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Comportamento - Mindlessness, 
7/3/2022 3:40:46 PM | Por Robert Biswas-Diener, Todd B. Kashdan
O papel da intuição no bem-estar

Ao entrar numa livraria, você encontra uma estante, quando não uma seção inteira, de títulos que alardeam as vantagens de desenvolver mindfulness. Resumidamente, mindfulness é um es­tado de consciência plena. É saber observar o mundo à sua volta sem interferências de diálogo interno, julgamento e outras distra­ções. É conseguir ver um vestido como vermelho em vez de “lin­do”, ou ficar desapontado por alguma coisa em vez de se ver como “um fracasso”. Mindfulness está muito em moda. Phil Jackson, trei­nador que ganhou os maiores campeonatos da NBA em todos os tempos, era famoso por recomendar técnicas de mindfulness aos jogadores de basquete. Meditação mindfulness e concentração são usadas em psicoterapias, treinamentos esportivos e até no ramo dos negócios. Atualmente, mindfulness é aclamada como o estado ótimo do funcionamento humano.

Os entusiastas de mindfulness não são apenas uns poucos sob a influência de algum elixir da Nova Era. Há um crescente corpo de evidências científicas corroborando as vantagens da “observação tranqüila”, em oposição a julgamento e interpretação, daquilo que acontece no momento presente. Uma série de estudos mostra que pessoas com tendência a ser mindful na vida afirmam ter mais felicidade, encontram mais significado e propósito na vida, têm inteligência emocional superior, maior nível de autocompaixão e maior capacidade de lidar com situações de estresse crônico. Mindfulness, ao que parece, é bom demais.

Se você quiser dados específicos convincentes, não precisa ir além dos dois principais cientistas que foram instrumentais na popularização de práticas de mindfulness nos Estados Unidos, Jon Kabat-Zinn, da Universidade de Massachusetts Medical School, e Richard Davidson, da Universidade de Wisconsin.2 Kabat-Zinn é considerado o pai do movimento mindfulness norte-americano, e Davidson é famoso e altamente conceituado por seu pendor a usar ressonância magnética funcional e outros instrumentos de mapeamento cerebral para estudar os fundamentos biológicos e psicológicos de mindfulness. Num estudo recente, Kabat-Zinn e Davidson deram um curso de oito semanas para funcionários de uma empresa de biotecnologia. Após exporem muitos funcionários a um surto de gripe, constataram que os que haviam feito o curso apresentaram uma notável resistência à gripe.

Como se a maior imunidade não bastasse, os pesquisadores descobriram também mudanças concretas no cérebro daqueles funcionários após meras vinte horas de treinamento em mindfulness (duas horas e meia por semana). Constataram um aumento de 400% de ativação no lado esquerdo do córtex pré-frontal anterior.3 Você deve estar se perguntando: “Será que eu quero um córtex pré-frontal anterior mais ativado?” A resposta é sim. Essa é a região do cérebro associada a emoções positivas e à predisposição para ver o estresse mais como um desafio a ser enfrentado do que um perigo a ser evitado. Aqueles funcionários precisaram apenas do tempo que levariam assistindo a quatro jogos de futebol ou indo três vezes ao supermercado para modificar o cérebro de modo a ter maior sucesso. É correto dizer que mindfulness não é só ótimo; é realmente ótimo.

Se mindfulness é tão útil, por que não nascemos equipados para fazer isso com mais frequência? Há uma razão para os seres humanos terem evoluído de modo a passar uma enorme quantidade de tempo sendo mindless, distraídos. O pensamento consciente, que nos mantém atentos ao que está acontecendo no momento presente, tem uma capacidade de processamento muito limitada. Pense no esforço dispendido pelo cérebro quando passamos por alguém na rua. Estimamos a distância que estamos do corpo da pessoa, calculamos nossa velocidade e a dela, calculamos onde nosso corpo termina e o dela começa, para evitar um esbarrão, e enquanto tudo isso está acontecendo movemos magistralmente uma perna após a outra sem tropeçar em nada no chão, nem atropelar uma árvore em nosso espaço aéreo.

Quando você vê o rosto de alguém, decide imediatamente se é uma pessoa conhecida e, pela expressão dela, avalia se ela está feliz ou infeliz, se é amigável ou perigosa, querendo ou não parar para conversar. Essa função é ainda mais difícil porque, em vez de ficarem parados, os músculos faciais da pessoa se movem, mostrando expressões ligeiramente diferentes a cada poucos segundos, o que exige uma avaliação contínua. Se por acaso você conhece a pessoa, ainda precisa acessar funções de nível mais alto. Precisa lembrar o nome, o tipo de seu relacionamento com ela, lembrar o que conversaram em interações anteriores, e pôr em ação habilidades motoras finas de contato visual (nem de mais nem de menos), volume da voz, conteúdo verbal, e habilidades de audição e codificação exigidas para manter uma conversa. Se você precisasse proceder com atenção consciente e deliberada, jamais seria capaz de chegar ao fim dessa lista enorme de atividades.

A mente consciente é incapaz de manipular as camadas de dados complexos, dinâmicos, que nos inundam a cada momento. Um erro de processamento e você é atropelado por um carro em alta velocidade, fala um palavrão na frente das crianças, deixa escapar um segredo profissional, queima a mão no forno, comete um milhão de pequenas faltas. Por necessidade, muito desse processamento mental ocorre na velocidade do pensamento fora do radar da atenção consciente.

Neste capítulo, dizemos “mindless” para indicar um claro contraste da obsessão cultural de mindfulness como solução para boa saúde, bons relacionamentos e maior sucesso. As pessoas se sentem desconfortáveis com mindfulness porque é o oposto da intencionalidade, da estratégia e de todas as indicações de superioridade da inteligência humana. Uma longa tradição de intelectuais afirma que o bem viver é previdente e planejado. Mindlessness, pelo contrário, é a marca característica de, digamos, zumbis. Curiosamente, tomando o exemplo de zumbis, podemos encontrar uma ilustração das vantagens de mindlessness.

Steven Yeun faz o papel de Glenn na premiada série de televisão sobre o apocalipse de zumbis, The Walking Dead. Em quatro temporadas, o personagem de Steven se transforma de enérgico herói em esfalfado sobrevivente que foge com seus amigos de um ataque após outro de zumbis famintos de carne humana. Você pensaria que, como ator, Yeun deve dedicar uma quantidade considerável de atenção consciente às emoções, postura e atitudes do personagem. Isso deve se aplicar principalmente a cenas complicadas, quando ele finge pisotear um zumbi numa luta. Yeun diz que o segredo para fazer a cena parecer real é pensar como um zumbi, isto é, não pensar. Ele comenta que, se fosse ter o cuidado de calcular quantos centímetros de distância seu pé precisaria es­tar da cabeça do ator que representa o zumbi, a cena ficaria desco­nexa e artificial. Em vez de pensar muito firme e deliberadamente (concentração bruta), ou se fixar numa observação sem julgamen­to do que está ocorrendo no momento (mindfulness) para fazer bem seu papel, ele precisa atuar com um mínimo de reflexão conscien­te, exatamente como se comportaria se realmente estivesse andan­do pela rua tentando se livrar de um bando de zumbis comedores de cérebros. Ele precisa confiar no processamento automático, que se compõe de decisões intuitivas, instintivas, ações baseadas no bem projetado equipamento evolucionário, e em anos de pro­fissão (que Steven Yeun tem como ator). No centro da brilhante atuação de Yeun, está a capacidade de se perder - largar sua men­te consciente - totalmente e se tornar outra pessoa, o personagem tentando sobreviver ao apocalipse de zumbis num mundo alter­nativo onde milhões de telespectadores entram durante uma hora a cada semana.

As páginas a seguir exploram três áreas em que as pesquisas científicas sugerem que mindlessness pode ajudá-lo a ser mais pro­dutivo, criativo, e mais capaz de trilhar o tormentoso e ambíguo terreno da vida diária. Podemos definir mindlessness como um es­pectro que vai da distração à total imersão no inconsciente, mas isso não faria justiça ao tópico. Assim sendo, vamos expor três ti­pos de mindlessness que podem apontar o caminho do sucesso e bem-estar: 1) ligar o piloto automático, 2) partir para ações impul­sivas e 3) confiar em decisões mindless. As pessoas mais psicologi­camente flexíveis - e mais bem-sucedidas - têm a capacidade de transitar muito bem entre mindfulness e mindlessness, em vez de ficarem presas a um desses modos. Ao conhecer e usar intencionalmente esses caminhos, ainda que subestimados, você poderá ter aqueles 20% a mais, desperdiçados por quem permanece ligado à ideia de que mindfulness é melhor que mindlessness.

Três caminhos mindless para o sucesso e bem-estar

O pensamento consciente se mantém firme sob o farol [enquanto] o pensamento inconsciente se aventura pelas fendas e recantos escuros e poeirentos da mente - Dijksterhuis &Meurs, 2006

LIGAR O PILOTO AUTOMÁTICO

Para economizar espaço de computação no cérebro, as pessoas recorrem ao pensamento heurístico, isto é, usam atalhos cognitivos automáticos - e portanto mindless. Um modo comum de usar o pensamento heurístico é categorizar as coisas. Quando você vai ao correio, não vai ao balcão perguntar se o funcionário fala sua língua. Ele já foi categorizado como funcionário do correio e, como tal, você supõe que saiba muitas coisas (fala o idioma nacional, é alfabetizado, sabe o preço dos selos, pode responder a perguntas sobre formas de pagamento e assim por diante). A heurística poupa tempo e um valioso espaço cognitivo, pois não incomoda a mente consciente com exercícios desnecessários.

Pesquisas mostram que as pessoas são capazes de fazer julgamentos categóricos inconscientes sobre os outros com uma rapidez extraordinária.5 Num estudo sobre primeiras impressões, os participantes só levaram um décimo de segundo para tirar conclusões sobre a personalidade do outro. Nesse breve espaço de tempo, fizeram julgamentos sobre confiabilidade, estabilidade emocional, gentileza, entusiasmo, negligência, abertura a novas experiências e outros aspectos da personalidade. Se colocarmos esse nosso espantoso aparelho detector de personalidade em perspectiva, você levaria duzentas vezes mais tempo só para ler este parágrafo. Você deve estar se perguntando se essas avaliações tão rápidas são corretas. Numa ampla série de estudos, pesquisadores constataram que observações em “fatia fina” têm exatidão bem acima da média (cerca de 70% corretas).6 Resultado excelente para um pingo de tempo e esforço.

1. DETECTOR MINDLESS DE SITUAÇÕES SOCIAIS IMPRECISAS

Um aspecto importante do pensamento automático é determinar se uma pessoa desconhecida é ou não confiável. Essa difícil tarefa é essencial para relações comerciais e sociais, afora a segurança pessoal. Se errar, você pode ser lesado, atacado ou, no mínimo, perder um tempo enorme quando poderia estar alicerçando uma boa amizade com outra pessoa. Muitos cientistas acreditam que confiamos ou não conforme as reações da pessoa às nossas “deixas”. Quando o outro espelha nosso comportamento, é um sinal de que nossas necessidades, valores e bem-estar o afetam e despertam seu interesse.

Rick van Baaren e seus colegas da Universidade de Nijmegen viram que, quando garçons repetiam os pedidos dos clientes (um sinal claro de que o garçom estava atento), as gorjetas aumentavam em até 68%.7 Estamos certos de que era um ato mindless dos clientes (não calculavam ativamente quanto dinheiro deixar na mesa se o garçom repetia em voz alta seu pedido de um copo de água). Esse simples ato de repetir o pedido é um sinal sutil de que o garçom está atento, ciente e é confiável no contexto do restaurante.

Uma boa manutenção de interações sociais pode ser difícil, inclusive nas conversas em que você está fora de sintonia com a pessoa, ou quando sorri e se inclina para contar uma piada e a pessoa não se aproxima nem muda de expressão. Uma troca sem movimentos coordenados e algum grau de espelhamento é esquisita e desagradável. Pesquisadores afirmam, com razão, que gostamos mais da pessoa quando ela imita nosso humor e nossos gestos - não quando estão zombando, mas quando espelham sutilmente nossa postura, emoção e até o modo de falar. Por outro lado, essa imitação não é apropriada quando estamos competindo com alguém ou pedindo a um vendedor de automóveis uma orientação sobre o melhor carro para a família.

Psicólogos da Universidade de Groningen, da Universidade de Duke e da Universidade de Yale investigaram reações a “sinais sociais de nuanças negativas”.8 Num estudo, quando os participantes foram recebidos por um profissional muito formal e empertigado que tentou imitá-los durante uma interação social, ficaram “arrepiados” literalmente, sentindo 2,5 vezes mais frio do que quando a mesma pessoa não tentou imitá-los. Quando recebidos por uma pessoa amigável, brincalhona, os participantes a preferiam quando ela imitava seus gestos: sentiram duas vezes mais frio físico após passarem algum tempo com uma pessoa amigável que não os imitava, como se o corpo reconhecesse ali uma recepção fria.

Com essa perspectiva em mente, veja o que aconteceu num estudo em que participantes de diferentes grupos raciais interagiram, e depois pediram que eles adivinhassem qual era a temperatura do ambiente. Numa interação de pessoas da mesma raça, a ausência de imitação provocou uma sensação de frio, 2,04° mais frio, para sermos exatos. E, quando a interação se deu com uma pessoa de outra raça, foi a presença de imitação que provocou a sensação de 2,47° mais frio no ambiente. Esse e outros estudos similares são compatíveis com a ideia de que cada um de nós tem uma reação visceral a comportamentos desencontrados em certas situações. Dado que a imitação é tipicamente considerada um sinal de intimidade, é fácil entender que, quando alguém não está esperando intimidade, a imitação desperta suspeita. Pense na queda de temperatura psicológica como um levíssimo sinal, nas franjas da consciência, de que há maneiras menos ameaçadoras, menos incômodas de passar o tempo do que estar com aquela pessoa.

Essa forma de autoproteção mindless é cortesia de milhares de anos de evolução. Perguntado sobre a lição prática a ser extraída disso, o principal autor do estudo, Pontus Leander, diz:

E melhor não se “empenhar tanto” em adotar completamente, porque o tiro pode sair pela culatra (por exemplo, imitação numa interação inter-racial). Esses estudos mostram que é melhor deixar acontecer alguns processos automáticos. Fui criado numa região do Sul, e sempre ouvi dizerem “se está funcionando, não precisa consertar”; talvez isso se aplique especialmente à imitação.

Propomos a seguinte seqüência: 1) numa interação social com alguém que você mal conhece ou numa conversa sobre um assunto delicado, deixe o processo quase mindless acontecer; 2) faça um esforço consciente para notar qualquer mudança em seu próprio corpo; 3) observe se seu detector de perigo está ou não indo longe demais. Sim, estamos falando das vantagens complementares de começar com mindlessness e depois ir trazendo a atenção consciente para a situação entre você e o outro. Não estamos defendendo a necessidade de uma luta entre mindfulness e mindlessness. É um trabalho em conjunto, numa determinada ordem.

A primeira parte da seqüência, ligar o piloto automático, é o que nós, autores, nunca tínhamos considerado antes. Antes de escrever este livro, nenhum de nós tinha usado o fator de estimativa de temperatura ao tratar de negócios, em encontros amorosos ou em conversas com desconhecidos num saguão de hotel. Mas, agora, sim. Tomamos consciência das vantagens de mindlessness. Além de avaliar a aparência física, inteligência, curiosidade e simpatia, observamos se há alguma queda de temperatura física quando estamos perto de alguém. Antes seria normal exclamar “puxa, que frio!”, mas agora, quando sentimos um arrepio ou pensamos em buscar um agasalho, entramos em alerta. Estamos um pouquinho mais céticos, procurando algum sinal de perigo/manipulação, que antes não registrávamos conscientemente. De posse desses dados que ignorávamos, talvez tenhamos tomado decisões melhores ao contratar empregados e tomar um táxi em terra estrangeira.

2. AJUSTE MINDLESS DA EMOÇÃO

Curiosamente, o processamento automático também se aplica à emoção. Um ajuste saudável da emoção - a tentativa de controlar ou alterar o tipo, intensidade e expressão de nossas reações ao mundo - está vinculado às partes mais importantes do bem viver. Por exemplo: pesquisadores sugerem que falhas no ajuste das emoções são parcialmente responsáveis por problemas individuais como depressão, agressão, infidelidade, e, na esfera profissional, mau desempenho, roubo e assédio. Sabendo como é importante, e difícil, ajustar emoções intensas como raiva, medo, tristeza, vergonha, convém ponderar se o gerenciamento consciente das emoções exige esforço demais, e se é vagaroso demais para nos ajudar em situações fortes.

Situações fortes são aquelas em que somos tomados por emoções intensas e impelidos a tomar uma atitude, como você ver que um desconhecido se acerca de sua filha que está na fila do toalete no restaurante, murmura algo no ouvido da menina e acaricia o braço dela.9 Pense na vantagem de ser capaz de ajustar a emoção automaticamente, antes mesmo de você saber o que está sentindo, e amortecer o impulso de se entregar ao arrebatamento de uma ação impensada (nesse exemplo, dar um pulo da cadeira e pegar um garfo para cravar na mão do atrevido, e só então ficar sabendo que é o novo namorado dela). Que tal se a sua mente pudesse ser treinada para ajudar efetivamente, antes que você saiba que precisa de ajuda, numa situação dessas?

Em dois estudos, íris Mauss, da Universidade de Berkeley, e James Gross, da Universidade de Stanford, pediram a alguns participantes que reordenassem frases com palavras embutidas relacionadas ao gerenciamento de emoções, como “refrear”, “controlar”, “sossegar”, e deram a mesma tarefa a outros participantes com frases contendo palavras relacionadas a ímpetos emocionais, como “soltar”, “ferver”, “explodir”.10 Os pesquisadores queriam saber se a exposição dos participantes a essas palavras dissimuladas no texto interferia na maneira de lidarem com as emoções enquanto alguém - nesse caso um ator - tentava deliberadamente irritá-los. O ator mandou que contassem rapidamente as letras de um texto borrado enquanto lhes dizia que eram incompetentes, num tom de voz cada vez mais impaciente e enervante. Os par­ticipantes sugestionados subliminarmente a liberar as emoções sentiram 42,2% mais raiva do que os participantes sugestionados subliminarmente a manter as emoções sob controle. Um segundo estudo mostrou que os participantes expostos a palavras que aju­davam a controlar as emoções reagiam com pressão e batimentos cardíacos mais baixos quando o ator hostil se aproximava deles.

O que podemos aprender a partir desses resultados? Primei­ro: objetivos muito sofisticados, como tolerar pessoas hostis e nos­sos próprios aborrecimentos, podem ser alcançados sem qualquer ação consciente e deliberada de nossa parte. Segundo: esses atos mindless de ajuste da emoção parecem ser gratuitos, pois as pes­soas manifestam não só menos aborrecimento, mas também me­nos agravos fisiológicos. Terceiro: intervenções simples, breves e de baixo custo podem nos induzir a reações mais saudáveis em situações sociais difíceis.12 Isso indica que já existe um forte siste­ma mindless em funcionamento, regulando nossas emoções, e que, aprendendo a influenciá-lo, podemos aumentar suas vantagens.

3. CRIATIVIDADE MINDLESS

Inovação é uma palavra muito popular no mundo empresarial e na educação, pois tem a vantagem de ser tangível, mensurável, e resulta em idéias criativas que podem ser implantadas fisicamen­te, no mundo real. Elon Musk, o gênio por trás dos carros elétricos Tesla e da SpaceX, é um exemplo perfeito de como o ardor criati­vo pode ser a peça central das empresas. De fato, muitas empresas - especialmente as chamadas “empresas maduras” - estão sempre prontas a investir muito dinheiro em consultorias inovadoras pa­ra seus produtos e gestão, e outro tanto em cursos de desenvolvimento de criatividade para seus funcionários. Na maioria desses cursos, o foco é improvisar, correr riscos e aceitar pequenos fracassos. Até aí, nada contra.

Muitas oficinas de criatividade também são regidas pela ideia de que você pode se tornar criativo propositadamente; quanto mais mindful você for, mais receptivo estará a inspirações criativas. Mindfulness é atraente porque está associada a uma ação deliberada, tranqüila, dependendo somente do seu interesse e afinco. Isso combina com a noção de que uma vida bem vivida não deve - nem pode - ser fácil. A mensagem cultural é clara, porém enganosa. Pesquisadores se esforçam para identificar um problema em pessoas que devaneiam e, por isso, se mostram incapazes de controlar a mente. Seu filho tem um problema porque devaneia na sala de aula enquanto o professor está falando? Um artigo do psicólogo Scott Barry Kaufman sobre mindlessness construtiva contraria pesquisas e opiniões que menosprezam momentos mindless e devaneios em sala de aula:13

Essa perspectiva faz sentido quando o devaneio é observado por um terceiro, e quando os prejuízos são medidos segundo padrões impostos externamente, como rapidez ou exatidão de processamento, fluência ou compreensão de texto, persistência da atenção e outros padrões de medida externos.

Entretanto, há outra maneira de ver o devaneio, numa perspectiva pessoal, se você quiser... Nossa mente vagueia, de propósito ou por acaso, porque há uma compensação tangível, mensurada em objetivos e aspirações que têm um significado pessoal. Precisar reler três vezes a mesma linha porque seu pensamento voou não tem importância, se esse voo levou sua atenção a uma descoberta interna, a uma lembrança deliciosa ou a dar novo significado a um evento desagradável...

Fazer uma pausa para reflexão no meio de uma história é irrelevante se essa pausa nos permite evocar um acontecimento que torna a história mais sugestiva e interessante. Enquanto dirigimos, perder uns minutinhos porque não pegamos a rampa de saída é um inconveniente desprezível se o lapso de atenção nos permitir entender, finalmente, por que o chefe ficou tão chateado com o que dissemos na reunião da semana passada. Chegar em casa sem trazer os ovos que saímos só para comprar é uma contrariedade muito pequena se o esquecimento foi devido à decisão de mudar de emprego, pedir um aumento de salário, ou voltar a estudar.

Dessa perspectiva pessoal, é muito mais fácil entender por que as pessoas são levadas a devanear e investem quase 50% do tempo deixando a mente vagar.14

Um ponto desse artigo encontra eco num ensaio sobre preguiça de Thomas Pynchon, que diz:

... o que Tomás de Aquino denomina Inquietude da Mente ou “correr atrás de várias coisas sem que nem pra que... se pertence ao poder da imaginação... chama-se curiosidade”. Decerto, é precisamente nesses episódios de viagem mental que os escritores produzem boas obras, às vezes as melhores, solucionando problemas formais, recebendo orientação do Além, tendo aventuras hipnagógicas que, com sorte, podem ser recuperadas.15

Imagine se nossa mente fosse privada da capacidade de sair dos trilhos. Se não pudéssemos resistir ao impulso de cumprir as obrigações imediatas, seriamos mais felizes? Seriamos mais felizes e bem-sucedidos com um controle autoritário de por onde anda nossa mente? O passatempo mindless é indispensável à consciência de si, à reflexão e ao planejamento. Pode-se argumentar que nosso cérebro exige uma atividade de livre flutuação mental para revelar, descobrir e consolidar informações, assim como nosso corpo físico exige sono adequado, exercícios e vitamina D.

Antes de investir numa especialização, pense nesse fruto ao seu alcance, o ocioso estado mindless, como a gestação de uma criativa visão interna. Afinal, há muito tempo a criatividade é associada a uma incubação inconsciente, e essa ideia é apoiada por laureados pelo Prêmio Nobel e artistas famosos.16 Você provavelmente conhece a ideia do “ah-ah”, o momento de revelação que traz subitamente a solução de um problema, ou uma ideia relevante, quando menos se espera. Pode-se pensar que há algo de criativo na falta de atenção. Pesquisas apoiam a ideia de que a criatividade está sempre à nossa espreita.

Segundo David Greenberg, autor de Presidential Doodles, documentos históricos revelam que 26 dos 44 presidentes dos Estados Unidos ficavam rabiscando enquanto a mente vagava e os negócios de Estado (reforma tributária?) não prendiam sua atenção. Mas não entenda isso como um desperdício porque os cientistas constataram que, em comparação com quem não rabisca, os rabiscadores apresentam quase 25% a mais de lembrança do que aconteceu enquanto rabiscavam.17 Pode parecer contraditório que alguma coisa que “distrai” na verdade mantém a pessoa ativa, mas rabiscar exige apenas atenção mindless, mantendo a pessoa alerta e ao mesmo tempo recarregando a energia mental que, não fosse isso, estaria sendo drenada por um discurso enfadonho. Infelizmente, professores, pais e gerentes muitas vezes acham que rabiscar é desrespeito e, portanto, deve ser desestimulado.

E se professores e gerentes partissem de outra premissa? E se estimulassem atividades mindless para contrabalançar a intensidade da atenção? Já é possível encontrar esse exemplo em empresas e escolas que colocam uma música suave de fundo enquanto as pessoas trabalham. Pesquisas mostram que isso melhora a concentração, proporcionando um ambiente de calma que favorece a continuidade das atividades.18 Um exemplo menos óbvio pode ser encontrado na prática de admitir que pilotos de avião durmam um pouco durante o voo. Imagine a longa viagem de Washington D.C. a Sydney, na Austrália. Você espera ter certos confortos - um travesseiro, um filme, o toalete com a descarga funcionando e a tripulação acordada.19 Felizmente, ninguém lhe diz que o comandante está tirando uma soneca de 25 minutos enquanto o avião cruza os ares sobre o mar. Mas não se preocupe. Num estudo, pesquisadores da NASA constataram que pilotos que dormem durante o voo tomam decisões 20% mais rápidas e cometem 34% menos erros quando acordam. O valor estratégico de desligar a mente para recarregar não pode ser subestimado. Onde mais você pode obter 34% mensuráveis de melhor desempenho numa atividade, em menos de 26 minutos?

Para saber mais sobre a vantagem de desligar a atenção consciente, procuramos o dr. Andrei Medvedev, professor no Georgetown University Center for Functional and Molecular Imaging.20 Em 2012, sua equipe monitorou a atividade cerebral de adultos enquanto faziam a sesta. Constataram que, nesses períodos de sono, o hemisfério direito - altamente associado ao pensamento criativo - se comunica frequentemente com o lado esquerdo do cérebro. Medvedev especula que enquanto o corpo descansa o he­misfério direito faz uma verdadeira arrumação da casa, transfe­rindo informações e experiências recentes para o armazenamento de memória de longo prazo.

É o mesmo que programar seu computador para salvar arqui­vos importantes e deletar informações desnecessárias enquanto você não o está usando, exceto que algo diferente acontece nessa catalogação mental. Colisões acidentais com lembranças antigas resultam em combinações originais e até bizarras. Quando es­tamos dormindo, o editor dentro de nós está de folga, não pode avisar que certas idéias são proibidas, nem apagá-las por serem impraticáveis. Seria maravilhoso se cada combinação de pensa­mentos produzisse uma descoberta criativa, mas, em geral, essa sopa conceitual é intragável. Isso é esperado, e precisa ser respei­tado. Não podemos contar com uma fileira de idéias cinco estre­las; só precisamos de uma ideia interessante de vez em quando.

A criatividade surge das mais estranhas atividades mindless. Quando pesquisadores investigaram as origens das idéias mais criativas produzidas por 104 especialistas em relações públicas para empresas do Reino Unido, não encontraram ali um manan­cial de originalidade.21 A ida e volta do trabalho ganharam o título de musa das idéias, e em segundo lugar, quase empatados, fica­ram o banho ou a chuveirada. Essas ocasiões são Focos de Criação Acidental (FCAs). Para sermos criativos, precisamos aproveitar ao máximo esses e outros FCAs, que podem ser cuidar das plantas, lavar os pratos, dar uma caminhada ou levar o cachorro ao parque.

Uma observação importante: a atividade mindless, por si só, não basta para a ocorrência da criatividade. Se assim fosse, se­riamos todos Georgia O’Keeffe ou Ernest Hemingway, bastando deixar a mente vagar enquanto lavamos a louça. No entanto, a atividade mindless é o solo fértil em que as melhores idéias criam raízes. Pesquisadores descobriram, por exemplo, que as pessoas mais criativas, e as que mais investem em aprimorar o produto de sua criatividade, recorrem instintivamente a estados não conscientes para ter inspiração.22 Elas têm uma aptidão particular para filtrar os sonhos e incorporar esse material à vida desperta. Portanto, planeje não planejar, passando algum tempo longe de atividades em que a mente insiste em tentar criar. E esteja pronto a captar idéias a qualquer momento, em qualquer lugar, tendo sempre um gravador à mão.

AGIR POR IMPULSO

Se você gosta de uma pessoa engraçada e muito franca, você a classifica de “espontânea” e, se não gosta, você se refere ao mesmo conjunto de comportamentos como “impulsivos”. Temos uma relação ambígua com atividades no “calor do momento”. Por um lado, tendemos a vê-las como engraçadas, e, por outro lado, podem parecer bobas. Uma das razões da má fama da impulsividade é que não prestamos muita atenção nas situações em que a ação impulsiva dá bons resultados. Considere o seguinte: uma grande tempestade de inverno está se aproximando, prevista para chegar daí a alguns dias. Em vez de passar um dia inteiro trancado em casa com seus três filhos pequenos, você clica naquele site de promoções de viagem e reserva passagens para a família passar um delicioso fim de semana em Aruba. Bater os olhos num livro de capa esquisita e comprar por um preço irrisório, entrar por instinto num bar novo, encontrar sua laboriosa pessoa amada estendendo roupa no varal e transar apaixonadamente em cima da máquina de lavar, ter uma conversa interessante com uma pessoa totalmente desconhecida, pedir licença aos amigos e subir no palco de karaokê para cantar sua canção favorita - reações impulsivas e atividades inesperadas, apesar de arriscadas, podem ter grande sucesso e ser agradáveis. Isso acontece exatamente porque não são programadas e a incerteza do resultado contribui para uma mescla de ansiedade e curiosidade que nos faz sentir vivos e inteiros - sem afetação, sem se preocupar em causar boa impressão.

1. O EFEITO LIBERADOR DE PERDER O CONTROLE

Imagine ser arrastado para uma conversa sobre um assunto polêmico: legalizar a maconha, reduzir o número de bombeiros e policiais para cortes no orçamento municipal, decidir quem herda o quê quando vovô morrer. Esses tópicos são controversos devido à sua importância para as pessoas diretamente afetadas. Em locais de trabalho politicamente carregados, um dos assuntos mais delicados é a diversidade. Muitos países ocidentais, modernos, industrializados, concordam que a inclusão baseada em raça, sexo, orientação sexual, religião, nacionalidade e status econômico não só é justa como valiosa.

Nicky Garcea, consultora administrativa na Inglaterra, passou anos coordenando programas sobre diversidade. Ela chegava a uma empresa, reunia os funcionários e passavam horas em workshops sobre a importância de respeitar as diferenças, mas não tardou a se desencantar com essa abordagem. “Mostrar que todo mundo era diferente”, ela confessou, “era uma garantia de que cada funcionário passaria a ser rotulado de mulher, indiano ou gay.”

Muitos de nós ficamos divididos entre querer agir como se não houvesse absolutamente diferenças entre as pessoas e falar sobre possíveis diferenças com sensibilidade e respeito. O problema de tomar tanto cuidado ao escolher as palavras é a quantidade de energia mental exigida. Um homem branco, por exemplo, pode gastar muita energia conduzindo uma conversa com uma mulher negra para temas leves, inócuos, superficiais. Ambos se sentem enojados ao reconhecer que, na verdade, o importante é o que não está sendo dito. Duas pessoas bem-intencionadas acabam criando uma interação forçada, que exige muito esforço e energia.23

Mas e se fosse possível esgotar a energia da pessoa antes da conversa, de modo que ela não tivesse mais pique para ocultar, sufocar ou deixar escapar o que está pensando?24 Seria preciso que os funcionários corressem meia maratona ou fizessem todas as palavras cruzadas do jornal de domingo antes do trabalho. Num estudo, os cientistas determinaram que os sujeitos fizessem algo desafiador em termos físicos ou intelectuais antes de uma conversa potencialmente delicada com um membro de outro grupo étnico. Mentalmente exaustos, os sujeitos se livraram da difícil tentativa de falar a coisa certa, ficaram menos inibidos numa conversa sobre diferenças raciais com alguém de outra raça, e tiveram uma interação 25,4% melhor. Além disso, se sentiram menos alvo de preconceito por observadores negros que assistiram aos vídeos da interação. Os participantes, cansados, desinibidos, tiveram 72,6% mais facilidade de conversar francamente sobre diversidade e lidar efetivamente com esse tema delicado.

Um apoio adicional ao valor de ações impulsivas, ou não comedidas, vem de uma fonte inusitada: o declínio cognitivo na idade avançada, que precede doenças cerebrais degenerativas.25 Num estudo, os pesquisadores disseram a jovens adultos (de 19 anos em média) e a adultos idosos (de 73 anos em média) que eles faziam parte de um programa da comunidade para aconselhamento de adolescentes com problemas. Todos foram levados a acreditar que essa iniciativa visava a aconselhar um adolescente por meio de vídeos de entrevistas com pessoas comuns (e não com terapeutas) sobre a adolescência que essas pessoas comuns tinham vivido. Os participantes selecionaram uma entre várias fichas de adolescentes, sem saber que todas continham a mesma informação: uma menina obesa que sofria de insônia, bullying, incapacidade de fazer amigos e desinteresse na escola.

Quando disseram aos sujeitos para pensar no que desejavam dizer, os idosos demonstraram maior franqueza, falando diretamente que a menina era gorda e feia, e contaram como tinham sofrido na adolescência, como haviam lidado com isso e o quanto tinham aprendido com a rejeição e o fracasso. Os jovens foram mais cautelosos: 70% nem mencionaram a gordura da garota. Curiosamente, os idosos com o mais fraco funcionamento cognitivo (medido por um exame neuropsicológico abrangente) foram os mais abertos, com 80% falando na gordura da menina e dando mais conselhos.

Os pesquisadores pediram a dois médicos famosos, especialistas em obesidade, que assistissem ao filme das entrevistas e avaliassem a qualidade dos conselhos. Os conselhos dos idosos com menor capacidade cognitiva foram julgados melhores do que os conselhos dos jovens, que tinham maior capacidade cognitiva. A falta de inibição deixou os velhos mais acessíveis, empáticos, cooperativos, e dispostos a abordar o desconfortável fato da obesidade da garota e suas dificuldades sociais por causa disso. No artigo intitulado “The risk of polite misunderstandings”, Jean-François Bonnefon e seus colegas concluem:26 A polidez gasta recursos mentais e cria confusão sobre o verdadeiro significado.

Embora essa confusão seja funcional em situações corri­queiras, pode ter conseqüências indesejáveis em situações de alto risco, como pilotar um avião em caso de emergência ou ajudar um paciente a optar por um tratamento.

Aconselhar e servir de mentor são papéis de liderança funda­mentais para pais, professores e executivos. A incapacidade de abordar assuntos delicados aumenta a probabilidade de malogro no trabalho, erosão de relacionamentos, perda de tempo e de di­nheiro, devido à comunicação inadequada. Não evite essas conversas tão temidas. Experimente falar quando estiver um pouco cansado, com as defesas naturais em baixa. Isso vai ajudá-lo a to­lerar o desconforto e se valer de sentimentos menos convencionais.

DECISÕES MINDLESS

Desafiamos você a passar oito horas sem tomar decisões instantâ­neas. Não mudar de faixa no trânsito, não convidar alguém que você acabou de conhecer para almoçar, não expor um pensamento antes que seja bem analisado, não enviar e-mails apressados e, certamente, não comentar imediatamente alguma coisa postada no Facebook. Apostamos que você não consegue durante as oito horas. Imaginamos que consiga durante uma hora. Se você estiver num shopping center ou assistindo à televisão, reduzimos para dois minutos.

As pessoas tendem a trabalhar decisões importantes. Gosta­mos de ter trabalho com nossas escolhas, calcular custo-benefício, consultar especialistas, fazer programações, quando bastaria uma boa noite de sono para resolver o assunto. Uma abordagem mais intuitiva pode parecer quase Nova Era porque se baseia na existência do inconsciente e na crença em que o fantasma na máquina, a mente inconsciente, é capaz de dar conta das decisões enquanto a mente consciente está ocupada com outras coisas. Segundo o princípio de capacidade do cérebro, quando há excesso de dados a serem digeridos, o pensamento consciente fica confinado ao trabalho de processar todas as informações, integrando-as, apelando para os conhecimentos e experiências, comparando-as e contrastando as escolhas possíveis até chegar a uma decisão. O pensamento mindless não tem essas restrições porque ocorre fora da consciência. Isso nos traz uma regra de ouro contraintuitiva: quando é preciso tomar uma decisão complexa, após reunir informações na mente consciente, evite pensar nelas conscientemente. Não tenha pressa, deixe o inconsciente resolver.27

Nenhum autor enuncia melhor essa regra do que Ap Dijksterhuis.28 Esse psicólogo holandês passou anos estudando a inteligência inconsciente. Em um estudo muito interessante, Dijksterhuis investigou se torcedores fanáticos por futebol, com seus conhecimentos obsessivos do esporte, eram mais capazes de acertar qual time seria vencedor do que adultos sem maiores conhecimentos, que usavam mais as seções de esportes dos jornais para embrulhar o lixo do que para ler.29 Ele fez uma breve exposição estatística de gols, jogadas, passes perfeitos, dribles e segredos de vários times de futebol. Dijksterhuis queria saber como os dois grupos utilizavam essas informações.

Tendo tempo suficiente para avaliar todos esses dados sobre a performance dos times, os fanáticos tiveram melhor desempenho que os neófitos. Já era de se esperar, pois eles usaram as informações que obtinham diariamente. Mas algo estranho aconteceu quando Dijksterhuis mudou o procedimento. Deixou os sujeitos pensarem durante dois minutos apenas e, para evitar que continuassem a pensar em futebol, pediu que resolvessem complicadas equações de álgebra. Enquanto tentavam solucionar os complexos problemas de matemática, Dijksterhuis os interrompeu, pedindo que respondessem rapidamente quais times seriam vitoriosos no próximo campeonato. Nesse momento, os neófitos acertaram mais que os fanáticos! Por quê? Porque, na ausência de uma grande quantidade de dados, os neófitos confiaram nas informações que, bem diante de seus olhos, lhes chamaram a atenção, como passes perfeitos em condições de chuva e vento, uma estatística que os fanáticos devem ter negligenciado. Os neófitos basearam essa reação intuitiva em informações inusitadas, que foram sublinhadas e marcadas em negrito pelo cérebro. Como os fanáticos tinham um grande acúmulo de fatos sobre futebol estocados no cérebro, “a dica” ali à sua frente não se destacou. É muito difícil desaprender fatos antigos e descartar idéias preconcebidas, e eles precisariam ter feito isso rapidamente a fim de absorver novos fatos.

Os resultados da pesquisa sobre futebol não se limitam ao mundo dos esportes. A decisão instintiva é relevante também para uma pessoa doente escolher o médico, um adulto obeso escolher dietas e exercícios, médicos diagnosticarem doenças graves. Em um estudo similar, pediu-se a adultos com pós-graduação em psicologia para determinar se um paciente tinha algum distúrbio psicológico e, se tivesse, qual seria o diagnóstico.30 Em uma sessão, os psicólogos leram a descrição do caso de um paciente e tiveram quatro minutos para ponderar antes de formar uma opinião. Em outra sessão, tiveram que processar inconscientemente as informações sobre o caso enquanto faziam um jogo de caça-palavras durante quatro minutos. As opiniões foram piores quando tiveram os quatro minutos para pensar. De fato, as opiniões mais mindless foram cinco vezes mais corretas do que as ponderadas.31

Vemos assim que há nítidas vantagens no pensamento inconsciente, especialmente quando se trata de dissecar, manipular e sintetizar grandes quantidades de informação. Mas, certamente, há também nítidas vantagens no pensamento consciente. Se você acha que ter uma janela que dá para campos verdejantes e belas árvores é importante para sua qualidade de vida no trabalho, por exemplo, é preciso ter isso na mente consciente quando lhe oferecerem um escritório muito maior, com elegantes cadeiras ergonômicas e sem vista para o mundo externo. Caso contrário, você pode se deixar levar pelo entusiasmo de ter tanto espaço e depois se surpreender com o abrupto declínio de seu ânimo nos meses seguintes sem janela. Então, entre os dois, qual é o melhor para você?

Vejamos o problema de escolher um apartamento para alugar, que é uma decisão da maior importância. Será fácil se o apartamento tiver todos os requisitos: preço baixo, quartos amplos, banheiro com banheira, bons armários, varanda, perto de shoppings e transporte público, num bairro com ótimos restaurantes, parques e baixa criminalidade. E - ah, sim - que tenha conforto para seu bichinho de estimação. Na vida real, encontrar um apartamento é um exercício de concessões. Você tem um closet enorme, mas não tem parque; cozinha moderna, mas não tem pia dupla. Muita gente entra num jogo mental de troca-troca, num esforço para tomar uma decisão feliz.

Em 2011, Dijksterhuis e seus colegas conduziram um experimento em que os participantes tinham que fazer uma entre duas escolhas ideais dentre 12 apartamentos possíveis.32 Mas, tal como no mundo real, nenhum era perfeito. Os melhores apartamentos tinham oito características positivas e quatro negativas, e os piores tinham quatro características positivas e oito negativas. Quando as pessoas precisaram tomar uma decisão imediatamente após receber informações sobre cada apartamento, houve somente 15% de acertos na melhor opção. Quando tiveram quatro minutos para ponderar sobre cada apartamento, os acertos na melhor opção chegaram a 29%. Isso indica que a ponderação se sobrepõe à escolha impulsiva, mas nenhuma das duas parece ser totalmente satisfatória.

Curiosamente, numa terceira sessão, quando os participantes ficaram distraídos fazendo palavras cruzadas sem relação com o tema e então tiveram que tomar a decisão, o resultado foi 30% de acertos na melhor opção. Mas realmente interessante foi o que aconteceu quando os participantes puderam passar dois minutos pensando conscientemente em cada apartamento e depois sua atenção foi desviada para jogos de palavras, irrelevantes, porém difíceis, que precisavam solucionar em dois minutos. Depois de passar metade do tempo ponderando conscientemente antes de tomar uma rápida decisão mindless após um cansativo jogo de palavras, alcançaram 58% de acertos na melhor opção. Eles tinham passado apenas metade do tempo analisando cada apartamento e a decisão foi duas vezes melhor!

Esses mesmos pesquisadores constataram que a melhor estratégia é aproveitar os pontos positivos do pensamento consciente e inconsciente. Mas deram um passo adiante ao descobrir a importância da ordem seqüencial de pensamento consciente e inconsciente. Quando os possíveis compradores de apartamentos tiveram dois minutos para ponderar antes de serem distraídos com jogos de palavras, tiveram 58% de acertos na melhor opção. Quando a seqüência foi invertida e ficaram distraídos com jogos irrelevantes de palavras (pensamento inconsciente) e depois tiveram dois minutos para ponderar (pensamento consciente), sua capacidade de escolha caiu para 30%.

Não é de surpreender que existam tantos livros sobre mindfulness e pensamento irracional. Ainda estamos aprendendo a funcionar no modo ótimo, como pessoas bem integradas, inteiras. Essa fascinante linha de pesquisa mostra que a estratégia mais eficaz para lidar com decisões complexas é ter flexibilidade para usar o pensamento consciente e inconsciente, em conjunto, e nessa ordem. Numa situação em que há várias opções exigindo uma ação cognitiva, a fórmula para a melhor decisão é a seguinte:

  1. Fique algum tempo pensando conscientemente na situação.
  2. Pare.
  3. Faça uma atividade qualquer, sem relação com a situação, para ter um período de incubação.
  4. Tome a decisão.

Intervenções Mindless

Passamos décadas tentando aumentar nossa autoconsciência para alcançar o sucesso, e os pesquisadores que apresentamos neste capítulo sugerem uma atitude diferente. Como alternativa, vamos propor uma estratégia do “levantar da (in)consciência”, que nos permite atingir as metas que almejamos e, assim, viver melhor. Propomos a audaciosa noção de que nosso comportamento pode ser modificado drasticamente sem qualquer intervenção consciente. O imperceptível processamento inconsciente da informação pode nos conduzir a decisões mais firmes, mais rápidas e melhores.

Pense na meta de melhorar seu desempenho. Em uma central de telemarketing, Garry Latham e Ronald Piccolo testaram uma intervenção de baixo custo com os funcionários, dando a eles fotografias para olharem antes de falar com os clientes.33 Uma foto era de três vendedores sorridentes durante um telefonema (desempenho relevante), outra era de uma mulher levantando os braços na linha de chegada de uma corrida (desempenho irrelevante) e, no terceiro caso, os funcionários olharam para uma foto do prédio em que trabalhavam. Os funcionários que olharam para as fotos de desempenhos vitoriosos apresentaram um aumento de 58% de chamadas bem-sucedidas, e os que olharam para a foto do prédio não apresentaram nenhum aumento.

Mas essa não é a melhor parte. Veja só: os funcionários que olharam para a foto do vendedor sorridente conseguiram 85% a mais de dinheiro do que os que olharam para a foto do prédio! Quando lhes perguntaram como tinham melhorado tanto seu desempenho, nenhum deles mencionou a foto inspiradora em seu cubículo. O que você acha melhor: gastar um dinheirinho numa foto emoldurada, ou gastar um dinheirão em workshops para melhorar o ânimo, a motivação e o desempenho dos funcionários? Nesse estudo, os pesquisadores constataram também que imprimir um melhor desempenho no inconsciente tem um impacto que não dura somente minutos ou horas, mas permanece por uma semana inteira de trabalho.

Agora, vejamos problemas sociais maiores. Tentar convencer as pessoas a não usar estereótipos sobre idosos, deficientes, gays ou de uma raça diferente tem o efeito contrário, tornando mais fácil evocar o estereótipo e, portanto, usá-lo. Na mesma linha, quando fumantes veem anúncios contra cigarros, acabam fumando mais.34 Em vista disso, pesquisadores reuniram um grupo de adultos brancos que admitiam ter preconceito racial e não gostavam de ter contato com negros, a fim de saber se essa opinião podia ser recondicionada sem tentar convencer os sujeitos de que preconceito e racismo são indesejáveis.

Os pesquisadores colocaram os sujeitos diante de uma tela de computador contendo imagens e palavras positivas sobre norte-americanos negros (uma criança negra dividindo o lanche com um coleguinha esfomeado), e instruídos a se “aproximar dos negros” movendo um joystick na direção deles. Quando apareciam imagens e palavras sobre norte-americanos brancos, deveriam mover o joystick na direção oposta a eles.35 A ideia era que associar repetidamente imagens positivas sutis de pessoas negras à motivação para se aproximar e apreciá-las levasse a rever o hábito mindless de ver pessoas negras como inimigas a serem evitadas. Os pesquisadores constataram que os adultos brancos treinados para associar negros a um comportamento de aproximação tiveram um decréscimo de 46,5% de crenças preconceituosas em comparação com os que não receberam o treinamento. Mas essa reinstalação cerebral influencia o comportamento de um branco com um desconhecido negro? A resposta é um surpreendente sim. Após o treinamento de associação mindless de rostos negros com os movimentos de aproximação via joystick, numa conversa de “apresentação”, esses brancos colocaram a cadeira seis vezes mais perto de um desconhecido negro (um ator que já estava sentado quando os participantes entraram). Vejam só, o cérebro é um órgão muito interessante!

Quem já trabalha no sentido de criar maior apreciação da diversidade não precisa ser lembrado de que as pessoas que não se parecem conosco, ou que não têm os mesmos valores, podem oferecer mais oportunidades de aproximação que de evitação. Mas há um fato importante: todos nós temos um “grupo”, um círculo de pessoas cuja mentalidade é parecida com a nossa e, por um efeito de espelho, consideramos mais atraentes do que o resto da humanidade. Sejam religiosos versus ateus, vegetarianos versus carnívoros, feministas versus fãs de pornografia, nerds versus atletas, todos têm sua tendenciosidade, algumas reconhecidas, e muitas outras ocultas. Pesquisas recentes nos oferecem alguns meios de mudar essas tendenciosidades. Sabemos agora que, com movimentos repetidos, podemos remodelar o cérebro, mudando a mente para melhor. O treinamento mindless pode ser acrescentado à lista de estratégias para aumentar o sucesso e o bem-estar.

Utilizando o Mindless

Apresentamos um contraste entre a grande divulgação científica e pública de que mindfulness é melhor que mindlessness. Ao compreender que o pensamento mindless reforça o êxito, você terá uma vantagem sobre quem está sempre pronto a acionar o estado mindful. Ainda que você queira, é fisicamente impossível estar mindful o tempo todo. Para capitalizar o pensamento inconsciente, descrevemos os pontos fortes de mindlessness em diversas áreas da vida, desde alcançar metas, confiar nas pessoas e ter mais criatividade, até lidar com uma pressão sufocante, com os preconceitos e tomar decisões complexas.

Em certas situações o pensamento mindless nos capacita a ser mais objetivos ou mais neutros. Você pode estar resistindo a aceitar essa afirmação. Afinal, acredita-se intuitivamente que um julgamento instantâneo pode ser muito bom em decisões “sem importância”, mas decisões complexas exigem intensidade e concentração nas deliberações. Estamos aqui para lhe dizer que a eficácia é frequentemente prejudicada pela crença na superioridade da mindfulness.

LEMBRETES

  1. Mindfulness pode ter vantagens, mas nossa predisposição natural é para mindlessness.
  2. O pensamento automático ajuda a conservar os recursos mentais.
  3. A redução da atividade mental pode gerar uma forma produtiva de desinibição.
  4. O processamento mindless frequentemente conduz a um desempenho superior e a melhores decisões, principalmente em situações delicadas.
  5. Intervenções subliminares podem nos impulsionar na direção de um objetivo.
  6. Tentativas de recusar mindlessness estão fadadas ao fracasso.

Reconhecer o poder de mindlessness é, por si só, uma intervenção. E as pessoas podem aprender a se beneficiar desse recurso tão menosprezado. Aqui vão mais alguns conselhos para utilizar mindlessness:

  1. Estabeleça um prazo ridiculamente curto - dez segundos - para tomar uma decisão que o deixou alguns minutos paralisado, sem saber o que fazer. Isso força uma decisão mindless. Há sempre um motivo para deixar de fazer uma viagem. Há sempre um motivo para comprar sempre o mesmo presunto e queijo no supermercado. Tire dez segundos, clique “enviar”, ponha a compra no carrinho ou vá embora sem gastar mais energia na decisão.
  2. Use dicas ou sinais que representem seus objetivos. Você quer ser calmo e moderado numa situação ou ser franco e dizer tudo o que está sentindo? Quer ter grandes aspirações e está disposto a correr riscos para alcançar a meta ou é aves­so a riscos para ter certeza de não cometer erros? Você po­de colar palavras e imagens na sua sala ou na escrivaninha, apontando para determinadas metas e estilos motivacionais.
  3. Reserve tempo para deixar a mente vagar. Mindlessness é um recurso estratégico intenso, e há motivos para não sermos dotados exclusivamente desse equipamento mental. Quan­do a mente vagueia, nossa atividade cerebral é quase a mes­ma de quando estamos descansando. As idéias colidem, e a criatividade aparece por acaso. As empresas e o ambiente doméstico podem ser organizados de modo a estimular ati­vidades mindless estratégicas. Essa é uma das muitas razões para que os exercícios físicos e as brincadeiras na hora do recreio sejam as últimas atividades a serem excluídas dos programas pedagógicos.
  4. Determine regras para usar a intuição. Quando você estiver diante de uma opção simples, é melhor usar um método lógico e deliberado. Quando precisar tomar uma decisão complicada, terá um resultado melhor se, depois de passar algum tempo analisando as informações, você se permitir um período de incubação, fazendo alguma outra coisa (“dor­mir sobre o assunto”) e depois mudar para o modo mindless, a intuição.

Em vez de eleger um vencedor entre os dois modos de pensamento, mindlessness e mindfulness, defendemos os méritos relativos de ambos. Se você retirar metade do pensamento humano, metade da consciência, poderá criar um espaço maior para o sucesso e o bem-estar.

Psicologia - Psicologia Cognitiva
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5/21/2022 4:45:03 PM | Por Robert Graves
O dilúvio de Deucalião

O dilúvio de Deucalião, assim chamado para diferenciar-se do dilúvio de Ogigia e de outros dilúvios, foi provocado pela ira de Zeus contra os ímpios filhos de Licaão, o filho de Pelasgo. O mesmo Licaão foi o primeiro a civilizar a Arcádia, institucionalizando o culto ao Zeus Lício, mas acabou irritando Zeus ao sacrificar-lhe um menino. Por essa razão, foi transformado num lobo e sua casa foi destruída por um raio. Alguns dizem que Licaão teve, no total, 22 filhos; outros dizem que teve cinqüenta.

A notícia dos crimes cometidos pelos filhos de Licaão chegou ao Olimpo, e o próprio Zeus foi visitá-los, disfarçado de viajante miserável. Eles tiveram o descaramento de lhe servir uma sopa de miúdos, em que haviam misturado as vísceras de seu irmão Nictimo com as de ovelhas e cabras. Zeus não se deixou enganar e, derrubando a um só golpe a mesa sobre a qual haviam servido aquele repugnante banquete —o lugar ficou conhecido mais tarde como Trapezo —, converteu-os todos em lobos, exceto Nictimo, a quem devolveu a vida.

Após regressar ao Olimpo, Zeus desafogou o seu desgosto desferindo um grande dilúvio sobre a terra, com a intenção de varrer de sua face toda a raça humana. Mas Deucalião, rei de Ftia, avisado por seu pai, o titã Prometeu, que o havia visitado no Cáucaso, construiu uma arca, encheu-a de suprimentos e subiu abordo com sua mulher, Pirra, filha de Epimeteu. Então, o Vento Sul começou a soprar, a chuva desabou, e os rios se precipitaram na direção do mar, que subia com uma assombrosa rapidez, arrasando e submergindo todas as cidades do litooral e das planícies, até que o mundo todo ficou submerso, exceto alguns cumes e montanhas, e todas as criaturas mortais pareciam ter desaparecido, à exceção de Deucalião e Pirra. A arca flutuou por nove dias, quando finalmente as águas baixaram, e a embarcação pousou no monte Parnaso ou, segundo alguns, no monte Etna, no monte Atos ou ainda no monte Ótris, na Tessália. Diz-se que Deucalião obteve a confirmação do fim do dilúvio ao soltar uma pomba em vôo exploratório.

Após desembarcarem sãos e salvos, eles ofereceram um sacrifício ao Pai Zeus, protetor dos fugitivos, e desceram à margem do rio Cefiso para orar no santuário de Têmis, cujo teto se achava coberto de algas e cujo altar estava frio. Suplicaram humildemente que a raça humana renascesse, e Zeus, escutando suas vozes de longe, enviou Hermes para assegurar-lhes de que tudo o que pediam lhes seria concedido. Têmis apareceu em pessoa e disse: “Cubram suas cabeças e atirem os ossos de sua mãe para trás!” Por serem filhos de mães diferentes, ambas já falecidas, Deucalião e Pirra deduziram que a titânide se referia à Mãe Terra, cujos ossos eram as rochas que jaziam às margens do rio. Portanto, cobriram a cabeça e se inclinaram para recolher as rochas, atirando-as por cima dos ombros. As rochas se transformaram em homens ou mulheres, dependendo de quem as houvesse tocado, Deucalião ou Pirra. Dessa forma, a humanidade se renovou, e desde então “povo” (laos) e “uma pedra” (laas) têm sido a mesma palavra em diversas línguas.

Entretanto, Deucalião e Pirra não foram os únicos sobreviventes do dilú­vio. Tanto que Megareu, um filho de Zeus, tendo sido despertado de seu sono pelos gritos dos grous, foi impelido a subir até o pico do monte Gerânia, lugar que não chegou a ser coberto pelas águas. Outro que escapou foi Cerambo de Pélion, que, transformado pelas ninfas num escaravelho, pôde voar para o cume do Parnaso.

De modo similar, os habitantes do Parnaso - cidade fundada por Parnaso, filho de Poseidon, que inventou a arte do agouro - foram despertados pelo uivo dos lobos e os seguiram até o alto da montanha. Em memória desses lobos, eles chamaram a sua cidade de Licoréia.

Assim, o dilúvio provou ser pouco eficaz, pois alguns parnasianos emigra­ram para a Arcádia e repetiram as abominações de Licaão. Até o dia de hoje, um menino é sacrificado ao Zeus Liceu, e suas vísceras são misturadas a outras numa sopa de miúdos, que é então servida a uma multidão de pastores às margens de um rio. O pastor que come as vísceras do menino (que lhe são servidas por sor­teio) uiva como um lobo, pendura suas roupas num carvalho, cruza o rio a nado e se transforma em lobisomem. Por oito anos ele fica vivendo entre os lobos, mas, abstendo-se de comer carne humana durante esse período, ele pode regressar, cruzar de novo o rio a nado e recuperar suas roupas. Há algum tempo, um habi­tante de Parrásia chamado Damarco passou oito anos com os lobos, recuperou sua condição humana e, no décimo ano, após um período de treinamento inten­sivo num ginásio, ganhou o prêmio de pugilismo nos jogos olímpicos.

Esse Deucalião era o irmão da Ariadne cretense e pai de Oresteu, rei dos lócrios ózolas, em cuja época uma cadela branca pariu uma estaca que, plantada por Oresteu, cresceu e se tornou uma videira. Outro de seus filhos, Anfictião, alojou Dionísio e foi o primeiro homem a misturar vinho com água. Mas seu primeiro descendente e o mais famoso de seus filhos foi Heleno, pai de todos os gregos.

A história de Zeus e as entranhas do menino não é tanto um mito quanto uma anedota moral para expressar a repugnância que provocavam, nas regiões mais civilizadas da Grécia, as primitivas práticas canibais da Arcádia ainda praticadas em nome de Zeus e consideradas “bárbaras e antinaturais”. Cécrope, o virtuoso ateniense contemporâneo de Licaão, merecia somente bolos de cevada, abstendo-se inclusive dos sacrifícios de animais. Os ritos licaones, que, segundo o autor, nunca contaram com o beneplácito de Zeus, aparentemente tinham a intenção de evitar que os lobos atacassem os rebanhos, entregando-lhes um rei humano. Lycaeus significa “da loba”, mas também "da luz”, e o raio no mito de Licaão revela que o Zeus da Arcádia era um rei sagrado que invocava a chuva a serviço da Loba divina, a Lua, a quem a matilha de lobos uivava.

Um Grande Ano de cem meses, ou oito anos solares, era dividido equitativamente entre o rei sagrado e o seu sucessor. Já os cinqüenta filhos de Licaão — um para cada mês do reinado do rei sagrado — deviam ser os que compunham a sopa de miúdos. O número 22, a não ser que seja o resultado do cálculo do número de famílias que se diziam descendentes de Licaão para participar do banquete de miúdos, refere-se provavelmente aos 22 lustros que constituíam um ciclo — o ciclo de 110 anos compunha o reinado de uma linha

O mito do dilúvio de Deucalião, aparentemente trazido da Ásia pelos heleênicos, tem a mesma origem da lenda bíblica de Noé. Porém, enquanto Noé é citado como inventor do vinho numa fábula moral hebraica que justificava a escravização imposta aos cananeus por seus conquistadores semitas e cassitas, a citação da invenção do vinho por Deucalião foi suprimida pelos gregos, que a atribuíram a Dionísio. Entretanto, Deucalião é descrito como irmão de Ariadne, que, ligada a Dionísio, era a mãe de várias tribos seguidoras do culto do vinho, e o nome dele continuou sendo “marinheiro do vinho novo” (de deucos e halieus). O mito de Deucalião registra um dilúvio mesopotâmico do terceiro milênio a.e.c., bem como a festa outonal do Ano-novo da Babilônia, Síria e Palestina. Essa festa celebrava o novo vinho doce, servido por Parnafistim aos construtores da arca, na qual (conforme o poema épico babilónico Gilgamesh) ele e sua família sobreviveram ao dilúvio enviado pela deusa Ishtar. A arca era um barco-lua, e a festa, celebrada por ocasião da Lua nova mais próxima do equinócio de outono, era uma forma de evocar as chuvas invernais. Ishtar, no mito grego, é chamada de Pirra - nome da deusa-mãe dos puresati (filisteus), povo cretense que chegou à Palestina através da Cilicia em torno de 1200 a.e.c. Em grego, pyrrha significa “vermelho vivo” e é um adjetivo que se aplica ao vinho.

Xisutros era o herói da lenda do dilúvio sumeriano, registrada por Berossus, e sua arca acabou pousando no monte Ararat. Todas essas arcas eram construídas com madeira de acácia, utilizada também por Ísis para construir o barco mortuário de Osíris.

O mito de um deus irado que decide punir as maldades do homem com um dilúvio parece ter chegado tardiamente aos gregos, que o tomaram empres­tado aos fenícios ou aos judeus. Não obstante, o número de diferentes montes da Grécia, Trácia e Sicília onde se diz que a arca de Deucalião teria atracado sugere que um antigo mito do dilúvio tenha se sobreposto a uma lenda posterior sobre um dilúvio no norte da Grécia. Na primeira versão grega do mito, Têmis renova a raça humana sem ter sido previamente autorizada por Zeus. É prová­vel, portanto, que ela, e não ele, tenha sido a responsável pelo dilúvio, como na Babilônia.

A transformação de pedras em pessoas é, talvez, outro empréstimo heládico vindo do Oriente. São João Batista referiu-se a uma lenda semelhante, declarando, num jogo de palavras com os termos hebraicos banim e abanim, que Deus podia dar filhos a Abraão a partir das pedras do deserto (Mateus III. 3-9 e Lucas III. 8).

A história da cadela branca, a deusa-Lua Hécate que pariu um ramo de videira no reinado de Oresteu, filho de Deucalião, é provavelmente o mito grego mais antigo sobre o vinho. Diz-se que o nome “ózola” deriva de ozoi, “brotos de videira”. Um dos filhos malvados de Licaão também se chamava Oresteu, o que pode justificar a conexão forçada que os mitógrafos estabeleceram entre o mito da sopa de miúdos e o dilúvio de Deucalião.

Anfictião, nome de outro filho de Deucalião, é uma forma masculina de Anfictionis, a deusa em nome da qual se havia fundado a Liga Anfictiônica, a famosa confederação setentrional. Segundo Estrabão, Calímaco e o escoliasta do Orestes de Eurípides, a liga foi regularizada por Acrísio de Argos. Os gregos civilizados, à diferença dos trácios dissolutos, abstinham-se de tomar vinho puro, e seu costume de aguá-lo nas assembléias dos estados membros cele­bradas na época da vindima em Antela, perto das Termópilas, deve ter sido uma maneira de evitar disputas sangrentas durante o evento.

Heleno, filho de Deucalião, era o antecessor epônimo de toda a raça helênica. Seu nome demonstra que ele era o representante real da sacerdotisa de Hele, Helen, Helena ou Selene, a Lua. Segundo Pausânias (III. 20. 6), a primeira tribo chamada helena chegou da Tessália, onde se adorava Hele.

Aristóteles (Meteorológica I. 14) diz que o dilúvio de Deucalião teve lugar “na antiga Grécia (Graecia), ou seja, num distrito perto de Dodona e do rio Aquelôo”. Graeci significa “adoradores da Velha”, presumivelmente a deusa Terra Dodona, que aparecia em tríade formando as Gréias. Conta-se que os aqueus foram obrigados a invadir o Peloponeso porque fortes chuvas, nada comuns naquela região, haviam inundado suas pastagens. O culto a Hele parece ter substituído o culto às Gréias.

O escaravelho era um emblema da imortalidade no Baixo Egito, porque sobrevivia aos transbordamentos do Nilo —o Faraó, como Osíris, embarcava em um barco-sol na forma de um escarabeu —, e sua utilização sagrada se propagou, seguindo a Palestina, o Egeu, a Etrúria e as Ilhas Baleares. Antoninus Liberalis menciona o mito de Cerambo, ou Terambo, quando cita Nicandro.

Mitologia - Mitologia Grega
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5/21/2022 4:37:54 PM | Por Robert Graves
Os feitos e a natureza de Apolo

Apolo, filho de Zeus e Leto, nasceu de sete meses, mas os deuses crescem muito depressa. Temis o alimentou com néctar e ambrosia, e quando amanheceu o quarto dia ele pediu um arco-e-flecha, providenciado na mesma hora por Hefesto. Ao sair de Delos, dirigiu-se diretamente ao monte Párnaso, onde estava à sua espreita a serpente Piton, inimiga de sua mãe, e feriu-a gravemente com suas flechas. Piton fugiu para o Oraculo da Mãe Terra na cidade de Delfos, assim chamada em homenagem a seu companheiro, o monstro Delfim. Mas Apolo atreveu-se a persegui-la ate o santuário e ali a matou, junto ao precipício sagrado.

Informado pela Mãe Terra sobre esse crime, Zeus não só ordenou a Apolo que fosse a Tempe purificar-se como também instituiu os jogos piticos em homenagem a Piton, encarregando-o de presidi-los como penitência. Descaradamente, Apolo desobedeceu a ordem de Zeus e, em vez de ir a Tempe, foi purificar-se em Aigialeia, acompanhado de Artemis. Depois, como não gostara do lugar, velejou em direção a Tarra, em Creta, onde o rei Carmanor celebrou a cerimônia.

Ao regressar a Grécia, Apolo saiu a procura de Pã, o velho e desacreditado deus árcade com pernas de cabra, e, depois de persuadi-lo a revelar-lhe a arte da profecia, apoderou-se do Oráculo de Delfos e manteve sua sacerdotisa, denominada pitonisa, sob suas ordens.

Ao saber das noticias, Leto foi com Artemis a Delfos, onde buscou uma caverna sagrada para realizar um rito particular. O gigante Titio interrompeu sua veneração e estava tentando viola-la quando, ao ouvir gritos, Apolo e Artemis saíram correndo e o mataram com uma salva de flechas - vingança que Zeus, pai do gigante, achou por bem classificar de piedosa. No Tártaro, Titio havia sido torturado: seus braços e pernas foram esticados e presos firmemente ao chão, fazendo com que seu corpo ocupasse uma superfície de nada menos que nove acres e ficasse a mercê de dois abutres, que lhe devoravam o fígado.

Em seguida, Apolo matou o sátiro Mársias, seguidor da deusa Cibele. Isso aconteceu da seguinte forma: um dia, Atena confeccionou uma flauta dupla com ossos de cervo e tocou-a em um banquete dos deuses. No início, ela não entendeu por que Hera e Afrodite riam baixinho, tapando a boca com as mãos, enquanto os outros deuses pareciam deleitar-se com sua musica. Intrigada, Atena se retirou, sozinha, para um bosque frígio, empunhou a flauta junto a um ribeirão e contemplou sua imagem na água enquanto tocava. Ao dar-se conta de como a face azulada e as bochechas inchadas de ar tornavam grotesca sua aparência, ela jogou fora a flauta e lançou uma maldição sobre quem a encontrasse.

Mársias foi a inocente vítima dessa maldição. Ele tropeçou na flauta e, mesmo antes de leva-la aos lábios, ela começou a tocar sozinha, inspirada pela recordação da musica de Atena. E assim ele percorreu a Frígia, acompanhando o séquito de Cibele e deleitando os camponeses ignorantes. Estes o aclamaram, dizendo que nem mesmo Apolo, com sua lira, seria capaz de compor musica melhor, e Mársias, por ingenuidade, não se atreveu a contradize-los. Isso, claro, despertou a ira de Apolo, que lhe propôs uma competição, cujo vencedor teria o direito de infligir ao adversário o castigo que desejasse. Mársias aceitou o desafio, e Apolo convocou as musas como árbitros do torneio - que terminou empatado, porque elas ficaram encantadas com os dois instrumentos, ate que Apolo gritou a Mársias:

- Desafio você a fazer com seu instrumento o mesmo que faço com o meu: colocá-lo de ponta-cabeça e tocá-lo, cantando ao mesmo tempo!

Evidentemente, como tal feito era impossível com uma flauta, Mársias fracassou no desafio, ao passo que Apolo colocou sua lira ao contrário e entoou hinos tão melodiosos em louvor aos deuses olímpicos que as musas se viram na obrigação de emitir um veredicto a seu favor. Depois, por toda aquela doçura dissimulada, Apolo vingou-se de Mársias da maneira mais cruel: esfolou-o vivo e pendurou sua pele em um pinheiro (segundo alguns, num plátano), junto à foz de no que agora leva o seu nome.

Mais tarde, Apolo venceu um segundo desafio musical, presidido pelo rei. Dessa vez, derrotou Pã. Desde que se tornou reconhecido como o deus musica, tocou sempre sua lira de sete cordas nos banquetes dos deuses. Outro de seus deveres era o de guardar os rebanhos e as manadas que os deuses tinham em Pieria, trabalho que, mais tarde, ele acabou delegando a Hermes.

Apesar de negar-se a ter ligações matrimoniais, Apolo deixou grávidas várias ninfas e mulheres mortais, entre elas Ftia, com quem teve Doro, Polidectes e Laodoco; a musa Talia, que deu a luz os coribantes; Coronis, mãe de Asclépio; Aria, que lhe deu Mileto; e Cirene, mãe de Aristeu.

Apolo seduziu também a ninfa Driopeia, que cuidava do gado de seu pai no monte Eta, na companhia de suas amigas, as hamadriades. Apolo se disfarçou de tartaruga, com a qual todas brincaram, e, quando Driopeia a colocou sobre o peito, ele se converteu numa serpente sibilance, assustando as hamadriades e unindo-se a Driopeia. Ela então lhe deu Anfisso, que fundou a cidade de Eta e construiu um templo em homenagem ao pai, onde Driopeia serviu como sacerdotisa, ate o dia em que as hamadriades a raptaram e deixaram um choupo em seu lugar.

Apolo nem sempre teve sorte no amor. Certa vez, tentou roubar Marpessa de Idas, mas ela permaneceu fiel ao marido. De outra feita, perseguiu Dafne, a ninfa da montanha, sacerdotisa da Mãe Terra, filha do rio Peneu, na Tessalia, mas, quando a alcançou, ela suplicou por ajuda a Mãe Terra, que a fez desaparecer em um instante e reaparecer em Creta, onde se tornou conhecida como Pasifae. A Mãe Terra deixou um loureiro em seu lugar, e, com suas folhas, Apolo fez uma grinalda para se consolar.

Cabe acrescentar que sua tentativa de se aproximar de Dafne não foi um impulso repentino. Fazia muito tempo que ele andava apaixonado por ela, e já havia causado a morte de seu rival Leucipo, filho de Enomao, que se disfarçara de mulher para participar das orgias montanhesas de Dafne. Tendo se inteirado disso por adivinhação, Apolo sugeriu às ninfas que se banhassem desnudas, para se assegurarem de que todas as que ali estavam eram mulheres. As ninfas logo descobriram a impostura de Leucipo e o esquartejaram.

O mesmo aconteceu com o belo jovem Jacinto, príncipe espartano, pelo qual se apaixonou não só o poeta Tamiris - o primeiro homem a cortejar alguém do mesmo sexo - como também o próprio Apolo, o primeiro deus a faze-lo. Apolo não considerou Tamiris um rival serio. Tendo ouvido que o poeta se vangloriava de poder superar as musas com seu canto, ele, ardilosamente, tratou de informa-las. Elas não tardaram em privar Tamiris de sua voz, de sua visão e de sua memoria para tocar a harpa. Mas o Vento Oeste (Zefiro) também se enamorara de Jacinto e, um dia, ao ver Apolo ensinando o jovem a arremessar um disco, ficou loucamente enciumado, agarrou o disco no ar e lançou-o contra o crânio de Jacinto, matando-o. De seu sangue brotou a flor que leva seu nome, na qual ainda se podem ver suas iniciais.

Apolo enfureceu Zeus apenas uma vez, depois da famosa conspiração para destrona-lo. Foi quando seu filho Asclépio (Esculápio), o medico, cometeu a temeridade de ressuscitar um morto, roubando assim um súdito de Hades. Este, naturalmente, apresentou queixa ao Olimpo e, na sequencia, Zeus fulminou Asclépio, e Apolo, para se vingar, matou os ciclopes. Encolerizado pela perda de seus armeiros, Zeus só não o condenou ao desterro perpetuo no Tártaro porque Leto, implorando-lhe clemencia, comprometeu-se a fazer com que Apolo melhorasse sua conduta. A sentença reduziu-se a um ano de trabalhos forçados, e Apolo foi cuidar dos rebanhos de ovelhas do rei Admeto, de Teras. Seguindo o conselho de Leto, ele não só cumpriu humildemente sua pena como também trouxe grandes benefícios a Admeto.

Tendo aprendido a lição, ele passou a pregar a moderação em todas as coisas. As frases "Conhece-te a ti mesmo!" e "Nada em excesso!" estavam sempre em seus lábios. Trouxe para Delfos as musas de sua morada no monte Helicon, moderou seu exaltado frenesi e as orientou para tipos de danças mais formais e decorosas.

A historia de Apolo é confusa - Os gregos o fizeram filho de Leto, deusa conhecida pelo nome de Lat no sul da Palestina, mas era também deus dos hiperboreos ("homens de além do Setentrião"), que Hecataeus (Diodoro Siculo: 11.47) identificava claramente como os britânicos, embora Píndaro (Odes piticas X. 50-55) os considerasse líbios. Delos era o centro desse culto hiperbóreo que aparentemente estendia-se pelo sudeste ate a Nabateia e a Palestina, pelo noroeste até a Bretanha, e incluía Atenas. Havia um intercambio constante de visitas entre os povos unidos por tal culto (Diodoro Siculo: loc. cit.).

Entre os hiperbóreos, Apolo sacrificou quantidades enormes de asnos (Píndaro: loc. cit.), o que o identifica como o "Menino Hórus", cuja vitoria sobre seu inimigo Seth os egípcios celebravam anualmente, impelindo burros selvagens a um precipício (Plutarco: Sobre Isis e Osíris 30). Hórus queria vingar-se de Seth pelo assassinato de seu pai Osíris, o rei sagrado, amante da deusa-Lua tripla (Ísis, ou Lat), que tinha sido sacrificado pelo seu sucessor Seth no solstício estival e no invernal, e do qual o próprio Horus era a reencarnação. O mito da perseguição a Leto por parte de Píton é análogo ao da perseguição a Isis por parte de Seth (durante os 72 dias mais quentes do ano). Além disso, Píton pode ser identificado como Tifon, o Seth grego, no Hino homérico a Apolo é também pelo escoliasta de Apolônio de Rodes. De fato, o Apolo hiperbóreo é um Hórus grego.

Mas ao mito deu-se um contorno politico: diz-se que Píton foi enviado contra Leto por Hera, que o havia parido partenogenicamente, a fim de contrariar Zeus (Hino homérico a Apolo 305). Apolo, apos matar Píton (e supostamente também seu companheiro Delfim), apodera-se do templo oracular da Mãe Terra em Delfos - por ser Hera a Mãe Terra, ou Delfim, em seu aspecto profético. Parece que certos helenos do norte, aliados dos trácio-líbios, invadiram a Grécia central e o Peloponeso, onde enfrentaram a oposição dos adoradores pré-helênicos da deusa Terra, capturando, contudo, seus principais santuários oraculares. Em Delfos, eles destruíram a sagrada serpente oracular - uma serpente parecida era guardada no Erecteion de Atenas - e se apoderaram do Oraculo em nome de seu deus Apolo Esminteu. Esminteu ("murídeo"), assim como Esmun, o deus cananeu da cura, tinha como emblema um camundongo curativo. Os invasores concordaram em identifica-lo como Apolo, o Hórus hiperbóreo venerado par seus aliados. A fim de aplacar a opinião publica em Delfos, instituíram-se jogos funerários periódicos em homenagem ao herói morto Píton, e sua sacerdotisa foi mantida no cargo.

Brizo ("apaziguadora"), a deusa-Lua de Delos, indistinguível de Leto, pode ser identificada como a deusa tripla hiperbórea Brigite, cristianizada como Santa Brigite ou Santa Brígida. Brigite era a padroeira de todas as artes, e Apolo seguiu seu exemplo. O atentado do gigante Titio contra Leto aponta uma fracassada tentativa de sublevação por parte dos montanheses da Fócida contra os invasores.

As vitórias de Apolo sobre Mársias e Pã comemoram as conquistas helênicas da Frigia e da Arcádia e a consequente substituição, nessas regiões, de instrumentos de sopro por instrumentos de corda, exceto entre os camponeses. O castigo de Mársias pode referir-se ao ritual de esfolar o rei sagrado - assim como Atena despojou Palas de sua égide magica - ou ao costume de remover toda a cortiça de um amieiro jovem para se confeccionar uma flauta de pastor, sendo o amieiro personificado como deus ou semideus. Apolo era aclamado como antecessor dos gregos dórios e dos milesios, que lhe rendiam homenagens especiais. E os coribantes, bailarinos no festival de solstício de inverno, eram chamados de filhos da musa Talia com Apolo, pois ele era o deus da musica.

Sua perseguição a Dafne, a ninfa da montanha, filha do rio Peneu e sacerdotisa da Mãe Terra, aparentemente se refere a captura de Tempe por parte dos helenos. Ali, a deusa Dafene ("a sanguinária') era venerada por uma ordem de menades orgiásticas que mascavam folhas de louro. Após ter suprimido a ordem - o relato de Plutarco sugere que a sacerdotisa fugiu para Creta, onde a deusa-Lua era chamada de Pasifae, Apolo apoderou-se do louro, que, posteriormente, só a pitonisa poderia mascar. Tanto em Tempe como em Figália, Dafene devia ter cabeça de égua. Leucipo ("cavalo branco") era o rei sagrado do culto local do cavalo, esquartejado anualmente pelas mulheres selvagens, que se banhavam para purificar-se depois de mata-lo, e não antes.

O fato de Driopéia ter sido seduzida por Apolo em Oeta registra talvez a substituição do culto local ao carvalho pelo culto a Apolo, a quem o álamo era consagrado. O mesmo se pode dizer da sedução que exerceu sobre Aria. Seu disfarce de tartaruga é uma referência a lira que havia comprado de Hermes. O nome Ftia sugere o aspecto outonal da deusa. A fracassada tentativa com Marpessa ("a que agarra") parece evocar o fracasso de Apolo, ao querer apoderar-se de um templo messenio: o da deusa do trigo em seu aspecto de Porca. Seu servilismo diante de Admeto de Feres pode evocar um acontecimento histórico: a humilhação imposta a seus sacerdotes, como forma de punição pelo massacre de uma corporação de ferreiros pré-helênicos que estava sob a proteção de Zeus.

O mito de Jacinto, que, a primeira vista, parece ser apenas uma fabula sentimental para explicar o símbolo do jacinto grego, faz alusão ao herói-flor cretense Jacinto, aparentemente chamado também de Narciso, cujo culto foi introduzido na Grécia micênica e deu nome ao ultimo mês do verão em Creta, Rodes, Cos, Tira e Esparta. O Apolo dórico usurpou o nome de Jacinto em Tarento, onde o ultimo tinha uma tumba de herói. Em Amiclas, cidade micênica, outra "tumba de jacinto" converteu-se nas fundações do trono de Apolo. Naquela evoca, Apolo já era imortal, ao passo que Jacinto reinou somente durante uma estação. Sua morte em consequência de um golpe de disco recorda a de seu sobrinho Acrisio.

Apolo teve um filho, Asclépio, com Coronis ("corvo"). Este era provavelmente um dos títulos de Atena, mas os atenienses sempre negaram que ela tivesse filhos, e por isso distorceram o mito.

Na época clássica, a musica, a poesia, a filosofia, a astronomia, a matemática, a medicina e as ciências em geral estiveram sob o controle de Apolo. Inimigo do barbarismo, ele pregou a moderação em tudo. As sete cordas de sua lira estavam conectadas as sete vogais do alfabeto grego posterior, eram imbuídas de um significado místico e utilizadas como terapia musical. Finalmente, devido a sua identificação com o Menino Hórus, uma concepção solar, Apolo foi adorado como o Sol, cujo culto coríntio havia sido arrebatado pelo Zeus Solar. Sua irmã Artemis foi corretamente identificada como a Lua.

Cícero, em seu Ensaio Da natureza dos deuses (III. 23), estabelece que Apolo, filho de Leto, era o quarto de uma antiga serie de outros, homônimos: distinguem-se também Apolo, filho de Hefesto; Apolo, pai dos coribantes cretenses; e o Apolo que entregou suas leis a Arcádia.

Sem dúvida, o assassinato de Píton cometido por Apolo não é um mito tão simples como parece à primeira vista, pois a pedra Onfalo sobre a qual a pitonisa se sentava era, tradicionalmente, a tumba do herói encamado na serpente, cujos oráculos ela transmitia (Hesiquio sub o Tumulo de Arcos; Varrão: Sobre os idiomas latinos VII. 17). O sacerdote helênico de Apolo usurpou as funções do rei sagrado que, legitima e cerimonialmente, sempre havia matado seu predecessor, o herói. Isso se demonstra no rito das Esteptérias registrado por Plutarco em Por que os oráculos silenciam (15). A cada nove anos, no chão de terra batida junto a Delfos, construía-se uma cabana que representava a moradia do rei, e que era atacada repentinamente numa noite por... [aqui há uma lacuna no relato]... A mesa com as primeiras frutas era derrubada, ateava-se fogo a cabana, e os que empunhavam as tochas saiam correndo do santuário sem olhar para trás. Mais tarde, o jovem que havia participado da façanha ia purificar-se em Tempe, de onde retomava triunfante e coroado, carregando um ramo de loureiro.

O planejado assalto-surpresa ao morador da cabana faz lembrar o misterioso assassinato de Romulo por seus companheiros, bem como o sacrifício anual no festival das Bufonias de Atenas, onde os sacerdotes matavam o Zeus-boi com um machado duplo e saiam correndo sem olhar para trás. Depois, comiam a carne em um banquete publico, realizavam uma representação mimica da ressurreição do boi e levavam o machado a um tribunal, acusando-o de haver cometido um sacrilégio.

Em Delfos e em Knossos, o rei sagrado deve ter reinado até o nono ano. Sem duvida, o menino ia a Tempe porque o culto a Apolo havia se originado ali.

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5/21/2022 4:36:04 PM | Por Robert Graves
Os gigantes Alóidas

Efialtes e Oto eram filhos bastardos de Ifimedia, filha de Tríopas. Ela havia se apaixonado por Posídon e costumava agachar-se à beira-mar para recolher as ondas com as mãos e derramar no colo a água. Foi assim que engravidou. Efialtes e Oto eram chamados, entretanto, de Aloídas, porque Ifimedia se casou depois com Aloeu, consagrado rei de Asópia, na Beócia, por seu pai, Hélio. Os Aloídas cresciam dois metros de largura e de altura a cada ano, e, quando atingiram nove anos de idade, com nove cúbitos de largura e nove braças de altura, declararam guerra ao Olimpo. As margens do rio Estige, Efialtes jurou violar Hera, e Oto jurou fazer o mesmo com Ártemis.

Tendo decidido que Ares, o deus da guerra, devia ser o primeiro prisio­neiro, os Aloídas se puseram rumo à Trácia, desarmaram-no, amarraram-no e o confinaram num vaso de bronze, que ocultaram na casa da madrasta dos dois, Enbéia, pois Ifimedia já havia morrido. Depois, iniciaram o assédio ao Olimpo e fizeram um baluarte para atacá-lo, pondo o monte Pélion em cima do monte Ossa, e, em seguida, ameaçaram arremessar montanhas no mar até convertê-lo num deserto, embora as terras baixas ficassem inundadas e se transformassem em pântanos por causa das ondas. Estavam totalmente confiantes porque, segundo a profecia, nenhum homem, nem mesmo um deus, seria capaz de matá-los.

