, especialmente se você for homem, porque isso é uma coisa muito difícil de mudar. E realmente é só uma questão de percepção. Duas mulheres podem ser idênticas no quanto ficam com raiva, mas o mesmo homem está dizendo: “Cara, ela está mesmo estressada, mas tudo bem, eu também fico assim, às vezes”. O outro cara diz: “Ninguém fala assim comigo;... porque aguentar isso...? O que determina a percepção, descobrimos, é a amizade. Se você sente que seu parceiro o respeita e está interessado em você, presta atenção em você, então você está sob dominação de sentimento positivo.

Por que somos tão ruins nisso? Mais da metade de todos os casamentos termina em divórcio. Será que estamos escolhendo mal? Somos ruins nisso de ser casados, assim como dirigimos mal? Há muitas maneiras de destruir as coisas, e em geral somente algumas maneiras de realmente manter as coisas e fazer que elas continuem funcionando. As coisas se desfazem - essa é a ideia da entropia. O caos é o evento mais provável. Real­mente é necessária muita energia para manter um sistema que esteja funcionando bem.

<<Expandir>>
Erich Fromm

Assim como a visão de todos os teóricos da personalida­de, a concepção de natureza humana de Erich Fromm foi moldada pelas experiências da infância. Para Fromm, uma vida familiar judaica, o suicídio de uma jovem mulher e o extremo nacionalismo do povo alemão contribuíram para sua visão de humanidade. 

Fromm nasceu em 23 de março de 1900, em Frank­furt, Alemanha, era filho único de pais judeus ortodoxos de classe média. Seu pai, Naphtali Fromm, era filho e neto de rabinos. Sua mãe, Rosa Krause Fromm, era sobrinha de Ludwig Krause, um estudioso talmúdico renomado. Quando menino, Fromm estudou o Velho Testamento com vários estudiosos proeminentes, homens que eram considerados "humanistas de tolerância extraordinária” (Landis & Tauber, 1971, p. xi). A psicologia humanista de [129] Fromm pode ser reconhecida nos textos desses profetas, “com sua visão de paz e harmonia universal e seus ensina­mentos de que existem aspectos éticos na história - que as nações podem agir de modo certo ou errado e que a histó­ria possui suas leis morais" (p. x).

O início da infância de Fromm não foi exatamente ideal. Ele lembrava que teve “pais muito neuróticos” e que ele era “provavelmente uma criança neurótica de modo in­tolerável” (Evans, 1966, p. 56). Ele via seu pai como mal-humorado e sua mãe como inclinada à depressão. Além do mais, cresceu em dois mundos muito distintos: um era o mundo judeu ortodoxo tradicional; e o outro, o mundo capitalista moderno. Essa existência dividida criou ten­sões que eram quase insuportáveis, mas que geraram em Fromm uma tendência vitalícia a ver os eventos a partir de mais de uma perspectiva (Fromm, 1986; Hausdorff, 1972).

O suicídio chocante e intrigante de uma jovem e atraente artista, que se matou para que pudesse ser enterrada com o pai, que tinha acabado de falecer instigou em Fromm a pergunta: Como era possível que essa jo­vem pudesse preferir a morte a permanecer “viva para os prazeres da vida e da pintura?" (Fromm, 1962, p. 4). Essa pergunta assombrou Fromm pelos 10 anos seguintes e, por fim, levou a um interesse em Sigmund Freud e na psicanáli­se. Quando Fromm leu Freud, começou a aprender sobre o complexo de Édipo e a compreender como um evento assim poderia ser possível. Mais tarde, Fromm interpretou a de­pendência irracional que a jovem mulher tinha do pai como uma relação simbiótica não produtiva; mas, naqueles pri­meiros anos, ele se contentou com a explicação freudiana.

Fromm tinha 14 anos quando começou a I Guerra Mundial, muito jovem para lutar, mas não muito jovem para ser impressionado pela irracionalidade do naciona­lismo alemão, que teve oportunidade de observar direta­mente. Ele tinha certeza de que os britânicos e os fran­ceses eram igualmente irracionais e, mais uma vez, foi atingido por uma pergunta perturbadora: “Como pessoas normalmente racionais e pacíficas podiam ser tão domi­nadas por ideologias nacionalistas, tão dispostas a matar, tão preparadas para morrer?”. “Quando a guerra terminou, em 1918, eu era um jovem profundamente preocupado e obcecado pela questão de como a guerra era possível, pelo desejo de entender a irracionalidade do comportamento em massa humano e por um desejo apaixonado pela paz e pelo entendimento internacional”(Fromm, 1962, p. 9).

Durante a adolescência, Fromm foi tocado profunda­mente pelos escritos de Freud e Karl Marx, mas também foi estimulado pelas diferenças entre os dois. Conforme avan­çava nos estudos, passava a questionar a validade dos dois sistemas. “Meu principal interesse estava claramente traça­do. Eu queria compreender as leis que regem a vida do ho­mem individual e as leis da sociedade” (Fromm, 1962, p. 9).