Por recomendação de Apoio, Ártemis mandou uma mensagem aos Aloí­das: se voltassem atrás em seu propósito, ela se reuniria com eles na ilha de Naxos e ali se submeteria aos assédios de Oto. Este, então, foi tomado por arroubos de alegria, mas Efialtes, que não havia recebido nenhuma mensagem similar de Hera, ficou enciumado e enraivecido. Uma briga cruenta eclodiu em Naxos, para onde eles foram juntos: Efialtes insistia em rejeitar os termos, a não ser que ele, como o mais velho dos dois, fosse o primeiro a desfrutar de Ártemis. A discussão estava no ápice quando Ártemis fez sua aparição em forma de corça branca, e os Aloídas posicionaram suas lanças para arremessá-las contra a deusa, cada qual disposto a provar que seria o melhor atirador. Quando ela passou voando por eles, veloz como o vento, os dois se atrapalharam e acabaram cravando a lança um no outro. Assim pereceram ambos, comprovando a profecia de que nenhum homem ou deus poderia matá-los. Seus cadáveres foram levados de volta para Antédon, para serem enterrados na Beócia, mas os habitantes de Naxos ainda lhes rendem honras de heróis. Eles também são lembrados como fundadores de Ascra, na Beócia, e como os primeiros mortais a adorarem as musas do Hélicon.

Uma vez levantado o cerco do Olimpo, Hermes saiu à procura de Ares e obrigou Eribéia a libertá-lo, já meio morto, do vaso de bronze. Mas as almas dos Aloídas desceram para o Tártaro, onde foram firmemente amarradas a uma coluna com cordas de nós, feitas de víboras vivas. Ali continuam sentadas, uma de costas para a outra, enquanto a ninfa Estígia, perversamente encarapitada no topo da coluna, serve como uma lembrança dos juramentos não cumpridos pelos Aloídas.

Esta é mais uma versão popular da rebelião dos gigantes. O nome Efialtes, o assalto ao Olimpo, a ameaça dirigida a Hera e a profecia da in­vulnerabilidade dos Aloídas ocorrem em ambas as versões. Efialtes e Oto, “filhos do campo debulhado” com “a que fortalece os genitais”, netos da “Trifacetada”, ou seja, Hécate, e adoradores das musas selvagens, personificam o incubo, ou pesadelo orgiástico, que oprime e profana as mulheres durante o sono. Assim como o Pesadelo da lenda britânica, eles estão associados ao número nove. O mito se confunde com um obscuro episódio histórico relatado por Diodoro. Ele conta que um certo Aloeu, da Tessália, encarregou seus filhos de libertar a mãe Ifimedia e a irmã Pancrátis (“toda-força”) das mãos dos trácios, que as haviam levado para Naxos. A expedição foi bem-sucedida, mas brigaram entre si pela posse da ilha e acabaram se matando um ao outro. Entretanto, ainda que Estêvão de Bizâncio mencione que a cidade de Aloeium, na Tessália, assim se chamasse por causa dos Aloídas, antigos mitógrafos dizem que eles eram beócios.

O assassinato recíproco dos irmãos gêmeos evoca a eterna rivalidade pelo amor da Deusa Branca entre o rei sagrado e seu sucessor, que alternadamente atacavam-se um ao outro. O fato de se chamarem “filhos do campo debulhado” e terem escapado da destruição do raio de Zeus os relaciona mais ao culto do cereal do que ao do carvalho. O suplício a que foram condenados no Tártaro, igual ao de Teseu e Pirítoo, parece deduzir-se de um antigo símbolo calendárico em que aparecem as cabeças dos gêmeos, uma de costas para a outra em cada lado da coluna, na posição em que se sentavam na Cadeira do Esquecimento. A coluna, sobre a qual está pousada a deusa da morte em vida, marca o apogeu do verão no momento em que termina o reinado do rei sagrado e começa o de seu sucessor. Na Itália, esse mesmo símbolo converteu-se no Jano bicéfalo, mas ali o Ano-novo se celebrava em janeiro, e não por ocasião do nascer helíaco do astro bicéfalo Sírio.

O confinamento de Ares durante três meses constitui um fragmento mítico desconexo, cuja datação exata é desconhecida, e se refere talvez a um armistício combinado entre os tessalo-beócios e os trácios, que durou um ano inteiro - o ano pelasgo tinha 13 meses período em que os símbolos bélicos de ambas as partes foram guardados dentro de um recipiente de bronze, num tem­plo de Hera Eribéia. Pélion, Ossa e Olimpo são montanhas ao leste da Tessália, das quais se tem uma visão distante do Quersoneso trácio, onde possivelmente foi travada a guerra que terminou graças a esse armistício.

Mitologia - Mitologia Grega
Vingança - Tópicos gerais, 
5/15/2022 6:04:32 PM | Por Robert Graves
Delfina e a humilhação de Zeus

Em vingança pela destruição dos gigantes, a Mãe Terra deitou-se com Tártaro e pouco tempo depois, na caverna Corícia, deu à luz seu filho mais novo, Tífon, o maior monstro que já existiu. Das coxas para baixo ele não era nada mais que serpentes enroscadas. Seus braços, estendidos, chegavam a 600 qui­lômetros de comprimento cada um, e em vez de mãos ele tinha, na ponta de cada braço, inúmeras cabeças de serpente. Sua cabeça, ornada de crinas de asno, roçava as estrelas, suas enormes asas ensombreciam o Sol, seus olhos lançavam chamas, e de sua boca saíam rochas flamejantes. Quando entrou em disparada no Olimpo, os deuses fugiram aterrorizados para o Egito, onde se disfarçaram de animais: Zeus se converteu num carneiro; Apolo, num corvo; Dionísio, em cabra; Hera, numa vaca branca; Ártemis, num gato; Afrodite, em peixe; Ares, em javali; Hermes, num íbis, e assim por diante.

Só Atena enfrentou, altiva, a situação, e escarneceu da covardia de Zeus até que este, recuperando a forma original, lançou contra Tífon um raio seguido de um golpe com a mesma foice de pedra lascada que servira para castrar seu avô Urano. Ferido e aos gritos, Tífon fugiu para o monte Casio, ao norte da Síria, e ali travou-se um terrível combate. Tífon enrolou em Zeus sua miríade de caudas, arrancou-lhe a foice e, após cortar-lhe os tendões das mãos e dos pés, arrastou-o para a caverna Corícia. Embora imortal, Zeus, a essa altura, não podia mover um dedo pois Tífon havia escondido os tendões numa pele de urso vigiada por Delfina. uma irmã-monstro com cauda de serpente.

A notícia da derrota de Zeus semeou o desânimo entre os deuses, mas Hermes e Pã conseguiram entrar furtivamente na caverna. Ali, Pã assustou Delfina um grito espantoso, enquanto Hermes subtraía habilmente os tendões e os colocava de volta nos membros de Zeus.

Mas alguns dizem que foi Cadmo quem persuadiu Delfina a entregar-lhe os tendões de Zeus, dizendo que precisava deles para fabricar as cordas de uma lira, com a qual iria dedicar-lhe uma música maviosa, e que foi Apolo quem a matou.

Zeus voltou ao Olimpo num carro puxado por cavalos alados e mais uma vez perseguiu Tífon com seus raios. O monstro havia se dirigido ao monte Nisa, onde as três Parcas lhe ofereceram frutos efêmeros como se fossem revigo­rantes, quando, na verdade, eram letais. Ele chegou ao monte Hemo, na Trácia, e, erguendo montanhas inteiras, lançou-as contra Zeus, que interpôs seus raios de maneira que eles ricochetearam para cima do monstro, provocando-lhe feri­ das horrendas. Os jorros de sangue de Tífon deram nome ao monte Hemo. O monstro, então, fugiu para a Sicília, onde Zeus pôs fim à perseguição atirando em cima dele o monte Etna, cuja cratera até hoje cospe fogo.

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Diz-se que “corício” significa “da sacola de couro”. Talvez seja uma refe­rência ao antigo costume de encerrar ventos em sacos, adotado por Éolo e conservado pelas bruxas medievais. Na outra caverna Corícia, a de Delfos, a serpente companheira de Delfina se chamava Píton, e não Tífon. Píton (“serpente”) era a personificação do destrutivo Vento Norte, o Setentrião - os ventos eram habitualmente representados com caudas de serpente - , que se pre­cipita sobre a Síria a partir do monte Casio, e sobre a Grécia a partir do monte Hemo. Tífon, por outro lado, significa “fumo estupefaciente”, e seu aspecto é o de uma erupção vulcânica, daí a lenda de que Zeus o derrotou, enter­rando-o finalmente sob o monte Etna. Mas o nome Tífon significava também o ardente siroco do deserto meridional que causava estragos na Líbia e na Grécia, trazendo consigo um odor vulcânico. Ele era retratado pelos egípcios como um asno do deserto. O deus Set, cujo hálito seria o próprio Tí­fon, mutilou Osíris quase do mesmo modo como Píton mutilou Zeus, embora ambos tenham sido finalmente derrotados. Não obstante, o paralelismo fez com que se confundisse Píton com Tífon.

Esse vôo divino para o Egito, como observa Luciano, foi inventado para justificar a adoração dos egípcios a deuses em forma animal: Zeus-Amon como carneiro; Hermes-Tot como íbis; Hera-Isis como vaca; Ártemis-Pasht como gato, e assim por diante. Mas historicamente pode referir-se também ao êxodo de sacerdotes e sacerdotisas que fugiram assustados das ilhas do Egeu, quando uma erupção vulcânica sepultou metade da grande ilha de Tera, pouco antes do ano 2000 a.e.c. Os gatos não eram animais domésticos na Grécia clássica. Uma outra fonte dessa lenda parece ser o poema épico babilônico da Criação, o Enuma Elish, conforme o qual, na primeira versão de Damascius, a deusa Tiamat, seu consorte Apsu e seu filho Mummi (“confusão”) soltam Kingu e uma horda de outros monstros contra a recém-nascida trindade de deuses: Ea, Anu e Bei. Em seguida vem a fuga provocada pelo pânico, até que Bei reúne seus irmãos, controla a situação e derrota as forças de Tiamat, esmagando seu crânio com uma clava e partindo-a em dois “como um linguado”.

O mito de Zeus, Delfina e a pele de urso registra a humilhação de Zeus diante da Grande Deusa, adorada, como a Ursa, cujo oráculo principal estava em Delfos. Desconhece-se o momento histórico, mas os cadmeus da Beócia pareciam preocupados em manter o culto a Zeus. Os “frutos efêmeros” entre­gues aTífon pelas três Parcas são, ao que parece, as típicas maçãs da morte. Numa versão proto-hitita do mito, a serpente Illyunka vence o deus da tormenta e lhe arranca os olhos e o coração, que ele recupera mediante um estratagema. O Conselho Divino chama então a deusa Inara para executar a vingança. A seu convite, a serpente Illyunka vai a uma festa e come até empanturrar-se. Nisso, Inara a amarra com uma corda, e o deus da tormenta a aniquila.

O monte Casio (atualmente Jebel-el-Akra) é o monte Hazzi que aparece na história hitita de Ullikummi, o gigante de pedra que crescia a uma velocidade surpreendente e que recebera ordens do pai, Kumarbi, para destruir os setenta deuses do Céu. O deus da tormenta, o deus do Sol, a deusa da beleza e as demais divindades fracassaram em suas tentativas de matar Ullikummi, até que Ea, a deusa da sabedoria, utilizando-se da faca que originalmente separara o céu da terra, cortou os pés do monstro e jogou-os no mar. Certos elementos dessa história ocorrem no mito de Tífon e também no dos Aloídas, que cresciam com a mesma velocidade e utilizavam as montanhas como escadas para subir ao Céu. Os cadmeus foram provavelmente os que levaram essas lendas para a Grécia a partir da Ásia Menor.

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5/14/2022 4:59:35 PM | Por Giovanni Reale
A filosofia platônica

No centro da República, situa-se um mito platônico muito céle­bre, chamado “da caverna”1. O mito foi sucessivamente visto como símbolo da metafísica platônica, da gnosiologia e da dialética platô­nicas, e também da ética e da ascensão mística segundo Platão; na verdade, ele simboliza tudo isto e também a política platônica e hoje estamos em condição de reconhecer igualmente as vigorosas alusões de caráter protológico que ele apresenta de maneira muito poética: é o mito que exprime todo Platão e, assim, concluímos com ele a ex­posição e interpretação do seu pensamento.

Imaginemos homens que vivam numa habitação subterrânea, numa caverna, cuja entrada esteja aberta para a luz em toda a sua largura, com uma escarpada via de acesso ao interior; e imaginemos que os moradores dessa caverna estejam presos pelas pemas e pelo pescoço de modo que não podem voltar-se e, assim, só podem olhar para o fundo da caverna. Imaginemos ainda que seguindo a largura da caver­na haja um pequeno muro da altura de um homem e que, atrás desse pequeno muro (portanto, inteiramente ocultos por ele) passem conti­nuamente homens que trazem sobre os ombros estátuas e objetos esculpidos em pedra, madeira e outros materiais, figurando todo o tipo de coisas existentes. Imaginemos, além disso, que atrás desses homens la esteja aceso um grande fogo e fora, no alto, o sol. Finalmente, imaginemos que a caverna possua um eco e que os homens que passam atrás do muro falem entre si, de modo que, do fundo da caverna as suas vozes sejam refletidas pelo eco.

Pois bem, se assim fosse, aqueles prisioneiros não poderiam ver senão as sombras das estatuetas projetadas sobre o fundo da caverna e ouviriam o eco das vozes: mas acreditariam, não tendo nunca visto outra coisa, que aquelas sombras fossem a única e verdadeira reali­dade, e acreditariam ainda que as vozes do eco fossem as vozes [293] pertencentes àquelas sombras. Ora, suponhamos que um dos prisio­neiros consiga, com árduo esforço, livrar-se das cadeias; também com muito esforço ele conseguiria acostumar-se à nova visão que teria diante dos olhos; habituando-se, veria as estatuetas movendo-se aci­ma do muro e entenderia que elas são bem mais verdadeiras do que as coisas que antes via e que agora lhe aparecem como sombras. Suponhamos agora que alguém arraste o prisioneiro para fora da caverna, para além do muro. Então, primeiramente ele ficaria ofusca­do com a grande luz e depois, com o hábito, aprenderia a ver as próprias coisas, primeiro nas suas sombras e reflexos na água, depois em si mesmas; finalmente veria o sol e entenderia que são essas as verdadeiras realidades e que o sol é a causa de todas as outras coisas.

Citemos todo o texto, verdadeiramente fundamental;

— Depois disso, disse eu, representa-te, segundo essa condição, a nossa natureza no que diz respeito à educação e à ausência dela. Imagina ver homens encerrados numa habitação subterrânea em forma de caverna, que tenha a entrada aberta para a luz em toda a sua extensão; além disso, que eles se encontrem aqui desde crianças, com as pernas e o pescoço presos a cadeias de modo a não poder mover-se e a dever olhar sempre para a frente, sem poder virar a cabeça por causa das cadeias; atrás deles, ao longe, brilha a luz de uma fogueira; entre os prisioneiros e o fogo corre um caminho elevado e ao longo dele um pequeno muro, igual à cortina que os exibidores de marionetes colocam entre si e os espectadores e acima da qual exibem seu espetáculo.

— Estou vendo, disse ele.

— Imagina agora que, ao longo do pequeno muro, passam homens carregando utensílios de todo tipo que excedem a altura do muro, e figuras de homens e de animais feitas de pedra e madeira, e todo tipo de formas; e, como é natural, alguns dos carregadores falem e outros permaneçam em silêncio.

— Falas, disse ele, de um estranho quadro e de estranhos prisioneiros.

— Eles são semelhantes a nós, respondi. Antes de tudo, crês que eles e seus vizinhos vejam outra coisa a não ser as sombras que o fogo projeta na parede da caverna que está diante deles?

— E como, se estão obrigados a ter a cabeça imóvel durante toda a vida? — E quanto aos objetos que são levados, não acontece a mesma coisa?

— Sem dúvida.

— Se, portanto, pudessem conversar entre si não crês que pensariam designar objetos reais, designando as sombras que contemplam? [294]

— Necessariamente.

— E se o cárcere tivesse um eco vindo da parede em frente, todas as vezes que um dos passantes falasse crês que pensariam ser outro a falar a não ser a sombra que passa?

— Em todo caso, disse eu, esses tais outra coisa não pensariam que fosse o real verdadeiro a não ser a sombra daqueles objetos artificiais.

— Considera agora, continuei, de que modo seria a sua libertação das cadeias e a sua cura da ignorância, se as coisas lhes acontecessem natural­mente. Logo que um fosse solto e obrigado a levantar-se e a virar o pescoço, a caminhar e a levantar os olhos para a luz, ao fazer tudo isto sofreria dores e ficaria ofuscado sem poder ver as coisas cujas sombras via antes. O que pensas que ele responderia se alguém lhe dissesse que o que via há pouco eram sombras vãs e que agora, mais perto da realidade e voltado para objetos mais reais, ele via mais corretamente as coisas? E mostrando-lhe cada um dos objetos que passam, o forçasse a responder à pergunta “o que é”? Não crês que ele ficaria perplexo e que os objetos que antes via lhe pareceriam mais verdadeiros do que aqueles que agora vê?

— E se alguém o obrigasse a olhar a luz mesma, seus olhos não ficariam doloridos e não fugiria, voltando-se para aquelas coisas que pode ver, e não consideraria a estas realmente mais claras do que as que lhe são mostradas?

— E se de lá alguém o tirasse, levando-o por força a subir pela rude e escarpada subida, e não o deixasse antes de tê-lo trazido para fora, para a luz do sol, acaso não sofreria e não se revoltaria por ver-se assim arrastado e, tendo chegado à luz, não teria os olhos ofuscados pelo seu brilho e não ficaria impedido de ver nem mesmo um dos objetos que a partir de agora são ditos verdadeiros?

— Penso que deveria primeiro habituar-se para poder ver as coisas daqui de cima. O que primeiro veria mais facilmente seriam as sombras, depois as imagens dos homens e das outras coisas refletidas nas águas, depois os próprios objetos. Em seguida veria os objetos que estão no céu e contem­plaria o próprio céu durante a noite, vendo a luz dos astros e da lua com mais facilidade do que veria durante o dia o sol e a luz do sol.

— Sem dúvida.

— Finalmente, creio que poderia ver o próprio sol e não os seus reflexos nas águas ou em alguma outra superfície, mas ele mesmo e em si mesmo, na morada que lhe é própria, contemplando-o tal qual é. [295] 

— Necessariamente, disse ele.

— Depois disso poderia deduzir a esse propósito as conclusões de que é o sol que produz as estações e os anos, que boverna todas as coisas no mundo visível e que é causa também de todas as coisas que ele e seus companheiros antes viam.

— É claro, disse ele, que depois de tudo chegaria a essas conclusões.

— E então, quando se lembrasse da sua primeira morada e da sabedoria que ali pensava possuir e dos que estavam prisioneiros com ele, não pensas que se felicitaria da mudança e teria compaixão daqueles outros?

— Sim, certamente.

— E se entre eles havia louvores, honras e prêmios para quem tivesse a vista mais aguda para observar os objetos que passavam e se recordasse mais exatamente quais eram os que costumavam passar em primeiro ou em último lugar ou juntos, e a partir daí fosse o mais capaz de prever o que estava por acontecer, pensas que este tal teria desejo daquelas coisas e inveja dos que entre eles gozam de mais honra e poder, ou não sucederia acaso o que diz Homero, e que ele preferiria muito mais, “viver sobre a terra e ser servo de um pobre homem” e sofrer qualquer coisa, antes do que voltar a viver lá e ter lá aquelas opiniões?

— Sem dúvida, disse ele; penso que sofreria qualquer coisa antes do que tornar a viver aquela vida.

— Pensa também nisso: se aquele tal descesse de novo na caverna, voltasse a sentar-se no seu lugar, não ficaria com os olhos cheios de trevas vindo, de repente, da luz do sol?

— E se voltasse a discorrer sobre aquelas sombras, discutindo com os prisioneiros que lá ficaram, antes que seus olhos se acostumassem com a escuridão, o que levaria bastante tempo, não seria motivo de riso e não se diria dele que, tendo subido lá em cima, voltou com a vista estragada, e que não vale a pena tentar a subida? E se buscasse libertá-los e conduzi-los para o alto e eles pudessem agarrá-lo com suas mãos, acaso não o matariam?

— Certamente o fariam, disse ele.2

O que simboliza exatamente esse “mito da caverna”?

a) Antes de tudo, simboliza os vários graus ontológicos da rea­lidade, ou seja, os planos do ser sensível e supra-sensível, com as suas subdivisões: as sombras da caverna são as meras aparências sensíveis das coisas, enquanto as estátuas e os artefatos simbolizam [296] todas as coisas sensíveis; o muro representa o divisor de águas que divide as coisas sensíveis das supra-sensíveis. Para além do muro, as coisas verdadeiras e os astros simbolizam a realidade no seu ser ver­dadeiro, ou seja, as Idéias; finalmente, o sol simboliza a Idéia do Bem.

O que exprimem as sombras e as imagens refletidas das coisas verdadeiras, as primeiras que o prisioneiro vê para além do muro? Observemos que as sombras diretas para além do muro e as imagens refletidas na água fora da caverna são justamente sombras e imagens das verdadeiras realidades produzidas pela luz do sol, completamente diferentes das sombras que os prisioneiros vêem no fundo da caverna. Estas são, ao contrário daquelas, produzidas pelas estátuas e pelos objetos artificiais e pela luz do fogo. Em outras palavras, aquelas primeiras estão verdadeiramente “no meio” entre as Idéias e as coisas que as reproduzem e exprimem muito bem os “seres intermediários que são ontologicamente “intermediários”, como bem o sabemos. E o que simbolizam as estrelas e os astros situados, evidentemen­te, acima das coisas verdadeiras singulares?

Já agora tornou-se clara a resposta e, com Krämer, é possível afirmar doravante que não nos enganamos “se nelas reconhecermos as Meta-idéias de identidade e de diversidade, de igualdade e de desigualdade, de par e de ímpar [,..]3. Portanto, as coisas reais sim­bolizam as Idéias singulares especificamente distintas, as estrelas e os astros as Meta-idéias e os Números ideais, ao passo que o Sol sim­boliza a Idéia do Bem-Uno.

b) Em segundo lugar, o mito simboliza os planos do conhecimen­to, nos seus diferentes níveis e nos vários graus desses níveis.

A visão das sombras na caverna simboliza a imagi­nação, enquanto a visão das estátuas e artefatos simboliza a crença.

A passagem da visão das estátuas à visão dos objetos verdadeiros correspondentes, que acontece primeiramente por meio dos reflexos e imagens das mesmas e, portanto, dos seres matemáticos, simboliza [297] o conhecimento mediano ou intermediário que está estruturalmente ligado às ciências matemáticas.

A visão mais elevada, que se inicia com a percepção dos seres reais e que, através da visão das estrelas, dos astros e da lua durante a noite, chega à visão do sol na plena luz do dia, simboliza o grande caminho da dialética nos seus estágios essenciais, a saber, no seu avançar e no seu passar de Idéia a Idéia até às Idéias supremas e, por abstração dessas, até à própria Idéia do Bem, ao Princípio do Todo.

c) Em terceiro lugar, o mito da caverna simboliza também o aspecto místico e teológico do platonismo; a vida na caverna simbo­liza a vida humana na dimensão dos sentidos e do sensível, enquanto a vida na pura luz simboliza a vida na dimensão do espírito. A liber­tação das cadeias e a “conversão”, ou seja, o voltar o rosto das som­bras à luz, simboliza o converter-se do sensível ao inteligível. Enfim, a suprema visão do sol e da luz em si simboliza a visão do Bem, o conhecimento e a fruição do Uno e da Medida suprema de todas as coisas ou do absolutamente Divino, e a conseqüente decisão de nele inspirar-se em todas as atividades da vida.

Notemos, em particular, como Platão indica a libertação da visão das sombras para a luz como um “voltar o pescoço” do prisioneiro da caverna, justamente para poder levantar o olhar para a luz. E esta imagem emble­mática de voltar a cabeça para a parte oposta é retomada e desenvolvida pouco depois e qualificada como “conversão” da alma do devir ao ser, como condição necessária para chegar a ver o ser no seu máximo esplendor e, portanto, o Bem, que é o Princípio do Todo.

Essa metáfora da “conversão” foi retomada e desenvolvida pelos cristãos em sentido religioso, como bem observou Jaeger, afirmando que ao “considerarmos o problema não já do fenômeno da ‘conver­são’ como tal, mas da origem do conceito cristão de conversão, deve-se reconhecer em Platão o primeiro autor desse conceito. A transfe­rência do vocábulo para a expressão religiosa cristã teve lugar no terreno do primitivo platonismo cristão”4. Mas a dimensão religiosa [298] e ascética (naturalmente em sentido helênico) está já largamente pre­sente em Platão, e o “converter-se” no sentido compreensivo do “vol­tar-se” da alma das ilusões para a verdade, com todas as suas conse­qüências, aparece já em Platão verdadeiramente emblemático, como demonstra de modo admirável justamente esse mito da caverna.

d) O mito da caverna exprime também a concepção política especificamente platônica.

Com efeito, Platão fala igualmente de um “retomo” à caverna daquele que se libertara das cadeias, de um retomo que tem como alvo a libertação das cadeias dos outros em companhia dos quais antes ele fora escravo.

Este “retorno” é, indubitavelmente, o retorno do filósofo-político, o qual, se seguisse apenas seu desejo, ficaria a contemplar a verdade; mas, ao invés, superando tal desejo, desce para tentar salvar também os outros (o verdadeiro político, segundo Platão, não ama o mando e o poder, mas usa mando e poder como serviço à Cidade, em vista da atuação do Bem).

Mas, que poderá acontecer a quem volta a descer? Passando da luz à sombra ele não conseguirá enxergar, senão depois de ter-se novamente habituado à escuridão; custará a readaptar-se aos velhos usos dos companheiros, correrá o risco de não ser entendido por eles e de ser tido por louco, suscitando profundas aversões e poderá até correr o perigo de ser morto.

Há aqui, certamente, uma alusão a Sócrates, mas o juízo vai sem dúvida muito além do caso de Sócrates.

Eis o que Platão pretende dizer: ai de quem rasga as ilusões que envolvem os homens! Eles não toleram as verdades que subvertem os seus cômodos sistemas de vida fundados sobre as aparências e sobre a parte mais fugidia do ser, e temem as verdades que invocam a totalidade do ser e o eterno; quem lhes traz uma mensagem de ver­dade ontologicamente revolucionária pode ser condenado à morte como um charlatão! Assim aconteceu com Sócrates, o “único político ver­dadeiro” da Grécia, como Platão o chama, e assim foi e será ou poderá ser para quem quer que se apresente “político” em sentido universal. [299]

Vértices do pensamento de Platão, pontos de referência na história do pensamento ocidental

1) Um dos vértices do pensamento platônico — que permaneceu talvez como o ponto de referência mais significativo e mais estimu­lante na história do pensamento ocidental, não somente na idade antiga, mas também na idade moderna — é constituído pela teoria das Idéias.

Apresentemos alguns exemplos mais notáveis.

Aristóteles, embora fazendo da teoria das Idéias objeto de uma intensa crítica de natureza teórica, nela vai buscar a inspiração fun­damental justamente para a sua concepção da “forma” que plasma e estrutura a matéria. Com o platonismo médio, as Idéias tornam-se pensamentos da Inteligência divina e nesse sentido as entenderão igualmente os Padres da Igreja. Os escolásticos irão buscar importan­tes motivos teóricos nessas duas interpretações. Na idade moderna, vamos lembrar dois exemplos que são os de maior significação: Kant interpretará as Idéias como as formas supremas da Razão e, conquan­to negando-lhes um valor cognoscitivo, irá atribuir-lhes um “uso” regulativo estrutural de grande importância; quanto a Hegel, julgará a teoria das Idéias como a “verdadeira grandeza especulativa” de Platão e, mais ainda, como uma própria e verdadeira “pedra miliar” na história da filosofia e mesmo na história universal.

Poderíamos afirmar, com bons fundamentos, que uma história da interpretação e dos repensamentos teoréticos da teoria das Idéias abrangeria uma ampla área da história da filosofia ocidental e exata­mente em alguns pontos essenciais. Com efeito, o principal eixo de sustentação do pensamento que Platão apresentou nos seus diálogos (ou seja, na dimensão da “escritura”) é justamente a metafísica das Idéias e sobre ela, para poder repensar Platão, todos os leitores se concentraram em todas as épocas.

2) Do ponto de vista estritamente teórico, pelos motivos supra­ citados, o vértice mais elevado do pensamento platônico é constituído pela teoria dos Princípios (da qual a própria teoria das Idéias depen­de), confiada por Platão sobretudo à “oralidade”, mas à qual, com indicações e alusões às vezes bastante incisivas, referiu-se com exa­tidão também nos seus escritos. Essa doutrina leva (como se diz por [300]  alusão justamente na República) exatamente ao “princípio do Todo” e à explicação metafísica da realidade em todos os seus aspectos.

Na perspectiva da moderna interpretação de Platão, a teoria dos Princípios foi recuperada e compreendida no seu alcance apenas em tempos mais recentes, pelos motivos acima apresentados; mas, do ponto de vista histórico, pelo menos no âmbito do pensamento antigo, ela suscitou correntes verdadeiramente notáveis.

Em 1912, W. Jaeger reconhecia que a filosofia platônica à qual Aristóteles se refere na sua Metafísica não é a dos diálogos, mas a das “Doutrinas não-escritas”. Com efeito Aristóteles, seja pelas suas polêmicas, seja pelos seus repensamentos teóricos, é devedor, em larga medida, das “Doutrinas não-escritas”.

Já os neoplatônicos irão buscar aqui os estímulos para o repensamento teórico e para os desenvolvimentos sistemáticos da fi­losofia de Platão. O Uno-Bem, fundamento do pensamento de todos os neoplatônicos é, justamente, o “Princípio do Todo” de Platão, com esta diferença: em Platão trata-se de um Princípio supremo, de estrutura bipolar (o Uno age sobre a Díade que lhe é hierarquicamente subordinada, mas coessencial e eterna), ao passo que nos neoplatônicos trata-se de um Princípio de estrutura monopolar e absoluto, no sentido de que tudo deriva dele, inclusive a própria Díade, com tudo o que daí resulta.

3) Uma conquista de Platão, estreitamente ligada às precedentes e que constitui mesmo a sua base, é a concepção da estrutura hierár­quica do real. As conclusões do Fédon, cuja validez permaneceu intacta para Platão, são aquelas sobre as quais repetidamente insistimos: “Es­tabeleçamos [...] duas espécies de seres: uma visível, outra invisível”.

Voltaremos à significação de fundo desse “dualismo”, ligado ao problema da transcendência; aqui, mais do que sobre essa distinção [301] básica entre o físico e o suprafísico, queremos chamar a atenção para a complexa articulação dessa distinção (antes já explicada), que parte dos Princípios primeiros e supremos, aos quais se segue a esfera das Idéias hierarquicamente estruturadas, depois ulteriormente a esfera dos seres matemáticos, também hierarquicamente e, por último, a esfera das realidades sensíveis. Cada uma dessas esferas articula-se, justa­mente, segundo uma estrutura hierárquica (com a emergente e parti­cular importância da esfera das Idéias, que se articula em Números ideais, Idéias generalíssimas ou Meta-idéias, Idéias particulares), com uma dependência estrutural do plano inferior com relação ao superior (e não vice-versa) e, com uma dependência mediata de toda a realida­de, de vários modos e em todos os níveis, do Princípio primeiro.

Essa concepção da estrutura hierárquica do real teve grande importância. Sem esse horizonte de fundo, não se podem entender os sucessores imediatos de Platão. O próprio Aristóteles introduz essa concepção na sua visão teórica e a faz um dos eixos de sustentação da sua metafísica. Já os neoplatônicos irão levá-la de modo sistemático às suas conseqüências extremas, tendo ela encon­trado em Proclo seus desenvolvimentos mais amplos.

4) Repetidas vezes fizemos uso dos termos “divino” e “Deus” ao expor o pensamento platônico, e chegou o momento de resumir quan­to dissemos e de determinar qual seja propriamente o sentido da teologia platônica.

Alguém afirmou que Platão é o fundador da teologia ocidental. A afirmação, entendida no seu sentido justo, é exata. A “segunda navegação”, isto é, a descoberta do supra-sensível, deveria dar a Platão, pela primeira vez, a possibilidade de ver o divino justamente na perspectiva do supra-sensível, como fará depois toda sucessiva concepção evoluída do divino. Com efeito, também nós hoje consi­deramos como fundamentalmente equivalente, de um lado, crer no supra-sensível e crer no divino e, de outro, negar o divino e negar o supra-sensível. Desse ponto de vista, Platão é, sem dúvida, o cria­dor da teologia ocidental, na medida em que descobriu a categoria (o [302] imaterial) segundo a qual é possível e necessário pensar o divino (as posições ulteriores dos estóicos e dos epicuristas, que admitirão deu­ses materiais, apresentam um emaranhado de aporias, tomadas mais gritantes justamente pelo fato de que retomam posições e categorias pré-socráticas que, fatalmente, depois de Platão e Aristóteles, não poderiam conservar mais o sentido originário). 

No entanto, convém acrescentar que Platão, embora havendo alcançado o novo plano do supra-sensível e tendo nele situado a problemática teológica, repropõe a visão (já nossa conhecida, e que permanecerá uma constante de toda filosofia grega) segundo a qual o divino é estruturalmente múltiplo.

No entanto, devemos distinguir, na teologia platônica, o “Divi­no” impessoal do Deus pessoal. Divino é o mundo ideal em todos os seus planos e, em particular, divina é a Idéia do Bem (Uno), mas não é o Deus-pessoa. Portanto, no cimo da hierarquia do inteligível há um Ente divino (impessoal) e não um Deus (pessoal), assim como as Idéias são Entes divinos (impessoais) e não Deuses (pessoais).

Ao contrário, o Demiurgo tem características de pessoa, isto é, de Deus, pois conhece e quer. Mas ele é inferior ao mundo das Idéias no seu complexo já que não o cria, mas depende dele gnosiológica e normativamente (embora encontrando-se no vértice, logo após a Idéia do Bem). O Demiurgo não cria nem mesmo o princípio material que a ele preexiste.

Os astros e o mundo (concebidos como inteligentes e animados), são deuses criados pelo Demiurgo; e a ele talvez se acrescentem algumas divindades das quais falava o antigo politeísmo e que Platão parece conservar (ou, pelo menos, parece não rejeitar de maneira categórica e globalmente). Divina é a alma do mundo, divinas são as almas das estrelas e as almas humanas, junto às quais devem ser enumerados os demônios mediadores, dentre os quais Eros é o exem­plo mais típico.

Porém, se considerarmos rigorosamente o conceito de criação (ainda que no sentido do semicriacionismo helénico), todos os outros Deuses acabam dependendo estruturalmente do primeiro. Assim, mesmo de longe e ao menos como exigência, Platão enveredou por um caminho que se dirige para uma espécie de monoteísmo, ao menos dentro da medida helénica.

As famosas palavras que o Demiurgo (Deus “criador” exatamen­te na significação helénica) dirige aos Deuses criados impõem-se num certo sentido quase como emblemáticas, justamente na perspec­tiva que indicamos:

“O Deuses, filhos de Deuses, eu sou o vosso Artífice e Pai das obras que produzis por meu intermédio, e que são indissolúveis enquanto assim eu o quiser. Com efeito, tudo o que é ligado pode ser dissolvido, mas querer dissolver o que é belo e harmoniosamente unido é próprio de um ser mau. Por essa razão e já que fostes gerados, não sois nem imortais nem totalmente incorruptíveis. No entanto, nunca sereis dissolvidos nem estareis submetidos a um destino mortal, pois que a minha vontade é para vós um laço mais forte e maior do que aquele com o qual fostes ligados ao nascer. Aprendei agora o que vos digo e vos demonstro. Ficam ainda por gerar três espécies de mortais. Se eles não forem gerados o Céu permanecerá incompleto, pois não terá em si todas as espécies de seres vivos. Ora, deve tê-las para ser suficientemente perfeito. Mas, se estes fossem gerados por mim e de mim recebes­ sem a vida, seriam iguais aos Deuses. Portanto, para que sejam mortais e para que este universo seja verdadeiramente completo, aplicai-vos, segundo a vossa natureza, à produção de tais viventes, imitando a potência que usei na vossa geração. E no que diz respeito àquela parte dos viventes que deve ter o mesmo nome que os imortais e que é chamada divina e que rege aqueles que querem seguir-vos e seguir a justiça, eu mesmo vos darei a semente e o seu princípio. Com respeito ao resto, entretecendo essa parte imortal com a mortal, fabricai os viventes, fazei-os nascer, dai-lhes o alimento e o crescimento e, ao morrer, recebei-os novamente”5.

Acima do Deus platônico, como antes esclarecemos, está o Di­vino no sentido supremo (o Uno-Bem e os Princípios e, em certa medida, as Idéias consideradas na sua totalidade, embora o Demiurgo seja, hierarquicamente, o maior de todos os entes, ontológica e metafisicamente subordinado só aos Princípios primeiros e supremos). Como haveremos de ver, Aristóteles inverterá a hierarquia, pondo no vértice justamente um Deus que tem a característica da inteligência pessoal e, nesse sentido, avançará além de Platão, embora de maneira parcial e problemática; mas as cinqüenta e cinco inteligências motri­zes das esferas celestes que ele introduz (das quais adiante falaremos) são Deuses a Ele inferiores, mas coeternos, enquanto, nesse ponto, Platão aparentemente avançou mais, apresentando todos os Deuses como criados pelo Demiurgo.

5) Como acima recordamos, Platão chegou à concepção de “criacionismo” mais avançada na dimensão helénica.

Lembramos que, diante desse problema tiveram e têm lugar for­tes reações e prevenções por parte de muitos intérpretes motivados por aversões de tipo diverso contra a temática da “criação divina”. Essas prevenções geraram numerosas confusões ou, quando menos, levaram a pôr entre parênteses e a situar essa problemática à margem da interpretação de Platão.

Mais ainda, alguns consideram que não seja possível falar de “criação” em nenhum sentido com referência a autores gregos, se­ não indo contra o modo de pensar próprio dos helenos.

No entanto, Platão fala de uma atividade demiúrgica no sentido de levar do não-ser ao ser e diz com toda clareza que o Demiurgo produz o universo, os animais, os vege­tais, os minerais e ainda, não só as coisas que são geradas, mas também “as coisas das quais derivam as coisas que são geradas”, ou seja, os elementos (água, ar, terra e fogo).

Mas, eis como deve ser entendido esse aspecto do pensamento platônico.

O ser é um “misto ” e, conseqüentemente, a criação do Demiurgo é a criação de um misto, vem a ser, um fazer passar da desordem à ordem, justamente porque o ser é esse ordenamento de uma desordem (uni-ficação de uma multiplicidade ilimitada).

Mas, a respeito desse ponto, Platão avança muito, de maneira verdadeiramente notável. E vai muito além de todos os gregos a ele anteriores ou posteriores, embora permanecendo na dimensão helénica.

Com efeito, não somente se limita a dizer que o Demiurgo com­bina na mistura elementos antes constituídos, mas chega a afirmar com precisão que os constitui. Em outros termos: o Demiurgo plasma tanto os elementos materiais dos quais derivam as coisas, como os elementos formais que permitem realizar no mundo sensível o mundo ideal e, desse modo, atua o Bem (o Uno) no grau mais elevado pos­sível, em particular por meio dos números e das estruturas matemá­ticas e geométricas, como acima tivemos ocasião de mostrar.

6) Platão identificou o filósofo com o “dialético” e definiu o dialético como aquele que é capaz de olhar a realidade sinoticamente, ou seja, que é capaz de ver o “todo”, isto é, de recolher a pluralidade na unidade, os muitos no uno.

O conceito de dialética teve, justamente, um dos mais notáveis desenvolvimentos na história do pensamento ocidental os quais, se avançam bem além dos horizontes de Platão, sobretudo com Hegel (e com os pensadores que de várias maneiras dele dependem), têm seus pressupostos e seus precedentes exatamente em Platão.

Com efeito, a dialética tem suas origens no âmbito do pensamen­to eleático, sobretudo com Zenão, mas, dentro dos limites do pensa­mento antigo, alcança seu vértice justamente com Platão. O próprio Aristóteles operará uma redução da dialética às perspectivas da sua lógica. Com os neoplatônicos, porém, ela retomará horizontes mais amplos, com desenvolvimentos assaz notáveis, mas sem a grandiosa e paradigmática linearidade e essencialidade que alcança em Platão.

Como já vimos, acima das interpretações diversas que se podem dar da dialética platônica, manifesta-se a sua exata fisionomia como fundada sobre os Princípios primeiros e supremos e sobre a conse­qüente estrutura bipolar do real, vem a ser, como o procedimento cognoscitivo capaz de recolher sinoticamente os muitos no uno (eu) e, paralelamente, de decompor o uno em muitos, por meio de uma gradação diairética.

A dialética, com os procedimentos sinótico e diairético, torna-se verdadeiramente para Platão, a expressão suprema do pensamento e o fundamento de toda capacidade e poder do operar e, nesse sentido, também a característica essencial do Intelecto divino e do seu operar.

7) Justamente nesse sentido deve ser entendida a “assimilação a Deus”, ou seja, o “fazer-se semelhante a Deus na medida em que é possível ao homem”, da qual Platão fala (e à qual muitos autores se referiram em todos os tempos e segundo óticas diversas). Para Platão, imitar a Deus significa alcançar o conhecimento e a capacidade de realizar a unidade-na-multiplicidade, que Deus possui de modo paradigmático.

Essa conquista em conhecimento, em potência e em atividade prática constitui justamente a linha de força mais significativa de todo o pensamento platônico em todas as suas componentes metafísicas, gnosiológicas, ético-religiosas e políticas.

— Em suma, imitar a Deus é conseguir conhecer, como Ele, qual seja a medida de todas as coisas e, como Ele, atuá-la praticamente em todas as coisas.

8) A grandeza da concepção do homem em Platão reside no de­ lineamento da natureza humana em duas dimensões, material e espiri­tual. Mas, nesse particular, ele defronta-se com sérias aporias, na me­dida em que contrapõe num dualismo levado ao extremo, a alma e o corpo (ao passo que não contrapõe a Idéia à coisa; a alma é prisioneira do corpo, enquanto a Idéia, longe de ser prisioneira da coisa da qual é Idéia, é igualmente sua causa, razão e fundamento), e vê no corpo um mal e como que uma pura crisálida do homem; essa concepção conduz a um excesso de rigorismo que atinge, algumas vezes, o paroxismo.

Além disso, embora tenha descoberto que a vida é sagrada e não pode de modo algum ser suprimida, e o tenha proclamado, ainda que em nível intuitivo, no Fédon, pois que ela é posse dos deuses e não nossa, Platão, na República, derroga essa afirmação, proclamando a necessidade de suprimir os mal formados e os doentes crônicos e in­curáveis. Essa afirmação é tanto mais desconcertante quanto Platão não se cansou de dizer-nos que o homem é a sua alma e que os males do corpo não atingem a alma. Mas o caráter absoluto da vida humana só é adequadamente fundamentado se ela for vinculada diretamente ao Absoluto e feita depender Dele: essa afirmação, no entanto, não ocor­reu a nenhum grego por razões que ainda teremos ocasião de expor.

9) Outra notável conquista de Platão reside na extraordinária força de revelação que ele soube dar à Beleza: com efeito, o Belo, para ele, é revelador da Verdade de modo excelente, porque é uma “imagem clara” do Inteligível (do Belo em si e, portanto, do Bem, ou seja, do Princípio de todas as coisas).

Mas, para entender bem Platão nesse ponto é necessário recordar que, para ele (e assim será também para os neoplatônicos) não é a arte a via de acesso para a fruição do Belo, mas o Eros (Eros em sentido helénico) e, portanto, a Erótica com sua escala ascendente (o “amor platônico” para usar uma expressão que se tornou emblemática). Por conseguinte, não é a arte, mas a erótica (o “amor platônico”) que implica uma experiência cognoscitiva, fundada sobre a dimensão do espírito humano que conduz ao Absoluto através da Beleza.

Mas há um outro ponto fundamental que deve ser bem entendido, se desejarmos compreender Platão ao tratar essa temática. O Belo é a única das Idéias transcendentes acessível por meio dos sentidos, mas não de todos e sim somente através da visão; não, por exemplo, do ouvido que, no entanto, é também revelador do belo como no caso da música (com todas as conseqüências que daí derivam). A respeito desse ponto, Platão é uma expressão sem dúvida paradigmática da civilização helénica, em cujo âmbito o “ver” teve um nítido e estru­tural predomínio hierárquico sobre o “ouvir”, ao qual cabe o predo­mínio em outras culturas, como já antes explicamos.

Esse fato nos faz compreender bem a importância extraordinária que a forma e afigura adquiriram para o grego (e, portanto, a idea e o eidos que significam justamente forma e figura, e que em Platão alcançam a extraordinária função metafísica que conhecemos). Em particular, o Bem é o Uno e a Medida suprema para o nosso filósofo; e o Belo (assim como o Bem) explica-se por meio de números e medida, ou seja, como unidade-na-multiplicidade; e é justamente isso que “vemos” no belo sensível: o desdobrar-se da unidade na multipli­cidade, segundo a ordem e a harmonia que se manifestam em vários níveis e de diversas maneiras.

Em suma, o Belo (primeiro sensível, depois inteligível) é revelador do Bem porque é revelador, no mais alto nível, do Uno e do seu vário e múltiplo desdobrar-se.

10) Os pontos que acabamos de enumerar são os frutos mais significativos daquela que Platão denominou a sua “segunda navegação”, sobre a qual nos demoramos longamente a seu tempo e que, com metáfora não menos vigorosa, chamou também “conversão” da alma e “libertação das cadeias”, como vimos.

Em conclusão, podemos afirmar que a “segunda navegação” pla­tônica constitui uma conquista que assinala em certo sentido, como observamos no início, o estágio mais importante na história da me­tafísica. Com efeito, todo o pensamento ocidental será condicionado, de modo decisivo, justamente por essa distinção“ seja na medida em que a aceitar (como é óbvio), seja na medida em que não a aceitar; com efeito, nesse último caso deverá justificar polemicamente a não-aceitação de tal distinção e permanecerá assim dialeticamente condicionado por essa negação.

E depois da “segunda navegação” platônica (e somente depois dela) que se pode falar de corpóreo e incorpóreo, sensível e supra-sensível, empírico e meta-empírico, físico e suprafísico. E é so­mente à luz dessas categorias que os físicos anteriores podem ser ditos materialistas, e a natureza e o cosmos físico não se consideram mais como sendo a totalidade das coisas que são, mas somente a totalidade das coisas que aparecem. A filosofia conquistou o mundo inteligível, a esfera das realidades que não são sensíveis, mas somen­te pensáveis. Contra todos os predecessores e contra muitos contem­porâneos, Platão não se cansou, ao longo de toda a vida, de repisar essa sua descoberta fundamental, verdadeiramente revolucionária: há bem mais coisas de quanto não conheça a vossa filosofia, limitada à dimensão do físico!

Essa justamente, segundo nos parece, é a “conquista definitiva” que Platão transmitiu aos pósteros.

Pela primeira vez, à pergunta “por que existe o ser e não, antes, o nada?” o Ocidente soube responder com Platão, e justamente em função da sua “segunda navegação”: porque o ser é um bem e, em geral, as coisas existem porque são algo positivo, porque são como é bem que sejam, no sentido já antes explicado.

O positivo, a ordem, o Bem são o fundo do ser.

Filosofia - Filosofia Clássica
Meditação - Mindfulness, Atenção primária
4/11/2022 2:53:07 PM | Por Danny Penman, Mark Williams
Despertando a atenção plena

Imagine-se no topo de uma montanha, contemplando lá do alto a pai­sagem urbana e cinzenta sob a chuva. A cidade parece fria e inóspita. Os prédios são velhos e desgastados. As avenidas estão engarrafadas e as pessoas caminham infelizes e mal-humoradas. Então algo milagroso acontece: as nuvens se dissipam e o sol começa a brilhar. Num instante, a paisagem muda. As janelas dos prédios ficam douradas. O concreto cinza muda para um bronze lustroso. As ruas parecem reluzentes e limpas. Um arco-íris surge. O rio lodoso se transforma numa serpente exótica que corta as ruas. Por um momento, tudo fica em suspenso: sua respiração, seu coração, sua mente, os pássaros no céu, o tráfego nas ruas, o próprio tempo. Tudo parece pausar, absorver a transformação.

Essas mudanças de perspectiva têm um efeito dramático - não apenas no que você vê, mas também no que pensa e sente e na maneira como se relaciona com o mundo. Elas podem alterar sua visão da vida de forma radical num piscar de olhos. Mas o que é notável nessa situação é que, de fato, pouca coisa muda: a cena permanece exatamente a mesma, mas quando o sol aparece você vê o mundo sob uma luz diferente. Só isso.

Observar sua vida sob uma luz diferente também pode transformar seus sentimentos. Lembre-se de uma época em que você estava se pre­parando para as férias. Havia coisas de mais por fazer e tempo de menos para dar conta de tudo. Você chegou tarde em casa depois de passar o dia tentando deixar o trabalho em ordem antes de sair para seus dias de folga. Você se sentia como um hamster preso numa roda que não para­va de girar. Enquanto arrumava as malas, estava tão cansado que teve dificuldades de selecionar o que levar. Não conseguiu dormir direito porque sua mente continuava revivendo as atividades daquele dia. Na manhã seguinte, você acordou, pôs a bagagem no carro, trancou a casa e partiu... E acabou.

Pouco depois você estava deitado à beira da praia, relaxando e con­versando com os amigos. O trabalho de repente ficou a milhares de qui­lômetros de distância e você mal conseguia se lembrar dos problemas relacionados a ele. Você se sentia revigorado porque sua vida simples­mente mudara de marcha. Sua rotina estressante continuava existindo, é claro, mas você agora a estava vendo de um ponto de vista diferente.

O tempo também pode alterar profundamente sua perspectiva. Pense na última vez que você teve uma discussão com um colega ou um estranho - talvez um atendente de telemarketing. Você ficou uma fera. Passou horas pensando em todas as coisas inteligentes que pode­ria ou deveria ter dito para derrubar seu oponente. Os efeitos da dis­cussão arruinaram seu dia. Porém, poucas semanas depois, o episódio já não o afeta mais. Na verdade, você nem se lembra dele. O evento continua tendo ocorrido, mas você pensa nele de um ponto diferente no tempo.

Mudar sua perspectiva pode transformar sua experiência de vida, como mostram os exemplos. Mas eles também evidenciam um proble­ma fundamental: todos ocorreram porque algo fora de você havia mu­dado - o sol surgiu, você saiu de férias, o tempo passou. Acontece que, se você depender somente da mudança de circunstâncias externas para se sentir feliz e energizado, terá de esperar muito tempo. E enquanto você espera o sol aparecer ou as férias chegarem, sua vida passa despercebida.

Mas as coisas não precisam ser assim.

É fácil ficar preso num ciclo de sofrimento e aflição quando você tenta eliminar seus sentimentos ou se  emaranha num excesso de análises. Os sentimentos negativos persistem quando o modo Atuante da mente se oferece para ajudar, mas em vez disso acaba aumentando as dificuldades que você estava tentando superar.

Mas existe uma alternativa. Nossa mente tem outra maneira de se relacionar com o mundo: o modo Existente. Assemelha-se a uma mu­dança de perspectiva, embora vá bem além disso. Ela nos permite ver como a mente tende a distorcer a “realidade” e nos ajuda a eliminar o hábito de pensar, analisar e julgar demais. Com ela, podemos experi­mentar o mundo de forma direta, vendo qualquer dificuldade de um novo ângulo e enfrentando os obstáculos de maneira bem diferente. Por causa dela, somos capazes de mudar nossa paisagem interna (ou paisa­gem mental, se preferir) independentemente do que estiver ocorrendo a nossa volta. Deixamos de depender das circunstâncias externas para encontrar a felicidade, o contentamento e o equilíbrio. Voltamos a ter o controle de nossa própria vida.

Se o modo Atuante é uma armadilha, o modo Existente é a liberdade.

Ao longo das eras, as pessoas aprenderam a cultivar essa forma de ser, e qualquer um de nós é capaz de fazer o mesmo. A meditação da atenção plena é a porta pela qual podemos acessar o modo Existente. E, com um pouco de prática, poderemos abrir essa porta sempre que precisarmos.

A atenção plena surge espontaneamente do modo Existente quando aprendemos a prestar atenção deliberada, no momento presente e sem julgamento, nas coisas como de fato são.

Na atenção plena, começamos a ver o mundo como ele é, não como esperamos que seja, como queremos que seja ou como tememos que se torne.

Essas idéias podem soar um pouco nebulosas. Pela própria natureza, elas precisam ser experimentadas para serem compreendidas da manei­ra correta. Assim, para facilitar o entendimento, vou explicar a seguir ponto a ponto as diferenças entre os modos Atuante e Existente. Embora algumas das definições talvez não fiquem muito claras no início, os bene­fícios da prática da atenção plena são inquestionáveis. Na verdade, é até possível verificar os benefícios de longo prazo se enraizando no cérebro usando algumas das tecnologias de imagens mais avançadas do mundo.

Ao ler as páginas seguintes, é importante que você tenha em mente que o modo Atuante não é um inimigo a ser derrotado. Com frequência, é até um aliado. Ele só se torna um “problema” quando se oferece para uma tarefa que é incapaz de realizar, como “solucionar” uma emoção preocupante. Quando isso acontece, vale a pena mudar a marcha para o modo Existente.

É exatamente isto que a atenção plena proporciona: a capacidade de mudar de marcha quando precisamos, em vez de ficar presos sempre na mesma.

As sete características dos modos atuante e existente

1. Piloto automático X escolha consciente

O modo Atuante é muito eficiente em automatizar nossa vida por meio dos hábitos, mas esta é uma das características que menos perce­bemos. Sem a capacidade da mente de aprender com a repetição, ainda estaríamos tentando lembrar como amarrar o sapato - algo que hoje fazemos automaticamente. O lado ruim disso é que, quando cedemos demais ao piloto automático, podemos acabar pensando, trabalhando, comendo, caminhando ou dirigindo sem uma consciência clara do que estamos fazendo. O maior perigo é que grande parte da nossa vida passe assim, sem que de fato estejamos vivendo.

A atenção plena nos traz de volta à consciência: um local de escolha e intenção.

O modo Existente - ou “atento” - nos permite voltar a ter total consciência de nossa vida. Proporciona a capacidade de nos conec­tarmos com nós mesmos de tempos em tempos para que possamos fazer escolhas intencionais. A medi­tação da atenção plena nos leva a gastar menos tempo para realizar as coisas. É simples: quando se torna mais atento, suas intenções e ações ficam alinhadas, e você deixa de ser desviado toda hora do rumo pelo piloto automático. Aprende a parar de perder tempo à toa com sua velha maneira de pensar e agir, que se provou inútil. Além disso, diminui sua tendência a lutar demais por objetivos dos quais é melhor abrir mão. Você se torna plenamente vivo e consciente de novo.


2. Analisar X sentir

O modo Atuante precisa pensar. Ele analisa, recorda, planeja e compara. Esse é seu papel, e quase todo mundo se acha bom nisso. Passamos grande parte do tempo perdidos, desligados, sem notar o que se passa a nossa volta. A correria do mundo nos absorve de tal forma que destrói nossa percepção do agora, forçando-nos a viver mais no mundo dos nossos pensamentos do que no mundo real. E, como vimos no capítulo anterior, os pensamentos podem facilmente ser desviados para uma direção peri­gosa. Isso nem sempre ocorre, mas é um risco constante.

A atenção plena é uma forma diferente de experimentar o mundo. Não é como pegar um caminho novo; estar plenamente atento é entrar em contato com seus sentidos, de modo que possa ver, ouvir, tocar, cheirar e degustar as coisas que você já conhece como se fosse a primeira vez. Você se torna curioso de novo. Esse contato sensorial direto com o mundo pode parecer trivial de início. No entanto, quando você começa a sentir os momentos da vida comum, descobre algo fora do comum. Você cultiva uma sensação intuitiva do que está ocorrendo a sua volta, o que aumenta sua capacidade de observar as pessoas e a vida de uma nova maneira. Eis a essência da atenção plena: acordar para o que está acontecendo no mundo e dentro de você, momento a momento.

3. Lutar X aceitar

O modo Atuante envolve julgar e comparar o mundo “real” com o mundo que idealizamos em nossos sonhos e pensamentos. Ele foca a atenção na diferença entre os dois, o que acaba gerando uma insatisfa­ção permanente.

O modo Existente, por outro lado, nos convida a suspender o jul­gamento temporariamente. Significa ficar de lado por um momento e observar o mundo e a vida se desenrolando, permitindo que as coisas sejam como são. Ao analisar um problema ou uma situação sem precon­ceitos, não somos mais forçados a chegar a uma conclusão preconcebi­da. Desse modo, não precisamos reduzir nossa criatividade.

Aceitação não é o mesmo que resignação. Aceitar é reconhecer que a experiência existe e, em vez de deixar que ela controle sua vida, observá-la compassivamente, sem julgá-la, criticá-la ou negá-la. A aceitação pro­movida pela atenção plena permite que você impeça que uma espiral ne­gativa comece, ou, se já começou, reduza seu ímpeto. Ela nos concede a liberdade de escolher e, no processo, nos liberta da infelicidade, do medo, da ansiedade e da exaustão. Com isso, adquirimos um controle maior sobre a nossa vida. O mais importante é que nos permite lidar com os problemas da forma mais eficaz possível e no momento mais apropriado.

4. Ver os pensamentos como reais X tratá-los como eventos mentais

No modo Atuante, a mente usa as próprias criações, pensamentos e imagens como matéria-prima. As idéias são a sua moeda e adquirem valor próprio. Você pode começar a confundi-las com a realidade. Na  maioria das vezes, isso faz sentido. Se você saiu para visitar um amigo, precisa ter em mente seu destino. A mente planejadora, ativa, racional levará você até lá. Não faz sentido duvidar da verdade de seu pensa­mento: Vou mesmo visitar meu amigo? Em tais situações, é necessário considerar seus pensamentos como verdadeiros.

Mas isso se torna um problema quando você está estressado. Você poderia dizer a si mesmo: Vou enlouquecer se isso continuar. Eu deve­ria fazer melhor do que isso. Você pode considerar esses pensamentos verdadeiros também. Seu astral despenca quando sua mente reage de forma rude: Sou fraco, não presto, não sirvo para nada. Assim, você se esforça cada vez mais, ignorando as mensagens de seu corpo castigado e o conselho de seus amigos. Os pensamentos deixaram de ser seus servos e se tornaram seu senhor - um senhor rígido e implacável.

A atenção plena nos ensina que pensamentos não passam de pensa­mentos. São eventos criados pela mente. Costumam ser valiosos, mas não são “você” ou “a realidade”. São uma narração interna sobre você e seu mundo. A simples compreensão desse fato o liberta do excesso de preocupação, elucubração e ruminação, o que lhe permite enxergar um caminho claro pela vida de novo.

5. Evitar X aproximar-se

O modo Atuante resolve problemas não apenas mantendo na lem­brança seus objetivos e destinos, mas também lembrando “antiobjetivos” e lugares aonde você não quer ir. Isso faz sentido quando, por exemplo, você vai de carro do ponto A ao ponto B, porque convém saber quais partes da cidade você deve evitar. No entanto, esse pro­cesso se torna um problema quando se trata de estados mentais dos quais você gostaria de fugir. Por exemplo, se tentar resolver o proble­ma do cansaço e do estresse, você manterá na mente os “lugares que não deseja visitar”, como a exaustão, o esgotamento e o colapso. Então, além de se sentir cansado e estressado, você começará a invocar novos medos, aumentando sua ansiedade e gerando ainda mais estresse. O modo Atuante, usado no contexto errado, conduz você passo a passo ao esgotamento e à exaustão.

O modo Existente, por outro lado, convida você a se “aproximar” das coisas que sente vontade de evitar. Instiga-o a se interessar por seus estados mentais mais difíceis. A atenção plena não diz “não se preocupe” ou “não fique triste”: ela reconhece o medo, a tristeza, a fadiga e a exaustão e o encoraja a se voltar para aquelas emoções que ameaçam engoli-lo. Essa abordagem compassiva dissipa pouco a pouco o poder dos sentimentos negativos.

6. Viagem no tempo mental X permanecer no momento presente

Sua memória e sua capacidade de planejar o futuro são cruciais para o bom andamento da vida diária, mas elas sofrem distorções por causa de seu estado de espírito. Quando você está sob estresse, tende a se lembrar somente das coisas ruins, traumáticas, e a ter dificuldade de se lembrar das coisas boas, prazerosas. Algo semelhante ocorre quan­do você pensa no futuro: quando se sente infeliz, acha quase impossível olhar para a frente com otimismo. No momento em que esses sentimentos percorreram sua mente consciente, você deixa de perceber que não passam de memórias do passado ou de planos para o futuro. Você se perde na viagem no tempo mental.

Nós revivemos eventos passados e voltamos a sentir a dor; nós antevemos desastres futuros e sentimos seu impacto com antecedência.

A meditação treina a mente para que você conscientemente “veja” seus pensamentos quando ocorrerem, para que possa viver sua vida conforme ela se desenrola no presente. Isso não significa que você fica aprisionado no agora. Ainda consegue se lembrar do passado e planejar o futuro, mas o modo Existente permite que você os veja como são: a memória como memória e o planejamento como planejamento. Ter essa clareza evita que você seja escravo da viagem no tempo mental. Você consegue impedir a dor de reviver o passado e de se preocupar com o futuro.

7. Atividades exaustivas X tarefas revigorantes

Quando você está preso no modo Atuante, não é apenas o piloto au­tomático que o impele: você tende a se envolver em projetos pessoais e  profissionais importantes, e em tarefas exaustivas como cuidar da casa, dos filhos, dos pais idosos. Essas atividades costumam ser válidas, mas por demandarem tanto tempo é fácil concentrar-se nelas e excluir todo o resto, inclusive sua saúde e seu bem-estar. De início, você pode tentar convencer-se de que tudo isso é temporário e de que você está disposto a abrir mão dos hobbies e passatempos que nutrem sua alma. Mas desistir dessas coisas pode esgotar seus recursos internos aos poucos e levá-lo a se sentir vazio, apático e exausto.

O modo Existente restaura o equilíbrio, ajudando-o a identificar as atividades que o revigoram e aquelas que o esgotam. Ele o faz perceber que necessita de tempo para renovar sua alma e proporciona o espaço e a coragem para tal. Também o ensina a lidar com as inevitáveis tarefas do dia a dia que drenam a energia de sua vida.

Mudança consciente de marcha

A meditação da atenção plena ensina a sentir as sete dimensões de­ lineadas anteriormente e, com isso, ajuda a reconhecer em que modo sua mente está operando. Ela age como um alarme suave que avisa, por exemplo, quando você está analisando demais uma situação e lembra que existe uma alternativa: você ainda tem opções, por mais infeliz ou estressado que esteja. Ou seja, se sente que está emaranhado no excesso de análises e críticas, a atenção plena pode torná-lo mais aberto e fazê-lo aceitar a dificuldade com receptividade e curiosidade.

Agora podemos lhe revelar um segredo: se você mudar ao longo de qualquer uma dessas dimensões, as outras mudarão também. Por exem­plo, durante o programa de atenção plena, você pode praticar a recepti­vidade e se tornará menos crítico. Você pode praticar a permanência no presente e passará a interpretar seus pensamentos de forma menos literal. Se olhar para si mesmo com generosidade, também terá mais empatia pelos outros. E, ao fazer todas essas coisas, uma sensação de entusiasmo, energia e equilíbrio surgirá como uma fonte de água límpida há muito esquecida.

Embora as práticas ocupem apenas vinte a trinta minutos de “tempo de relógio” a cada dia, os resultados podem ter um impacto em toda a sua vida. Você logo perceberá que, embora certo grau de comparação e julgamento seja necessário, nossa civilização dá valor excessivo a essas coisas. Muitas escolhas que fazemos no dia a dia são desnecessárias. Elas são impelidas por seu fluxo de pensamentos. Você não precisa se comparar aos outros. Não precisa comparar seu pa­drão de vida atual com uma visão fictícia de futuro ou uma lembrança romantizada do passado. Não precisa ficar acordado à noite avaliando o impacto que um comentário casual, feito durante uma reunião de tra­balho, causará em seu emprego. Apenas aceite a vida como ela é, e você se sentirá mais realizado e livre de preocupações. E quando precisar to­mar alguma atitude, a decisão mais sábia provavelmente surgirá em sua mente no momento em que você não estiver pensando no assunto.

Precisamos enfatizar outra vez que aceitação atenta não é resignação. Não é aceitar o inaceitável. Nem é uma desculpa para ser preguiçoso e não fazer nada com sua vida, seu tempo, seus talentos e seus dons inatos. (O trabalho significativo, seja remunerado ou não, é uma forma segura de promover a felicidade.) A atenção plena é uma “recuperação dos sentidos”, uma consciência que começa a vir à tona espontaneamen­te quando você reserva tempo para praticá-la. Ela permite que você ex­perimente o mundo pelos sentidos - com calma e sem espírito crítico. Proporciona uma grande sensação de perspectiva, que o ajuda a sentir o que é importante ou não.

No longo prazo, a atenção plena o encoraja a tratar a si mesmo e aos outros com compaixão. Isso o liberta da dor e da preocupação, e em seu lugar surge uma sensação de felicidade que se propaga à vida diária. Não é o tipo de felicidade que se dissipa à medida que você se torna imune às alegrias. Pelo contrário, é um estado permanente de contentamento que invade sua rotina.

Um dos aspectos mais espantosos da meditação da atenção plena é que você consegue ver seus efeitos positivos alterando o funcionamen­to cerebral. Avanços científicos recentes nos permitem ver que as áreas do cérebro associadas às emoções positivas - como felicidade, empatia e compaixão - se tornam mais fortes e ativas quando as pessoas meditam. As novas tecnologias de imagem conseguem mapear redes críticas do cérebro sendo ativadas, quase como se estivessem brilhando e vibrando com uma vida renovada. Com essa reenergização promovida pela me­ditação, a infelicidade, a ansiedade e o estresse começam a se dissolver, deixando uma sensação profunda de revigoramento. Mas você não pre­cisa passar anos meditando para constatar esses benefícios: cada minuto conta.

Pesquisas mostraram que já é possível sentir seus efeitos se você se dedicar à prática diária por um período de oito semanas.

Durante muitos anos acreditou-se que todos temos uma espécie de “termostato emocional”, que determina nosso grau de felicidade na vida. Presumivelmente, algumas pessoas teriam um temperamento feliz, en­quanto outras teriam um temperamento infeliz. Embora grandes acon­tecimentos, como a morte de um ente querido ou ganhar na loteria, possam alterar de forma significativa o nosso estado de humor, às vezes por semanas ou meses a fio, sempre se supôs que havia um ponto de referência ao qual retornaríamos. Esse ponto de referência emocional estaria codificado em nossos genes ou seria fixado na infância. Em ou­tras palavras: algumas pessoas nasciam felizes e outras não.

Anos atrás, porém, esse pressuposto foi abalado por Richard David­son, da Universidade de Wisconsin, e Jon Kabat-Zinn, da Faculdade de Medicina da Universidade de Massachusetts. Eles descobriram que a prática da atenção plena permitia às pessoas escaparem da atração gravitacional de seu ponto de referência emocional. O trabalho deles nos ofereceu a possibilidade extraordinária de alterar permanentemente nosso nível de felicidade.

Essa descoberta tem suas raízes no trabalho do Dr. Davidson sobre a indexação (ou mensuração) da felicidade de uma pessoa por meio do exame da atividade elétrica em diferentes partes do cérebro, usando sensores no couro cabeludo ou por meio de ressonância magnética. Ele descobriu que quando as pessoas estão emocionalmente perturba­das - zangadas, ansiosas ou deprimidas -, o córtex pré-frontal direito se ilumina mais do que a parte equivalente do cérebro situada à esquerda. Quando as pessoas estão num astral positivo - contentes, entusiasma­das, radiantes -, o córtex pré-frontal esquerdo se ilumina mais do que o direito. Essa pesquisa levou o Dr. Davidson a conceber um “índice de humor” baseado na relação entre a atividade elétrica nos cortices pré-frontais esquerdo e direito. Essa relação consegue prever seu estado de ânimo diário com grande precisão. É como dar uma espiada no termos­tato emocional - se a relação tende para a esquerda, é provável que você esteja feliz, contente e energizado. Esse é o sistema da “abordagem”. Se a relação tende para a direita, a probabilidade é de que você esteja mais sombrio, desanimado e sem energia. É o sistema da “fuga”.

Davidson e Kabat-Zinn decidiram estender o trabalho e examinar os efeitos da atenção plena nos termostatos emocionais de um grupo de trabalhadores de biotecnologia. Os voluntários praticaram a meditação da atenção plena por oito semanas. Então algo incrível aconteceu: eles não apenas ficaram menos ansiosos, mais contentes, mais energizados e mais envolvidos com seu trabalho, como também o índice de ativação do cérebro deles passou a tender para a esquerda. Surpreendentemente, o sistema da abordagem continuou operando mesmo quando eles fo­ram expostos a músicas melancólicas e a lembranças do passado que os deixavam tristes. A tristeza gerada nesses momentos deixou de ser vista como um inimigo e passou a ser encarada como algo amigável, passível de ser administrado. Ficou claro não só que a prática da atenção plena aumenta os níveis de felicidade (e reduz o estresse), como também que essa mudança se reflete na forma como o cérebro funciona. Isso sugere que a atenção plena tem efeitos positivos que criam raízes profundas no cérebro.

Outro benefício inesperado foi que o sistema imunológico dos vo­luntários se fortaleceu. Os pesquisadores ministraram uma injeção com o vírus da gripe nos participantes e depois mediram a concentração de anticorpos específicos que haviam sido produzidos por cada um. Aque­les cujo cérebro mostrava maior tendência ao sistema da abordagem tiveram o sistema de defesa mais estimulado.

Mas um trabalho ainda mais interessante estava por vir. A Dra. Sa­rah Lazar, do Hospital Geral de Massachusetts, descobriu que quando as pessoas continuam meditando por vários anos, essas mudanças po­sitivas alteram a estrutura física do cérebro. O termostato emocional é reiniciado - para melhor. Isso significa que, com o tempo, você terá mais tendência a se sentir feliz em vez de triste, despreocupado em vez de agressivo, energizado em vez de cansado e apático. Essa mudança nos circuitos cerebrais é mais pronunciada numa parte da superfície do cérebro conhecida como insula, que controla muitas das características centrais à nossa humanidade.

Numerosos testes clínicos mostram que esses efeitos positivos sobre o cérebro se traduzem em benefícios para a felicidade, o bem-estar e a saúde. Veja alguns exemplos a seguir.

Atenção plena e Reisiliência

Descobriu-se que a atenção plena aumenta a resiliência - ou seja, a capacidade de resistir aos golpes e reveses da vida - num grau conside­rável. Essa capacidade de resistência varia muito de pessoa para pessoa. Algumas se saem bem em desafios estressantes que intimidariam mui­tas outras, como bater altas metas de desempenho no trabalho, acampar no Polo Sul ou cuidar de três filhos, da casa e do emprego.

O que faz com que pessoas “resistentes” sejam capazes de enfrentar as adversidades enquanto as outras se desesperam diante delas? A Dra. Su­zanne Kobasa, da City University de Nova York, identificou três traços psicológicos envolvidos nesse processo: controle, compromisso e desa­fio. Outro psicólogo eminente. Dr. Aaron Antonovsky, também tentou definir os principais aspectos psicológicos que permitem que algumas pessoas suportem uma tensão extrema, enquanto outras não. Ele con­centrou seus estudos em sobreviventes do Holocausto e encontrou três traços que se combinam para gerar uma sensação de coerência: inteligibilidade, maneabilidade e significabilidade. Assim, as pessoas “fortes” acreditam que os acontecimentos têm um significado, que são capazes de manejar sua vida e que a situação é compreensível, ainda que pareça caótica e descontrolada.

De certa forma, todos os traços identificados por Kobasa e Anto­novsky definem nosso grau de resiliência. Em termos gerais, quanto mais forte for nossa tendência a essas características, maior será nossa capacidade de enfrentar as provações e adversidades da vida.

A equipe de Jon Kabat-Zinn, da Faculdade de Medicina da Univer­sidade de Massachusetts, decidiu testar se a meditação conseguia me­lhorar essa tendência e, portanto, aumentar a capacidade de resiliência das pessoas. Os resultados foram claros. Em geral, os participantes não apenas se sentiram mais felizes, mais energizados e menos estressa­dos, como também ganharam mais controle sobre sua vida. Descobri­ram que ela fazia sentido e que os desafios podiam ser vistos como oportunidades, não como ameaças. Outros estudos confirmaram essas descobertas.

Mas talvez a descoberta mais intrigante sobre o assunto seja que esses traços de personalidade não são imutáveis. Eles podem ser mudados para melhor em apenas oito semanas de treinamento em atenção ple­na. Essas transformações não devem ser subestimadas, pois têm uma enorme importância para nossa vida diária. A empatia, a compaixão e a serenidade são vitais para o nosso bem-estar, mas certo grau de força e resistência também é necessário. E a prática da atenção plena pode ter um papel crucial nesses aspectos da vida.

Os estudos realizados em laboratórios e clínicas do mundo inteiro es­tão mudando a maneira como os cientistas pensam sobre a mente e vêm aumentando a confiança das pessoas nos benefícios da atenção plena. Muitos praticantes contam que a meditação aumenta a alegria diária. Isso significa que mesmo as coisas mais simples podem voltar a ser cativantes.

Psicologia - Psicologia positiva
Ética - Política, 
4/2/2022 2:45:28 PM | Por Giovanni Reale
A importância e significação da componente política do platonismo

Somente no nosso século compreendeu-se, em toda a sua rele­vância e em todo o seu alcance, a componente política do platonismo. Em primeiro lugar, foi reivindicada a autenticidade da Carta VII, na qual Platão diz expressamente, traçando a própria autobiografia, que a política foi a paixão dominante da sua vida. Na sua biografia de Platão, ora clássica, Wilamowitz-Moellendorff, explorando o conteú­do da Carta VII, verificou que Platão, em todo o arco da sua vida, alimentou essa paixão política. Finalmente, Jaeger deu o passo deci­sivo: procurou demonstrar (e o conseguiu, embora incorrendo em excessos) que o problema político não só constitui o interesse central do homem Platão, mas ainda a substância da própria filosofia platô­nica. Outros estudiosos aderiram a essa tese.

Sócrates nunca participara ativamente da vida política: não so­mente não sentia necessidade de ocupar-se com ela, mas a conside­rava algo oposto à sua natureza. Já Platão, seja por nobreza de nas­cimento, seja por tradição familiar, seja por vocação íntima e espiritual, sentiu-se desde jovem, poderosamente atraído para a vida política. Eis as afirmações explícitas da Carta VII:

Desde jovem [...] passei por uma experiência comum a muitos e me decidi firmemente a uma coisa: apenas em condição de dispor da minha vontade, logo dedicar-me à vida política1.

Mas logo o reteve na execução desse propósito a profunda cor­rupção dos homens de governo, dos seus costumes e das próprias leis, que descobriu serem injustas não só em Atenas, mas também fora de Atenas. Eis então as suas conclusões:

Observava esses fatos (referia-se a uma série de episódios de corrupção política que culminaram na condenação e morte de Sócrates), observava tam­bém os homens que agem na cena política, como também as leis e os cos­tumes. E quanto mais avançava nas minhas observações e quanto mais eu mesmo avançava em idade, tanto se me tornava mais clara a imensa dificul­dade para bem administrar a cidade. Era impossível a ação política sem a ajuda de pessoas amigas e de fiéis colaboradores. E não era coisa fácil en­contrar esses amigos e colaboradores entre os que nos eram próximos, pois a nossa cidade não era mais governada segundo os usos e costumes dos antepassados, e era difícil e até impossível conseguir novos colaboradores. Acrescente-se que legislações, costumes e tudo o mais se dissolvia com in­crível rapidez e de modo espantoso. Desta sorte, não obstante meu primeiro impulso no sentido de participar da vida política, considerando tudo o que acontecia e vendo que tudo e em todas as partes e de todas as maneiras era arrastado num incontrolável processo de corrupção, senti uma espécie de vertigem, mas não pensei em desviar meu olhar dos acontecimentos, na es­perança de que um dia seu curso se tornasse mais favorável (e não só cada um dos acontecimentos, mas, sobretudo, melhorasse o espírito das constitui­ções). No entanto, esperava sempre a melhor ocasião para agir. Acabei, as­sim, por abraçar num único olhar todas as cidades, afirmando que todas, sem exceção, sofrem em razão de maus governos. Em todas as partes, com efeito, as legislações apresentam condições que se podem chamar desesperadas; seriam necessárias reformas excepcionais, ajudadas pela boa fortuna. Em resumo, fui irresistivelmente levado a louvar a reta filosofia e a concluir que somente graças a ela é possível esperar ver um dia justa a política das cidades e justa a vida dos cidadãos. Sim, certamente as desgraças e desven­turas do gênero humano não conhecerão fim a não ser no dia em que ver­dadeiros e puros filósofos tenham acesso ao poder; no dia em que, por algum  dom de Deus, as classes dirigentes nas várias cidades sejam inflamadas pelo verdadeiro amor da sapiência, e sejam formadas por filósofos2.

Tal convicção amadureceu em Platão, como ele mesmo diz logo a seguir, nos anos em que pela primeira vez veio à Itália, ou seja, em torno dos quarenta anos, no momento da composição do Górgias. Esse diálogo é uma manifestação de misticismo e, ao mesmo tempo, manifestação de paixão política e a proclamação de uma nova con­cepção da política. A arte política e o conceito de Estado são redimensionados em função das instâncias do socratismo. Enquanto a velha política e o velho Estado tinham na “retórica” (no sentido clás­sico que já conhecemos) o seu instrumento mais poderoso, a nova e verdadeira política e o novo Estado deverão ter, ao contrário, seu instrumento na filosofia, porque ela representa o único caminho se­guro de acesso aos valores de justiça e de bem, que são o fundamento verdadeiro de toda política autêntica e, portanto, do verdadeiro Es­tado. Assim sendo, Platão não hesita em pôr nos lábios de Sócrates (com quem doravante se identifica) esse desafio:

Eu creio estar entre os poucos atenienses, para não dizer-me o único, que tentam a verdadeira arte política, e o único entre os que agora vivem, que a exercita3.

Diferença entre a concepção platônica e a concepção moderna da política

De tudo o que ressaltamos, fica claro que toda a obra do Platão “filósofo” pretende ser, juntamente, obra de “político” no sentido explicado. Por outra parte, os próprios títulos das obras que vêm depois do Górgias o confirmam: a obra-prima central do pensamento platônico é a República; no meio dos diálogos dialéticos tem lugar o Político; a última vasta obra na qual trabalhou nos anos da velhice são as Leis. Conhecidas são, de resto, as repetidas tentativas que  Platão fez junto aos tiranos de Siracusa Dionísio I e Dionísio II para realizar os ideais políticos que nele vinham amadurecendo. Contem­plar o Verdadeiro e dirigir a Academia não era o bastante para ele; estava profundamente convencido de que o Verdadeiro e o Bem contemplados devessem descer à realidade com o fim de torná-la melhor, devessem tornar-se politicamente efetivos.

No entanto, antes de examinar qual seja a reconstrução da Cida­de, idealizada por Platão, é necessário antepor um esclarecimento sobre a diferença radical entre a concepção platônica da política e a concepção moderna da mesma, com o fim de prevenir toda uma série de equívocos.

Platão está profundamente convencido de que toda forma de política que pretenda ser autêntica deve ter em vista o bem do homem; mas, a partir do momento em que o homem é concebido como sendo a sua alma, enquanto o corpo não é senão seu casulo passageiro e fenomênico, é claro que o verdadeiro bem do homem é o seu bem espiritual.

Está assim assinalada a linha de demarcação que divide a polí­tica verdadeira da falsa: a verdadeira política deve ter em vista o “cuidado da alma” (o cuidado do verdadeiro homem), enquanto a política falsa tem em vista o corpo, o prazer do corpo e tudo o que é relativo à dimensão inautêntica do homem. E já que não existe outro meio para “curar a alma” senão a filosofia, segue-se daqui a identificação de política e filosofia, bem como a identificação (con­siderada paradoxal, mas, no contexto platônico, simplesmente óbvia), de político e filósofo.

De outra parte, não eram somente os pressupostos do sistema platônico que levavam a essas conclusões: o homem grego esteve sempre convencido (ao menos até ao tempo de Platão e Aristóteles) de que o Estado e a lei do Estado constituíssem o paradigma de toda forma de vida, como bem o sabemos; o indivíduo era, substancialmente, o cidadão, e o valor e a virtude do homem eram o valor e a virtude do cidadão: a polis não era o horizonte relativo, mas sim o horizonte absoluto da vida do homem. Por essa razão, se aos ele­mentos acima examinados se acrescenta também esse dado, é fácil compreender como as conclusões platônicas fossem absolutamente inevitáveis.

Ao invés, nossa concepção da política situa-se nos antípodas da política platônica. De há muito o Estado renunciou a ser fonte de todas as normas que regulam a vida do indivíduo porque, de há muito, “indivíduo” e “cidadão” deixaram de identificar-se. Além dis­so, o Estado renunciou há muito à apropriação das esferas da vida interior dos cidadãos que interessavam a Platão acima de tudo, dei­xando à consciência dos indivíduos a livre decisão nesses assuntos. Mais ainda, hoje a economia e a aspiração comum pelo bem-estar condicionam de tal modo radicalmente a práxis e a teoria políticas que elas se limitam freqüentemente a pretender ser justamente aquele sistema de desenvolvimento dos bens e do bem-estar material no qual Platão via a fonte de todo mal. Em suma, somos filhos de Maquiavel e, sob certos aspectos, estamos mais avançados do que Maquiavel; professamos um realismo político que assinala a inversão mais radi­cal daquele idealismo político teorizado por Platão.

Fizemos essas observações no nível da análise estrutural, sem, portanto, enunciar juízos de valor; na medida em que pretendem contribuir para a compreensão histórica da concepção platônica, al­mejam levantar também uma dúvida crítica. É certo que Platão es­tava condicionado em dois sentidos: pelos pressupostos do seu sistema e por determinada visão histórico-social-cultural do Estado; nem uma nem outra podem repetir-se historicamente. Todavia, aci­ma desses condicionamentos, ele apontou para uma verdade que hoje, mais do que nunca, soa como uma advertência: uma política que, ao regular a vida em sociedade dos homens, abdique das di­mensões do espírito e estruture-se exclusivamente segundo as leis da dimensão material do homem, não poderá subsistir; as exigências do espírito, negadas ou reprimidas, cedo ou tarde tornam a impor-se inexoravelmente.

Filosofia - Filosofia Clássica
Meditação - Mindfulness, Atenção primária
3/24/2022 5:41:23 PM | Por Danny Penman, Mark Williams
Pensamentos automáticos e sua influência em nossas emoções

Aparentemente, Lucy era uma representante de vendas bem-suce­dida de uma rede de lojas de roupas. Mas ela estava se sentindo paralisada. Às três da tarde, olhando pela janela do escritório, estres­sada, exausta e totalmente indisposta, ela se perguntava: "Por que não consigo fazer meu trabalho direito? Por que não consigo me concentrar? O que há de errado comigo? Estou tão cansada! Nem consigo pensar direito...". Lucy vinha se punindo com esses pensamentos autocríticos constan­temente. Mais cedo, naquele dia, ela tivera uma conversa longa e ansiosa com a professora do jardim de infância sobre sua filha, Emily, que an­dava chorando quando era deixada na escola. Depois, telefonou para o bombeiro para saber por que não tinha ido consertar a descarga que­brada em sua casa. Agora fitava uma planilha, sentindo-se sem energia e mastigando um muffin de chocolate no lugar do almoço.

As exigências e tensões na vida de Lucy estavam piorando gradual­mente nos últimos meses. O trabalho se tornava cada vez mais estressante e começava a se estender até bem depois do horário do expediente. As noites haviam se tornado insones, os dias, mais sonolentos. Seu cor­po começou a doer. A vida perdeu a alegria. Seguir em frente era uma luta. Ela já havia se sentido assim antes, mas sempre fora uma situação temporária. Jamais imaginara que aquilo poderia se tornar um aspecto permanente de sua vida.

Ela vivia se perguntando: O que aconteceu com a minha vida? Por que me sinto tão exausta? Eu deveria estar feliz. Eu costumava ser feliz. Para onde foi minha alegria?

A vida de Lucy girava em torno de excesso de trabalho, infelicidade, insatisfação e estresse. Ela fora privada de sua energia mental e física e se sentia perdida. Queria voltar a ser feliz e estar em paz consigo mesma, mas não tinha ideia de como chegar lá. Sua frustração não era grave a ponto de justificar uma ida ao médico, mas era suficiente para solapar o seu prazer de viver. Ela não vivia, apenas sobrevivia.

A história de Lucy não é um caso isolado. Ela é uma das milhões de pessoas que não estão deprimidas nem ansiosas na acepção médica - mas também não são felizes de verdade. O humor de todos nós passa por altos e baixos. Às vezes nosso estado de espírito muda de uma hora para outra, sem nem sabermos por quê: num momento estamos felizes, contentes e despreocupados, então algo sutil acontece e começamos a ficar estressados. Pensamos em nossas dificuldades, em todas as coisas que precisamos fazer, na falta de tempo para resolver tudo. O ritmo das exigências é cada vez mais implacável. Nesse estado, ficamos cansados o tempo todo, de forma que nem uma boa noite de sono nos revigora. E nos perguntamos: Como isso foi acontecer? Por que ficamos assim? Talvez não tenha havido nenhuma grande mudança em nossa vida: não perdemos um amigo, não nos endividamos de forma descontrolada. Nada mudou, mas de alguma forma a alegria desapareceu, sendo subs­tituída por uma espécie de aflição generalizada.

Na maior parte do tempo, as pessoas conseguem escapar dessa espiral descendente. Esses períodos difíceis costumam passar. No entanto, às vezes podem perdurar e nos levar para o fundo do poço. No caso de Lucy, a tristeza e a frustração duraram meses, sem qualquer razão apa­rente. Nas situações mais graves, a pessoa pode ser acometida por uma crise séria de ansiedade ou de depressão clínica.

Embora períodos persistentes de aflição e exaustão geralmente pare­çam surgir do nada, existem processos ocorrendo no fundo da mente que só se tornaram conhecidos na década de 1990. E essa descoberta trouxe a percepção de que podemos nos libertar das preocupações, da infelicidade, da ansiedade, do estresse, da exaustão e até da depressão.

Se você perguntasse a Lucy como estava se sentindo naquela tarde, ela teria dito que estava “exausta” ou “tensa”. À primeira vista, essas sen­sações parecem afirmações factuais, mas se olhasse para dentro de si mesma com mais atenção, Lucy teria percebido que não havia algo es­pecífico que pudesse ser rotulado de “exaustão” ou “tensão”. Ambas as emoções eram, na verdade, feixes de pensamentos, sentimentos, sensa­ções físicas e impulsos (como o desejo de gritar ou de sair correndo da sala). As emoções são assim: uma “cor de fundo” criada quando a mente funde pensamentos, sentimentos, impulsos e sensações físicas para evo­car um tema norteador ou estado mental geral. Todos os elementos que formam as emoções interagem entre si e podem intensificar o estado de humor geral. É uma dança intricada, cheia de ligações sutis que só agora começamos a entender.

Tomemos os pensamentos como exemplo. Algumas décadas atrás, acreditava-se que os pensamentos conseguiam mudar nosso estado de espírito e nossas emoções, mas a partir dos anos 1980 descobriu-se que o contrário também pode acontecer: nosso estado de espírito pode mudar nossos pensamentos. Na prática, isso significa que mesmo os momentos passageiros de tristeza podem acabar se autoalimentando para criar pensamentos negativos, definindo a maneira como você vê e interpreta o mundo. Assim como um céu nublado pode fazê-lo se sen­tir melancólico, uma pequena irritação pode trazer à tona lembranças ruins, aprofundando ainda mais seu nervosismo. O mesmo vale para outras emoções: se você se sente estressado, esse estado pode criar ainda mais estresse. Isso também acontece com a ansiedade, o medo, a raiva, e com emoções “positivas” como amor, felicidade, compaixão e empatia.

Mas não são apenas pensamentos e estados de ânimo que se alimen­tam mutuamente e destroem o bem-estar - o corpo também se envolve nesse processo. Isso acontece porque a mente não existe de forma isolada. Ela é uma parte fundamental do corpo, e ambos compartilham informa­ções emocionais entre si o tempo todo. Na verdade, grande parte do que o corpo sente é influenciado pelos pensamentos e pelas emoções, e tudo o que pensamos é influenciado pelo que está ocorrendo no corpo. Pesquisas recentes mostram que nossa perspectiva de vida pode ser alterada por mínimas mudanças corporais: atitudes sutis como fechar a cara, sorrir ou corrigir a postura podem ter um impacto enorme em nosso estado de espírito e em nossos pensamentos.

Para compreender melhor o poder da interação entre o corpo e o es­tado de humor, os psicólogos Fritz Strack, Leonard Martin e Sabine Stepper1 pediram a um grupo de pessoas que assistisse a desenhos ani­mados e depois avaliasse quão engraçados eram. Alguns voluntários tiveram que colocar um lápis entre os lábios, sendo forçados a franzi­dos e fazer uma cara triste. Outros assistiram aos desenhos com o lápis entre os dentes, simulando um sorriso. Os resultados foram impres­sionantes: aqueles forçados a sorrir acharam os desenhos bem mais engraçados do que aqueles obrigados a fechar a cara. Todos sabemos que sorrir demonstra que estamos felizes, mas, convenhamos: é sur­preendente descobrir que o ato de sorrir pode ele próprio torná-lo feliz. Esse é um exemplo perfeito de como são estreitos os vínculos entre a mente e o corpo.

Sorrir também é contagioso. Quando você vê alguém sorrindo, quase inevitavelmente sorri de volta. Pense nisto: o simples ato de sorrir pode deixá-lo contente (ainda que seja um sorriso forçado). E, se você sorrir, os outros sorrirão de volta, o que reforça sua felicidade. É um círculo virtuoso.

Mas também existe um círculo vicioso, que atua na direção oposta. Ao pressentirmos uma ameaça, ficamos tensos, prontos para lutar ou fugir. Essa reação de “luta ou fuga” não é consciente: é controlada por uma das partes mais “primitivas” do cérebro e, por isso, ele pode ser um pouco simplista na maneira de interpretar o perigo. O cérebro não faz distinção entre uma ameaça externa (como um tigre) e uma interna (como uma lembrança incômoda ou uma preocupação futura), tratan­do as duas como um perigo equivalente. Quando uma ameaça é detecta­da - seja real ou imaginária -, o corpo fica tenso e se prepara para entrar em ação. Isso pode se manifestar de várias formas, como rosto franzido, frio na barriga ou tensão nos ombros. A mente lê a reação do corpo e entende que está diante de uma ameaça (lembra como uma cara amar­rada pode fazê-lo se sentir triste?), o que faz o corpo tensionar ainda mais. O círculo vicioso começou.

Na prática, isso significa que, se você está se sentindo um pouco es­tressado ou vulnerável, uma pequena mudança emocional pode acabar arruinando seu dia - ou até mesmo lançá-lo num período prolongado de insatisfação ou preocupação. Essas mudanças costumam surgir do nada, deixando-o sem energia e se perguntando por que está tão infeliz.

Oliver Burkeman, colunista do jornal The Guardian, descobriu isso sozinho e escreveu sobre como pequenas sensações corporais se retroalimentavam para lançá-lo em uma espiral emocional descendente:

Geralmente sou feliz, mas de vez em quando sou atingido por um estado de infelicidade e ansiedade que se intensifica muito rápido. Nos piores dias, sou capaz de passar horas perdido em divagações angustiantes, refletindo sobre as grandes mudanças que preciso fazer em minha vida. De repente, percebo que me esqueci de almoçar. Como um sanduíche de atum e o mau humor desapa­rece. No entanto, minha primeira reação à sensação ruim nunca é pensar que estou com fome. Aparentemente, meu cérebro prefere se chatear com reflexões sobre a falta de sentido da existência a me direcionar até a geladeira.

Como Oliver Burkeman constatou em sua própria experiência, quase sempre essas “divagações angustiantes” se desfazem rápido. Algo atrai nosso olhar e nos faz sorrir - um amigo telefona, encontramos um bom filme passando na TV, tomamos uma deliciosa xícara de chocolate quente ou decidimos ir para a cama cedo. Em geral, toda vez que somos atingidos pelos turbilhões da vida, algo de bom acontece para restabe­lecer o equilíbrio. Mas nem sempre é assim. Às vezes o peso de nossa história entra em ação e adiciona uma carga emocional extra, já que nossas lembranças têm um impacto poderoso em nossos pensamentos, sentimentos, impulsos e, em última análise, em nosso corpo.

Vamos voltar ao exemplo de Lucy. Embora se descreva como uma pessoa “ambiciosa” e “relativamente bem-sucedida”, ela tem consciên­cia de que algo fundamental está faltando em sua vida. Ela conquistou quase tudo o que queria, por isso acha estranho que não se sinta feliz, contente e em paz consigo mesma. Constantemente repete a frase “Eu deveria estar feliz”, como se dizer isso fosse suficiente para expulsar a tristeza.

Os surtos de infelicidade de Lucy começaram na adolescência. Seus pais se separaram quando ela tinha 17 anos e a casa da família precisou ser vendida, forçando seus pais a se mudarem para locais não muito adequados. Lucy surpreendeu a todos por segurar a barra. É claro que no início ficou arrasada com o divórcio, mas logo aprendeu a tirar o foco dos problemas se empenhando nos estudos. Essa foi sua tábua de salvação. Tirou boas notas, entrou na faculdade e se formou com uma qualificação satisfatória. Seu primeiro emprego foi como trainee numa loja de roupas. Ao longo dos anos, foi subindo na hierarquia da empresa, até chegar a chefe de uma pequena equipe de representantes de vendas. Aos poucos, o trabalho dominou a vida de Lucy, deixando-a cada vez mais sem tempo para si mesma. Aconteceu tão lentamente que ela mal percebeu que deixava sua vida de lado. Ocorreram coisas boas também, é claro, como o casamento com Tom e o nascimento das duas filhas. Ela adorava sua família, mas não conseguia se livrar da sensação de que apenas algumas pessoas tinham direito de viver de forma plena. Sua impressão era de estar caminhando em areia movediça.

Essa areia movediça era sua rotina, seu estresse, seus padrões de pen­samentos e seus sentimentos do passado. Embora por fora Lucy pare­cesse uma pessoa de sucesso, por dentro ela morria de medo do fracas­so. Esse medo fazia com que qualquer mau humor passageiro desenca­deasse lembranças dolorosas, enquanto seu crítico interno dizia que era vergonhoso exibir tais fraquezas. Sensações vagas de insegurança aca­bavam despertando uma sucessão de sentimentos negativos do passado que pareciam bem reais e rapidamente assumiam vida própria, ativando outra onda de emoções nocivas.

Como Lucy atestará, é raro experimentarmos a tensão ou a tristeza isoladamente - raiva, irritabilidade, amargura, ciúmes e ódio às vezes estão ligados em um novelo intricado. Esses sentimentos podem até ser dirigidos aos outros, mas na maioria das vezes são voltados para nós mesmos, ainda que não percebamos. Ao longo da vida, esses emaranha­dos emocionais podem se tornar mais associados aos pensamentos, aos sentimentos, às sensações físicas e aos comportamentos. É assim que o passado consegue ter um efeito tão difuso no presente. Se ativamos uma chave emocional, as outras são ativadas em seguida (o mesmo ocor­re com as sensações físicas, como a dor). Tudo isso pode desencadear padrões de pensamento, comportamento e sentimentos que sabemos que são nocivos, mas que simplesmente não conseguimos evitar. E que, quando combinados, são capazes de transformar qualquer contratempo em uma tempestade emocional.

Aos poucos, o acionamento repetitivo de pensamentos e humores ne­gativos começa a abrir sulcos na mente. Com o tempo, esses sulcos se tornam mais profundos, fazendo com que os pensamentos negativos, a autocrítica, a melancolia e o medo se instalem com mais facilidade e se dissipem com mais esforço. A conseqüência disso é que os períodos prolongados de fragilidade podem ser desencadeados por coisas cada vez mais banais, como uma chateação momentânea ou uma baixa de energia - tão banais que às vezes nem as reconhecemos. Com frequên­cia, os pensamentos negativos aparecem disfarçados de perguntas duras que fazemos a nós mesmos: Por que estou tão infeliz? O que está aconte­cendo comigo? Onde será que errei? Onde isso vai acabar?

Os vínculos estreitos entre os diversos aspectos da emoção, que o tem­po todo recorrem ao passado, podem explicar por que um sentimento passageiro pode ter um efeito significativo sobre o estado de humor. Às vezes esses sentimentos chegam e partem tão rápido quanto uma rajada de vento. Outras vezes, no entanto, o estresse, a fadiga e o mau humor ficam grudados como adesivos em nossa mente, e nada parece ser capaz de arrancá-los dali. A impressão que se tem é que é justamente isso que está ocorrendo: a mente é ativada para entrar em alerta máximo, mas depois não consegue ser desativada, como deveria acontecer.

Uma boa forma de ilustrar esse processo é comparar a maneira como humanos e animais reagem diante do perigo. Tente se lembrar do últi­mo documentário sobre a vida selvagem a que assistiu na TV. Deve ter aparecido um rebanho de gazelas sendo caçado por um leopardo na savana africana. Aterrorizados, os animais correram feito loucos até que o leopardo capturou um deles ou desistiu da caçada naquele dia. Uma vez passado o perigo, as gazelas voltaram a pastar tranquilamente. Algo no cérebro delas foi acionado quando avistaram o leopardo e depois desativado quando a ameaça se dissipou.

Mas a mente humana é diferente, sobretudo quando se trata de amea­ças “intangíveis” capazes de desencadear ansiedade, estresse, preocupa­ção ou irritabilidade. Quando nos preocupamos ou tememos alguma coisa - seja ela real ou imaginária - nossas reações de luta ou fuga entram em ação. Mas aí algo mais ocorre: a mente começa a percor­rer nossas lembranças em busca de algo que explique por que nos sen­timos daquele jeito. Assim, se nos sentimos tensos ou em perigo, nossa mente desenterra memórias de ocasiões passadas em que nos sentimos ameaçados e depois cria cenários do que poderá ocorrer no futuro se não conseguirmos explicar o que está acontecendo agora. O resultado é que os sinais de alerta do cérebro são ativados não apenas pelo perigo atual, mas por ameaças passadas e preocupações futuras. Tal processo se dá de forma instantânea, sem que percebamos.

Estudos recentes feitos a partir de tomografias do cérebro confirmam que pessoas que sentem dificuldade de viver o presente e têm rotinas muito agitadas possuem uma amígdala cerebral (a parte primitiva do cérebro envolvida no instinto de luta ou fuga) em “alerta máximo” o tempo todo.2 Assim, quando trazemos à tona lembranças de ameaças e perdas antigas e as juntamos ao “perigo” atual, nosso mecanismo de luta ou fuga não é desativado quando a ameaça passa. Ao contrário das gazelas, não paramos de correr.

Então, a forma como reagimos pode transformar emoções temporá­rias e não problemáticas em dores persistentes e incômodas. Em suma, a mente pode acabar agravando a situação. Isso vale para muitos outros sentimentos do dia a dia. Eis um exemplo:

Enquanto está lendo este livro, veja se consegue perceber qualquer sinal de fadiga em seu corpo. Passe um momento observando-o a fun­do. Depois que tiver se conscientizado de seu cansaço, faça a si mesmo as seguintes perguntas: Por que estou me sentindo tão exausto?O que fiz de errado? O que essa sensação revela sobre mim? O que acontecerá se eu não conseguir me livrar dessa fadiga?

Reflita sobre essas questões por um tempo. Deixe-as ecoar em sua mente. Por que estou tão cansado? O que aconteceu comigo? O que vou fazer se permanecer assim?

Como se sente agora? Provavelmente pior. Acontece com todo mun­do, porque aliado a essas perguntas existe um desejo de se livrar da fadi­ga e de descobrir suas causas e conseqüências.3 O impulso de explicar e expulsar a exaustão deixou você mais exausto.

O mesmo vale para uma série de sentimentos, como a infelicidade, a ansiedade e o estresse. Quando estamos infelizes, é natural tentarmos descobrir a razão por nos sentirmos assim e procurarmos um meio de resolver esse “problema”. Mas tensão, infelicidade ou exaustão não são problemas que possam ser resolvidos. São emoções. Refletem estados da mente e do corpo. Como tais, não podem ser resolvidas - apenas sentidas. Se você as percebeu e abandonou a tendência de explicá-las ou resolvê-las, terá mais chances de vê-las desaparecer sozinhas, como a névoa numa manhã de primavera.

Isso lhe soa estranho? Deixe-me explicar melhor.

Quando você tenta resolver o “problema” da infelicidade (ou de qual­ quer outra emoção “negativa”), mobiliza uma das ferramentas mais poderosas da mente: o pensamento crítico racional. Funciona assim: você se vê num lugar (infeliz) e sabe onde deseja estar (feliz). Sua mente analisa o hiato entre os dois polos e tenta descobrir a melhor forma de transpô-lo. Para isso, usa seu modo Atuante (assim chamado porque é eficiente para resolver problemas e realizar tarefas), que reduz progres­sivamente o hiato entre onde você está e onde deseja chegar. Ele faz isso fragmentando o problema, resolvendo cada uma das partes e depois ve­rificando se isso o ajudou a se aproximar de seu objetivo. Esse processo é instantâneo e nem nos damos conta dele. É uma forma incrivelmente poderosa de resolver problemas: é assim que nos orientamos nas cidades desconhecidas, dirigimos carros e organizamos cronogramas de trabalho frenéticos. Numa escala maior, foi como os povos antigos construí­ram pirâmides e navegaram pelo mundo em veleiros primitivos.

Parece perfeitamente natural, portanto, aplicar essa abordagem para resolver o “problema” da infelicidade. Mas, na verdade, é a pior coisa que se pode fazer, pois requer que você se concentre no hiato entre como está e como gostaria de estar. Então você faz perguntas como: O que há de errado comigo? Onde foi que errei? Por que cometo sempre os mesmos erros? Esses questionamentos, além de duros e autodestrutivos, exigem que a mente forneça indícios para explicar seu descontentamento. E a mente é de fato brilhante em fornecer tais indícios.

Imagine-se passeando num belo parque em um dia de primavera. Você está feliz, mas, por alguma razão desconhecida, uma centelha de tristeza surge em sua mente. Pode ser por causa da fome, já que você não almo­çou, ou talvez porque você tenha se lembrado sem querer de alguma coisa incômoda. Após alguns minutos, você começa a se sentir um pouco aba­tido. Assim que percebe seu desânimo, pensa: O dia está lindo. O parque é maravilhoso. Gostaria de me sentir mais contente do que estou agora.

Repita: Gostaria de me sentir mais contente.

Como se sente depois disso? Provavelmente, ainda mais triste. Você se concentrou no hiato entre como se sente e como quer se sentir. E concentrar-se no hiato o realçou. A mente vê a distância entre os dois estados como um problema a ser resolvido. Essa abordagem é desastro­sa quando se trata das emoções, devido à interligação complexa entre pensamentos, emoções e sensações físicas. Todos se alimentam mutua­mente e podem conduzir sua mente em direções perturbadoras. Em pouco tempo, você se vê sufocado pelos próprios pensamentos. Você começa a analisar demais a situação, a remoer o sentimento, a se culpar por não se sentir feliz.

Seu estado de ânimo piora. Seu corpo fica tenso, seu rosto se franze e o desânimo se instala. Algumas dores podem surgir. Essas sensações realimentam sua mente, que se sente mais ameaçada. Seu astral pode cair a tal ponto que você deixa de aproveitar o passeio no parque e não presta mais atenção na beleza do dia.

Claro que ninguém fica remoendo os problemas porque acredita que é uma forma nociva de pensar. As pessoas acreditam que, preocupando-se o suficiente com sua infelicidade, acabarão encontrando uma solu­ção para ela. Mas as pesquisas provam o oposto: na verdade, remoer pensamentos reduz nossa capacidade de solucionar problemas, e é um artifício absolutamente inútil para lidar com dificuldades emocionais.

Os sinais são claros: remoer pensamentos é o problema, não a solução.

Escapando do círculo vicioso

Não dá para deter o fluxo de lembranças infelizes, monólogos inter­nos negativos e outras formas de pensamento prejudiciais - mas você pode evitar o que acontece a seguir. Como já dissemos, você pode im­]pedir que o círculo vicioso se autoalimente e desencadeie a próxima es­piral de pensamentos negativos. E pode fazer isso experimentando um jeito novo de se relacionar consigo mesmo e com o mundo. Se você pára e reflete por um momento, a mente não apenas pensa: ela tem consciência de que está pensando. Essa forma de pura consciência permite que você veja o mundo de outra maneira, de um ponto de vista distanciado, sem sofrer a interferência de seus pensamentos, sentimentos e emoções. É como estar numa montanha alta - um ponto de observação - da qual você pode ver tudo por quilômetros a sua volta.

A pura consciência transcende o pensamento. Permite que você cale a mente tagarela e iniba seus impulsos e emoções reativas. Possibilita que você olhe para o mundo com os olhos abertos. E quando faz isso, a sensação de contentamento reaparece em sua vida.

 

Psicologia - Psicologia positiva
Sociedade - Cotidiano, 
3/3/2022 2:27:26 PM | Por Morgana Gomes
A sociedade egípcia

Organizada de forma piramidal, no topo da hierarquia social egípcia destacava-se o faraó. Tido como o soberano todo poderoso era considerado um deus vivo, filho de Amon-Rá, o deus-sol, e a encarnação de Hórus, o deus-falcão. Dessa forma, além de se fazer intermediário entre os deuses e os homens, sua figu­ra sagrada também era objeto de culto. Como tal, em seu governo teocrático [sistema em que a autoridade política é exercida por pessoas que se consideram re­ presentantes de Deus na Terra), ele tinha autoridade absoluta, já que concentrava poderes administrativos, militares e religiosos, embora os delegasse para não se sobrecarregar. De acordo com essa hierarquia, no degrau abaixo da pirâmide social dos dominantes, des­tacavam-se os nobres, representados pelos familiares do faraó, altos funcionários do palácio, oficiais superiores do exército e chefes administrativos. Normalmen­te, eles ocupavam cargos de sacerdotes e nomarcas ou eram grandes proprietários de terras, isso quando não ocupavam os principais postos do exército.

Entre os nobres, os sacerdotes que na escala de poder ficavam somente abaixo do faraó, presidiam as cerimônias, conheciam as características e funções dos deuses, transmitiam as respostas das divinda­des às perguntas dos dominantes, comandavam os rituais após a morte do rei e, além de serem dis­pensados do pagamento de impostos, mesmo sendo proprietários de terras, ainda se enriqueciam com as oferendas feitas aos deuses. Consequentemente, a função sacerdotal era lucrativa e honrosa, por isso muito insistiam com a hereditariedade do cargo. Em seguida, vinham os chefes militares. Responsáveis pela segurança do território egípcio tinham que pre­parar e organizar o exército de forma eficiente, pois uma derrota ou fracasso podia lhes custar a própria vida. Mas, em momentos de guerra, sempre ganha­vam destaque. Depois surgiam os escribas. Respon­sáveis pela escrita egípcia (hieroglífica e demótica), eles registrarem os acontecimentos, principalmente sobre a vida do faraó, em papiros, paredes de pirâ­mides e em placas de barro ou pedra, mas também eram encarregados da cobrança de impostos, da or­ganização escrita das leis, dos decretos e da fiscali­zação da atividade econômica em geral. [53]

Costumeiramente, a classe mais elevada dos dominantes usava perucas de fibra de papiro (planta perene da família das ciperáceas, abundante as margens do rio Nilo] para se proteger do sol e tinta preta, à base de antimônio, ao redor dos olhos para diminuir o excesso de luminosidade e se prevenir contra oftalmias. Os sacerdotes ainda ras­pavam a cabeça e os demais pelos do corpo, tanto para manter a higienização durante as oferendas feitas nos templos quanto para se livrar dos piolhos e outros parasitas que proliferavam e infestavam o Egito.

Já a classe dos dominados congregava soldados, artesãos, cam­poneses e escravos. Os soldados nunca podiam atingir o posto de co­mando, que era reservado exclusivamente aos nobres. Eles viviam gra­ças aos produtos que recebiam pelos serviços prestados e de saques realizados durante as guerras. Por sua vez, os artesãos dedicavam-se as mais diversas profissões. Eram pedreiros, carpinteiros, desenhistas, escultores, pintores, tecelões, ourives, entre outros. Quando contrata­dos por empreiteiros para exercerem suas atividades em grandes obras públicas, em troca do trabalho prestado, recebiam apenas alimentos.

Já os camponeses formavam a maioria do povo. Trabalhavam nas propriedades do faraó e dos sacerdotes e, apesar de terem o direito de conservar uma pequena parte dos produtos colhidos, viviam submeti­dos a uma violenta repressão por parte da camada dominante, que os ameaçava constantemente com exércitos profissionais, para forçá-los a pagar impostos. Muitas vezes, principalmente nos períodos de cheia do rio Nilo, eles também eram convocados para trabalhar nas obras faraônicas. Por último, na escala hierárquica da sociedade egípcia, sur­giam os escravos. Normalmente provenientes da dominação de outros povos durante campanhas militares ou levados a essa condição devido às dívidas, eles faziam serviços domésticos, trabalhavam nas pedreiras e nas minas, sem receber nada pelos serviços prestados.[54] 

Quanto às mulheres, desde os tempos mais antigos, elas deti­nham um lugar na sociedade. Caso o marido morresse, elas assu­miam a chefia da família, inclusive nas classes mais altas, nas quais chegavam a tratar de assuntos de estados. Também podiam ser sa­cerdotisas nos templos. Mas se traíssem o esposo, era normal se­rem assassinadas. No entanto, o homem, inclusive o faraó, podia ter mais de uma mulher e, mesmo assim, ainda lhe era permitido ter amantes em sua própria casa. Além disso, como a linhagem de po­der do topo da pirâmide era repassada pela mulher, caso ela tivesse filhos homens, um deles (usualmente o mais velho) seria o novo faraó. Porém, se ela só tivesse filhas, após aprovação sacerdotal, o indivíduo que se casasse com a mais velha assumia o trono e se tor­nava o eleito dos deuses para exercer o reinado. Mas em virtude da política e dos jogos de interesses vigentes, por vezes, as mulheres ainda se casavam com seus próprios irmãos, para legitimá-los no trono, sem que isso configurasse incesto.

A vida no palácio dos faraós

Segundo Olavo Leonel Ferreira em "Egito: terra dos faraós" (pp. 27-28), "os faraós e sua família viviam em meio a tal luxo e conforto, que mesmo hoje causa admiração. Os palácios eram equipados com móveis de cedro, revestidos às vezes de ouro e de marfim, os utensí­lios de uso diário eram também de qualidade superior, demonstrando a riqueza daqueles que possuíam, bem como a habilidade e a perícia dos artesãos que os fabricavam. A presença de uma legião de servido­res, criados, músicos, cantores, dançarinas e copeiros colaborava ainda mais para tornar confortável a vida diária dos governantes do país. As caçadas e pescarias freqüentes, a prática de jogos diversos contribuía, também, para que fosse agradável o dia a dia dos 'deuses vivos' que governavam o Egito e daqueles que com eles conviviam (...). Os faraós egípcios casavam-se frequentemente com pessoas da própria família, muitas vezes com as próprias irmãs. Os casamentos consanguíneos ti­nham como motivo a preocupação em manter a pureza do sangue real. Muitos faraós mantinham mais de uma esposa, como resultado, seu número de filhos podia chegar a dezenas. Ramsés II, por exemplo, teve mais de 160."

A economia

De acordo com a organização social, em território egípcio instalou-se o chamado modo de produção asiático, em que todas as terras pertenciam ao Estado que, por sua vez, intervinha na economia, contro­lando a produção, recrutando mão-de-obra e cobrando impostos. Dessa forma, os camponeses tinham o direito de cultivar o solo desde que pa­gassem um imposto coletivo. Como eles plantavam trigo, cevada, fru­tas, legumes, linho e algodão, esse imposto era pago em espécimes que ficavam estocados nos armazéns reais. Em conseqüência, todos eram obrigados a trabalhar para sustentar o faraó. Mas, além da agricultura, [55] ainda havia a criação de animais, a indústria artesanal de tecidos e de vidro, a cerâmica, o comércio externo, o forjamento de cobre e ouro, a construção de barcos e a produção de armas. Porém, como os egípcios não conheciam o dinheiro, todo o comércio funcionava a base de trocas, prática que se tornou mais intensa no Novo Império, quando as impor­tações e exportações se intensificaram, favorecendo os contatos com a ilha de Creta, Palestina, Fenícia e Síria, de onde era trazido marfim, peles de animais, perfumes e outros utensílios usados pelos ricos. Os lucros obtidos com o comércio ainda ajudavam a pagar a construção das pirâmides.

Com as construções das pirâmides, se durante as cheias do Nilo, os egípcios faziam as pedras flutuar até a orla do deserto, em outros períodos, eles as transportavam em navio, construídos com madeira do Líbano. Conforme consta em diversos papiros, esses navios contavam com grandes remos, presos à popa. Posteriormente, os egípcios tam­bém foram os primeiros a usar velas. Mas para atravessar o Nilo, pes­car e caçar, os homens comuns utilizavam barcos de junco. Os cavalos só passaram a ser criados e usados no transporte, após a invasão dos hicsos em 1750 a.e.c., que os utilizaram contra os exércitos egípcios, que copiou a estratégia em guerras posteriores. [56]

A escrita hieroglífica

Constitui provavelmente o mais antigo sistema organizado de es­crita do planeta e apenas os sacerdotes, membros da realeza, funcio­nários de altos cargos e escribas conheciam a arte de ler e escrever esses sinais "sagrados". Utilizada em inscrições formais nas paredes de templos e túmulos, com o tempo evoluiu para formas mais simplifi­cadas, como o hierático, uma variante mais cursiva que se podia pintar em papiros ou placas de barro. Mais tarde, com a influência grega, os hieróglifos adquiriram ares demóticos, fase em que os sinais iniciais se tornaram bastante estilizados e ainda ganharam a inclusão de alguns símbolos gregos. Apesar desses aspectos, durante quase 4 mil anos, os hieróglifos que perfaziam um total de cerca de 6.900 sinais, reinaram soberanos a sombra dos faraós.

Entretanto, no século IV, devido ao cristianismo que se expandia, os escribas foram desaparecendo com o que ainda restava da velha cultura egípcia, levando consigo as chaves que decifravam a escritura sagrada. Em conseqüência, por muito tempo, afirmou-se que os hieróglifos eram uma esfinge que nunca seria decifrada.Também nas primeiras dinas­tias, um texto não continha mais do que 700 sinais, mas no final dessa civilização já eram usados milhares de hieróglifos, o que complicava muito a leitura e tornava impraticável o uso constante dos sinais.

Por volta de 1600 e.c., o jesuíta alemão Athanasius Kircher tentou de­ cifrar os hieróglifos, porém teve que desistir diante da complexidade dos sinais que, por milhares de anos, isoladamente representavam um objeto único. Entre esses sinais, havia partes do corpo humano, plantas, animais, edifícios, barcos, utensílios de trabalho, profissões, armas, etc. Embora tenham sido substituídos gradativamente por figuras mais sim­plificadas ou por símbolos gráficos, apenas no século XVIII, Jean-François Chapollion (1790-1832), professor francês, lhes deu um significado inteligível. Se inicialmente, Champollion estava convencido de que os hieróglifos eram puramente simbólicos, sem qualquer valor fonético, togo ele concluiu que o cóptico, a língua falada pelos cristãos egípcios ainda existentes, correspondia ao último estágio da antiga língua egíp­cia e essa foi a sua grande vantagem sobre o médico inglês Thomas Young, que também investigava o significado dos sinais, embora com menos sucesso. No entanto, após estudar várias inscrições hieroglíficas que continham nomes reais, tais como as do obelisco de Bankes e as da Pedra de Roseta, finalmente ele descobriu que muitos tinham um efeito fonético comum aos ideogramas. Contudo, o estudo da antiga língua egípcia, vinculada nos hieróglifos, avançou de forma concreta somente durante o século XX, a partir do trabalho de linguistas como Sir Alan Gardiner e Hans Jacob Polotski, que permitiu uma melhor compreen­são da gramática e do sistema verbal da civilização egípcia.

Atualmente sabemos que as inscrições hieroglíficas existem desde antes de 3000 a.e.c. Mas é possível que a última tenha sido feita sobre uma pedra descoberta na Ilha de Philae - que fica próxima à primeira catarata do Nilo e antigamente era chamada de Pilak -, cuja data [57] aproximada é de 394 e.c.. De forma bem resumida, nesse sistema de escrita, para representar sentimentos como ódio e amor ou ações como amar e sofrer, os egípcios desenhavam objetos, cujas palavras que os designa­vam, tinham sons semelhantes aos das palavras que os hieróglifos se referiam concretamente, com um sinal vertical ao lado de cada figura. Ao se referirem a algo abstrato, acrescentavam aos sinais o desenho um rolo de papiro. Caso os hieróglifos correspondessem à determinada pessoa, eles traziam a imagem de uma figura feminina ou masculina, com um pequeno sol. O sistema que por si só é bem complicado, ainda apresenta outra característica complexa: os hieróglifos podiam ser es­critos da direita para a esquerda ou vice-versa e, nesse caso, o sentido dos mesmos dependia da direção dos olhos das figuras humanas ou dos pássaros representados a lado deles. 

A arte

A arte no Antigo Egito tinha objetivos políticos e religiosos. Ro­busta, sólida e solene, de modo geral, ela se manteve homogênea du­rante as diversas dinastias, embora haja algumas nuances no seu eixo estruturador, em grande parte, devido à sucessão de acontecimentos históricos. Dessa maneira, além de representar, exaltar e homenagear constantemente o faraó e as diversas divindades egípcias, ela ainda era aplicada em peças ou espaços relacionados ao culto dos mortos, por­que a transição da vida à morte era compreendida de forma antecipada e preparada como uma passagem suprema. Logo, todas as suas re­presentações estão repletas de significados que caracterizam figuras, estabelecem níveis hierárquicos e descrevem situações.

A simbologia em si ainda estruturava, simplificava e clarificava a mensagem transmitida, criando um forte sentido de ordem e raciona­lidade extremamente importantes. A hierarquia social e religiosa, por exemplo, traduzia-se artisticamente na atribuição de diferentes tama­nhos aos vários personagens, de acordo com sua importância. Portanto, o faraó sempre era a maior figura numa representação bidimensional. Essa harmonia e equilíbrio tinham que ser mantidos, porque qualquer [58] perturbação implicaria em um distúrbio pós-morte. Esse objetivo tam­bém era atingido com linhas simples, formas estilizadas, níveis retilíneos de estruturação de espaços, cores uniformes que transmitem limpidez e às quais se atribuem significados próprios.

Embora muito estilizada, a arte egípcia tinha um pormenor realista, que tentava apresentar o aspecto mais revelador de determinada entidade. Ainda que, com restritos ângulos de visão, tal estilo tem um forte componente de estática, que apresenta uma imobilidade solene. Por conseguinte, diante de tais representações são só possíveis três pontos de vista pela parte do observador: de frente, de perfil e de cima. Por isso, as imagens do corpo humano, especialmente a de figuras [59] importantes, eram sempre representadas a partir de dois pontos de vista simultâneos, que oferecem maior informação e favorecem a dignidade da personagem: os olhos, os ombros e o peito representam-se vistos de frente; a cabeça e as pernas representam-se vistos de lado.

As cores utilizadas não cumpriam apenas a função decorativa. Nelas também havia um simbolismo intríseco. O preto usado nas so­brancelhas, perucas, olhos e bocas estava associado à noite e à morte, mas ainda poderia representar a fertilidade, a regeneração ou as inun­dações anuais do Nilo, que traziam a terra que fertilizava o solo [por esta razão, os Egípcios chamavam de Khemet, "A Negra", à sua terra). Osíris, muitas vezes, foi representado com a pele negra, assim como a rainha deificada Ahmés-Nefertari. O branco era a cor da pureza e da verdade. Como tal era utilizado nas vestes dos sacerdotes, nos objetos rituais, nas casas, nas flores e nos templos. O vermelho tinha um sig­nificado ambivalente, se por um lado representava a energia, o poder e a sexualidade, por outro lado estava associado ao maléfico deus Set, cujos olhos e cabelo eram pintados de vermelho, e ao deserto, local que os egípcios evitavam. O amarelo, devido ao Sol e ao ouro, era a cor da eternidade, tanto que as estátuas dos deuses, assim como os objetos funerários do faraó, incluindo a máscaras, eram feitos com esse metal. O verde simbolizava a regeneração e a vida. Muitas vezes, Osíris tinha a pele pintada com essa cor. Por fim, o azul aparecia associado ao rio Nilo e ao céu. No entanto, em virtude das poucas inovações, também é quase certo que o estilo de arte dos egípcios, seguia rígidos cânones e normas, que os artistas deveriam obedecer e que, de certo modo, im­puseram barreiras ao espírito criativo individual.

Todas essas características ainda se refletiram na produção de esculturas e na confecção de joias. Mas se as estátuas de grandes di­mensões se associavam à arquitetura, as pequenas representações de deuses e faraós, como também de animais, primavam pelo relevo des­critivo (hieróglifos) e pelo busto. Ambas se destacavam nos templos e monumentos, principalmente, nos funerários. Já a joalheria, que apre­sentava grande qualidade, se evidenciava nos objetos do cotidiano e no mobiliário requintado adotado pelas classes dominantes. As peças, geralmente em ouro, eram adornadas com gemas e símbolos, entre os quais escaravelho, nó de ísis, olho de Hórus, esfinge, entre outros de grande significado simbólico. [60]

A arquitetura

As pirâmides, inquestionavelmente, representam a expressão má­xima da arquitetura egípcia. Segundo a crença desse povo, como a ter­ra dos mortos ficava no oeste, lugar onde o sol se põe, as pirâmides deveriam estar alinhadas com a estrela polar do norte. Os sacerdotes, encarregados desse trabalho, demarcavam os pontos do nascimento e do acaso da estrela, estabeleciam o norte com exatidão e escolhiam os funcionários para trabalhar na pirâmide. Em cada dez homens, um sempre era convocado. Havia fiscais, operários que trabalhavam com metais, pedreiros, carpinteiros, além dos pintores e escultores, que decoravam templos. Em conjunto, eles arrastavam enormes blocos de pedra, que chegavam a pesar 3 toneladas cada um. Para cortarem as pedras, esses abriam uma fenda estreita com cunhas de madeira que, ao serem fixadas com um macete, eram encharcadas com água, que dilatavam a madeira e separavam a rocha. Durante a construção em si, os egípcios erguiam uma rampa e arrastavam os blocos de pedra para cima em trenós.

Algumas das ruínas de construções inacabadas mostram rampas construídas em direção reta. Mas de acordo com a necessidade da cons­trução, ela podia ser mais longa e mais alta. Ao mesmo tempo, eles edificavam o templo mortuário, encostado à pirâmide. Porém, conforme as paredes de ambos iam sendo erguidas, os operários enchiam o interior dos mesmos com areia para que os blocos ficassem bem assentados. Depois que tudo estava pronto, a areia era removida gradativamente, porque os entalhadores e pintores ainda a usavam como se fosse uma espécie de an­daime. Entre uma série de suposições, a mais aceita é que tais edificações foram construídas com calcário, extraído do próprio local. [61] Mas em meio às construções, as colunas de pedra merecem um destaque especial. Se antigamente elas seguravam os telhados dos templos e colunatas, hoje, conforme o formato do seu capitel é possível estimar a data da construção. A forma palmiforme (ins­pirada nas palmeiras] surge no Antigo Império e vai passando por transições até chegar ao pilar e depois à coluna. As papiriformes ou flores de papiro tinham seu corpo fasciculado em arestas, mas quando apresentavam às umbrelas abertas, o capitel passava ser chamado de campaniforme.

As lotiformes apresentavam ramos de lótus com corolas fechadas e no corpo reproduções de caules atados por um laço. Também eram construídas estátuas do rei que, por sua vez, eram colocadas no vale ou nos templos mortuários. Na seqüência, eles construíam separadamen­te a pirâmide da rainha que sempre era bem menor que a do seu rei. Depois que a pirâmide alcançava a altura desejada, os trabalhadores ainda colocavam as pedras de revestimento, cujos encaixes eram tão perfeitos que não passava nem uma lâmina de faca entre eles. Por fim, davam o polimento final, com calcário branco vindo da Turá. Atualmen­te, a pirâmide de Quéfren é a única que ainda tem no seu topo parte desse revestimento.

Considerando que, de acordo com a lenda da criação do mundo, como outrora tudo era água até que surgiu uma colina, na qual o deus-sol ficou em pé para criar o mundo, a pirâmide provavelmente simbo­lizava tanto a primeira colina da terra, que seria a pedra consagrada a Rá, quanto uma rampa para o céu.

Entretanto nem a morte do faraó punha no fim no trabalho. Quan­do o rei morria, os homens ainda tinham que enterrar, perto de sua pirâmide, o barco que ele utilizava em vida (Um dos maiores barcos encontrados no Egito, pertenceu ao rei Quéops. Descoberto ao lado de sua pirâmide, em bom estado de conservação, hoje ele está exposto no museu de Gizé, embora haja outro que ainda se encontra sob as areais do local), lacrar a entrada do túmulo para toda a eternidade e construir um poço que serviria como obstáculo para ladrões e curiosos.

Posteriormente, quando os faraós passaram a construir seus tú­mulos no Vale dos Reis, eles começaram a recrutar somente os habi­tantes do povoado de Deir el-Medina, que ficava na margem ocidental de Tebas, para fazer as construções, acima do povoado, nos rochedos locais. Nessa época, os túmulos variavam em tamanho e traçado, mas todos tinham uma minipirâmide esculpida em cima do seu telhado.

Curiosamente, a preocupação com a vida após a morte explica por­ que a maioria das casas e palácios não resistiu aos 3 mil anos de histó­ria egípcia, já que só restam ruínas dos templos, tumbas e pirâmides. As moradias comuns eram feitas em tijolos muito frágeis, porém na construção da casa dos mortos, os egípcios utilizavam pedras, metais e madeira. Graças a isso, além das pinturas com cenas cotidianas como guerras, recepção de visitantes estrangeiros, cenas familiares, higiene pessoal, trabalho e festas religiosas, também chegaram até nós [62] documentos escritos pelo povo, registros de estoques de armazém, anotações de escribas, correspondência particular de homens ricos, entre outros itens, que ficaram abrigados nos templos sagrados.

A música e a dança

Estudiosos acreditam que a música no Antigo Egito tenha surgido entre os séculos XVIII e XV a.e.c., tal como ocorreu na Mesopotamia e, graças às pinturas dos templos e túmulos, eles reconstruíram com uma relativa precisão o desenvolvimento dos instrumentos musicais e o uso da música na civilização egípcia. Entre o sexto e o quarto milênio a.e.c., após o estabelecimento das primeiras cidades, a dança era a principal manifestação em que se empregava a música. Supostamente, nessa época, os instrumentos vinham do sul da África e da Suméria. Na épo­ca do Império Antigo, entre a III e X Dinastias, a música atingiu seu ápice, como revelam diversas representações - nas quais se destacam pequenos conjuntos musicais com cantores, harpas e flautas - e inscrições que descrevem danças realizadas para o faraó. Segundo os egiptólogos nesse período houve um grande florescimento da arte musical. Já no Império Médio, representa­ções indicam conjuntos maiores e até orquestras, compostas por harpas, alaúdes, liras, flautas, flautas de palheta dupla (oboés), trombetas, tambores e crótalos. Por sua vez, no Império Novo os instrumentos se aperfeiçoam e a música passou a ter papel ritual e militar.

Quando o Egito começou a entrar em decadência, em virtude das sucessivas invasões, a cultura musical do território passou a ser influenciada pelos gregos e romanos, perdendo totalmente sua identidade, entre outras causas porque músicos estrangei­ros foram contratados para integrar a corte e trouxeram consigo alguns de seus instrumentos. Como até uma espécie de órgão hidráulico foi encontrado durante escavações, alguns musicólogos acreditam que os últimos vestígios da música faraônica po­dem ser identificados apenas na liturgia copta. Esses fatos es­tão comprovados porque muitos instrumentos surgiram durante as escavações das pirâmides, templos e túmulos subterrâneos, principalmente no Vale dos Reis. No entanto, como nenhum deles tinha afinação fixa, a possibilidade de definir que tipo de escalas musicais era utilizado, inviabilizou-se.

Também não foram encontrados textos que permitam de­duzir a existência de um sistema de notação e nem sobre teoria musical. Aparentemente isso se deve ao fato de que os músicos não gozavam, entre os egípcios, do mesmo status que tinham entre os sumérios, por exemplo. Em afrescos, eles sempre apa­recem ajoelhados e vestidos como escravos. Logo, a posição su­balterna do músico não permitiria a transmissão de uma arte, tão pouco valorizada, por meio de textos. [63] 

As ciências

Os egípcios não tiveram interesse por questões filosóficas nem abstratas, mas se dedicaram a construção de templos e pirâmides, a cura de doenças, a duração das estações agrícolas, a um método efi­ciente de contabilidade comercial, etc. Eles também foram os primeiros a manipular as substâncias químicas (arsênio, cobre, petróleo, alabastro, sal, sílex moído), que deram origem à fabricação de diversos remé­dios e composições simples. Até a palavra química provém do egípcio kemi, que significa terra preta.

A astronomia também se desenvolveu bastante no Antigo Egito. Como as estrelas orientavam os egípcios tanto na navegação quanto na agricultura, eles elaboraram mapas do céu, distinguindo estrelas, planetas e constelações. Desenvolveram ainda o calendário solar de 365 dias, divididos em 12 meses de 30 dias, mais 5 dias festivos e, em conseqüência, também ampliaram a astrologia, relacionando as traje­tórias dos astros com o nascimento de um indivíduo e suas caracterís­ ticas pessoais.
Em relação à matemática, eles também conheciam as três opera­ções fundamentais: soma, subtração e divisão. E, sem nenhum tipo de símbolo para representar o zero, eles constituíram o sistema decimal e passaram a calcular com precisão a área do triângulo, do retângulo, do trapézio e ainda o volume dos sólidos. Mas, graças às transações co­merciais e o período de cheias do Nilo, que exigiam uma padronização de pesos e medidas e um sistema de notação numérica de contagem, também se desenvolveram a álgebra e a geometria. [64]

No campo da medicina, como os progressos sempre estiveram re­lacionados com a anatomia humana, há mais ou menos 3000 anos a.e.c., no Antigo Egito, os médicos já tinham uma noção interna do corpo hu­mano, em virtude do costume religioso de embalsamar os mortos, dos quais se retiravam as vísceras, que eram guardadas em vasos espe­ciais, próximo ao corpo. Segundo os egiptólogos, o médico mais antigo do Egito viveu nesse mesmo período. Chamado Hesy-Ra, ele só cuidava de dentes, mas nessa época já havia outras especialidades como nariz, olhos, ânus e abdômen. Portanto, foi a partir de técnicas de mumificação que eles acumularam conhecimentos, reconheceram a importância do coração em relação aos outros órgãos do corpo, desenvolveram téc­nicas para tratar fraturas, realizar pequenas cirurgias e suturar cortes profundos. Os egípcios também foram os primeiros a afirmar que as doenças tinham causas naturais e, para combatê-las, elaboraram listas de remédios, formando a primeira farmacopeia de que se tem notícia. Conforme a doença, eles indicavam medicamentos que variavam desde sangue de lagarto, livro velho fervido em azeite, leite de mulher que tinha dado à luz até excremento de crocodilo.

Os médicos do Antigo Egito se dividiam em três grupos de terapeu­tas: os sacerdotes de Sekhmet, os magos e os sunus. Os sacerdotes de Sekhmet acreditavam que a deusa de mesmo nome era a causadora de todas as doenças. Então, eles mantinham um bom contato com ela, induzindo-a a não castigar certa pessoa com doenças. Por sua vez, os magos diziam que as doenças eram provenientes de maus espíritos que atacavam as pessoas. Logo, eles tinham como função o exorcis­mo. Já o sunus recebiam instruções médicas da PerAnkh ou da "Casa da Vida" e, antes de terminarem seus estudos em certa área do corpo humano, já exerciam suas funções, em seus próprios consultórios. Eles trabalhavam junto aos uts, os primeiros enfermeiros de que se têm notícia e, ao mesmo tempo em que podiam ser um sacerdote da deusa Sekhmet ou um mago. conforme papiros encontrados, ainda ocupavam cargos paralelos de admi­nistrador, arquiteto ou escriba. Contudo, eles defendiam que o organismo humano era o medicamento mais potente contra qualquer doença, já que podia produzir por si mesmo o medicamento necessário, no momento pre­ciso; sabiam como se dava a fecundação, que só o esperma tinha o poder de gerar um indivíduo e que o papel da mulher era o de recebê-lo. Diziam que, para saber se uma mulher estava grávida, o segredo era urinar sobre um punhado de grãos. Se em alguns dias, eles germinassem, um novo indivíduo estaria a caminho.

Curiosamente, enquanto os sunus se impressionavam com a possi­bilidade do sangue coagular e as artérias endurecerem, a maior preocu­pação da classe dominante era o ânus, tanto que cada faraó possuía um médico nessa área. Eles temiam os vermes que, por serem encontrados em múmias, acabaram sendo identificados como os legítimos mensagei­ros da morte. De certa forma, eles estavam certos, porque se os mesmos insistiam em aparecer, eles também estavam prenunciando a chance de uma diarréia fatal. [65]

História - Civilização Egípcia
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3/3/2022 1:46:34 PM | Por Giovanni Reale
As teses metafísicas do diálogo Filebo no sistema de Platão

As indicações protológicas se ampliam de maneira considerável no Filebo como os antigos já haviam notado e como faz tempo os estudiosos modernos mais atentos o reconheceram. Três são as pas­sagens protológicas mais significativas: em primeiro lugar, Platão põe em relevo a estrutura bipolar do real (Uno-Muitos) e, em conexão com este tema, voltado sobretudo para as Idéias, explica a estrutura numé­rica das próprias Idéias; em segundo lugar, amplia essa temática, es­tendendo-a a toda a esfera cosmológica e antropológica, realçando os quatro gêneros supremos do real; em terceiro lugar reitera, por meio de uma série de alusões muito claras e, em certa medida, nitidamente explícitas, a essência do Bem como Uno e como Medida suprema.

Comecemos pelo primeiro ponto.

Depois de ter reafirmado a importância da questão das relações do Uno e dos Muitos e de ter ulteriormente destacado que a identi­dade do Uno e dos Muitos estabelecida pelo raciocínio se encontra sempre e em todas as partes, em todas as coisas das quais se fala, Platão esclarece que esse conhecimento das relações do Uno e dos Muitos coincide substancialmente com uma “revelação divina” que nos foi transmitida pelos antigos, segundo a qual todas as coisas que são ditas “ser” são constituídas justamente pelo “uno” e pelos “mui­tos” e contêm em si o limite e o ilimitado. Em outros termos: a estrutura bipolar é o eixo de sustentação de toda a realidade e, por­tanto, também do pensamento.

Eis em que consiste mais exatamente essa revelação e esse “dom de Deus aos homens”: o ser enquanto tal contém em si o limite e o ilimitado (o “peras” e o “apeiron”) que se mostram sempre compo­nentes essenciais, igualmente necessários. Essa afirmação vale para todo e qualquer ser, começando das próprias Idéias.

Quaisquer que sejam os objetos em discussão é necessário, para conhecê-los, que se encontre a unidade da Idéia. É necessário exami­nar atentamente essa Idéia para ver se, por sua vez, ela não contém duas ou mais Idéias e, depois, se cada uma dessas Idéias se subdivide em outras Idéias, até chegarmos às Idéias que não sejam ulteriormen­te divisíveis. Enquanto se permanece no âmbito das Idéias, o número das Idéias contidas numa Idéia dada é sempre determinado. Mas, no momento em que se atingem as Idéias que não são ulteriormente divisíveis, não é mais possível avançar na divisão dialética e passa-se, então, à multiplicidade dos indivíduos empíricos, do modo que será abaixo explicado.

Por conseguinte, a divisão das Idéias dá origem sempre a uma quantidade limitada de Idéias nela incluídas. Tarefa particular da dialética é justamente estabelecer quais e quantas sejam essas Idéias. E exatamente aqui reside a novidade mais notável do Filebo, bem esclarecida a partir de Stenzel, a saber, a conjunção da estrutura diairética das Idéias com o número. Aqui aparece a doutrina das Idéias-número.

É possível estabelecer a estrutura de toda Idéia geral, descobrindo, pela divisão, as Idéias particulares nas quais se divide e, assim expri­mir essa estrutura diairética num número (isso significa, com efeito, determinar quais e quantas sejam as Idéias contidas numa Idéia-gêne-ro). Enfim, depois desse processo, será possível passar à multiplicidade indeterminada dos indivíduos. Isto significa que não é possível passar imediatamente de uma Idéia geral (unidade) à multiplicidade dos indiví­duos empíricos, que são multiplicidade indeterminada, se não por meio da divisão ontológica e lógica da Idéia nas várias Idéias das quais aparece constituída, e a determinação do seu número (a saber, quais e quantas sejam). Somente uma vez alcançadas as Idéias indivisíveis será possível a passagem aos inumeráveis indivíduos empíricos corres­pondentes. Portanto, abaixo da Idéia ínfima, não mais ulteriormente divisível, está o ápeiron sensível. Por isso a Idéia exerce por sua vez, justamente em razão da sua estrutura numérica, uma função determinante de unidade com respeito aos sensíveis, como veremos melhor mais adiante, mas como o seguinte texto já no-lo diz com clareza:

Sócrates — [...] Assim como, tornando-se um uno qualquer não se deve considerá-lo imediatamente, como dizemos, na sua relação com a na­tureza do ilimitado.

Platão retoma as argumentações metafísicas já desenvolvidas e tira delas algumas conclusões da máxima importância. Com efeito, os conceitos 1) de “sem limite ” e 2) de “limite” são retomados com uma valência ontológico-cosmológica. Afirma-se que o que existe em geral implica, exatamente, de maneira sistemática, esses dois fatores. Mas, além desses dois gêneros é necessário acrescentar, para compreender a estrutura ontológica da realidade física, 3) a “mistura ” de “limite ” e “ilimitado” como sendo o terceiro gênero e, finalmente, muito im­portante, a ulterior “causa da mistura”.

Esses quatro gêneros supremos são articulados com a protologia não-escrita de maneira absolutamente emblemática.

1) O apeiron (o “in-determinado”, “in-definido” “ilimitado”) consiste num “avançar sempre e não permanecer parado” nas duas direções opostas, como dá bem a entender o exemplo do quente e do frio adotado por Platão, que implica um sempre mais no quente e um sempre mais no frio em direções opostas. Mais ainda, a escolha do “mais e menos” como sinal distintivo da natureza do ilimitado é particularmente eloqüente: Platão entende um avançar sempre no “mais” e um avançar sempre (em sentido oposto) no “menos”, ou seja um proceder ao infinito dos “dois” extremos opostos, em sentido diádico. Portanto, é evidente a referência ao Princípio da Díade do grande-e-do-pequeno das “Doutrinas não-escritas” que exprime justa­mente uma ilimitação (Díade indefinida) no duplo sentido de avançar para uma in-finita grandeza e para uma in-finita pequenez. Ou me­lhor, Platão indica mesmo explicitamente o maior e o menor como exemplo ilustrativo conclusivo e paradigmático ou como referência evidente alusiva justamente a Díade indefinida do maior-e-menor.

2) O peras (ou “limite”) implica tudo o que tem relação com as Idéias e, em particular, com a sua estrutura numérica e a capacidade de de-terminar o in-determinado justamente com a mediação numé­rica. Platão invoca as características de quantidade, de justa medida, de igualdade, de número com relação a número, de medida com re­lação a medida. Em particular, ele acentua que o limite é o que faz cessar as relações de oposição do indeterminado o do ilimitado, intro­duzindo o número e, desta maneira, comensurando e proporcionando, e insiste em que isso é o que elimina o excesso, produzindo justamen­te medida e proporção. Trata-se, evidentemente, dos vários modos com os quais o Uno, em vários níveis e de diversas maneiras exerce a sua função de princípio, determinante e último. E aqui Platão é levado mesmo a afirmar expressamente que o limite “é o Uno por natureza”.

3) O misto de ilimitado e de limite mostra-se, pois, conseqüen­temente, o que é comensurado e proporcionado (o efeito da ação do peras sobre o apeiron) como, por exemplo, a saúde, o vigor físico, a música, as estações do ano, todas as coisas belas e, particularmente, as que têm lugar nas nossas almas. E Platão esclarece ulteriormente que o misto é um “caminhar para o ser”, ou seja, um assumir o Uno da parte do múltiplo indeterminado e, portan­to, é a unidade que deriva das medidas produzidas pelo peras sobre o apeiron e, portanto, uma unidade-na-multiplicidade.

4) Enquanto no mundo das Idéias essa “mistura” é eterna (acontece desde sempre e para sempre) na medida em que, no plano do mundo inteligível não é necessária, em razão da estrutura bipolar dos Princí­pios, uma causa ulterior que garanta a mistura estrutural do limite e do ilimitado, no mundo do vir-a-ser e em tudo aquilo que implica “gera­ção” é necessária uma causa eficiente produtora dessa “mistura”, e essa é Inteligência em todos os seus níveis. Em particular, a mistura do cosmo físico em geral e das coisas nele contidas em particular implica uma Inteligência cósmica, ou seja, o Demiurgo (o Artífice) universal, assim como as artes e os produtos da atividade do homem implicam a inteligência do homem

Chegamos, assim, ao terceiro dos pontos acima indicados, con­tido nas conclusões do diálogo. Depois de ter-nos dito (nas passagens que interpretamos) com uma série verdadeiramente impressionante de alusões que o Bem é o Uno, nesse trecho metafísico conclusivo Platão avança até explicar que no vértice de todos os valores está a Medida e que dela derivam todos os valores. Já Pohlenz observava muito bem a esse respeito: “[...] por Medida Platão entende, de fato, o Absoluto, e escolhe essa determinação porque o Absoluto inclui em si não apenas o Bem em sentido finalista, mas também o Belo e, portanto, um princípio de ordem e proporção e constitui a causa primeira do seu existir concreto e a norma da sua mistura exata”. Ora, conhecemos pela tradição indireta que a Medida suprema é a própria natureza do Uno (em sentido metafísico) e como no Filebo Platão volta a dizer por meio de alusões que chegam quase a revelações, ao pôr a Medida no vértice de todos os valores.

Dessa maneira, confirma-se em todos os sentidos que Platão nos seus escritos, como o oráculo de Delfos, “não afirma nem esconde, mas se faz compreender por sinais”. Mas a explicitação desses si­nais (que é muito forte no Filebó) é ainda hoje possível para nós mediante a ajuda e o “socorro” fornecidos pela tradição indireta; e é possível senão totalmente, ao menos nos seus traços essenciais, de maneira verdadeiramente notável.

É esse justamente o modo mais significativo e mais construtivo para ler e compreender Platão, modo que desde já se impõe nos níveis mais elevados das pesquisas hoje em curso.

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3/3/2022 1:46:10 PM | Por Giovanni Reale
O diálogo Parmênides e sua significação no sistema de Platão

Outro diálogo que recebe muita clareza com a nova interpretação de Platão é o Parmênides, um dos mais célebres e, ao mesmo tempo, o mais supervalorizado ou subvalorizado. Com efeito, foram apresen­tadas numerosas interpretações desse diálogo que vão desde aquelas que nele vêem a summa mais notável da metafísica e da dialética de Platão até aquelas que, ao contrário, vêem nele um simples exercício escolástico e até com um abundante “mataga! lógico”; e quase todas caíram nos excessos do muito e do muito pouco.

O esquema correto para a releitura do Parmênides é o seguinte: nesse diálogo Platão avança muito ao discorrer sobre o que diz res­peito ao vértice da metafísica, isto é, aos Princípios, dos quais revela até mesmo a estrutura bipolar; todavia, ele não revela de maneira alguma a dialética na sua inteireza e, sobretudo, não revela, a não ser muito parcialmente, a essência desses Princípios e os seus nexos fundacionais. Em particular, Platão silencia até sobre os nexos fundacionais axiológicos (não fala absolutamente do Bem). E isto está em perfeita coerência com os personagens escolhidos (isto é, os eleatas) e com os seus interesses que não se voltavam para a proble­mática do Bem.

Se examinarmos atentamente o esquema teórico do diálogo e o reduzirmos às suas linhas essenciais, notaremos que ele retoma exa­tamente as linhas da carta metafísica do Fédon: do plano do sensível se deve passar ao plano do inteligível, conquistando primeiro a dou­trina das Idéias e, depois, a doutrina dos Princípios.

1) Na primeira parte, que se tornou muito famosa, são expostos a interpretação e o quadro geral da dialética zenoniana. Em resumo, nela se explica como os célebres argumentos zenonianos pretendiam ser uma prova de reforço às teses de Parmênides. Este afirmava que o Todo é o Uno (ou seja, afirmava a unidade e unicidade do ser); e os adversários da afirmação “o Uno é” deduziam toda uma série de conseqüências absurdas, contrárias à tese de maneira sistemática e, portanto, próprias para destruí-la. Pois bem, no seu escrito, Zenão pagava na mesma moeda aos adversários de Parmênides, mostrando como a hipótese dos adversários que sustentavam ao contrário, que “os muitos são” (e, portanto, que o Uno não é) comportava conse­qüências ainda mais absurdas do que a hipótese de Parmênides. Por conseguinte, a prova da impossibilidade da tese “pluralística”, oposta à “monística” de Parmênides, tornava-se uma confirmação dialética do próprio monismo.

2) Na segunda parte, Sócrates apresenta a teoria das Idéias, es­truturalmente múltiplas. Portanto, o diálogo defende a multiplicidade, mas deslocando-se a um outro plano com respeito aos pluralistas, adversários dos eleatas. Com efeito, esses últimos moviam-se no plano do sensível enquanto Platão, no nosso escrito, move-se no plano que foi alcançado com a “segunda navegação”, isto é, o plano do inteligível. Ora, já o sabemos, todas as contradições do múltiplo sensí­vel são resolvidas e superadas exatamente com a doutrina das Idéias. A participação das coisas às Idéias explica todas as contradições que acaso se encontrem no plano do múltiplo sensível. Seria bastante grave se as contradições assinaladas no âmbito do múltiplo sensível se reapresentassem na mesma forma ou em forma análoga no novo plano das Idéias, isto é, também no plano da pluralidade inteligível. É justamente sobre esse problema que Platão chama firmemente a atenção.

Esse desafio socrático provoca a intervenção do próprio Parmênides, o qual assume pessoalmente o ônus da confutação. Note-se que, nesse ponto, a dialética eleática se desloca, com uma própria e verdadeira metábase, para o plano conquistado pela “segunda navegação” platônica. Todavia, na primeira escaramuça, a dialética de Parmênides limita-se a salientar aporias, ou seja, dificuldades e contradições presentes na própria teoria das Idéias (enquanto na terceira parte se desdobrará em todo o seu poder e alcance, avançando até o nível dos Princípios supremos). As aporias levantadas por Parmênides contra a teoria das Idéias são sete, e algumas delas eram já evidentemente muito difundidas na época da composição do diálo­go (algumas das principais retornam também na Metafísica de Aris­tóteles, e por isso tornaram-se muito famosas). Poder-se-ia dizer que essas críticas em geral, e justamente as que aparecem como as mais temerosas, nascem de um clamoroso erro de base: tratam das Idéias, introduzidas por Platão como “causas”, da mesma maneira que as coisas das quais são causas, ou seja, rebaixando a causa ao mes­mo nível dos causados, com todas as conseqüências que esse erro comporta, em particular com incompreensão total da transcendência das Idéias em sentido metafísico. A resposta de Platão está contida na terceira parte; mas já no fim da segunda parte ele adianta as se­guintes observações: a) é preciso um espírito privilegiado para com­preender a teoria das Idéias (o que quer dizer que essa está longe de ser conhecida por muitos) e é preciso um ainda mais privilegiado pa­ra saber ensiná-la e sabê-la comunicar aos outros; b) a teoria das Idéias faz surgir aporias, mas, se a eliminarmos, eliminaremos o próprio pensamento e a própria dialética; e com isso se daria cabo à filosofia.

3) Abre-se, assim, a terceira parte do diálogo (a mais longa e a mais complexa). Esta parte tem uma espécie de prólogo de caráter metodológico e programático, que revela uma grande parte dos fins perseguidos por Platão. No entanto é dito que o exercício dialético (aquele exercício de longa duração e de grande empenho que Platão prescrevia na Academia) é a condição para não cair nas aporias que examinamos e para resolvê-las. E não será certamente o velho exer­cício dialético realizado no plano físico pelos eleatas, mas um novo exercício realizado no plano conquistado por aquela que o Fédon chama “segunda navegação”, a saber a dialética no nível do mundo inteligível. É retomado, pois, em novo plano, o esquema dicotômico da dialética de Zenão operando uma autêntica metábase, conseguida já em parte com a teoria das Idéias. Deve-se pôr a hipótese da existência de uma Idéia, e ver em seguida quais são as conseqüências, considerando-a com relação a si mesma e com relação ao seu contrário; logo se deve pôr também a hipótese de que aquela Idéia não exista e se deve verificar analogamente quais são as conseqüências, considerando-a na sua relação a si mesma e na relação ao seu oposto. Isso deve ser feito não somente para o Uno e para os Muitos, mas, igualmente, para as Ideias de semelhante e dessemelhante, de movimento e de repouso, de ser e não-ser e assim por diante.

Depois de ter aceitado a discussão, Parmênides começa pela hi­pótese sobre a qual se funda a sua própria filosofia (que Platão enten­de em sentido rigorosamente monístico), ou seja, da hipótese “se o Uno é”. Sobre o fundamento do esquema geral proposto, serão exa­minadas, a partir dessa hipótese, as conseqüências dialéticas referen­tes justamente ao próprio Uno e ao Outro com respeito ao Uno, e ainda as conseqüências que derivam para cada um deles, considera­dos seja em si, seja reciprocamente; em seguida será examinada a hipótese oposta, seguindo os mesmos passos lógicos. Assim serão obtidas oito hipóteses apresentadas como pontas antitéticas de quatro antinomias.

O exame dialético de cada uma dessas oito hipóteses conduz a resultados positivos e a resultados negativos que se alternam, ou seja, que do Uno não se pode dizer nada e se pode dizer tudo; também do Outro com respeito ao Uno analogamente não se pode dizer nada e se pode dizer tudo. Poderia parecer, a uma leitura superficial, que tão trabalhoso exercício deva concluir-se com um laboriosíssimo zero, isto é, de maneira totalmente negativa. Na verdade não é assim. Não se mantêm absolutamente as hipóteses que supõem uma contraposição e uma cisão radical do Uno e do Outro com respeito ao Uno, ou então que negam o Uno ou o Outro com relação ao Uno. Mantêm-se, sim, e dão origem a aporias superáveis, as hipóteses que supõem uma relação estrutural entre o Uno e o Outro com relação ao Uno (os muitos). Em particular, Platão faz ver ao menos algumas das suas cartas mais significativas, falando do Uno que “participa” do Outro, entendido como multiplicidade infinita, e aludindo à função de limite do Uno.

O núcleo teórico do diálogo acaba sendo o seguinte: a concepção monista dos eleatas não se sustenta porque cai em aporias insuperá­veis; também não se sustenta uma posição simplesmente pluralista (como, por exemplo, a atomística). Entre monismo e pluralismo exis­te, porém, uma via média sintética, aquela que admite uma estrutura polar, ou melhor, bipolar do real, estrutura que se refere a dois Princípios — O Uno e o Múltiplo indefinito (Díade) —, de tal sorte que um não é sem o outro e vice-versa, ou seja, a dois Princípios que se mostram indissoluvelmente ligados. Em particular, tal concepção dos dois Princípios supremos e da sua participação estrutural lança uma luz completamente nova sobre a teoria das Idéias. A relação entre as Idéias e as coisas sensíveis deve ser reexaminada à luz da estrutura bipolar da Unidade e da Multiplicidade. E com essa con­cepção o plano sobre o qual se fundam as aporias da segunda parte fica inteiramente modificado.

Assim interpretado, o Parmênides — que sempre foi uma espé­cie de pomo de discórdia no que diz respeito à exegese de Platão, na medida em que, de fato, é um escrito repleto de elementos e tons esotéricos, em razão do seu conteúdo e dos próprios personagens que nele comparecem — torna-se grandemente significativo e verdadeira­mente claro na sua mensagem fundamental.

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2/14/2022 1:10:52 PM | Por Giovanni Reale
A ontologia no diálogo Sofista e a metáfora do parricídio de Parmênides no sistema de Platão

O Sofista tornou-se muito famoso na história da ontologia, não tanto pela sua temática de fundo, que diz respeito à natureza e à arte do “sofista” (diferenciada radicalmente da do filósofo) quanto pelo lugar “clássico” no qual se discute acerca do ser e de algumas Idéias supremas e se opera uma reviravolta numa tese fundamental do eleatismo, realizando um “parricídio” de Parmênides, como abaixo veremos. Por essas razões, o diálogo foi supervalorizado, na medida em que se pensou que Platão tratasse aqui dos conceitos metafísicos úl­timos e supremos. Na verdade, o primeiro a induzir os intérpretes nesse erro foi Plotino, o qual, em páginas célebres das Enéadas, apresentou as Idéias tratadas no Sofista como uma lista exaustiva dos universais supremos e, portanto, como a tabela das categorias do mundo inteligível. Ao invés, como resultou de estudos modernos mais cuidadosos, Platão diz claramente que escolhe somente “algu­mas das Idéias dentre as que são consideradas as maiores. Por con­seguinte, Platão realiza uma “escolha" exata das Idéias que lhe inte­ressam com o fim de desenvolver o tema específico do “sofista”; assim a trama da totalidade das Idéias é deixada de fora do discurso.

Uma vez esclarecido esse ponto, vejamos qual seja o nexo dia­lético que liga esses gêneros generalíssimos (ou Meta-idéias) escolhi­dos no Sofista em vista do desenvolvimento do seu tema peculiar.

Platão parte das três Idéias seguintes: “Ser”, “Repouso”, “Movi­mento”. Entre essas duas últimas subsiste uma relação negativa, por­ que uma não participa da outra. Ao contrário, a Idéia do Ser tem relações de participação positiva com as duas outras, na medida em que o Repouso “é” e o Movimento também “é”. Mas essas três Idéias, justamente pelo fato de serem três, devem ser cada uma diversa da  outra e, ao mesmo tempo, cada uma idêntica a si mesma. Temos, assim, duas outras Idéias gerais, o “Idêntico” e o “Diverso”.

Desta sorte, obtivemos cinco Idéias generalíssimas. E eis o nexo dialético que as liga e que Taylor enfatiza de maneira sintética: “Movimento não é repouso nem repouso é movimento. Mas ambos são e são idênticos a si mesmos e, portanto, ‘participam’ [...] de ser e identidade e, também, já que cada um é diferente do outro, da diferença. Por conseguinte podemos dizer, por exemplo, que o movi­mento é: é movimento; mas também que não é: não é repouso. Mas, da mesma maneira, podemos dizer que o movimento ‘participa’ do ser e, portanto, é: há uma coisa que é o movimento; no entanto movimento não é idêntico a ser e, nesse sentido podemos dizer que ele não é, vale dizer, que é não-ser. Com o mesmo procedimento se demonstra que é possível afirmar o ‘não-ser’ de todas as cinco idéias acima referidas, e até do próprio ser, uma vez que cada uma delas é diferente das outras e, assim, não é nenhuma das outras”. Desco­briu-se, assim, o que se procurava. Falamos do “não-ser” em dois sentidos muito diferentes: a) ora o entendemos como contraditório do ser (ou seja, como negação do ser); b) ora, ao invés, o entendemos não como contrário, mas como diverso do ser. a) No primeiro senti­do, o não-ser não pode existir (porque não pode existir o que é ne­gação do ser); b) ao contrário, no segundo caso pode existir porque possui uma sua natureza específica (a natureza da alteridade).

Cumpre-se, desta maneira, o que o próprio Platão chamou o “parricídio” de Parmênides. Com efeito, nesse diálogo Platão se dis­farça de Estrangeiro de Eléia (isto é, eleata), para depois transgredir o mandamento supremo de Parmênides, segundo o qual o não-ser não é. Ao contrário, diz textualmente Platão-Estrangeiro de Eléia: o não-ser é, se entendido exatamente no sentido de “Diverso”. Eis a página na qual Platão apresenta o “parricídio” de Parmênides:

Estrangeiro — Mas faço-te ainda um pedido insistente.

Teeteto — Qual?

Estrangeiro — Que não penses ter-me eu tornado um parricida.

Teeteto — Como assim?

Estrangeiro — Porque, para defender-nos será necessário que subme­tamos a exame a tese de nosso pai Parmênides e que obriguemos o não-ser sob certo aspecto a ser e o ser, por sua vez, sob certo aspecto a não-ser. 

Teeteto — Parece-me que em torno desse ponto deveremos lutar no nosso discurso.

Estrangeiro — E como não seria isso evidente, como se costuma dizer, até para um cego? Com efeito, enquanto essas proposições não forem ou aprovadas ou refutadas, não poderemos falar de raciocínios falsos ou de opiniões, ou de imagens, de cópias, de imitações ou de simulacros ou de artes que se ocupam dessas coisas sem parecermos ridículos, pois seremos obriga­dos a falar de coisas que se contradizem a si mesmas.

Teeteto — É bem verdade.

Estrangeiro — Logo, por essas razões, devemos ter a coragem de atacar agora a tese paterna; ou então devemos simplesmente deixar tudo de lado, se acaso algo nos coíbe a esse respeito.

E eis a página (que se tornou verdadeiramente das mais célebres na história da ontologia) na qual acontece o “parricídio” de Parmênides exatamente no plano ontológico:

Teeteto — Mas nada absolutamente nos coíbe!

Estrangeiro — Portanto, como parece, a mútua oposição de uma parte da natureza do outro e da natureza do ser não é, por assim dizer, menos ser que o próprio ser, pois não significa um contrário do ser, mas simplesmente algo diverso com relação a ele.

Teeteto — É muito claro.

Estrangeiro — E como deveremos denominá-la?

Teeteto — É evidente que se trata do não-ser que procurávamos a propósito do sofista.

Estrangeiro — Assim, como disseste, o outro com respeito ao ser não é mais deficiente em ser do que qualquer outro gênero? É preciso ousar dizer que o não-ser possui firmemente a sua própria natureza. E como vimos que o grande é grande e o belo é belo, e o não-grande é não-grande e o não-belo é não-belo, assim, pela mesma razão, também o não-ser era e é não-ser, a saber uma Idéia una que entra no número da multidão das Idéias? Ou então, Teeteto, temos ainda alguma dúvida a respeito?

Teeteto — Nenhuma dúvida

Estrangeiro — Sabes então, que desafiando Parmênides fomos muito além dos limites da sua proibição?

Teeteto — Como assim?

Estrangeiro — Porque avançamos na nossa pesquisa muito além do que ele nos permitia e contra ele fizemos nossas demonstrações.

Teeteto — De que modo?

Estrangeiro — Porque em algum lugar ele diz:

“Tu não obrigarás nunca o não-ser a ser
Mas desse caminho afasta o teu pensamento”

Teeteto — É verdade que ele assim fala.

Estrangeiro —Nós, ao contrário, não só mostramos que o não-ser é, mas mostramos também qual seja a forma do não-ser. Com efeito, depois de ter mostrado que a natureza do não-ser é, e que se estende a todos os seres nas suas relações mútuas, ousamos dizer que cada parte dessa natureza que é oposta ao ser é verdadeiramente o não-ser.

Teeteto — Sem sombra de dúvida, estrangeiro, o que dissemos é muito verdadeiro.

Estrangeiro — Mas que não se venha dizer termos nós ousado afirmar que o não-ser é, quando dissemos que ele é o contrário do ser. Com efeito, há muito demos adeus a um contrário do ser, seja ele ou não seja, tenha algo de razão ou seja totalmente irracional. Quanto ao que acabamos de dizer, a saber, que o não-ser é, ou que alguém nos convença de que erramos e nos refute, ou então, enquanto não for capaz disso, que diga como nós dizemos, que os gêneros se misturam entre si e que ser e outro penetram através de todos os gêneros e um no outro, e que o outro, participando do ser, é, mas não é, em razão dessa participação, aquilo do qual participa, mas é outro; e sendo outro com relação ao ser será necessariamente não-ser. E sendo o ser, por sua vez, participante do outro, deverá ser outro com relação aos outros gêneros. E sendo outro com relação a todos eles não é nenhum deles nem é todos os outros juntos menos ele mesmo. Logo, o ser, por sua vez, não é inumeráveis vezes, e assim todos os outros gêneros, cada um separadamen­te e todos juntos, sob muitos aspectos são e sob muitos aspectos não são.

Teeteto — E verdade1.

O “parricídio” de Parmênides não acontece, porém, somente na perspectiva ontológica, isto é, no campo da discussão dos conceitos de ser e não-ser e, em particular, por causa da aceitação desse último, como normalmente se pensa. Com efeito, Platão invoca a temática henológica do Uno e dos Princípios primeiros e indica igualmente a necessidade de admitir a estrutura hierárquica do ser. De resto, já no  diálogo Parmênides, pondo nos lábios do grande eleata aquele notá­vel exercício dialético que, como vimos, orienta-se para tornar evi­dente esse “polarismo”, Platão obrigara Parmênides a se “matar”, justamente com evidenciar tal “polarismo” que opera uma reviravolta radical no monismo eleático. Mas eis como, logo depois de ter falado do “parricídio” de Parmênides, Platão submete a um ataque as “conclusões” do pai. Ele não parte das discussões em torno ao não-ser, mas justamente da discussão em torno ao próprio ser e à sua estrutura e, em particular, à impossibilidade de se sustentar a concepção do ser-uno no sentido monístico-eleático:

Estrangeiro — Parece-me que com muita desenvoltura Parmênides dis­corra conosco, e assim também quem quer que se abalance a definir quantos são os seres e quais sejam.2

Eis as aporias das quais Parmênides não consegue sair identifi­cando o Ser com o Uno e com o Todo.

a) “Ser” e “Uno” são dois nomes; mas, admitir dois nomes desde que se admita somente o Uno é contraditório. Mas será com­pletamente absurdo admitir que um nome seja porque, se ele é dife­rente (enquanto nome) da coisa que exprime, com ela constituirá juntamente um dois (uma coisa é o nome, uma segunda coisa aquilo que o nome indica). Por conseguinte, o monismo absoluto, para ser coerente, deverá englobar na unidade também o nome.

b) Mas a posição dos eleatas implica ulteriores complicações na medida em que fazem coincidir o Uno com o Todo. Com efeito Parmênides, identificando o Todo com uma esfera, acaba atribuindo-lhe, por conseqüência necessária, um centro e os extremos e, portan­to, “partes”. Ora, o que possui partes pode participar do Uno, mas não pode ser por si o Uno; com efeito, o Uno enquanto tal é indivisível e, portanto, está acima das partes. Nem se pode, com Parmênides, identificar em geral Ser, Uno e Todo, porque cada um deles tem uma natureza própria e distinta: o Ser participa do Uno e, portanto não é o Uno; o Todo é algo mais do que o Uno, enquanto contém tanto o Ser quanto o Uno.

Esse texto contém o “parricídio” de Parmênides no plano da henologia na nova dimensão alcançada por Platão e revela o seguin­te. a) O Uno em sentido primeiro é absolutamente indivisível e, por­tanto, absolutamente simples, b) O que tem partes pode ter unidade, mas somente por participação no Uno. c) O Ser participa do Uno, mas não coincide com o Uno (o Uno está acima do Ser e do Uno depende o Ser), d) O Inteiro não coincide nem com o Ser nem com o Uno, mas constitui, num certo sentido, o horizonte que os inclui, e) E já que o Ser não coincide com o Inteiro porque implica fora de si o Uno do qual participa, o Ser não é por si mesmo a completude e incluirá o Não-ser (entenda-se, no sentido explicado pelo nosso diálogo, ou seja, a diversidade); em particular, o Ser não é o Uno.

Trata-se, como se vê, de alguns motivos protológicos de impor­tância fundamental, mesmo se Platão os dilui de várias maneiras com aquele tom “jocoso” que, para ele, o escrito enquanto tal exigia.

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1/9/2022 4:49:30 PM | Por Giovanni Reale
A tentativa de classificar o sistema filosófico de Platão

Seguindo a linha desse novo modelo de interpretação de Platão, é possível resolver toda uma série de problemas, até agora sem solução. O maior problema que ocupou os intérpretes de Platão desde a antigüidade até hoje consiste na reconstrução da unidade do pensa­mento platônico e em alcançar uma visão sintética e orgânica que ordene o complexo material conceituai que os diálogos nos oferecem, no qual se entrecruzam perspectivas múltiplas de gênero diverso, instâncias aporéticas e problemáticas, referências a dimensões dife­rentes, disfarces irônicos muitas vezes desconcertantes, provocações surpreendentes. Leibniz, que viveu numa época na qual a plurissecular interpretação neoplatônica (que se mantivera prevalentemente sobre a base de uma leitura alegórica dos diálogos) estava já em processo de radical dissolução, escrevia: “Se alguém reduzisse Platão a um siste­ma prestaria um grande serviço ao gênero humano"'.

É esse justamente, na verdade, o grande enigma que é preciso resolver para se poder penetrar o pensamento platônico e para compreendê-lo profundamente.

Pois bem, a tradição indireta, na medida em que nos revela quais fossem para Platão os fundamentos supremos do real e em que nos indica os nexos que unem todas as realidades ao Princípio supremo, preenche em boa parte essa lacuna que os diálogos apresentam e ajuda a resolver o enigma. Com efeito, de quanto se depreende dos testemunhos que chegaram até nós, não há dúvida de que Platão tivesse em vista apresentar um sistema capaz de abarcar o real na sua inteireza e nas suas partes essenciais. E, não obstante esses testemu­nhos sejam incompletos e muito sintéticos, eles nos permitem recons­truir as linhas essenciais e os nexos estruturais de tal sistema. Mas, já que essa descoberta torna obsoletas de um só golpe toda uma série de interpretações que foram dadas de Platão (e, de modo particular, as interpretações de tipo cético, problematicista, existencialista e anti-metafísico), é necessário determinar exatamente em que sentido se deva entender o termo “sistema” referido ao pensamento de Platão. Não se deve entendê-lo em sentido hegeliano ou neo-idealista, mas sim naquele sentido que, desde as suas origens com os pré-socráticos, a filosofia grega revelou como traço definitivo e como propriedade essencial do pensamento filosófico. Explicar significa unificar, em função de conceitos de base que implicam um vínculo estrutural entre si e que se referem a um conceito supremo que os engloba. Portanto, “sistema” é uma conexão orgânica de conceitos em função de um conceito-chave (ou de alguns conceitos-chave). Naturalmente, enten­dido dessa maneira, o “sistema” não tem nada a ver com rigidez sistematizante e estreitezas dogmáticas, mas apresenta-se como um projeto do eixo de sustentação principal das pesquisas, dos eixos de sustentação com ele conexos e das suas implicações.