Após a guerra, Fromm se tornou socialista, embora, naquela época, tenha se recusado a ingressar no Partido Socialista. Em vez disso, ele concentrou seus estudos em psicologia, filosofia e sociologia na Universidade de Hei­delberg, onde obteve o grau de doutor em sociologia aos 22 ou 25 anos. (Fromm era uma pessoa tão reservada que seus biógrafos não concordam acerca de muitos fatos de sua vida [Homstein, 2000].)
Ainda não confiante de que sua formação fosse sufi­ciente para responder a perguntas tão perturbadoras quanto o suicídio de uma jovem mulher ou a insanidade da guer­ra, Fromm se voltou para a psicanálise, acreditando que ela prometia respostas às perguntas da motivação humana que não eram oferecidas em outros campos. De 1925 até 1930, ele estudou psicanálise, primeiro em Munique, de­ pois em Frankfurt e, finalmente, no Instituto Psicanalítico de Berlim, onde foi analisado por Hanns Sachs, um aluno de Freud. Apesar de Fromm nunca ter se encontrado com Freud, a maioria de seus professores durante aqueles anos incluía adeptos rigorosos da teoria freudiana (Knapp, 1989).

Em 1926, o mesmo ano em que repudiou o judaís­mo ortodoxo, Fromm se casou com Frieda Reichmann, sua analista, mais de 10 anos mais velha do que ele. Reichmann, mais tarde, obteria fama internacional por seu trabalho com pacientes esquizofrênicos. G. P. Knapp (1989) sustentava que Reichmann era claramente uma fi­gura materna para Fromm e que ela até mesmo se parecia com a mãe dele. Gail Homstein (2000) acrescentou que Fromm parecia ter ido diretamente da posição de predile­to da mãe para relacionamentos com inúmeras mulheres mais velhas que o mimavam. De qualquer forma, o casa­mento de Fromm e Fromm-Reichmann não era feliz. Eles se separaram em 1930, mas só se divorciaram anos mais tarde, após ambos imigrarem para os Estados Unidos.

Em 1930, Fromm e vários outros fundaram o Instituto Alemão para Psicanálise, em Frankfurt, mas, com a ameaça nazista se tornando mais intensa, logo se mudaram para a Suíça, onde se associaram ao recentemente fundado Ins­tituto de Pesquisa Social, em Genebra. Em 1933, Fromm aceitou um convite para fazer uma série de conferêndas no Instituto Psicanalítico de Chicago. No ano seguinte, imigrou para os Estados Unidos e abriu um consultório parti­cular na cidade de Nova York.

Tanto em Chicago quanto em Nova York, Fromm reto­mou o contato com Karen Horney, a quem havia conhecido casualmente no Instituto Psicanalítico de Berlim. Horney, que era 15 anos mais velha do que Fromm, acabou se tor­nando uma forte figura materna e foi sua mentora (Knapp, 1989). Fromm juntou-se à recém-formada Associação para o Avanço da Psicanálise (AAP) de Horney em 1941. Ain­da que ele e Horney tivessem sido amantes, em 1943, a discórdia dentro da associação os tornou rivais. Quando os alunos solicitaram que Fromm, que não possuía diploma de médico, desse um curso clínico, a organização se dividiu quanto a suas qualificações. Com Horney ficando contra ele, Fromm, junto a Harry Stack Sullivan, Clara Thompson [130]  e vários outros membros, deixaram a AAP e imediata­mente fizeram planos para dar início a uma organização alternativa (Quinn, 1987). Em 1946, esse grupo fundou o Instituto de Psiquiatria, Psicanálise e Psicologia William Alanson White, com Fromm presidindo tanto o corpo do­cente quanto a comissão de formação.

Em 1944, Fromm se casou com Henny Gurland, uma mulher dois anos mais moça do que ele e cujo interesse em religião e pensamento místico estimulou as inclinações de Fromm para o zen budismo. Em 1951, o casal se mudou para o México, em busca de um clima mais favorável para Gurland, que sofria de artrite reumatoide. Fromm se asso­ciou ao corpo docente da Universidade Nacional Autôno­ma na cidade do México, onde fundou um departamento psicanalítico no curso de mediana. Depois que sua esposa morreu, em 1952, ele continuou a viver no México e via­java entre sua casa em Cuernavaca e os Estados Unidos, onde exerceu várias funções acadêmicas, incluindo profes­sor de psicologia na Universidade Estadual de Michigan, de 1957 a 1961, e professor adjunto na Universidade de Nova York, de 1962 a 1970. Enquanto estava no México, conheceu Annis Freeman, com quem se casou em 1953. Em 1968, Fromm sofreu um ataque cardíaco grave e foi forçado a reduzir o ritmo de sua agenda lotada. Em 1974 e ainda doente, ele e sua esposa se mudaram para Muralto, Suíça, onde ele morreu, em 18 de março de 1980, poucos dias antes de completar 80 anos.