Parece-nos exato o que Krämer explicou a esse respeito: “[...] o projeto era considerado elástico e flexível e estava aberto fundamen­talmente a ampliações, seja no conjunto, seja em pormenores. Pode-se falar, pois, de uma instância, não dogmática, mas heurística que permaneceu mesmo em alguns pontos particulares em estado de es­boço e, portanto, de sistema aberto; porém, não certamente de um anti-sistema de fragmentos de teorias sem conexões exatas. Ao invés, deve-se levar certamente em conta a tendência à totalização e a um projeto geral coerente e consistente”. Por sua vez, Gaiser insiste de maneira análoga: “Com a qualificação de ‘sistemática’ quero dizer que com esta teoria se tinha em vista e se punha por obra uma com­posição completa, uma síntese universal, um apanhado especulativo sinótico de cada conhecimento adquirido em todos os âmbitos possí­veis do real. Essa qualificação porém, não quer dizer que se tratasse de um complexo de proposições rigidamente fechado, escolástico, estabelecido de uma vez por todas. Há até hoje em cada ciência, e isso vale para a ontologia no seu conjunto, o tipo do sistema vivente-dinâmico que é ‘aberto’ na medida em que procura representar a realidade sempre e somente de modo hipotético e dialético. Compre­endido corretamente, o sistema platônico não exclui, antes acolhe um constante desenvolvimento ulterior: mesmo se a concepção funda­mental, semelhante a um núcleo de cristalização, permaneceu sem mudança por longo tempo, era sempre possível integrar novos conhe­cimentos singulares no sistema complexivo”.

A tradição indireta, revelando-nos as linhas essenciais das “Dou­trinas não-escritas” e oferecendo-nos aquele plus que falta nos diálo­gos, faz-nos conhecer justamente o eixo de sustentação (o conceito supremo ou os conceitos supremos) que organiza e unifica de modo notável os vários conceitos apresentados pelos diálogos.

A questão da ironia e sua função nos diálogos platônicos

O que foi dito por Leibniz a propósito do problema da reconstru­ção do sistema platônico, Goethe repetia-o com razão e com palavras semelhantes a respeito da ironia: “Quem soubesse explicar-nos que coisa homens como Platão disseram com seriedade, por brincadeira ou de modo meio brincalhão, e o que disseram por convicção ou então simplesmente por modo de dizer, certamente nos prestaria um serviço extraordinário e traria uma contribuição infinitamente valiosa à nossa cultura”.

Na realidade, juntamente com o diálogo socrático, Platão devia retomar também a “ironia” e introduzi-la nos seus escritos como um constitutivo essencial, com todas as dificuldades e com todos os pro­blemas que ela traz consigo. Em Sócrates, a ironia consistia num jogo hábil conduzido sobretudo com a máscara da ignorância em todas as suas variantes polimorfas e policrômicas, a fim de desmascarar a ignorância do presunçoso interlocutor. Como é sabido, no variado jogo das simulações, Sócrates chegava mesmo a fingir que acolhia idéias e métodos do adversário como se fossem dele e os levava ao extremo para poder fazer emergir facilmente os pontos débeis e refutá-los, algumas vezes fazendo uso da lógica própria àqueles métodos. Ora, em Platão encontramos ambos estes aspectos da ironia. O pri­meiro, porém, que é um tanto acentuado nos primeiros diálogos, pouco a pouco vai reduzindo o seu mordente e o seu alcance na medida em que os diálogos se enriquecem com conteúdos de doutri­na e na medida em que, neles, o momento construtivo prevalece sobre o momento aporético. Ao invés, o segundo tende a ampliar-se e a tornar-se sempre mais complexo, até atingir sua intensidade má­xima em diálogos muito importantes como, por exemplo, o Parmênides. É justamente esse aspecto da ironia platônica que dificulta a interpretação de certos diálogos, porque o filósofo não mostra expressa­mente reconhecível a ficção irônica como tal e muda de máscara sem nunca deixá-la cair. A ironia platônica tem um profundo valor meto­ dológico cujas raízes estão na maiêutica socrática: o leitor dos diálo­gos é envolvido nas invenções e no jogo das ficções com a finalidade de obter o seu empenho total e assim fazer saltar desde dentro a centelha da verdade.

Portanto, a ironia platônica nada tem a ver, como Jaspers justa­mente acentuou na sua reconstrução do pensamento platônico, com a visão niilista que segue o caminho da pura negação e coincide com o ridículo que fere e aniquila. Ao contrário, a ironia platônica implica a posse de algo positivo, que não é expresso diretamente com o fim de evitar a incompreensão de quem não é capaz de entender. “A ironia filosófica — escreve Jaspers — ao invés, é a expressão da certeza de um conteúdo originário. Perplexa diante da univocidade da necessidade racional e da multiplicidade dos significados que os fe­nômenos possuem, ela quereria captar o verdadeiro não falando, mas suscitando. Quereria dar um sinal da verdade escondida, enquan­to a ironia niilista é vazia. No torvelinho dos fenômenos, quereria levar, com um autêntico descobrimento, à presença inefável da sua verdade, enquanto a ironia vazia, através do torvelinho, nos faz cair no nada. A ironia filosófica é pudor de toda verdade direta. Ela impe­de toda incompreensão total imediata”. Com a sua ironia — diz ainda Jaspers — “parece que Platão tenha querido dizer: aqueles que não podem compreender devem compreender erradamente”.

Pois bem, acolhendo o novo modelo interpretativo, não poucos diálogos deixam de ser enigmas, e se pode compreender o que Platão disse de fato seriamente e por convicção. As indicações exatas que se extraem da tradição indireta lançam muita luz sobre muitos diálogos e, sobretudo, sobre as partes enigmáticas dos diálogos (que algumas vezes alcançam objetivamente os limites do não-decifrável) e ofere­cem a chave para compreender o jogo irônico, para fazer cair a máscara e para identificar de fato a mensagem filosófica platônica. Em todo caso, a interpretação pan-irônica dos diálogos platônicos à qual, ao fim e ao cabo, a ironia tudo arrasta, inclusive a si mesma, não se pode mais propor à luz da revalorização da tradição indireta, ao passo que o jogo irônico descobre afinal sua seriedade filosófica e seus fins construtivos.

A questão crucial da “evolução” do pensamento de Platão

A propósito da questão crucial da evolução do pensamento pla­tônico, Theodor Gomperz escrevia em fins do século XIX: “Concedamo-nos, por um momento, o luxo de um belo sonho. Supo­nhamos que um dos discípulos íntimos de Platão, por exemplo, seu sobrinho Espêusipo [...] tivesse feito o que não exigiria mais do que um quarto de hora dos seus ócios e que o teria tornado, de modo inestimável, benemérito da história da filosofia: isto é, que ele tivesse registrado sobre uma tabuinha a lista, por ordem de data, dos escritos do seu tio, e que uma cópia dessa lista tivesse chegado até nós. Nesse caso possuiríamos o melhor auxílio para o estudo do desenvolvimen­to espiritual de Platão”. Gomperz observa que isso não supriria a falta de um diário, de um rico epistolário, de notícias sobre as suas conversações; além disso, o ponto de vista diretivo que diz respeito ao desenvolvimento cronológico e o que diz respeito à continuidade dos conteúdos doutrinais disputariam sempre a primazia; todavia, um catálogo daquele tipo poderia resolver os maiores problemas, dado que o pensamento de Platão é um contínuo progredir.

Pois bem, essa convicção se considera hoje em parte superada sobre o fundamento das relações entre “escritura” e “oralidade” em Platão; em todo caso, ela é redimensionada segundo o modo estrutural. Mas, para entender bem esse problema e as soluções que hoje sempre mais se impõem, é necessário expor com exatidão alguns dos seus traços essenciais.

O conceito de “evolução” do pensamento de Platão foi introdu­zido por Hermann em 1839, numa obra que assinalou uma inflexão essencial nos estudos platônicos, articulando de maneira nova o modelo interpretativo proposto por Schleiermacher. A tese encontrou acolhi­da excepcional, e a concepção da evolução do pensamento platônico tornou-se um verdadeiro e próprio cânon hermenêutico, inclusive pelo fato de ter recebido algumas confirmações importantes apoiadas na aplicação do método da análise estilística e da estilística lingüística e ainda com o auxílio dos refinados métodos da filologia moderna.

O ponto de partida foram as Leis, que sabemos terem sido cer­tamente o último escrito de Platão. Com uma determinação acurada das características estilísticas dessa obra procurou-se estabelecer que escritos correspondessem a tais características. Daqui foi possível con­cluir (com o auxílio também de critérios colaterais de vários tipos), que os escritos do último período seguem provavelmente a seguinte ordem: Teeteto, Parmênides, Sofista, Político, Filebo, Timeu, Crítias, Leis. Ulteriormente foi possível estabelecer que a República pertence à fase central da produção platônica, sendo precedida pelo Banquete e pelo Fédon, e seguida pelo Fedro. Igualmente foi possível dar como certo que um grupo de diálogos representa o período de amadureci­mento e de passagem da fase juvenil a uma fase de maior originali­dade: o Górgias pertence verossimilmente ao período imediatamente anterior à primeira viagem à Itália, e o Mênon ao período imediatamente seguinte. A esse período de amadurecimento pertence prova­velmente também o Crátilo. O Protágoras é talvez a coroa da primei­ra atividade. Os outros diálogos, sobretudo os mais breves, são, com certeza, escritos da juventude, o que é confirmado pela temática es­pecificamente socrática neles discutida. Alguns deles podem ter sido retocados no período da maturidade.

Eis as conclusões que, do ponto de vista teorético e doutrinal, podem ser inferidas dessa ordem dos diálogos e que ilustram o esque­ma também por nós adotado no passado.

Primeiramente, Platão dedicou-se a uma problemática prevalentemente ética (ético-política), partindo exatamente da posição à qual Sócrates chegara. Em seguida, e justamente no aprofundar em todas as direções a problemática ético-política, ele compreendeu a necessi­dade de reavaliar as instâncias da filosofia da physis: entendeu que a justificação última da ética não pode provir da própria ética, mas somente de um conhecimento do ser e do cosmo do qual o homem é parte. Mas a recuperação das instâncias ontocosmológicas dos físi­cos deu-se de modo originalíssimo e, mais ainda, por meio de uma autêntica revolução do pensamento, com a descoberta do supra-sensível (do ser supra-físico). A descoberta do ser supra-sensível e das suas categorias desencadeou um processo de revisão de toda uma série de problemas antigos e deu origem, por outro lado, a toda uma série de novos problemas que Platão incansavelmente tematizou e aprofundou pouco a pouco nos diálogos da maturidade e da velhice. A conquista do conceito de supra-sensível deu novo sentido à psyché socrática e ao socrático “cuidado da alma”; deu um outro sentido ao homem e ao seu destino, um outro sentido à Divindade, ao cosmo e à verdade. Do alto dos horizontes alcançados com a descoberta do supra-sensível, Platão pôde harmonizar a antítese entre Heráclito e Parmênides, fundamentar a intuição teleológica de Anaxágoras, resol­ver muitas aporias do eleatismo, dar ao pitagorismo um novo sentido. Na fase da maturidade, as instâncias eleáticas tornaram-se mesmo de tal modo urgentes que não somente inspiraram todo um diálogo como o Parmênides, mas até levaram a uma substituição de Sócrates como protagonista. De fato, no Sofista e no Polí­tico, o verdadeiro protagonista será um Estrangeiro de Eléia. Finalmente, na fase da velhice, alçaram-se ao primeiro plano as instâncias pitagóricas (de resto, sempre presentes e ativas de muitos modos do (iGórgias em diante) a tal ponto que, na grande síntese final cosmo-ontológica do Timeu, Platão escolheu como protagonista exatamente o pitagórico Timeu. Segundo a maioria dos estudiosos (incluindo aqueles que primeiramente as tinham reavaliado), as “Doutrinas não-escritas” teriam levado a termo a parábola evolutiva de Platão.

Essa parábola típica que brevemente esboçamos tem, naturalmen­te, uma série de variantes (e até mesmo bastante notáveis) nos diversos intérpretes. Deve-se notar que muitos estudiosos acreditaram poder descobrir nos diálogos posteriores à República expressões de crises, de superações, de “autocríticas”, de “autocorreções” de diverso gênero do pensamento platônico originário, sobretudo no que diz respeito à doutrina central, ou seja, à doutrina das Idéias. Convém notar como o pro­blema das relações entre evolução e sistema foi resolvido de maneira diversa, a maioria das vezes com a tendência a conferir a primazia à evolução exatamente como cânon hermenêutico, com prejuízo do sistema, vale dizer, com prejuízo da unidade do pensamento platônico.

Ora, aceitando-se o novo modelo interpretativo, a reconstrução genética do pensamento platônico recebe, juntamente com todas as pretensões que ela acolhe, um redimensionamento drástico, porque justamente os pressupostos sobre os quais se apóia são submetidos a uma séria crítica. Será oportuno recordar em grandes linhas os pontos focais dessa questão.

  • Deve-se observar em primeiro lugar que o estudo dos diálogos platônicos em chave genética pode alcançar resultados merecedores de atenção no que diz respeito ao aspecto do Platão escritor, mas não, ao mesmo tempo, ao aspecto do Platão pensador. Com efeito, o es­critor Platão está longe de coincidir sistemática e globalmente com o pensador Platão, como fica claro do que acima foi dito e como se mostrará com exatidão a partir das observações a seguir.
  • A interpretação genética aplica, sem de nenhum modo demonstrá-lo, o princípio segundo o qual Platão possuía somente o nível de doutrina e de consciência teorética que exprime nos diálogos sucessivamente escritos.
  • As finalidades diversas e os diversos objetivos que inspiram os vários diálogos impõem, por razões de natureza estrutural, níveis diferentes de exposição doutrinal, ou seja, um mais ou um menos em quantidade e qualidade de doutrinas, que produz um espaçamento notável no jogo das inferências sobre as quais se apóia o método genético. Alguns diálogos, por exemplo, apresentam um conteúdo doutrinal menor simplesmente pelo fato de que eles têm em vista fins mais limitados com relação a outros, adaptando, além disso, esses fins à medida dos personagens.
  • Além disso, no Fedro Platão diz clara­mente que o momento de elaboração oral da doutrina vinha em pri­meiro lugar, e só em um segundo momento eram fixadas nos escritos as doutrinas (ou ao menos algumas dentre elas) estabelecidas através da discussão oral, e isso com propósitos hipomnemáticos. A esse respeito é fácil salientar uma mobilidade de limites entre escrito e não-escrito. Platão, com o passar dos anos, viu-se impelido a escrever sempre mais e deteve-se somente diante das “coisas de maior valor”, isto é, diante das doutrinas que deve­riam permanecer definitivamente “não-escritas”.
  • Ademais, ele fez uma série de referências a essas “Doutrinas não-escritas”, inequívocas para os leitores e os intérpretes que não estejam indevidamente munidos de pré-conceitos tradicionais.
  • Portanto, as conclusões são evidentes. Quando Platão compu­nha os diálogos, movia-se num horizonte de pensamento mais amplo do que aquele que ia fixando por escrito. A reavaliação correta da tradição indireta permite reconstruir, em boa medida, esse horizonte de pensamento. E uma vez comprovado que o núcleo essencial das “Doutrinas não-escritas” remonta a uma época muito anterior à que se pensava no passado, segue-se evidentemente que a questão da evolução do pensamento platônico será formulada de modo inteiramente novo, ou seja, exatamente sobre os fundamentos das relações entre a obra es­crita e o ensinamento oral, vale dizer, sobre os fundamentos das re­lações entre as duas tradições que chegaram até nós, levando-se em conta todas as circunstâncias acima indicadas.
  • Em todo caso, será necessário distinguir diferentes níveis da parábola evolutiva: o do Platão pensador; o do Platão escritor, em geral, e o da estrutura das relações entre escritura e oralidade que, em certa medida, pouco a pouco se estreitam.

“Mito” e “logos” em Platão

Outro problema de enorme alcance, ao lado dos que acabamos de examinar, é constituído pelo fato de Platão revalorizar o ‘mito ao lado do “logos” e, a partir do Górgias até os diálogos tardios, atribuir-lhe uma importância assaz notável

Como se explica isso? Como, afinal, a filosofia volta a retomar o mito do qual procurara, de várias maneiras, libertar-se? Trata-se de uma involução, de uma abdicação parcial da filosofia das suas prer­rogativas próprias, de uma renúncia à coerência ou, em último caso, de uma desconfiança de si? Em suma, qual o sentido do mito em Platão? As respostas a esse problema foram as mais diversas. As soluções extremas vieram de Hegel e da escola de Heidegger.

A propósito, Hegel escrevia: “O mito é uma forma de exposição que, na medida em que é mais antiga, suscita sempre imagens sensí­veis adaptadas à representação, não ao pensamento; mas isso atesta a impotência do pensamento que ainda não sabe manter-se por si mes­mo e, portanto, não é ainda pensamento livre. O mito faz parte da pedagogia do gênero humano porque estimula e atrai a ocupar-se do conteúdo. Mas, como o pensamento está nele contaminado com for­mas sensíveis, ele não pode exprimir o que o pensamento deseja expri­mir. Quando o conceito amadurece não tem necessidade de mitos”'. Portanto, o mito platônico pertenceria à forma exterior e à represen­tação; o conceito filosófico deve ser sempre separado do mito, pois só se mistura com ele quando ainda não está de todo amadurecido. Logo, o mito em Platão teria um valor (filosoficamente) negativo.

Ao invés, a escola de Heidegger chegou a conclusões diame­tralmente opostas. Ela apontou no mito a expressão mais autêntica da metafísica platônica; o logos, que domina na teoria das Idéias, mostra-se capaz de captar o ser, mas incapaz de explicar a vida: o mito vem em socorro justamente para explicar a vida e, de certa maneira, supera o logos e se faz mitologia. Na mitologia dever-se-ia procurar o sentido mais autêntico do platonismo".

Entre esses dois extremos situa-se, naturalmente, uma gama bas­tante variada de soluções intermediárias.

O problema, segundo o nosso parecer, só encontra solução se descobrirmos as razões exatas que levaram Platão a repropor o mito. E essas razões são identificáveis na revalorização de algumas teses fundamentais do orfismo e da sua tendência mística e, em geral, no poderoso afirmar-se da componente religiosa a partir do Górgias. Em suma, o mito em Platão renasce não apenas como expressão de fan­tasia, mas, antes, como expressão daquela que poderemos denominar fé (Platão usa no Fédon o termo esperança).

Com efeito, o discurso filosófico platônico sobre alguns temas escatológicos na maior parte dos diálogos, do Górgias em diante, torna-se uma espécie de fé acompanhada de razões: o mito procura um esclarecimento no logos, e o logos um complemento no mito. À força da “fé” que se explicita no mito Platão confia ora a tarefa de transportar e elevar o espírito humano a âmbitos e esferas de visões superiores que a razão dialética, sozinha, tem dificuldade em alcan­çar, mas que pode conquistar mediatamente; ora, ao invés, Platão confia à força do mito a tarefa, no momento em que a razão alcançou seus limites extremos, de superar intuitivamente esses limites e de coroar e completar esse esforço da razão, elevando o espírito a uma visão ou, ao menos, a uma tensão transcendente.

Eis o que responde expressamente Platão às negações racionalistas do valor do mito usado nesse sentido, dirigindo-se a Cálicles e aos campeões da sofística hiper-racionalista:

Essa estória (i.é, o mito de além-túmulo) parecerá a ti que seja uma dessas lendas que as velhinhas contam e a desprezarás; na verdade, não seria absurdo desprezar tais coisas se buscando (i.é, puramente com a razão) pudéssemos encontrar outras melhores e mais verdadeiras. Mas considera bem que vós três, que sois os mais sábios entre todos os gregos, tu, Polo e Górgias, não sabeis demonstrar que se deva viver uma vida diferente dessa vida que nos parece útil também do lado de lá1.

Além disso deve-se notar particularmente que o mito, do qual Platão faz uso metódico, é essencialmente diverso do mito pré-filosófico que ainda não conhecia o logos. Trata-se de um mito que não somente é expressão de fé, como dizíamos, mais do que de espanto fantástico, mas é igualmente, um mito que não subordina o logos a si, mas estimula o logos e o fecunda no sentido que já explicamos, sendo um mito que, em certo sentido, enriquece o logos. Em suma, é um mito que, ao ser criado, é despojado pelo logos dos seus ele­mentos puramente fantásticos para manter somente seus poderes alu­sivos e intuitivos. A exemplificação mais clara do que afirmamos encontra-se numa passagem do Fédon que segue imediatamente a narração de um dos mais grandiosos mitos escatológicos com que Platão procurou representar o destino das almas no além:

Sem dúvida, obstinar-se em pretender que essas coisas sejam exatamen­te como as descrevi não convém a um homem sensato; mas afirmar que isso ou algo parecido a isso aconteça com as nossas almas ou com as suas mo­radas, desde que se concluiu que a alma é imortal, eis o que me parece convenha e valha a pena arriscar a quem assim pense. Com efeito, o risco é belo e convém com essas crenças fazer um encantamento sobre si mesmo, é por essa razão que há tempos eu me demoro nesse mito2.

Mas o problema é ainda mais complexo na medida em que o mito em Platão apresenta outras significações além daquela ora consi­derada, ligada sobretudo a problemáticas escatológicas. Um segundo e notável significado é, com efeito, o de narração provável que diz respeito a todas as coisas sujeitas à geração. O logos, na sua pureza, pode aplicar-se apenas ao ser que não muda; ao contrário, ao ser mutável não se poderá aplicar o logos, mas a opinião verdadeira ou, justamente, o mito provável. Com efeito, explica Platão, entre o conhe­cimento e as coisas das quais temos conhecimento existe uma afini­dade estrutural. Os raciocínios e os discursos que têm por objeto o ser estável e firme são também estáveis e imutáveis e captam a ver­dade pura; ao contrário, os raciocínios e discursos que têm por objeto a realidade sujeita à geração são verossímeis e fundados na crença.

E eis o ponto ao qual se deve prestar bem atenção: exatamente na medida em que o cosmo em devir é uma “imagem” do ser puro, que é “modelo originário ”, ele é cognoscível de alguma maneira; e justamente sobre esse seu ser “imagem” funda-se o diferente alcance cognoscitivo com relação ao modelo.

As conclusões de Platão são, pois, as seguintes: com relação ao universo físico (que não é puro ser, mas a sua imagem), não é pos­sível fazer raciocínios veritativos em sentido absoluto, mas é possível fazer somente alguns raciocínios verossímeis. Nesse âmbito, a natu­reza humana deve contentar-se com o “mito”, no sentido de “narração provável”, pois, em razão da própria natureza do objeto da pesquisa, não é possível ir mais além:

Portanto, ó Sócrates, não te deves maravilhar se, depois de muitas coisas por muitos enunciadas em torno aos Deuses e à origem do universo, não conseguimos apresentar raciocínios exatos em tudo e por tudo coerentes com eles mesmos. Mas, se apresentarmos raciocínios verossímeis tanto como qual­ quer outro, então devemos ficar satisfeitos com eles, lembrando-nos de que tanto eu que falo quanto vós que julgais temos uma natureza humana; assim, acolhendo em torno a essas coisas o mito (narração) provável, convém que não avancemos além disso3.

Por conseguinte, toda a cosmologia e toda a física são, nesse sentido, “mito”.

Mas há outros significados do mito em Platão. Algumas vezes o nosso filósofo o apresenta mesmo com uma esconjura de caráter tipicamente mágico. Foi justamente salientado que, com isto, “ele pretende caracterizar a particular força persuasiva do discurso poético-mítico, que é capaz de alcançar não somente as camadas racionais, mas também as camadas emotivas da alma.

Mais ainda, em certos casos Platão entende por mito toda espécie de exposição narrativa de temas filosóficos que não tenha puramente a forma dialética (e, portanto, todos os seus diálogos ou grande parte dos mesmos).

O leitor terá compreendido a enorme importância do mito para Platão. Se quiséssemos resumir com um mínimo denominador co­mum o que acabamos de explicar, poderíamos dizer que, para o nosso filósofo, falar por mitos é um exprimir-se por ima­gens, o que permanece válido em vários níveis, na medida em que pensamos não só por conceitos, mas também por imagens.

O mito platônico na sua forma e no seu poder mais elevados é um pénsar-por-imagens não somente na dimensão físico-cosmológica, mas também na dimensão escatológica e mesmo metafísica, torna-se, dessa maneira, uma das cifras emblemáticas do espírito humano à qual Platão conferiu, de fato, amplo relevo.

O caráter poliédrico e polivalente da filosofia platônica

Ao compreender e expor a filosofia platônica, os intérpretes se­guiram, em geral, dois caminhos opostos. Alguns expuseram-na de maneira sistemática, inspirando-se em esquemas que prevaleceram de Aristóteles em diante ou, mesmo, no esquema hegeliano (como, por exemplo, Zeller, que organizou sua exposição do platonismo segundo o esquema dialético triádico Idéia-Natureza-Espírito). Outros, ao con­trário, depois da descoberta de critérios que permitiram fixar uma sucessão, ainda que aproximativa, dos diálogos mais importantes, e com a convicção de que o pensamento platônico tenha sofrido uma profunda evolução, da qual já falamos, preferiram expor cada diálogo separadamente. Mas o primeiro método acaba por transformai-se num leito de Procusto, na medida em que obriga a amputar numerosas partes do pensamento platônico, a fim de poder sistematizá-lo. O segundo, ao invés, acaba por ser essencialmente dispersivo e, no fim, em lugar de resolver, escamoteia o problema da leitura de Platão. Com efeito, para ser esclarecedora, a leitura de um filósofo deve individuar algumas cifras, algumas chaves e, em suma, algumas cons­tantes e as idéias de base em torno das quais elas giram. Procuraremos seguir uma terceira via que avança no meio das outras duas, tentando recuperar o “sistema” no sentido que acima foi explicado. Platão revelou pouco a pouco, no curso dos séculos, faces diversas: talvez seja justamente essa diversidade de faces que pode desvelar-lhe o pensamento.

  • Já a partir dos filósofos da Academia, começou-se a ler Platão em chave metafísica e gnosiológica, apontando na teoria das Idéias e dos Princípios supremos o fulcro do platonismo.
  • Em seguida, com o neoplatonismo, pensou-se encontrar a mensagem platônica mais autêntica na temática religiosa, na ânsia do divino e, em geral, na dimensão mística, temas intensamente presentes na maior parte dos diálogos.
  • Essas duas interpretações são as que perduraram de vá­rias maneiras até os tempos modernos, até que, no nosso século, surgiu uma terceira interpretação, original e sugestiva, que apontou a essência do platonismo na temática política, ou melhor, ético-político-educativa, temática transcurada no passado, ao menos no que diz respeito à sua justa importância.

Acreditamos que o verdadeiro Platão não se encontre em nenhu­ma dessas três perspectivas tomadas separadamente como sendo a única válida, mas deva encontrar-se, ao contrário, nas três direções juntamente e na dinâmica que lhes é própria. Com efeito, as três propostas de leitura iluminam três faces efetivas da poliédrica e polivalente especulação platônica, três dimensões ou três componen­tes ou, ainda, três linhas de força que constantemente vêm à tona, de cada escrito ou de todos juntos, acentuadas ou orientadas de diversas maneiras.

É certo que a teoria das Idéias, com todas as suas implicações metafísicas, lógicas e gnosiológicas, em particular nos diálogos da maturidade e da velhice, está no centro da especulação platônica. Mas é igualmente verdadeiro que Platão não é o metafísico abstrato: a metafísica das Idéias tem também um profundo sentido religioso e o próprio processo cognoscitivo é apresentado como conversão, sendo o Amor que eleva à Idéia suprema apresentado como força de ascen­são que conduz à contemplação mística. Finalmente, é verdade que Platão não fixou na contemplação o estádio no qual o filósofo deve acabar seu itinerário, uma vez que prescreveu ao filósofo, depois de ter visto o verdadeiro, voltar para salvar também os outros e para empenhar-se politicamente na construção de um Estado justo, dentro do qual é possível uma vida justa.

Todavia, o ponto-chave, ou seja, o eixo de sustentação em torno do qual essas três dimensões se articulam per­manece a protologia revelada nas “Doutrinas não-escritas”. Consignada à dimensão da oralidade e transmitida a nós pela tradição indireta, a protologia, em certo sentido, forma uma quarta dimensão. No en­tanto, em outro sentido, situa-se num plano diferente e, portanto, não está ao lado das outras em condições de igualdade; ela constitui o percurso final da metafísica, mas, ao mesmo tem­po, o vértice da dimensão ético-religiosa e da dimensão política. Portanto, a protologia é o vértice unitário geral, o que faz do com­plexo pensamento platônico um “sistema”, dando-lhe unidade de estrutura.

Filosofia - Filosofia Clássica
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1/8/2022 4:46:44 PM | Por Giovanni Reale
A superioridade da oralidade e o utilitarismo do texto escrito para Platão

É hoje convicção universal que Platão constitui o vértice mais alto atingido pelo pensamento antigo. Mais ainda, permanecendo no âmbito do pensamento antigo, verifica-se, de maneira surpreendente, que a filosofia platônica constitui o mais significativo eixo de susten­tação do modo de pensar dos gregos. O próprio Aristóteles depende estruturalmente de Platão e após a era helenística e durante seis sé­culos, tudo o que de mais significativo proveio dos gregos depende, direta ou indiretamente, de repensamentos e desenvolvimentos do pensamento de Platão. Sem contar a influência que Platão exerceu na antigüidade tardia sobre os Padres da Igreja, que, exatamente em Platão, foram buscar as mais importantes categorias metafísicas, a fim de elaborar e exprimir racionalmente a grande mensagem espiri­tual contida na fé dos cristãos. Em resumo, a filosofia de Platão foi, para usar uma terminologia moderna, por mais de um milênio, a mais “influente” e a mais estimulante.

Em certo sentido, o próprio Platão respondeu a esta pergunta: ele ensinou-nos a olhar a realidade com novos olhos (ou seja com a visão do espírito e da alma) e a interpretá-la em uma nova dimensão e com um novo método que recolhe todas as instâncias postas sucessivamen­te pela especulação precedente, fundindo-as e unificando-as, elevando-se a um novo plano de pesquisa alcançado com a que ele mesmo denominou a “segunda navegação”, metáfora ver­dadeiramente emblemática.

No entanto, antes de enfrentar este problema, é necessário resol­ver uma série de complexas questões preliminares, de caráter me­todológico e epistemológico, que se impõem em relação ao nosso filósofo mais do que em relação a qualquer outro dos pensadores antigos.

A primeira questão a ser tratada é a de compreender qual foi o critério com o qual (a partir dos inícios do século XIX) Platão foi lido e interpretado e por que motivos esse critério desgastou-se grande­mente, de sorte a doravante impor-se em larga medida um critério novo e alternativo.

Podemos resumir num raciocínio muito simples o critério tradi­cional.

  1. O texto escrito é, geralmente, a expressão mais plena e signi­ficativa do pensamento do seu autor; isto é verdade, em particular, no caso de Platão, dotado de extraordinárias capacidades, seja como pensador seja como escritor.
  2. Além disso, chegaram até nós todos os escritos que os antigos citam como sendo de Platão e que são considerados autênticos (caso praticamente único para os autores da era clássica).
  3. Por conseguinte, é possível extrair com segurança, de todos os seus escritos à nossa disposição, todo o seu pensamento.

Este raciocínio, que convenceu por tanto tempo a imensa maioria dos estudiosos, hoje mostra-se infundado e errado justamente na sua premissa maior, e está certo somente no segundo ponto, que perma­nece até hoje plenamente confirmado; mas, desfazendo-se a premissa maior, desfazem-se inteiramente também as conclusões e, por conse­guinte, todo o raciocínio. Com efeito, dois fatos importantes, que hoje vieram ao primeiro plano, desmentem o primeiro ponto, a) Nos autotestemunhos do Fedro, Platão diz expressamente que o filósofo não consigna por escrito as coisas de “maior valor”, que são justamente as que tornam um homem filósofo; e confirma largamente essa afirmação na Carta VII. b) Existe uma tradição indi­reta que atesta a existência de “Doutrinas não-escritas” de Platão e transmite seus principais conteúdos.

Por conseguinte, tanto Platão com as afirmações explícitas feitas sobre os seus escritos, como os seus discípulos que nos informaram da existência e dos principais conteúdos das “Doutrinas não-escritas” comprovam, de modo irrefutável, que os escritos não são para Platão a expressão plena e a comunicação mais significativa do seu pensa­mento e que, em conseqüência, mesmo possuindo nós todos os escri­tos de Platão, de todos esses escritos não podemos extrair todo o seu pensamento, e a leitura e a interpretação dos diálogos devem ser levadas a cabo numa nova ótica.
Examinemos, em primeiro lugar, esses dois importantes fatos que os estudos mais recentes trouxeram a plena luz e que impõem a necessidade de introduzir um critério novo e mais adequado para ler e compreender Platão.

O juízo de Platão sobre os escritos no “Fedro”

O modelo que constituiu o ponto de referência da maior parte dos estudos modernos sobre Platão formou-se em parte no decurso do século XVII, mas foi F. D. Schlciermacher que o consolidou e impôs no início do século XIX. A tese hermenêutica fundamental desse modelo está centrada na convicção da autonomia dos escritos platôni­cos, e sobre a pretensão de monopólio reivindicada a seu favor, com total (ou, ao menos, assaz significativo) prejuízo da tradição indireta, nela compreendida a que remonta aos discípulos imediatos que mui­tas vezes ouviram Platão e com ele viveram na Academia por longo tempo. No entanto, essa convicção é desmentida pelo próprio Platão no Fedro e na Carta VII, onde explica com a maior exatidão como os escritos devem ser entendidos de maneira limitada, pela razão de que não podem comunicar ao leitor algumas coisas essenciais, seja do ponto de vista do método, seja do ponto de vista do conteúdo.

Não deve surpreender-nos o fato de que o modelo do qual fala­mos tenha convencido os estudiosos por largo tempo e de modo avassalador, não obstante os autotestemunhos de Platão. A idade moderna é a expressão mais típica de uma cultura globalmente fun­dada sobre a escritura, considerada como o medium por excelência de toda forma de saber. Só nos últimos decênios nasceu e se difundiu largamente um tipo diferente de cultura fundado em vários tipos de comunicação audiovisual dos mass-media que levanta grandes pro­blemas quanto à função e natureza da própria comunicação. Vivemos hoje num tempo no qual ocorre o choque entre duas culturas, e isto torna-nos sensíveis à compreensão de uma situação análoga em certo sentido (embora diferente sob muitos pontos de vista) na qual Platão se encontrou e somente a partir da qual torna-se bem compreensível seu juízo sobre a escritura. Com efeito, Platão viveu em um momento no qual a dimensão da “oralidade”, que constituíra o eixo de susten­tação da cultura antiga, perdia importância em favor da dimensão da “escritura”, que se tornava predominante. Mais ainda, Platão experimentou o choque entre as duas culturas de modo bastante intenso e, sob certo aspecto, extremo: de um lado, teve como mestre Sócrates, que encarnou de maneira paradigmática e num sentido global o modelo da cultura fundada sobre a “oralidade”; de outro, captou poderosa­mente as instâncias dos defensores da cultura fundada na “escritura”, ele mesmo possuindo dotes de escritor dentre os maiores da antigüi­dade e de todos os tempos. Hoje, por conseguinte, estamos em condições de entender muito melhor do que no passado o sentido que pode ter o choque entre duas diferentes culturas e de entender por que um escritor tão notável pudesse convencer-se do alcance limitado da função comunicativa da “escritura”.

Estamos em condições de com­preender exatamente seus “autotestemunhos” contidos no Fedro, en­quanto no passado se tentou de várias maneiras reduzir sua densidade hermenêutica e mudar sua significação.

Na verdade, também no passado, um ou outro tinham compreen­dido que os autotestemunhos do Fedro deveriam ser tomados muito a sério. Tratou-se, porém, de casos isolados, enquanto a comunidade dos estudiosos seguiu outro caminho. Talvez o exemplo mais belo e significativo seja o que nos é oferecido nada menos do que por F. Nietzsche. Tomando posição justamente contra a tese de F. Schleiermacher, que sustentava serem os escritos o meio para condu­zir à ciência aquele que ainda não a possuía e, portanto, constituírem o meio que melhor se aproxima do ensinamento oral, Nietzsche es­crevia:

“Toda a hipótese [a saber, de Schleiermacher] está em contra­dição com a explicação que se encontra no Fedro, e se apóia numa falsa interpretação. Com efeito, Platão diz que o escrito possui a sua significação somente para aquele que já sabe, como meio de recurso à memória. Portanto, o escrito mais perfeito deve imitar a forma do ensinamento oral exatamente com o fim de fazer lembrar o modo como aquele que conhece tornou-se cognoscente. O escrito deve ser ‘um tesouro para o recurso à memória’ para quem escreve e para seus companheiros filósofos. Ao invés, para Schleiermacher o escrito deve ser o meio que é o melhor em segundo grau para conduzir aquele que não sabe ao saber. A totalidade dos escritos tem uma finalidade geral própria de ensino e de educação. Mas, de acordo com Platão, o es­crito em geral não tem uma finalidade de ensino e de educação, e sim a finalidade de avivar a memória daquele que já é educado e já possui o conhecimento. A explicação da passagem do Fedro pressu­põe a existência da Academia, e os escritos são meios para ajudar a memória daqueles que são membros da Academia”1.

Nietzsche tinha razão, e os estudos mais recentes o demonstra­ram em todos os pormenores; mais ainda, a passagem do Fedro afir­ma sem rodeios que o filósofo só é verdadeiramente tal tão-somente e na medida em que não confia aos escritos, e sim ao discurso oral “as coisas de maior valor”. Eis o raciocínio de Platão, muito bem articulado, que se desdobra da seguinte maneira:

  1. a escritura não aumenta o saber dos homens, mas aumenta a aparência do saber (ou seja a opinião): além disso, não fortalece a memória, mas oferece apenas meios para “trazer à memória" coisas já sabidas.
  2. O escrito é sem alma, não é capaz de falar ativamente; além disso, ele é incapaz de ajudar-se e defender-se sozinho contra as críticas, mas exige sempre a intervenção ativa do seu autor.
  3. Muito melhor e muito mais poderoso do que o discurso con­fiado à escritura é o discurso vivo e animado, mantido na dimensão da oralidade e, por meio da ciência, gravado na alma de quem apren­de; o discurso escrito é como uma “imagem ", isto é, uma cópia, do discurso levado a cabo na dimensão da oralidade.
  4. A escritura implica uma parte notável de “jogo", enquanto a oralidade implica uma grande “seriedade ”; e embora esse jogo possa ser muito bonito em certos escritos, muito mais belo é o empenho que a oralidade dialética exige em tomo aos mesmos temas dos quais os escritos tratam, e muito mais válidos são os resultados que ela alcança.
  5. O escrito, para ser conduzido segundo a regra da arte, implica um conhecimento da verdade dialeticamente fundada e, ao mesmo tempo, um conhecimento da alma daquele a quem é dirigido. A con­seqüente estruturação do discurso (que deverá ser simples ou comple­xo conforme a capacidade de a alma à qual é dirigido recebê-lo). Não obstante, o escritor deve ter bem presente que no escrito não podem existir grande solidez e clareza, exatamente porque nele há uma gran­de parte de jogo; o escrito não pode ensinar e fazer com que se aprenda de maneira adequada; pode apenas ajudar a trazer à memória as coisas já sabidas. Com efeito, a clareza, a completude e a seriedade estão unidas apenas à oralidade dialética.
  6. Escritor e filósofo é aquele que compõe obras conhecendo a verdade e que, portanto, é capaz de socorrê-las e de defendê-las quando isso é necessário, estando em condições de demonstrar em que sentido as coisas escritas são de “menor valor” com respeito às coisas de “maior valor” que ele possui, mas que não tem intenção de confiar aos escritos, reservando-as à oralidade. 

Eis passagens das mais significativas do Fedro que ilustram perfeitamente o sentido de “meio hipomnemático” que Platão dava aos escritos e o alcance limitado que lhes atribuía tanto na forma como nos conteúdos:

Sócrates — Por conseguinte, quem julgasse poder transmitir uma arte com a escritura e quem a recebesse convencido de que poderá extrair daque­les sinais escritos alguma coisa de claro e sólido, deveria ser grandemente ingênuo e ignorar, na verdade, o vaticínio de Amon, se considera que os discursos consignados por escrito são alguma coisa mais do que um meio para trazer à memória de quem já sabe as coisas das quais trata o escrito.

Fedro — Certamente.

Sócrates — Já nos divertimos bastante com o que se refere aos discur­sos. Mas tu deves procurar Lísias e dizer-lhe que nós dois, tendo descido à fonte e ao santuário das Ninfas, ouvimos discursos que nos ordenavam dizer a Lísias e a quem quer que componha discursos, a Homero e a qualquer outro que tenha composto poesia com música ou sem música, a Sólon e a quem quer que haja composto discursos políticos denominando-os leis: "Se compôs essas obras conhecendo a verdade e está em condição de socorrê-las quando defende as coisas que escreveu e, ao falar, possa demonstrar a de­bilidade do texto escrito, então, um homem assim deve ser chama­do não com o nome que têm aqueles que citamos, mas com um nome deri­vado do objeto ao qual se aplicou seriamente”.

Fedro — E que nome é esse que lhe dás?

Sócrates — Chamá-lo sábio, Fedro, parece-me exagerado, pois tal nome convém somente a um deus; mas chamá-lo filósofo, ou seja, amante da sa­bedoria, ou com algum outro nome desse tipo, seria mais próprio e mais conveniente para ele.

Fedro — E de nenhuma maneira seria fora de propósito.

Sócrates — Ao contrário, aquele que não possui nada de mais valor do que aquelas coisas que compôs ou escreveu, passando muito tempo em girá-las de um lado e de outro, colando ou separando uma parte da outra, não o chamarás com razão poeta, fazedor de discursos ou redator de leis?

Fedro — Sem dúvida2.

Os autotestemunhos contidos na “Carta VII”

De uma série de indícios convergentes que se encontram no Fedro infere-se claramente em que consistem exatamente as “coisas de maior valor”  que o filósofo não confia aos escritos. Trata-se justamente das coisas que são capazes de “socorrer” os escritos em última instância e das quais unicamente depende a solidez, a clareza e a completude do raciocínio e que, em última análise coincidem, no sentido mais elevado, com os primeiros e su­premos Princípios.

Mas, enquanto Platão no Fedro diz isto por meio de vários tipos de acenos, no excursus contido na Carta VII afirma-o de maneira mais explícita. Os autotestemunhos contidos nesse excursus são ver­dadeiramente exemplares e apresentados de modo articulado, que se desenvolve nos seguintes pontos:

  1. Em primeiro lugar, Platão explica em que consistia a “prova” à qual submetia aqueles que se aproximavam da filosofia, a fim de certificar-se se eram ou não capazes de praticá-la de modo correto.
  2. Logo em seguida, esclarece os péssimos resultados da “prova” aplicada ao tirano Dionísio de Siracusa, que insistira com ele para que retornasse à sua corte exatamente para dele aprender a filosofia. Ora, depois de ter ouvido apenas uma lição oral de Platão, Dionísio julgou poder redigir justamente o que diz respeito às “coisas maiores”, justamente aquelas com relação às quais Platão negava firmemente a conveniência e a utilidade do texto escrito, pelo fato de exigirem uma série de discussões feitas com perseverança e em estreita comunhão entre o que ensina e o que aprende. E é justamente por meio dessa constante aplicação e comunhão de pesquisa e de vida que se alcança a verdade que se ilumina na alma e depois alimenta-se por si mesma. Não é conveniente escrever sobre essas coisas que são exatamente as “maiores”, porque os poucos que poderiam aproveitar-se de tal escri­to são capazes de encontrar a verdade por si mesmos, com breves indicações que lhes são dadas na comunhão de vida e de pesquisa; ao contrário, mostra-se assaz prejudicial pelas reações que provocariam em numerosas pessoas que, não entendendo aquelas coisas, as ridicu­larizariam e desprezariam, ou ficariam cheios de presunção pensando ter entendido o que de nenhuma maneira são capazes de entender.
  3. Para fazer compreender melhor essas razões, Platão invoca alguns argumentos gnosiológicos fundamentais, tendo em vista demonstrar quão complexo seja o caminho que conduz à verdade e como, conseqüentemente, a maioria se perca de diversas maneiras por esses caminhos. Somente os poucos que possuem uma natureza boa podem percorrer esse caminho em todos os sentidos e alcançar o conhecimento “daquilo que tem uma natureza boa”. Mas para os homens que têm essa natureza afim às coisas que se procuram, o texto escrito não é necessário; enquanto aos outros homens que não têm “boa natureza” é totalmente inútil escrever sobre coisas supe­riores à sua capacidade, pois nem mesmo Linceu poderia comunicar a visão a homens deste tipo.
  4. Em conclusão, quem pretendeu escrever sobre aquelas coisas mais elevadas, a saber, sobre os “Princípios primeiros e supremos da realidade”, como Dionísio tentou fazê-lo (e outros como ele) não o fez por boas razões, mas somente movido por más intenções.

Eis algumas das passagens mais significativas do excursus da Carta VII que impõem um modelo de todo peculiar para reler Platão:

Posso dizer o seguinte sobre todos aqueles que escreveram ou que es­creverão: todos os que afirmam saber as coisas sobre as quais medito, seja por tê-las ouvido de mim, seja por tê-las ouvido de outros, seja por tê-las descoberto sozinhos, não é possível, segundo meu parecer, que tenham entendido algo desse objeto. Sobre essas coisas não existe um texto escrito meu nem existirá jamais.

De nenhuma maneira o conhecimento dessas coisas é comunicável como o dos outros conhecimentos, mas, depois de muitas discussões sobre elas e depois de uma comunidade de vida, subitamente, como luz que se acende de uma faísca, ele nasce na alma e alimenta-se de si mesmo.
De qualquer maneira, de uma coisa tenho certeza: se essas coisas deves­sem ser escritas ou ser ditas eu o faria do melhor modo possível, e sentiria muito se fossem mal escritas. Se, ao contrário, acreditasse que se deveriam escrever e que se poderiam comunicar de modo adequado à maioria, que coisa de mais bela poderia eu fazer na minha vida do que escrever uma doutrina tão útil aos homens e trazer à luz aos olhos de todos a natureza das coisas? Mas, não creio que um tratado escrito e uma comunicação sobre esses temas seja um benefício para os homens, a não ser para aqueles pou­cos capazes de encontrar a verdade sozinhos, com poucas indicações que lhes forem dadas, enquanto os outros se encheriam, alguns de um desprezo injusto e inconveniente, outros, ao contrário, de uma presunção soberba e vazia, convencidos de ter aprendido coisas magníficas3.

Portanto, todo homem sério evita escrever coisas sérias para não abandoná-las à aversão e à incapacidade de compreensão dos homens. Em suma, de tudo isto deve-se concluir que, ao vermos obras escritas de al­guém, seja leis de legisladores ou escritos de outro tipo, as coisas escritas não eram para tal autor as mais sérias sendo ele sério, pois essas estarão depositadas na parte mais bela dele; ao contrário, se consigna por escrito aqueles pensamentos que são para ele verdadeiramente os mais sérios, “então certamente” não os deuses, mas os mortais “fizeram- no perder o juízo”.

Sobre o que compreende o “todo”, “as coisas maio­res”, “o falso e o verdadeiro de todo o ser”, “as coisas mais sérias”, ou seja, “os Princípios supremos da realidade”, Platão não quis escrever nem desejou que algum dos seus discípulos escrevesse. Segundo a sua opinião, para a maioria o discurso escrito sobre esses temas seria danoso, em razão dos motivos que explicamos; por outro lado, para os poucos que seriam capazes de entendê-lo seria inútil, não só pelos motivos já expostos, mas também pelo fato de que as verdades supre­mas se resumem em poucas proposições, de sorte que quem as compreendeu grava-as na própria alma e não as esquece nunca. Assim, a função hipomnemática (ou do trazer à memória) que é para Platão a função verdadeira e própria exercida pelo texto escri­to, seria nesse caso completamente inútil:

[...] não há perigo de que alguém esqueça essas coisas, uma vez que tenham sido bem compreendidas pela alma, pois que se reduzem a proposições extremamente breves4.

As linhas essenciais das “Doutrinas não-escritas” de Platão que nos chegaram através da tradição indireta

Todos terão compreendido a importância excepcional que a tra­dição indireta assume, na medida em que ela nos conduz ao conhe­cimento das linhas essenciais das doutrinas que Platão reservou para a dimensão da “oralidade” no interior da Academia.

O próprio Aristóteles diz-nos que esses ensinamentos que Platão comunicava só por meio da “oralidade” eram chamados “doutrinas não-escritas”. E Simplício refere-nos, citando Alexandre de Afrodísia:

Diz Alexandre: “Segundo Platão, os Princípios de todas as coisas e das próprias Idéias são o Uno e a Díade indeterminada, que ele chamava grande-e-pequeno, como também Aristóteles lembra nos livros Sobre o Bem. Mas isto se poderia saber também de Espêusipo e de Xenócrates e dos outros que assisti­ram ao curso Sobre o Bem de Platão. Com efeito, todos registraram por escrito e conservaram a opinião de Platão, e dizem que ele usa esses Princípios"5.

E ainda Simplício menciona também “Heráclides”, “Estieu” e “ou­tros discípulos” que escreveram o pensamento “não-escrito” de Platão.

Mas há mais. Platão, ao mesmo tempo em que recusou consignar por escrito essas suas doutrinas orais, aceitou apresentá-las em públi­co fora da Academia ao menos numa lição ou num ciclo de lições orais, cujo resultado porém foi exatamente aquele que ele afirmava seria provocado pelos seus eventuais escritos sobre tais temas; com efeito, despertou incompreensões, e portanto desprezo e reprovação, como nos diz esse importantíssimo testemunho:

Como Aristóteles costumava contar, essa era a impressão experimentada pela maioria dos que assistiram à conferência de Platão Sobre o Bem. De fato, todos os que lá foram pensavam poder aprender algo sobre os bens considerados humanos como a riqueza, a saúde, a força e, em geral, uma felicidade maravilhosa. Mas quando se viu que os discursos tratavam de coisas matemáticas, números, geometria e astronomia e, finalmente, sustenta­vam que existe um. Bem, uma Unidade, penso que tudo isto pareceu comple­tamente paradoxal. Assim sendo, uns desprezaram a conferência, outros a censuraram6.

Portanto, há uma certeza incontestável acerca da existência de exatas “Doutrinas nâo-escritas” de Platão. Mas como é possível justi­ficar e resgatar os escritos dos seus alunos sobre essas doutrinas, a partir do momento em que Platão pronunciou um veredicto categórico contra todos os escritos do passado e do futuro sobre esses temas? A resposta ao problema não é tão difícil, quanto à primeira vista poderia parecer. Com efeito, Platão não diz que as suas “Doutrinas não-escritas” não sejam por si mesmas passíveis de serem escritas (ao contrário, diz claramente que ele mesmo poderia escrevê-las me­lhor); mas que era inútil e mesmo nocivo expô-las a um público inadequado e incapaz de compreendê-las. Ele reprova sobretudo os escritos sobre as suas doutrinas orais produzidos por aqueles que, como o tirano Dionísio, não possuíam idoneidade, preparação e conhe­cimentos adequados.

Ora, entre os que não entenderam essas doutrinas não se pode incluir de maneira alguma seus melhores discípulos, exatamente aque­les dos quais chegaram até nós escritos e testemunhos sobre essa questão. Platão mesmo nos fomece o juízo positivo mais claro e mais indubitável sobre esses discípulos, dizendo-nos que eles compreende­ram bem as doutrinas em questão; e os opõe a tipos como Dionísio, como resulta dessas suas afirmações:

Pois bem, se [Dionísio] as considerava tolices, então estará em oposição com muitas testemunhas que sustentam o contrário e que, sobre essas coisas poderiam ser juizes de muito maior autoridade do que Dionísio7.

Claro que os discípulos que escreveram sobre as “Doutrinas não-escritas” do Mestre não procuraram fazer aquilo que Platão conside­rava impossível objetiva e estruturalmente, mas fizeram simplesmen­te aquilo que ele considerava ineficaz, inútil e sobretudo perigoso para a incompreensão da maioria. Em suma, as proibições de Platão de escrever sobre certas doutrinas não eram de caráter puramente teorético, mas enraizavam-se em convicções de caráter prevalentemente ético-educativo e pedagógico hauridas em Sócrates; apoiavam-se na convicção da supremacia da dimensão da “oralidade” sobre a da “escritura”. Mas os discípulos de Platão estavam já distantes de Sócrates o suficiente para não se sentirem indissoluvelmente presos àquelas convicções e, portanto, para julgar que podiam consignar por escrito toda a filosofia, sem restrições ou limites. Tanto mais que a cultura escrita estava adquirindo uma nítida primazia e quem não tinha sido discípulo direto de Sócrates não podia sentir os efeitos do choque entre as duas culturas tais como Platão os sentiu. De qualquer maneira, a maior parte dos melhores discípulos de Platão não escreveu as “Doutrinas não-escritas” para difundi-las em meio a um públi­co desadaptado e inadequado, como fizeram todos aqueles que Platão censura, mas provavelmente para fazê-las circular só no interior do grupo dos acadêmicos.

Mas há mais.

Os discípulos de Platão, transgredindo, no sentido que acabamos de explicar, a grande proibição de escrever sobre as suas “Doutrinas não-escritas”, transmitiram-nos as chaves que nos permitem abrir as portas que, depois de duas gerações, ficariam fechadas para sempre e para todos. Prestaram, pois, um grande serviço aos pósteros e à história. Por conseguinte, a tradição indireta deve ser considerada, como veremos, um documento fundamental juntamente com os diá­logos.

Como se deve entender o termo “esotérico” referido ao pensamento não-escrito de Platão

Desde algum tempo os estudiosos introduziram, para designar essas “Doutrinas não-escritas”, o termo “esotérico”, distiguindo um Platão “esotérico” de um Platão “exotérico”. “Exotérico” significa o pensamento que Platão destinava com seus escritos também àqueles que estavam “fora” da Escola (“exotérico” deriva de exo que signi­fica “fora”). Ao contrário, “esotérico” significa o pensamento que Platão reservava somente ao círculo dos alunos no interior, dentro da Escola (esotérico deriva de eso que quer dizer dentro). Mas, no passado, “esotérico” era entendido de modo bastante vago, e indicava genericamente uma doutrina destinada a permanecer envolta em mis­terioso segredo, como uma espécie de metafilosofia para iniciados.

Segundo nosso parecer, já Hegel fez justiça uma vez para sempre contra esse modo de entender o Platão “esotérico”, numa página a nosso ver exemplar:

“Uma [...] dificuldade poderia nascer da distin­ção que se costuma fazer entre filosofia esotérica e exotérica. Tennemann afirma: ‘Platão valeu-se do direito de que goza todo pen­sador, de comunicar somente a parte das suas descobertas que julgava oportuno e de comunicá-la somente àqueles que julgava capazes de acolhê-la. Também Aristóteles tinha uma filosofia esotérica e uma filosofia exotérica, com a diferença, porém, de que nele a distinção dizia respeito somente à forma, e em Platão também à matéria'. To­lices! Pareceria quase que o filósofo possui seus pensamentos como coisas exteriores: ao contrário, a idéia filosófica é algo de muito diferente, ela é que possui o homem. Quando os filósofos falam de temas filosóficos devem exprimir-se segundo as suas idéias e não podem guardá-las no bolso. Se, com alguns, falam de maneira extrín­seca, todavia nos seus discursos está sempre contida a idéia, por pouco que a matéria tratada tenha conteúdo. Para entregar um objeto externo não é preciso muito, mas para comunicar idéias é necessário capacidade e essa permanece sempre de alguma maneira esotérica, de modo que não há nunca o puramente exotérico nos filósofos”8.

Ora, o Platão das “Doutrinas não-escritas” é um Platão “esotérico”, mas num sentido completamente diferente. Explica Gaiser:

“Chaman­do [...] essa teoria dos Princípios de Platão [expressa nas ‘Doutrinas não-escritas’] quero dizer que Platão pretendia falar dessas coisas somente no círculo restrito dos discípulos que, depois de uma longa e intensa preparação matemático-dialética, eram capazes de captá-las de maneira adequada. Não se deve entender, ao contrário, um segredo artificioso, tal como se encontra em conventículos de culto religioso, ou em ligas sectárias ou grupos de elite”9.

Em resumo: “Esotérico” deve ser entendido no sentido de “intra-acadêmico”, isto é, como qualificativo de “doutrinas professadas no interior da Academia” e reservadas aos discípulos da própria Academia.

Portanto, o sentido peculiar da dimensão “esotérica” platônica é o mesmo que caracteriza a escolha da oralidade dialética para expri­mir a doutrina dos primeiros Princípios. A via de acesso ao esotérico coincidia com o duríssimo tirocínio educativo do qual falam expres­samente também a República e as Leis. A República fala mesmo de um tirocínio que dura até os cinqüenta anos. De outra parte, os Princípios supremos que conferem o sentido último às coisas são na verdade acessíveis ao homem só por meio de um tiro­cínio muito longo, ou seja, caminhando pela “longa via do ser”, sem esperanças de encontrar atalhos.

Entendido nesse sentido exato, o termo “esotérico” aplicado às “Doutrinas não-escritas” de Platão escapa inteiramente às críticas de Hegel. Ao contrário, no caso de Platão verifica-se justamente aquilo que diz Hegel, a saber que “quando os filósofos falam de temas fi­losóficos devem exprimir-se segundo as suas idéias e não podem guardá-las no bolso. Se, com alguns, falam de maneira extrínseca, todavia nos seus discursos está sempre contida a idéia, por pouco que a matéria tratada tenha conteúdo”. De fato, em seus discursos exotéricos dirigidos a um vasto público fora da Escola, ain­da que se exprima sobre problemas particulares de maneira em certo sentido extrínseca, manifestou as suas concepções por alusões e com contínuas indicações. Em suma, em Platão não existe nunca o pura­mente exotérico. Porém, sem a tradição indireta não poderíamos re­construir e compreender o esotérico que há nos diálogos, porque está entrelaçado de vários modos com o exotérico e mesmo oculto sob as alusões demasiado complexas e sob as mais variadas indicações.

Significação, alcance e finalidade dos escritos platônicos

Sobre o fundamento de tudo que acima foi dito é evidente que se impõe a necessidade de rever os escritos platônicos segundo uma nova ótica. Soluções diferentes, mais articuladas, mais complexas e também mais construtivas delineiam-se para o antigo problema “o que é e o que significa o escrito platônico”.

Devemos recordar, em primeiro lugar, que a forma dialógica na qual são redigidos quase todos os escritos de Platão tem sua matriz na forma do filosofar socrático. Filosofar para Sócrates significa exami­nar, provar, curar e purificar a alma: e, segundo o seu parecer, isto só pode realizar-se através do diálogo vivo (ou seja, na dimensão da “oralidade”), que confronta imediatamente alma com alma e permite pôr em prática o método irônico-maiêutico. Platão, no entanto, julgou possível seguir uma via média ou seja, acreditou poder realizar uma mediação válida (embora parcialmente e nos limites que assinalamos). Com efeito, poderia haver um escrito em prosa que, renunciando à rigidez da exposição dogmática e ao discurso de exibição dos sofistas e dos retóricos, procurasse reproduzir o espírito socrático sem sacrificá-lo inteiramente.

Tratava-se de buscar reproduzir no escrito o discurso “socrático” imitando sua peculiaridade, isto é, reproduzindo seu interrogar sem descanso, com todas as suspensões da dúvida, com os cortes impre­vistos que impelem maieuticamente a encontrar a verdade sem nunca revelá-la inteiramente no sentido sistemático, mas solicitando a alma a encontrá-la, com as rupturas dramáticas que abrem estruturalmente perspectivas ulteriores de pesquisa: fazendo, enfim, uso de uma dinâ­mica especificamente socrática. Nasce, assim, o diálogo socrático que vem a tornar-se mesmo um gênero literário adotado pelos discí­pulos de Sócrates e depois também pelos filósofos seguintes, do qual Platão foi provavelmente o criador. Em todo caso, ele foi certamente o representante desse gênero literário muito superior a todos os outros e, mesmo, o único representante, pois somente nele se pode reconhe­cer a natureza autêntica do filosofar socrático, que nos outros escri­tores degenerou em maneirismo. Mas mesmo sobre o diálogo assim concebido pesa o juízo acima examinado proferido por Platão no Fedro. Isto significa que, para Platão, as verdades supremas da filosofia, isto é, as coisas de maior valor, não podem de nenhuma ma­neira ser confiadas à escritura em nenhuma de suas formas, nem mesmo a dialógica, mas somente à oralidade dialética. Portanto, os diálogos alcançam algumas finalidades que Platão tinha em vista como filósofo, mas não todas (e justamente não as mais elevadas).

Em síntese, podemos dizer o seguinte:

  • Nos primeiros diálogos, que são os que mais se aproximam do espírito socrático, Platão se propõe finalidades protréticas, educativas e morais, análogas às que o próprio Sócrates tinha em vista com o seu filosofar moral. A purificação da alma das falsas opiniões, a prepa­ração maiêutica à verdade e a discussão com fins educativos são, sem dúvida, constantes que se encontram em todos os escritos platônicos. Mas nos diálogos da juventude elas estão certamente em primeiro plano e constituem os objetivos principais. Mais tarde atenuam-se, mas permanecem como uma constante.
  • Os diálogos platônicos nunca têm por objetivo espelhar coló­quios que realmente tiveram lugar, mas representam modelos de colóquios ideais, ou seja, modelos de comunicação filosófica coroada de êxito ou então concluída sem êxito. Essa idealização do colóquio implica uma fixação mais exata de uma metodologia, que acaba as­sumindo claramente uma função regulativa, provavelmente com vín­culos muito exatos com respeito às discussões que se desenrolavam na Academia. Em particular, os diálogos apresentam discussões dia­léticas magistralmente orquestradas, nas quais o método do élenchos, isto é, o método de procura da verdade por meio da refutação do adversário, alcança algumas vezes a perfeição.
  • Na exposição das doutrinas contidas nos “autotestemunhos” do Fedro e da Carta VII, vimos como Platão atribuía ao escrito uma exata função “hipomnemática”. Por conseguinte, o escrito deveria fixar e pôr à disposição do autor e dos outros um material conceituai adquirido por outro caminho, isto é, em discussões antes realizadas e, portanto, na dimensão antecedente da oralidade. Essa função “rememorativa” aparece em primeiro plano a partir do momento em que os diálogos platônicos adquirem uma notável espessura doutrinal e, portanto, sobretudo no arco dos diálogos que vai da República (e em parte também dos diálogos precedentes) às Leis. Além disso lembremo-nos de que os escritos, como já mostramos, são úteis para “rememorar” uma série de doutrinas, mas, pelos motivos que acima explicamos, não as doutrinas mais elevadas, referentes aos Princípios supremos da realidade. No entanto, os escritos fazem referências precisas, ao menos com várias alusões e sinalações, a essas doutrinas supremas destinadas a permanecer não-escritas porque não têm ne­cessidade de meios rememorativos (na medida em que se resumem a “brevíssimas proposições” que, uma vez bem compreendidas, não se podem mais esquecer). Trata-se, pois, de alusões que bem podem ser chamadas “alusões hipomnemáticas”, válidas apenas para quem co­nhecesse a doutrina conseguida mediante outro meio de comunica­ção, e não mais do que isso.
  • Platão chega a negar ao discurso escrito a capacidade de “co­municar” eficazmente as doutrinas, reservando-a ao discurso oral. Todavia, as funções hipomnemáticas não seriam evidentemente pos­síveis se, na verdade, a função comunicativa estivesse inteiramente ausente do escrito. Não obstante as decididas afirmações que lemos no Fedro, é claro que o escrito platônico é também um instrumento de comunicação filosófica. Mesmo que o autor o negue expressamen­te, de fato, no entanto, acaba por admiti-lo e mesmo por demonstrá-lo, na medida em que escreveu e no modo com que o fez.
  • Além disso, “os procedimentos didáticos do escritor Platão põem em movimento um processo cognoscitivo que chega a seu fim não nos escritos, mas na atividade de ensinamento oral da Acade­mia”. Portanto, “somente se cairmos na conta de que os diálogos platônicos remetem, nas suas particularidades e em geral, a uma jus­tificação de amplo alcance que não está explícita na obra escrita, mas é pressuposta em todas as suas partes, podemos compreendê-los”. O círculo no qual, com o escrito, Platão parece encerrar o leitor, remete muitas vezes, justamente através dos seus raios, a um “não-escrito” que forma como que um círculo mais amplo que engloba e delimita o círculo do escrito.
  • Uma confirmação dessa perspectiva é dada pela contribuição recente de Szlezák que, partindo justamente do exame dos diálogos e permanecendo no seu âmbito (sem entrar no mérito das “Doutrinas não-escritas” a nós transmitidas pela tradição indireta) demonstra que o “socorro” oral, que deve ser levado ao escrito e do qual fala o Fedro, constitui justamente a estrutura de sustentação de todos os escritos platônicos, a partir já dos escritos da juventude. Platão “con­cebe desde o princípio o escrito filosófico como um escrito não- autárquico, ou seja, como escrito que, do ponto de vista do conteúdo deve ser transcendido se se quer compreendê-lo plenamente. O livro do filósofo deve ter a justificação dos seus argumentos além dele mesmo”. As demonstrações analíticas fornecidas por Szlezák são particularmente notáveis porque demonstram como esse “socorro” deva realizar-se em níveis diferentes e, além disso, de maneira muito ampla. Em alguns níveis, esses “socorros” encontram-se nas partes posteriores do próprio escrito; em outros níveis, supõem doutrinas que se encontram presentes em outros diálogos; mas o socorro que conduz aos fundamentos últimos não se encontra nos diálogos e é exatamente aquele que Platão não quis consignar por escrito, e que a tradição indireta trouxe até nós.

O “socorro” que a tradição indireta presta aos escritos platônicos

Somente a partir do início do nosso século, começou-se a com­preender que a tradição indireta pode trazer uma série de “socorros” aos diálogos platônicos, mas somente aos últimos diálogos. Por sua vez, as pesquisas mais avançadas dos últimos anos mostraram de maneira sempre mais convincente como muitas passagens obscuras dos diálogos intermédios resultam perfeitamente compreensíveis so­mente com o “socorro” das “Doutrinas não-escritas”. Deve-se, por­ tanto, concluir que, desde a fundação da Academia, Platão já possuía um quadro das “Doutrinas não-escritas” e uma concepção exata das relações entre “escritura” e “oralidade”. Por conseguinte, todos os diálogos mais significativos de Platão, que sempre foram considera­ dos pontos essenciais de referência para poder reconstruir o seu pen­samento, subentendem o quadro teorético geral das “Doutrinas não-escritas

Então, o “socorro” que a tradição indireta traz aos diálogos pla­tônicos consiste nisso: tendo presentes as “Doutrinas não-escritas” que permanecem como fundo, as partes centrais de muitos desses Diálogos, que no passado ficaram sem explicações exatas ou foram explicadas somente de modo parcial ou forçado, tornam-se claras e perfeitamente inteligíveis sobre bases exatas objetivas e históricas, ou seja, na medida em que aqueles que tinham ouvido diretamente Platão nos fornecem as chaves para elas.

Concluindo: no âmbito do novo modelo interpretativo a perda da autarquia dos diálogos devida à valorização da tradição indireta não significa perda do seu valor, mas, ao contrário, significa um incre­mento do seu valor, porque os diálogos são iluminados na sua zona de sombra, ficam mais claros, mais ricos de instâncias e de tensões e voltados para horizontes mais amplos. Além disso, o plus que nos é revelado pela tradição indireta se reduz a um discurso muito breve. O discurso sobre os “fundamentos últimos” que nos é transmitido pela tradição indireta é, com efeito, um discurso sempre muito breve: é como o trajeto último da subida de um cume, que é o mais breve, mas, ao mesmo tempo, o mais exigente. Os escritos platônicos nos fazem subir toda a montanha, mas não nos fazem alcançar o cume; ao contrário, a tradição indireta nos dá a condição de alcançar tam­bém o cume.

Filosofia - Filosofia Clássica
Temas gerais - Tópicos gerais, 
1/5/2022 3:24:17 PM | Por Giovanni Reale
O conceito grego de Filosofia

Uma das caracte­rísticas essenciais da filosofia dos gregos — e, antes, sob certo aspec­to, a característica da qual dependem largamente todas as outras — consiste na pretensão, nela alojada desde as origens (e mantida no curso de cerca de doze séculos), de medir-se com a totalidade das coisas, ou seja, com o todo do ser. Aqui queremos fornecer, como complemento ao que dissemos, uma documentação que ilustre de maneira essencial este conceito capital e alguns conceitos corolários estreitamente ligados a ele.
A aspiração a medir-se com o todo constitui o que podemos chamar de cifra ontológica ou metafísica da especulação antiga. É sobre esta cifra que devemos, antes de tudo, nos deter.

Que se entende, exatamente, quando se fala da “totalidade das coisas” ou da “totalidade da realidade” como objeto da filosofia, e, portanto, do todo?

A totalidade não é só o conjunto das coisas individuais; e isso significa que o todo não é mera soma das partes. Em poucas palavras, no problema do todo não está em questão a quantidade da realidade que se quer dominar, mas a qualidade da aproximação a essa realidade, ou seja, a angulação em função da qual se quer dominá-la. Quando se diz que “o filósofo aspira a conhecer todas as coisas enquanto isto é pos­sível" — explica exatamente Aristóteles — não se quer dizer que o filósofo aspira conhecer cada realidade individual, mas que ele visa conhecer o universal no qual entram todas as coisas particulares, ou seja, o universal que dá sentido aos particulares, unificando-os. E o universal do qual agora se fala não é o universal lógico, vale dizer, uma pura abstração, mas um princípio (ou alguns princípios) supremo e imprincipiado, sempre igual a si mesmo, do qual todas as coisas deri­vam, pelo qual são sustentadas e ao qual também tendem.

A pergunta pelo todo, portanto, coincide com a pergunta pelo princípio fundante e assim unificante da multiplicidade. Podemos também dizer que a pergunta pelo todo coincide com a pergunta pelo porquê último das coisas, enquanto é justamente esse porquê último [205] que, enquanto explica todas as coisas, constitui o horizonte da compreensão de todas as coisas.

Já os naturalistas pré-socráticos, a começar pelo primeiro deles, ou seja, Tales, perseguiram esse conceito de filosofia, como resulta largamente confirmado pelos fragmentos e testemunhos que nos che­garam, e como já Aristóteles observava com perfeita consciência crítica numa famosa página da sua Metafísica:

A maioria dos que por primeiro filosofaram pensaram que princípio de todas as coisas eram unicamente princípios materiais. De fato eles afirmam que aquilo do que todos os seres são constituídos e aquilo do que derivam origi­nariamente e no que finalmente se dissolvem, é elemento e princípio dos seres, enquanto realidade que permanece idêntica mesmo na mutação das suas afecções. E, por esta razão, eles crêem que nada se gera e nada perece, uma vez que tal realidade se conserva sempre. E como não dizemos que Sócrates se gera, em sentido absoluto, quando se torna belo ou músico, nem dizemos que perece quando perde esses modos de ser, pelo fato de que o substrato — ou seja, Sócrates mesmo — continua a existir, assim devemos dizer que não se corrom­pe, em sentido absoluto, nenhuma das outras coisas: com efeito, deve haver alguma realidade natural (uma única ou mais de uma) da qual derivam todas as outras coisas, enquanto essa continua a existir sem mudança1.

Nesta passagem, Aristóteles reconhece que a pesquisa desenvol­vida pelos naturalistas dirigia-se ao todo. Ele, todavia, sublinha os limites das soluções propostas por esses pensadores, observando que os princípios aos quais visavam eram materiais. Em outro lugar, ele reafirma os limites, que poderemos chamar de fisicistas, desses pen­sadores, que consistem no fato de não terem sabido alcançar uma visão dos entes suprafísicos. Dito em termos precisos, os limites dos naturalistas, para Aristóteles (como, de resto, também para Platão), consistem: a) em ter acreditado que só existe o ser físico e b) em ter, conseqüentemente, acreditado que podiam explicar esse ser físico com princípios físicos.

Em que sentido, então, pode-se igualmente afirmar que, embora dentro desses limites, a pesquisa dos naturalistas constitui uma verdadeira pesquisa sobre o todo?­ [206]

O próprio Aristóteles pôs e resolveu corretamente o problema, observando que os naturalistas limitaram-se à physis, mas concordaram que tal physis era toda a realidade e todo o ser e, consequentemente, consideraram que pesquisavam sobre toda a realidade e sobre todo o ser. Portanto, a pesquisa dos naturalistas foi uma pesquisa sobre o todo, à medida que ela se apresentava como abrangendo todo o ser.

Ainda Aristóteles, para determinar de modo adequado o todo, cunhou a expressão “ser enquanto ser”. Todas as artes e as ciências particulares têm a ver com os seres, mas nenhuma delas indaga sobre estes seres justamente sob o aspecto do ser. Portanto, as ciências particulares estudam, cada uma delas, apenas uma parte, num porção, uma seção do ser e, ademais, não na peculiar dimensão do ser. Conseqüentemente, as causas e princípios que as ciências particulares indagam só valem para aqueles determinados setores do ser que elas têm como objeto, enquanto as causas e os princípios que o filósofo pesquisa na pura dimensão do ser são os que unificam e explicam todos os seres, sem exceção. É precisamente este o sentido da pergunta pelo todo.

Eis duas passagens da Metafísica exemplares a este respeito:

Há uma ciência que considera o ser enquanto ser e as propriedades que lhe competem enquanto tal. Ela não se identifica com nenhuma das ciências particulares: de fato, nenhuma das outras ciências considera o ser enquanto ser universalmente, mas, depois de ter delimitado uma parte dele, cada uma estuda as características dessa parte. Assim fazem, por exemplo, as matemáticas2.

Objeto da nossa pesquisa são os princípios e as causas dos seres, entendidos enquanto seres. De fato, há uma causa da saúde e do bem-estar; existem causas, princípios e elementos também dos objetos matemáticos e, em geral, toda ciência que se funda sobre o raciocínio e, em alguma medida tal uso do raciocínio trata de causas e princípios mais ou menos exatos. Todavia, todas essas ciências são limitadas a determinado setor ou gênero do ser e desenvolvem a sua pesquisa em torno a isso, mas não em torno ao ser considerado em sentido absoluto e enquanto ser3.

[207] 

Para resolver essa dificuldade, perguntamo-nos, em primeiro lu­gar, que tipo de problema Sócrates se pôs sobre o homem e que tipo de resposta ele deu.

Pois bem, todos os testemunhos à nossa disposição permitem-nos com segurança estabelecer que Sócrates simplesmente deslocou sobre o homem aquele tipo de pergunta que os naturalistas punham sobre o cosmo. Eles pretendiam explicar todas as coisas relativas ao uni­verso, reduzindo-as à unidade de um princípio (ou de alguns princí­pios); Sócrates pretendia, ao invés, explicar todas as coisas relativas ao homem e à sua vida, também reduzindo-as à unidade de um prin­cípio: queria chegar à essência do homem e, em função desta, reinterpretar toda a vida do homem. Portanto, a pesquisa socrática nada tem a ver com todas as outras ciências “particulares” relativas ao homem, como a ciência médica ou a ginástica. Estas ciências só se ocupam de partes, ou seja, de aspectos do homem, não do homem todo, no sentido que estabelecemos. E depois do nascimento das numerosas ciências humanas no final do século passado, como a sociologia, a psicologia e semelhantes, os exemplos poderiam se multiplicar. O que foge estruturalmente a estas ciências é, justamente, aquele todo do homem que interessava a Sócrates, e que, em última análise, é o específico da filosofia ainda hoje. (A esta consideração, à guisa de corolário, poder-se-ia acrescentar uma ulterior, sobre a qual não queremos insistir, à medida que serve simplesmente como reforço. Considerando apenas os Memoráveis de Xenofonte — cuja autenticidade sobre este ponto não pode ser posta em dúvida — Sócrates ocupou-se também de Deus e tentou fornecer algumas “pro­vas” racionais a favor da sua existência, com uma técnica e com perspectivas que, até mesmo, servem de prelúdio às metafísicas de Platão e de Aristóteles.

O problema relativo aos filósofos da era helenística é imediata­mente resolvido, tão logo se considere o fato de que eles polarizaram os seus interesses sobre a ética, mas situaram as suas éticas num enfoque bem preciso do ser e do cosmo, inclusive em nível temático. Para os filósofos da era imperial, enfim, o problema não se põe, porque eles voltaram à concepção metafísica de Platão e de Aristóteles.

Conseqüentemente, não é de admirar o fato de que Marco Auré­lio e Plotino, embora abissalmente distantes entre si, possam escrever, concordemente, que o filósofo [...] deve olhar para o todo.

Em suma: das origens ao fim, os gregos consideraram a filosofia como a tentativa de compreender todas as coisas, reportando-as ao seu fundamento último, ou seja, a tentativa de medir-se com o todo.

Portanto, a seguinte afirmação platônica pode, verdadeiramente, ser considerada o selo desta concepção:

Quem é capaz de ver o todo é filósofo, quem não, não é4.

A filosofia como necessidade primária do espírito humano

Submerso em tantos problemas, por que o homem deve pôr-se também o problema do todo? Não é este, talvez, um problema de luxo? Pior ainda — poderá talvez pensar algum leitormodierno — não é porventura um problema superado, tornado irremediavelmente arcaico pelas novas ciências e, portanto, hoje em dia não mais pos­sível de ser posto?

Também a resposta a esta interrogação nos vem de Aristóteles, o qual, ao fornecê-la, explorou a fundo a mensagem dos seus prede­cessores.

Logo na abertura da Metafísica, ele escreve:

Todos os homens por natureza desejam o saber5.

Este mesmo conceito é expresso também no Protrético do se­guinte modo: [212] 

O exercício da sabedoria e o conhecimento são desejáveis por si mes­mos pelos homens: com efeito, não é possível viver humanamente sem essas coisas6.

O “desejo” de conhecer inscreve-se, portanto, no próprio ser do homem, revelando-se assim algo sem o qual a própria natureza do homem é comprometida.

Note-se: não se trata apenas de um genérico desejo de conhecer, mas, justamente, de um desejo de alcançar aquele particular tipo de conhecimento do qual falamos acima.

A demonstração desta asserção é feita mediante uma análise fenomenológica e também mediante uma aguda exploração das opini­ões comuns de todos os homens.

Que o desejo de conhecer seja um traço essencial da natureza do homem resulta evidente do fato de todos nos deleitarmos com as sensações, particularmente com a visão, por ser esta a que mais nos faz conhecer. E como entre as várias sensações amamos a visão mais do que as outras porque mais nos faz conhecer, assim, analogamente, entre as várias formas de conhecimento que se seguem às sensações, aprecia­mos sobremaneira aquelas que mais nos fazem conhecer. Além da sen­sação, com efeito, existem a memória, a experiência e também a ciência. Mas todos os homens apreciam mais a arte e a ciência que a experiência, embora quem tem experiência às vezes (ou amiúde) move-se mais agil­mente na esfera da atividade prática do que quem possui a ciência. Isto se verifica pelo fato de que a experiência nos faz conhecer apenas o quê das coisas, ou seja, os fatos e alguns dos seus nexos empíricos, enquanto a ciência nos faz remontar ao porquê dos fatos, ou seja, à causa e ao princípio que os determinam. E ainda, entre as ciências, nós apreciamos mais a que é capaz de nos fazer conhecer não só algumas coisas, mas todas as coisas, ou melhor, não apenas as causas de algumas coisas, mas as causas de todas as coisas, ou seja, a sapiência, aquela que, justamente, se refere ao todo.

De modo análogo, já no Protrético, Aristóteles explicava que nós amamos viver por causa das sensações e, ulteriormente, que amamos a sensação pelo seu valor de conhecimento; mas, dado que a ciência [213] nos faz conhecer a verdade (o todo) na mais alta medida possível ao homem, então é justamente a esta que naturalmente nós tendemos:

Ora, o viver distingue-se do não-viver por causa da sensação e define-se pela presença da faculdade de sentir, e tirando esta, não vale mais a pena viver, como se se tirasse com o sentido o próprio viver. Entre os sentidos distingue-se a faculdade da visão pelo fato de ser a mais clara, e por isso também a amamos mais do que as outras faculdades. Mas cada sentido é faculdade de conhecer por meio do corpo, como o ouvido ouve os sons através das orelhas. Portanto, se o viver é desejável por causa do sentido, e o sentido é uma forma de conhecimento, e nós o amamos pelo fato de que, por meio dele, a alma tem a faculdade de conhecer, e antes dissemos que entre duas coisas é sempre mais desejável aquela a que pertence em maior medida esse atributo, então entre os sentidos a vista será o mais desejável e apreciável de todos; mas desta e de todas as outras faculdades e do próprio viver será mais desejável a sapiência, que goza de um poder maior diante da verdade. Conseqüentemente todos os homens perseguem sobretudo o exercício da sapiência. De fato, amando o viver, eles amam o exercício da sapiência e o conhecimento, pois não é por nenhuma outra razão que apre­ciam o viver, senão pelo sentido e sobretudo pela vista. E parecem amar essa faculdade no mais alto grau, porque ela, com relação aos outros sen­tidos, é como uma ciência pura e simples.

Esse desejo de conhecer, no homem, exprime-se de modo parti­cular no sentimento de admiração.

Já Platão escrevia:

E é próprio do filósofo admirar-se, e o filosofar não tem outra origem senão o estar pleno de admiração7

E Aristóteles, retomando e desenvolvendo esse conceito, precisa:

[...] Os homens começaram a filosofar, agora como no princípio, por causa da admiração: enquanto no princípio ficavam maravilhados diante das dificuldades mais simples, em seguida, progredindo pouco a pouco, chega­ram a pôr problemas sempre maiores, como os problemas relativos aos fenô­menos da lua e os do sol e dos astros, e os problemas relativos à origem de todo o universo8.

[214] 

Duas considerações se impõem a este respeito.

Uma primeira refere-se ao sentido da admiração. Considerada em si mesma, ela implica ignorância diante das dificuldades que progressivamente se encontram; mas, ao mesmo tempo, ela implica também algo mais, vale dizer, o fato de nos dar conta de estar em falta e de carecer de alguma coisa e, portanto, a aspiração a sair da ignorância. A admiração, portanto, é uma espécie de falta que sabe ser tal e, assim, é também necessidade do que a preenche.

A segunda refere-se ao progressivo crescimento da própria admi­ração, a qual — diz Aristóteles — primeiro surge diante de fenôme­nos mais elementares, depois diante dos mais complexos fenômenos celestes e, por último, dirige-se a problemas relativos à “origem do universo” e, portanto, dirige-se ao todo.

Justamente essa admiração, surgida no homem que se põe diante do Todo e pergunta qual é a sua origem e o seu fundamento, é a raiz da filosofia. E se é assim, a filosofia é, estruturalmente, ineliminável, justamente porque é ineliminável a admiração diante do ser, do mesmo modo como o é a necessidade de satisfazê-la.

Por que há o todo'? De onde ele veio? Qual é a sua razão de ser? Esses problemas equivalem ao seguinte: por que há o ser e não o nada? E um momento particular desse problema geral é o seguinte: por que existe o homem? Por que cada um de nós existe?

Como é evidente, trata-se de problemas que o homem não pode deixar de se pôr ou, pelo menos, são problemas que, à medida que são rejeitados, diminuem aquele que os rejeita. Portanto, são problemas irrenunciáveis e, ademais, são problemas que, mesmo depois do nascimento das modernas ciências naturais e das contemporâneas ciên­cias humanas, permaneceram intactos quanto às suas instâncias e seu valor, justamente porque nenhuma das ciências naturais nem das humanas diz respeito ao todo do ser, ou seja, às causas últimas da realidade e do homem.

Por estas razões, portanto, poderemos repetir com Aristóteles que, não só na origem, mas também agora, a velha pergunta pelo todo do ser tem sentido, e terá sentido enquanto o homem experimentar “admiração” diante do ser das coisas e do seu próprio ser. [215]

O escopo da filosofia como contemplação do ser

Uma vez explicada a origem, é fácil explicar também o fim, ou seja, o escopo da filosofia segundo os gregos. Se a origem do filoso­far é uma necessidade de conhecimento e de saber, o fim deverá ser, justamente, o apaziguamento ou, pelo menos, a tendência ao apazi­guamento desta necessidade, como já se disse, e, portanto, o conhecimento buscado e conseguido em si mesmo e não por escopos ulte­riores. Em suma, o fim é o conhecimento pelo conhecimento ou, como diziam os gregos, o theorein, o conhecimento como pura atitude contemplativa do Verdadeiro.

Para compreender a fundo este ponto, a comparação com as ciên­cias particulares é iluminadora. As técnicas e as ciências particulares são dirigidas, normalmente, à realização de escopos empíricos e à atuação de fins pragmáticos bem precisos. Elas têm, indubitavelmen­te, também um valor cognoscitivo; todavia, este não está em primeiro plano à medida que, justamente, não constitui o seu fim, o qual, como dissemos, consiste na produção de determinadas vantagens de ordem prática (para a medicina a cura, para a arquitetura a construção, e assim por diante). Dado que é essencial para as ciências particulares alcançar escopos práticos, elas não valem tanto em si mesmas, quanto (ou, pelo menos, prioritariamente) à medida que são capazes de rea­lizar os seus fins. Ao contrário, a filosofia vale justamente pela sua teoricidade, ou seja, pela sua carga e pelo seu valor cognoscitivo.

A tradição antiga reconhecia já na atitude do primeiro dos filó­sofos gregos, Tales, esta cifra teórica. Mais ainda, Aristóteles reco­nhecia certa carga teórica até nos criadores de mitos teogônicos e cosmogônicos, enquanto os mitos respondem (embora em nível fantástico-poético) à necessidade mesma da qual nasce a filosofia, vale dizer, a admiração.

Mas eis uma passagem de Platão na qual Tales é proposto como símbolo da “vida teorética”:

Sócrates — [...] de conversas como estas e semelhantes [que se referem às pequenas coisas e às mesquinharias da vida cotidiana] o filósofo não sabe [216] nada mais do que aquele que saiba, como se diz, quantos copos de água há no mar. E nem sequer sabe que ignora tudo isso; pois ele se mantém longe de ter fama de homem singular. E a verdade é que só pelo seu corpo ele está presente na cidade, mas não pela sua alma, a qual, considerando todas essas coisas como pouco e até mesmo nada, e desprezando-as profundamente, voa, como diz Píndaro, por toda parte, e ora desce ao mais profundo da terra, ora mede a sua superfície, ora sobe ao céu para contemplar estrelas, e investiga em todos os pontos a natureza dos seres, cada um na sua universalidade, sem jamais se abaixar a nada de particular entre os objetos que lhe são próximos.

Teodoro — Que queres dizer com isso, Sócrates?

Sócrates — Aquilo mesmo, Teodoro, que se conta de Tales, o qual, enquanto estava contemplando as estrelas e tinha os olhos voltados para o alto, caiu num poço; e então uma sua serva da Trácia, faceira e graciosa, zombou dele dizendo que se empenhava grandemente em conhecer as coi­sas do céu, mas não via as que tinha diante de si e sob os pés. Esse mote pode muito bem ser aplicado a todos os que professam a filosofia. Porque o filósofo, na verdade, não só não se preocupa com o que está perto, nem com o que faz o seu vizinho, e ignora até mesmo se é um homem ou um animal; mas se se trata de saber o que é o homem, e o que convém à natureza do homem, à diferença de todos os outros animais, fazer ou pade­cer, ele empenha nisso todo o seu estudo. Compreendes ou não o meu pensamento, Teodoro?9

Análoga atitude a tradição antiga referia a Pitágoras e a Anaxágoras, como lemos num fragmento do Protrético de Aristóteles:

Qual é, então, o escopo em vista do qual a natureza e Deus nos geraram? Interrogado sobre isso, Pitágoras respondeu: “A observação do céu”, e costuma­va dizer que era um dos que especulava sobre a natureza e que em vista desse escopo tinha vindo ao mundo. E dizem que Anaxágoras, interrogado sobre qual seria o escopo em vista do qual alguém podia desejar ter sido gerado e viver, respondeu: “a observação do céu e dos astros que estão nele, a lua e o sol”, como se não considerasse dignas de qualquer valor todas as outras coisas10.

É quase desnecessário observar que o “céu” e o “mundo”, nesse contexto, significam o todo, no sentido em que acima precisamos: no sentido em que, ignorando o transcendente, para estes filósofos, o horizonte do cosmo coincidia com o horizonte do todo. [217]

A concepção platônica é expressa de maneira paradigmática já na passagem do Teeteto que lemos acima, mas importa referir ainda uma passagem, tão bela quanto eficaz, da República:

E os verdadeiros filósofos [...] quem são para ti? Os que amam contemplar a verdade11.

E com a contemplação cia Verdade, Platão entende a contempla­ ção do Absoluto.

Em Aristóteles, a contemplação desinteressada como cifra do filosofar, além da página exemplar da Metafísica lida acima (assim como em célebres passagens da Ética Nicomaquéia), é expressa num fragmento do Protrético que vale a pena ler:

Buscar que de cada ciência derive algo diferente e que ela deva ser útil, é próprio de quem ignora completamente quão diferentes são desde o início as coisas boas das necessárias: estas, na realidade, diferem ao máximo. Aquelas, com efeito, entre as coisas sem as quais é impossível viver, que são amadas por causa de outra coisa, devem ser chamadas coisas necessárias e causadas, enquanto as que são amadas por si mesmas, mesmo quando nada diferente derive delas, devem ser chamadas coisas propriamente boas. Isto porque não é possível que determinada coisa seja desejável por causa de outra, esta por causa de outra e assim por diante ao infinito; mas a um certo ponto deve-se parar. Seria, portanto, totalmente ridículo buscar de cada coisa uma vantagem diferente da própria coisa e perguntar: “Que vantagem, pois, nos decorre dela?” ou “que utilidade?”. Na verdade, como dizemos, quem fizesse isso não se assemelharia em nada a quem sabe o que é belo e o que é bom, nem a quem distingue o que é causa e o que é causado.

Pode-se ver que a nossa tese é verdadeira se, com o pensamento, nos transportamos à ilha dos bem-aventurados. Lá, com efeito, não há necessida­de de nada, nem se tira vantagem de qualquer coisa, mas existe somente o pensar e a especulação, o que agora chamamos de vida livre. Mas se isso é verdade, não seria justo que se evergonhasse qualquer um de nós, caso se lhe oferecesse a ocasião de ficar na ilha dos bem-aventurados, se se encontrasse por própria culpa na impossibilidade de fazê-lo? Portanto, não é desprezível a compensação que deriva aos homens da ciência, nem é pequeno o bem que dela deriva. Como, de fato, no Hades, segundo dizem os mais sábios dentre [218] os poetas, receberemos o prêmio da justiça, assim nas ilhas dos bem-aventu­rados, ao que parece, deveremos receber o prêmio da sapiência.

Não há, pois, nada de estranho se a sapiência não se mostra útil nem vantajosa, pois não dizemos que ela é útil, mas que é boa, nem é justo desejá- la por causa de outra coisa, mas por ela mesma. Nós, com efeito, vamos a Olímpia em vista do próprio espetáculo, mesmo que deste não derive outra coisa — pois o próprio espetáculo vale mais do que muito dinheiro —, e assistimos às representações dionisíacas não para receber algo da parte dos atores, mas, ao contrário, pagando-lhes, e preferiremos muitos outros espetá­culos a muito dinheiro. Do mesmo modo, também a especulação sobre o universo deve ser estimada mais do que todas as coisas que são consideradas úteis. Não é certamente justo, com efeito, viajar com grande fadiga para ver homens que imitam mulheres e servos, ou combatem e correm, e não considerar um dever especular, sem despesa, sobre a natureza dos seres e sobre a verdade12.

Algum leitor poderá objetar que isso vale para a filosofia grega clássica; mas a filosofia da era helenística e a da era imperial não renegam o caráter da pura teoricidade ou, pelo menos, não o redimensionam radicalmente?

Em poucas palavras já respondemos acima a esse problema. Todavia, dada a sua importância, devemos recolocá-lo e resolvê-lo, ampliando o discurso com a aquisição de ulteriores elementos.

As valências prático-teóricas da filosofia: o “theorein” grego não é um pensar abstrato, mas um pensar que incide profundamente sobre a vida ético-política

Só recentemente foi posto à luz (mas este ponto está ainda longe de ser adquirido no nível da comum opinião) que a “contemplação”
grega implica estruturalmente uma precisa atitude prática diante da vida. Isto significa que a theoria grega não é só uma doutrina de
caráter intelectual e abstrato, mas além disso, e sempre, uma doutrina de vida ou, para dizer de outra maneira, é uma doutrina que postula
estruturalmente uma verificação existencial e, normalmente, a acom­panha. [219] Cornelia de Vogel, recentemente, de maneira oportuna, observou o seguinte: “Dizer que a filosofia, para os gregos, significava reflexão racional sobre a totalidade das coisas é bastante exato se nos limita­mos a isso. Mas se queremos completar a definição, devemos acres­centar que, em virtude da altura do seu objeto, essa reflexão implica­va uma precisa atitude moral e um estilo de vida que eram conside­rados essenciais tanto pelos próprios filósofos como por seus contemporâneos. Isto, em outras palavras, significa que a filosofia não era nunca um fato puramente intelectual. É um erro tão grave susten­tar que no período clássico o estilo de vida não tinha nenhuma relação com a filosofia, quanto afirmar que no mais tardio período helenístico-romano a teoria cedeu à práxis. Pode-se admitir o seguinte: no período mais tardio há um deslocamento de acento dos aspectos teó­ricos para os aspectos práticos da filosofia, não por obra de todos, mas pelo menos em alguns casos”. As conclusões de C. de Vogel são, portanto, as seguintes: Na filosofia grega mais antiga encontramos uma teoria que implica necessariamente uma atitude moral e um estilo de vida; na filosofia grega mais tardia encontramos, não sempre, mas com maior freqüência, uma atitude e um estilo de vida morais que, necessariamente, pressupõem uma teoria.13

Podemos, em suma, dizer que a constante da filosofia grega é o theorein, ora acentuado na sua valência especulativa, ora na sua va­lência moral, mas sempre de modo tal, que as duas valências se implicam reciprocamente de maneira estrutural. De resto, uma outra prova disso está no fato, já observado por de Vogel, que os gregos consideraram sempre como verdadeiro filósofo, apenas aquele que demonstrou saber realizar uma coerência de pensamento e de vida e, portanto, aquele que soube ser mestre não só de pensamento, mas também de vida.

Pensamos, todavia, que se possa ir ainda além das conclusões de C. de Vogel.

Compreende-se facilmente que a confrontação com o absoluto e com o todo comporta um distanciamento das coisas que os homens comumente valorizam — como, por exemplo, a riqueza, as honras, o [220] poder e semelhantes — e, portanto, uma vida de tipo, digamos, “as­cético” , pois contemplando o todo, mudam necessariamente todas as usuais perspectivas e, nessa ótica global, muda o significado da vida do homem e impõe-se uma nova hierarquia de valores.

Mas o ponto que estamos discutindo se esclarece ainda mais pondo em confronto a “contemplação” e a “política”, conceitos que, para nós modernos, parecem antitéticos, e que, ao invés, os filósofos gregos uniram entre si de maneira essencial, revelando, justamente nisso, a natureza do seu theorein.

As fontes antigas atestam a atividade política de muitos pré-socráticos. Não se trata da política militante, mas da superior ativida­de de legislar e dar conselhos à Cidade. E sempre as mesmas fontes atestam expressamente que leis e conselhos dados por esses filósofos foram boas leis e bons conselhos. Até aqui, porém, trata-se de tra­dição indireta, que não nos permite captar o preciso nexo subsistente entre theoria e política.

Também os sofistas, como sabemos, visaram, com a sua filo­sofia, fazer obra política. Todavia, dos testemunhos que nos che­garam não se mostra, nem mesmo neste caso, o nexo entre as duas atividades.

Mas já em Sócrates esse nexo emerge com toda clareza. Sócrates renunciou à política entendida como práxis militante cotidiana, mas compreendeu perfeitamente e proclamou que o seu filosofar constituía uma espécie de atividade política superior, à medida que ela era formadora de consciências morais enquanto desvelava os verdadeiros valores. O fato de ter conquistado a clara visão do todo do homem como psyché, e o fato de ter visto na psyché o que no homem é semelhante ao divino, comportavam, com efeito, não só uma nova concepção da existência individual, que ele soube realizar de modo paradigmático, mas também um envolvimento dos outros, de todos os outros e, no limite, de toda a Cidade. Platão viu de maneira lucidíssima essa enorme energia prática da “sapiência” so­crática, a ponto de pôr na boca de Sócrates a seguinte afirmação: [221] Eu creio estar entre aqueles poucos atenienses, para não dizer o único, que tente a verdadeira arte política, e o único entre os contemporâneos a exercitá-la14.

Por sua vez, na República, Platão levou essas premissas às extre­mas conseqüências, chegando a indicar nos filósofos transformados em reis (e nos reis tornados filósofos) e, portanto, na filosofia, a salvação dos governos e dos Estados, além da salvação dos homens individuais:

[...] Nem Estado, nem Governo, nem homem algum se tomará per­feito antes que [...] poucos e bons filósofos, que, no entanto, agora são tidos como inúteis, forem constrangidos por boa fortuna, querendo ou não, a se encarregar do Estado, e enquanto a Cidade não for constrangida a obedecer a eles, ou enquanto nos filhos dos reis e dos poderosos de agora, ou neles mesmos, não se acender, por divina inspiração, verdadei­ro amor pela verdadeira filosofia15.

Sobre que bases Platão afirma isso?

Para o nosso filósofo o Bem é o fundamento de tudo: não só do ser e do conhecimento, mas também do agir privado e da atividade pública:

Eis o que me parece: na esfera do cognoscível, última é a Idéia do Bem e muito dificilmente pode ser vista, mas, uma vez vista, é preciso reconhecer que ela é causa de todas as coisas justas e belas, porque gera, na esfera do visível, a luz e o senhor da luz, e, na esfera do inteligível, sendo ela soberana, produz a verdade e a inteligência, e a ela deve olhar aquele que quer com­portar-se de modo razoável na vida privada e na vida pública16.

Mas Platão diz ainda mais. Ele chega, de fato, a descobrir a razão pela qual a contemplação tem valor prático-político.

Quem tem o pensamento voltado para os seres — diz ele — , para os seres que permanecem sempre idênticos e perfeitamente ordenados, não se deixa desviar pelas vãs ocupações dos homens, que enchem a alma de inveja e hostilidade, mas, ao contrário, tende a “imitar” aqueles seres e “a fazer-se semelhante a eles quanto possível”. E, fazendo isso, ou seja, ocupando-se com o que é “ordenado e divino”, o filósofo torna- se, ele mesmo, “quanto possível ordenado e divino”. Conseqüentemente, [222] o filósofo não só transforma a própria vida privada deste modo, mas, quando fosse necessário para ele ocupar-se da vida pú­blica, tenderia a fazer com que o próprio Estado, quanto possível, se tornasse ordenado e divino, isto é, estruturado segundo a virtude17.

Em suma, o conhecimento do todo e do absoluto, que para o nosso filósofo é o Divino e o Transcendente, comporta também a imitação do divino e a assimilação do Divino no indivíduo que o contempla, e comporta, em seguida, também o dever de envolver os outros em tal imitação, justamente na dimensão política.

Dois pontos particulares merecem ainda ser observados.

Platão sublinhou em muitas ocasiões que o conhecimento do todo comporta uma “dissolução das cadeias”, uma “ascensão” e até mesmo um “volver-se de toda a pessoa”, ou seja, uma mudança de vida, uma conversão.

Ademais, ele também afirmou energicamente — e isso foi recen­temente muito bem posto à luz — a necessidade de aquele que viu o absoluto, retornar à “caverna” para “libertar”, ou seja, para “conver­ter” os outros, mesmo que isto lhe custe o preço da própria vida, como ocorreu com Sócrates.

Não menos explícita é a tematização do poder prático-salvífico da “contemplação” no Fedro.

As almas — diz-se no célebre mito desse diálogo — quando estão no além junto com os deuses, giram em torno dos céus, chegam à planície da Verdade, onde contemplam o puro ser (o mundo das Idéias). E quanto mais conseguem contem­plar, tanto mais, reencarnando-se e retomando à terra, serão ricas de energias espirituais e morais. Os melhores homens serão aqueles nos quais habitam almas que “viram” mais, os piores serão aqueles nos quais habitam almas que “viram” menos18.

Isso significa que a vida moral depende de modo estrutural da contemplação: o “fazer” é tanto mais rico quanto mais rico foi o “contemplar”.

Muitos desses conceitos voltam também no Protrético de Aris­tóteles, do qual apresentamos a seção dedicada à discussão das rela­ções entre filosofia e vida prática: [223]

Tal ciência é, pois, especulativa, mas permite-nos ser artífices, com base nela, de todas as coisas. A vista, de fato, não é artífice e produtora de nada, pois a sua tarefa é distinguir e mostrar cada uma das coisas visíveis. Ela, todavia, consente agir por seu intermédio e nos é de grandíssima ajuda para as nossas ações, pois se fôssemos privados dela, seríamos praticamente imó­veis. Do mesmo modo é claro que, embora sendo essa ciência, especulativa, todavia fazemos milhares de coisas com base nela, escolhemos algumas ações e evitamos outras e, em geral, por meio dela, conquistamos todos os bens.

E ainda na Ética Endêmica, Aristóteles proclama expressamente que a “contemplação de Deus” constitui o “critério de referência” para a vida prática.

Dito isso, não é necessário demorar-se sobre as filosofias da era helenística. Elas não fazem senão explorar até o fundo a energia moral, a força ético-salvífica do filosofar, já perfeitamente individuada, como decorre dos documentos que apresentamos, por Platão e Aris­tóteles. E dado que a derrocada da polis levou o homem grego a concentrar-se sobre si mesmo, a descobrir a dimensão do indivíduo e a encerrar-se nela, compreende-se bem que a temática filosófica assumisse — como conseqüência — esse novo ângulo, proclamando a filosofia como “arte de viver”.

Veremos como na criação das grandes éticas da era helenística desempenharam um importante papel a intuição e as situações emo­cionais na abertura de novos horizontes. Mas veremos também, para­lelamente, como foram sempre visões do todo do homem a solicitar novas descobertas, e o quanto se empenharam os diferentes filósofos em situar essa visão do todo do homem em uma visão mais geral do todo cosmo-ontológico, e com que insistência apontaram o conheci­mento da physis e do ser como o verdadeiro fundamento da “arte de viver ’’.

Um único exemplo baste para documentar esse ponto, tirado de Pirro, o iniciador do ceticismo, que é a personagem do qual menos se esperaria uma tomada de posição desse gênero, e que, ao invés, não é menos explícito que os outros filósofos.

Pergunta Tímon nos seus Sili:

Ó Pirro, esse meu coração deseja aprender de ti, como é que tu, embora sendo homem, levas tão facilmente a vida tranqüila, tu que és o único a guiar os homens.

Responde Pirro:

Eu te direi como me parece que seja, tomando como reto cânone esta palavra de verdade: uma natureza do divino vive eternamente, da qual deriva para o homem a vida mais igual19.

A filosofia e a “eudaimonia”

Eudaimonia, a palavra grega que traduzimos por felicidade, sig­nifica, literalmente, ter um bom demônio protetor, do qual depende, conseqüentemente, uma vida próspera.

Mas esse demônio foi logo interiorizado na reflexão filosófica e posto em estreita relação com o interior do homem.

Já Heráclito afirmava:

O caráter é o demônio do homem20.

E ainda Heráclito afirma que a eu-daimonia não está nas coisas corpóreas:

Se a felicidade consistisse nos prazeres do corpo, deveríamos dizer que são felizes os bois, quando comem21.

Isto significa, pelo menos implicitamente, remeter a felicidade à dimensão da psyché.

E já Demócrito explicita esse conceito, como sabemos, de manei­ra surpreendente:

A felicidade não consiste nos rebanhos nem no ouro: a alma é a morada da nossa sorte22.

É justamente esse conceito que se impõe por obra de Sócrates e, sucessivamente, domina de maneira incontrastada por todo o curso da [225] filosofia antiga. É justamente o theorein, como atividade cognoscitiva e moral, que dá a têmpera da alma e a faz tornar-se virtuosa, ou seja, boa. E é evidente que, se o demônio é a nossa alma (ou está na nossa alma), a bondade ou virtude da alma coincide estruturalmente com a eu-daimonia.

Portanto, na educação e na formação da alma e do espírito do homem, e assim na filosofia, que forma a alma mais do que qualquer outro conhecimento, está situada a felicidade.

Em uma passagem do Górgias, Platão faz Sócrates dizer expressamente que a felicidade consiste na formação interior na virtude:

Polo — Evidentemente, ó Sócrates, dirás que nem mesmo o Grande Rei é feliz.
Sócrates — E direi simplesmente a verdade, pois não sei como ele se encontra quanto à interior formação e quanto à justiça.
Polo — Mas como? Toda a felicidade consiste nisso?
Sócrates — A meu ver, sim, ó Polo. Com eleito, eu digo que quem é honesto e bom, seja homem ou mulher, é feliz, e que o injusto e mau é infeliz23.

Essa tese constitui a base de toda a complexa construção da República e, em geral, de toda a ética platônica.

Ulteriores aprofundamentos desse tema serão trazidos por Aris­tóteles, o qual observa que, dado que o viver está ligado ao prazer, daí segue-se que a forma mais elevada de vida, que é a atividade pensante da alma, explicitada do modo mais elevado justamente no filosofar, está ligada ao mais elevado prazer e, portanto, à felicidade.

Na Ética Nicomaquéia é demonstrada a fundo a tese de que o cume da felicidade está na contemplação. O próprio Deus de Aristóteles é auto-contemplação.

Na era helenística, o nexo entre filosofia e felicidade é ulterior­mente acentuado. De resto, uma filosofia que se proponha ser uma arte de viver, uma via que conduz à ataraxía, à paz da alma, não pode não pôr na felicidade o próprio telos. [226] 

Um texto de Epicuro sirva como exemplo para todos:

Nunca se protele o filosofar quando se é jovem, nem canse o fazê-lo quando se é velho, pois que ninguém é jamais pouco maduro nem demasiado maduro para conquistar a saúde da alma. E quem diz que a hora de filosofar ainda não chegou ou já passou, assemelha-se ao que diz que ainda não che­gou ou já passou a hora de ser feliz24.

A radical confiança do filósofo grego na possibilidade de alcançar a verdade e viver na verdade

Aproximando-se superficialmente à história do pensamento gre­go, poder-se-ia crer que nele se encontram duas tendências opostas na determinação das relações entre o homem e a verdade: uma pessimis­ta e outra otimista.

Já Xenófanes parece ter-se expressado com acentos céticos:

E nenhum homem jamais honrou a verdade exata, nem haverá nunca quem saiba verdadeiramente sobre os deuses e todas as coisas que eu digo: pois ainda que alguém chegasse a exprimir uma coisa plenamente no mais alto grau nem mesmo ele teria dela verdadeiro conhecimento, pois de tudo há apenas um saber aparente25.

Também Heráclito escreve:

A verdade ama esconder-se26.

Demócrito reafirma:

A verdade está no abismo27.

Sócrates proclama o bem conhecido saber que não sabe.

Os céticos erigem até mesmo em sistema a inalcançabilidade do verdadeiro. [227]

Mas na realidade, Xenófanes, Heráclito, Demócrito e Sócrates, malgrado estas afirmações, consideram a verdade alcançável. Os céticos, como veremos, não são mais que a exceção — e, ademais, muito parcial — que confirma a regra.

Ao contrário, já Parmênides proclamava a identidade do ser e do pensar:

O mesmo é o pensar e o ser28.

Esta afirmação exprime da maneira mais icástica a fé em que o pensamento humano alcança o verdadeiro (o ser é o verdadeiro).

Platão retoma e desenvolve esses conceitos, estabelecendo a se­guinte equação: o que é plenamente ser é plenamente cognoscível, o que é misto de ser e não-ser só é parcialmente cognoscível, ou seja, opinável; do não-ser só há ignorância. Em suma: o ser comporta, estruturalmen­te, a sua cognoscibilidade. E dado que, para o grego, o Ser é o verda­deiro, o verdadeiro comporta estruturalmente a própria cognoscibilidade.

Também Aristóteles reafirma este ponto, embora com formula­ção diferente. Há proporção entre ser e cognoscibilidade quoad se, mesmo que não quoad nos. Em si, as coisas que têm mais ser são mais cognoscíveis; para nós, ao contrário, são mais cognoscíveis as que têm menos ser. Todavia, é possível ao homem (e esta é, justa­mente, a tarefa da filosofia) fazer com que o que é em si mais cog­noscível, torne-se tal também para nós.

Inabalável confiança na possibilidade de alcançar a verdade de­monstram também os epicuristas e os estóicos: uns indicam na sen­sação, outros na representação cataléptica, a certeza inegável.

Os neoplatônicos nutrem não só a convicção de que o espírito humano possa alcançar o verdadeiro, mas até mesmo que possa extaticamente unificar-se com o absoluto.

De resto, também os filósofos da era helenística, assim como estão certos de poder alcançar o verdadeiro, também estão certos de [228] poder viver no verdadeiro uma vida de felicidade, que pode competir até mesmo com a vida de Zeus.

Por outro lado, deve-se também observar que no conceito da maiêutica socrática está implícita a concepção de que o verdadeiro é, de algum modo, possuído estruturalmente pela alma humana. Essa convicção é retomada e levada às extremas conseqüên­cias pela doutrina platônica da anamnese, segundo a qual a alma é tal, justamente porque teve uma visão original do verdadeiro, que, ao nascer, se obnubila, mas não se perde, e pode constantemente reapa­recer. Essa doutrina será retomada e desenvolvida pelos médio-platônicos e pelos neoplatônicos.

Mas o próprio Aristóteles, que rejeita a doutrina da anamnese, não só mantém a idéia do espírito humano como positiva capacidade de elevar-se ao verdadeiro, mas desenvolve uma série de reflexões sobre a própria verdade, que são, sob muitos aspectos, verdadeira­mente surpreendentes.
Ele escreve, por exemplo, na Retórica:

Os homens são suficientemente dotados para o verdadeiro e alcançam amiúde a verdade27.

E na Metafísica especifica que a busca da verdade, sob certo aspecto, é difícil, sob outro aspecto, é fácil: é difícil porque é impos­sível captar totalmente a verdade, mas é também fácil porque é im­possível não captá-la de nenhum modo. Mas a afirmação mais signi­ficativa sobre isso é a seguinte:

[...] Dado que existem dois tipos de dificuldade, a causa da dificuldade da pesquisa da verdade não está nas coisas, mas em nós. De fato, como os olhos da coruja se comportam diante da luz do dia, assim também a inteli­gência que está em nossa alma se comporta diante das coisas que, pela sua natureza, são as mais evidentes de todas28.

[229]

A verdade está, pois, sempre diante de nós e nós somos circun­dados e envolvidos por ela: é o nosso intelecto que deve habituar-se a vê-la, assim como os nossos olhos devem habituar-se a ver a luz pela qual somos circundados e inundados.

Esse pensamento será reproposto por Plotino em chave metafísi­ca e teológica, com uma audácia verdadeiramente extrema.

A propósito do método da filosofia antiga

Dissemos que o método da filosofia antiga funda-se sobre o logos e sobre a razão. Para poder determinar essa afirmação de maneira circunstanciada deveremos chamar em causa e antecipar muitos ele­mentos, que só em sede analítica podem ser compreendidos.

Digamos apenas que por razão não se deve entender a razão científica de hoje, circunscrita ao âmbito da experiência e do cálculo. De fato, com base nas convicções acima ilustradas, a razão filosófica grega tem possibilidades muito mais amplas e ágeis de tentar aproximar-se e medir-se com o todo.

A experiência, a análise fenomenológica, o consenso de todos os homens, as convicções dos sábios, o procedimento indutivo e a dedu­ção se entrelaçam de variadas maneiras.

Alguns filósofos elaboram lógicas, entre as quais a mais famosa é, certamente, a de Aristóteles, fundada sobre a silogística. Mas — note-se — essas lógicas acabam sendo instrumentos de controle a-posteriori, mais do que verdadeiros guias com os quais são construí­dos os sistemas, os quais, normalmente, se sobrepõem decididamente às relativas lógicas expressamente elaboradas.

Muitos filósofos apelaram explicitamente à intuição, como a que constitui, de algum modo, o princípio do filosofar, dado que os prin­cípios primeiros não podem ser ulteriormente deduzidos e mediados e, portanto, só podem ser colhidos imediatamente, ou seja, intuitiva­mente. [230] 

Esse apelo à intuição não tem nada do sabor irracionalista que é próprio de certo intuicionismo moderno, justamente por causa da convicção da equação entre pensar e ser, que é a base do pensamento grego. Intuição quer dizer, nesse contexto, a visão de que a coisa é de um determinado modo, ou seja, quer dizer evidência, e a evidência é critério racional.

Mas a filosofia antiga individuou pelo menos um tipo de proce­dimento que permanece, de algum modo, privilegiado. É o assim chamado elenchos, largamente utilizado pelos Eleatas, por Sócrates e por Platão, e, particularmente ilustrado por Aristóteles na Metafísica, a propósito do princípio de não-contradição.

Pois bem, diz Aristóteles, o princípio de não-contradição, en­quanto princípio primeiro, não pode ser demonstrado. Ele é imedia­tamente evidente; mas pode ser, em certo sentido, demonstrado, atra­vés da confutação (elenchos) de quem pretende negá-lo. O célebre elenchos consiste, portanto, na mostração da contraditoriedade em que cai aquele que nega o próprio princípio. Com efeito, quem nega o princípio de não-contradição se contradiz, porque, no momento mesmo em que o nega, faz dele um uso subreptício. E o mesmo vale para todas as outras verdades primeiras.

Do ponto de vista do método é esta, provavelmente, a descoberta mais conspícua da filosofia antiga: as supremas verdades irrenunciáveis são aquelas que, no momento mesmo em que alguém as nega, é constrangido a fazer delas uso subreptício no ato de negá-las e, por­tanto, reafirma-as ao negá-las.

Esta é uma verdadeira “emboscada” que as verdades armam, da qual o homem não pode fugir. [231]

Filosofia - Filosofia Clássica
Comportamento - Comportamento desadaptado, 
1/5/2022 1:11:36 PM | Por Paulo Dalgalarrondo
O que é semiologia

A semiologia, tomada em um sentido ge­ral, é a ciência dos signos, não se restrin­gindo obviamente à medicina, à psiquia­tria ou à psicologia. É campo de grande importância para o estudo da linguagem (semiótica lingüística), da música (semio­logia musical), das artes em geral e de to­dos os campos de conhecimento e de ativi­dades humanas que incluam a interação e a comunicação entre dois interlocutores por meio de um sistema de signos.
Entende-se por semiologia médica o estudo dos sintomas e dos sinais das doen­ças, estudo este que permite ao profissio­nal de saúde identificar alterações físicas e mentais, ordenar os fenômenos observa­dos, formular diag­nósticos e empreen­der terapêuticas. Se­miologia psicopatológica é, por sua vez, o estudo dos si­nais e sintomas dos transtornos mentais.

Embora esteja intimamente relacio­nada à lingüística, a semiologia geral não se limita a ela, posto que o signo transcen­de a esfera da língua; são também signos os gestos, as atitudes e os comportamentos não-verbais, os sinais matemáticos, os signos musicais, etc. De fato, a semiologia geral como ciência dos signos foi postula­da pelo lingüista suíço Ferdinand de Saussure [1916] (1970), que afirmou: Pode-se, então, conceber uma ciência que estude a vida dos signos no seio da vida social; [...] chamá-la-emos de Semiologia (do grego semeion, “signo”)- Ela nos ensi­nará em que consistem os signos, que leis os regem.

Charles Morris (1946) discrimina três campos distintos no interior da semiologia: a semântica, responsável pelo estudo das relações entre os signos e os objetos a que tais signos se referem; a sintaxe, que [23] compreende as regras e as leis que regem as relações entre os vários signos de um siste­ma de signos; e, finalmente, a pragmáti­ca, que se ocupa das relações entre os sig­nos e os usuários, os sujeitos que os utili­zam concretamente.

O signo é o elemento nuclear da semiologia; ele está para a semiologia as­sim como a célula está para a biologia e o átomo para a física. O signo é um tipo de sinal. Define-se sinal como qualquer estí­mulo emitido pelos objetos do mundo. As­sim, por exemplo, a fumaça é um sinal do
fogo, a cor vermelha, do sangue, etc. O sig­no é um sinal especial, um sinal sempre provido de significação. Dessa forma, na semiologia médica, sabe-se que a febre pode ser um sinal/signo de uma infecção, ou a fala extremamente rápida e fluente pode ser um sinal/signo de uma síndrome maníaca. A semiologia médica e a psicopatológica tratam particularmente dos signos que indicam a existência de sofrimento mental, transtornos e patologias.

Os signos de maior interesse para a psicopatologia são os sinais comportamentais objetivos, verificáveis pela obser­vação direta do paciente, e os sintomas, isto é, as vivências subjetivas relatadas pe­los pacientes, suas queixas e narrativas, aquilo que o sujeito experimenta e, de al­guma forma, comunica a alguém. Sá Junior (1988) apresenta uma definição de sintoma e sinal um pouco diferente. Ele discrimi­na os sintomas objetivos (observados pelo examinador) dos sintomas subjetivos (per­cebidos apenas pelo paciente). Os sinais, por sua vez, são definidos como dados elementares das doenças que são provocados (ativamente evocados) pelo examinador (si­nal de Romberg, sinal de Babinski, etc.). Segundo o lingüista russo Roman Jakobson [1962] (1975), já os antigos es­tóicos desmembraram o signo em dois ele­mentos básicos: signans (o significante) e signatum (o significado). Assim, todo sig­no é constituído por estes dois elementos: o significante, que é o suporte material, o veículo do signo; e o significado, isto é, aquilo que é designado e que está ausente, o conteúdo do veículo.

De acordo com o filósofo norte-ame­ricano Charles S. Peirce [1904] (1974), se­gundo as relações entre o significado (con­teúdo) e o significante (suporte material) de um signo, há três tipos de signos: o ícone, o indicador e o símbolo. O ícone é um tipo de signo no qual o elemento significante evoca imediatamente o significado, isso gra­ças a uma grande semelhança entre eles, como se o significante fosse uma “fotogra­fia" do significado. O desenho esquemático no papel de uma casa pode ser considerado um ícone do objeto casa. No caso do indica­dor, ou índice, a relação entre o significante e o significado é de contigüidade; o signi­ficante é um índice, algo que aponta para o objeto significado. Assim, uma nuvem é um indicador de chuva, e a fumaça, de fogo.

O símbolo, por sua vez, é um tipo de signo totalmente diferente do ícone e do indicador; aqui o elemento significante e o objeto ausente (significado) são distintos em aparência e sem relação de contigüida­de. Não há qualquer relação direta entre eles; trata-se de uma relação puramente convencional e arbitrária. Entre o conjun­to de letras agrupadas “C-A-S-A” e o obje­to “casa” não existe qualquer semelhança (visual ou de qualquer outro tipo), o que constitui uma relação totalmente conven­cional. Por isso, o sentido e o valor de um símbolo dependem necessariamente das relações que este mantém com os outros sím­bolos do sistema simbólico total; depende, por exemplo, da ausência ou presença de outros símbolos que expressam significa­dos próximos ou antagônicos a [24] ele.

Dimensão dupla do sintoma psicopatológico: indicador e símbolo ao mesmo tempo

Os sintomas médicos e psicopatológicos têm, como signos, uma dimensão dupla. Eles são tanto um índice (indicador) como um símbolo. O sintoma como índice in­dica uma disfunção que está em outro ponto do organismo ou do aparelho psí­quico; porém, aqui a relação do sintoma com a disfunção de base é, em certo sen­tido, de contigüidade. A febre pode corresponder a uma infecção que induz os leucócitos a liberarem certas citocinas que, por sua ação no hipotálamo, produzem o aumento da temperatura. Assim, o sintoma febre tem determinada relação de contigüidade com o processo infeccio­so de base.

Além de tal dimensão de indicador, os sintomas psicopatológicos, ao serem nomeados pelo paciente, por seu meio cultural ou pelo médico, passam a ser “símbolos lingüísticos” no interior de uma linguagem. No momento em que recebe um nome, o sintoma adquire o status de símbolo, de signo lingüístico arbitrário, que só pode ser compreendido dentro de um sistema simbólico dado, em determinado universo cultural. Dessa forma, a angústia manifesta-se (e realiza-se) ao mesmo tempo como mãos geladas, tremores e aperto na garganta (que indicam, p. ex., uma disfunção no sistema nervoso autônomo), e, ao ser tal estado designado como nervosismo, neurose, ansiedade ou gastura, passa a receber certo significado simbólico e cultural (por isso, convencional e arbitrário), que só pode ser adequadamen­te compreendido e interpretado tendo-se como referência um universo cultural es­pecífico, um sistema de símbolos deter­minado.

A semiologia psicopatológica, portanto, cuida espe­cificamente do estudo dos sinais e sin­tomas produzidos pelos transtornos mentais, signos que sempre contêm essa dupla dimensão.

Divisões da semiologia

A semiologia (tanto a médica como a psicopatológica) pode ser dividida em duas grandes subáreas: semiotécnica e semiogênese (Marques, 1970).
A semiotécnica refere-se a técnicas e procedimentos específicos de observação e coleta de sinais e sintomas, assim como à descrição de tais sintomas. No caso dos transtornos mentais, a semiotécnica concentra-se na entrevista direta com o paciente, seus familiares e demais pessoas com as quais convive. A coleta de sinais e sintomas requer a habilidade sutil em formular as perguntas mais adequadas para o estabelecimento de uma relação produtiva e a conseqüente identificação dos signos dos transtornos mentais. Aqui são fundamentais o “como” e o “quando” fazer as perguntas, assim como o modo de interpretar as respostas e a decorrente formulação de novas perguntas. Fundamental, sobretudo para a semiotécnica em psicopatologia, é a observação minuciosa, atenta e perspicaz do comportamento do paciente, do conteúdo de seu discurso e do seu modo de falar, da sua mímica, da postura, da vestimenta, da forma como reage e do seu estilo de relacionamento com o entrevistador, com outros pacientes e com seus familiares.

A semiogênese, por sua vez, é o campo de investigação da origem, dos me­canismos, do significado e do valor diag­nóstico e clínico dos sinais e sintomas. Fi­nalmente, alguns autores utilizam o termo propedêutica médica ou psiquiátrica para designar a semiologia. Propedêutica, de modo geral, é termo empregado em várias áreas do saber para designar o ensino pré­vio, os conhecimentos preliminares neces­sários ao início de uma ciência ou filoso­fia. Prefiro o termo semiologia à pro­pedêutica, mas reconheço que a semiologia psicopatológica (como propedêutica) pode ser concebida como uma ciência prelimi­nar, necessária a todo estudo psicopatológico e prática clínica psiquiátrica.

Síndromes e entidades nosológicas

Na prática clínica, os sinais e os sintomas não ocorrem de forma aleatória; surgem em certas associações, certos clusters mais ou menos freqüentes. Definem-se, portan­to, as síndromes como agrupamentos re­lativamente constantes e estáveis de deter­minados sinais e sintomas. Entretanto, ao se delimitar uma síndrome (como síndrome depressiva, demencial, paranoide, etc.), não se trata ainda da definição e da identi­ficação de causas específicas e de uma na­tureza essencial do processo patológico. A síndrome é puramente uma definição des­critiva de um conjunto momentâneo e re­corrente de sinais e sintomas.

Denominam-se entidades nosológicas, doenças ou transtornos específicos os fenômenos mórbidos nos quais podem-se identificar (ou pelo menos presumir com certa consistência) certos fatores causais (etiologia), um curso relativamente homo­gêneo, estados terminais típicos, meca­nismos psicológicos e psicopatológicos característicos, antecedentes genético-familiares algo específicos e respostas a tratamentos mais ou menos previsíveis. Em psicopatologia e psiquiatria, trabalha-se muito mais com síndromes do que com doenças ou transtornos específicos, embo­ra muito esforço tenha sido (há mais de 200 anos!) empreendido no sentido de identifi­car entidades nosológicas precisas. Cabe lembrar que o reconhecimento dessas enti­dades não tem apenas um interesse cientí­fico ou acadêmico (valor teórico); ele ge­ralmente viabiliza ou facilita o desenvolvi­mento de procedimentos terapêuticos e pre­ventivos mais eficazes (valor pragmático).

Psicologia - Psicopatologia
Temas gerais - Tópicos gerais, 
12/13/2021 3:37:35 PM | Por Giovanni Reale
O círculos dos socráticos e as escolas socráticas menores

Na Apologia, Platão põe na boca de Sócrates, dirigindo-se aos jui­zes que o condenaram, uma afirmação que, naquele momento do processo, queria ser uma profecia, mas, no mo­mento em que Platão a escreve, já era realidade. Eis toda a passagem: "Mas a vós que me haveis condenado quero fazer uma predição, e dizer aquilo que acontecerá depois. Eu já estou naquele limite no qual mais facilmen­te os homens fazem predições, quando estão para morrer. Eu digo, ó cidadãos que me matais, que uma vingança recairá sobre vós, logo depois da minha morte, muito mais grave do que aquela que cometeis ao matar-me. Hoje fazeis isso na esperança de vos libertardes do dever de dar conta da própria vida; e, ao invés, passar-vos-á todo o contrário: eu vo-lo digo antecipadamente. Não mais apenas eu, mas muitos vos pedirão contas: todos aqueles que até hoje eu moderava, e vós não percebestes. E serão tanto mais obstinados quanto mais jovens; e a vossa irritação será tanto maior. Pois se pensais que, matando homens, impedis que alguém vos repreenda pela vossa vida não reta, estais enganados. Não, não é este o modo de se libertar deles; e nem é possível nem belo; mas há outro modo belíssimo e muito fácil, em vez de caçar ao outro a palavra, esforçar-se por ser sempre mais virtuosos e melhores. Este é o meu vaticínio para vós que me haveis condenado; e aqui termino1.

Com efeito, não só é verdade que os discípulos, que continuaram a obra socrática, submeteram a exame a vida dos homens e, confutando-Ihes as falsas opiniões, foram numerosos e intrépidos, de modo a subverter, com as suas doutrinas, todos os esquemas da tradição moral à qual se apegaram os acusadores de Sócrates; mas é também verdade que nenhum filósofo, antes ou depois de Sócrates, teve a ventura de ter tantos discípulos imediatos e de tal riqueza e variedade de orien­tações, como foram aqueles que se formaram sob o seu magistério.

Já a antiga doxografia deu-se conta disso e ligou a Sócrates quase todas as sucessivas escolas filosóficas, inclusive as da era helenística. Veremos que isto é substancialmente verdade e que Sócrates também foi, em certa medida, pai do epicurismo e do estoicismo (e, em certo sentido, até mesmo do pirronismo); de resto, isso aconteceu em conseqüência de uma complexa série de fenômenos e, portanto, só mediatamente. Todavia, mesmo que se prescinda das influências mediatas do socratismo, continua sendo verdade o que acima afirma­mos: Sócrates foi circundado de homens de inteligência e de têmpera verdadeiramente excepcionais.

Diógenes Laércio, entre todos os amigos de Sócrates, indica sete como os mais representativos e ilustres: Xenofonte, Ésquines, Antístenes, Aristipo, Euclides, Fédon, e o maior de todos, Platão. Se excetuarmos Xenofonte e Esquines, que não tiveram inteligência propriamente filo­sófica (o primeiro foi principalmente um historiador, o segundo um literato), os outros cinco foram todos fundadores de escolas filosóficas.

O sentido e o alcance de cada uma dessas cinco escolas são muito diferentes e são também diferentes os feitos a que chegaram, como veremos de modo particularizado; todavia cada um dos funda­dores deve ter-se sentido um autêntico (senão o único autêntico) herdeiro de Sócrates. A excepcional ligação ao mestre de todos estes discípulos é atestada de modo preciso; antes, a história das relações de cada um com ele (no início ou no seu desenvolvimento) registra algo de excepcional.

Eis o que se narra de Xenofonte:

Xenofonte, filho de Grilo, era ateniense, de Érquia, extremamente mo­desto e de belíssimo aspecto. Conta-se que Sócrates encontrou-o numa via estreita, estendeu-lhe o bastão, para impedir-lhe a passagem, perguntou-lhe onde se vendiam todos os tipos de alimentos. Xenofonte respondeu; mas Sócrates perguntou-lhe ainda onde os homens tornavam-se virtuosos; e como ele permanecesse calado, disse Sócrates: “Segue-me e aprenderás”. E desde então foi discípulo de Sócrates. E por primeiro anotou as conversações de Sócrates e tornou-as conhecidas ao público numa obra com o título Comen­tários. Foi o primeiro dos filósofos a escrever obras históricas2.

De Ésquines conta-se esta formidável anedota, que mostra o seu total apego a Sócrates:

A Ésquines, que lhe disse: “Sou pobre, não tenho nada, dou-te a mim mesmo”, [Sócrates] replicou: “Não te dás conta, portanto, da grandeza do teu dono?”3

De Antístenes narra-se que, tendo conhecido e ouvido Sócrates depois de já ter fundado a sua escola, tirou dele tanto proveito, que exortou os seus discípulos a serem junto com ele co-discípulos de Sócrates4.

É-nos referido este fato muito indicativo: Dado que habitava no Pireu, Antístenes todos os dias subia quarenta estádios para ouvir Sócrates.

De Aristipo conta-se que, depois de ter ouvido, por ocasião dos jogos olímpicos, falar de Sócrates, foi tomado por tal perturbação, que até o seu físico se ressentiu e não se refez senão quando, da longínqua Cirene, veio a Atenas e tornou-se ouvinte de Sócrates. De Euclides de Megara narra-se que, para poder continuar ouvin­do Sócrates, ele não exitou em desafiar o perigo de morte. De fato, em conseqüência de uma inimizade surgida entre Atenas e Megara, os atenienses decretaram a pena de morte a todos os megáricos que entrassem na sua cidade: e Euclides, não obstante, continuou a ir regularmente de Megara a Atenas, durante a noite, travestido com
roupas femininas.

O afeto que ligava Sócrates a Fédon é atestado por Platão no diálogo homônimo, sobretudo na passagem, chamada justamente a “dos cabelos de Fédon”, que é conhecidíssima. De resto, sabemos que Sócrates livrou Fédon, de modo surpreendente, de uma dupla escravidão, material e moral.

Eis, enfim, o que Diógenes Laércio refere acerca de Platão:

Conta-se que Sócrates sonhou que trazia no colo um pequeno cisne que, repentinamente, abriu as asas e partiu, e, suavemente, cantou. No dia seguin­te, apresentando-se a ele Platão como aluno, disse que o pequeno cisne era justamente ele.

E ainda...

Enquanto [Platão] preparava-se para participar com uma tragédia na competição, ao ouvir a voz de Sócrates, diante do teatro de Dionísio, quei­mou a obra exclamando: “Efesto, vem aqui, Platão agora precisa de ti". Desde então — e tinha vinte anos — foi discípulo de Sócrates até a sua morte5.

Muitas dessas narrações são talvez lendas ou ampliadas de ma­neira lendária; em todo caso, representam muito bem os diferentes temperamentos e as diferentes características dessas personagens.

Filosofia - Filosofia Clássica
Comportamento - Inteligência emocional, Autocompaixão
12/8/2021 12:45:04 PM | Por Kristin Neff
Por que autocompaixão

Quantos de nós nos sentimos realmente bem nesta sociedade extrema­ mente competitiva? Sentir-se bem parece uma coisa fugaz. Especialmente porque, para nos sentirmos merecedores, precisamos nos sentir especiais e acima da média. Qualquer coisa menor soa como fracasso. Lembro-me de quando era caloura na faculdade e, depois de passar horas me pre­ parando para uma grande festa, reclamei para meu namorado que o meu cabelo, maquiagem e roupa não estavam adequados. Ele tentou me tranqüilizar, dizendo: “Não se preocupe, você está bem.”

“Bem? Áh, tá. Era isso que eu queria. Estar bem...”

O desejo de se sentir especial é compreensível. O problema é que, por definição, é impossível estarmos todos acima da média ao mesmo tempo. Embora existam qualidades que nos destacam, sempre há alguém mais inteligente, mais bonito, mais bem-sucedido. Como lidar com isso? Não sabemos muito bem. Para vermos a nós mesmos de forma positiva, temos a tendência de inflar nosso próprio ego e rebaixar o dos outros, para que possamos nos sentir bem em relação a eles. Mas essa estratégia tem um preço: impede-nos de alcançar o nosso potencial pleno na vida.

Espelhos distorcidos

Se for preciso me sentir melhor do que você para eu estar bem co­migo, será que realmente vejo você com clareza? Será que sou capaz de enxergar a mim mesma? Digamos que tenha tido um dia estressante no trabalho e por isso ficado mal-humorada e irritada com meu marido quando ele chegou em casa mais tarde naquela noite (puramente hipo­tético, é claro). Se eu estiver muito interessada em ter uma autoimagem positiva e não quiser correr o risco de me ver sob uma luz negativa, minha interpretação dos fatos garantirá que qualquer atrito entre nós seja culpa do meu marido, e não minha.

“Que bom que está em casa. Fez as compras que pedi?”
“Acabei de passar pela porta. Que tal dizer ‘é bom ver você, querido,
como foi seu dia?”
“Ora, se você não fosse tão esquecido, talvez eu não precisasse per­guntar sempre.”
“O fato é que eu fiz as compras.”
“Oh... Bem, hum... É a exceção que confirma a regra. Eu queria poder confiar em você sempre.”

Essa não é exatamente a receita para a felicidade.]

Por que é tão difícil admitir quando agimos mal, quando somos rudes ou impacientes? Porque satisfazemos o nosso ego quando projetamos nossas falhas e deficiências nas outras pessoas. A culpa é sua, não minha. Basta pensar em todas as discussões e brigas que crescem a partir dessa simples dinâmica. Cada pessoa culpa o outro por ter dito ou feito algo errado, justificando suas próprias ações como se sua vida dependesse disso. Lá no fundo do coração, ambos sabemos que se um não quer, dois não brigam. Quanto tempo desperdiçamos com isso? Não seria muito melhor se pudéssemos apenas admitir isso e jogar limpo?

Mas é mais fácil falar do que fazer. Se não pudermos nos ver com clareza, torna-se quase impossível percebermos nossas características que causam problemas para os outros ou que nos impedem de alcançar o nosso pleno potencial. Como podemos crescer se não conseguimos  identificar nossas próprias fraquezas? Temporariamente, podemos nos sentir melhor em relação a nós mesmos ignorando nossas falhas ou acreditando que nossos problemas e dificuldades são culpa de outra pessoa. Mas, em longo prazo, só nos prejudicamos, ficando presos em intermináveis ciclos de estagnação e conflitos.

O Preço do autojulgamento

Alimentar continuamente nossa necessidade de autoavaliação positiva é um pouco como se empanturrar de doces. Ficamos embriagados de açúcar e, em seguida, vem uma queda brusca. Na queda, entramos em desespero. É quando percebemos que, por maior que seja a nossa vontade, nem sempre podemos culpar os outros por nossos problemas. Nem sempre podemos nos sentir especiais e acima da média. Muitas vezes, o resultado é devastador.

Olhamos no espelho e não gostamos do que vemos (literal e figurativamente), e então a vergonha começa a tomar forma. A maioria de nós é extremamente dura em relação a si quando consegue admitir alguma falha ou defeito. Pensamos: “Eu não sou bom o suficiente. Sou um inútil”. Por isso, preferimos esconder a verdade de nós mesmos, pois recebemos a honestidade como uma dura condenação.

Em áreas difíceis de nos enganarmos - por exemplo, quando com­paramos o nosso peso ao de modelos de revistas ou as nossas contas bancárias às dos ricos e bem-sucedidos causamo-nos uma imensa dor emocional. Perdemos a fé em nós mesmos, começamos a duvidar de nosso potencial e perdemos a esperança. Naturalmente, esse estado de tristeza apenas produz mais autocondenação por sermos perdedores que não fazem nada. Assim, caímos cada vez mais.

Mesmo quando conseguimos nos sair bem, as regras do jogo para atingir o "suficientemente bom” parecem sempre permanecer fora de alcance, o que é frustrante. Precisamos ser inteligentes e atléticos e ele­gantes e interessantes e bem-sucedidos e sexies. Ah, e espiritualizados também. Não importa o quanto façamos algo bem, sempre haverá al­guém que parece fazer melhor. O resultado dessa linha de pensamento é preocupante: milhões de pessoas precisam tomar medicamentos todos  os dias apenas para lidar com o seu cotidiano. A insegurança, a ansie­dade e a depressão são extremamente comuns em nossa sociedade, e muito disso é devido ao autojulgamento, por nos martirizarmos quando sentimos que não estamos vencendo no jogo da vida.

Outra maneira

Então, qual é a resposta? É preciso parar com o autojulgamento de uma vez por todas e exercitar as autoavaliações. Parar com os rótulos de “bom” ou “mau” e simplesmente se aceitar de coração aberto. Devemos nos tratar com a mesma bondade, carinho e compaixão que dedicamos a um bom amigo ou mesmo a um estranho. Não há quase ninguém a quem tratemos tão mal quanto a nós mesmos.

Quando me deparei com a ideia de autocompaixão, minha vida mu­dou quase imediatamente. Foi no último ano do meu doutorado sobre Desenvolvimento Humano na Universidade de Berkeley, na Califórnia, quando estava dando os retoques finais na minha tese. Eu passava por um momento muito difícil com o fim do meu primeiro casamento e estava cheia de vergonha e autoaversão. Tive a ideia de me inscrever em aulas de meditação em um centro budista perto dali. Quando pe­quena, já nutria um interesse pela espiritualidade oriental. Fui criada nos arredores de Los Angeles por uma mãe de mente aberta, mas nunca tinha levado a meditação a sério. Além disso, nunca tinha examinado a filosofia budista porque a minha exposição ao pensamento oriental foi mais na linha New Age da Califórnia. Como parte da minha busca, li o clássico livro da Sharon Salzberg, Loving Kindness (A Bondade Amorosa) e nunca mais fui a mesma.

Eu sabia que os budistas falavam muito sobre a importância da com­paixão, mas nunca antes tinha considerado que a compaixão por si mesmo podia ser tão importante quanto a compaixão pelos outros. Do ponto de vista budista, você tem de cuidar de si mesmo antes que possa realmente se preocupar com as outras pessoas. Se você se julga e se critica conti­nuamente enquanto tenta ser gentil com os outros, acaba desenhando fronteiras e distinções artificiais que só levam a sentimentos de separação  e isolamento. Esse movimento é oposto à unidade, à interconexão e ao amor universal - objetivos finais da maioria dos caminhos espirituais, não importa qual seja a tradição.

Meu novo noivo, o Rupert, ia comigo às reuniões semanais do grupo de budistas. Lembro-me de como ele balançava a cabeça com espanto e dizia: “Quer dizer que é possível se permitir ser bom consigo mesmo e ter autocompaixão diante do fracasso ou de momentos difíceis? Não sei... Se eu for muito autocompassivo não vou estar apenas sendo preguiçoso e egoísta?” Levei um tempo para colocar a minha cabeça em ordem. Mas lentamente percebi que a autocrítica, apesar de ser sancionada pela sociedade, não era de forma alguma útil. Na verdade, ela só piorava as coisas. Eu não me tornava uma pessoa melhor por me bater o tempo todo. Em vez disso, sentia-me inadequada e insegura e jogava a minha frustração nas pessoas próximas. Mais do que isso, havia muitas coisas que eu não admitia, porque tinha muito medo do auto-ódio que viria se eu encarasse a verdade.

Rupert e eu aprendemos a fornecer a nós mesmos, individualmente, doses de amor, aceitação e segurança que, antes, esperávamos extrair do nosso relacionamento. Isso significou um aumento desses senti­mentos em nossos corações para darmos um ao outro. Estávamos tão comovidos com o conceito da autocompaixão que, em nossa cerimônia de casamento, ainda naquele ano, cada um terminou os votos, dizendo: “Acima de tudo, prometo te ajudar a ter compaixão por ti mesmo, para que possas prosperar e ser feliz.”

Depois do meu doutorado, fiz dois anos de pós-doutorado com uma pesquisadora especialista em autoestima. Queria saber mais sobre como as pessoas determinam o seu senso de autoestima, e aprendi rapidamen­te que o campo da psicologia estava se desencantando com a teoria da autoestima como o suprassumo da saúde mental. Apesar dos milhares de artigos escritos sobre a importância da autoestima, os investigadores começam a apontar todas as suas armadilhas: narcisismo, egocentrismo, raiva hipócrita, preconceito, discriminação e assim por diante. Percebi que a autocompaixão era a alternativa perfeita para a busca incessante da autoestima. Por quê? Porque oferece a mesma proteção contra a dura autocrítica, mas sem a necessidade de nos vermos como seres perfeitos ou como melhores do que os outros. Em outras palavras, a autocompaixão proporciona os mesmos benefícios que a autoestima elevada, mas sem as suas desvantagens.

Quando consegui um emprego como professora assistente na Uni­versidade de Austin, no Texas, decidi que, assim que estivesse instalada, gostaria de realizar pesquisas sobre a autocompaixão. Embora ninguém ainda houvesse definido autocompaixão numa perspectiva acadêmica - muito menos feito qualquer pesquisa a esse respeito -, eu sabia que esse seria o trabalho da minha vida.

Então, o que é autocompaixão? O que ela significa exatamente? Em geral, acho que a melhor maneira de descrever a autocompaixão é começando com uma experiência mais familiar - compaixão pelos outros. Afinal de contas, a compaixão que direcionamos a nós mesmos é a mesma que damos a outras pessoas.

Compaixão pelos outros

Imagine que você está preso no trânsito no caminho para o trabalho e um sem-teto pede um trocado para lavar o vidro do seu carro. “Ele é tão insistente!’’ Você pensa. Ele vai me fazer perder o sinal e chegar tarde. Pro­vavelmente só quer o dinheiro para bebida ou drogas. Se eu ignorá-lo, talvez ele me deixe em paz. Mas ele não ignora você, que permanece sentado odiando-o, enquanto limpa o vidro; você vai se sentir culpado se não lhe der algum dinheiro e ressentido se o fizer.

Até que um dia algo muda subitamente. Lá está você, no mesmo trânsito, no mesmo sinal, na mesma hora, e lá está o homem, com seu balde e rodo, como de costume. No entanto, por alguma razão desco­nhecida, hoje você o vê de forma diferente. Você o vê como uma pessoa e não como um mero aborrecimento. Você percebe o seu sofrimento. Como ele sobrevive? A maioria das pessoas simplesmente o expulsa. Ele enfrenta esse trânsito e essa fumaça todos os dias e certamente não ganha muito. Pelo menos está tentando oferecer algo em troca de dinheiro. Deve ser muito difícil quando as pessoas são hostis com você o tempo todo. Qual será a história dele?

Como fui fazer isso? No momento em que você vê o homem como um ser humano real que está sofrendo, seu coração se conecta com ele. Em vez de ignorá-lo, você se encontra - para seu espanto - reservando um momento para pensar em como a vida dele deve ser difícil. Você está movido pela sua dor e sente o desejo de ajudá-lo de alguma forma. E, mais importante, se o que você sente é a verdadeira compaixão, em vez de mera piedade, você diz para si mesmo: Graças a Deus. Se eu tivesse nascido em circunstâncias diferentes, ou se tivesse tido apenas azar, também poderia estar lutando para sobreviver como ele. Somos todos vulneráveis.

Claro, esse pode ser o momento em que você endurece o seu coração completamente - o seu próprio medo de acabar na rua o leva a desumanizar esse amontoado horrível de trapos e barba. Muitas pessoas agem assim. Mas endurecer o coração não torna ninguém mais feliz. Não nos ajuda a lidar com as tensões do trabalho, com nossos cônjuges ou filhos quando chegamos em casa. Não nos ajuda a enfrentar nossos próprios medos. Esse endurecimento do coração envolve achar-se melhor do que o sem-teto e, se muda algo, muda tudo para pior.

Mas suponhamos que você não se fecha e realmente experimenta a compaixão pela infelicidade do sem-teto. Como você se sente? Esse é um sentimento muito bom. É maravilhoso quando o seu coração se abre - você se sente imediatamente mais conectado, vivo, presente.

Agora, imaginemos que o homem não estivesse tentando lavar os vidros em troca de algum dinheiro. Talvez ele estivesse apenas pedindo dinheiro para comprar álcool ou drogas. Você ainda sentiria compai­xão por ele? Sim. Você não tem que convidá-lo para ir à sua casa nem lhe dar dinheiro. Você pode decidir dar-lhe um sorriso amável ou um sanduíche se sentir que é a coisa mais responsável a fazer. Mas sim, ele ainda é digno de compaixão. Todos nós somos. A compaixão não é relevante apenas para as vítimas inocentes, mas também para aqueles cujo sofrimento decorre de falhas, fraqueza pessoal ou decisões ruins. Você sabe: do tipo que você e eu cometemos todos os dias.

Acompaixão, portanto, envolve o reconhecimento e a visão clara do sofrimento. Ela também envolve sentimentos de bondade pelas pessoas que sofrem, de modo que o desejo de ajudar a amenizar o sofrimento  cresce. Finalmente, a compaixão envolve reconhecer a nossa condição humana compartilhada, imperfeita e frágil como ela é.

Compaixão por nós mesmos

Aautocompaixão, por definição, envolve as mesmas qualidades. Em primeiro lugar, é necessário que reconheçamos nosso próprio sofrimento. Não podemos ser movidos por nossa própria dor sem ao menos reconhe­cermos que ela existe. Claro que, às vezes, o fato de estarmos sofrendo é absolutamente óbvio e não conseguimos pensar em mais nada. No entanto, com mais frequência do que se imagina, não reconhecemos quando estamos sofrendo. Grande parte da cultura ocidental tem a forte tradição do “nariz empinado”. Somos ensinados a não reclamar, devemos apenas continuar. Se estamos em uma situação complicada ou estressante, raramente paramos para dar um passo atrás e reconhecer como aquele momento é difícil para nós.

Quando a nossa dor vem do autojulgamento, é ainda mais difícil vê-la como um momento sofrido. É o que acontece quando você sente raiva de si mesmo por maltratar alguém ou por fazer alguma observação estúpida em uma festa. Foi o que aconteceu quando, certa vez, perguntei a uma amiga de barriguinha saliente que eu não via há algum tempo: “Está esperando bebê?”. “Eu, não”, ela respondeu. “Engordei um pouco ultimamente." “Ah...”, eu disse, e meu rosto ficou vermelho de vergonha. Normalmente não reconhecemos esses momentos como um tipo de dor digno de uma resposta compassiva. Afinal de contas, eu errei. Não significa que deveria ser punida? Bem, você pune os seus amigos ou a sua família quando eles cometem erros? Está bem, talvez às vezes um pouco, mas você se sente bem com isso?

Todos cometem erros eventuais, é um fato da vida. E, pensando bem, por que você deveria ser diferente? Onde está aquele contrato que assinou antes do nascimento, prometendo ser perfeito, nunca falhar e seguir sua vida exatamente do jeito que você queria? Eh, com licença. Deve haver algum erro. Eu me inscrevi para o plano “tudo sairá às mil ma­ravilhas até o dia em que eu morrer. Posso falar com o gerente, porf avor?” É  um absurdo! Ainda assim, a maioria de nós age como se algo estivesse completamente errado quando falhamos ou quando a vida toma um rumo indesejado ou inesperado.

Há desvantagens na nossa cultura fomentadora da ética da indepen­dência e da realização individual. Se não alcançamos continuamente nossos objetivos, sentimo-nos culpados. E se falhamos significa que não merecemos compaixão, certo? A verdade é que todo mundo é digno de compaixão. O próprio fato de sermos seres humanos conscientes experienciando a vida no planeta significa que somos intrinsecamente valiosos e merecedores de atenção. De acordo com o Dalai Lama, “os seres humanos, por natureza, querem a felicidade, e não o sofrimento. Com esse sentimento, todo mundo tenta alcançar a felicidade e se livrar do sofrimento, e todos têm o direito básico de fazê-lo... Basicamente, do ponto de vista do valor humano real, somos todos iguais”. Sem dúvida foi esse o mesmo sentimento que inspirou a Declaração de Independência dos Estados Unidos: “Consideramos estas verdades como autoevidentes, que todos os homens são criados iguais, que são dotados pelo Criador de certos Direitos inalienáveis, que entre estes estão a Vida, a Liberdade e a busca da Felicidade”. Não precisamos ganhar o direito à compaixão: é nosso direito de nascença. Somos humanos e nossa capacidade de pensar e sentir, combinada com o nosso desejo de sermos felizes ao invés de sofrermos, garante a compaixão por si só.

Contudo, muitas pessoas são resistentes à ideia da autocompaixão. Essa não seria, na verdade, apenas uma forma de autocomiseração? Ou uma palavra bonita para a autoindulgência? Vou mostrar ao longo deste livro por que essas suposições são falsas e vão diretamente contra o real significado da autocompaixão. Você verá que a autocompaixão envolve querer saúde e bem-estar para si, e leva a um comportamento proativo. Busca-se melhorar a situação, e não permanecer na passivi­dade. Sobretudo, a autocompaixão não significa considerar os meus problemas mais importantes do que os seus, significa apenas colocar ambos os problemas no mesmo nível de importância, entendendo-os como dignos de serem atendidos.

Portanto, em vez de se condenar por seus erros e fracassos, você pode usar a experiência do sofrimento para amolecer seu coração. Pode se desvencilhar dessas expectativas irreais de perfeição que o fazem sentir-se tão insatisfeito e abrir a porta à satisfação real e duradoura, dando-se a compaixão de que você precisa no momento.

A pesquisa que meus colegas e eu realizamos na década passada mostra que a autocompaixão é uma maneira poderosa para alcançar o bem-estar emocional e o contentamento em nossas vidas. Quando nos damos bondade incondicional e conforto ao abraçarmos a experiência humana, por mais difícil que seja, evitamos os padrões destrutivos do medo, da negatividade e do isolamento. Ao mesmo tempo, a autocom­paixão promove estados mentais positivos, como a felicidade e o oti­mismo. Cultivar a qualidade da autocompaixão nos permite florescer e apreciar a beleza e a riqueza da vida, mesmo em tempos difíceis. Quando acalmamos nossas mentes agitadas com a autocompaixão, somos mais capazes de perceber o que está certo e o que está errado. Podemos nos orientar na direção do que nos dá alegria.

A autocompaixão fornece uma ilha de calmaria, um refúgio dos mares tempestuosos do interminável autojulgamento, positivo e nega­tivo, para que finalmente possamos parar de perguntar: "Sou tão bom quanto eles? Sou bom o suficiente?” Bem aqui, ao nosso alcance, temos os meios para fornecer a nós mesmos o apoio cuidadoso e caloroso que desejamos profundamente. Quando bebemos da nossa fonte interior de bondade, reconhecendo a natureza compartilhada da nossa condição humana imperfeita, nos sentimos mais seguros, mais aceitos e mais vivos.

De muitas formas, a autocompaixão é como mágica porque tem o poder de transformar o sofrimento em alegria. Tara Bennet-Goldman, em seu livro Alquimia Emocional: como a mente pode curar o coração, usa a metáfora da alquimia para simbolizar a transformação espiritual e emocional possibilitada pelo ato de abraçarmos nossa própria dor com uma preocupação atenciosa. Quando nos entregamos à compaixão, o nó apertado do autojulgamento negativo começa a se dissolver e é subs­tituído por uma sensação de calma e aceitação - o diamante brilhante que emerge do carvão.

Psicologia - Psicologia humanista
Comportamento - Desequilíbrio psicológico, 
12/8/2021 12:36:12 PM | Por Robert Biswas-Diener, Todd B. Kashdan
Por que é bom não estar bem

No primeiro tempo de um jogo de basquete profissional, quando Pat Riley era o treinador do Los Angeles Lakers, o time estava totalmente desconcentrado. Os jogadores ficavam olhando para as meninas da torcida, fazendo piadas, praticamente ignorando o que se passava na quadra. O único a manter a cabeça no lugar foi o astro do basquete Kareem Abdul-Jabbar. No inter­ valo, Riley simulou um ataque de raiva, que começou com gritos e culminou com uma bandeja cheia de copos de água derrubada. O único atingido foi Kareem, que ficou encharcado. Essa cena le­vou os jogadores a se sentirem culpados pelo mau comportamen­to que fez Kareem sofrer injustamente a ira do treinador. A partir daí eles se compenetraram, superaram a diferença de 24 pontos e venceram o jogo. Acontece que, desde o começo, Riley teve a in­tenção de jogar a água em Kareem, e a estratégia funcionou.

Alguém acha que o time teria jogado melhor se, no intervalo, Riley tivesse ido para o vestiário com a intenção de criar uma atmosfera de alegria, calma e contentamento? Naquele momen­to, a raiva era exatamente o que a situação exigia. Como vimos pela reação dos jogadores, as emoções negativas podem ser alta­mente motivadoras. Se você não se abrir para aceitar sentimentos negativos, poderá perder ótimas oportunidades de usar alguns dos [87] instrumentos mais úteis na vida. Se cair na tentação de procurar sempre algo positivo em que se agarrar, na esperança de eliminar, dissimular ou esconder emoções negativas, vai sair perdendo no jogo da vida. Ao evitar as emoções negativas, você estará, invo­luntariamente, sufocando a felicidade, a fortaleza de caráter, a curiosidade, a maturidade, a sabedoria e o crescimento pessoal. Se você abafar as emoções negativas, abafa as positivas também. Lembra-se dos norte-americanos deprimidos que não riram do filme cômico?

Por que o mau pode ser mais potente que o bom

Roy Baumeister e seus colegas da Universidade Estadual da Fló­rida publicaram um artigo intitulado “Bad is Stronger thatn Good” [O mau é mais forte que o bom].1 É sse título ousado sugere que os psicólogos tinham dado um jeito de medir o bom e o mau no mun­do, e o resultado foi a favor do lado mau. Na verdade, o artigo afir­ma que temos uma reação mais forte aos eventos negativos da vida do que aos eventos positivos. Tomemos apenas um exemplo: nu­ma pesquisa com adultos norte-americanos escolhidos aleato­riamente e mais ou menos como nós, constatou-se que o fato de terem passado um dia muito agradável não influenciava a quali­dade do dia seguinte. Por outro lado, um dia péssimo se refletia no dia seguinte logo ao acordar (cambaleando), no café da manhã (achando tudo horrível), indo para o trabalho (fechando todos os carros na via expressa para ganhar dois minutos). O mesmo pa­drão surge diversas vezes na pesquisa psicológica:[88]

  • O sexo bom no casamento está relacionado a cerca de 20% da diferença de satisfação marital entre marido e mulher.2 Quando o sexo não é bom, a variação sobe para 50% a 75%.
  • Perguntaram a crianças em idade escolar se algum colega de classe era um “amigo indesejável”.3 Se punham alguém na lista, justificavam dizendo que o colega não era bom nos esportes ou no dever de casa, entre outros mil defeitos. Mas na lista de “amigos desejáveis” não vinha ao caso se era atlé­tico, estudioso ou bonito.
  • As pessoas têm uma reação mais forte a cheiros desagradá­veis - franzindo o nariz por mais tempo - do que a odores agradáveis, que lhes põe um breve sorriso nos lábios.4

A equipe de Baumeister relatou um estudo abrangente e mui­to interessante que mostra que eventos, experiências, relaciona­mentos e estados psicológicos negativos têm um peso muito maior em nossa sensibilidade do que os positivos. Você pode questionar essa conclusão aparentemente pessimista, mas lembremos que a negatividade é nosso direito evolucionário inato.5 Avaliações ne­gativas são essenciais à sobrevivência (a folha amarga é também venenosa), e a maior verdade disso é o caso das emoções negativas. As emoções são como um sistema de rastreamento das experiên­cias, e fornecem um rápido sinal mental de aprovação ou desapro­vação para aceitar ou recusar uma determinada situação.

É fácil ver que um breve desentendimento com seu parceiro permanece mais na lembrança do que um doce beijo de despedida de manhã, mas e os estados desagradáveis, como a frustração e a decepção? São sentidos com maior intensidade do que seus pri­mos felizes - o entusiasmo e a satisfação? Veja isso como uma porta aberta para refletir sobre as emoções negativas. Pare um [89] momento e escreva todas as palavras que significam emoções ne­gativas que lhe vierem à mente. Depois, escreva todas as que sig­nificam emoções positivas. Provavelmente, sua primeira lista é mais longa que a segunda. Isso pode ser porque as palavras nega­tivas têm um significado mais específico do que as positivas (tente definir amor e raiva ou feliz e medo).6 Pesquisadores interessados em saber como as pessoas se lembram dos eventos emocionais monitoraram estados de espírito de adultos no dia a dia, e depois pediram que se lembrassem da frequência e intensidade de suas emoções durante as duas semanas do estudo.7

Como se pode ima­ginar, as pessoas tiveram mais propensão a se lembrar dos eventos intensos, tanto positivos como negativos. Mas é interessante notar que subestimaram a frequência das emoções positivas, e não tive­ram dificuldade em recordar os eventos negativos. Temos muito mais técnicas para reduzir, eliminar e tolerar emoções negativas do que para destacar as positivas.

Pense na última vez em que você precisou falar com um serviço de atendimento ao cliente. Talvez estivesse querendo marcar uma consulta médica e havia poucos horários disponíveis, ou tentando conseguir isenção de juros de um pagamento atrasado do cartão de crédito. Ou talvez estivesse convencendo uma atendente da companhia aérea a dar um jeitinho de lhe conseguir um lugar me­lhor no avião. Você se lembra de como se expressou? Falou num tom simpático e educado? Ou levantou a voz e falou com agressi­vidade? Supomos que você seja uma pessoa bem-educada e tenha escolhido a forma gentil. Difícil de engolir - pelo menos para a maioria de nós - é que frequentemente os arrogantes e grosseirões conseguem o que querem.

Personalidades irritadiças, embora desagradáveis, podem ser tremendamente eficientes. A agilidade psicológica que defendemos [90] aqui pode expandir seu repertório para lhe dar acesso a abor­dagens mais duras, mais diretas, e às vezes mais eficazes. Você provavelmente evita essa estratégia porque acha que ser negativo é... negativo. Pode pensar que as pessoas agressivas, hostis ou francamente ruins são idiotas, e não quer fazer parte dessa turma. A boa notícia é que há toda uma gama de negatividade - negatividade benéfica, veja bem - que nada tem a ver com idiotice.

Emoções negativas também podem ajudar a se concentrar na situação em curso. Quando você pega a furadeira para fazer um furo na parede, deve prestar atenção no local do furo e também na posição da sua mão. A ansiedade associada ao risco de erro ajuda a fazer o furo no lugar exato. (Cortar um bolo de aniversário com uma faca de plástico é uma experiência muito diferente, em que um método “também serve” de fato também serve.) Uma pesquisa de Kate Harkness, da Universidade de Queens, mostra que pessoas com propensão a estados depressivos também tendem a prestar mais atenção em detalhes.8 Isso é verdade, particularmente em se tratando de expressões faciais. Indivíduos alegres e expansivos veem os traços em geral - um nariz, dois olhos, e talvez as sobran­celhas estejam franzidas. No estudo de Harkness, os menos exu­berantes tinham olhos de águia para expressões faciais, captando o menor tremor dos lábios, o mais leve movimento dos olhos. É por isso que - como você provavelmente já terá notado -, quan­do está brigando com a pessoa amada (um evento negativo), você “lê” as mínimas mudanças na atitude dela, coisas que jamais no­taria quando tudo está bem. A questão é: se as pessoas felizes pas­sam por cima das minúcias, e se isso conduz a interações mais confortáveis, não devemos nos satisfazer com “está bom assim”? Não. Você prefere contratar um advogado alegre e bonachão, em vez de um ranzinza, que identifica as menores falhas num contra­to? Nós também não.[91]

O clima das salas de controle de tráfego aéreo tende a ser ne­gativo. Isso se deve, em parte, ao fato de os controladores terem plena consciência de sua responsabilidade pela segurança, e qual­ quer erro pode ser fatal. Na extremidade menos grave do espetro, os erros podem causar atrasos e complicações logísticas, e no ou­tro extremo o custo pode chegar a dezenas de milhões de dólares e à morte de centenas de pessoas. O trabalho exige muita atenção aos detalhes. Os pontinhos bipando na tela do radar são aeronaves, cada uma com sua identificação, altitude, velocidade e plano de voo. Emoções negativas, como ansiedade e suspeição, podem agir como um funil estreitando os olhos da mente para detalhes im­portantes. No controle de tráfego aéreo, não há lugar para “tam­bém serve”. Em consonância com o que vimos aqui, enquanto tudo funciona bem ninguém nota. As pessoas só voltam sua aten­ção para o controle aéreo quando há um desastre.

Greg Petto, controlador de tráfego aéreo em Louisville, Ken­tucky, nos contou que sua torre é responsável por 230 quilômetros quadrados de tráfego aéreo entre o chão e uma altitude de três mil metros. É um trabalho estressante, em que aviões que vão chegan­do a uma distância de cinco quilômetros um do outro ficam peri­gosamente próximos. Petto compara o radar a um dojo, nome dado a salas de treinamento de artes marciais japonesas. Os controla­dores orientam setecentos voos por dia, e o maior movimento é durante a noite, quando os jatos do correio expresso, FedEx, che­gam em grande número. Perguntamos a ele se, sabendo que os aviões da FedEx estavam transportando carga, e não passageiros, a tensão na sala de controle era menor que durante o dia.

- Para ser franco - ele respondeu -, preciso pensar que cada ponto na tela é um avião. Se eu parasse para pensar o que está se passando lá no céu, ficaria maluco. E acrescentou: - Mas é muito [92] bom alinhar todos os aviões na distância exata e no tempo exato. É muito bom mesmo. - Apesar de se orgulhar do trabalho, Petto é o primeiro a admitir que há alguma negatividade entre os pró­prios controladores. - Eles ficam malcriados ou competitivos quando a coisa aperta. A gente lida com isso implicando uns com os outros, ou indo para casa rezar, ou beber, dependendo da ten­dência cultural.

Aqui é importante fazer uma pausa para frisar que muitas pessoas cometem um erro enorme, muito comum, quando se trata de emoções negativas.

Elas separam a experiência de sentimentos negativos da expressão de sentimentos negativos. Muitas pessoas com quem conversamos aceitam rapidamente que estar mal é uma experiência psicológica válida, e até mesmo inevitável. Por outro lado, expressar frustração, ou muita tristeza, é um horror! É como se tivéssemos que ser computadores, cujos processos in­ternos estivessem escondidos e separados do que aparece na tela. Essa atitude existe em vários graus em nossa cultura; faz parte da ideia de que é mais fácil viver numa sociedade de pessoas sorri­dentes do que coexistir com gente que esbraveja e chora. Não se pode ignorar que a expressão emocional tem razões para existir. A expressão emocional é um meio importante de se comunicar com os outros. Um cenho franzido, um olhar carrancudo, avisa aos outros que se afastem porque não estamos de bom humor (e às vezes não estamos mesmo de bom humor). Um grito de medo tem tamanho efeito contagiante que quem está por perto também sente o aumento da adrenalina e olha nervosamente em torno. A expressão de sentimentos, inclusive negativos, é uma parte ne­cessária da experiência emocional humana. [93]

Se as emoções negativas são tão proveitosas, por que não gostamos delas? 

Pare um momento para pensar: quanto você pagaria para não pre­cisar repetir uma palestra em que as pessoas não riam, não sorriam e não paravam de se remexer na cadeira? Pense numa ocasião em que você infernizou uma pessoa inocente por causa de sua própria insegurança: quanto você pagaria para não repetir essa atitude vergonhosa? Do outro lado da moeda: quanto pagaria para reviver a emoção do primeiro encontro com seu/sua atual marido/esposa/parceiro/parceira/amante? Pense na melhor massagem que você teve na vida: quanto você pagaria para ter uma igualmente relaxante neste momento?

O dr. Hi Po Bobo Lau, da Universidade de Hong Kong, e sua equipe colocaram essas mesmas questões numa pesquisa.10 Imagi­ne-se no invejável cenário dos participantes dessa pesquisa. Você recebe duzentos dólares para alterar sua experiência psicológica de modo que sua vida se aproxime do ideal. Pense numa situação específica em que você se sentiu muito feliz. Quantos desses du­zentos dólares você pagaria para recriar esse sentimento? Se você já decidiu quantos dólares exatamente, vamos passar para outra emoção positiva. Calma e tranqüilidade? Animação? Muito bem. Agora vamos a emoções negativas. Pense numa situação que lhe causou muito remorso. Quantos dos duzentos dólares você paga­ria para evitar ter esse sentimento novamente? E medo? Vergonha? Estamos dizendo que determine a quantia exata para cada um dos sentimentos. E agora você já pode imaginar que, para os partici­pantes da pesquisa, evitar o sofrimento valia mais do que comprar felicidade. Vejamos a cotação dos participantes da pesquisa do dr. Lau, detalhada até os centavos de dólar: [94]

  • $44,30 por calma e tranqüilidade;
  • $62,80 por animação;
  • $79,06 por felicidade;
  • $83,27 para evitar o medo;
  • $92,80 para evitar a tristeza;
  • $99,81 para evitar a vergonha;
  • $106,26 para evitar o remorso.

Apenas um sentimento foi considerado mais valioso do que evitar o remorso: o amor. Felicidade, animação, tranqüilidade, é muito bom, mas, como criaturas sociais, queremos que alguém aceite, valorize e cuide do nosso ser interior. O amor foi cotado a 113,55 dólares. Se você, leitor, não for de Hong Kong, pode duvi­dar dessas cotações. Portanto, vamos mostrar que essas mesmas questões, colocadas para adultos do Reino Unido, obtiveram os mesmos valores de compra, em dólares: vale a pena comprar tran­qüilidade por $53,47 e animação por $60,90, mas não se compara à vontade de fugir da vergonha, cotada em $71,83, e do remorso, valendo $64,40. E nada tem mais valor que o amor, cotado em $115,16.