Que tipo de pessoa era Erich Fromm? Aparentemen­te, diferentes pessoas o viam de formas bastante distin­tas. Hornstein (2000) listou inúmeros traços opostos que foram usados para descrever a personalidade de Fromm. De acordo com esse levantamento, Fromm era autoritário, gentil, pretensioso, arrogante, devoto, autocrático, tímido, sincero, hipócrita e brilhante.

Fromm começou sua carreira profissional como psicoterapeuta usando a técnica psicanalítica ortodoxa, mas, depois de 10 anos, tornou-se "entediado” com a abordagem freudia­na e desenvolveu seus métodos mais ativos e confrontadores (Fromm, 1986,1992; Sobel, 1980). Ao longo dos anos, suas idéias culturais, sociais, econômicas e psicológicas alcan­çaram um público amplo. Seus livros mais conhecidos são: O medo à liberdade (1941), Análise do homem (1947), Psicanáli­se e religião (1950), A sociedade sadia ( Sane Society, 1955), A arte de amar (1956), Conceito marxista do homem (1961), O coração do homem (1964), Anatomia da huma­na (1973), Ter ou ser (1976) e Do amor à vida (1986).

A teoria da personalidade de Fromm se vale de muitas fontes, e talvez seja a teoria de mais ampla fundamentação. Landis e Tauber (1971) destacaram cinco influências importantes no pensamento de Fromm: (1) o ensino dos rabinos humanistas; (2) o espírito revolu­cionário de Karl Marx; (3) as idéias igualmente revolucio­nárias de Sigmund Freud; (4) a racionalidade do zen budis­mo, conforme defendida por D. T. Suzuki, e (5) os textos de Johann Jakob Bachofen (1815-1887) sobre sociedades matriarcais. [131]

Todos os textos
Todos Psicologia
Aprendendo com osfuracões de 2005

Durante e após os furacões devastadores de 2005 nas áreas do litoral do Golfo do Méxi­co, testemunhei o desespero e a desesperança dos sobreviventes que haviam perdido tudo. Ainda assim, história de esperança, resiliência, espiritualidade e heroísmo vinham à tona a partir dessas catástrofes. Ao entrarmos no século XXI, podemos aprender muito com essas pessoas que estão reconstruindo suas vidas. São necessários mais estudos para investigar os fatores positivos que ajudaram as pessoas a “seguir adiante” durante e após esses desastres. Embora as respostas possam ser complexas, os resultados serão úteis para ajudar outros indivíduos traumatizados a enfrentar efetivamente as adversidades que estão fora de seu controle. Essas conclusões também podem ser incorporadas a programas de prevenção mais amplos, baseados na psicologia positiva. Portanto, precisamos ser mais proativos na defesa de mais recursos para realizar pesquisa em psicologia positiva e desenvolver estraté­gias de psicologia positiva que venham a ensinar crianças e adultos a construir futuros de esperança, sentido e propósito. Não há lugar mais viável para a psicologia positiva do que sob condições de adversidade.

<<Expandir>>
Charles Darwin

Charles Robert Darwin, FRS FGRS FLS FLZ (pronúncia em inglês: ['dɑːrwɪn]; Shrewsbury, 12 de fevereiro de 1809 – Downe, 19 de abril de 1882) foi um naturalista, geólogo e biólogo britânico, célebre por seus avanços sobre evolução nas ciências biológicas. Juntamente com Alfred Wallace, Darwin estabeleceu a ideia que todos os seres vivos descendem de um ancestral em comum, argumento agora amplamente aceito e considerado um conceito fundamental no meio científico, e propôs a teoria de que os ramos evolutivos são resultados de seleção natural e sexual, onde a luta pela sobrevivência resulta em consequências similares às da seleção artificial.

Seu livro de 1859, A Origem das Espécies, causou espanto na sociedade e comunidade científica da época, mas conseguiu grande aceitação nas décadas seguintes, superando a rejeição que os cientistas tinham pela transmutação de espécies. Já em 1870, a evolução por seleção natural tinha apoio da maioria dos intelectuais. Sua aceitação quase universal, entretanto, não foi atingida até à emergência da síntese evolutiva moderna entre as décadas de 1930 e 1950 quando um grande consenso consolidou a seleção natural como o mecanismo básico da evolução. A teoria de Darwin é considerada o mecanismo unificador para explicar a vida e a diversidade na Terra.

Em seus primeiros anos, Darwin recusou cursar medicina na Universidade de Edimburgo; ao invés disso, focou-se em pesquisar sobre animais invertebrados. Pela Universidade de Cambridge (Christ's College), ele tomou a iniciativa pelas ciências naturais e viajou durante cinco anos pelo HMS Beagle, projeto que o lançou como iminente geólogo e cujas observações sustentaram as ideias de Charles Lyell; as publicações de seus diários sobre os trajetos percorridos consolidaram sua fama. Intrigado com a distribuição geográfica da vida selvagem e dos fósseis coletados durante sua viagem, Darwin começou investigações detalhadas e, em 1838, concebeu a teoria da seleção natural. Depois de discutir suas ideias com vários naturalistas, Darwin precisava de mais tempo para tornar sua ideia pública, algo que entrava em conflito com seu extensivo trabalho geológico que tinha prioridade. Em 1858, o naturalista Alfred Wallace manda um ensaio científico para Darwin estabelecendo as mesmas ideias e sugere uma publicação em conjunto.