Esses valores em dólar dão uma ideia da motivação dos seres humanos para alterar seu mundo interno e externo. Da maior im­portância é o desejo de ser aceito. Isso é um problema porque não temos o menor controle sobre o que as pessoas vão dizer de nós. Só podemos controlar o que pensamos e como agimos. A falta de controle, o sentimento de incerteza, pode ser o estado psicológico mais desconfortável. Logo atrás vêm os medos do remorso e da vergonha. Portanto, os estados psicológicos mais valorizados es­tão centrados em como somos vistos pelos outros. Infelizmente, as [95] inquietações frequentemente dificultam a aprovação imediata. Mas essa é apenas uma das razões para nossa antipatia pelas emo­ções negativas.

Evitamos as emoções negativas não porque somos tolos a pon­to de ignorar que não devemos, mas por quatro motivos básicos, e muito intuitivos:

  1. São desagradáveis.
  2. Representam estagnação.
  3. São associadas à perda de controle pessoal.
  4. São associadas (corretamente!) a um alto custo social.

Vamos examinar melhor esses motivos fundamentais. Em pri­meiro lugar, evitamos nos sentir mal porque se sentir mal é mau. Ou seja, as emoções negativas são desagradáveis. A ideia de pas­sar uma tarde inteira com tédio, ou estresse, ou frustração, é tão sedutora quanto passar o dia inteiro fazendo depilação com cera quente. Contudo, as pessoas se enganam, não em seu desejo de evitar o desagradável, mas em subestimar sua capacidade de tole­rar a chatice das emoções negativas. Como vimos no exemplo das mulheres à espera de saber se estavam grávidas, as emoções nega­tivas são um pouco menos chatas do que a gente espera. Você já teve raiva e medo, e - assim esperamos - não está sentindo nada disso neste momento. Isso já passou, e você não está pior porque teve esses sentimentos. Você é mais capaz de lidar com emoções desagradáveis do que imagina.

Pense na última vez em que teve tédio, por exemplo. Peter Toohey, da Universidade de Calgary, afirma que o tédio é uma ferra­menta muito útil, que tem a função de nos fazer saber quando as interações sociais ou a rotina estão nos dando desejos que não [96] estamos satisfazendo. Talvez pouco haja a fazer para espantar o té­dio quando você está ouvindo um discurso infindável ou numa longa viagem de avião, mas muitas vezes é possível escapar de si­tuações entediantes. O tédio pode ser um indicador importante de que você está fazendo más escolhas ou entrando em situações com uma atitude restritiva (talvez com mentalidade estreita ou abertamente crítica). O mais interessante é que, mesmo odiando o tédio, você lida muito bem com esse sentimento a cada vez, e ele logo passa. Quando você pensa no tédio, naturalmente se concentra em quanto é desconfortável. Você não atenta para o fato de que lidou efetivamente com o tédio centenas (ou milhares) de vezes na vida.

Um segundo motivo comum para as pessoas desejarem se afastar das emoções negativas é a crença em que elas são como areia movediça - puxam a gente para baixo, sem esperança de escapar. É muito comum a noção de que a depressão, por exem­plo, é um estado difícil de mudar, e, quanto mais crônica for a emoção negativa, maior é o risco de que se torne permanente. Ve­jamos a Prova A, com pessoas que lutam há anos contra a depres­são. De fato, algumas evidências dão suporte à crença popular. Cerca de 60% de adultos que têm um episódio clinicamente sig­nificativo de depressão grave têm um segundo; as que têm um segundo episódio têm cerca de 70% de chance de ter um terceiro, o que dispara para 90% de chance de ter um quarto episódio.1 Sim, essas estatísticas são alarmantes, principalmente se você esquecer a matemática. Se 100 pessoas têm um episódio de depres­são e 60 delas têm um segundo episódio, 42 têm um terceiro, e 38 têm um quarto episódio. Para essas 38 pessoas, é um problema grave, sem dúvida. Mas a grande maioria de pessoas que lutam contra a depressão não está confinada a uma prisão emocional da [97] qual não há escapatória. A maioria estará livre depois de uns pou­cos - notoriamente desagradáveis - episódios. O mesmo se aplica a outros estados. Apesar da tendência a acreditar que a raiva irá acionar algum mecanismo interno que nos transformará em ban­didos violentos, ou que o pânico nos deixará escondidos debaixo da mesa pelo resto da vida, basta você dar uma olhada em sua experiência pessoal para saber que isso não é verdade.

Um terceiro motivo pelo qual evitamos sentimentos negativos é o temor de que, tal como um tsunami psicológico, eles desabem sobre nós e nos arrastem para um destino desconhecido e indesejado de pensamentos. Portanto, o temor das pessoas, ainda que não o articulem, é de que um determinado estado as leve a perder o controle e fazer coisas que de outro modo não fariam. O caso mais óbvio é a raiva. Certamente, há um elemento de verdade nisso, o que leva o sistema judiciário a considerar que um assassi­nato cometido “no calor do momento” é menos grave do que um assassinato planejado. É como se a comunidade jurídica tivesse se reunido e concordado: “Sim, a pessoa com a cabeça quente tem uma tendência a se descontrolar um pouco.” Mas quantas pessoas você conhece que já cometeram um assassinato, de um modo ou de outro? É extremamente incomum, e por isso vira notícia.

É muito improvável que a raiva faça de você um criminoso, mas pode afetá-lo de outras maneiras, às vezes surpreendentes. Alguns pesquisadores interessados no termo “cabeça quente” in­vestigaram se haveria alguma associação entre cabeça e calor na mente das pessoas.12 Num estudo, apresentaram a alguns partici­pantes (mas não a todos) palavras relativas à raiva, como desde­nhoso, hostil e irritado, dizendo que essas palavras eram parte de uma experiência de memória. Em outra tarefa, disseram aos par­ticipantes que opinassem se a média de temperatura de trinta [98] cidades que eles não conheciam era fria ou quente. Os pesquisadores constataram que os participantes que lembraram mais as palavras ligadas à raiva opinaram muito mais que as cidades eram quentes.

O quarto motivo pelo qual evitamos emoções negativas é o me­do das conseqüências sociais de expressá-las. Você tem uma noção intuitiva de que, se ficar no local de trabalho se lastimando ou tendo súbitos ataques de raiva, as pessoas vão se esconder em seus cubículos até que você fique longe delas. Mais uma vez, há um grão de verdade nessa crença, mas seu medo é muito exagerado. Nossos estados negativos têm poder sobre os outros.

Num estudo clássico, o pesquisador Thomas Joiner investigou se o ânimo de colegas de quarto era contagioso. Ele constatou que, se um deles estivesse deprimido logo que se instalaram, havia uma alta proba­bilidade de que o outro desenvolvesse depressão nas três semanas subsequentes. Isso é verdade, apesar de Jointer ter feito o controle pelas taxas básicas da depressão e a presença ou ausência de even­tos de vida negativos. A depressão não somente é contagiosa, mas, contradizendo o folclore recente, é mais provável que o colega de quarto deprimido afete o outro negativamente do que o colega mais feliz modifique o ânimo depressivo do primeiro. É mais um exemplo de que o mal é mais forte que o bem.

Você agora deve estar surpreso com o fato de que nós, os auto­res, esmiuçamos os quatro principais motivos pelos quais as pes­soas evitam emoções negativas e não os invalidamos, um a um. Não podemos. Todos eles têm pelo menos alguma validade. A questão importante é: para que servem as emoções negativas? Constituem uma parte importante da nossa arquitetura emocional. Embora confusas, desagradáveis e às vezes problemáticas, não deixam de ser úteis. As emoções - todas as emoções - são informações. Estar bem ou estar mal nos mostra a qualidade de nossos progressos, [99] interações, ambiente e ações. Numa comparação sumária, as emo­ções são como um aparelho de GPS no painel do carro, trans­mitindo informações metafóricas sobre sua posição, o terreno à frente e atrás, o ritmo de progresso. Quem tenta desesperadamente evitar, esconder e fugir de estados negativos perde todas essas valiosas informações. Para esclarecer ainda mais:

  • Você quer sentir o arrepio de medo em situações de perigo físico.
  • Você quer sentir o calor da raiva quando precisa defender seus filhos.
  • Você quer sentir frustração quando não progride nas aulas de violão.
  • Você quer se arrepender de ter dito aos seus filhos que eles não são bonitos, nem inteligentes, nem boas pessoas.

Em cada uma dessas situações, as emoções são sinal de que algo não vai bem e exige sua atenção imediata. Se a raiva e outros sentimentos maus forem tamponados instantaneamente, deixa­rão de sinalizar o que os despertou e o curso de ação a ser tomado. É difícil enfatizar toda a importância disso. Você deve estar pen­sando: Há milhares de motivos para evitar os sentimentos negativos, mas deixe-me entender hem: só há um único motivo para serem bons? Ainda que seja um único motivo, é um motivo excelente. Imagine viver num mundo em que ninguém sentisse culpa. Em que nin­guém se revoltasse contra a injustiça. Em que ninguém sentisse frustração por não atingir um objetivo. Em que você não conseguis­se sentir medo na presença de um incêndio em casa, um assaltante ou uma seringa de injeção usada boiando ao seu lado num banho de mar. Na ausência desses sentimentos negativos, estaríamos [100] vivendo num mundo desprovido de humanos em pleno funcionamento.

Um passeio por três emoções temidas

Raiva

Matthew Jacobs é um carpinteiro autônomo de 50 e poucos anos. Mora num apartamento coletivo em San Francisco, Califórnia. É conhecido pela boa qualidade de seu trabalho, joga futebol e lê obras de não ficção nas horas livres. Quando jovem, serviu por algum tempo como oficial da polícia militar na Guerra do Vietnã. Ele diz ter sido um jovem de cabeça quente, mas há muito tempo se acalmou e almeja levar uma vida sem encrencas.

Em maio de 2013, já tarde da noite, uma camelô vietnamita estava vendendo a Jacobs uma tigela depho numa rua do centro da cidade, quando um homem grandalhão se aproximou, gritan­do com ela. O homem, totalmente desconhecido, chegou exigindo que a mulher lhe desse uma moeda, ela disse que não tinha, e ele começou a berrar xingamentos com palavras ofensivas à raça de­la. Duas colegiais estavam presentes, dando mostras de nervosis­mo, obviamente temerosas de chamar a atenção do homem.

À medida que os insultos do homem ficavam mais acalorados, Jacobs viu que ninguém por perto iria se adiantar para defender a mulher e as adolescentes. Recorrendo a um preceito pessoal - sempre oferecer duas interações gentis antes de passar a um tom mais agressivo -, ele disse calmamente ao homem: “Com licença. Poderia falar mais baixo, por favor?” O homem se voltou para Jacobs e começou a berrar com ele também. “Eu agradeceria se [101] você se retirasse”, disse Jacobs. “Estamos tentando comer em paz; ninguém aqui quer confusão.” Jacobs tinha usado a sua segunda e última cota de boa vontade. Infelizmente, não obteve o efeito calmante que desejava, e o homem chegou mais perto de Jacobs, gritando obscenidades.

Jacobs largou cuidadosamente sua tigela de macarrão e elevou a voz, num tom de ameaça: “Na minha terra, isso quer dizer que você está procurando briga. Muito bem, estou aqui. Vamos lá!” O homem recuou, surpreso, murmurou uns xingamentos para manter a pose e foi embora. Jacobs respirou fundo para recuperar a calma, grato pela altercação não ter chegado à agressão física, e a vendedora e as adolescentes não terem sido feridas. Ele olhou para elas, esperando um gesto de simpatia ou uma palavra de agradecimento. Não houve. Em vez disso, notou que elas pare­ciam ter tanto medo dele quanto do grosseirão.

Essa é uma história verdadeira, não uma narrativa dramati­zada que termina em briga, ou numa donzela em perigo recom­pensando o salvador com imorredoura gratidão. É um exemplo de como os sentimentos negativos se apresentam na vida real. As emoções negativas, como a raiva no caso de Jacobs, geralmente afloram em resultado de circunstâncias externas (em oposição a “surgir do nada”). Podem ser tremendamente úteis, apesar de terem um preço (como assustar as pessoas presentes). Como vimos aqui, a raiva altera drasticamente o comportamento das outras pessoas, muitas vezes levando-as a recuar ou a transigir rápido. Por essa mesma razão, a raiva e outros sentimentos negativos são às vezes mais oportunos que a positividade.

A raiva em si não é boa nem má; o que importa é o que você faz com ela. Pesquisas sugerem que apenas 10% de acessos de raiva levam a alguma forma de violência, mostrando que raiva não é [102] exatamente igual à agressão. Em geral, a raiva surge quando acre­ditamos que fomos tratados injustamente, ou que algo está blo­queando nossa capacidade de alcançar objetivos significativos. Em nossos dados, registramos 3.679 dias em que as pessoas rela­taram ter tido raiva no dia a dia.13 Descobrimos que em 63,3% desses episódios a culpa foi atribuída a outra pessoa (em oposição a, digamos, se irritar com o teclado do computador). Tipicamen­te, a raiva é causada por algo que outra pessoa fez, ou que não fez, ou que poderia ter feito.

A dificuldade de transitar num mundo complexo, hipotético, e muitas vezes imprevisível, de trocas sociais que podem incluir a raiva, é precisamente a razão pela qual os humanos adultos pos­suem o cérebro tão pesado (47 vezes mais pesado que o cérebro de um gato e 19,5 vezes mais pesado que o cérebro de um cão beagle). Todos nós já fomos ofendidos ou magoados por outra pessoa. Ape­sar da sua vibração gentil e compassiva, você também já foi im­portunado, provocado, hostilizado, traído, enganado e tratado com grosseria. A positividade não dá conta de nos ajudar a transitar pelas relações e interações sociais. A raiva é uma ferramenta que nos ajuda a apreender e responder a situações sociais complicadas. Quanto aos benefícios, pesquisas indicam, com uma frequência esmagadora, que sentir raiva aumenta o otimismo, a criatividade e o desempenho efetivo, enquanto expressar raiva leva a negocia­ções mais bem-sucedidas e a um caminho mais rápido para mobilizar as pessoas como agentes de mudança. Vejamos cada caso separadamente.

Primeiro, o sentimento de raiva é associado a uma atitude mais otimista. Num estudo, os participantes foram orientados a virar quantas cartas quisessem até um total de 32 cartas, cada uma com [103] um valor de pontos específico.14 Misturadas nas 32, porém, havia três “cartas de bancarrota”, que custariam centenas de pontos ao participante que virasse uma delas (muito mais do que os poucos pontos ganhos com outras cartas). Numa versão, os participan­tes podiam decidir antecipadamente quantas cartas iriam virar, desde 1 a 32. Esperava-se que ninguém iria querer virar as 32, sa­bendo que três delas os levariam à bancarrota, e sairiam do jogo. Quantas iriam virar? As pessoas previamente induzidas a sentir uma ligeira raiva arriscaram mais. A raiva as deixou mais propen­sas a explorar os limites da possibilidade.

Esse achado foi sustentado por uma equipe de pesquisa inte­ressada em investigar como as pessoas avaliam riscos.15 Nesse estudo, fizeram aos participantes perguntas relativas ao - entre outras temas - risco de se divorciar, contrair uma doença venérea, e um tratamento experimental de uma doença grave que iria sal­var muitas vidas se desse certo, mas iria matar muitas mais se não desse. Os participantes que os pesquisadores incitaram a ter raiva apresentaram maior tendência a achar que tinham controle sobre os resultados, acreditavam que um resultado positivo era alta­mente provável e que valia a pena correr riscos. Pode ser que a rai­va - uma alta elevação emocional que nos prepara para lidar com ameaças - ajude a predispor as pessoas à ação. Talvez por isso seja tão comum ver atletas com raiva para entrar no clima psicológico.

Em segundo lugar, a raiva pode acender a fagulha da criativi­dade. Vale a pena repetir, porque pode soar louco demais para crer: sim, a raiva pode nos ajudar a ser criativos. Na psicologia, o estudo da criatividade pode ser muito divertido. Vejamos o exem­plo clássico: quantas utilidades você acha que um tijolo pode ter? Não tenha pressa. Pare um momento e faça uma lista de todas as [104] utilidades que puder imaginar. O mais provável é que as mais óbvias lhe venham primeiro à mente. Você pode pensar facilmen­te numa parede. Depois você fica mais esperto e pensa em utilida­des que tenham a ver com o peso, forma e durabilidade do tijolo. Talvez sua lista inclua um batente de porta, peso de papel, um banquinho ou um projétil. Muito bem. Mas podemos tentar pen­sar em outras aplicações? Que tal colocar um tijolo na mochila para melhorar sua postura? E usar para apoiar uma panela quen­te, ou junto ao pneu do carro como calço numa ladeira? Você pode até usar, para fazer graça, como moldura de um celular da primei­ra geração e falar com ele na orelha.

Os psicólogos usam o teste de utilidades do tijolo para medir a criatividade. O teste pode servir para avaliar a fluência (quantas idéias foram criadas?), a originalidade (quantas idéias constam em quantas outras listas?) e a flexibilidade (quantas categorias de uso você pode propor?). Num estudo, os pesquisadores deram às pessoas feedbacks irritados (negativos) ou neutros numa ativida­de prévia, e depois aplicaram o teste do tijolo.16 Algumas pessoas manifestaram grande necessidade de entender bem as regras e queriam saber o que se esperava delas em determinada situação. Entre estas, as que tinham tido feedbacks negativos tiveram me­lhor desempenho. Melhor desempenho significa aqui que obtive­ram melhores resultados do que as pessoas com características similares que tinham recebido feedback neutro. A mensagem é que, em alguns casos, a raiva induz a maior criatividade. Por ou­tro lado, em pessoas rebeldes, menos equilibradas, a criatividade é embotada pela raiva. Isso mostra que o contexto é importante quando se trata de raiva, e que o preconceito generalizado contra ela é um equívoco. [105]

Por fim, a raiva é seletivamente útil enquanto ferramenta de melhora do desempenho. Ninguém quer viver sob o jugo de um tirano, mas um pequeno acesso de irritação pode fazer alguém sair correndo para trabalhar. Alguns pais sabem que é uma estratégia que funciona com os filhos, e muitos patrões sabem disso muito bem. Num estudo com gerentes de construção no Reino Unido, os pesquisadores descobriram que alguns acessos de raiva eram de­ploráveis e outros funcionavam como um remédio perfeito.17 Um gerente de construção comentou:

Não faz muito tempo, tive um ataque de raiva numa reunião com o engenheiro estrutural porque eles estavam querendo virar o acerto contratual sem qualquer justificativa, e aquilo já vinha acontecendo havia algum tempo... Acho que [a reu­nião] terminou com o surto emocional. Em retrospecto, me arrependo? Provavelmente não, na verdade, porque resolveu a questão...

O que diferenciou as querelas lamentáveis das eficazes não foi o tamanho da raiva envolvida. Foi uma questão de contexto. Con­tudo, mesmo os gerentes que aprovavam uma palavra mais forte de vez em quando reconheceram que não era - e não podia ser - uma atitude permanente na interação com os outros. Um deles resumiu brilhantemente:

Funcionou, eu consegui a reação que esperava, todo mundo voltou ao trabalho, e o que estava pendente foi resolvido na mesma hora, de modo que tudo deu muito certo. Acho que se acontecesse com muita frequência, se ficasse sempre usando uma linguagem grosseira com as pessoas, chegaria ao ponto [106] de não surtir mais efeito. Se você usar de vez em quando, acho que funciona.

Outro contexto em que a raiva funciona bem é nas negocia­ções. Quando duas ou mais pessoas estão tentando chegar a uma resolução, a raiva é uma espécie de alavanca. Numa série de estu­dos, os participantes tiveram a tarefa de negociar o maior preço possível por um lote de telefones celulares (e a recompensa na vida real estava diretamente ligada ao desempenho deles).18 Após um valor inicial ser pedido pelo vendedor, o comprador apresen­tou uma série de contrapropostas. Para atingir os objetivos do ex­perimento, alguns participantes foram escalados para ter um comprador irritadiço, e outros foram contemplados com compra­dores alegres ou neutros. Viu-se que, diante da raiva, as pessoas têm muito menos propensão a fazer exigências. Na terceira roda­da de negociação, quem tentava vender os celulares a um compra­ dor com raiva acabava cedendo e dando 20% de desconto, e, na sexta rodada de negociação, já davam mais de 33% de seus ganhos potenciais. Os pesquisadores sugeriram que pessoas com raiva eram vistas como poderosas e de alto status na situação. Portanto, vemos que a raiva em certas competições faz pender o resultado a seu favor. A felicidade não rende os mesmos dividendos.

Por outro lado, não basta adotar uma postura zangada na es­perança de obter uma transação favorável. Esses mesmos pesqui­sadores advertem - e a ciência está a favor deles - contra a raiva fingida. Num estudo, os pesquisadores constataram que, quan­do um ator experiente fingia uma raiva superficial em oposição a uma raiva intensa, era inconvincente.19 Em negociações, as pes­soas fazem exigências maiores de quem finge raiva, em parte por­ que estes parecem menos confiáveis. [107]

Tomemos, do mundo real, o exemplo de Barack Obama. Sejam quais forem suas cores políticas, você tem que admitir que Obama é mais afável que a maioria dos presidentes dos Estados Unidos jamais foi. Ele tem a fala suave, a voz profunda e bem modulada. Quando houve o vazamento do petroleiro britânico no golfo do México, em 2010, Obama foi criticado por sua reação fria. Mais tarde ele expressou raiva na televisão, mas essa resposta mais emo­cional teve o efeito oposto ao desejado: as pessoas perceberam que o presidente não estava sendo sincero.

Por fim, a raiva tem o poder de despertar uma ação coletiva diante de ameaças inadequadas, injustas. Em toda autobiografia, encontramos a mesma história: o impulso inicial de lutar contra a injustiça foi motivado pela raiva, como a faísca da ignição que põe o motor do carro em funcionamento. Martin Luther King Jr. dis­se: “A tarefa suprema é organizar e unir o povo para que sua raiva seja uma força transformadora.” Foi a raiva que transformou W. E. B. Du Bois de acadêmico - brilhante, mas ineficaz num mundo de exploração e racismo desenfreados - num poderoso ativista em defesa dos direitos civis:

Justamente na época em que minhas pesquisas tinham maior sucesso, veio aquele corte nos meus planos de cientista, um clarão vermelho que não podia ser ignorado. Lembro-me de quando me atingiu como um raio...20 A notícia me despertou: Sam Hose fora linchado, e diziam que seus dedos estavam ex­postos num açougue... Passei a me afastar do trabalho... Não é possível continuar a ser um cientista calmo, frio e distancia­ do enquanto negros eram linchados, assassinados e mortos de fome. [108]

Pouco adiante, em sua autobiografia, Du Bois narra como a raiva o incitou à ação e ele fundou o Niagara Movement, que mais tarde veio a ser a NAACP.

Ao recordar suas atividades em defesa dos opositores à Pri­meira Guerra Mundial, Bertrand Russell relata que ficou “cheio de desesperada ternura pelos jovens que iriam ser massacrados, e de raiva contra os estadistas da Europa”. Da mesma forma, He­len Caldicott deu os primeiros passos como ativista quando ficou “indignada”. Sua indignação inspirou uma geração de movimen­tos sociais.

Quando a raiva aflora, somos levados a prevenir ou eliminar ameaças iminentes ao nosso bem-estar, ou ao bem-estar das pes­soas que nos são caras. Muitas vezes, o altruísmo nasce da raiva. Quando se trata de mobilizar pessoas e conseguir apoio para uma causa, não existe emoção mais forte. É um erro supor que bonda­de, compaixão, amor e equidade estão de um lado do continuum, e raiva, fúria e aversão estão do outro lado. A raiva é um elemento poderoso, difamado pela noção errônea de que uma sociedade saudável é isenta de raiva.

O grande preconceito contra a raiva é amplamente injustifica­do.21 Decerto, é uma emoção forte e altamente inflamável. A cau­tela com a raiva é aconselhável, assim como o conhecimento de que não deve ser usada em demasia ou indiscriminadamente. Seu melhor uso é acompanhado de uma atitude de respeito pelo ponto de vista da pessoa ou das pessoas que violam seu bem-estar. Quem se dispõe a arcar com as conseqüências tem mais facilidade para utilizar uma expressão eficaz da raiva. Tomando certas precau­ções, a raiva - a raiva autêntica - é totalmente apropriada para certas pessoas em certas situações. [109]

O jeito certo de ficar com raiva

Quando você quiser expressar raiva, ou outra emoção negativa, um modo conveniente é começar com o que chamamos de aviso de desconforto. Deixe o outro saber explicitamente que você está ten­do emoções intensas e, por causa disso, é mais difícil se comuni­car com clareza. Desculpe-se por antecipação, não por suas emoções ou ações, mas pela falta de clareza na forma de comuni­cação do que você vai dizer. Comece com uma declaração do tipo: “Quero que você saiba que estou me sentindo muito desconfortá­vel, o que significa que não é o melhor momento para me expressar. Mas dadas as circunstâncias, é importante, para mim, dizer...” O objetivo do aviso de desconforto é desarmar o outro, evitando que fique na defensiva. Quando alguém ouve que você está se sen­tindo desconfortável e a conversa é difícil para você, é mais prová­vel que receba com empatia o que você tem a dizer. Depois dessa introdução, você pode se aprofundar no motivo do aborrecimen­to, no que pensa e sente por causa do que aconteceu (por que a raiva irrompeu, em vez de outros sentimentos).

Você pode usar a tática do aviso de desconforto mesmo quan­do estiver se sentindo perfeitamente confortável ao expressar a raiva ou outros sentimentos negativos, desde que sejam autênti­cos. Lembre-se: o objetivo é provocar uma mudança no que o ou­tro está fazendo ou sentindo, diminuir a progressão da situação de modo a torná-la mais favorável à sua mensagem. Se for ade­quadamente controlada, a raiva nos oferece um modo de ser proativo na alteração ou remoção de ameaças e obstáculos. Portanto, não tenha medo de usar pequenas mostras físicas de raiva, o que chamamos de “microagressão”, para expressar o nível da emoção que está sentindo. Ponha as mãos abertas com força em cima da mesa. Aperte os punhos. Ok, você entendeu. [110]

Se ainda não se convenceu da importância de expressar a rai­va abertamente para repelir uma ameaça, considere o seguinte: O dr. Ernest Harburg e sua equipe de pesquisa da School of Public Health da Universidade de Michigan passaram várias décadas fazendo acompanhamento de alguns adultos num estudo longitu­dinal sobre a raiva.22 Constataram que homens e mulheres que es­condiam a raiva diante de uma agressão injusta apresentavam maior tendência a ter bronquite e infarto, e a morrer mais cedo do que os que liberavam a raiva quando se deparavam com pessoas ofensivas e irritantes.

A dificuldade óbvia está em saber como pôr a raiva em funcio­namento, principalmente em relacionamentos. Primeiro, quere­mos desencorajá-lo a se policiar no sentido de controlar ou evitar a raiva, dizendo a si mesmo, por exemplo: “Preciso me livrar des­sa raiva”, ou “Tenho que guardar a raiva para mim mesmo”, ou “Por que não posso ter menos raiva?”. Em vez disso, reconheça a diferença entre eventos que você pode mudar e os que estão além da sua capacidade de controlar. Se está viajando e perde o casaco no primeiro dia, não há nada a fazer, e portanto não há benefício em expressar a raiva. Mas, se está numa loja pechinchando o pre­ço de um casaco e se zanga porque a balconista está tentando lhe vender por um preço mais alto do que o freguês anterior pagou, é uma situação em que você tem algum controle. Nesse caso, co­mo pode comunicar o aborrecimento ou a raiva de modo a obter um resultado favorável? O psicólogo e autor de Anger Disorders, dr. Howard Kassinove, diz que a chave é usar “um tom apropriado, sem aviltar a outra pessoa”.23

Segundo, desacelere a situação. Nossa tendência é mergulhar de cabeça na situação e agir no mesmo instante, especialmente [111] quando o sangue está fervendo. Em vez disso, imagine a raiva variando entre depressa e devagar, como você querendo gritar ver­sus querendo motivar a pessoa de maneira calculada. Quando es­tiver zangado, permita-se fazer uma pausa, mesmo que tenha alguém esperando sua resposta. Pode até deixar que saibam que está diminuindo o ritmo da situação. Tome decisões boas, e não apressadas. Quando estiver zangado, respirar fundo, fazer pausas e momentos de reflexão exercem mais poder do que respostas rá­pidas. Se você ficar menos zangado depois disso, ótimo, mas não é o objetivo. Trata-se de ter mais opções numa situação emocio­nalmente carregada.

Pense como um jogador de xadrez. Antes de se decidir por um curso de ação, imagine como o outro irá reagir e como estará a situação dois movimentos adiante. Se lhe parecer boa, prossiga. Se lhe parecer má, pense num caminho alternativo, imagine qual será a reação do outro e avalie esse cenário. Mantenha uma avalia­ção constante, perguntando-se: “Minha raiva está ajudando ou piorando a situação?” Num diálogo, não há uma resposta “tama­nho único” para essa questão, pois as emoções, comportamentos e ações envolvidas estão sempre mudando. Em certo momento, quero contar uma história para afirmar meu domínio da discus­são, e minutos depois posso querer ignorar um comentário forte para aumentar o sentimento de conexão.

Quando a raiva chega ao extremo, parece que, se não partir­mos para o ataque, iremos sofrer sérias conseqüências. O psicólo­go John Riskind, especialista no tratamento de pessoas com emoções aparentemente incontroláveis, desenvolveu técnicas pa­ra desacelerar os eventos ameaçadores.24 Riskind constatou que a experiência de raiva não é tão problemática quanto a crença em [112] que a seqüência de eventos desencadeadores da raiva vai acelerando, o perigo vai aumentando, e a saída para a ação está se fe­chando rapidamente. Esse sentimento de perigo iminente leva as pessoas a fazer algo que dê um fim imediato à ameaça, mas, em longo prazo, irá piorar a situação (como dar um soco em quem furou a fila no caixa do supermercado).

O primeiro passo é avaliar consigo mesmo se a raiva está au­mentando, diminuindo ou estável em determinada situação. Para um autoexame escrupuloso, use um número ou algumas palavras que descrevam a intensidade da raiva, como se pode ver no exem­plo do velocímetro:25

Se a raiva estiver acima do limite de velocidade, será preciso mais tempo para conservar o máximo de flexibilidade e controle a fim de lidar com quem a provocou. Nesse caso, pense em redu­zir a velocidade. Em alta velocidade, a tendência é perder um pouco o controle; portanto, imagine-se freando para que o modo [113] como você está agindo e que o outro está agindo seja reduzido de 130 para 100, e de 100 para 80. Crie uma imagem visual de sua aparência no momento, e da aparência do outro. Repare que o ou­tro já não está tão perto fisicamente de você. Escute com atenção o que o outro está dizendo, e leia a mensagem corporal dele. Use a baixa velocidade para ver se o outro está aberto ou fechado ao diálogo, se está realmente disposto a atacar ou procurando um meio de sair da confusão.

O que acontece quando você imagina a situação desaceleran­do? Como observa Riskind sobre a raiva: “Você pode achar que há muito a fazer e pouco tempo para fazer tudo.” Esse exercício de concentração na velocidade em que as coisas estão acontecendo nos dá um pouco mais de espaço psicológico para respirar. Expe­rimente. O objetivo aqui é aprender a trabalhar a raiva, em vez de deixá-la sair do controle.

Culpa e vergonha

Na sociedade contemporânea, as pessoas pensam na culpa da mes­ma maneira que pensam na obesidade: um estado temível, inacei­tável do ponto de vista social e da saúde. Talvez por isso engordar seja tão frequentemente associado à culpa. Em nossa cultura, “cul­par” alguém é algo falado aos cochichos, terapeutas acenam com redução da culpa, gurus da autoajuda encorajam as pessoas a “se libertarem”, conselheiros do bem-viver escarnecem das palavras “você deve fazer/ser”. Em contraste, queremos remover o estigma da culpa. Não estamos dizendo que é sempre bom sentir culpa, mas em certas ocasiões a culpa traz vantagens. Por exemplo: quando você se sente culpado, fica mais motivado para melhorar, [114] enquanto seus colegas menos propensos à culpa não têm essa mo­tivação.

Doug Hensch, de 40 e poucos anos, ajuda organizações a de­senvolver líderes fortes, mas sua paixão na vida é treinar o time de futebol americano de seu filho de 9 anos. Sua melhor experiên­cia como treinador aconteceu quando estava trabalhando com um atleta musculoso, rápido, chamado Zander, que tinha vindo de Gana para os Estados Unidos. Era desagradável porque, em vez de aplicar suas qualidades no esporte, Zander ficava esguichando água ou enfiando o dedo lambido na orelha dos outros meninos. Cansado daquilo, Doug convocou uma reunião para falar com Zander e todo o time.

Doug não tinha o menor prazer em ter aquela conversa, e não tentou esconder isso na reunião. Começou com um aviso de des­conforto. (“Sou o treinador de vocês, sou pai, mas também já fui menino, e joguei futebol dos 9 aos 21 anos, assim como muitos de vocês jogarão. Por isso eu sei que uma reunião com um treinador frustrado é difícil. Entendam que é desconfortável para mim tam­bém.”) E prosseguiu: Vejam seus companheiros neste time. Pensem no esforço de cada um deles a cada semana, se machucando, se sujando, suando, ficando sem fôlego, e às vezes com ânsias de vômito. Agora, pensem bem: O que você faz aqui está ajudando ou preju­dicando o time?

Doug se calou por um minuto inteiro, e então pediu que cada um desse um exemplo de como tinha ajudado o time no treino da­ quele dia. Depois pediu que cada um desse um exemplo de como [115] tinha prejudicado o time naquela temporada, por menor que fos­se a falta. Todos tinham alguma coisa a dizer e, depois do último menino falar, Doug disse:

Quando você faz alguma coisa que não ajuda o time, está pre­judicando seus colegas, meninos que vão proteger você, vão brigar por você, vão se arriscar a serem machucados por al­guém duas vezes maior que eles na disputa da bola, para que vocês façam uma boa jogada. De hoje em diante, vou fazer sempre essa mesma pergunta a todos, e se acharem que estão prejudicando o time, não precisam se sentir culpados; só tratem de melhorar. Entenderam?

Quando todos concordaram com um gesto de cabeça, Doug lhes disse para se unirem de mãos dadas e gritarem o nome do time três vezes.

Zander perdeu sua posição de estrela no time inicial. Se você quiser saber se a motivação dele foi a vergonha ou a culpa, Doug lhe dirá que, quando Zander voltou a jogar, pegou a bola e correu cem metros para um touchdown que trouxe a primeira vitória do time na temporada. E, quando Zander viu que os colegas o respei­tavam mais pelas ações que ajudavam do que pelas que prejudi­cavam o time (embora algumas de suas palhaçadas fossem muito engraçadas), investiu mais energia nos treinos e passou a animar os outros jogadores, mostrando uma atitude completamente di­ferente. Doug ajudou Zander a se tornar um jovem adulto res­ponsável e, revelando seu próprio desconforto e induzindo a um pouquinho de culpa, conseguiu melhorar o menino e o time.

Nós, os autores, usamos a mesma pergunta em sala de aula (“O que você faz está ajudando ou prejudicando a classe?”) e aos [116] nossos filhos (“O que você está fazendo está melhorando ou piorando a situação?”). Na condição de psicólogos socialmente incômodos, fazemos a mesma pergunta a nós mesmos quando conversamos com as pessoas (“O que estamos fazendo está ajudando ou preju­dicando esse relacionamento?”). Sugerimos que você considere essa pergunta com relação à culpa: vai ajudar ou prejudicar a von­tade de ser uma pessoa melhor, mais forte e mais sábia?

Se quiser mais um exemplo de utilidade da culpa, vamos pen­sar naqueles que foram banidos temporariamente pela sociedade devido a suas más ações: os prisioneiros. Segundo o National Re­cidivism Study of Released Prisoners, conduzido pelo Bureau of Justice dos Estados Unidos, dos 272.111 presos libertados em 15 estados em 1994, 67,5% voltaram dentro de três anos para a prisão por crimes ou contravenções graves.26 Cometer um crime depois de sair do presídio é a norma, e não uma exceção.

Ao tomar conhecimento dessa estatística, você pode julgar que os prisioneiros são pessoas más. Ou pode acreditar que a maioria deles não é muito diferente de nós - eles querem achar um lugar onde sejam aceitos, sentir que têm controle sobre a vida deles, encontrar pelo menos uma aparência de significado e propósito na vida, e ter a esperança de que seus filhos tenham uma vida me­lhor que a deles. Seja como for, a pergunta-chave é: o que evita que um meliante solto volte a cometer atos ilegais ou imorais? A dra. June Tangney, eminente psicóloga clínica, passou quase dez anos investigando se sentimentos morais como a culpa são o segredo para evitar o crime. Em pesquisa recente, ela constatou que os presos com tendência ao sentimento de culpa sofriam mais pelos atos cometidos e eram mais motivados para confessar, pedir perdão e reparar os problemas que causaram.27 Após serem [117] libertados, tinham menor probabilidade de serem presos novamente. Ou seja, presos propensos a sentir culpa pelo mal que causaram contrariam as estatísticas e não causam mais problemas.

A culpa dá mais fibra moral, dá motivação para sermos cida­dãos mais socialmente sensíveis e conscienciosos, e esses bene­fícios se estendem à comunidade não criminosa. Por exemplo: pesquisadores constataram que adultos propensos a sentir culpa eram menos propensos a dirigir bêbados, roubar, usar drogas ile­gais e atacar as pessoas.28 Se o caráter se reflete naquilo que você faz quando ninguém está vendo, a emoção moral chamada culpa é um elemento de construção do caráter. Ao ignorar o valor da culpa, pais e educadores encaram uma dificuldade muito maior para formar as crianças que constituirão o futuro de uma socieda­de saudável.

A fracassada campanha destacando a culpa é uma conseqüên­cia direta de se confundir culpa e vergonha. Segundo o dicionário American Heritage, a culpa é “arrependimento consciente de ter feito algo mau”, e “autorreprovação por suposta inadequação ou transgressões”. A vergonha é diferente. Quando sentimos ver­gonha, não nos contentamos em achar que nossas ações foram erradas ou equivocadas, mas nos vemos como pessoas fundamen­talmente más. No caso da culpa, a consciência da transgressão se limita a uma situação específica. A vergonha nos parece ser uma medida de quem somos. A culpa é útil; sua prima, a vergonha, não é. A culpa é local, a vergonha é global.

Há maneiras úteis e inúteis de sentir remorso pelos fracassos e transgressões. Para aprender a adicionar a negatividade às ferra­mentas psicológicas úteis, vejamos as diferenças. [118]

As pessoas que sentem vergonha sofrem. Pessoas envergo­nhadas se desaprovam e querem mudar, se esconder, ou livrar-se totalmente de si mesmas. Pessoas que sentem culpa querem aprender com seus erros e são motivadas a melhorar. Embora não queiram que sua transgressão esteja escrita na testa, as pessoas culpadas são menos propensas a esconder suas más ações. O mo­tivo? Estão prontas a reparar os danos e dispostas a se esforçar para que não se repitam. Quanto à vergonha, vejamos os resíduos sombrios desse sentimento. Lembremos que os adultos são mais inclinados a pagar quantias exorbitantes para evitar um remorso insistente. Vamos investigar por quê.

Faz seis meses que você tomou a última dose de uísque e a razão de estar sóbrio são as reuniões dos Alcoólicos Anônimos. Na condição de adulto novamente sóbrio, pessoas desconhecidas se aproximam para ouvir sua história. Sabendo que é típico falar [119] sobre problemas pessoais em reuniões do AA, você cede, e até con­corda em gravar um vídeo. Entre as perguntas sobre como você começou a beber, como isso afetou seus relacionamentos etc., a entrevistadora pede que você fale sobre “a última vez em que bebeu e se sentiu mal por ter bebido”. É uma solicitação pesada, que lhe traz lembranças desagradáveis, mas você responde com franque­za. Passam-se quatro meses até que a entrevistadora volte a procurá-lo, trazendo um calendário, pedindo-lhe que anote todos os dias em que bebeu desde a entrevista. Tendo a garantia de que seria confidencial e anônimo, você preenche o calendário.

A entrevistadora era a dra. Jessica Tracy, ou seu aluno de pós-graduação, Daniel Randles, da Universidade de British Colum­bia, e eles fizeram algo realmente criativo.29 A dra. Tracy queria saber se as manifestações de vergonha ao falar sobre bebida aju­davam a prever quais adultos recém-sóbrios voltariam a beber. (Se você quiser identificar vergonha na expressão corporal de al­guém, veja se a pessoa mantém os ombros caídos e a área do peito encolhida ou se fica curvada na cadeira como se buscasse uma posição fetal.)

Os resultados desse estudo podem causar espanto. No decorrer de quatro meses, adultos recém-sóbrios que não demonstraram vergonha durante a entrevista tomaram 7,91 drinques. Quanto aos que demonstraram maior vergonha na entrevista (os 10% mais envergonhados) - imagine só - consumiram, em média, 117,89 drinques no mesmo período. Para aqueles que tinham uma relação de vergonha com o comportamento de beber foi muito mais difí­cil evitar uma recidiva. [120]

De gavião à pombinha

Todo mundo comete erros. No trabalho, você se encarrega de man­dar flores para uma colega doente e se esquece de mandar. Em casa, você reclama do descaso de sua vizinha com o lixo e o jardim dela, e depois descobre que ela estava de cama, com pneumonia. Sentir culpa, por definição, tira a felicidade da pessoa. Mas vimos que, embora à custa da felicidade imediata, a culpa pode ser útil em longo prazo. Além disso, a culpa beneficia os outros. Nas pa­lavras do pesquisador Roy Baumeister, a culpa nos “causa mal-estar, mas, para evitar esse desconforto, precisamos fazer algo melhor para nossos parceiros e membros do nosso grupo”. O agui­lhão da culpa pelo que nossas ações causaram em alguém nos im­pele a agir com maior sensibilidade social na próxima vez.

Por outro lado, se você ficar envergonhado, seus problemas vão aumentar, e tentar melhorar o comportamento de alguém ape­lando para a vergonha também não adianta nada. Esperamos que essas palavras sejam lidas por pais bem-intencionados que casti­gam os filhos obrigando-os a dar a volta no quarteirão com um cartaz dizendo: “Acessei pornografia no computador lá de casa.” Esperamos que sejam levadas em consideração por juizes que condenam motoristas bêbados a colocar no carro um adesivo para que todos saibam da infração. Esperamos que essa informação atinja professores que colocam na sala de aula um painel infor­mando quantas vezes uma criança de 6 anos mordeu, lambeu ou bateu num coleguinha. Essas táticas não surtem o efeito desejado, não estimulam as pessoas a ter mais respeito e consideração pelos outros. Os resultados de pesquisas sobre isso são muito claros: quanto mais envergonhadas as pessoas se sentem, mais ansiosas, agressivas e distanciadas elas se tornam. Usar a vergonha como [121] forma de punição tem o trágico efeito paradoxal de acentuar o comportamento que se tenta extinguir.

Se você quiser motivar, escolha a culpa, e não a vergonha. Co­mo diz a dra. June Tangney: “Sentimos culpa porque damos im­portância [às pessoas] - uma mensagem relevante para quem magoamos ou ofendemos.” Atos incorretos não são prova de que você é uma pessoa incorreta. Assuma a responsabilidade por suas ações, sinta a dor de ter magoado uma pessoa, caso aconteça, e volte a atenção para nada mais e nada menos que a ação específica que causou aquele agravo. Sinta, erre, falhe, se aborreça, e então fique mais atento ao bem-estar dos outros na próxima ocasião de interações sociais.

Como escapar da armadilha da vergonha

Supondo que você não desconheça a compaixão, oferecemos as seguintes sugestões para inspirar a culpa em lugar da vergonha.

Tenha em mente o objetivo. Um erro comum ao lidar com a par­te culpada é partir diretamente para o ataque pessoal. É fácil se apressar em associar - até de forma inconsciente - a culpa à au­sência de valores, idiotice, ganância e a tantas outras falhas de caráter. O problema é que ninguém quer ouvir que é uma pessoa má. As pessoas estão mais abertas a ouvir que fizeram algo mau. Você tem maior probabilidade de ser ouvido, se reforçar as virtu­des e pontos fortes da pessoa (se você de fato os reconhece; não invente) ao mesmo tempo em que a responsabiliza por suas ações.

Comece estabelecendo um terreno comum. Se alguém fez algo er­rado, mostre, se possível, que vocês têm os mesmos valores e obje­tivos. Depois mostre como o comportamento da pessoa a afastou desses valores e que há alternativas, comportamentos mais saudáveis [122], mais compatíveis com quem ela é. Outro terreno em comum, como já dissemos, é compartilhar seu desconforto. Essas conver­sas são difíceis, e às vezes parece ser mais fácil desconsiderar o mau comportamento. É tão desconfortável para quem está apon­tando o dedo acusador quanto para quem está se encolhendo de arrependimento. Para que a conversa resulte numa modificação do comportamento do outro, é preciso ter a honestidade de ver por que a conversa lhe causa desconforto.

Em vez de tentar controlar o outro, ofereça autonomia. Ao contrá­rio do que se pensa, as pessoas não se incomodam que lhes digam o que fazer. Por exemplo: você tem boa vontade para levar o lixo para fora quando lhe pedem, você entrega trabalhos com prazo apertado, quando vai ao supermercado e alguém lhe pede que tra­ga algo mais, se for razoável, você acrescenta à lista e traz. As pessoas se incomodam é que lhes digam como fazer alguma coisa. Ninguém quer conselhos sobre a maneira de colocar o saco de li­xo, como formatar o relatório em que você está trabalhando há meses ou como comparar preços no supermercado. Cientistas que estudam a motivação humana sabem que uma de nossas necessidades básicas, na mesma medida da sobrevivência física, é o dese­jo de dirigir a própria vida. Ao conversar com a parte culpada, não lhe dê instruções de como agir no futuro. Deixe que tenha autonomia para fazer as modificações possíveis. As conseqüên­cias das más ações conduzem a melhores resultados quando o pla­nejamento de mudança do comportamento para melhor é visto como um processo criativo entre o culpado e a vítima.

Ansiedade

Muito se tem escrito sobre o valor da ansiedade. Em suma, pouca ansiedade sugere uma situação enfadonha, ausência de estímulos, [123] a mente num estado de hibernação em que a atenção, as motiva­ções prioritárias, a energia e a determinação são deixadas de lado. Como você pode imaginar, patrões e gerentes não apreciam essa condição, pois os empregados se distraem, buscando estímulo em videogames e brincadeiras com os colegas. Ansiedade em excesso sugere uma situação incontrolável, chegando a paralisar efetiva­mente a pessoa. Quando a ansiedade é passageira, o desempenho é afetado, mas no final dá certo e você se sente bem. E sabemos que períodos prolongados de ansiedade são desastrosos para a saúde física e mental. Quem tem ansiedade muito intensa com muita frequência envelhece prematuramente. Podemos constatar isso em nível celular, na deterioração dos telômeros, que formam as extremidades dos cromossomos.30 Por isso, especialistas em desempenho e empresários dão preferência a pessoas que têm a “quantidade certa” de ansiedade, suficiente para despertar a mo­tivação, sem levar a incontroláveis ataques de pânico e a estresse crônico.31 Perfeito. Estamos totalmente de acordo.

Só nos perguntamos por que chegamos a esse ponto. Nossos ancestrais hominídeos, que viviam em pequenas comunidades caçadoras e coletoras na África, sobreviviam graças a um conjunto específico de circuitos de ansiedade. Criado pela seleção natural e desenvolvido no decorrer da história evolucionária da nossa es­pécie, esse programa especializado em ansiedade opera basica­mente fora da nossa consciência, e por isso mesmo é subvalorizado, pois resolve nossos problemas sem um esforço da vontade. Assim como nós, autores, você já deve ter ouvido dizer que as emoções positivas expandem o pensamento e o comportamento em deter­minadas situações e, em contraste, a ansiedade restringe o pensa­mento e o comportamento, levando-nos a “não ter uma visão geral da situação”. A isso, vamos contrapor: o expandido não é melhor [124] que o restringido. O importante é você usar todos os softwares instalados no seu cérebro. O que acontece quando há uma possibilidade de perigo e o programa de ansiedade está ativado?

Consideremos três situações problemáticas que podem iniciar seu programa mental de ansiedade. Você está sendo ridiculariza­do na frente de um grupo de pessoas por alguém que quer aumen­tar o próprio status social perante o grupo, em detrimento do seu. A pessoa com quem você tem um envolvimento romântico está se comportando de modo estranho, chegou atrasada para um jantar, e vocês ficam longos momentos em silêncio, o que não acontecia antes. Você tem palpitações cardíacas enquanto conversa sobre problemas financeiros, e é a primeira vez que isso acontece. Nes­sas situações, e em muitas outras que induzem a pensamentos e sensações de ansiedade, a parte mais antiga do cérebro, associada à sobrevivência, já está considerando três tipos de ação: fugir, lu­tar ou paralisar. Esse processo ocorre sem qualquer contribuição da sua consciência. Na verdade, muito se tem pesquisado sobre o que causa esse estresse indevido, pois a sobrevivência não é mais o problema cotidiano dos tempos em que compartilhávamos o planeta com os tigres-dentes-de-sabre.

Entretanto, ainda há relíquias remanescentes no disco rígido da ansiedade, forças que permanecem ocultas até o momento an­sioso. Nesses momentos você consegue acessar um aumento da percepção, inclusive uma amplificação da visão, sendo capaz de enxergar a uma grande distância, e uma amplificação da audição, e capaz de sintonizar com maior clareza ruídos aleatórios vindos de uma determinada direção. Você tem maior capacidade de solu­cionar problemas. Para citar um exemplo dado pelos psicólogos da evolução John Tooby e Leda Cosmides: “Lugares estranhos, que você não ocupa normalmente - armário do corredor, galhos [125] de árvore podem subitamente se salientar como locais incluídos na categoria lugar seguro ou esconderijo.”32

A utilidade da ansiedade para seu sucesso, o de sua família, de seu parceiro e da sua empresa está ausente de discussões anterio­res. A surpreendente verdade sobre a ansiedade é:

  • Há situações em que você gostaria de ser uma pessoa alta­mente ansiosa.
  • Você precisa de uma pessoa ansiosa em sua equipe.
  • Sem ansiedade, pequenos problemas podem facilmente ir se transformando num desastre.

Já abordamos o fato de que os erros são necessários para a criati­vidade e as inovações. Sem os erros, não aprendemos nem evoluí­mos. Mas não devemos superestimar o valor dos erros; precisamos identificá-los logo no início, a fim de aprendermos a lição sem nin­guém sair prejudicado. É aí que o valor da ansiedade entra em cena.

O que há de especial em ansiosos sempre apavorados com ameaças e perigos potenciais é a sofisticada contribuição que dão aos outros. Quando tomados pela ansiedade, temos a mesma fun­ção que os canários nos túneis das minas: somos sentinelas, rea­gindo rápida e sonoramente ao primeiro sinal de perigo. Isso ocorre em cinco passos:

  • Medo: pessoas ansiosas ficam em estado de alerta à menor mudança no ambiente. São, portanto, extremamente aten­tas a problemas potenciais, especialmente em situações no­vas ou ambíguas. [126]
  • Sobressalto: pessoas ansiosas reagem com rapidez e intensi­dade à menor indicação de presença de perigo (por exem­plo, sons diferentes, ritmos interrompidos).
  • Aviso: pessoas ansiosas são rápidas em advertir os outros so­bre um perigo iminente. Possuem um desejo incomum de vigiar e cuidar; esse ato de “sair de seu caminho para ajudar os outros” as acalma.
  • Patrulha: se os outros não lhe dão atenção imediata, as pes­soas ansiosas vão investigar e coletar mais dados. Reúnem informações com o intuito de ser mais persuasivas, a fim de construir uma aliança com os outros e, juntos, afastarem o perigo.
  • Vigilância: pessoas ansiosas se abstêm de necessidades im­portantes, como dormir ou comer, e perseveram até que o problema seja resolvido.

Sim, você não quer ter ansiedade crônica. Sim, você não quer ter uma família ou uma equipe formada apenas por pessoas an­siosas. Mas, como pode ver, há enormes vantagens em ter um sis­tema de alarme humano. Pessoas não ansiosas não percebem sinais ambíguos que podem significar perigo. Pessoas não ansio­sas tendem mais a ignorar até os sinais óbvios de um perigo em potencial porque não julgam a informação mais premente do que qualquer outra coisa que lhes passa pela cabeça.

Em uma pesquisa fascinante, membros de um grupo foram levados a crer que tinham ativado, acidentalmente, um vírus de computador que infectou rápido todos os arquivos.33 A caminho de comunicar o ocorrido à administração, eles encontraram qua­tro obstáculos, impedindo que comunicassem ou pedissem ajuda a outros. Uma pessoa lhes pediu que respondessem a um pequeno [127] questionário para uma pesquisa, um funcionário disse onde pode­riam encontrar o administrador do prédio, mas lhes pediu o favor de ajudar com umas fotocópias, na porta da sala do administrador havia uma placa pedindo que visitantes aguardassem e, finalmen­te, depois de serem encaminhados a um técnico em computado­res, passaram por um aluno que “acidentalmente” deixou cair no chão uma pilha de papéis. Quatro obstáculos sociais planejados para fazê-los tropeçar. Para superar os obstáculos, eles precisavam ser determinados e insistentes, duas qualidades nem sempre asso­ciadas a pessoas que sofrem de ansiedade. No entanto, diante do perigo, as pessoas mais ansiosas contornaram todos os obstáculos sem perder o foco. Recusando pedidos de ajuda e atos de gentileza, foram mais eficientes do que seus colegas mais tranqüilos e feli­zes para alertar sobre o perigo e conseguir assistência imediata.

Melhor que a positividade

As vantagens de ser uma pessoa ansiosa não estão ao alcance de quem vive tipicamente no reino da positividade. Pesquisadores constataram que ser extrovertido, sociável e dominante não com­bina com a determinação férrea e a concentração das pessoas ansiosas.34 Em zonas de perigo, a ansiedade prevalece sobre a po­sitividade. Nas situações em que há possibilidade de perigo, mas os sinais são obscuros, complicados ou duvidosos, a ansiedade prevalece sobre a positividade. Nesses casos, as pessoas ansiosas descobrem soluções e, tendo gente à sua volta (amigos, família, co­legas), compartilham os problemas e as soluções. Os grupos são mais bem-sucedidos quando formados por uma mistura de tipos de personalidade com pontos fortes variados e pelo menos uma sentinela ansiosa. [128] 

Como aplicar efetivamente à ansiedade

  1. Crie uma atmosfera em que a atitude vigilante das pessoas ansiosas seja encarada como um ponto psicologicamente forte, e não uma neurose a ser curada. Fale claramente, ex­plicando aos outros que o valor inerente à ansiedade traz o equilíbrio necessário a uma cultura, tentando maximizar o prazer, o crescimento e a busca de realização de sonhos e aspirações. Um grupo bem-sucedido mescla pessoas com diversas motivações, desde alcançar objetivos até evitar os perigos.
  2. Estimule sempre a atenção aos problemas. Crie canais de informação, designando para trabalhar no centro do grupo alguém que tenha a medida exata de pontos fortes, isto é, que seja sensível, articulado, persuasivo, socialmente co­nectado e ciente dos diversos pontos fortes das outras pes­soas (a fim de encontrarem as soluções mais rápidas).
  3. Crie uma estrutura de incentivos, com recompensas para formas mais discretas de detectar e neutralizar os proble­mas. Isso significa que uma força antiterrorista que impede a entrada de armas num aeroporto deve ser tão valorizada quanto um agente que agarra um criminoso prestes a explodir uma bomba escondida na mochila. A mídia adora exal­tar um indivíduo como herói porque propicia uma matéria mais fácil, mais continuada, mais romantizada. Organiza­ções devem escrever suas próprias histórias, criando opor­tunidades para as sentinelas ganharem os aplausos quando merecidos. [129]
  4. Em vez de pensar em ameaças como algo presente-ausente, liga-desliga, lembre que as maiores ameaças frequentemen­te começam como sinais de fumaça, fracos, insidiosos, mal perceptíveis, que de repente aumentam muito. Reconheça a qualidade de quem detecta o começo da ameaça. É preciso deixar de estigmatizar esse processo, a fim de ver seu lado saudável, quando as pessoas ficam à vontade para falar de desgaste e desconforto.

Lembretes

  • Quando não evitamos emoções negativas, ganhamos agilida­de emocional, a capacidade de usar todas as nuanças das experiências emocionais.
  • Raiva, culpa, ansiedade e outras emoções negativas têm vá­rias e inesperadas serventias. Servem para nos dar coragem, regular o comportamento, manter-nos alertas ao ambiente e recarregar as energias criativas, além de outras vantagens.
  • Estratégias concretas como diminuir a velocidade podem ser usadas para transformar as emoções consideradas nega­tivas em boas ferramentas.
  • Abandone a ideia de rotular emoções como exclusivamen­te negativas ou positivas. Em vez disso, identifique o que é aconselhável ou não em cada situação.

Quando você era criança, provavelmente imaginava possuir al­gum superpoder (se não imaginou, perdeu uma boa oportunida­de). Talvez imaginasse poder voar, ter uma força descomunal ou ser invulnerável. Quando você pensa à luz dos benefícios associa­dos a todos os sentimentos - positivos e negativos -, se dá conta de [130] que não tem um único superpoder, e sim vários: tem um potenciador de coragem (raiva), um comportamento que mantém a ética nos trilhos (culpa) e um vigilante sempre alerta ao seu lado (an­siedade). No próximo capítulo, vamos examinar seu menospreza­do detector de mentiras (tristeza). Como seus sentimentos vêm e vão, você tem sempre um poder ao seu dispor.

Afinal, muitos preconceitos contra as experiências emocionais negativas surgem porque as pessoas misturam emoções proble­máticas, extremas, arrebatadoras, com suas primas mais benignas. Culpa não é vergonha, raiva não é fúria, ansiedade não é distúrbio de pânico. Em cada caso, o primeiro é uma fonte benéfica de in­formações emocionais que ativa a atenção, o pensamento e o com­portamento que conduzem a resultados desejáveis. [131]

 

 

Psicologia - Psicologia positiva
Temas gerais - Tópicos gerais, 
12/8/2021 12:21:24 PM | Por Edson Bini
O movimento sofista

Esta Introdução não tem qualquer pretensão acadêmica e, muito menos, erudita. São apenas considerações sumárias, a respeito de uma célebre rivalidade intelectual, que podem se revelar úteis ao estudante da história do pensamento clássico e, particularmente, àquele da filosofia platônica. Trata-se de uma velha questão a uma vez complexa e polêmica, mes­mo porque transcende o conteúdo e o mérito da própria contribuição ntelectual manifestada por esses âmbitos antagônicos da vida cultural do mundo ocidental na Antiguidade.

De fato, desde a gênese daquilo que convencionamos denominar movimento sofista e do platonismo original (concebido e ensinado por Platão na Academia), percebemos não só a marcante diversidade e polarização das propostas de um e outro, como também a paralela diferença pontual de postura e conduta de representantes de ambos os partidos.

As origens dessa disputa nos fazem remontar à Grécia de meados do século V a.e.c, quando começa a germinar a semente de um desenvolvimento cultural que viria a culminar no período áureo da Atenas de Péricles.

Quase todo estudante de Filosofia sabe que a palavra sofista sophistés é estreitamente aparentada a sophós, hábil em alguma arte manual, ou “hábil” em geral; sophós também designa o indivíduo dotado de algum saber, o sábio. O significado de sophistés é virtualmente idêntico ao de sophós.

Entretanto, a partir de meados do século V a.e.c, em Atenas (o centro cultural da Grécia antiga), essa palavra (até então neutra e positiva) [11] passa a designar (já com sentido pejorativo), num primeiro momen­to, um personagem novo e curioso do cenário cultural e educacional: o professor de Retórica e Filosofia.

Perguntar-se-á: mas já não existiam mestres de Retórica e de Filo­sofia?

Decerto, mas não com as características e peculiaridades desses homens.

Os sofistas eram professores de Retórica e Filosofia implicando ne­cessariamente a correlação desses dois saberes. Por trás disso, já se delineiam a postura desses homens e a própria concepção que alimentavam da Filosofia como um saber não fundamental, mas atrelado e subordina­do à Retórica: a única Filosofia que realmente importa é a veiculável e veiculada pela arte do bem falar, isto é, a oratória ou retórica. Vale dizer que, para os sofistas, a Filosofia se reduz basicamente à Ética e, sobre­tudo, à Política (para empregar a terminologia aristotélica, às ciências práticas, ou da práxis). Os sofistas em geral julgavam disciplinas filo­sóficas como a Psicologia, a Física, a Metafísica e a Gnosiologia como especulação e reflexão de secundária importância, precisamente porque são mais distanciadas da práxis.

Isso nos possibilita, já num segundo momento, aprimorar o que se entendia por sofista: o professor de Retórica e Política, ou melhor ainda: o professor que ensinava como utilizar a retórica no discurso e debate políticos, o que denuncia uma das funções primordiais desses homens na Atenas a partir de meados do século V a.e.c., ou seja: ensinavam a jovens que pretendiam ocupar cargos políticos habilidade e maestria
no uso da palavra visando à persuasão do público.

Mas por que dizemos Atenas?

Porque Atenas era, nessa época, o grande núcleo cultural e político da Grécia e para lá convergiam todos aqueles que ansiavam participar do grande impulso da cultura helênica envolvendo setores fundamentais da educação, como a Filosofia, as mais diversas artes e a competição esportiva - tudo entranhado na intensa vida política da cidade-Estado.

Ora, também a maioria dos sofistas (que não era ateniense) acabou por se dirigir a Atenas, onde não se estabeleceram definitivamente (mesmo porque eram geralmente andarilhos e itinerantes), mas onde se man­tiveram por períodos consideráveis, já que seus usuários, ou seja, seus [12] discípulos (amiúde de famílias aristocráticas abastadas) ali se achavam, alimentando interesse pelos variados cargos políticos oferecidos pela poderosa e febril cidade-Estado.

A esse ponto, podemos depreender uma definição ainda mais depu­rada e completa do sofista: professor remunerado de retórica aplicada à política.

Os sofistas eram clara e explicitamente profissionais remunerados e, com frequência, eram muito bem remunerados.

Talvez devêssemos mesmo afirmar que foram eles que instituíram - mediante sua própria prática - a figura do profissional remunerado da educação, ou melhor, do magistério.

Esse professor era mestre particular ou de pequenos grupos, minis­trava cursos temporários pagos e hospedava-se, no caso de Atenas, geralmente nas faustosas residências de admiradores ricos. Cálias de Ate­nas, filho de Elipônico, foi, no início do século IV, um desses famosos patrocinadores dos sofistas.

Mas, com o tempo e, especialmente, com o advento da democracia em Atenas (auge da efervescência política, artística e intelectual), os sofistas, além de mestres renomados de retórica e, naturalmente, exímios oradores, passaram a exercer marcante influência não só na intensa vida política, como também na feitura de leis (legislação): Protágoras, por exemplo, redigiu uma Constituição para a colônia de Túrio. O mesmo ocorreu em relação à vida jurídica, já que como hábeis oradores come­çaram também a atuar nos tribunais como advogados.

Assim, em boa medida, o sofista é igualmente um dos paradigmas do advogado ocidental, além de constituir sua origem institucional.

Como o leitor pode depreender, os sofistas primavam por um franco e desapaixonado pragmatismo, atuando em quase todas as esferas da vida do cidadão ateniense: educação, política, legislação, transações fi­nanceiras e comerciais. Alguns sofistas foram líderes do governo, como Crítias, membro do círculo socrático e depois um dos trinta tiranos.

Eram, contudo, na maioria e originalmente, homens ligados à for­mação e à educação [paideía] ministradas num plano não escolástico e caracterizadas por um profissionalismo visivelmente materialista e rentável.

Após arriscarmos declarar muito do que eram, ousaremos aventar algumas coisas que não eram. [13] 

Embora efetivos apoiadores e participantes da democracia em Ate­nas, certamente não eram, obviamente, patriotas do ponto de vista de Atenas; na verdade, não eram, na sua quase totalidade, nem atenien­ses autóctones, nem estrangeiros estabelecidos na cidade [métoikoi], não sendo geralmente detentores de direitos civis. Alguns deles (como Hípias de Elis), inclusive, exerciam missão diplomática re­presentando suas cidades. Eram estrangeiros comuns, embora altamen­te influentes, sobretudo, pela via indireta, porém eficaz, da educação.

Respeitavam, via de regra, tanto as leis locais quanto as divindades epônimas - a religião oficial - mas não eram devotos, ou seja, não praticavam assídua e meticulosamente os rituais e sacrifícios domésticos, nem participavam rigorosamente das festividades religiosas públicas. Por outro lado, o escancarado pragmatismo e o utilitarismo sofistas autorizam-nos até a duvidar de que algum dos sofistas haja esposado a causa de alguma forma de pan-helenismo, como o fez Isócrates, funda­dor, diretor e mestre de uma respeitada escola de retórica em Atenas.

Conviveram relativamente bem tanto com a ameaça persa quanto com a ocupação macedônica de Filipe II.

Quão distante está o personagem que acabamos de esboçar daquele que costumamos chamar de filósofo?

A propósito, é preciso observar que na verdade, à parte de nossas despretensiosas considerações, não há como traçar com segurança e objetividade o perfil histórico real do sofista, pois a quase totalidade das informações que dispomos dele provém, paradoxalmente, de registros de seus maiores adversários: os filósofos Platão, Aristóteles e Isócrates, especialmente no seu Contra os sofistas.

Isso pode ser explicado em dois níveis. Primeiramente, os ocupadíssimos sofistas gregos em geral não se dedicaram (salvo algumas exceções como Protágoras de Abdera) a registrar por escrito para per­petuação nem suas impressões “filosóficas” nem suas peças de oratória; em segundo lugar, a maioria dos escritos dos sofistas (do que constitui exemplo os escritos do próprio Protágoras) não sobreviveu nem chegou a nós (alguns, como o Dos deuses de Protágoras, foram condenados e queimados durante a vida de seus próprios autores pelo governo ateniense). A escassa herança sofistica restante é constituída por fragmen­tos esparsos deles próprios e observações sumárias tecidas a respeito [14] deles por autores que, semelhantemente a Platão e Aristóteles, não os viam com bons olhos. Há algumas exceções a essa regra, como o caso da figura controvertida de Antífon, do qual dispomos de quinze discur­sos forenses.

A única obra histórica da antiguidade tardia sobre os sofistas, aces­sível e tida como autêntica do prisma dessa antiguidade (surgida no século II da era comum), é Vidas dos sofistas [Bioí Sophistôn], de Filostrato, sofista grego de nascimento, mas já inse­rido no Império Romano. Todavia, para nossa apreciação da sofistica grega no seu nascedouro grego, a obra de Filostrato padece de graves deficiências.

Não é um conjunto sistemático e consistente de biografias, porém um texto que chega a flutuar ao sabor de certos caprichos e do entusiasmo de seu autor, o qual prestigia e privilegia certos nomes (particularmente de seus mestres sofistas) e desprestigia outros, marcando a obra de um elevado grau de subjetivismo e tendenciosidade que acaba por levá-la a ser encarada por muitos críticos e leitores mais como uma coletânea de crônicas literárias beirando, em determinados trechos, à ficção, do que como um tratado de história. A despeito das qualidades do texto, isso faz de Vidas dos sofistas uma obra não inteiramente fidedigna.

O outro problema é que Filostrato fornece muita informação (às vezes dúbia) sobre grande número de sofistas próximos dele próprio no tem­po alguns até seus contemporâneos - mas pouca informação sobre os grandes representantes da sofística original grega dos séculos V e IV a.e.c.

Os sofistas mais expressivos dessa época, precisamente, foram Protágoras de Abdera, Pródico de Ceos, Górgias de Leontini, Híias de Elis e Antífon de Ramno. Sobre esse último, pairam dúvidas ainda no tocante a sua identidade, já que o nome Antífon era muito comum na Grécia antiga e houve, no mínimo, dois Antífons de destaque atuantes em Atenas nessa época. Outros sofistas importantes, embora de menor peso (geralmente discípulos do sprimeiros), foram Ésquines de Atenas, Eudoxo de Cnido, Leon de Bizâncio, Dias de Éfeso, Pólo da Sicília, Crítias de Atenas e Trasímaco da Calcedônia.

Cumpre notar, ainda, que embora a classificação de sofista se funda nas características e qualificações comuns que indicamos, havia, na prática, diversidades de perfil de sofista para sofista, tanto no que tangia ao cabedal e amplitude do saber de cada um quanto ao que tangia à ativida­de e à função sofisticas que cada um desempenhava majoritariamente. Hípias de Elis era um homem de saber enciclopédico e que, a des­peito de atuar regularmente como embaixador de Elis, concentrava sua atividade nas exibições sobre os mais variados temas em círculos restri­tos de ouvintes privados; já Esquines (nascido em 389 a.e.c. - o pugnaz adversário de Demóstenes) especializou-se na oratória política e não tardou a tornar-se um político influente e embaixador, aderindo à causa de Filipe da Macedonia; Antífon (nascido em 480 ou 479 a.e.c.) sobres­saiu tanto como orador de suma eloqüência quanto como mestre de retórica forense e política; Pródico e Protágoras, além de produtivos professores particulares, foram criativos escritores.

Como já apontado, os sofistas gregos em geral eram simpatizantes da democracia ateniense. É necessário, contudo, mencionar ao menos duas exceções: Crítias de Atenas, pertencente a uma ilustre família aris­tocrática e discípulo de Sócrates, apoiou os espartanos e participou da conspiração e insurreição que fez dele um dos Trinta Tiranos em 404 a.e.c; Antífon de Ramno foi defensor da oligarquia. Com a queda dos Trinta em 403, Antífon teve pior sorte do que Crítias (exilado em 407 e mor­to em 403 num confronto com os democratas e Trasíbulo): foi condena­do à morte pela cicuta.

Dos principais sofistas gregos menores, Pólo da Sicilia (retratado por Platão como interlocutor no diálogo Górgias e que figura também no Fedro) foi discípulo veemente de Górgias e autor de uma Arte da retó­rica, Dias (Bias ou Délio) de Éfeso, segundo Filostrato, foi inicialmente discípulo na Academia, mas aderiu à sofistica no episódio em que teria - atuando “diplomaticamente” a favor dos gregos - convencido Filipe da Macedonia a formar e liderar uma expedição guerreira contra a Ásia, da qual os gregos poderiam participar; Eudoxo de Cnido (408-352 a.e.c) principiou na Academia e tornou-se homem de múltiplo conhecimento (Astronomia, Física, Geometria etc.), mas logo abandonou a escola de Platão para estudar com o pitagórico Árquitas. Como sofista atípico, abriu e manteve uma escola de retórica em Cízico e foi legislador de sua cidade natal; Trasímaco da Calcedônia (o mesmo que aparece no Livro I [16] de A República) é considerado por muitos o inventor da prosa rítmica, de­senvolvendo estilos específicos de oratória; Leon de Bizâncio (que se destacou como orador e historiador) participou do episódio ocorrido em 340 a.e.c., quando da tentativa de ocupação de Bizâncio por Filipe II.

Sócrates, Platão e os sofistas

Tanto os grandes filósofos gregos que ensinaram (Sócrates, Platão, Aristóteles entre outros) e que escreveram (como Platão e Aristóteles) quanto os historiadores da sofistica (ao menos, Filostrato) concordam em tese com a distinção entre filosofia e sofistica, isso embora a sofistica tenha incorporado a Filosofia (mais exatamente a Política enquanto dis­ciplina filosófica) como objeto e meta da atividade retórica, ainda que alguns sofistas, como Protágoras, hajam concebido e formulado alguns conceitos e princípios filosóficos como o célebre princípio protagórico de que o ser humano é a medida de todas as coisas; e, embora muitos sofistas alegassem ensinar “filosofia”, certamente não entendiam por "filosofia” o mesmo que filósofos como Sócrates, Platão e Aristóteles.

Uma coisa é positiva: a ostensiva práxis dos sofistas coerente­mente determinou (mesmo a despeito de sua eventual alegação de que “filosofavam”) um inevitável reducionismo do espectro filo­sófico; a rigor, esses homens da práxis, na sua atividade discursi­va, somente se pronunciavam e se ocupavam, como já dissemos, de duas daquelas disciplinas filosóficas que Aristóteles chamou de ciências práticas, a Ética e a Política, com evidente ênfase nesta última. E tão somente compreensivel e lógico que os sofistas não se importassem com e não se devotassem às chamadas (permanecendo na termi­nologia aristotélica) ciências produtivas ou poiéticas (ligadas às artes em geral), e muito menos às ciências contemplativas ou especulativas Física, Metafísica, Matemáticas, Gnosiologia, Psicologia etc.).

Prestigiados sofistas como Górgias demonstram explicitamente seu desprezo pela especulação filosófica, taxando-a de algo como uma agradável diletância de desocupados. Por outro lado, no que toca à Ética e à Política, os sofistas assumem uma posição que se coaduna
inteiramente com seu cabal pragmatismo e materialismo, posição essa [17] consubstanciada na sua concepção da excelência ou virtude [areté] e da lei [nómos],  ou seja, de que tanto a virtude quan­to a lei têm caráter puramente convencional, despindo-as de qualquer caráter necessário determinado pela natureza [physis] ou pelos deuses [theoí]. Essa forma nascente e radical de “humanismo” quase esvazia o campo do filosofar.

É nesse ponto que podemos ingressar na descrição de uma onda de repúdio e crítica que o movimento avassalador dos sofistas suscitou nos meios filosóficos do mundo grego antigo, sediados em Atenas.

A filosofia grega, apesar de sua incontestável gravitação em torno da cidade-Estado [pólis], tem suas origens históricas junto aos fisicistas ou filósofos da natureza (pré-socráticos como Tales, Demócrito, Anaxágoras, Heráclito etc.) que focam sua investigação filosófica exclusivamente na natureza [physis], e junto a Pitágoras e aos pitagóricos, cujo foco filosófico, totalmente distinto, é múltiplo, envol­vendo desde três matemáticas (a Aritmética, a Geometria e a Harmonia, ou Música) até o misticismo. A outra vertente contemporânea dessas origens é a escola eleata, fundada por Parmênides de Eleia, e que con­centra o objeto filosófico na ontologia (metafísica).

Com Sócrates, o eixo filosófico muda revolucionariamente para o ético. Sócrates está preocupado com as relações humanas e com os va­lores que possibilitam e legitimam essas relações dos indivíduos que, como cidadãos, vivem em sociedade na cidade [pólis]. Assim, toda a filosofia socrática se ocupa da conceituação das virtudes, funda­mentalmente a justiça [dike], a sabedoria [sophía], a co­ragem [andreía] e a moderação ou autocontrole [sophrosyne].

Os sofistas concordam com esse “humanismo”, que se caracteriza por trazer a investigação filosófica para o costume ou caráter habitual [éthos], [êthos], que diz respeito exclusivamente ao ser hu­mano. A afirmação de Protágoras de que o ser humano é a medida de to­das as coisas, apesar de suas implicações problemáticas levantadas pelo próprio Sócrates e posteriormente por Platão e Aristóteles, aponta basi­camente para esse “humanismo”. Entretanto, enquanto a ética socráti­ca conduz necessariamente à discussão e à tentativa de elucidação dos [18]  conceitos, a ética sofista conduz diretamente à prática, à ação [prâxis] política. Instaura-se a oposição e polarização especulação/ação [theoríá] / [prâxis], flagrante e irreconciliável.

Ora, se as questões da Física, Ontologia, Gnosiologia, Psicologia, das matemáticas e demais áreas especulativas são vãs e inúteis (folgue­ do de adolescentes e ociosos) e não há necessidade de apurar os con­ceitos verdadeiros da ética, uma vez que os valores éticos e as virtudes são estabelecidos pela própria ação humana nas instâncias e escalões do poder - tal como as leis - o que resta da teoria filosófica? Qual o sentido do filosofar? Mais precisamente: resta algum objeto para o filosofar?

A discussão dos conceitos (cerne da dialética) enquanto discussão mesma visando a sua elucidação (impulsionada pela maiêutica - parto das idéias da verdade) se revelaria pura perda de tempo, empenho in­telectual inútil e desnecessário! Quando Sócrates (no início de A Repú­blica de Platão) instaura a questão do que é o justo, o sofista Trasímaco insiste em participar do diálogo e se apressa em responder prontamente, de maneira convicta e áspera, sem maiores problemas... como se fosse óbvio: “...O justo nada mais é senão a vantagem do mais forte...”1. O poder determina de modo unilateral, dogmático e inquestionável o que é a justiça e ponto final. Não se trata de especular em busca de um con­ceito universal ou consensual - verdadeiro para todos. Trata-se, sim, de o poder vigente (e transitoriamente vigente) impor sua opinião particular.

Talvez pudéssemos ler nas entrelinhas do discurso do vociferante Trasímaco ou até, unicamente na sua definição do justo, a decretação do fim do filosofar...

Esse quadro produz um antagonismo inarredável na vida intelectual e no processo educacional de Atenas.

Arautos do esvaziamento do objeto filosófico, os sofistas em geral, nentados, sobretudo, por sua concepção materialista da lei e da virtude, paralelamente a sua inquietante e ameaçadora ascensão e peneração na educação ateniense e nos escalões do poder, são vistos pelos filosofos gregos antigos, aqui representados por Platão, em síntese, da seguinte maneira: [19]

  1. não sustentam nem defendem nenhuma doutrina que vise à verda­de, pois para eles nem a verdade nem a falsidade existem - tudo que existe são opiniões individuais particulares e, nesse caso, todas verdadeiras, uma vez que o conceito universal de verdade é inconcebível;
  2. a função precípua da retórica praticada pelos sofistas é persuadir o interlocutor, o opositor, o público ou o júri, de uma opinião particular qualquer, de preferência daquela do próprio sofista, ou de seu discípulo ou cliente que melhor o remunere;
  3. o sofista é, com frequência, um estrangeiro oportunista itineran­te, cujo interesse é acumular fortuna, prestígio e poder em Atenas, onde não tem nem deseja gozar de direitos civis e cumprir deveres civis e obrigações religiosas;
  4. como não se baseia no rigor dos conceitos e na observação da verdade, o discurso do sofista é elaborado sem compromisso com a verdade, o que lhe faculta recorrer a raciocínios capciosos e mesmo falhos e falsos. Resultado: o sofista é um hábil e sutil embusteiro;
  5. o sofista tende a reduzir a retórica à erística, ou seja, o embate de posições antagônicas pelo mero embate, posto que a consecução de uma verdade universal, ou sequer de um consenso, não é contemplada;
  6. o sofista é incapaz de participar do debate dialógico e (como ocorre amiúde nos diálogos de Platão) é demolido ou reduzido à perplexidade pela dialética;
  7. o sofista nem sequer possui efetivamente tantos conhecimentos amplos e profundos que, na sua vaidade ou prepotência, alardeia.

Como se pode perceber, a crítica acirrada de Sócrates e Platão aos sofistas (Aristóteles somará a isso a sua artilharia) não é a filósofos ou pensadores que defendem doutrinas filosóficas distintas ou divergentes das suas. É fundamentalmente uma crítica a suas posturas e condutas.
Platão, entretanto, graças principalmente à sua maestria literária, mos­tra e retrata os sofistas às vezes satírica e sutilmente, às vezes humorística e comicamente, como sucede no Eutidemo, e às vezes dramaticamen­te, como no Protágoras. Numa situação ou outra, sua crítica incisiva contesta-os, vigorosamente, denuncia-os ou ridiculariza-os. [20]

O futuro da filosofia e da sofistica além do apogeu do advento de Péricles

Pensadores como Sócrates, Platão, Aristóteles e Epicuro foram co­lossos da filosofia dos frutíferos séculos IV e III a.e.c., em Atenas, os quais, em meio à intensa atividade cultural, artística e institucional sob o governo democrático, desempenharam uma função importantíssima no largo espaço intelectual aberto na polis à educação.

A rivalidade e o confronto entre sofistas e filósofos só enriqueceram o caldo dessa fecunda ebulição ocorrida nos meandros e corredores da
paideia.

Assim, o inconteste brilho da era de Péricles também tem a debitar a homens como Protágoras, Górgias, Hípias, Pródico e outros profis­sionais do saber e agentes do processo educacional. A propósito, os sofistas, esses não filósofos, ainda que não exatamente bem vistos pelo povo ateniense e nem propriamente aclamados pelo próprio governo democrático de Atenas, eram com frequência bem menos críticos desse governo do que filósofos como Sócrates, Platão e Aristóteles.

Por força das fatais transitoriedade e instabilidade das coisas huma­nas e da própria vocação humana para a mudança ou transformação, o período áureo de Péricles findou. Não entraremos aqui na descrição dos eventos de natureza política que causaram o declínio e término da era de Péricles, mesmo porque essa descrição é facilmente encontrada em bons textos de história política desse período do mundo clássico.

Restringindo-nos aos movimentos filosófico e sofista (não sendo também cabível nos atermos às artes e a outros departamentos da vida cultural), o quadro que contemplamos a partir da segunda metade do século III a.e.c., indica uma inelutável decadência das atividades filosó­fica e sofistica, declínio em certas fases gradual, em outras, abrupto e até vertiginoso.

Dizem que nem sempre os herdeiros possuem a envergadura de seus antecessores.

Se Sócrates foi sucedido em paridade por Platão e este por Aristóte­les, o mesmo não aconteceu a este último.

Platão, ao morrer em 347 a.e.c., deixou como sucessor e diretor da Academia seu sobrinho Espeusipo que, além de alterar os rumos do en­sino ministrado, mostrou-se pessoalmente muito inferior ao seu mestre, [21] quer no gênio filosófico, quer na administração da escola. A Academia experimentaria, muito posteriormente, novo alento com Cameades (a Nova Academia, fundada em 155 a.e.c.), que também não se revelaria muito duradouro.

Quando Aristóteles morreu em 322 a.e.c., sucederam-no no Liceu Teofrasto e alguns outros discípulos diletos. Eram homens de sólida formação e diligentes herdeiros da escola peripatética; o próprio Teofrasto fora monitor do grande estagirita, seu colaborador direto e, in­clusive, autor de alguns tratados a ele legitimamente atribuídos. Mas foi, até compreensivelmente, impossível ombrear um gênio da estatura, versatilidade, largueza e profundidade de Aristóteles.

Epicuro de Samos também não contou com um discípulo a sua al­tura, que desse imediata continuidade a sua vertente materialista com igual rigor e vigor. Idêntico destino acometeu a escola cínica de Antístenes e Diógenes e a escola megárica liderada por Euclides. Apujante escola estoica, excep­cionalmente, após a morte de seu fundador, Zenão de Cítio, contou com dois sucessores de capacidade comparável, Cleanto e Crísipo, mas com a morte deste último em 210 a.e.c, experimentou franco declínio.

O ceticismo de Pirro de Elis (contemporâneo de Aristóteles) igual­mente perdeu fôlego com a morte daquele que o concebeu.

Escolas e movimentos filosóficos entre os séculos III e II a.e.c. sofre­ram reveses semelhantes.

A invasão da Grécia pelos romanos, entre outros efeitos, certamente não levou a combalida filosofia nem a um estado terminal nem ao leito de morte.

Os romanos não eram bárbaros e não fecharam as escolas e cen­tros de estudos filosóficos. Mas, embora Atenas persistisse como um importante polo da intelectualidade e florescimento filosófico, deixou de monopolizar esse papel no mundo ocidental; pois os romanos, além de naturalmente privilegiarem Roma, descentralizaram os centros de cul­tura e conhecimento.

Muitos gregos cultos e intelectuais, presumivelmente a nata da elite que atuava nas várias esferas da educação ateniense, migraram para Roma em busca de novas oportunidades, ou simplesmente arrebanha­dos por seus senhores romanos, já que agora a condição da maioria [22] deles era a de escravos. O exemplo mais notório disso foi Epíteto, no início do século I a.e.c.