Consagrada a publicação, a teoria evolutiva darwiniana determinou drasticamente o cenário da ciências biológicas, tornando-se a explicação dominante sobre o porquê da diversidade natural do planeta. Em 1871, Darwin volta a publicar livros significativos, desta vez começando sobre a sexualidade humana e sua descendência, intitulado A Descendência do Homem e Seleção em Relação ao Sexo, seguido por A Expressão da Emoção em Homens e Animais em 1872. Sua dedicação pelas plantas resultaram em várias publicações de livros, e seu último seria The Formation of Vegetable Mould through the Action of Worms em 1881, meses antes de sua morte no ano seguinte. Em reconhecimento à importância do seu trabalho, Darwin foi enterrado na Abadia de Westminster, próximo a Charles Lyell, William Herschel e Isaac Newton. Foi uma das cinco pessoas não ligadas à família real inglesa a ter um funeral de Estado no século XIX. Por seu papel científico, Darwin é considerado uma das maiores personalidades da história.

2/9/2021 6:04:10 PM | MenteCérebro, n.197
Maconha como remédio

Realizou-se em abril [2014] na Universidade de Campinas uma ampla discussão sobre drogas, culminando no debate de três questões provocativas: Maconha faz bem? Maconha faz mal? Devemos legalizar a maconha? Mil pessoas participaram com entusiasmo, refletindo o crescente interesse sobre o assunto. Nem o mais otimista dos ativistas imaginaria que a causa da legalização da maconha poderia avançar tão rapidamente quanto nos últimos meses.

Ciências naturais - Biologia
6/21/2018 9:20:16 PM | MenteCérebro n.141
Música por todos os sentidos

A percepção da música na antiguidade era muito mais abrangente no uso dos sentidos e na proposta de harmonização entre homem e universo.

Psicologia - Psicologia social
Todas as matérias
Todas Psicologia
Bases biológicas da personalidade

De acordo com Eysenck, os fatores da personalidade P, E e N possuem determinantes biológicos poderosos. Ele es­timou que cerca de três quartos da variância de todas as três dimensões da personalidade podem ser explicados pela hereditariedade e cerca de um quarto, pelos fatores ambientais. Eysenck (1990) citou três evidências para um com­ponente biológico forte na personalidade. Primeiro, os pesquisadores (McCrae & Allik, 2002) encontraram fato­res quase idênticos entre as pessoas em várias partes do mundo, não só no Oeste da Europa e na América do Norte, como também em Uganda, Nigéria, Japão, China, Rússia e outros países africanos e europeus. Segundo, evidências (McCrae & Costa, 2003) sugerem que os indivíduos ten­dem a manter sua posição ao longo do tempo nas diferen­tes dimensões da personalidade. E, terceiro, estudos de gêmeos (Eysenck, 1990) mostram uma concordância mais alta entre gêmeos idênticos do que entre gêmeos fraternos do mesmo gênero criados juntos, sugerindo que os fatores genéticos desempenham um papel dominante na determi­nação das diferenças individuais na personalidade.
Figura 14.4Na teoria da personalidade de Eysenck, psicoticismo, extroversão e neuroticismo possuem antecedentes e con­seqüências. Os antecedentes são genéticos e biológicos, enquanto as consequêndas incluem variáveis experimen­tais como experiêndas de condidonamento, sensibilidade e memória, além de comportamentos sociais como crimi­nalidade, criatividade, psicopatologia e comportamento sexual. A Figura 14.5 mostra que P, E e N estão no meio de uma progressão em cinco passos, desde o DNA até o comportamento social, com os intermediários biológicos e as evidêndas experimentais ancorando as três dimensões principais da personalidade. Em outras palavras, a persona­lidade possui determinantes genéticos que moldam indire­tamente os intermediários biológicos, e esses intermediá­rios biológicos ajudam a moldar P, E e N. Por sua vez, estes fatores contribuem para uma ampla variedade de aprendi­zados em laboratório, além de comportamentos sociais.

<<Expandir>>

Quem quer que tenha algo verdadeiro a dizer se expressa de modo simples. A simplicidade é o selo da verdade...

 
Arthur Schopenhauer
Todas as citações
{+} Arthur Schopenhauer
REDES SOCIAIS
TEORIAS DA PERSONALIDADE
biológica / evolucionista
Psicologia evolucionista
Teoria dos fatores de base biológica
Teoria evolucionista da personalidade
cognitivista / comportamental
Análise do comportamento
Teoria da aprendizagem social cognitiva
Teoria dos construtos pessoais
Teoria social cognitiva
disposicional
Psicologia do individuo
Teoria dos cinco fatores (Big Five)
humanista / existencial
Psicologia existencial
Teoria centrada na pessoa
Teoria holístico-dinâmica
psicodinâmica
Psicanálise
Psicanálise humanista
Psicologia analítica
Psicologia individual
Teoria das Relações Objetais
Teoria pós-freudiana
Teoria social psicanalítica
virtudes positivas
Psicologia positiva
ÁREAS DE ATUAÇÃO
Gestalt-Terapia
Psicodiagnóstico
Psicologia da saúde
Psicologia escolar
Psicologia jurídica
Psicologia social
psicologia da ciência

Uma subdisciplina da psicologia que es­tuda tanto a ciência quanto o comportamento dos cientistas,

Teorias da Personalidade. 8ª ed. (p. 402)
NOTÍCIAS
Revista Mente-Cerebro
29 Nov , 2019, 20:05h
Preocupação com dinheiro duplica a dor
Psicologia - Neuropsicologia
BBC Brasil
23 Feb , 2019, 16:45h
Silêncio, por favor - ausência de barulho pode turbinar o cérebro e a criatividade
Psicologia - Neuropsicologia
BBC Brasil
16 Feb , 2019, 15:33h
Como Sigmund Freud introduziu a cocaína na medicina europeia
Psicologia - Psicanálise
ScienceAlert
14 Feb , 2019, 10:18h
Existe uma estranha similaridade entre a comunicação de chipanzés e a linguagem humana
Ciências naturais - Evolução Humana
Mais
Todas Psicologia
TEORIAS E SISTEMAS
A associação por contiguidade e por repetição
David Hartley
A interação mente-corpo
René Descartes
A natureza do corpo
René Descartes
Abordagem de quatro frentes
Shane J. Lopez
Ação violenta
Maria Isabel da Silva Leme
Ação violenta
Ron Astor
Acolhimento familiar
M. Luna
Acolhimento familiar
Nina Rosa do Amaral-Costa, Maria Clotilde Rossetti-Ferreira
Acolhimento familiar e o Estado
Nina Rosa do Amaral-Costa, Maria Clotilde Rossetti-Ferreira
Adaptação
David Michael Buss
Adaptações características
Robert Roger McCrae, Paul T Costa Jr
Adolescência e redes sociais
K. D. Johnson, L. B. Whitbeck, D. R. Hoyt
Agência por procuração
Albert Bandura
Alternativismo construtivo
George Alexander Kelly
Altruísmo
Shane J. Lopez
Amor, cuidado e vínculo
Rollo Reese May
Análise dos sonhos
Carl Gustav Jung
Análise dos sonhos
Sigmund Freud
Anima
Carl Gustav Jung
Animus
Carl Gustav Jung
Ansiedade básica
Karen Danielsen Horney
Ansiedade neurótica
Rollo Reese May
Apercepção
Wilhelm Maximilian Wundt
Aprendizagem enativa
Albert Bandura
Aprendizagem por observação
Albert Bandura
Arco Reflexo
John Dewey
Arquétipo
Carl Gustav Jung
Associação das sensações
George Berkeley
Associação de ideias
Francis Galton
Ausência da figura paterna e infrações juvenis
B. de M. Branco, A. Wagner, K. A. Demarchi
Ausência de valores contrários à violência
Laurence Steinberg
Auto imagem idealizada
Karen Danielsen Horney
Autoatualização
Carl Ransom Rogers
Autoconceito
Robert Roger McCrae, Paul T Costa Jr
Autoconsciência
Burrhus Frederic Skinner
Autocontrole
Burrhus Frederic Skinner
Autoeficácia
Albert Bandura
Auto-estima
Yves de la Taille
Autonomia funcional
Gordon Willard Allport
Auto-ódio
Karen Danielsen Horney
Auto-respeito
Yves de la Taille
Autorrealização
Abraham Harold Maslow
Autorrealização
Carl Gustav Jung
Autorregulação
Albert Bandura
Awareness
Carl Ransom Rogers
Banalização/Naturalização da violência doméstica
L. F. Costa, V. A. Santos
Bases biológicas
Robert Roger McCrae, Paul T Costa Jr
Behaviorismo intencional
Edward Chace Tolman
Bem-estar emocional
Charles Richard Snyder
Bem-estar psicológico
Charles Richard Snyder
Bem-estar subjetivo
Charles Richard Snyder
Biografia objetiva
Robert Roger McCrae, Paul T Costa Jr
Características das famílias de baixa renda
P. Minuchin, J. Colapinto, S. Minuchin
Caráter de orientação não produtiva
Erich Fromm
Caráter de orientação produtiva
Erich Fromm
Coesão grupal
Aroldo Rodrigues
Compensação
Alfred Adler
Complexo de Édipo
Melanie Klein
Complexo de Jonas
Abraham Harold Maslow