Na verdade, os romanos não causaram qualquer prejuízo efetivo ao desenvolvimento filosófico grego... pelo contrário! Quase todas as escolas filosóficas em atividade na idade de ouro da Grécia tiveram uma continuidade romana: platonismo, aristotelismo, estoicismo, ceti­cismo etc. Não obstante isso, os romanos não possuíam o pendor natu­ral e espontâneo para a especulação filosófica que possuíam os gregos, e tampouco a disposição destes.

Os grandes intelectuais romanos, ligados geralmente à atividade fe­bril dos cargos políticos da magna potência que era Roma, eram usualmente homens pragmáticos aferrados aos negócios imediatos e prosai­cos da vida da República e depois do Império. O próprio Epíteto, grego de nascimento, escravo e depois tornado cidadão romano, foi assessor político, o mesmo ocorrendo com Sêneca, que foi ministro de Nero, já no Império. Não houve em Roma, ao menos a julgar pelos registros históricos disponíveis e confiáveis, nenhum filósofo na acepção grega original da palavra. Todos os mais expressivos “filósofos” romanos fo­ram simultaneamente advogados, políticos ou estadistas: os exemplos mais famosos são Marco Túlio Cícero no final da República (assassi­nado em 43 a.e.c.) e Marco Aurélio Antonino (imperador no século II da era comum).

E quanto ao movimento sofista?

Bem, se o profundo exercício especulativo exigido, por exemplo, pela metafísica, a gnosiologia e a lógica, mostrava-se incompatível com o pragmatismo romano, não seria de se estranhar que todas aquelas carac­terísticas dos sofistas por nós indicadas, a saber, profissionalismo, cosmopolitismo, enciclopedismo, destreza e fluência na retórica política e fo­rense, viriam ajustar-se ao modo de vida, estilo e pendores dos romanos.

Seria igualmente de se esperar que a própria Atenas controlada pelos romanos, e não mais tomada pelo fervor filosófico e pelo con­flito com os genuínos filósofos, se tornass mais conveniente e mais acolhedora ainda aos sofistas; por outro lado, a maioria dos sofistas de então não passavam de apátridas, e para aqueles homens do mundo, inveterados andarilhos, o deslocamento para a poderosa Roma, então sede inconteste da política ocidental, representava não propriamente [23] um horrendo desterro, ao qual tivessem sido condenados pelos senho­res, mas, pelo contrário, uma “viagem repleta de promessas e perspec­tivas novas e magníficas”.

Filostrato de Lemnos (século II e.c.), o sofista e historiador da so­fistica citado por nós indica, além de uma dezena dos mais conhecidos sofistas contemporâneos de Sócrates e Platão, perto de cinqüenta sofis­tas de destaque variável - porém todos de considerável importância e significação - que atuaram expressivamente no mundo romano, espe­cialmente no período imperial, ou seja, a partir de 17 a.e.c. Ocuparam os mais diversos e importantes cargos públicos, advogaram e foram, principalmente, oradores profissionais e mestres de retórica em escolas situadas em cidades de peso do Império, como Alexandria, Esmima, Éfeso, Bizâncio e, é claro, Roma e Atenas. Sua influência foi exercida profunda e amplamente em quase todos os setores vitais do Império: Educação, Direito e Justiça, Economia, Administração, Política interna e externa. Homens como Favorino (segundo Filostrato, um hermafrodita, segundo outros, um eunuco), gaulês que viveu entre 80 e 150 e.c., Polemo de Laodiceia (nascido por volta de 85 e.c.), Herodes Atico de Maratona (c. 100-179 e.c..), Loliano de Éfeso, Nicetes de Esmima (que floresceu nos últimos cinqüenta anos do século I e.c..) e Escopeliano de Clazomena foram pessoas extremamente influentes no Império e tratavam amiúde diretamente com imperadores como Domiciano, Nerva, Trajano, Adriano e Antonino.

Apesar de certas características e marcas que distinguem os sofis­tas, a multiplicidade de suas funções e atividades parece ainda tornar problemática uma definição sintética que dê conta de sua peculiaridade como intelectuais. A própria questão de uma distinção objetiva entre sofista e filósofo persiste, a rigor, em aberto. Até hoje homens como Isócrates e Cameades dividem os estudiosos quanto a sua classificação. O historicamente misterioso Cálicles (que aparece no Górgias de Pla­tão) combate claramente Sócrates, mas ao mesmo tempo esboça certa neutralidade e não se confessa um sofista, embora suas idéias e, mor­mente, seu comportamento o assemelhem a sofistas radicais como Trasímaco da Calcedônia.

Mas talvez essa questão seja, de fato, secundária. O que importa, realmente, como já adiantamos, é a efetiva contribuição cultural e, [24] acima de tudo, educacional fornecida por esses homens, mesmo na agita­ção que foi produzida pela diversidade de suas posições e atitudes.

É de se imaginar que o nome sofista haja gradativamente desapare­cido ou caído em desuso na Europa a partir do início da Idade Média (c. 450  e.c.). Mas terá o próprio sofista, isto é, o homem que desem­penhava as funções e atividades típicas do sofista, se convertido numa espécie extinta?

Decerto a figura humana de múltiplas funções que rigorosamente correspondia ao sofista, o estereótipo do profissional remunerado do conhecimento e criatura migratória que combinava numa só pessoa o pro­fessor, o orador, o advogado, o magistrado, o diplomata, desvaneceu com o tempo.

Com o desenvolvimento e o aumento da complexidade das funções e relações humanas, além das transformações das organizações políticas e das próprias sociedades (incluindo a larga diversificação e a especia­lização profissionais que ocorreram na Idade Moderna e que atingiram seu auge no mundo contemporâneo), o sofista foi decomposto em mais de um indivíduo e mais de um profissional, embora possa ser excepcionalmente encontrado na sua completude.

Se um professor conferencista, um jurista, um ministro de Estado são parcialmente sofistas, se imaginarmos um professor e/ou advogado que ingressa na carreira política, nela ocupa cargos ascendentes e termi­na como um embaixador, teremos não simultaneamente, mas ao menos acumulativamente no tempo, quase um sofista completo. [25]

Filosofia - Filosofia Clássica
Força militar - Cavalaria, 
11/23/2021 11:49:41 AM | Por Jean Flori
O que é a cavalaria?

A noção de cavalaria é mais complexa e multifacetada do que se parece. Se salientarmos somente o aspecto puramente militar do guerreiro a cavalo, podemos ser levados a confundir os significados de cavalaria. Seria preciso, neste caso, falar de cavalaria carolíngia, merovíngia, até romana e, por que não, bárbara, cítica ou sármata. O historiador italiano Franco Cardini demonstrou toda a importância que tinham, para os povos das estepes, a cavalaria pesadamente armada e os valores de guerreiros que lhe eram associados: o culto do cavalo e da espada, a veneração da força física, da coragem e o menosprezo da morte, etc..

Esses valores oriundos das estepes foram transmitidos aos invasores “bárbaros” da Europa ocidental e se encontram, ligados a outros traços germânicos, como a devoção pessoal ao rei-chefe da tribo, na sociedade guerreira, que caracteriza as novas realezas surgidas do desmembramento do Império Romano. Mas, ele também demonstrou que a presença desses traços não basta para caracterizar a cavalaria. Ela nasce em um contexto histórico político-social particular que Georges Duby e eu mesmo, entre outros, tentamos precisar. Ela, de fato, possui elos estreitos com a vassalagem que se instaura, certamente, desde antes do desaparecimento do Império Romano no Ocidente; mas, também com o declínio da autoridade dos reis, depois dos condes, decorrente da desintegração do Império Carolíngio, com a formação das castelanias que marcam o início da chamada época feudal; com as tentativas da Igreja de inculcar nesses guerreiros uma ética ou, ao menos, regras de conduta que limitassem a violência e seus efeitos sobre as populações desarmadas; e com alguns outros fenômenos da sociedade que abordaremos mais adiante. Ora, a maioria desses elementos quase não aparece antes do ano 1000. Não é, portanto, sábio falar de cavalaria antes dessa data.

Seria dizer com isso que a cavalaria é apenas um subproduto do que chamamos de a “mutação do ano 1000” e que não teria aparecido sem ela? Seria ir longe demais. A existência da cavalaria, tal como é compreendida neste texto, não está totalmente vinculada à mutação feudal, e o estudo que é feito dela tampouco está totalmente vinculado à tese “mutacionista”, que encontra hoje alguns detratores zelosos, embora, às vezes, um pouco excessivos. Convém aqui nos explicarmos sumariamente. A tese mutacionista, resultante de obras de história regional, que seriam muitas para serem enumeradas, de Georges Duby a Jacques Le Goff e Pierre Toubert, passando por Pierre Bonnassie e a maior parte dos melhores historiadores do pós-guerra, ressalta uma profunda ruptura que teria ocorrido por volta do ano 1000 na sociedade ocidental, principalmente na França. Podemos, com o risco que comporta todo resumo desse tipo, esquematizá-la, limitando-nos aos aspectos que dizem respeito diretamente à cavalaria, da seguinte forma: o declínio da autoridade do rei, já perceptível no final do século IX, teria sido acompanhado pelo declínio dos principados e dos condados, e pela emancipação política, militar, administrativa e judiciária, mais ou menos profunda e rápida, conforme as regiões, de seus subordinados, os castelões cercados de seus milites, os cavaleiros. Essa emancipação é acompanhada por tumultos e exações, que não se relacionam a causas externas (guerras ou invasões, por exemplo), mas à pressão e mesmo à opressão dos cavaleiros. Estes, oriundos das falanges internas da aristocracia ou de meios mais humildes ainda, aproveitam-se da ausência da autoridade pública forte para impor às populações camponesas, por meio da força de suas armas, costumes, taxas e impostos que eles cobram desses povos desarmados, em nome dos senhores condes e castelões. Em torno do ano 1000, forma-se assim uma nova classe social que cavalga: a classe dos cavaleiros, os milites, que aparecem cada vez com mais freqüência nos textos dessa época, demonstrando a militarização da sociedade desse tempo. Isentos dessas diversas taxações, eles se separam da massa camponesa e se aproximam da aristocracia; tentam fundir-se com a nobreza e conseguem isso em datas que variam conforme as regiões.

Esses direitos, taxas e “maus costumes”, que se arrogam os senhores, a pretexto de proteger a população desarmada, por meio da força de seus próprios guerreiros (de onde o termo de senhoria banal que a designa, do termo ban = autoridade ligada à detenção da força armada), são impostos de fato a todos os habitantes do distrito castelão, sejam eles livres ou não, sujeitos do senhor proprietário fundiário ou colonos, isto é, proprietários das terras que eles cultivam. Assim, pela extensão da senhoria banal e do poder feudal, a diferença social que outrora separava os livres dos não-livres, ameniza-se em benefício de uma nova divisão, que isola aqueles que portam as armas (os milites) daqueles que são desprovidos delas, as massas camponesas, livres ou não-livres [inermes).

Essa tese mutacionista recentemente foi objeto de algumas críticas às vezes fundadas, muitas vezes excessivas, a exemplo de Dominique Barthélémy. Para ele, não teria havido, por volta do ano 1000, nem crise castelã, nem crise social, nem formação de uma classe nova de cavaleiros. O brusco surgimento, bem real, do termo milites nas atas, e cartas principalmente, não significaria de forma alguma o crescimento de uma nova categoria social; ele traduziria uma simples mudança nos hábitos redacionais dos escribas, simplesmente uma revolução no nível do vocabulário; miles (= cavaleiro) teria apenas substituído vassus (vassalo). Não se deveria, por outro lado, insistir na ruptura, no declínio da autoridade sobre os distúrbios “feudais”, mas, pelo contrário, salientar a continuidade, minimizar as exações e as guerras particulares. Analisando essa perspectiva, a cavalaria resultaria apenas de um confisco qualquer de migalhas do poder por guerreiros de origem relativamente humilde que tentavam se unir à nobreza. A cavalaria, desde sua origem, confundia-se com a nobreza e com o poder, não apenas porque as palavras milites e nobiles seriam intercambiáveis, mas porque o termo cavalaria, que se aplicaria a toda a aristocracia, nada mais seria que um termo que designava o direito de governar. A aristocracia o compartilhava com o rei que, nessa perspectiva, teria somente um pouco mais de “cavalaria” que os outros. Cavalaria, nobreza, aristocracia e poder seriam, no fundo, para simplificar a mesma coisa.

Outra percepção da cavalaria é expressa por Karl-Ferdinand Werner. Para ele a cavalaria não seria de origem germânica e guerreira, mas de origem administrativa e romana. Haveria assim continuidade entre a milícia da época imperial cristã e a cavalaria, designada também por esse mesmo termo. No Baixo Império, essa palavra se aplica ao conjunto do serviço público, administrativo, hierarquizado e disciplinado, segundo o modelo militar. A entrega do cingulum militiae (que mais tarde, acredita-se, marcará a investidura dos cavaleiros) significaria, portanto, a entrada no serviço do Estado, em um nível elevado do exercício da função pública, muito mais que a entrada de um soldado ordinário no Exército.

A essas diversas concepções sobre a cavalaria permitam-me acrescentar a minha. Ela, minha concepção, coincide em muitos pontos com a tese mutacionista, principalmente em sua descrição (que parece bem fundada) do crescimento das castelanias, sem todavia confundir-se com ela; admite algumas das críticas da segunda sem, no entanto, segui-la em seu conceito globalizante da cavalaria assimilada ao poder e ao direito de reinar — menos ainda na noção dos “graus diversos de cavalaria”, avatar supremo dessa confusão. Minha concepção aceita uma parte da terceira, principalmente a que vincula ao serviço público (ou ao que resta dele) a entrega das armas àqueles que governam em seu nome, sem com isso aceitar a idéia de uma real continuidade entre as instituições romanas e a cavalaria. Considero a cavalaria resultante da fusão lenta e progressiva, na sociedade aristocrática e guerreira que se implanta entre o fim do século X e o fim do século XI, de muitos elementos de ordem política, militar, cultural, religiosa, ética e ideológica. Esses elementos fornecem, pouco a pouco, à entidade essencialmente guerreira na origem, os traços característicos do que ela se torna aos olhos de todos no decorrer do século XII: a cavalaria, a nobre corporação de guerreiros de elite, a ponto de se transformar em corporação de nobres cavaleiros, com uma ética que lhe é própria e, antes de se tornar uma instituição moral, uma ideologia e até um mito.

O vocabulário da cavalaria

Para bem perceber o que os contemporâneos entendiam por cavalaria, nada melhor do que conhecer o vocabulário que empregam a seu respeito os textos redigidos— no início apenas em latim, depois também em línguas vernáculas (francês antigo, alto-alemão médio, anglo-saxão, provençal, etc.). Que noções fundamentais exprimem esses termos e que conotações diversas assumem ao longo do tempo?

Militia, a partir do século XII, designa sem contestação possível o que entendemos por cavalaria. A equivalência é tão evidente a partir do fim do século XII, e mais ainda pelo que se seguiu, que os escritores que traduzem para o francês antigo os textos latinos anteriores substituem sistematicamente o termo militia pela palavra cavalaria, ao preço, aliás, de algumas inexatidões, obscuridades ou verdadeiros contra-sensos. Apalavra militia, antes dessa data, aplica-se de fato a realidades que não coincidem exatamente com a noção habitual de cavalaria. Nos textos latinos da época romana clássica, a militia é o Exército de Roma, o conjunto dos soldados. Mas K. Werner tem razão em observar, como eu fiz em algumas obras desde 1983, que o termo assumiu conotações de serviço público quando, durante o Baixo Império, os soberanos tentaram organizar o império à maneira de um exército e torná-lo como modelo para sua administração. Encontramos, portanto, às vezes até no limiar do século X, por exemplo em Hincmar de Reims, o termo militia com um significado de serviço público, que inclui certamente a utilização da força armada, mas designa antes de tudo uma função civil na corte do rei. Ainda no século XI, alguns textos expressam por meio da palavra militia a função de governo dos condes ou príncipes, representantes do poder público ou do que resta dele nessa época. Enfim, ao longo de toda a Idade Média, inúmeros documentos de origem, geralmente eclesiástica, opõem o serviço de Deus, realizado pela militia lei dos clérigos e monges, ao serviço do Mundo, do Século e mesmo do Diabo, ao qual se dedicam os leigos. Para estes últimos, a palavra pode certamente incluir ainda uma conotação guerreira ou militar. Esse não poderia ser o caso dos servidores de Deus que, precisamente, devem abster-se de derramar sangue e portar armas e são, por natureza, isentos do serviço militar.

— O verbo Militare, mais evidente ainda, não se aplica somente, como era o caso na origem, à ação de servir por meio das armas, mas a toda forma de serviço público, administrativo, político ou judiciário; em suma, a todo exercício da função pública. Essas funções são, aliás, muitas vezes elevadas e implicam o porte da espada como sinal de autoridade exercida em nome do Estado. São Paulo, em muitas de suas cartas, faz alusão a essa autoridade dos magistrados romanos que, diz ele, não portam em vão a espada e aos quais convém se submeter. Logicamente, ele não designa assim os milites, os soldados, mas os iudices, os magistrados romanos encarregados pelo Estado de assegurar a ordem e administrar a justiça. Esses magistrados desapareceram com o império e sua função nos reinos bárbaros, depois no Império Carolíngio, foi exercida por personagens nomeados pelo soberano, que exerciam em seu nome a autoridade pública, os condes {comitês), às vezes chamados cônsules (cônsules) ou juizes [iudices), ou mais genericamente príncipes ou potentados [príncipes, praesules, poternes, etc). Esses grandes senhores, cada vez mais autônomos a partir do século IX, confiscam para si a autoridade e as funções públicas que eles devem exercer em nome do Estado. Uma noção em vias de desaparecimento, uma vez que o poder central não tem mais os meios de controlá-los, supervisionar ou revogar. Essas funções tornam-se assim o que chamamos então de “honras”, cargos associados a vastos domínios que são, de certa forma, seu salário permanente, e logo se tornariam hereditários no século IX. Nesse sentido, podemos dizer que os condes, os príncipes e mesmo os senhores de menor importância por conseqüência exercem uma militia ou ingressam na militia, o que não significa nem que eles se tornam soldados, nem que entram na cavalaria, mas que exercem poderes decorrentes da antiga noção de autoridade pública. Na maioria dos casos, dizem, esse exercício da função pública delegada inclui a utilização da força armada, o poder de coerção, mas em um nível de comando que ultrapassa em muito o dos executantes que são os milites, os soldados. Aliás, nas cartas de Paulo que mencionamos anteriormente (redigidas em grego, mas logo traduzidas para o latim), a palavra “magistrado” nunca é traduzida por milites antes do fim do século X.

A cristianização do império e o desenvolvimento do monasticismo afastam ainda mais o sentido puramente militar do verbo militare. A organização hierarquizada e muito disciplinada dos monges beneditinos conduz de fato, segundo a regra de São Bento, ao emprego desse verbo para designar o serviço, evidentemente pacífico e de forma alguma guerreiro, do monge em seu monastério, que reza a Deus e combate assim as forças invisíveis do demônio. Essa “desmilitarização” do vocábulo militare é de certa forma a réplica do movimento iniciado por São Paulo quando, em várias de suas cartas, ele compara a vida do cristão à vida do soldado romano, feita de obediência, disciplina, coragem, abnegação. Ele pede também ao fiel, em uma metáfora guerreira, que vista a armadura de Deus para realizar o bom combate da fé, isto é, o cinturão da verdade, a couraça da justiça, os sapatos do zelo, o escudo da fé, o capacete da salvação e a espada do espírito, que é a palavra de Deus (Efésios, 6:13-17). As tribulações e perseguições sofridas pelos primeiros cristãos, principalmente a partir do século III, reforçam essa perspectiva, e os mártires da fé tinham consciência de servir Deus (militare Deo) com sua vida de sacrifício e fidelidade até a morte, como valentes soldados de Jesus Cristo. O aspecto militar, entretanto, estava completamente ausente, considerando que, na maioria das vezes, eles eram mortos exatamente por causa de sua recusa ao serviço militar, que julgavam incompatível com seu estado de cristão. A coisa é manifestada nos numerosos Atos dos Mártires. Um único exemplo, tirado da relação do martírio de Maximiliano, bastará para nos convencermos. Um rapaz, que se tornou cristão, recusa-se em termos categóricos a se tornar soldado. “Não me é permitido servir pelas armas (militare), pois sou cristão.” Pressionado a fazê-lo, afirma novamente sua recusa de um serviço armado que ele assimila ao mal: “Não posso servir pelas armas (militare), não posso fazer o mal (malefacere), sou cristão.” Ele deve então escolher entre engajar-se como soldado ou morrer. Ele recusa-se novamente ao serviço militar, opondo-o ao serviço de Deus.

Essa oposição, aqui radical, entre o serviço (militar e armado) do império ancestral e o serviço (pacífico e desarmado) de Deus como era compreendido por muitos cristãos nos primeiros séculos se transforma, após a cristianização do império, em oposição entre duas categorias de homens, duas “ordens” : a dos clérigos (clerici) e a dos leigos (laici).

— O termo milites (no singular miles) parece acumular as ambigüidades precedentes, uma vez que os escritores eclesiásticos o empregam voluntariamente para designar, ao mesmo tempo, os leigos, armados ou não, que vivem no século (milites saeculi) e aqueles aos quais eles querem exatamente contrapor, ou seja, os sacerdotes e os monges, soldados de Deus (milites Dei) no sentido não-militar do termo, combatentes presumidamente pacíficos da fé, servidores de Deus. A palavra expressa, então, o que, na visão militar, não está necessariamente ligado ao uso das armas, e que São Paulo já tinha em mente em suas cartas: as noções de serviço, obediência, dedicação. A “desmilitarização” do termo milites aqui é patente, como nas expressões modernas “militar” e “militante”, que são decorrentes dele.

Podemos então falar aqui de ambigüidade? Não será polivalência do termo? Pois, no caso de uma tal oposição metafórica entre “soldados” de Deus e do mundo, não há nenhuma obscuridade: faz-se evidente alusão a duas formas de obediência, de serviço, das quais uma ao menos não é guerreira e a outra quase não o é. Estamos longe, tanto em um caso como no outro, da noção de cavalaria.

O uso comum do termo milites é, em compensação, especificamente ligado ao uso das armas. Da época romana até meados do século XI, às vezes mais tarde ainda, ele designa muito claramente os guerreiros em seu conjunto, os soldados. A noção profissional é, portanto, aqui, primordial. Mas ela não é única. Sabemos, de fato, o exército romano do Baixo Império, composto ao mesmo tempo por “voluntários” mais ou menos obrigados, hereditariamente, a servir no exército e por mercenários recrutados entre os povos “bárbaros”, foi sucedido, com a instalação dos reinos de domínio germânico, por um exército composto de todos os homens livres dos quais o rei era antes de tudo o chefe. Por outro lado, o desenvolvimento da vassalagem fez entrar na “clientela” armada dos poderosos homens que, para subsistir, aceitam entrar, pela recomendação e pela homenagem, na “dependência honrosa” de seus protetores. Esses vassalos são de diversos níveis, às vezes livres, às vezes servos. Todos servem por meio das armas e formam a escolta, a guarda próxima dos poderosos que os fazem viver. Na época carolíngia, o exército real, convocado anualmente para campanhas mais ou menos distantes destinadas a “dilatar” o império, não é mais exigido de todos os homens livres, mas somente daqueles que possuem os meios de se equiparem com um armamento que se torna mais pesado e mais custoso. A conscrição não repousa mais, portanto, sobre os homens, mas sobre as terras. Os proprietários de terras são obrigados a fornecer à hoste real, em caso de convocação, um contingente de guerreiros equipados proporcional às superfícies de terras cultivadas de que eles dispõem. Aqueles que não atingem essa superfície (fixada em 4 manses, cujo valor exato ignoramos) são convidados a se agrupar entre si para fornecerem um guerreiro. O caráter longínquo das expedições e também a evolução da sociedade e do armamento militar, conduzem à importância crescente da cavalaria pesada dentro dos exércitos carolíngios.

Essa preeminência reforça-se no século X e mais ainda no decorrer do século XI. Ela se traduz em uma evolução semântica. Enquanto, até meados do século XI, a palavra milites designava todos os soldados, fossem eles pedestres (pedites) ou cavaleiros (equites), tende-se cada vez mais a reservar essa palavra apenas aos guerreiros “que contam” aos olhos dos redatores dessa época, aqueles que combatem usualmente a cavalo e que, por essa razão, começam a ser chamados de cavaleiros nos documentos redigidos em línguas românicas vernáculas.

Quando está no plural, o termo milites não é, portanto, muito ambíguo. Ele designa guerreiros, principalmente guerreiros a cavalo. Desde então, a palavra militia passa também a ter como principal significado o conjunto desses guerreiros, a cavalaria, e principalmente a cavalaria pesada que é chamada de cavalaria nos textos vernáculos, sem que por isso desapareça a conotação de serviço público assinalada anteriormente.

— Apalavra miles tem, evidentemente, o mesmo significado primordial que seu plural, milites. Mas, outras conotações foram acrescentadas ao significado fundamental de guerreiro. Por homenagem, já dissemos, homens livres de níveis diversos aceitavam, desde a época merovíngia e até antes disso, entrar na dependência de um mais poderoso que assegurasse sua existência. Segundo o grande historiador francês Marc Bloch, a vassalagem possuía assim, em sua origem, “um forte odor de coisa feita em casa.” Entendamos com isso que o nível social daqueles que “se recomendavam” dessa forma, colocando suas mãos nas mãos de alguém mais poderoso que eles, era bastante humilde e que seu estado podia ser pouco ou muito assimilado ao de um servidor armado. O desenvolvimento da vassalagem, sua generalização na época carolíngia, o surgimento do regime que foi chamado (talvez erroneamente) feudal, a hereditariedade das honras e dos feudos levaram personagens de todos os níveis, mesmo os elevados, a prestar homenagem ao senhor do qual eles recebiam rendimentos, “benefícios” (de beneficium), geralmente sob forma de domínios ou de terras mais ou menos extensas conforme o nível deles, que serão chamadas cada vez mais de feudo. Ora, essas terras sofrem, como vimos, exigências de recrutamento de guerreiros. Aquele que as recebe deve então muito naturalmente um serviço armado ao senhor que lhe concedeu essas terras. Ele é considerado por causa disso guerreiro do senhor com ou sem seus próprios dependentes, conforme o tamanho do domínio recebido. As palavras que expressam essa dependência salientam cada vez mais esse serviço armado: vassus e vassalus que já expressavam isso; homo, que os evence; e mais ainda miles salienta o aspecto militar implicado pelo engajamento de feudo-vassalagem.

As cartas e outros documentos diplomáticos que mencionam esses engajamentos se referem sobretudo aos personagens de nível elevado. A palavra miles, que até aqui quase não aparecia a não ser rara e muito ocasionalmente, pois designava principalmente guerreiros de nível subalterno, é então aplicada a senhores, castelões, condes e príncipes de alto nível quando eles entram na vassalagem de outros maiores. O termo continua a significar aquele que deve realizar um serviço de ordem militar, mas o nível elevado do personagem proíbe traduzi-lo por soldado. Vassalo conviria mais na maioria dos casos, com a condição de sublinhar a preponderância do serviço guerreiro que ele implica. Um exemplo ilustra esse ponto de vista: na reforma à qual o Papa Gregório VII vinculou seu nome na segunda metade do século XI, o pontífice procurou liberar as igrejas do poder dos senhores e soberanos leigos, em particular a Igreja de Roma. Para concretizar essa liberação, o Papa necessitava do apoio de príncipes e reis que ele considerava, por vezes os “vassalos de São Pedro” e dos quais ele exigia, por causa disso, assistência militar. Esses príncipes e esses reis são por essa razão chamados fideles ou milites sancti Petri. O próprio imperador, tradicional defensor da Igreja de Roma, é por essa razão chamado miles sancti Petri. A tradução do termo parece, portanto, difícil. “Soldado de São Pedro” seria impróprio, pois a igreja de Roma, como a maioria dos estabelecimentos eclesiásticos dessa época, recrutava diretamente soldados encarregados de assegurar sua defesa e que eram chamados assim. O imperador, no nível em que está, não deve evidentemente ser confundido com esses simples guerreiros. “Vassalo de São Pedro” também não convém na medida em que essa expressão implica uma relação de dependência e de subordinação que o papa queria talvez promover, mas que o imperador não aceitava de forma alguma. “Cavaleiro de São Pedro” é ainda mais inadequado, pois sugere que se pertencia a um tipo de confraria honorífica que não existia nessa data. Diante da inadequação dessas expressões para exprimir a realidade evocada pela palavra miles, os medievalistas têm preferido então, muitas vezes, não traduzi-la e conservá-la no texto. É, de fato, preferível, mas convém abstrair desse fato as conclusões que se impõem: miles, quando se aplica a um personagem de nível elevado, designa principalmente a função guerreira que esse personagem exerce em pessoa, mas também com seus próprios guerreiros, por sua conta pessoal ou a serviço de um outro ao qual ele deve esse serviço armado, por qualquer razão que seja: vassalagem, patronagem, deferência, amizade, parentesco. Quando a palavra se aplica a um personagem de nível mais modesto, miles não deixa de designar o guerreiro e, principalmente, como vimos, o combatente a cavalo. Não é menos verdade que, nas cartas, o uso da palavra miles aplicada a personagens envolvidos nas redes da feudalidade em níveis geralmente elevados (no caso contrário, eles quase não seriam mencionados) confere a esse termo uma coloração social que a palavra “cavaleiro” assumirá por sua vez um pouco mais tarde.

— A palavra cavaleiro nas línguas vernáculas do século XII evoca antes de tudo o guerreiro e não sugere de modo algum um nível social elevado. O alemão antigo Ritter ilustra esse propósito; ele está, como sabemos, na origem do francês réitre (cavaleiro alemão) e não passa uma imagem muito brilhante dos primeiros cavaleiros. O mesmo ocorre na Inglaterra, onde a palavra knight atual, com ressonância aristocrática, deriva do anglo-saxão cniht, que designava um servidor, às vezes armado, mas nem sempre mais próximo em todo caso do criado da estrebaria que do nobre. Em provençal, em espanhol e no francês antigo, o cavalo é tomado como referência semântica: cavaleiro se aplica ao guerreiro, mas somente ao combatente de elite a cavalo, provido de um conjunto de armas características. Apalavra não evoca de início nenhuma conotação, senão a do serviço armado. Um senhor fala de “seus cavaleiros” como de dependentes que lhe devem obediência e serviço. Apalavra assume, todavia, ao longo do século XII, colorações novas de caráter honorífico, às vezes ético, particularmente perto do final do século.

— Quanto à palavra cavalaria, ela transmite originalmente três significados principais, todos ligados à profissão militar. O primeiro significado, largamente majoritário, aplica-se a um grupo mais ou menos importante de cavaleiros que combatiam lado a lado, formando o que chamaríamos um “corpo de cavalaria”; um senhor falará assim indiferentemente de  “sua cavalaria” ou de “seus cava­leiros”. O segundo significado, derivado do primeiro, refere-se à ação guerreira realizada por esses mesmos cavaleiros, em geral no combate, por exemplo, uma cavalgada ou um ataque. O terceiro significado, resultante do segundo, passa do aspecto material ao aspecto ético, sublinhando assim seu valor. Apalavra assume então
o significado de “golpe importante” ou “ato de bravura”.Notamos, todavia, ao redor do fim do século, uma evolução semântica devida
ao aparecimento de conotações mais honoríficas, culturais, ideoló­gicas. A palavra “cavalaria” tende então para um significado mais abstrato, englobando o conjunto dos cavaleiros considerado uma entidade que ultrapassa o limite estreito das fronteiras entre senho­res ou reinos, um tipo de estatuto socio-profissional de caráter in­ternacional provido de uma dignidade e de uma ética reconhecida. Vemos despontar, então, o significado que, em seguida, se tornará o principal: o de uma “ordem de cavalaria” na qual se é admitido por meio da investidura, cerimônia de iniciação característica pela qual um homem é “feito cavaleiro”.

— O próprio verbo investir revela a mesma evolução. Sua etimologia permanece obscura. Supúnhamos outrora que vies­se de um antigo verbo germânico (dubban), que significava bater, e evocávamos como apoio dessa filiação a colée, tipo de bofetada ou tapa com a mão aberta sobre a face ou sobre o pescoço daque­le que era “feito cavaleiro”. Essa origem é contestável no plano etimológico e pouco provável no plano histórico. De fato, o tapa não é, como veremos, um elemento essencial da investidura, me­nos ainda um elemento primitivo ou mesmo muito antigo dessa ce­rimônia.

Quase não temos traço disso antes da segunda metade do século XII. Além disso, nas mais antigas epopéias e, mais freqüentemente, nas obras literárias anteriores a 1150, investir não tem o significado primordial de “fazer cavaleiro” e não pode, então, ser vinculado a um gesto como o tapa ou a algum outro “golpe” que seria dado em uma cerimônia ritual à qual a palavra não faz principalmente referência. Na quase totalidade dos casos, investir
quer apenas dizer armar, fornecer armas, equipar, não em referên­cia a uma primeira entrega de armamento mais ou menos solene que poderíamos assimilar à investidura dos cavaleiros, assim como o conhecemos de outros lugares, mas em um sentido muito mais prosaico, utilitário e funcional: antes de cada batalha, os guerreiros dos dois campos investiam-se eles próprios para combater, fossem eles cristãos ou sarracenos. Apalavra não tem, portanto, original­mente nenhuma conotação social, religiosa ou cerimonial. Quando essas epopéias contam que senhores ou chefes de exércitos inves­tem cavaleiros, isso não significa que eles os “fazem cavaleiros”, lhes “conferem a cavalaria”, nem mesmo os admitem em seu meio, mas simplesmente que eles lhes fornecem o equipamento necessá­rio ao exercício de uma profissão que já era a deles na maioria dos casos; mas que eles não podiam mais exercer em decorrência da perda de todo ou parte de seu equipamento, cavalo ou armas, par­ticularmente defensivas, como veremos mais adiante. O termo “in­vestir” faz, portanto, referência a uma ação utilitária pela qual se coloca um cavaleiro em condições de executar sua função que é combater com as armas que o caracterizam, tornando-o assim “efi­caz”. Em suma, deixá-lo pronto para a batalha. Do mesmo modo, um cavaleiro falará de seus adoubs para designar seu equipamento ou do equipamento de seu cavalo. Não há evidentemente aqui ne­nhuma alusão à cerimônia de entrada na cavalaria. Subsiste, aliás, em nossa língua francesa do ano 2000, traços dessa primeira acepção em alguns termos de marinha: radobar (radouber) um navio na água chamado de radoub, é repará-lo, colocá-lo nova­mente em condições de funcionamento. Radobar (radouber) re­des de pesca, é também repará-las, torná-las operacionais. Enfim, no vocabulário do jogo de xadrez, investir (adouber) consiste em tocar uma peça não para jogá-la, mas para colocá-la em seu lugar, em posição no tabuleiro para o confronto. Em todos esses casos, não é feita nenhuma alusão a um golpe, nem a uma cerimônia iniciática, mas a uma simples colocação em condições para a realização de uma função. Com relação aos cavaleiros, trata-se, no caso, de colocá-los em condições para combater a cavalo.

Com certeza havia, necessariamente, uma primeira entrega de armas ao cavaleiro, quando ele atingia a idade e as capacidades físicas e morais adequadas. Mas essa entrega inicial, que “fazia” um jovem transformar-se em um verdadeiro cavaleiro, não tinha ainda nessa data o significado honorífico, promocional, suntuário e ideo­lógico que ele assume pouco a pouco a partir do fim do século XII e mais ainda depois. Nas obras dessa época, a referência a essa entrega inicial se torna mais freqüente. Tudo se passa como se a cavalaria, então, tomasse plenamente consciência de si mesma e de sua dignidade ao mesmo tempo social e moral. Ela se fecha aos não-nobres, dota-se de uma ética e de uma ideologia resultante, em parte, do ensino eclesiástico, em parte dos valores aristocráti­cos que vinham se enxertar no velho fundo das virtudes guerreiras que constituem a trama do que podemos denominar a ideologia cavalheiresca então nascente.

Para descobrir as origens dos diversos elementos que com­põem essa ideologia e para descrever sua evolução e fusão, a his­tória não se pode contentar com documentos que, tradicionalmen­te, constituem seu campo de estudo privilegiado: cartas, crônicas, anais e relatos “históricos”. É preciso ampliar a pesquisa com fon­tes que lhe são menos familiares: a liturgia, a iconografia, a literatu­ra, sobretudo, muito rica nessa área. É a ambição deste livro, resul­tante de cerca de trinta anos de pesquisas nessas diversas áreas.

História - Francos
Temas gerais - Tópicos gerais, 
11/22/2021 3:12:40 PM | Por Giovanni Reale
A questão socrática e o problema das fontes

Antes de desenvolver qualquer discurso sobre Sócrates é neces­sário, ainda que brevemente, traçar um quadro da assim chamada “questão socrática”. Sócrates nada escreveu. Para conhecer o seu pensamento e ava­liar a sua importância e alcance, devemos recorrer aos testemunhos dos contemporâneos ou a testemunhos que derivam deles de maneira mediada. Mas esses testemunhos (e daqui nascem todas as dificulda­des) são profundamente discordantes e, em alguns casos, até mesmo radicalmente opostos, a ponto de se anularem mutuamente. Por isso, não sem razão alguém disse que, apesar de tudo o que os antigos disseram sobre Sócrates, podemos saber dele, com segurança históri­ca, menos do que podemos saber dos pré-socráticos, cujos fragmentos que nos chegaram, por escassos que sejam, são suficientes para fazer-nos ouvir a sua autêntica voz e o teor original das suas palavras e, portanto, para comunicar-nos o sentido da sua mensagem.

A fonte mais antiga sobre Sócrates é Aristófanes, com a comédia As Nuvens, que é não só uma paródia do filósofo, mas também um violentíssimo ato de acusação contra o seu ensinamento e seus nefas­tos influxos sobre a juventude: Sócrates é considerado um sofista e, antes, em certo sentido, o pior dos sofistas; ao mesmo tempo, ele é considerado como filósofo naturalista (professando doutrinas seme­lhantes às de Diógenes de Apolônia). Por estas razões, Aristófanes, por muito tempo, não foi considerado, e a comédia As Nuvens foi tida como obra de pura fantasia, totalmente desprovida de valor histórico.

A segunda fonte, em ordem cronológica, é Platão, o qual faz de Sócrates o protagonista da maioria dos seus diálogos e põe na boca de Sócrates todas as idéias filosóficas que ele desenvolve progressi­vamente, exceto uma parte da doutrina dialética dos últimos diálogos, a cosmologia do Timeu e a doutrina das Leis. Mas o testemunho platônico é condicionado por dois pressupostos que comprometem estruturalmente a sua credibilidade histórica. Em primeiro lugar, Pla­tão, perseguindo uma sistemática exaltação da figura do Mestre, aca­ba pouco a pouco por transformá-la num símbolo: Sócrates é o herói moral, é o santo, o forte, o moderado, o sábio, o justo, o educador mais autêntico dos homens, o único verdadeiro político que jamais existiu em Atenas (seria muito difícil pensar em duas figuras mais antitéticas do que o Sócrates descrito em As Nuvens e o Sócrates representado no Fédon. Contudo, referem-se ao mesmo homem). Em segundo lugar, Platão põe na boca de Sócrates quase toda a própria doutrina: a da sua juventude, a da própria maturidade e parte da doutrina da velhice (Filebo), e é certo que, na maior parte, estas doutrinas não são de Sócrates, mas repensamentos, ampliações e tam­bém novas criações de Platão. Como separar o que é socrático do que é platônico nos escritos platônicos? Existe algum critério para fazer isto? A resposta é que a separação é, se não de todo impossível, pelo menos dificilíssima, porque tal critério não existe, ou, se existe um critério, este é apenas muito aproximativo, porque Platão, a partir do momento em que se põe a escrever, não transcreve objetivamente, mas interpreta, repensa, revive, explicita, aprofunda, constrói sobre, transpõe: em suma, em Sócrates ele projeta a si próprio, totalmente.

O terceiro autor é Xenofonte, com os seus Ditos memoráveis de Sócrates e outros escritos menores dos quais Sócrates é protagonista. Mas Xenofonte foi por pouquíssimo tempo ouvinte de Sócrates na juventude, e compôs, ao invés, os seus escritos socráticos na velhice. Ademais, a Xenofonte faltam o rigor especulativo e a têmpera do pensador. O seu Sócrates resulta demasiado domesticado. Seria cer­tamente impossível que os atenienses tivessem motivos para mandar à morte um homem tal como Xenofonte pretende que tenha sido Sócrates.

A quarta fonte é Aristóteles, que só ocasionalmente fala de Sócrates, mas diz dele coisas consideradas importantes. Mas Aristó­teles não é um contemporâneo: ele pôde, é verdade, verificar de vá­rios modos o que nos refere dele; mas faltou-lhe o contato direto com o personagem, que, no caso de Sócrates, resulta insubstituível e não-recuperável de maneira mediada.

Enfim, existem os vários socráticos que fundaram as assim cha­madas escolas socráticas menores, os quais, infelizmente, deixaram-nos pouco, e o pouco que cada um deles nos deixou não é senão um raio filtrado através de prismas deformadores.

Tudo isto é suficiente para compreender a enorme dificuldade com a qual se defronta qualquer tentativa de reconstrução do pensa­mento de Sócrates e também o caráter aleatório e hipotético que fatalmente marca todas as reconstruções, dado que as fontes nas quais se inspiram são, cada uma, não objetiva descrição, mas interpretação.

Na presente obra não é possível aprofundar analiticamente a questão; digamos apenas que, no estado atual dos estudos, hoje pare­ce claro que, de um lado, nenhuma fonte pode ser considerada privi­legiada e, de outro, nenhuma pode ser transcurada: o próprio Aristófanes, que por muito tempo foi considerado totalmente preterível como fonte histórica, se examinado a contra-luz, revela numerosos elementos históricos de grande importância para a compreensão de Sócrates. E também Aristóteles, que por muitos foi considerado juiz imparcial e, portanto, fonte capaz de nos fornecer o critério para redimensionar todas as outras, foi reposto em discussão pelos mais recentes estudos, nos quais se demonstrou que ele atribui a Sócrates algumas coisas que são, ao contrário, como veremos, aquisições posteriores. Por isso uma reconstrução de Sócrates só pode ser feita levando em conta todas as fontes, e não só o que elas dizem, mas também o que calam, lendo uma à luz, da outra e vice-versa, e tam­bém filtrando cada uma delas a contraluz e utilizando tudo com aten­to senso crítico, sem abandonar-se a excessos hipercríticos que, infe­lizmente, nestes últimos lustros, parecem ter paralisado quase total­mente os estudos socráticos.

Objetar-se-á que, para isso, em todo caso, é necessário estabele­cer um critério preciso, sem o qual qualquer escolha, qualquer media­ção e qualquer operação de filtro que se pretenda aplicar às fontes caem sob a acusação de arbitrariedade.

Respondemos que, na verdade, tal critério existe e já foi determi­nado por alguns estudiosos, embora ainda não adequadamente im­posto no nível da reflexão metodológica. Constatamos que, a partir do momento em que Sócrates atua em Atenas, a literatura em geral e a da filosofia em particular registram, uma série de novidades de con­siderável alcance, que depois permanecem, no âmbito do espírito da grecidade, como aquisições irreversíveis e pontos constantes de refe­rência. Há mais, porém: as fontes das quais falamos acima (e mesmo outras além das mencionadas) indicam concordemente Sócrates como autor daquelas novidades, seja de modo explícito, seja, também, de modo implícito, mas nem por isso menos claro.

Estas duas circuns­tâncias, que reciprocamente se reforçam e se valorizam, oferecem-nos o fio de Ariadne que nos permite orientar-nos na selva da questão socrática. Podemos, pois, fazer remontar a Sócrates, não com certeza total, mas com muito elevado grau de probabilidade histórica, justamente as doutrinas que as nossas fontes referem a Sócrates e que os documentos de que dispomos confirmam ser novidades recebidas pela cultura grega a partir do momento em que Sócrates passa a agir. De resto, não seria difícil demonstrar que, em grau maior ou menor, embora de modo bastante imperfeito, a maior parte dos intérpretes mais qualificados de Sócrates, de fato aplicou este critério, observan­do primeiro as diferenças e as mudanças entre o antes e o depois de Sócrates, e posteriormente avaliaram as fontes que melhor davam razão daquelas mudanças. E se assim é, a afirmação já recordada de que conhecemos de Sócrates historicamente menos do que de qual­quer outro filósofo pré-socrático, porque dos pré-socráticos possuí­mos pelo menos fragmentos que nos dão a sua palavra originaria, enquanto de Sócrates não possuímos nem sequer uma palavra que se possa com certeza dizer historicamente autêntica e original; pois bem, esta afirmação, que causou grande impressão, é, no limite, possível de ser invertida. De fato, os fragmentos dos pré-socráticos são como peças de um mosaico, que assumem significado diferente segundo o desenho de conjunto no qual são incluídas, e de nenhum dos pré-socráticos foi-nos transmitido o desenho de conjunto, que só podemos reconstruir sobre bases fortemente conjeturais, justamente porque aqueles fragmentos são textos tirados do seu contexto, utili­zados e transmitidos em contextos normalmente muito diferentes dos originais e muito distantes deles também no tempo; ao invés, o con­texto no qual situam-se as doutrinas atribuídas a Sócrates é reconstruível de maneira muito menos conjetural, justamente porque são os seus discípulos e os seus contemporâneos que no-lo sugerem (embora fornecendo avaliações de sinal diferente, ou até mesmo oposto), e a brusca mudança sofrida pela filosofia depois de Sócrates confirma-o de maneira que não tem comparação com os filósofos precedentes.

Esta longa premissa de caráter metodológico era necessária para justificar os critérios que seguimos na reconstrução do pensamento de Sócrates e, ao mesmo tempo, o amplo espaço a ele dedicado: de fato, relida com estes critérios, a filosofia socrática mostra ter tido peso decisivo no desenvolvimento do pensamento grego e, em geral, do pensamento ocidental, inclusive em direções que a historiografia fi­losófica do século passado esteve bem longe, não só de reconhecer, mas também de simplesmente suspeitar.
 

Filosofia - Filosofia Clássica
Personalidade - Inteligência emocional, 
11/17/2021 1:04:11 PM | Por Robert Biswas-Diener, Todd B. Kashdan
Por que o modo de buscarmos a felicidade não nos fará felizes

Na  Dinamarca do século XVI, Tycho Brahe era tão famoso pelo seu estilo extravagante quanto pelo seu gênio científico. O nariz de Brahe foi cortado num duelo (colocou no lugar um de metal) e ele ia a festas levando seu alce de estimação (que bebia ál­cool exageradamente), mas perpetuou sua fama com a contribuição para a astronomia. Em vez de aceitar as velhas noções filosóficas ou religiosas sobre a natureza do céu, Brahe observou e cartogra­fou todas as estrelas que via. Suas anotações levaram a descobertas extraordinárias, como o nascimento e morte de estrelas, um fe­nômeno em contradição com as antigas teorias de que todos os corpos celestes eram fixos. Nariz artificial e alce bêbado à parte, a obra de Brahe lhe valeu um lugar na história como pai da astro­nomia moderna, ao lançar a base na qual seu assistente, Johannes Kepler, e todos os astrônomos modernos construíram esta ciência.

Hoje a psicologia vive um “momento Brahe”. Até agora mui­tos têm tido sucesso em criar abordagens intuitivas para melhorar a qualidade de vida. Você provavelmente conhece algumas dessas teorias, como a hierarquia de necessidades de Abraham Maslow - a ideia de que as pessoas precisam satisfazer suas necessidades básicas, como comida e segurança, antes de se ocuparem das [19] necessidades de autoestima e realização pessoal. O bom senso não poupa conselhos para a pessoa tornar-se mais feliz: ser gentil, va­lorizar o que tem, não se dedicar totalmente ao trabalho, passar mais tempo com a família e os amigos, ter uma vida frugal e mo­deração em tudo. Boas sugestões, mas haverá motivos para crer que essas dicas são universalmente aplicáveis ou sempre verda­deiras?

Felizmente, estamos vivendo numa era admirável da psicolo­gia, graças à introdução da sofisticada neurociência, aos avanços da estatística, ao computador portátil, que permite comunicação imediata de experiências cotidianas, e a outras conquistas técni­cas e metodológicas. É o nosso momento Brahe, promovendo a mudança do entendimento básico da qualidade de vida. No campo da psicologia em geral, e no tema específico da felicidade, esses novos instrumentos produziram duas descobertas transformado­ras: primeira, nossa abordagem do tema da felicidade está toda errada; segunda, podemos fazer alguma coisa para corrigir isso.

Por que o modo de buscarmos a felicidade não nos fará felizes

Faz muito tempo que os humanos deixaram de viver em socie­dades caçadoras-coletoras. Já que passamos menos tempo nos preocupando com abrigo, períodos de seca e a próxima caça é ra­zoável voltar nossa atenção coletiva para a busca da felicidade. De fato, num estudo com mais de dez mil participantes de 48 países, os psicólogos Ed Diener, da Universidade de Illinois, e Shigehiro Oishi, da Universidade de Virgínia, constataram que pessoas de [20] todos os cantos do mundo consideram a felicidade mais impor­tante do que qualquer outra realização pessoal altamente desejá­vel, como ter uma vida significativa, ficar rico ou ir para o céu.2

A pressa de ser feliz é estimulada, pelo menos em parte, por um crescente campo de pesquisa sugerindo que a felicidade não só faz a gente se sentir bem, mas faz bem para a gente. Pesquisa­ dores da felicidade associaram sentimentos positivos a uma série de vantagens, desde maiores ganhos financeiros ao melhor fun­cionamento do sistema imunológico e a maior predisposição à gentileza.3 Esses resultados positivos desejáveis não só estão rela­cionados à felicidade, mas a ciência indica que emoções positivas são a causa da felicidade. Alguns pesquisadores, como Barbara Fredrickson, da Universidade da Carolina do Norte, chegam a afirmar que a felicidade é um direito evolucionário inerente à humanidade.4 Ela argumenta que a felicidade ajuda a criar recursos pessoais e sociais vitais para ter sucesso na vida e - do ponto de vista evolucionário - para a própria sobrevivência.

Mas a pergunta que não quer calar mostra uma face não tão feliz assim: se a felicidade proporciona uma vantagem evolucionária, se a valorizamos tanto e temos milhares de anos de bons conselhos para conquistá-la, por que ela não é mais disseminada? Por que não estamos falando sobre uma epidemia de felicidade, em vez de aumentos astronômicos de casos de ansiedade e depres­são? O pesquisador Corey Keyes, da Universidade de Emory, ana­lisou uma amostra de três mil adultos norte-americanos de idades variadas e fez a constatação alarmante de que apenas 17% estavam progredindo psicologicamente. [21] Como é possível acontecer isso? Verifica-se que, apesar de toda a atenção dada a esse tópico, as pessoas não sabem fazer escolhas que levem à felicidade. Não queremos criticar sua malhação na academia, férias na praia, prática de meditação ou a decisão de pôr seus filhos em quatro atividades diferentes depois da escola. Quando se trata de encontrar a felicidade, somos tão culpados quanto você, pois também não chegamos lá. Na verdade, várias pesquisas recentes mostram que todo mundo está mais ou menos nesse desencontro.

Vamos começar com a pesquisa de Barbara Mellers, da Uni­versidade da Pensilvânia, e seus colegas Tim Wilson e Daniel Gilbert, o autor do best-seller O que nos faz felizes? Esse trio condu­ziu uma série de estudos sobre “erros de previsão emocional”. As­ sim como meteorologistas experientes cometem pequenos erros que podem ter um grande impacto na previsão do tempo de uma semana, as pessoas fazem a mesma coisa ao prever como um even­to as afetará emocionalmente no futuro. Superestimamos, por exemplo, o quanto ficaremos felizes se nosso candidato ganhar as eleições ou nosso time de futebol vencer o jogo.8 E tendemos a subestimar dificuldades que teremos, como mudar para outra cidade.

Tomemos como exemplo o estudo em que Mellers e seus co­ legas investigaram mulheres que fizeram teste de gravidez na instituição de planejamento familiar Planned Parenthood.9 (É im­portante saber que nenhuma das mulheres nesse estudo estava tentando engravidar.) Em termos sucintos, as mulheres caíram em dois grupos: as que temiam ter um filho e gostariam de um resultado negativo, e as que gostariam de um resultado positivo. Os pesquisadores disseram às mulheres que fizessem uma previ­ são do grau de felicidade que teriam se tivessem o resultado [23] desejado. Eles esperavam que as mulheres desejosas do resultado negativo sentissem uma espécie de júbilo ao saber que não estavam grávidas, e que as desejosas de engravidar ficassem muito contentes ao receber o resultado positivo.

Ao final do teste, os pesquisadores ficaram surpresos ao cons­tatar que não houve agonia nem êxtase, mas apenas uma ponti­nha de declínio no equilíbrio emocional das mulheres dos dois grupos. As que desejavam um filho não ficaram abatidas ao rece­ber o resultado negativo; ficaram só um pouquinho desapontadas e voltaram rapidamente ao estado emocional normal (podemos esperar reações diferentes, se essas mulheres tivessem tentando engravidar, sem sucesso, durante meses ou anos). Quanto às mu­lheres que não queriam ter um filho e descobriram que havia um embrião não planejado em seu ventre, o temor previsto não se concretizou, pois tiveram uma reação muito mais tranqüila (e uma pequena minoria teve uma inesperada sensação de prazer). Uma razão pela qual erramos ao prever o que nos fará felizes no futuro é que não avaliamos bem nossa capacidade de tolerar, e até de nos adaptar a, situações incômodas. Tomando outro exemplo: um novo emprego nos intimida na primeira semana, mas pouco depois estamos agindo como se já trabalhássemos lá há anos.

A maior razão para se preocupar com os erros de previsão emocional é que quase todas as decisões que você toma agora se baseiam na suposição de como espera se sentir no futuro. Você compra uma casa espetacular de cinco quartos num condomínio chique, imaginando-se tomando café da manhã na varanda de frente para um belo gramado, minimizando os trinta minutos a mais que levará para ir e voltar do trabalho ou para visitar os ami­gos. Você abre mão de passar muito tempo com a família enquanto [25] tenta conseguir uma boa promoção no trabalho. Você escolhe um/a parceiro/a, decide quando (ou se quer) ter filhos ou escolhe uma região ideal para morar, mas geralmente essas decisões são com­ prometidas pela falta de compreensão do seu mundo emocional. Nisso, você não está só. Todos nós tendemos a exagerar o grau de positividade da reação a eventos positivos, e subestimamos nossa capacidade de tolerar o desconforto. Quando se trata de como va­mos nos sentir no futuro, quase sempre erramos.

O pior de tudo na busca da felicidade é a informação de uma recente série de pesquisas conduzidas por íris Mauss, da Uni­versidade da Califórnia, em Berkeley.10 Mauss é um pouco como Tycho Brahe; em vez de aceitar frequentemente as suposições, do tipo “podemos ser felizes”, prefere mapear os céus metafóricos para descobrir o que está lá no firmamento emocional. Ela chega ao ponto de fazer perguntas desconcertantes, como: “As pessoas devem buscar a felicidade?” Um estudo de Mauss e seus colegas mostrou que as pessoas que valorizam a busca da felicidade são de fato mais solitárias que as demais. Os pesquisadores manipula­ram a importância dada à felicidade, fazendo com que a metade dos participantes lesse um artigo falso de jornal exaltando as mui­ tas vantagens da felicidade. Aqueles que leram o artigo disseram se sentir mais solitários do que os que não leram, e produziam uma taxa menor de progesterona (um hormônio liberado quando nos sentimos ligados a outra pessoa). Portanto, apostar tanto na feli­cidade tem implicações na saúde também!

Em suma: nós, humanos, somos péssimos em supor se sere­mos felizes no futuro e, no entanto, baseamos decisões importan­tes na vida nessas previsões equivocadas. Compramos aparelhos de televisão, fazemos seguro de vida, aceitamos convites para jantar [26], tudo por causa de previsões imperfeitas da felicidade que nos trará. Não é à toa que nos damos mal no departamento da felici­dade, e o tema da felicidade está em alta para escritores, instruto­res e conselheiros. A trabalheira imposta pela noção universal de felicidade - com as pessoas seguindo à risca os passos ditados pe­lo bom senso e supostamente benéficos para todo mundo - não funciona. É um pouco como o nariz postiço de Tycho Brahe: uma imitação razoável, mas não melhora a respiração. O que todos nós precisamos com relação à felicidade é um novo conjunto de estra­tégias. Precisamos de uma percepção mais relevante e completa da abrangência disso.

Num mundo em que rejeição, fracasso, insegurança, hipocri­sia, perdas, tédio, e pessoas chatas e detestáveis são inevitáveis, nós, os autores, rejeitamos a noção de que a positividade é o único lugar para encontrar as respostas. Rejeitamos a crença em que saudável é ter uma vida com a menor dor possível. Na verdade, é somente quando tentamos nos esquivar das inescapáveis dores da vida - seja a morte do parceiro, um divórcio, não conseguir a pro­moção no trabalho - que o sofrimento se torna algo que sentimos como dor. A dor aparece quando damos as costas a um aumento do desconforto emocional, físico ou social.

Em vez de batalhar por mais felicidade, valorizamos a capaci­dade de acessar toda a gama de estados psicológicos, tanto os po­sitivos como os negativos, a fim de aproveitar efetivamente o que a vida oferece. Numa palavra: inteireza. Diante dos desafios ine­vitáveis que a vida nos traz, agimos melhor quando paramos de fazer tentativas ineficazes ou desnecessárias de controlar pensa­mentos e sentimentos negativos. Uma pessoa plena age a serviço daquilo que define como importante, e às vezes isso exige recorrer ao lado obscuro da gama de emoções. [37] 

Pesquisas científicas apoiam a ideia de que, em geral, aquilo que vemos como sentimentos negativos podem ser mais benéficos do que os positivos. Estudos mostram, por exemplo:

  • Alunos que têm dificuldades mas não desanimam, têm me­lhor desempenho nas provas do que seus colegas que “enten­dem tudo” rapidamente.11
  • Pessoas centenárias - as que têm 100 anos ou mais - acham que os sentimentos negativos, e não os positivos, estão asso­ciados à saúde melhor e mais atividade física.12
  • Detetives da polícia que foram vítimas de crimes mostram mais determinação e envolvimento no trabalho com civis vítimas de crimes.13
  • Marido e/ou mulher que perdoam agressões físicas ou ver­bais são mais sujeitos a sofrer outras agressões, mas para os que não perdoam há uma forte diminuição das agressões.14
  • Trabalhadores que têm mau humor de manhã e bom humor à tarde demonstram mais concentração no trabalho do que seus colegas bem-humorados o dia inteiro.15

Quanto à criatividade, os pesquisadores viram que as idéias suge­ridas por pessoas que têm estados de ânimo tanto positivo como negativo são consideradas 9% mais criativas, em comparação com as idéias apresentadas por pessoas contentes. No trabalho, a ten­são associada a desafios parece promover a motivação. Ronald Bedlow e seus colegas, que conduziram um recente estudo sobre envolvimento no trabalho, descreveram suas descobertas assim:

Defendemos que adaptativo é o equilíbrio entre a aptidão pa­ra suportar fases de afeto negativo e conseguir mudar para [28] afetos positivos. Minimizar as experiências negativas e repri­mir as positivas não é funcional para a motivação no trabalho nem para o desenvolvimento pessoal.16

A pesquisa da equipe de Bedlow enfatiza também um ponto vital e frequentemente ignorado sobre os estados psicológicos: são temporários. Quando as pessoas falam em felicidade ou em de­pressão, supõem que são experiências relativamente estáveis. No movimento da psicologia positiva moderna, está na moda falar em felicidade sustentável, como se clicar num botão produzisse um sorriso permanente. A verdade é que alternamos entre estados po­sitivos e negativos. Pessoas que têm inteireza, aquelas que se dis­põem a trocar o positivo pelo negativo a fim de obter os melhores resultados numa dada situação, são mais saudáveis, mais bem-sucedidas, aprendem mais e gozam de maior bem-estar. Chama­mos a isso “20% de vantagem” porque a inteireza abrange os que vivem na positividade cerca de 80% do tempo, mas que também podem se valer dos estados negativos nos outros 20% do tempo. Certamente, não pretendemos sugerir que esses percentuais se­jam exatos, que possam ser usados como valores corretos. Não. Só estamos dizendo que a razão de 80:20 é uma regra de ouro para o entendimento da inteireza.

A maré crescente da ansiedade

A ansiedade é notícia há mais de uma década. Guerras, terroris­mo, impasses políticos, crise do mercado imobiliário, obesidade infantil - tudo isso constitui eventos geopolíticos e econômicos importantes. Mas o insidioso aumento da ansiedade é tão digno [29] de nota quanto os outros. O estresse é epidêmico e, como qualquer vírus, não faz discriminação de classe social, nível de inteligência ou profissão. Segundo o National Institute of Mental Health, em qualquer período de 12 meses, um em cada cinco norte-ameri­canos adultos é acometido de distúrbio de ansiedade.17 Em ado­lescentes, o número é mais alto: 25% sofrem de um distúrbio de ansiedade clinicamente significativo. Levando em conta o tempo de vida de um adulto, os números saltam para a elevadíssima ta­xa de um em cada três norte-americanos sofrendo de ansiedade. E essas estatísticas só mostram as pessoas que lutam contra uma ansiedade diagnosticável. Se acrescentarmos estresses do cotidia­no, medo de viajar de avião, de falar em público, de preocupações financeiras, o número chega a quase 100%.

Paradoxalmente, ficamos cada vez mais estressados porque colocamos muita ênfase no conforto. Temos purificadores de ar, ar-condicionado no carro, óculos polarizados, banhos de espuma, roupas à prova d’água, cobertores elétricos e camas adaptadas à conformação específica de nossa espinha dorsal. É difícil enfati­zar suficientemente esse ponto: enquanto, historicamente, escolhe­mos o prazer em vez da dor - quem não o faria? -, a era moderna traz uma aberração na história humana. Não apenas gozamos do conforto, mas somos viciados em conforto.

Por que o conforto é indicativo de um problema? Os altos ní­veis atuais refletem a tendência a usar sabonetes antibacterianos. Esses sabonetes significam que ficamos menos expostos a bacté­rias e, portanto, menos capazes de resistir a elas. Sim, nos velhos tempos a vida era dura, muito trabalhosa, mas teve o efeito cola­teral positivo de enrijecer mentalmente nossos ancestrais. Prova disso é um anúncio clássico do serviço público britânico de 1939, em plena guerra: “Mantenha a calma e vá em frente.” [Keep calm and carry on.] [30] Em outras palavras, as bombas estão caindo, mas não entre em pânico; continue levando a vida. Hoje, seguimos na direção oposta. Vejamos um popular anúncio do serviço público norte-americano contemporâneo: “Se liga. Não polua.” A ideia central dessa mensagem é que as pessoas têm hoje tantos luxos e acessórios que - espere aí! - não podemos parar de jogar coisas no chão e usar a lata de lixo? Quando o lixo dos cidadãos se torna um problema, é sinal de que a sociedade atingiu um elevado estado de conforto.

Atualmente, com tantos supérfluos à nossa disposição, cria­mos a tendência de evitar o desconforto. Clicamos loucamente no smartphone toda vez que estamos sozinhos - sai fora, tédio! Cor­remos como loucos para pegar a faixa expressa na estrada - frus­tração no trânsito, não! Ligamos a televisão assim que chegamos do trabalho - chega de estresse e confusão! O que muita gente não percebe é que essa aparente atração natural por uma vida mais fácil tem raízes numa fuga ao desconforto. Quem teme a rejeição evita as pessoas; quem teme o fracasso não assume riscos; quem teme a intimidade se refugia na televisão ou na internet quando chega em casa. A fuga é uma atitude básica em nossos dias.

Há dois tipos de fuga que causam problemas: evitar o prazer e evitar o sofrimento. A primeira vista, é difícil acreditar que não se queira ter prazer, mas todos nós conhecemos alguém que não quer se divertir, alegando que tem coisa melhor para fazer. (Você pode ser uma dessas pessoas.) Nessa mesma linha, também há quem ache que alardear a felicidade pode dar azar, que comemorar al­guma coisa boa - o aniversário, uma promoção, atuação perfeita numa aula de kickboxing - vai atrair muita atenção e causar des­peito nas pessoas. Os psicólogos chamam a isso “desqualificar o positivo”.18 Infelizmente, ao desqualificar o positivo, perdemos [31] esses momentos de ouro, magníficos, que fazem parte de uma vi­da bem vivida. Ao privar os outros da oportunidade de comparti­lhar nossas emoções positivas, nossas relações sociais se tornam menos íntimas. Se não saboreamos os detalhes de eventos positi­vos, fica mais difícil acessar as boas lembranças para animar um dia sombrio.

A outra forma de fuga, a mais comum de todas, é recusar os estados psicológicos considerados negativos, como a raiva e a an­siedade. Essa atitude reflete a filosofia dos hedonistas da Grécia Antiga - fortes antagonistas intelectuais dos estoicos - cujo pres­suposto era que o bom da vida está no prazer. O problema com a filosofia hedonista é que as pessoas podem se tornar excessiva­mente céticas a respeito de tudo o que for negativo. Isso é uma grande verdade nos tempos modernos, quando dizemos aos ami­gos “veja o lado bom”, “vamos lá, dê um sorriso”, “anime-se”. Além do famoso estudo de Fritz Strack, que mostra que os parti­cipantes da pesquisa que mantinham o lápis entre os dentes (sem saber que assim ativavam os músculos do sorriso) escreviam com maior clareza e tinham opiniões mais positivas a respeito de si mesmos que os demais pesquisados.19 Numa prática vergonhosa, conselheiros de felicidade têm usado esse estudo como prova de que as pessoas devem “fingir até conseguir”. Em essência, todas essas estratégias tentam convencer as pessoas a sair de um estado negativo. Infelizmente, evitar os problemas significa também evi­tar encontrar as soluções para eles.

Você pode imaginar as lutas históricas pela igualdade racial ou por direitos humanos sem um toque de raiva? Pode imaginar vi­ver num mundo em que ninguém tenha remorsos? Pode imaginar uma viagem a um país exótico em que tudo se passe exatamente como planejado? Ou uma vida em que você nunca se debateu com [32] a grave decisão de desistir de um objetivo e continuou insistindo apesar da pouca chance de sucesso? Existe um mal disfarçado preconceito contra estados negativos, e a conseqüência de evitá-los é inibir, inadvertidamente, o crescimento, a maturidade, a aven­tura e o sentido da vida.

Como a interireza se apresenta

Agora é um momento oportuno para ilustrar como a inteireza se apresenta na vida real. Recorremos ao apoio de cientistas que acre­ditam que a história pessoal é mais significativa do que as escalas de felicidade artificiais dominantes em tantas pesquisas. Se existe algo próximo a um exame de sangue ou raios X para qualidade de vida, são as ricas histórias de nossa experiência diária. As histó­rias que contamos sobre os eventos do dia - um pneu furou, che­guei atrasado para a reunião, conheci uma pessoa interessante, vi um pôr do sol lindo - revelam realizações, fracassos, atitudes, de­sejos e anseios, expõem nossa identidade e aquilo a que aspiramos ser e a fazer. Nesse viés, vamos descrever três pessoas que encar­nam aspectos da qualidade que chamamos de inteireza.

Por trás da síndrome do impostor

Apesar de estar cursando o terceiro ano da faculdade de psicologia clínica na Universidade Pacific, Jennifer ainda abria a correspon­dência esperando receber uma carta com o timbre da universidade. Em sua imaginação, a carta diria: “Jennifer, lamentamos infor­mar que cometemos um erro ao aceitá-la no curso de graduação. Sua solicitação deveria ter sido negada.” Como muita gente, Jennifer [33] tinha o sentimento de inadequação pessoal chamado de “síndrome do impostor”, muito comum quando a pessoa atinge um nível mais alto: promoção no trabalho, mudança de carreira, estu­dos avançados. Esse sentimento de duvidar de si mesmo é descon­fortável, às vezes até doloroso. Em casos extremos, é tão forte que leva a pessoa a rejeitar a oportunidade.

Muita gente não vê que o fato da dúvida, com moderação, tem uma função saudável. A dúvida é um estado psicológico que nos leva a fazer um balanço de nossas competências, e a um esforço para melhorar nas áreas de deficiência. Karl Wheatley, pesquisa­dor da Universidade Estadual de Cleveland, afirma que a dúvida pode ser benéfica - pelo menos no caso de professores primários.20 Ele destaca o fato de que, quando um professor tem incerteza sobre seu desempenho, esse sentimento incita à colaboração com outras pessoas, promove a reflexão, motiva o desenvolvimento pessoal e prepara para aceitar mudanças.

Jennifer, ainda novata, usava a dúvida para tomar boas deci­sões sobre quais pacientes encaminhar para terapeutas mais ex­perientes, e quais ela poderia atender. À medida que adquiria mais conhecimentos, ela usava a dúvida para aprimorar sua com­petência e ajudar seus pacientes. Ao eleger a dúvida como ferra­menta, entre tantas outras, mas sem reprimir ou rejeitar essas outras, Jennifer se tornou uma excelente terapeuta e continua a se aperfeiçoar profissionalmente.

As vantagens de jogar a toalha

Em 1995, um aventureiro sueco chamado Goran Kropp estabele­ceu um novo padrão de extremos para um grupo de peritos em escaladas do monte Everest.21 Ao contrário de seus pares [34] alpinistas, Kropp queria escalar sem cilindros de oxigênio, sem cordas e escadas fixas, sem ajuda de sherpas e sem transporte motorizado de qualquer espécie. Montou numa bicicleta e percorreu os quase 13 mil quilômetros de sua casa na Suécia até Katmandu. De lá, foi carregando grandes fardos nas costas até o acampamento no pé do Everest. Saiu do acampamento antes de qualquer outra expedição, e foi subindo por uma trilha de gelo e neve nas escarpas rochosas. No dia de chegar ao cimo, porém, faltando apenas cem metros para alcançar o ponto mais alto da Terra, Kropp tomou a difícil decisão de voltar atrás. Sua decisão se baseou nas condições do fim de tarde, na situação em que ele teria que descer, com muito frio, cansaço, e na escuridão.

O extraordinário autocontrole de Kropp, a decisão de voltar quando estava tão perto do objetivo, depois de ter investido tanto, foi muito sensata e quase divinatória. Uma semana depois, mem­bros de várias expedições sofreram o que se chama “febre do topo” e ficaram presos no flanco do Everest, fustigados pelas nevascas, porque não voltaram no tempo previsto.22 Os dias que se seguiram ficaram conhecidos como o Desastre de 1996 no Everest, que le­vou oito vidas na temporada mais mortal na história das escaladas do Himalaia. Nesse contexto, a decisão de Kropp talvez tenha sal­vado sua vida. E lança outra luz na suposição comumente aceita de que a perseverança é boa e a desistência é má.

É muito fácil ter um objetivo. Pessoas que têm metas específi­cas usam um padrão de medida para avaliar o êxito, diretrizes para aderir aos seus valores, um alvo definido para motivá-las e uma bússola para tomar decisões.23 O ramo dos negócios tem me­tas para melhorar a produção, e os times de futebol têm gols - li­teralmente - para vencer os jogos. Para muita gente, ter uma meta é sinônimo de compromisso, e compromisso com a meta, por sua [35] vez, é quase sinônimo de sucesso. O lendário boxeador Muham­mad Ali disse, em tom jocoso: “Eu odiava cada minuto de treino, mas dizia: ‘Não desista. Sofra agora e seja campeão pelo resto da vida.”’24 Aí está a clara noção de que apostar tudo nas metas é o caminho mais provável do sucesso. Por outro lado, desistir é re­servado para os moral e fisicamente fracos.

Como você já percebeu, rejeitamos a noção de que desistir (certamente um desconforto psicológico) seja horrível. A fidelida­de cega às metas produziu, entre outras coisas, a “febre do ouro”, frequentemente associada à Corrida do Ouro na Califórnia, em 1859, quando mineradores fizeram enormes investimentos finan­ceiros, físicos e emocionais em busca da fortuna, e resultou em nada. A pesquisadora Eva Pomerantz, da Universidade de Illi­nois, afirma que investir pesadamente na busca de um objetivo pode elevar a ansiedade a ponto de corroer a qualidade de vida psicológica da pessoa.25 Isso é tanto mais verdadeiro quando a pessoa se esforça, mas põe o foco no possível impacto negativo de não atingir a meta, aumentando ainda mais o estresse.

Uma das maiores vantagens de algum desânimo - tipicamente desconfortável e que as pessoas sempre tentam evitar - é que, ao senti-lo, nossa tendência é desistir de atingir a meta. A tristeza, frustração, confusão, e até a culpa, servem ao mesmo propósito. São sinais para você puxar o freio e recuar para dentro de si mes­mo a fim de refletir, de conservar sua energia e seus recursos. Isso é especialmente importante para minimizar nossa tendência de continuar investindo em causas impossíveis ou agir com base em um fundo perdido, em vez de tomar a decisão de diminuir as per­das quando os ganhos parecem cada vez menos prováveis. As pes­soas com inteireza são capazes de ter flexibilidade na busca de objetivos, continuando a investir à medida que há progressos num [36] ritmo aceitável e, quando o fracasso é quase certo, trocando os antigos objetivos por outros.

As vantagens da fantasia

Quando menina, o sonho de Melanie Baumgartner era ser juíza. Na universidade, porém, ela se apaixonou e sua vida tomou um rumo inesperado. Em vez de cursar direito, Melanie encontrou um novo sentido em ser dona de casa e mãe. Às vezes, levando e buscando as crianças da escola, ela se surpreendia devaneando sobre aquela outra vida, batendo o martelo para exigir ordem no tribunal.

Num fenômeno psicológico chamado sehnsucht, não é incomum o fato de o anseio por uma oportunidade perdida ou um objetivo não alcançado despertar uma rica fantasia, em que nos imagina­mos realizados naquela situação.26 Sehnsucht é um bálsamo psico­lógico importante para o tormento da oportunidade perdida. Os participantes de uma pesquisa internacional que tinham sehnsucht foram capazes de aceitar a fantasia e transformá-la em compen­sação emocional. A única exceção digna de nota foram os norte-americanos. Ao contrário dos europeus, os norte-americanos são muito mais propensos a achar que seus sonhos são realizáveis e, portanto, relutam em mantê-los no reino da fantasia, o que ten­dem a considerar uma atitude negativa. Mas a fantasia pode ser um recurso muito valioso.

Hoje, com seus filhos crescidos, Melanie pode voltar à facul­dade de direito. Mas ela já não sente tanto o desejo de ser juíza, em parte porque vivenciou as conquistas emocionais em suas fan­tasias. Sehnsucht é uma das muitas estratégias que as pessoas inteiras [37] usam para administrar as conseqüências de terem tomado outro caminho, para tornar a desistência palatável quando foi sen­sata, e a lidar com o desapontamento.

Sabemos que o sofrimento é terrível. Vamos deixar bem claro que não desejamos que você fique arrasado por objetivos frustrados ou porque seu namorado dormiu com a sua irmã. Não estamos sugerindo que você prenda a respiração embaixo de água gelada sem tremer um músculo. Estamos apenas dizendo que acumular emoções que parecem agradáveis agora e evitar emoções que pa­recem desagradáveis agora não é a melhor estratégia para viver bem. Neste livro, oferecemos a inteireza como alternativa a que­rer tirar proveito somente do positivo. A característica principal das pessoas inteiras é a grande capacidade de negociar com tudo o que a vida lhes apresenta. Elas possuem o que chamamos de agi­lidade emocional. Por quê? Porque sabem tirar o maior proveito possível de uma situação, adequando seu comportamento - do la­do bom ou do lado obscuro - a cada desafio que enfrentam. Elas sabem usar os dois lados de todos os traços de personalidade: sé­rio e brincalhão, passional e objetivo, extrovertido e introvertido, altruísta e egoísta. São bondosas, mas seletivas ao conceder seu tempo e energia. Finalmente, pessoas que têm inteireza se bene­ficiam da relutância em desprezar qualidades que a sociedade menospreza. A seguir, vamos expor o que significa ser emocional, social e mentalmente ágil, para você entender a amplitude, a be­leza e as vantagens da inteireza. [38]

Agilidade emocional

Na inteireza, não se trata de evitar emoções negativas, mas de ti­rar o “negativo” delas. Pode-se ver isso no braço da ciência em que se apoiam as boas psicoterapias. Os psicólogos Jonathan Adler (do Franklin W. Olin College of Engineering) e Hal Hershfield (da Universidade de Nova York), testaram a crença predominante de que a terapia funciona quando livra a pessoa de problemas como a depressão, e ajuda a montar estratégias para estimular a positividade.27 Esses pesquisadores observaram 47 adultos em tratamento terapêutico de ansiedade e depressão, e para aprender a lidar com eventos de maior tensão, como a transição para a paternidade/maternidade. Adler e Hershfield queriam saber o que acontece antes de o cliente resolver seus problemas, antes de sua qualidade de vida melhorar e antes de passar realmente a gostar de si mesmo.

Você pode se surpreender tanto quanto eles ao saber que as pessoas em terapia não têm menos experiências negativas e mais experiências positivas, mas passam a se dizer mais felizes. Na ver­dade, o sucesso da terapia começa quando a pessoa passa a se sen­tir confortável com emoções mistas (tanto alegres quanto tristes) sobre o trabalho, os relacionamentos e qualquer outra situação. Vejamos o relato de um cliente após algumas sessões:28

Foram semanas difíceis. Minha esposa e eu comemoramos a boa notícia de uma gravidez saudável com nove semanas (o tempo em que perdemos a gravidez em janeiro passado). Mas também sinto tristeza por ainda estar procurando emprego, e por minha mulher, cuja avó está morrendo. Sinto assim: “quan­to mais posso aguentar?” Mas ao mesmo tempo me sinto razoavelmente [39] confiante e feliz. Não que não fique abatido, mas agradeço as coisas boas da minha vida, especialmente meu ca­samento.

O ponto crucial aqui é que essa pessoa, e tantas outras que de­monstram a capacidade de vivenciar emoções positivas e negativas, teve, subsequentemente, ganhos maiores em bem-estar. Não é o que acontece no caso oposto: sentir a positividade não melhora a capacidade de ser emocionalmente ágil. Esse estudo sugere que a maior vantagem não está na felicidade, e sim que a maior vanta­gem provém de ser plenamente capaz, de ser inteiro, tolerando o bom e o mau sempre que surgirem.

Agilidade social

Os humanos são primatas e, portanto, criaturas sociais. Assim co­mo nossos primos chimpanzés, temos o cérebro altamente desen­volvido para a interação social. Podemos, por exemplo, interpretar facilmente expressões faciais sutis, enquanto os cães, porcos e fal­cões não podem. Temos também centros de linguagem altamente evoluídos, que nos permitem expressar grandes quantidades de informação complexa, inclusive toda a gama de intenções e dese­jos. De fato, somos tão sociais que muitos pesquisadores afirmam que só podemos sobreviver por meio da interdependência. Dacher Keltner, psicólogo em Berkeley, afirma que a generosidade, a hospitalidade e a benevolência são nossos estados naturais.29 Em­bora possamos citar facilmente exemplos de egoísmo, fraude, ganância e outros males sociais, tendemos a achar que as pessoas são capazes de boas ações extraordinárias. De fato, ensinamos às crianças que a bondade é a virtude suprema. [40]

Os efeitos colaterais da bondade e gentileza são inúmeros: as pessoas bondosas vivem mais, ganham mais, são cidadãos melho­res, e os relacionamentos íntimos que cultivam podem sanar mui­tos danos de uma infância problemática. Mas se olharmos mais de perto o mundo social, teremos que admitir um fato incômodo: se estamos envolvidos no amor, no trabalho, em qualquer recreação, precisamos ser gentis, mas também precisamos ser seletivos. Não podemos nos dar ao luxo de nos entregar completamente a qual­quer pessoa. Tempo e energia são recursos limitados, que precisa­mos empregar com discernimento.

Às vezes, em certas situações, precisamos até agir de maneira diametralmente oposta à gentileza. Quem se dispõe a acessar seu lado obscuro está em posição de vantagem, sejam pais, atletas, soldados, professores ou empresários. E aqui vem a parte mais di­fícil de assimilar: é melhor assim para todo mundo. Mesmo os me­lhores pais têm momentos em que não estão dispostos a se esmerar pelos filhos; paternidade e maternidade, como qualquer emprego, precisam de uma hora de almoço. É quando os pais não se cuidam que os filhos sofrem de formas inesperadas e desnecessárias.

Antes que você jogue este livro pela janela ou venda para um sebo, queremos lhe apresentar uma de nossas heroínas científicas, Esther Kim, socióloga da Universidade de Yale. Kim é uma pessoa singular entre os acadêmicos, pois larga o laboratório e sai para o mundo.30 A fim de observar como pessoas desconhecidas intera­gem, Kim percorreu milhares de quilômetros em ônibus de trans­porte público. Ela ficou particularmente fascinada pelo modo como as pessoas evitam sutilmente que outro passageiro ocupe o assento vago ao lado.

Todos nós já tivemos a experiência de ver um passageiro en­trando no ônibus, trem ou avião, enquanto entoamos [41] silenciosamente o mantra “ao meu lado, não; ao meu lado, não”. Kim observou uma variedade impressionante de táticas criativas para evitar a convivência indesejada: gente no assento do corredor com fones de ouvido para fingir que não ouviam o outro pedir licença; sacola colocada no assento ao lado; cenho franzido, pernas estica­das, fingindo dormir; e a lista se alonga. Esses passageiros não são rudes; são humanos. Estão interessados na própria segurança, na energia gasta para interagir com um desconhecido, no conforto durante uma viagem longa. O estudo de Kim ilustra uma situação em que temos propensão a sair da norma de “ser gentil”.

Agilidade social é a capacidade de reconhecer como uma si­tuação difere de outra e alterar o comportamento de acordo com essas diferenças. A pessoa socialmente ágil é proativa, seleciona e influencia as situações que se apresentam. Dependendo das especificidades da situação, a pessoa socialmente ágil pode ser acolhe­dora, dizer mentiras inofensivas, ou fazer pressão; pode se exibir, flertar, elogiar, oferecer ajuda. Pode até mencionar casualmente que limpou a geladeira recentemente para mostrar ao marido que é boa dona de casa. As pessoas socialmente ágeis não são maquia­vélicas, mas operam com um conjunto de normas sociais mais inclusivo e flexível do que o básico “seja gentil”. É interessante notar que, em muitos casos de infração das regras, não intencionamos obter algum ganho pessoal, e sim fazer com que o outro se sinta bem, fortalecer relacionamentos e alcançar metas signifi­cativas.

Agilidade mental

O conceito psicológico de mindfulness (consciência plena) é famo­síssimo. Tem raízes nas práticas budistas, e é a superstar das [42] estratégias mentais. Uma pessoa mindful é aquela focada em viver o momento presente, em “observar com suavidade” o que está acon­tecendo no momento presente, em oposição a “julgar”. As pessoas mindful são mais conscientes, supostamente mais atentas e mais propensas a apreciar a vida do que as outras. Se você for a uma livraria, verá uma estante inteira de livros sobre comer conscien­te, pais conscientes, liderança consciente e até pôquer consciente. Autoridades no assunto dizem que a hiperconsciência é talvez o estado supremo do funcionamento humano, um lugar em que de­sejamos entrar e lá viver perpetuamente. Em conformidade com o provocativo tema deste livro, queremos ser os primeiros a lhe di­zer que é impossível permanecer em estado mindful constante. Se­ja escovando os dentes, seja levando as crianças à escola no piloto automático, é uma maravilha ter um cérebro que nos permite encontrar atalhos que liberam a energia mental para outros empre­endimentos mais significativos, mais intensos. É essencial ter um sistema inconsciente que processa a informação automaticamente, sem autoconsciência e esforço intencional.