Comportamento agressivo
Laurence Steinberg
Comportamento desorganizado
Carl Ransom Rogers
Comportamento inconsciente
Burrhus Frederic Skinner
Conceito e estrutura de família
S. Minuchin
Condicionamento operante
Burrhus Frederic Skinner
Condicionamento respondente
Burrhus Frederic Skinner
Condições de valor
Carl Ransom Rogers
Conexionismo
Edward Lee Thorndike
Congruência do terapeuta
Carl Ransom Rogers
Consciência
Carl Gustav Jung
Consideração positiva incondicional
Carl Ransom Rogers
Construção da identidade
Jean Piaget
Construtos pessoais
George Alexander Kelly
Controle social
Burrhus Frederic Skinner
Coragem
Shane J. Lopez
Corolários de apoio
George Alexander Kelly
Criatividade
Burrhus Frederic Skinner
Cuidados parentais e 'fracasso no desenvolvimento da personalidade'
J. Bowlby
Cuidados parentais negligenciados, psicopatologia e desenvolvimento da personalidade
J. Bowlby
Culpa ontológica
Rollo Reese May
Darwinismo social
Herbert Spencer
Desenvolvimento de conduta juvenil agressiva
W. Marshall
Desequilíbrio psicológico
Alfred Adler
Desequilíbrio psicológico
Albert Bandura
Destino
Rollo Reese May
Dialeto do órgão
Alfred Adler
Dicotomias existenciais
Erich Fromm
Diferenças individuais
David Michael Buss
Dificuldade no enfrentamento de agressão sexual
C. Sanderson
Dimensão Cefalização
Dalgalarrondo
Dimensão centralização
Dalgalarrondo
Disposições pessoais
Gordon Willard Allport
Dissociação
Melanie Klein
Distorção e negação
Carl Ransom Rogers
Doutrina das ideias
René Descartes
Dualidade mente-corpo
René Descartes
Efeito de Zeigarnik
Kurt Lewin
Eficácia coletiva
Albert Bandura
Ego
Erik Homburger Erikson
Ego e Superego
Melanie Klein
Elementos da consciência
Edward Bradford Titchener
Emoções
Burrhus Frederic Skinner
Espaço vital
Kurt Lewin
Esperança
Charles Richard Snyder
Esquemas de reforço
Burrhus Frederic Skinner
Estilo de vida
Alfred Adler
Estudo dos Atos Mentais
Franz Clemens Honoratus Hermann Brentano
Estudos preditores para infrações juvenis
B. de M. Branco, A. Wagner, K. A. Demarchi
Ethos de hipermasculinidade
Alba Zaluar
Evolução das espécies não teleológica
Darwin
Expectativa
Julian B. Rotter
Experiência culminante
Abraham Harold Maslow
Experiência mediata e imediata
Wilhelm Maximilian Wundt
Extinção
Burrhus Frederic Skinner
Extroversão
Hans Jurgen Eysenck
Extroversão
Carl Gustav Jung
Família como responsável pelo desenvolvimento do equilíbrio emocional
M. Grossman, K. M. Rowat
Família como responsável pelo desenvolvimento do equilíbrio emocional
L. Costa
Família como responsável pelo desenvolvimento do equilíbrio emocional
S. N. Raja, R. McGee, W. R. Stanton
Família como responsável pelo desenvolvimento do equilíbrio emocional
I. A. Günther
Família como responsável pelo desenvolvimento do equilíbrio emocional
L. C. Osório
Família como responsável pelo desenvolvimento do equilíbrio emocional
E. Atwater
Família como responsável pelo desenvolvimento do equilíbrio emocional
T. Féres-Carneiro
Família como responsável pelo desenvolvimento do equilíbrio emocional
T. Féres-Carneiro
Família como sistema
B. E. Oliver
Família como sistema
P. Minuchin, J. Colapinto, S. Minuchin
Família como sistema
D. Miller
Famílias reconstituídas no desenvolvimento do equilíbrio emocional
M. Grossman, K. M. Rowat
Famílias reconstituídas no desenvolvimento do equilíbrio emocional
A. Wagner, Cols
Famílias reconstituídas no desenvolvimento do equilíbrio emocional
A. Wagner, Cols
Famílias reconstituídas no desenvolvimento do equilíbrio emocional
J. H. Bray, D. M. Harvey
Felicidade
Charles Richard Snyder
Feliz agressor
Jean Piaget
Fenótipo
Cláudio da Cunha
Ficcionalismo
Alfred Adler
Filosofia sintética
Herbert Spencer
Flow
Mihaly Csikszentmihalyi
Força criativa
Alfred Adler
Forças de caráter
Martin Seligman
Frenologia
Franz Josef Gall
Genótipo
Cláudio da Cunha
Grande-Mãe
Carl Gustav Jung
Gratidão
Shane J. Lopez
Hábito
William James
Herança mental (eugenia)
Francis Galton
Herói
Carl Gustav Jung
Hierarquia das necessidades
Abraham Harold Maslow
Homossexualismo na Grécia clássica
Renato Mezan
Hostilidade básica
Karen Danielsen Horney
Id, Ego e Superego
Sigmund Freud
Idade adulta
Erik Homburger Erikson
Idade do jogo
Erik Homburger Erikson
Idade escolar
Erik Homburger Erikson
Ideias simples e ideias complexas
John Locke
Identificação projetiva
Melanie Klein
Imagens mentais
Francis Galton
Imaginação ativa
Carl Gustav Jung
Impulsos
Burrhus Frederic Skinner
Incongruência
Carl Ransom Rogers
Inconsciente coletivo
Carl Gustav Jung
Inconsciente pessoal
Carl Gustav Jung
Individualismo
Charles Richard Snyder
Infância precoce
Erik Homburger Erikson
Inferioridade física
Alfred Adler
Influências externas
Robert Roger McCrae, Paul T Costa Jr
Início da idade adulta
Erik Homburger Erikson
Intenção e propósito
Burrhus Frederic Skinner
Intencionalidade
Rollo Reese May
Interação pessoa-situação
Walter Mischel
Interesse social
Alfred Adler
Introjeção
Melanie Klein
Introversão
Carl Gustav Jung
Jovem infrator e família
B. Bulaccio
Jovem infrator e família
M. D. Krohn, G. P. Hall, A. J. Lizotte
Jovem infrator e família
B. Bulaccio
Jovem infrator e família
P. Segond
Jovem infrator e o contexto de carência social
M. A. Sales
Jovem infrator e o contexto de carência social
A. L. S. Castro, P. A. Guareschi
Jovem infrator e o contexto de carência social
S. Minuchin
Jovem infrator e o contexto de carência social
Luana Alves de Souza, Liana Fortunato Costa
Jovem infrator e o contexto de carência social
M. A. Sales
Jovens infratores e a ausência da figura paterna
L. F. Costa & cols
Jovens infratores, abuso de substância e a ausência de figura paterna
M. A. Penso, L. F. Costa & M. F. O. Sudbrack
Lactância
Erik Homburger Erikson
Lei do efeito
Edward Lee Thorndike
Leis da associação
David Hume
Liberdade
Rollo Reese May
Liberdade positiva
Erich Fromm
Locus de controle
Julian Rotter
Mecanismos de fuga
Erich Fromm
Mecanismos evoluídos
David Michael Buss
Mentalismo
George Berkeley
Mente como tábula rasa
John Locke
Mesmerismo - Hipnose
Franz Anton Mesmer
Metanecessidades
Abraham Harold Maslow
Mindfulness
Ellen Jane Langer
Minding - Atenção no relacionamento
John Harvey
Minorias e maiorias psicológicas
Kurt Lewin
Modelagem
Burrhus Frederic Skinner
Modelo comportamental
Albert Bandura
Monadologia
Gottfried Wilhelm Leibnitz
Motivação
Gordon Willard Allport
Mudança de comportamento
Burrhus Frederic Skinner
Não-ser
Rollo Reese May
Narcisismo das pequenas diferenças
Maria Rita Kehl
Narcisismo das pequenas diferenças
Daniela Ropa
Narcisismo maligno
Erich Fromm
Nascimento psicológico
Margaret Schoenberger Mahler
Necessidades humanas
Erich Fromm
Necessidades neuróticas
Karen Danielsen Horney
Necrofilia
Erich Fromm
Neuroticismo
Hans Jurgen Eysenck
Normas grupais
Aroldo Rodrigues
O Eu de três partes
William James
Objetivo final
Alfred Adler
Ordem de nascimento
Alfred Adler
Otimismo
Scheier e Carver (1985)
Otimismo aprendido
Martin Seligman
Papel da família, autoridade e estrutura familiar
S. Minuchin
Paradoxo da consistência
Walter Mischel
Pensamento humano criativo
Max Wertheimer
Pensamento sem imagens
Oswald Külpe
Perdão
Charles Richard Snyder
Persona
Carl Gustav Jung
Personalidade
Gordon Willard Allport
Personalidade autotélica
Mihaly Csikszentmihalyi
Pessoa do futuro
Carl Ransom Rogers
Pessoa sadia
Gordon Willard Allport
Pobreza politizada, ignorância do sujeito de direito
M. Peterson-Badali, J. Broeking
Pobreza politizada, ignorância do sujeito de direito
P. Demo
Posição depressiva
Melanie Klein
Posição esquizoparanóide
Melanie Klein
Positivismo
Isidore Auguste Marie François Xavier Comte
Potencial do comportamento
Julian B. Rotter
Potencialização primária
Charles Richard Snyder
Potencialização secundária
Charles Richard Snyder
Práxis de grupo
Jean Paul Sartre
Preconceito
Renato Mezan
Prevenção primária
Shane J. Lopez
Prevenção secundária
Shane J. Lopez
Principio da organização
Dalgalarrondo
Princípio da relação entre o cérebro do organismo e ambiente
Dalgalarrondo
Princípio do tamanho cerebral
Dalgalarrondo
Princípio do tamanho cerebral
Dalgalarrondo
Princípio do tamanho cerebral
Dalgalarrondo
Princípio epigenético
Erik Homburger Erikson
Processo grupal
Silvia Tatiana Maurer Lane
Processos mentais superiores
Burrhus Frederic Skinner
Progressão e regressão
Carl Gustav Jung
Projeção
Melanie Klein
Psicoticismo
Hans Jurgen Eysenck
Pulsões
Sigmund Freud
Punição
Burrhus Frederic Skinner
Qualidades primárias e secundárias
John Locke
Química mental
John Stuart Mill
Racismo e Raça
Jurandir Freire Costa
Racismo e Raça
Jurandir Freire Costa
Reflexo associado
Vladimir Mikhailovitch Bekhterev
Reflexo condicionado
Ivan Petrovitch Pavlov
Reforço
Burrhus Frederic Skinner
Reforço vicário
Albert Bandura
Relacionamento familiar e jovens infratores
S. Zankman & J. Bonomo
Relacionamento familiar e jovens infratores
S. W. Hengeller & Cols
Relacionamento familiar e jovens infratores
L. F. Costa & cols
Repressão
Sigmund Freud
Resiliência
Charles Richard Snyder
Resistência
Sigmund Freud
Ruído
David Michael Buss
Sabedoria
Charles Richard Snyder
Savoring
Fred Bryant
Self
Carl Gustav Jung
Self ideal
Carl Ransom Rogers
Sensação e reflexão
John Locke
Serialidade
Jean Paul Sartre
Ser-no-mundo
Rollo Reese May
Significação do ato do jovem infrator
M. F. O. Sudbrack
Significação do ato do jovem infrator (Acting out)
D. Marcelli, A. Braconnier
Simbiose incestuosa
Erich Fromm
Síndrome de decadência
Erich Fromm
Situação estranha
Mary Dinsmore Ainsworth
Situação psicológica
Julian B. Rotter
Sombra
Carl Gustav Jung
Sonhos
Burrhus Frederic Skinner
Subproduto
David Michael Buss
Superioridade pessoal
Alfred Adler
Tendência atualizante
Carl Ransom Rogers
Tendência formativa
Carl Ransom Rogers
Tendências à salva-guarda
Alfred Adler
Tendências básicas
Robert Roger McCrae, Paul T Costa Jr
Tendências neuróticas
Karen Danielsen Horney
Teoria da associação
John Locke
Teoria da expectativa
V. H. Vroom
Teoria da recapitulação
Granville Stanley Hall
Teoria das emoções
William James
Teoria de autoexpansão do amor romântico
Arthur Aron e Elaine Aron
Teoria do apego
John Bowlby
Teoria do Apego e cuidados parentais
J. Bowlby
Teoria do ato reflexo
René Descartes
Teoria do Bem-Estar (PERMA)
Martin Seligman
Teoria do reforço
Burrhus Frederic Skinner
Teoria do Self
Heinz Kohut
Teoria dos dois fatores
Frederick Irving Herzberg
Teoria triangular do amor
Robert Sternberg
Teoria tridimensional do sentimento
Wilhelm Maximilian Wundt
Teste de associação de palavras
Carl Gustav Jung
Testes mentais
Francis Galton
Testes mentais
James McKeen Cattell
Tornar-se pessoa
Carl Ransom Rogers
Transferência
Sigmund Freud
Transformação subjetiva
Carl Gustav Jung
Valor do reforço
Julian B. Rotter
Variáveis de situação
Walter Mischel
Variáveis intervenientes
Edward Chace Tolman
Velhice
Erik Homburger Erikson
Velho Sábio
Carl Gustav Jung
Vínculo
Shane J. Lopez
Voluntarismo
Wilhelm Maximilian Wundt
PSICÓLOGOS E OUTRAS PERSONALIDADES
Por área e/ou origem
Documentários
Freud, análise de uma mente 
The Biography Channel
Why do we talk? 
Horizon
BBC
The Creative Brain - How Insight Works 
Horizon
BBC
What's In Our Food? Ep. 01
Transcendence: Live fife beyond the ordinary
Gaia
Produtoras
Documentários séries
Todos os documentários
Todos Psicologia
Explore o templodeapolo.net
Astronomia
Ciências humanas
Ciências naturais
Filosofia
História
Mitologia
Psicologia
Templodeapolo.net
2024 - v.12
CONTATO
RECLAMAÇÕES DE DIREITOS
POLÍTICA DE PRIVACIDADE
SOBRE O TEMPLO
Templodeapolo.net desde 2007 - Todos os textos publicados e seus respectivos direitos são de responsabilidade de seus autores e editoras - Textos que não incluam a autoria não são propriedade do editor deste sítio. Para receber as referências nestes casos, clique no link respectivo e solicite autoria e referências. - O Templodeapolo.net não possui nenhuma finalidade comercial. Não há propaganda e esperamos continuar assim. A proposta do sítio é puramente acadêmica, consistindo na publicação de textos com temas variados, classificados e organizados contextualmente para facilitar as pesquisas e navegação. - Caso você seja autor de algum material publicado sem sua devida autorização, por favor entre em contato para remoção imediata. - O editor, Odsson Ferreira, é psicologo graduado pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás - PUCGO. Pós graduado lato sensu em Psicologia Positiva e Mestrando em Cognição Humana pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS. Templodeapolo.net ® Todos os direitos reservados aos seus respectivos proprietários.