Uma das áreas mais fascinantes da psicologia lida especifica­mente com nossa suscetibilidade a influências dos sinais sutis que existem por baixo da atenção consciente. Num estudo com alunos, conduzido pelo psicólogo holandês Ap Dijksterhuis, por exemplo, os sujeitos deviam cumprir uma tarefa antes de responder a perguntas de um teste.31 Um grupo de alunos devia escrever sobre como seria ser um professor. Esse grupo na “condição de professor” respondeu 60% das questões sobre conhecimento geral corretamente, enquanto o grupo de controle respondeu correta­mente a 50% das questões.

A atuação da mente inconsciente cria uma circunstância privi­legiada para mudanças de comportamento, em geral para melhor, [43] sem o esforço exigido normalmente. Por exemplo: num estudo, os pesquisadores levaram sutilmente alguns participantes - mas não todos - a sentir o cheiro de produtos de limpeza (escondidos num balde num canto do laboratório).32 Em seguida, os participantes comeram biscoitos crocantes, e os que tinham sentido o cheiro dos produtos de limpeza comeram com mais cuidado e limparam os farelos. O inconsciente age também ajudando a processar infor­mações complexas. No fenômeno conhecido como “dormir sobre o assunto”, as pessoas distraídas - e portanto não mindful são mais capazes de chegar a boas decisões de compra do que as pes­soas que “se esforçam” de modo consciente.33 Embora a mentalidade da consciência plena de “estar aqui e agora” tenha de fato suas vantagens, é um erro pensar que é o úni­co estado positivo. Quando nos utilizamos de tudo o que somos, de nosso ser por inteiro, podemos alternar atenção e desatenção de acordo com as circunstâncias. Isso nos ajuda a conservar os recur­sos mentais e nos concentrar nas questões que realmente conside­ramos mais importantes.
 

Psicologia - Psicologia positiva
Personalidade - Inteligência emocional, 
11/17/2021 1:01:13 PM | Por Robert Biswas-Diener, Todd B. Kashdan
A Intolerância ao desconforto e a ascensão da classe acomodada

Para os cientistas sociais, o Google é mais que uma ferramenta de busca. Em vários aspectos, é um termômetro da socieda­de. O Google pode ser usado para rastrear atitudes coletivas e ma­pear tendências populares. Tomemos como exemplo uma simples busca de imagem das palavras “desconforto” e “conforto”. Clicando em “desconforto”, surgem imagens de pessoas franzindo as sobrancelhas, massageando as têmporas, esfregando um joelho dolorido ou contraindo o estômago. Em contraste, a busca da pa­lavra “conforto” traz imagens de camas macias, poltronas fofas e primeira classe em aviões a jato. A implicação é clara: o des­conforto é interno, um fenômeno subjetivo, uma experiência in­dividual, e seu antídoto, o conforto, é encontrado no exterior, no mundo material que nos cerca.

Essa noção popularizada de desconforto como um estado in­terno, desagradável e frequentemente fora de controle, é tema cen­tral neste livro. Se a inteireza remete à capacidade de vivenciar e utilizar toda a gama de estados psicológicos - emocionais, cogni­tivos e sociais -, nosso mal-estar generalizado com o desconforto deve estar ligado a uma estreiteza da experiência. Evitar estados desconfortáveis, ainda que proveitosos, nos impede de alcançar todo o nosso potencial. É interessante notar que essa relação distanciada [50] com o desconforto é um fenômeno muito ocidental, e especificamente norte-americano. Os norte-americanos são mui­tas coisas: criativos, confiantes, industriosos e famosos por serem irremediáveis otimistas. Acima de tudo, porém, são adeptos do conforto. Apesar dos bolsões de pobreza total e da assombrosa dis­paridade na distribuição de renda, os Estados Unidos são um lu­gar notavelmente organizado, conveniente e confortável para se viver. Os sinais de trânsito funcionam, os cinemas têm temperatura controlada, banheiros completos são tão comuns quanto manguei­ras para regar jardim, todo mundo tem acesso a xampu, e as pes­soas escolhem o colchão conforme o material, tamanho e maciez.

À medida que o mundo enriquece, não são apenas os norte-americanos que estão vivendo com mais conforto. Quanto mais uma sociedade se aproxima da dos Estados Unidos - Austrália, Canadá e o Reino Unido me vêm à mente -, maior é a probabili­dade de ter uma atitude semelhante (mas não idêntica) em rela­ção ao conforto. Quanto mais distante é uma cultura - pense no Zimbábue, China, Paquistão -, maior é a probabilidade de se sen­tir confortável com o desconforto. No entanto, em muitas partes do mundo em fase de desenvolvimento econômico, vemos uma classe média emergente que se distingue pelo conforto na mesma medida em que é separada pela renda.

Se você quiser ter uma noção de quão arraigada é a propensão da sociedade norte-americana ao conforto e a uma atitude positi­va, faça a seguinte pergunta: “Jesus era feliz?” Foi exatamente a pergunta feita pelo psicólogo Shigehiro Oishi e seus colegas da Universidade de Virgínia.1 Esses cientistas estavam menos interes­sados em encontrar uma resposta factual a essa questão do que em usá-la para avaliar as atitudes das pessoas. Os pesquisadores par­tiram do princípio de que, já que existe um único Jesus e uma narrativa [51] geral de sua vida (a narrativa bíblica), as diferenças de opi­nião em larga escala sobre a felicidade dele dariam uma espécie de teste de Rorschach cultural, em que as pessoas projetam suas predisposições mentais. Para essa investigação, eles pediram a de­zenas de pessoas nos Estados Unidos e na Coréia do Sul que escre­vessem tudo o que pensavam sobre Jesus. (O número de cristãos era praticamente o mesmo - cerca de 60% - nos dois grupos.)

Os norte-americanos mostraram acreditar muito mais que os sul-coreanos que Jesus era feliz. Além disso, descreveram Jesus como sendo muito mais extrovertido, aberto e agradável do que os sul-coreanos. Ainda mais interessante, os sul-coreanos menciona­ram mais desconforto com relação a Jesus. Escreveram muito mais - em muitos casos, cinco vezes mais - sobre sofrimento, sa­crifício, crucificação e sangue. Embora eventos desconfortáveis como a perseguição e a crucificação sejam centrais na narrativa da vida de Jesus, os norte-americanos mostraram uma tendência significativa a dizer que Jesus era maravilhoso, bom e gentil.

A tendência dos norte-americanos para o positivo não signifi­ca necessariamente desviar os olhos das adversidades. Será que não? Christie Napa Scollon, pesquisadora na Singapore Manage­ment University, e sua colega Laura King, da Universidade de Missouri, conduziram uma série de estudos inédita.2 Em vez de seguir a metodologia habitual, usando sofisticados modelos esta­tísticos de felicidade para determinar onde as pessoas se situam numa escala, os pesquisadores que colaboravam com elas pergun­taram a várias pessoas em que medida a riqueza, a felicidade, e o trabalho árduo contribuíam para o “bem viver”, que incluía bem-estar e sentido da vida. Os norte-americanos atribuíram maior valor à felicidade, e preferiam uma vida fácil a uma vida de traba­lho árduo, principalmente quando o trabalho árduo foi quantificado [52] em horas de trabalho. Os pesquisadores constataram tam­bém que os norte-americanos tendiam a considerar um relaciona­mento satisfatório mais importante para o bem viver do que um trabalho satisfatório. De fato, constataram que os participantes ti­nham opinião muito severa sobre pessoas, hipotéticas, que não tinham bons relacionamentos e achavam o trabalho compensador; muitos disseram que elas eram imorais e alguns chegaram a classificá-las de amaldiçoadas.

O anseio norte-americano por uma vida feliz e confortável não é apenas um assunto de interesse acadêmico abstrato. Vemos isso claramente em seu comportamento, especialmente enquanto con­sumidores. Desde a Segunda Guerra Mundial, os norte-america­nos têm vivido um período de riqueza sem precedentes. Mesmo no atual contexto econômico, em que vivem à sombra de uma cri­se do mercado imobiliário, de um alto nível de desemprego e falências em larga escala, a maioria está se saindo melhor que nunca em termos materiais. A aquisição de casa própria está ab­surdamente em alta nos Estados Unidos, assim como o consumo de aparelhos eletrônicos, automóveis e aparelhos de ar-condicionado. A população corre em busca de conforto e conveniências.3 Segundo Juliet Schor, autora de The Overspent American, atual­mente as pessoas sonham com viagens de luxo, casas melhores e mais conforto.4 Ela cita um estudo longitudinal da Universidade de Connecticut em que as pessoas deviam indicar os itens básicos que consideram como necessidade. Nos anos 1970, 13% apro­varam ar-condicionado no carro, e 25% precisavam de ar-condicionado em casa. Em meados dos anos 1990, as atitudes tinham mudado para incluir mais conforto pessoal, com 41% precisando de ar-condicionado no carro, e 50% precisando de ar-condiciona­ do em casa. [53]

Esse súbito desejo de ar-condicionado é particularmente inte­ressante no contexto da hierarquia de necessidades de Maslow.5 Lembremos que, em 1954, Maslow sugeriu que as pessoas satisfa­zem primeiro suas necessidades básicas, como alimento e abrigo, depois satisfazem necessidades sociais, e só então passam a se preocupar com autoestima e criatividade. Muitos cometem o en­gano de julgar que Maslow estava dando uma prescrição do bem viver. Sua proposta era descrever o funcionamento básico da mo­tivação humana.

À luz do nosso apego atual ao conforto, é interessante conside­rar o que realmente significa a palavra “básica” na expressão “ne­cessidade básica”. É fácil entender que o acesso à água limpa é uma necessidade básica para a sobrevivência. É ainda mais fácil entender que a termorregulação - a manutenção da temperatura normal da pessoa em todas as circunstâncias - é uma necessidade básica. Mas enquanto os humanos precisam de agasalhos para protegê-los contra o perigo da hipotermia, é difícil justificar que o ar-condicionado no carro seja uma necessidade básica, princi­palmente sabendo-se que um carro já é um luxo de proporções quase miraculosas.

Se o desejo das pessoas continuar a seguir essa trajetória, em breve o ar-condicionado no carro já não será suficiente. Haverá a necessidade de assentos aquecidos ou zonas separadas, aquecidas ou refrigeradas, para motorista e passageiros. Ah, e tem mais, nes­se exato momento, está surgindo um novo padrão nos novos car­ros! Seria interessante saber o número de pessoas que já consideram uma tela de vídeo no carro uma necessidade.

Aqui chegamos à tese deste capítulo. A medida que as pessoas vão se tornando mais capazes de satisfazer o desejo de conforto, mais restrita vai se tornando sua gama de experiências, e elas vão [54] perdendo a prática de lidar com as dificuldades da vida. Colocan­do de maneira mais linear: 1) o conforto material e os artigos de conveniência levam a 2) uma compulsão a usar objetos externos para se sentir bem, o que leva a 3) menor imunidade psicológica a circunstâncias menos confortáveis e mais inconvenientes. Não se engane: o conforto material afeta sua capacidade de se adaptar psicologicamente ao ambiente e lidar com dificuldades. O confor­to associado ao ar-condicionado induz, ao longo do tempo, uma situação em que estados internos como raiva, dúvida, desistência, incerteza e mindlessness se tornam esmagadores, ou vistos como reprováveis. É unicamente o vício do conforto que nos divide en­quanto indivíduos e nos impede de desfrutar de toda a gama de bem-estar psicológico.

Enquanto nossos avós podiam suportar poeira, chuva, sol a pino, as pessoas de hoje parecem ser menos capazes disso. Segun­do estatísticas do US Department of Health and Human Services, a taxa de crianças com alergia a alimentos nos Estados Unidos su­biu mais de 40% entre 1997 e 2011, e a prevalência de alergias de pele subiu quase 70% nesse grupo no mesmo período.6 A asma afeta hoje 17% das crianças norte-americanas, e vale notar que a taxa é mais elevada entre crianças que vivem 200% acima da li­nha de pobreza. Uma possibilidade é a chamada “hipótese de hi­giene”, em que as condições da vida moderna na classe média são limpas demais e dão muito poucas oportunidades de exposição e aquisição de resistência a agentes infecciosos.

O que aconteceu? Como a sociedade norte-americana e, em menor grau, a de seus primos culturais em outras sociedades oci­dentais modernas mudaram tão drasticamente? O que aconteceu entre o tempo dos homens das cavernas, que labutavam diaria­mente para manter uma existência frugal, e hoje, quando comerciais [55] de televisão ou cinco minutos de engarrafamento no trânsito parecem intoleráveis? Quando foi que perdemos a imunidade ao desconforto?

As origens do vício do conforto

Conforto e desconforto são temas tão antigos quanto as pessoas. É fácil imaginar o primeiro homem das cavernas que pegou a pedra que lhe servia de travesseiro dizendo: “Ugh! Quero mais macio!”, e pousando a cabeça sobre um monte de agulhas de pi­nheiro. O mesmo impulso de se manter aquecido (ou de evitar o calor), de relaxar os músculos doloridos, de ter contato com textu­ras macias, tem sido uma motivação universal através dos séculos.

Até a famosa frase de Hamlet: “Ser ou não ser”, da obra de Shakespeare, trata basicamente de tentar ou não superar a adversidade.7 Vejam bem:

Ser ou não ser, eis a questão:

Se ao espírito é mais nobre suportar
O disparo das flechas da fortuna infame
Ou pegar em armas contra um mar de dores.*

A pergunta do jovem príncipe fictício da Dinamarca é seme­lhante à de pessoas deprimidas que vivem hoje em Pensacola, To­ ronto ou Manchester: devo escolher a vida ou a morte? A resposta é baseada em graus de desconforto. Hamlet concluiu pela adesão à vida - apesar de todos os contratempos -, não porque fosse aventuroso [56] ou destemido, mas porque a alternativa - o desconhecido reino do além - causava ainda mais ansiedade do que os percalços da vida cotidiana! Vejamos mais uma vez o príncipe em ação:

Mas o pavor de algo após a morte, Desconhecido reino de cujo rio
Viajante algum retorna, refreia a vontade, E faz preferir sofrer os males que já temos.*

Em 1930, Sigmund Freud, a figura mais importante na histó­ria da psicologia, escreveu sobre o perigo do canto da sereia do conforto. Ele disse: “Isso significa colocar o prazer à frente da realidade e logo receber a punição.” Freud não tinha nada contra o prazer de dormir num travesseiro macio ou de sentir a brisa no rosto, e sim contra o prazer como motivador primário da ação. Ele dizia que a busca do conforto, e não o conforto propriamente dito, pode levar a decisões autocentradas e ter conseqüências sociais negativas.

Ainda mais incisivo foi o filósofo alemão Hegel, que disse: “O que os ingleses chamam de ‘conforto’ é algo inexaurível e ilimitável.” Hegel concluiu que “a necessidade de cada vez mais con­forto não surge diretamente na pessoa, mas é sugerida por aqueles que esperam tirar proveito de sua criação”.9 Vafle notar que, tal como Freud, Hegel enfatizou não o conforto em si, mas a “neces­sidade de conforto”. Hegel sugeriu que a necessidade de conforto é uma ilusão, do tipo alimentado hoje pelos gurus da propaganda das grandes lojas. Assim como o vício de tomar café, por exemplo, *Tradução livre. (N. da T.) [57] para Hegel, um desejo pode ser inócuo, mas não é natural nem saudável.

Em nossa era, mais moderna, a industrialização traz conforto e conveniência em proporções sem precedentes. Em um estudo do ritmo de vida, o psicólogo Robert Levine e seus colegas encontra­ram uma relação entre o PIB e o ritmo de vida acelerado.10 Levine mediu a rapidez com que as pessoas andam, a rapidez com que os carteiros cumprem sua tarefa básica, e o grau de exatidão dos re­lógios públicos para avaliar o ritmo relativo de vida de socieda­des. Não só a riqueza nacional está associada a um ritmo de vida mais rápido, como o ritmo de vida mais rápido está associado a uma taxa mais alta de consumo de energia. Pensemos em carros, eletrodomésticos, aquecedores de água - todos são artigos relacio­nados à conveniência e ao conforto. Mas aí vem o outro lado: um ritmo de vida mais acelerado está relacionado a taxas menores de empreendimentos e poupança financeira. Quanto mais artigos de conveniência as pessoas têm, menos se dão ao trabalho de ter autocontrole nos gastos. Vejamos o exemplo da frustração. Em lu­gares onde tudo é feito com rapidez, as pessoas acham intolerável a espera numa fila ou no trânsito. Em outras palavras, quanto mais confortável é sua vida, menos paciente você é diante do que julga ser um problema.

Embora este livro seja basicamente sobre conforto psicológi­co, vamos nos deter um momento para dizer que existe uma rela­ção direta entre conforto físico básico (em psicologia, chamamos de “sensações confortáveis”) e confortos psicológicos mais com­plexos (que seriam o que chamamos de “estados emocionais”). Afi­nal, estamos todos presos a essa existência física pelo corpo. O corpo é uma membrana, por assim dizer, entre os eventos do mundo e a pessoa que entendemos [58] como “si mesmo”. O corpo age como uma espécie de termos­tato - muitas vezes, literalmente - por meio do qual vivenciamos os confortos e desconfortos do mundo. Pesquisadores observaram que todo mundo tem uma gama específica de adaptação às condi­ções do ambiente, o que inclui odores, ruídos, temperatura. É por isso que você não nota como seu escritório é refrigerado até sair em pleno calor do verão lá fora. O impulso para ter conforto físico é normal, e sua capacidade natural de se adaptar é parte desse impulso.

Talvez você se surpreenda ao saber que a repugnância fornece um exemplo perfeito de como as sensações físicas e psicológicas podem se entrelaçar. O nojo é uma sensação que nos leva a evitar coisas nocivas, como alimentos estragados. Pesquisadores usam testes extremamente criativos para medir a sensibilidade à repug­nância. Já fizeram os participantes assoarem o nariz em um rolo de papel higiênico, tomar suco de laranja num urinol, e obser­varam se conseguiam chegar perto de uma cabeça de porco decepada. Há também um tipo mais psicológico de repugnância, conhecido como “repugnância moral”. As pessoas tendem a evitar se deitar numa cama em que dormiu um assassino, da mesma for­ma que evitam uma poça de vômito. Têm tanta relutância em vestir um suéter que pertenceu a Hitler quanto a comer um cho­colate com formato de cocô de cachorro. Vê-se que a sensibilidade à repugnância está diretamente relacionada ao senso de conforto, principalmente quando se trata do mundo natural.

Os pesquisadores Robert Bixler e Myron Floyd ficaram curio­sos para investigar sua hipótese de que a gama de conforto das pes­soas foi se tornando mais restrita ao longo dos anos.12 Quando perguntaram a centenas de crianças em idade escolar como se sen­tiam em relação à natureza, crianças medrosas e com repugnâncias [59] disseram preferir passar a hora do recreio em ambiente fechado ou, se um adulto detestável as obrigasse a ir para o ar livre, prefe­riam passear em parques bem cuidados. Em seguida, apresenta­ram às crianças frases com uma escala do quanto sentiriam falta de conforto se passassem uma semana inteira ao ar livre, numa “simulação” de acampamento de pioneiros na colonização do Te­xas. “Eu não sentiria nenhuma falta” teve zero na escala. “Eu não poderia viver sem conforto” obteve 4. A média para banho de chu­veiro ou banheira foi 3; descarga no banheiro, 2,63; água quente, 2,69; e ar-condicionado, 2,66. É claro que os verdadeiros colonizadores do Texas viviam muito bem sem ter nada disso. Fomos ficando gradualmente mais frouxos desde o tempo em que os pioneiros atravessavam os Estados Unidos em carroções até o advento de poltronas reclináveis e jogos Playstation. O que consideramos conforto se tornou cada vez mais limitado.

Vale notar que esse estudo das atitudes de crianças com rela­ção ao conforto foi publicado em 1997, e foi nos anos 1990 que o vício do conforto deslanchou. Não se questiona que a geração que enfrentou a Grande Depressão de 1929 e a Segunda Guerra Mun­dial - chamada de Greatest Generation - foi capaz de lidar com adversidades. Apesar do progresso da economia nos anos após a Segunda Guerra Mundial, as décadas de 1950,1960 e 1970 foram definidas basicamente pelo movimento de direitos civis, com hip­pies protestando contra o sistema e questionando a Guerra do Vietnã. Quando Ronald Reagan assumiu a presidência, em 1981, o clima social e econômico amainou, culminando com a passagem do governo para Bill Clinton, em 1990. Aqui começamos a ver o drástico aumento da classe confortável, e ouviu-se pela primeira vez a expressão comfort food, numa indicação óbvia de que nossa relação com as necessidades básicas estava mudando. [60]

Hoje, décadas depois, no contexto da Primavera Árabe e das guerras no Iraque e Afeganistão, é difícil recordar o quanto os anos 1990 foram uma época singular. Para quem viveu os tempos dos movimentos de protesto dos anos 1960, da crise de gasolina e dos reféns nos anos 1970,1980 e especialmente os 1990, foi uma época muito diferente. Havia um sentimento de que o mundo es­tava ficando melhor. Após décadas de injustiça institucionaliza­da, o apartheid na África do Sul ruiu. A União Soviética, rival por excelência dos Estados Unidos no palco mundial, espatifou. Co­mo se fosse preciso ter mais provas de seu poderio militar, os Es­tados Unidos derrubaram a máquina militar de Saddam Hussein em uma semana. A bolsa de valores norte-americana subia à estratosfera, e a internet se tornava um novo motor global da criati­vidade e das finanças. Em suma, tudo parecia muito confortável nos Estados Unidos, como nunca se vira em toda a história da humanidade.

As expectativas subiram na mesma medida da maré econômi­ca e política. A felicidade passou a ser vista, não como um objeti­vo desejável, mas como um imperativo moral. Até Shigehiro Oishi - do estudo sobre Jesus, já mencionado - e seus colegas usaram o Google para buscar exemplos da pessoa feliz em livros norte-ame­ricanos de 1800 a 2008.13 Como se pode imaginar, os autores de 1800 e início de 1900 ignoravam essa expressão. Só depois, nos Loucos Anos 20 (the Roaring Twenties), os livros começaram a fa­lar da pessoa feliz, um fenômeno que veio num crescendo e che­gou ao auge na década de 1990, quando dificilmente alguém saía de uma livraria sem comprar um livro que tivesse essa expressão. Nos anos que se seguiram, o uso do termo pessoa feliz não caiu mui­to. De 1990 a 2008, o número de referências à “pessoa feliz” foi [61] igual ao dos cinqüenta anos precedentes. As normas sociais estavam claramente a caminho.

Foi no início dos anos 1990 que a primeira lei de “morte com dignidade” foi promulgada nos Estados Unidos. Em essência, a lei admite a morte planejada de pessoas com enorme desconforto físico ou perda de dignidade, o que é também uma forma de des­conforto mental. Essa lei, independentemente do que você pensa a respeito, reflete uma sociedade que chegou a tal extremo para satisfazer as necessidades básicas que é possível marcar a hora e o modo da morte de uma pessoa. Foi também no início dos 1990 que ouvimos pela primeira vez a expressão zona de conforto - uma ga­ma de experiências muito familiares, que geram a sensação de estar à vontade - no contexto do mundo dos negócios. Um texto sobre negócios aconselha explicitamente os empresários a manterem seus empregados fora da zona de conforto.

A cereja do bolo de conforto é possivelmente a maior invenção confortável de todos os tempos. Nos anos 1960, cientistas da NA­SA criaram uma tecnologia para diminuir o desconforto dos as­tronautas no lançamento e no espaço. Mas somente em 1991 essa tecnologia foi colocada no mercado, ao alcance dos civis: a espu­ma de memória foi lançada na forma dos colchões, almofadas e travesseiros mais confortáveis na face da Terra. Especialistas em marketing concluíram que, durante os anos 1990, as pessoas estavam dispostas a pagar preços exorbitantes por uma cama que se adaptava perfeitamente às suas dimensões: a última palavra em termos de sono confortável. Como se colchões de mola ou de água não fossem confortáveis o suficiente, tínhamos agora um mate­rial que se amoldava de maneira a nos sentirmos repousados até nos menores contornos do corpo. Após 200 mil anos, os humanos [62] podiam finalmente dormir do modo como - supostamente - me­reciam.

Pesquisadores observam que, à medida que ficamos mais con­fortáveis, há uma queda em nossa saúde psicológica. A ansiedade, especialmente, parecia estar em ascensão. Em 1996, pela primeira vez na história, as clínicas das faculdades começaram a receber alunos queixando-se de ansiedade com maior frequência do que de depressão e problemas relacionados, e essa tendência perma­nece até hoje.14 Em consonância, os anos 1990 viram uma peque­na alta de agressão no trânsito nos Estados Unidos. Em estatísticas coletadas para a AAA Foundation for Traffic Safety, o número de incidentes agressivos no trânsito passou de 1.129 em 1990 para 1.708 em 1995, um aumento de 50%.15 A capacidade dos norte-americanos para tolerar pequenas frustrações nas horas de rush e entender que uma fechada no trânsito não era um insulto pes­soal estava diminuindo. Durante os anos 1990 foram registrados mais de 10 mil incidentes agressivos em que duzentas pessoas morreram e 12 mil foram feridas. Nos anos 1990, a vida era tão boa que as pessoas às vezes não sabiam o que fazer quando algu­ma coisa saía dos trilhos.

Mais importante ainda, em meados dos anos 1990 surgiu um termo agourento relativo ao conforto psicológico. A medida que as pessoas dormiam melhor, desfrutando de mais objetos de con­veniência e contando com uma felicidade cada vez maior, iam se adaptando a uma vida sem muitas provações e dificuldades. Foi então que o termo evitação experiencial entrou no léxico da psico­logia.16 A evitação experiencial pode ser definida como a tentativa de recalcar pensamentos e sentimentos indesejados, de se escon­der deles tão ativamente que sobra pouca energia para estar pre­sente no correr da vida. Sim, foi a primeira vez que as pessoas tiveram [63] escolhas, liberdade e possibilidades suficientes para evi­tar as coisas - muitas coisas. E evitaram. Principalmente as emo­ções. O crescente desconforto diante de dúvidas, tédio e emoções negativas produziu mudanças mensuráveis. Uma estratégia de escape comum, por exemplo, é ver televisão. O entretenimento proporcionado pela televisão é inquestionável, mas se alia à fun­ção de nos afastar das questões do cotidiano. Entre os anos 1950 e 1970, a média de tempo de assistir à televisão numa casa era de cinco a seis horas por dia. Nos anos 1980 e 1990, esse número su­biu para sete horas e meia por dia.17

É possível evitar o que está dentro de você?

O recurso principal de profissionais de saúde mental para diag­nóstico e tratamento é o Diagnostic and Statistical Manual of Men­tal Disorders, mais conhecido como DSM. Em 1980, o DSM era um livro de peso, com 494 páginas e 265 doenças mentais adicio­nadas. Em 1994, era um monstro com o dobro do tamanho, 886 páginas e mais 32 doenças mentais classificadas. Os profissionais de saúde pareciam concordar que sentir muita tristeza, muita an­siedade, raiva muito freqüente ou muito intensa, e se defrontar com pensamentos complicados eram sinais de doença. O DSM classifica muitos problemas legítimos, como a esquizofrenia, mas é difícil aceitar a noção de que sentir tristeza durante duas semanas ou mais num grau que interfere com o trabalho ou os relacionamentos é um problema clinicamente significativo. Mas a população em geral captou a mensagem: o sofrimento é ruim, e os profissionais de saúde mental podem ajudar a evitar. Mas como evitar o que está dentro de você? [64]

Os líderes da American Psychological Association tiveram boas razões para eleger dr. Albert Ellis o “segundo psicólogo mais im­portante no século XX” (um lugar à frente de Sigmund Freud e atrás somente de Carl Rogers).18 Ellis lançou a ideia de que alguns comportamentos não podem ser controlados pelo pensamento racional. Fundador da terapia cognitivo-comportamental (TCB), Ellis identificou três crenças disfuncionais importantes na cons­trução direta do sofrimento e do comportamento destrutivo:

  1.  “Preciso fazer tudo bem e obter a aprovação dos outros para ser aceito. ”
  2. “Os outros precisam fazer ‘o que é certo’, se não, não são bons.”
  3. “A vida tem que ser fácil, sem desconforto e inconveniências.”

Nos anos 1950 e 1960, essas idéias eram revolucionárias. Em vez de atribuir a conflitos não resolvidos na infância ou a eventos traumáticos as causas de dificuldades psicológicas, Ellis propu­nha que os problemas se originam nas crenças adotadas pelas pes­soas sobre si mesmas, os outros e o mundo ao seu redor. Ellis não só articulou o problema, mas criou um sistema em que o terapeu­ta pode ajudar o cliente a identificar e questionar suas crenças pessoais. Seu método é eficaz, reprodutível, e teve grande desta­que na psicoterapia durante décadas. Renomeada em 1990 como “otimismo aprendido” pelo dr. Martin Seligman, fundador da psi­cologia positiva, a ideia de Ellis é ensinar as pessoas a reduzir o sofrimento emocional que sabota a felicidade.19 Apesar de todo o seu mérito, essa é uma extensão lógica do vício do conforto fí­sico. Se as condições físicas não são do nosso agrado, tentamos modificá-las até que o sejam. Da mesma forma, se nosso ânimo [65] e nossas lembranças nos deixam infelizes, devemos modificá-los até que sejam menos incômodos.

Essa ideia enfrentou desafios durante trinta anos. Depois, al­guns hippies expostos ao movimento do potencial humano e a fi­losofias orientais nos anos 1960 cresceram, se tornaram psicólogos e lançaram uma nova forma de terapia conhecida como terapia da aceitação e compromisso, ou ACT20. Os doutores Steven Hayes, Kelly Wilson, Elizabeth Gifford, Victoria Follette e Kirk Strosahl trouxeram questões novas e provocativas. E se os terapeutas esti­vessem usando o critério errado para determinar o que é normal e anormal? E se o foco na intensidade e negatividade dos pensa­mentos, sentimentos e comportamentos não fosse o melhor indi­cador de saúde mental? E se, em vez disso, víssemos o que as pessoas fazem com esses pensamentos, sentimentos e comporta­mentos? Esse grupo de pesquisadores observou que, quando as pessoas têm um sofrimento psicológico, elas agem da mesma for­ma que as pessoas que têm um sofrimento físico. Quando você torce o tornozelo, por exemplo, tende a restringir o uso da perna. O mesmo se aplica a uma adversidade mental. Quando um amigo ou namorado fere seus sentimentos, você restringe a amizade, in­teragindo menos. Quando as emoções se intensificam, você as evi­ta assistindo à televisão, dormindo ou tomando cerveja.

A alternativa a mudar ou evitar pensamentos, lembranças, sensações e sentimentos dolorosos é aprender que você pode su­portar o desconforto psicológico, da mesma maneira que suporta o desconforto físico de dar uma caminhada numa tarde de chuva. Pode não ser a sua preferência, mas não há dúvida de que você po­de. Imagine como será libertador aproveitar a vida sem que pensa­mentos e sentimentos indesejáveis sejam inimigos contra os quais temos que lutar, e conseguir vencer. Imagine que esses pensamentos [66] e sentimentos sejam como uma música de fundo tocando no rádio. Eles estão sempre lá, mas podemos prestar muita ou pouca atenção. A premissa central da ACT é que você carrega os pensa­mentos e sentimentos difíceis lá dentro. Você os observa, mas eles e você não são a mesma coisa.

Vale repetir: você não é suas experiências psicológicas, ainda que elas possam afetar você. Pode soar esquisito - até mesmo ra­dical - sugerir que você não é a mesma coisa que seus pensamen­tos e sentimentos. Você não é os pensamentos desconfortáveis em sua cabeça - nem os sentimentos que eles despertam - justamente porque você pode observá-los. Seja quem ou o que for o observa­dor - o self, a personalidade, a alma, chame como quiser - está, por definição, separado desses sentimentos, e o fato de que você pode observá-los é prova disso. Quando você reconhece que esse observador está separado do sofrimento, pode conseguir tolerar melhor o sofrimento.

A maioria dos nossos problemas não advêm dos pensamentos e sentimentos indesejáveis, como Ellis sugeriu, mas da relutância em abordá-los. Vale dizer que, quando se trata da ansiedade, há um só problema subjacente: a evitação.21 Um rápido olhar no mais recente DSM mostra que existem vários tipos de distúrbios de ansiedade, desde a ansiedade social até a ansiedade pós-traumática e ao distúrbio de pânico. Cada um desses tipos é uma forma legítima de sofrimento, mas todos têm um denominador comum. Quando você acha que está sendo rejeitado ou que suas falhas de caráter poderão ser expostas, é compreensível que tente evitar a ansiedade. Infelizmente, em vez de acalmar, evitação da ansieda­de tem o efeito oposto, e só a intensifica no correr do tempo.

Muitos terapeutas bem sabem que os clientes geralmente têm problemas emocionais secundários. A pessoa pode se sentir culpada, [67] por exemplo, e se culpar por se sentir culpada! Ou se sentir deprimida e ter raiva de estar deprimida. A mesma coisa acontece com a ansiedade. A pessoa se sente ansiosa com certas situações, e a tensão é agravada pelo medo de ficar ansiosa. Imagine como a vida seria mais fácil se a pessoa conseguisse remover essa segunda camada de problema mental simplesmente se sentindo forte o su­ficiente para suportar a ansiedade.

Essa noção, de ter uma atitude mais rija a respeito de estados internos, é importante. Desenvolver a tolerância a estados psico­lógicos mais desafiadores não só nos ajuda enquanto indivíduos, mas também, em longo prazo, é bom para a sociedade. Isso porque o vício do conforto não é um incômodo apenas individual. Em termos coletivos, é um legado para nossos filhos.

Vício do conforto: o legado para nossos filhos 

Na sociedade moderna muito se tem escrito sobre os vários males que podem afetar nossos filhos. Obesidade. Bullying. Videogames. Mensagens eróticas enviadas por celular. Uso de drogas. Gravidez indesejada. Doenças sexualmente transmissíveis. Violência. Não passar de ano. Piruetas de skate. A lista de perigos cai nos ouvidos dos pais como uma avalanche e, num surto de protecionismo bem-intencionado, corremos a salvá-los como nunca antes. Em meados da década de 1980, as pessoas começaram a colocar o ade­sivo de Bebê a Bordo nos carros, como aviso para outros motoris­tas e um modo de evocar um mundo mais seguro. Não vivemos mais numa era centrada nos adultos, em que as crianças deviam ser vistas, mas não ouvidas. Atualmente, as crianças são o ponto [68] focal, e os pais agem como uma espécie de segurança privada para assegurar seu bem-estar.

De fato, nos últimos trinta anos os pais vêm ficando cada vez mais preocupados com segurança. Hoje usamos ameaças e recom­pensas, por exemplo, o que era raro nos anos 1950, 60 e 70 nas relações com os filhos. Pesquisadores de atitudes parentais obser­varam que hoje em dia os pais tendem muito mais a organizar as atividades dos filhos e a direcioná-los para essas atividades. As pesquisadoras australianas Trine Fotel e Thyra Thomsen se inte­ressaram em saber se essas taxas mais altas de direcionamento seriam devidas a outros fatores, como distâncias mais longas para a escola.22 Elas constataram que aproximadamente 55% a 60% do aumento da prática de levar os filhos de carro para a escola estão diretamente relacionados ao receio de riscos. Apesar de estatísti­cas mostrarem uma diminuição de acidentes envolvendo bicicletas de crianças, os pais têm mais medo de deixar os filhos dividirem as ruas com os carros.23 Após se queixar das condições perigosas do trânsito, uma mãe concluiu:

Foi um problema para ele eu não ter ensinado como proceder [de bicicleta] no trânsito. Somente quando vi o quanto os co­legas riam dele porque sempre chegava à escola de carro, foi que percebi como isso o afetava. Precisei tomar uma atitude, e ele se revelou muito bom na bicicleta.24

Uma das mudanças mais óbvias nas atitudes dos pais ocorreu nos playgrounds. Poucas décadas atrás, os playgrounds das esco­las eram cheios de brinquedos de madeira, mas tábuas apodreci­das e farpas em abundância levaram pais e diretores de escolas a trocá-los por brinquedos de metal e plástico.

Em um estudo recente [69] sobre segurança em playgrounds, Anita Bundy e seus cole­gas colocaram na área do play objetos soltos, sem finalidade, como caixas de papelão, tambores de plástico, fardos de feno, pneus de carros e pedaços de canos.25 Na coleta de dados sobre as atitudes das crianças e dos professores-supervisores, os pesquisadores vi­ram que o equipamento menos estruturado provocou uma série de mudanças. Primeiro, as crianças demonstraram um aumento sig­nificativo de atividades físicas vigorosas. Segundo, os supervisores se preocuparam mais. Os professores-supervisores elogiaram mui­to o aumento substancial de brincadeiras criativas, de socializa­ção, e a diminuição da agressividade. Sendo assim, se os materiais dos playgrounds das escolas antigas trouxeram tantos benefícios tangíveis, por que eles ficaram preocupados? Os pesquisadores relataram que a preocupação maior foi com o risco de as crianças se machucarem e eles sentiam ter a responsabilidade de impedir.

O ambiente das escolas parece ser tão aterrorizante que pais adentram as salas de aula para ajudar a proteger os filhos contra perigos psicológicos em potencial, como bullying, problemas de autoestima, de aceitação, ou ficar para trás nos estudos. A isso, a socióloga Catharine Warner chama de “salvaguarda emocional”, mas nós chamamos de “helicóptero parental”.26 É interessante no­tar que essas intromissões são mais comuns entre pais de classe média, ou seja, são mais freqüentes entre aqueles que estão mais confortáveis. Numa análise dessa tendência parental, Warner con­clui que pais bem-intencionados têm desejos conflitantes com rela­ção aos filhos. Por um lado, querem que os filhos tenham desafios intelectuais e, por outro lado, querem que sejam felizes, popu­lares, compreendidos, psicologicamente confortáveis. É como se nós, pais, coletivamente, não pudéssemos ver que esses mesmos desafios, frustrações e fracassos aceitos por nós como estimulantes [70] para o crescimento acadêmico de nossos amados rebentos são também necessários ao desenvolvimento psicológico deles.

Aqui está a atitude de conforto, muito bem resumida num co­mentário feito pela mãe de uma aluna do primeiro ano que parti­cipou do estudo de Warner:

Queremos que ela esteja num lugar onde sinta segurança, on­de sua autoestima seja realmente estimulada, e não espezi­nhada. Penso que essa é nossa maior preocupação. E também, é claro, queremos que ela esteja num lugar em que seja bem acolhida e educada, mas que ao mesmo tempo seja devidamente exposta a desafios.

Se você tem 30 anos ou mais, temos certeza de que seus pais jamais disseram algo parecido com isso numa reunião de pais e professores. Em vez disso, devem ter olhado nos olhos da profes­sora e perguntado algo do tipo: “Como ela está em matemática?” Não que o jeito antigo fosse áspero, ou que somente agora tenha­mos aberto os olhos para o bem-estar das crianças. Acontece que os pais modernos entenderam muito mal a diferença. Vemos peri­go em toda parte. Aqui está o outro lado da história, visto por uma professora do primeiro ano, muito elogiada por pais de alunos, que também participou da pesquisa de Warner:

Os pais vivem dizendo: “Ah, meu filho fica muito ansioso quando vem à escola, ele não quer vir à escola.” Mas, na ver­dade, quando a criança chega aqui, fica ótima. Eu acho que talvez os pais é que fiquem ansiosos quanto a alguma coisa, e a criança adota esse sentimento. [71]

Ela resumiu a situação. O mundo parece perigoso. Sem dúvi­da, existem perigos reais à nossa volta, mas adotamos uma visão de mundo coletiva que amplifica os perigos reais. No que concerne aos nossos filhos, se insistirmos numa criação muito antisséptica, eles estarão mal preparados para as intempéries da adolescência e da idade adulta. Em vários aspectos, os pais modernos estão cegos para os diversos benefícios dos desafios. Não se preocupe, não es­tamos apontando o dedo para você; estamos prontos a reconhecer nossa parte da culpa. Pode ser tão fácil aceitar a ideia de que o de­safio intelectual é uma parte vital da educação quanto pode ser difícil aceitar o fato de que o desafio é igualmente benéfico para o desenvolvimento social e emocional.

Qual é a alternativa?

Para conhecer de perto uma realidade alternativa - um mundo em que estados negativos são tolerados - você tem de viajar para a Ásia. Pessoas de origem asiática são frequentemente chamadas de “coletivistas”, porque sua unidade social básica é o grupo e não o indivíduo.27 Os coletivistas tendem mais a refrear seus próprios desejos, se isso contribuir para o bem do grupo. Tendem mais a querer se adaptar do que se destacar. Tendem mais a se ver como seres de identidade fluida, e não de características estáveis trans­feridas de uma situação a outra. O lendário psicólogo social Ro­bert Wyer resumiu da seguinte maneira:

O individualista acha que, se alguém o convida para jantar, ele deve retribuir, convidando a pessoa para jantar algum tempo [72] depois. O coletivista, por sua vez, pode achar que, se uma pes­soa o convida para jantar, ele deve convidar alguém, qualquer pessoa, para jantar algum tempo depois. [28]

Correndo o risco de certo exagero, dizemos que os asiáticos têm uma relação com suas experiências emocionais de um modo muito diferente do ocidental. Por exemplo: se você perguntar a um caucasiano norte-americano ou canadense “Você está feliz?”, ambos farão um rápido cálculo interno. Provavelmente, estarão vasculhando seu próprio estado de espírito momento a momento, e uma olhadela no estado interior produzirá uma resposta preci­sa. Se essa mesma pergunta for feita a uma mulher sul-coreana, por exemplo, ela provavelmente colocará o mesmo peso em sua experiência interna e nas normas culturais para saber como ela deve se sentir naquela determinada situação. [29]

Pesquisadores descobriram diferenças culturais interessantes no modo como as pessoas preferem se sentir.30 Os asiáticos, por exemplo, tendem mais a desejar emoções positivas de baixa in­tensidade, como paz, harmonia, contentamento e calma. Em con­traste, os ocidentais tendem mais a desejar emoções positivas de alta intensidade, como entusiasmo, alegria e orgulho. Ou seja, os norte-americanos gostam de estar agitados e essa tendência emo­cional é autoestimulante. Num estudo conduzido por nós, exami­namos as experiências emocionais de pessoas de várias culturas.31 Vimos que a intensidade do prazer afeta as recordações que os norte-americanos têm de suas experiências emocionais; eles asso­ciam lembranças de sensações mais prazerosas às ocasiões em que tiveram sensações mais intensas. Essa particularidade não se apli­ca aos japoneses em suas recordações. [73]

As diferenças entre orientais e ocidentais são especialmente pronunciadas quando se trata de experiências psicológicas negati­vas, e a maior diferença entre as relações emocionais se refere à re­pressão. Em termos psicológicos, a repressão tem raízes na teoria freudiana de mecanismos de defesa, uma manobra mental que as pessoas empregam para manter o sofrimento emocional afastado. Reprimir (esquecer) experiências más e recorrer ao humor para rir da adversidade são exemplos de mecanismos de defesa. Re­primir significa recalcar, ou empurrar para baixo, a experiência. Muitos ocidentais se prendem ao estereótipo do asiático reprimi­do porque, tipicamente, é difícil saber o que eles estão pensando. Isso acontece porque, em geral, as culturas coletivistas preconizam o hábito de manter uma expressão impassível para atuar no meio social. Mas se os asiáticos são mais propensos a reprimir a expres­são da emoção, não é assim que reagem à verdadeira experiência da emoção. O fato é que os asiáticos tendem a tolerar muito bem as experiências emocionais desagradáveis. Estudos mostram que, ao contrário dos ocidentais, quando eles têm períodos de tristeza ou rompantes de irritação, não tentam buscar uma distração ou apelar para o humor.

Essa tendência pode ser vista na maneira como os norte-ame­ricanos e as pessoas de cultura asiática diferem quando estão de­primidos. Você, como praticamente todo mundo que conhece, tem uma noção intuitiva do que é a depressão. Talvez você já tenha estado deprimido. Seja como for, você sabe que a depressão inclui tristeza, falta de energia, incapacidade de aproveitar a vida, e às vezes problemas de sono, falta de cuidados corporais e de concen­tração. Em casos extremos pode apresentar pensamentos de suicí­dio e sentimento de desesperança. Muitos ocidentais lidam com esses sentimentos opressivos usando alguma estratégia de amortecimento [74] para evitá-los, que pode incluir abuso de drogas ou exces­so de sono. Os asiáticos não costumam adotar essa estratégia.

Em um estudo, os pesquisadores exibiram um trecho de um filme engraçado a norte-americanos e a descendentes de asiáticos, todos deprimidos.32 Os asiáticos riram e sorriram diante das cenas cômicas, e os norte-americanos, não. Em outro estudo, norte-ame­ricanos deprimidos reagiram apenas com mutismo diante de um filme triste. Os asiáticos deprimidos mostraram mais tendência a chorar. Ao que parece, os norte-americanos desligaram um botão de sentimento, enquanto os asiáticos sentiram fortemente a emo­ção. Em suma, os asiáticos parecem ficar mais confortáveis com sentimentos desagradáveis, e é aqui que talvez possamos nos be­neficiar de examinar mais detidamente esse fenômeno.

Vê-se que a tendência cultural a se aproximar ou se afastar de estados psicológicos negativos é aprendida. É estranho pensar que seus sentimentos lhe foram ensinados da mesma maneira que a língua materna, mas é exatamente o que acontece. Esse ponto foi ilustrado brilhantemente numa série de estudos conduzidos por Jeanne Tsai, da Universidade de Stanford, e seus colegas.33 Os pes­quisadores listaram os livros infantis mais vendidos publicados nos Estados Unidos e em Taiwan em 2005. Uma análise detalhada das ilustrações mostrou que os livros norte-americanos apresenta­vam sorrisos mais largos, expressões faciais mais animadas e mo­vimentos mais exuberantes. Em um estudo de acompanhamento, Tsai e colegas leram separadamente para crianças norte-america­nas e taiwanesas, e logo após as crianças foram escolhidas aleato­riamente para ouvir a versão agitada, americana, de uma história sobre nadar numa piscina (mergulho bala de canhão!) ou a versão mais calma, taiwanesa, da mesma história (boiando suavemente). [75]

Depois, apresentaram às crianças uma série de atividades lú­dicas, cada qual com uma versão agitada e outra mais calma. Uma das perguntas foi: “Você prefere tocar um tambor rápido, BUM-BUM-BUM, ou um tambor lento e suave, tap-tap-tap?” Independentemente da origem cultural, as crianças que haviam sido expostas à história agitada preferiram as atividades mais agita­das. Quantas histórias você leu para seus filhos mostrando a capa­cidade de um personagem tolerar emoções negativas? Devemos reconhecer que o dr. Seuss abordou esse tema em vários livros, in­clusive I Had Trouble in Getting to Solla Sallew, mas ele parece ser exceção. Livros sobre tolerância à negatividade são muito mais comuns na Ásia. Os norte-americanos, em contraste, brindam as crianças com aniversários animados, refeições alegres e finais fe­lizes, mas não há tristeza e pesar nos intervalos. Pais e educadores interessados podem ver aqui uma oportunidade de usar materiais educativos e interações sociais do cotidiano para ensinar os filhos a tolerar o desconforto.

Não pretendemos romantizar a cultura asiática. De fato, várias pesquisas sugerem que os asiáticos tendem a evitar saborear expe­riências positivas.34 Talvez vejam as condições num fluxo contínuo e portanto tenham mais cautela, ao invés da avidez dos norte-ame­ricanos pelos momentos positivos. Seja qual for a dinâmica psi­cológica envolvida, os asiáticos parecem sacrificar um pouquinho da felicidade e tolerar melhor as emoções desagradáveis. Nossa intenção aqui é enfatizar a real possibilidade de que os norte-ame­ricanos e outros povos ocidentais consigam largar o vício do con­forto e a intolerância psicológica que o acompanha.

Se as sociedades ocidentais puderem se abrir para um pouqui­nho mais de perigo, uma lasquinha a mais de risco, um tiquinho a mais de adversidade e até um bocadinho de fracasso, poderão [76] recuperar um pouco da robustez mental que anda de mãos dadas com essas experiências. É claro que não estamos recomendando que você jogue seu ar-condicionado pela janela, atire longe seu smartphone e arranque as descargas dos banheiros. Não estamos encorajando ninguém a deixar os filhos brincarem em lugares pe­rigosos, nem a sair correndo para comprar livrinhos taiwaneses a fim de estimular a tolerância dos filhotes aos estados negativos. Ainda assim, algumas mudanças são necessárias se quisermos criar pessoas mais firmes, mais preparadas psicologicamente. Sa­bendo que é sempre difícil empreender uma mudança importan­te, encorajamos você a dar um pequeno passo de cada vez para conhecer os benefícios do desconforto emocional, os resultados positivos de estados cognitivos complicados, e aprender a expan­dir os horizontes, por meio da tolerância, ao lidar com situações sociais mais exigentes.

O Santo Graal da Psicologia

É tentador pensar na psicologia moderna como sinônimo de psicoterapia. Os filmes que mostram psicólogos geralmente os re­tratam como terapeutas e raramente, se é que alguma vez, como pesquisadores. Existe alguma verdade nesse estereótipo: dos 175 mil psicólogos nos Estados Unidos, bem mais da metade são tera­peutas com mestrado ou doutorado. Os demais são, mais ou menos, pesquisadores, professores ou consultores. Dado que uma parte tão grande da psicologia é hoje voltada para o estudo e tratamento de depressão, ansiedade e outros problemas mentais prevalentes, é fácil ignorar o simples fato de que a ciência da psicologia se con­centra há muito tempo em otimizar o funcionamento humano. [77]

A psicologia é uma ciência relativamente jovem. Em seus primórdios, tentando se firmar como uma ciência empírica legítima, médicos como Hermann von Helmholtz trabalharam no sentido de uma compreensão confiável das funções humanas básicas. Ele conseguiu, por exemplo, computar a velocidade de impulsos elé­tricos nervosos atravessando o corpo (27,43 metros por segundo).35 Na virada do século XX, os psicólogos mudaram o foco: em vez de tentar entender como as pessoas funcionam, passaram a tentar en­tender o que as faz funcionar bem. Muitos dos maiores intelectos do século XX se concentraram em descobrir como o ser humano evolui. Sigmund Freud e William James, para tomar dois exemplos proeminentes, abusaram de palavras como integração, desenvolvi­mento e salutar. Eles acreditavam que os humanos são diferentes dos animais, dado que, coletivamente, podemos transcender nos­sa natureza e fazer planejamentos para um futuro que podemos alcançar (e nos distanciar de situações muito incômodas).

Depois da Segunda Guerra Mundial, a psicologia desviou o foco da saúde psicológica para a doença psicológica. Palavras co­mo “potencial” foram substituídas por “sintoma” e “distúrbio”. Em vista de legiões de soldados retornando do front com depres­são e traumas, era de esperar que a psicologia criasse tratamentos mais eficazes contra esses males. Essa tendência permanece - mais ou menos - até hoje. Mesmo assim, houve quem conduzisse aos aspectos positivos da psicologia, acadêmicos muito enamora­dos de tópicos positivos como generosidade, resiliência, confiança e perdão, em vez de focalizar apenas a doença mental. Nos anos 1950, 60 e 70, Abraham Maslow, Carl Rogers e outros humanistas reacenderam o interesse pelo potencial humano. Mais recente­mente, psicólogos - nós entre eles - voltamos a atenção para aspectos mais solares da natureza humana. [78] O momento de retomada desses tópicos se encaixou muito bem numa nova onda de prosperidade. O desenvolvimento econô­mico dos anos 1970, 80 e 90, como já mencionamos, gerou nos norte-americanos uma mudança de foco, elegendo o conforto e o sucesso. O excesso de conforto debilitou o vigor norte-americano, mas o objetivo geral de ser bem-sucedido impulsionou as crescen­tes pesquisas da psicologia positiva. Sugerimos que esses dois pon­tos do interesse - o potencial humano e o manejo do lado obscuro da humanidade - não precisam ser conflitantes. A fusão desses dois temas nos dá um acesso pleno à complexidade do que significa ser humano.
 

Psicologia - Psicologia positiva
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11/15/2021 2:42:00 PM | Por Giovanni Reale
O problema da sofística e a fundação da filosofia moral

A sofística operou um subs­tancial deslocamento do eixo da pesquisa filosófica, centrando a sua problemática sobre o homem; até a corrente naturalista da sofística ocupou-se da physis em sentido totalmente diferente dos naturalistas, não para conhecer o cosmo enquanto tal, mas para melhor compreen­der o homem e o seu agir, ou seja, com finalidades ético-político-educativas. E neste deslocamento do eixo está o valor substancial da sofís­tica. Todavia, não se pode dizer que a sofística também tenha sabido fundar a filosofia moral. Todos os sofistas levantaram e aprofunda­ram, de diferentes maneiras, problemas morais ou problemas ligados estruturalmente com a moral, mas não souberam alcançar, no nível temático, o princípio do qual todos dependem.

Este princípio, como sabemos, consiste na precisa, consciente e razoável determinação da essência do homem. Nenhum dos sofistas nos disse expressamente, isto é, tematicamente, o que é o homem e, por conseqüência, nenhum dos sofistas fez ver, conscientemente, como as várias doutrinas que professavam conjugavam-se numa determinada concepção do homem. Compreende-se, portanto, que alguns intérpretes tenham exaltado os sofistas como grandes filósofos e, ao contrário, outros tenham podido acusar os sofistas de superficialidade ou tenham até mesmo
negado que tenham sido filósofos. Os primeiros olharam prioritaria­mente para importância da nova problemática filosófica levantada pelos sofistas, os segundos, ao invés, para a falta de fundamentos reconhecível nesta problemática.

A verdade está no meio: é preciso reconhecer aos sofistas o fato de terem sabido dar voz às novas exigências do momento histórico e terem preparado o terreno para o advento da filosofia moral, mas é preciso também dizer que eles não souberam dar o passo final; e, não obstante isso, é verdade que a sua contribuição foi decisiva, pelas razões que amplamente explicamos.

E o pensamento dos sofistas foi fecundo também em alguns dos seus aspectos que para muitos pareceram apenas excessos e furores iconoclastas; na realidade, era preciso que algumas coisas fossem totalmente destruídas, para poderem ser adequadamente reconstruí­das: era preciso que os velhos e estreitos horizontes fossem rompidos, para que se abrissem outros mais vastos.

Exemplifiquemos.

Os naturalistas criticaram a velha concepção antropomórfica dos deuses e identificaram Deus com o princípio. Os sofistas rejeitaram os velhos deuses, os quais, depois da crítica naturalista, não eram mais dignos de fé; mas rejeitaram também a concepção do divino como princípio das coisas, tendo rejeitado em bloco a pesquisa cosmo-ontológica. E assim aproximaram-se da negação de qualquer for­ma de divino: Protágoras permaneceu agnóstico; Górgias foi certa­mente além do agnosticismo com o seu niilismo; Pródico interpretou os deuses como hipóstase humana do útil; Crítias, como a invenção de um homem hábil e sábio excogitada para reforçar as leis que por si não são vinculantes. Certamente, depois destas críticas, não se podia voltar atrás: para crer no divino era preciso buscá-lo e encontrá-lo numa esfera mais elevada.

E do divino passamos ao humano. Já dissemos que a sofística não chegou a uma determinação sistemática da natureza do homem; todavia, por muitos aspectos, não é difícil explicitar o sentido que eles implicitamente acabaram por dar ao homem. Neste âmbito os sofistas não tiveram de destruir aquilo que disseram os naturalistas, porque, como sabemos, os naturalistas não se ocuparam do homem; destruíram, ao invés, definitivamente, a visão que a tradição, sobre­tudo através dos poetas e dos legisladores, tinha construído. Mas, no instante mesmo em que tentaram reconstruir uma imagem do homem, esta se diluiu nas suas próprias mãos: Protágoras entendeu o homem prioritariamente como sensibilidade e sensação relativizante; Górgias como sujeito de móvel emoção, sujeito a ser arrastado pela retórica em todas as direções; e os próprios sofistas, que apelavam à natureza, tendo-a entendido sobretudo como natureza biológica e animal, não puderam não deduzir dela as antitéticas conseqüências da absoluta igualdade e da absoluta desigualdade dos homens. O homem, para se reconhecer, devia encontrar um mais sólido “ubi consistam"

Enfim a verdade. Antes do surgimento da filosofia, a verdade não era distinta das aparências. Os naturalistas contrapunham às apa­rências o lógos, e só nisso reconheceram a verdade. Mas Protágoras cindiu o lógos nos “dois raciocínios” e descobriu que o lógos diz e contradiz; Górgias rejeitou o lógos como pensamento e salvou-o só como mágica palavra, mas encontrou uma palavra que pode dizer tudo e o contrário de tudo e, portanto, não pode verdadeiramente exprimir nada. Estas experiências, como disse um agudo intérprete dos sofistas, são “trágicas”1: e nós esclareceremos ulteriormente que elas se descobrem como trágicas justamente porque pensamento e palavra perderam o seu objeto e a sua regra, perderam o ser e a verdade. E a corrente naturalista da sofística, que, de algum modo, embora confusamente, intuiu isto, iludiu-se de poder encontrar num enciclopedismo um conteúdo que fosse de algum modo objetivo; mas este enciclopedismo, enquanto tal, revelou-se totalmente inútil. A palavra e o pensamento deviam recuperar a verdade num nível mais alto.

Mas se, para reencontrar o Divino e a verdade eram necessárias as descobertas metafísicas e lógicas de Platão e de Aristóteles, que estão decididamente além dos horizontes da sofística, para recons­truir um novo rosto do homem bastavam os recursos disponíveis no interior do horizonte da sofística: e esta foi a contribuição que Sócra tes soube dar; e assim, com Sócrates, a sofística se concluiu e tornou-se verdadeira, para usar uma expressão hegeliana.

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11/11/2021 2:51:03 PM | Por Giovanni Reale
Os eristas e sofístas políticos

O relativismo e o método antilógico de Protágoras, por obra dos sofistas da geração mais jovem, produziu a erística. Se não existe uma verdade absoluta e se a toda proposição é possível contrapor a sua contrária (e se é possível tornar mais forte o discurso mais fraco), então é possível refutar qualquer asserção. E os eristas excogitaram, assim, toda uma série de problemas que previam respostas sempre refutáveis; dilemas que, embora resolvidos, seja em sentido afirmati­vo, seja em sentido negativo, levavam a respostas sempre possíveis de serem contraditas; hábeis jogos de conceitos construídos com ter­mos que, explorando a sua polivalência semântica, enredavam o ou­vinte e punham-no em posição de xeque-mate; raciocínios que leva­vam sempre a conseqüências absurdas. Em suma, os eristas excogitaram toda aquela aparelhagem de raciocínios capciosos e decepcionantes que foram posteriormente chamados “sofismas”.

Reportamos do Eutidemo uma passagem como prova do que dissemos, a qual demonstra muito bem a medida da deterioração que o protagorismo sofreu no plano da erística, chegando até a negar capciosamente a possibilidade de contradizer, de dizer o falso e de se enganar:

E Dionisiodoro: — Tu falas, Ctésipo, como se existisse a contradição? — Certamente, disse, e como! Não crês que exista'?
— Tu não podes provar ter jamais ouvido alguém contradizer a outro. — É verdade, disse; contudo ouçamos agora a Ctésipo contradizer a Dionisiodoro, e vejamos se o provo a ti.
— E me darás conta rigorosamente disso?
— Certamente.
— Pode-se falar de qualquer coisa existente?
— Seguramente.
— E dizer que cada coisa é e não é?
— Sim. Se bem te lembras, Ctésipo, pouco antes demonstramos que ninguém diz o que não é, porque ninguém fala do não-existente.
E Ctésipo: — Que quer dizer isto? Talvez nos contradigamos menos entre nós?
E ele: — Talvez nos contradigamos expondo o estado de uma mesma coisa, ou neste caso diremos o mesmo? — O mesmo.
— Mas quando nem um nem o outro discorda de uma coisa, nos con­tradiremos? ou, ao invés, nenhum dos dois sequer a teria em mente?
— Nisto também convenho.
— E quando eu falo de uma coisa e tu de outra, nos contradizemos? ou eu falo de uma coisa e tu simplesmente não falas? Como é possível que quem não fala contradiga a quem fala?1

E eis, na boca de Sócrates, expressamente ressaltado o funda­mento protagoriano da doutrina, na passagem que segue:

Ctésipo ficou calado. Eu, maravilhado daquele discurso, disse:
— Que pensas, Dionisiodoro? Eu ouvi de muitos e muitas vezes este dicurso, mas nunca o compreendi bem. Usava-o amiúde Protágoras e a sua escola e também homens mais antigos; mas a mim parece sempre estranho e de tal modo, que deslrói os outros raciocínios e a si próprio. Creio, porém, que de ti ouvirei melhor a verdade. Não existe a afirmação do falso? porque a isso se reduz o discurso; não?
— Assim parece.
— E falando, ou se diz a verdade ou não se fala? — Sim. — E dizer o falso não é possível, mas pensá-lo sim?
— Nem sequer pensá-lo.
— Portanto, não existe de modo algum uma opinião falsa.
— Não.
— Portanto, nem ignorância nem pessoas ignorantes; a ignorância, se existe, não consistiria em enganar-se sobre as coisas? — Certamente.
— Mas isto não ocorre, disse eu.
— Não.
— Falas por falar, Dionisiodoro, ou para dizer absurdos, ou acreditas verdadeiramente que não exista algum homem ignorante?
— Tu deves refutar-me.
— E é possível convencer de mentira quando ninguém se engana?
— Não é possível, disse Eutidemo, e nem mesmo Dionisiodoro convi­dou a refutar: quem convidaria a coisa que não existe?2

Como bem observa Platão, por boca de Sócrates, tal modo de raciocinar destrói tudo: os outros raciocínios e a si próprio. Não era certamente este o sentido da descoberta protagoriana, que tinha a sua verdade e a sua trágica grandeza, como vimos acima: isto, como já acenamos, não é mais que a excrescência patológica da antilogia protagoriana e, em alguns casos, a sua paródia.

As teses sustentadas pelos sofistas políticos

A retórica gorgiana e as deduções da corrente naturalista da so­fística foram as raízes do fenômeno denominado de sofistas políticos ou políticos sofistas, os quais fizeram incursões devastadoras, não no campo lógico-metodológico, mas no campo ético-político, chegando a afirmações de imoralismo quase total.

Crítias, muito mais do que os outros sofistas, dessacralizou o conceito dos deuses, considerando-os como um simples espantalho introduzido para frear os maus e para fazer respeitar as leis, que por si não têm força suficiente para se impor. Refere Sexto Empírico: 

Também Crítias, um dos tiranos de Atenas, parece pertencer ao grupo dos ateus, por ter dito que os antigos legisladores fizeram de deus uma espécie de inspetor das ações humanas, boas ou más, com a finalidade de que ninguém ofendesse traiçoeiramente o seu próximo, por medo de uma vingança dos deuses. Diz textualmente o seguinte. “Houve um tempo, em que era desordenada e ferina a vida dos homens, e instrumento de violência, em que não havia qual­quer prêmio para os bons, nem qualquer castigo para os maus. Em seguida, parece-me que os homens sancionaram leis punitivas, de modo que a Justiça absoluta fosse senhora igualmente de todos e tivesse como serva a Força; e ela punia a quem pecasse. Mas depois, dado que as leis impedem os homens de realizar violência aberta, mas escondidamente a realizavam, então, suponho, em primeiro lugar algum homem engenhoso e sábio de mente inventou para os homens o temor dos deuses, de modo que um espantalho existisse para os maus, até mesmo para aquilo que escondidamente fizessem ou dissessem ou pensassem. Assim introduziu a divindade sob a forma de gênio, florescente de vida imperecedoura, que com a mente ouve e vê, e com suma perspicácia vigia as ações humanas, e dirige a divina natureza; este gênio ouvirá tudo o que se diz entre os homens e poderá ver tudo o que eles realizam. E mesmo que medites algum mal em silêncio, isto não escapará aos deuses; pois grande é a sua perspicácia. Fazendo tais discursos, divulgava o mais agradável dos ensi­namentos: envolver a verdade num conto fingido. E afirmava que os deuses viviam num lugar de onde ele sabia que podiam golpear maximamente os homens, de onde ele sabia que procedem os temores aos mortais e as conso­lações para a sua miserável vida: da esfera celeste, de onde via que saíam relâmpagos, e horrendos trovões, e o estrelado corpo do céu, e a obra maravi­lhosamente variada do sábio artífice, o Tempo; lá onde avança fúlgida a massa ígnea do sol, de onde a úmida chuva desce sobre a terra. Tais temores ele agitou ante os olhos dos homens e, servindo-se deles, construiu com a palavra, qual artista, a divindade, pondo-a num lugar apto a ela; e apagou assim a ilegalidade com as leis [...]. Por tal via, portanto, penso eu, que no princípio alguém induziu os mortais a crerem que existe uma estirpe de deuses3.

Trasímaco de Calcedônia chegou a afirmar que o “justo não é mais que a vantagem do mais forte”; do que ele deduziu, quase certamente, como nos diz Platão no primeiro livro da República, que a justiça é um bem para o poderoso e um mal para quem está sub­metido ao poderoso, que o homem justo tem sempre desvantagem e o injusto vantagem.

E o Cálicles do Górgias platônico (que, se não é um personagem real, ou uma máscara de um personagem real, é, contudo, perfeita expressão desta corrente) precisa:

Parece-me que a própria natureza mostra ser justo que o melhor [= mais forte] tenha mais do que o pior [= mais fraco] e que o mais poderoso tenha mais do que o menos poderoso4.

Com efeito, os animais mais fortes esmagam os mais fracos, os homens mais fortes fazem o mesmo com os mais fracos, e assim os Estados mais fortes com relação aos mais fracos; a lei é sempre contra a natureza (esta natureza) e foi feita pelos mais fracos para defender-se dos mais fortes e, neste sentido, é totalmente negativa. Por isso Cálicles chega a exaltar o homem mais forte, o super-homem, que infringe as leis e submete os mais fracos:

Mas se nascesse um homem dotado de uma forte natureza, suficiente­ mente forte, então arrancaria de si todos os freios da lei, os quebraria e se libertaria deles, pisaria as nossas instituições, os nossos encantamentos, os nossos sortilégios e as nossas leis, que são todas contra a natureza: e, rebelando-se assim, o nosso escravo resultaria o nosso senhor, c desse modo refulgiria o justo segundo a natureza5.

E a vida “justa segundo a natureza” comportará também o favorecimento de todos os instintos, porque estes são segundo a natureza; comportará deixar-lhes livre curso, satisfazê-los depois de tê-los es­timulado, conceder-lhes absolutamente tudo: e comportará fazer tudo isso em prejuízo dos mais fracos, e, antes, explorando para tais fins os mais fracos, justamente porque a natureza os fez diferentes e os pôs à disposição dos mais fortes.
Eis as palavras que Platão põe na boca de Cálicles, que caracte­rizam de maneira perfeita esta concepção:

E, ao invés, o belo e o justo segundo a natureza é este que eu agora te digo com toda simplicidade: quem quer viver bem deve deixar crescer ao máximo os próprios desejos e não deve absolutamente reprimi-los; e, uma vez crescidos ao máximo, deve saber secundá-los com coragem e inteligência e deve ser capaz de tirar para si o justo de tudo aquilo que continuamente possa desejar. Mas isso, como é óbvio, não é possível a todos. Por isso a maioria critica os que podem, porque se envergonham de também não poder e, para esconder a própria impotência, sustentam que a vida dissoluta é torpe, como eu já disse anteriormente, buscando assim submeter os homens que por natureza são melhores. E porque aqueles não têm condições de dar satisfação aos seus desejos, exaltam a temperança e a justiça, exclusivamente por causa da própria impotência. Pois aos que desde o princípio coube a fortuna de serem filhos de reis, ou de serem por sua natureza capazes de obter um domínio, seja uma tirania, seja uma posse, o que, na verdade, poderia ser mais horrível ou mais odioso do que a sabedoria e a justiça? Estes homens, digo eu, mesmo tendo a possibilidade de gozar dos bens sem que ninguém os impeça, deveriam eles próprios impor-se, qual senhores, a lei da multidão dos homens, o seu modo de pensar e as suas censuras? E como poderiam não ser reduzidos a infelizes pela assim chamada beleza da justiça e da sabedoria, não podendo dar aos seus amigos nada além do que dão aos seus inimigos, e isto embora dominando na própria cidade? Mas, ó Sócrates, por aquela verdade que dizes querer perseguir, a questão está aqui: a licenciosidade, a dissolução e a liberdade, se podem encontrar estravasamento, constituem a virtude e a felicidade; todas estas outras coisas não são mais do que aparên­cias enganadoras, convenções dos homens contra a natureza, tagarelices que não valem absolutamente nada6.

Assim o homem-medida protagoriano, de critério torna-se, com a erística, dissolução de todo critério; e também a physis hipiana e antifontiana, em lugar de critério para fundar a absoluta igualdade entre os homens, acaba também por se tornar, com os sofistas polí­ticos, o critério para fundar a absoluta desigualdade, para criar o super-homem e conduzir ao imoralismo mais desenfreado.

Mas se estas correntes são um êxito da sofística, não são o único êxito: elas não revelam toda a natureza da sofística, mas, como já dissemos, somente a sua face negativa. A outra face, positiva e autêntica, ser-nos-á, ao invés, revelada por Sócrates.

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11/1/2021 12:51:32 PM | Por Giovanni Reale
Origens, natureza e finalidade do movimento sofístico

Antes de iniciar um discurso sobre a sofística, é indispensável esclarecer o significado original e autêntico do termo “sofista”. É sabido, com efeito, que sofista, na linguagem corrente, há tem­po assumiu um sentido decididamente negativo: sofista é chamado aquele que, fazendo uso de raciocínios capciosos, busca, por um lado, enfraquecer e ofuscar o verdadeiro e, por outro, reforçar o falso, revestindo-o das aparências do verdadeiro. Mas este não é de modo algum o sentido original do termo, que significa simplesmente “sá­bio”, “especialista no saber”, “possuidor do saber”. Significa não só algo positivo, mas altamente positivo.

A acepção negativa do termo sofista tornou-se corrente a partir talvez já de Sócrates e, certamente, dos discípulos de Sócrates, Platão e Xenofonte, que radicalizaram a batalha ideológica contra os sofis­tas, e depois com Aristóteles, que codificou tudo o que dissera Platão.

Eis como Platão define o sofista no diálogo homônimo:

Em primeiro lugar, o sofista era um caçador remunerado de jovens ricos [...] em segundo lugar, uma espécie de importador de conhecimentos que interessam à alma [...] e em terceiro lugar, não se nos mostrou como um biscateiro destas mesmas coisas? [...] e em quarto lugar, um mercador dos próprios produtos científicos [...] e em quinto era uma espécie de atleta da agonística aplicada aos discursos, como quem tivesse reservado para si a arte de disputar [...] depois, em sexto lugar, era algo de controvertido; todavia convimos admitir que ele seja uma espécie de purificador espiritual das opi­niões que impedem a alma de saber1.

Xenofonte escreve: [23]

Porque se alguém vende a sua beleza por dinheiro a qualquer que o deseje, chamam-no prostituto [...], analogamente, os que vendem por dinhei­ro a sabedoria a qualquer um, são chamados sofistas, que é o mesmo que dizer prostitutos2.

E ulteriormente:

Os sofistas falam para induzir ao engano, e escrevem para o próprio ganho, e não beneficiam em nada a ninguém [...]3.

E Aristóteles conclui:

A sofística é uma sabedoria aparente, não real; o sofista é um mercador de sabedoria aparente, não real4.

Como é bem evidente, são dois os pontos de acusação, e, de natureza diferente: a) a sofística é um saber aparente e não real e, além disso, ela b) é professada com fins lucrativos e de modo algum por desinteressado amor à verdade.

A estas acusações, aduzidas por filósofos, acrescentaram-se de­ pois também as que surgiram da opinião pública. Esta viu nos sofistas um perigo, seja para a religião (como de resto o viu nos últimos físicos), seja para o costume moral, dado que, justamente, para este domínio os sofistas deslocaram a sua atenção. Os aristocratas em particular não perdoaram os sofistas por terem contribuído para a sua perda de poder e por terem dado forte incentivo à formação de uma nova classe, que não se valia mais da nobreza de nascimento, mas dos dotes e habilidades pessoais, e que era, justamente, aquela classe que os sofistas pretendiam criar ou, pelo menos, educar sistematicamente. Resta, em todo caso, que a responsabilidade máxima em desacre­ditar os sofistas foi de Platão, e o foi, mais do que pelo que disse, pelo modo particularmente eficaz como o disse, com o instrumento da sua arte. e dado que Platão é a fonte mais importante para a reconstrução do pensamento sofístico, é claro que, fatalmente, por muito tempo os historiadores tomaram por boas não só as informações que ele nos fornece sobre os sofistas, mas também os juízos que dá sobre eles. [24]

Mas veremos logo que, se as razões que levaram ao descrédito dos sofistas aos olhos dos contemporâneos e de Platão podiam mos­trar-se fundadas e indiscutíveis, ao invés, não o são (ou só são em mínima parte) para o intérprete que, historicamente formado, saiba pôr-se acima das partes e julgar de modo objetivo. E assim, só a partir do fim do século passado o apuramento do método historiográfico permitiu pouco a pouco libertar os sofistas daquela condenação, e possibilitou uma integral reavaliação e uma justa inserção deles na história das idéias. Todos os estudiosos mais qualificados são, hoje, concordes em afirmar que “... os sofistas são um fenômeno tão neces­sário quanto Sócrates ou Platão, antes, sem aqueles estes são efetiva­mente impensáveis”.

Razões do surgimento da sofística

Dizer que, sem os sofistas, Sócrates e Platão são totalmente impensáveis significa dizer que os sofistas representam algo total­mente novo e, de algum modo, operaram uma revolução com relação aos filósofos da physis: é esta revolução, junto com as razões que a produziram, que agora devemos esclarecer.

Em primeiro lugar, para compreender o surgimento e o desenvol­vimento do fenômeno da sofística, é preciso ter presentes os resulta­dos particulares aos quais chegou a especulação naturalista. Estes tinham então chegado ao ponto de se anularem mutuamente: os resul­tados do eleatismo contradiziam os do heraclitismo; os resultados dos pluralistas contradiziam os dos monistas; ulteriormente, as soluções dos pluralistas se excluíam mutuamente, se não nos fundamentos, pelo menos na determinação do pensamento. Parecia, então, que todas as possíveis soluções tinham sido propostas e não eram pensáveis ou­tras: os princípios são um, muitos, infinitos ou até mesmo não exis­tem princípios (eleatas); tudo é móvel, tudo é imóvel; tudo depende de um ordenamento inteligente de uma Mente, tudo deriva de um movimento mecânico; e assim se poderia prosseguir no elenco das [25] antíteses às quais chegara a filosofia da physis. Até a tentativa de alguns pensadores de retomar e voltar a defender, com oportunas correções, o pensamento de um ou outro dos antigos mestres (por exemplo, a tentativa de Hípon de defender Tales, ou a de Diógenes de Apolônia de defender a doutrina do ar de Anaxímenes) demonstra, como vimos acima, que, então, todas as vias estavam batidas e que a pesquisa do princípio de todas as coisas tinha esgotado todas as possibilidades e tocado os próprios limites. Era fatal, portanto, que o pensamento filosófico deixasse de lado a physis, e deslocasse o pró­prio interesse para outro objetivo.

O novo objetivo foi, justamente, aquele que os naturalistas descui­daram por completo, ou só marginalmente tocaram, vale dizer, o homem e tudo o que há de tipicamente humano. Diz muito bem Nestle: “[...] para os sofistas o homem e suas criações espirituais estão no centro da reflexão. Também para eles vale aquilo que Cícero5 diz de Sócrates: |Ele fez descer a filosofia do céu sobre a terra, introduziu-a nas cidades e nas casas e obrigou-a a refletir sobre a vida e os costumes, sobre o bem e o mal . Para o homem como ente individual e como membro da sociedade é que se volta a atenção da sofística”.6

E por isso compreen­de-se que os temas dominantes da especulação sofística tenham se tor­nado a ética, a política, a retórica, a arte, a língua, a religião, a educação, tudo aquilo que nós hoje chamamos de cultura humanista. Com os sofistas, em suma, começa aquele que, com expressão correta, foi cha­mado de período humanista da filosofia antiga.

Nós, porém, não poderíamos explicar este radical deslocamento do eixo da filosofia, se nos limitássemos a chamar a atenção para este fator negativo, isto é, o esgotamento dos recursos da filosofia da natureza. Além e junto com isso agiram, e de modo decisivo, as novas condições históricas que foram amadurecendo progressivamen­te no curso do século V a.e.c., e os novos fermentos sociais, culturais e também econômicos que, em parte criaram, em parte foram criados, pelas novas condições históricas. [26]

Recordemos, antes de tudo, a lenta, porém inexorável, crise da aristocracia, que vai pari passu com o poder sempre crescente do demos, do povo; o afluxo para as cidades, especialmente Atenas, sempre mais maciço dos metecos; a ampliação do comércio, que, superando os estreitos limites das cidades, levava cada uma delas ao contato com um mundo mais amplo; a difusão das experiências e conhecimentos dos viajantes que levavam ao inevitável confronto dos usos, costumes e leis helénicas com usos, costumes e leis totalmente diferentes. Todos estes fatores contribuíram fortemente para o surgi­mento da problemática sofística. A crise da aristocracia comportou também a crise da antiga areté, dos valores tradicionais, que eram justamente os valores prezados pela aristocracia. A crescente afirma­ção do poder do demos e a ampliação a círculos mais vastos da possibilidade de chegar ao poder fizeram ruir a convicção de que a areté dependesse do nascimento, isto é, que se nascia excelente e não se tornava tal, e trouxeram para primeiro plano o problema de como se adquiria a “excelência política”. A ruptura do restrito círculo da polis e o conhecimento de costumes, usos e leis opostos, deviam constituir a premissa do relativismo, gerando a convicção de que o que era tido por eternamente válido era, ao invés, privado de valor em outros ambientes e em outras circunstâncias. Os sofistas souberam apreender de modo perfeito estas instâncias da época em que viveram, souberam explicitá-las, dar-lhes forma e voz. E isto explica por que obtiveram tanto sucesso, sobretudo junto aos jovens; eles respon­diam às reais necessidades do momento, diziam aos jovens, que então não estavam mais satisfeitos nem com os valores tradicionais que a velha geração propunha nem com o modo pelo qual os propunha, a palavra nova que eles esperavam.

O método indutivo da pesquisa sofística

É bem evidente agora que, mudando o objeto de pesquisa rela­tivamente aos naturalistas, a sofística devia mudar também o método. Enquanto os filósofos da natureza, estabelecido o princípio primeiro, deduziam dele as várias conclusões, procedendo com método priori­tariamente dedutivo, os sofistas, como bem notou Nestle, seguem um [27] procedimento prioritariamente empírico-indutivo: “A sofística [...]_ escreve o estudioso alemão — tem seu ponto de partida na experiên­cia e tenta ganhar o maior número possível de conhecimentos em todos os campos da vida, dos quais, depois, extrai algumas conclu­sões, em parte de natureza teórica, como por exemplo sobre a possi­bilidade do saber, sobre as origens, o progresso e o fim da cultura humana, sobre a origem e a constituição da língua, sobre a origem e a essência da religião, sobre a diferença entre livres e escravos, helenos
e bárbaros; em parte, ao invés, de natureza prática, sobre a configu­ração da vida do indivíduo e da sociedade. Ela procede, portanto, segundo o modo empírico-indutivo”7.

Finalidades práticas da sofística

O que expusemos até aqui permite-nos compreender os aspectos da sofística que no passado foram menos apreciados, ou até mesmo considerados totalmente negativos.

Insistiu-se muito, por exemplo, no fim prático e não mais pura­mente teórico da sofística e isto foi considerado como uma queda especulativa e moral. Os filósofos da natureza — diz-se — buscavam a verdade por si mesma, e o fato de terem ou não alunos era puramen­te acidental; ao contrário, os sofistas não buscavam a verdade por si mesma, mas tinham por objetivo o ensinamento, e o fato de terem discípulos era, ao invés, para eles, essencial. Em suma: os sofistas faziam do seu saber uma verdadeira profissão. Ora, por mais verdade que estes juízos contenham, erram o alvo, se não se tem bem presente o que segue. É verdade que os sofistas comprometeram em parte o aspecto teórico da filosofia; mas, dado que a temática por eles tratada não dizia respeito à physis, mas à vida dos homens e aos problemas ético-políticos concretos, não é menos verdade que, contrariamente aos naturalistas, eles deviam ser levados pela necessidade das coisas a finalizar praticamente as suas reflexões. Mas a finalização prática das suas doutrinas tem também um elevado significado: com eles, o problema educativo e o empenho pedagógico emergiram ao primeiro [28] plano e assumiram um novíssimo significado. Contra a pretensão da nobreza, que sustentava ser a virtude uma prerrogativa de nascimento e de sangue, os sofistas pretenderam fazer valer o princípio segundo o qual todos podem adquirir a areté, e esta, mais que na nobreza de sangue, funda-se sobre o saber. E à luz disso explica-se ainda melhor o fato de os sofistas quererem ser dispensadores do saber, e não simples indagadores, mas educadores (foi dito corretamente que, com os sofistas, nasce a idéia ocidental de educação, que se estrutura e se constitui justamente sobre o saber). E se é verdade que os sofistas não estenderam a todos o seu ensinamento, mas só à elite que devia ou queria chegar à direção do Estado, não deixa de ser verdadeiro que, com o seu princípio, romperam pelo menos o preconceito que via a areté necessariamente vinculada à nobreza de sangue.

O pagamento em espécie cobrado pelos sofistas

Estamos agora em condições de abordar e resolver também a espinhosa questão do pagamento que os sofistas exigiam pelo seu ensinamento e pela sua obra de educação. Platão e outros antigos assinalaram a venalidade dos sofistas e consideraram este costume de cobrar o ensinamento como um indiscutível sinal de baixeza moral. Mas note-se que Platão era, neste juízo, muito mais do que se crê, vítima do preconceito aristocrático (em geral a cultura era herança espiritual dos aristocratas e dos ricos, que, tendo solucionado todos os problemas de subsistência, davam-se à cultura como a sublime otium e consideravam-na totalmente destacada de tudo o que tem relação com o lucro e com o dinheiro, e como puro fruto de desinteressada comunhão espiritual). Mas — e este é o ponto a enfatizar — os sofistas não tinham morada fixa, nem renda, e, portanto, tendo concebido o seu saber e a sua obra tal como a explicamos, deviam ne­cessariamente fazer deles uma profissão, e exigir um pagamento em dinheiro para viver. E poder-se-á certamente criticar os abusos dos quais eles se tornaram culpáveis; mas é preciso, em todo caso, ser muito cautelosos ao julgá-los demasiado severamente. Se Platão, de [29] fato, no Ménon nos diz que Protágoras “sozinho [...] ganhou mais com sua sabedoria do que Fídias [...] e outros dez escultores juntos” 8, não hesita, no diálogo intitulado Protágoras, a pôr na sua boca esta frase: “[...] estabeleci que o meu pagamento seja feito do seguinte modo: depois que alguém aprendeu de mim, pague-me a soma que lhe exijo; se não, entre num templo, preste juramento, e a soma que julgue valerem os meus ensinamentos, a deposite ali” 9. Com base na fonte mais severa contra os sofistas podemos, pois, estabelecer que eles não foram absolutamente vulgares e desprezíveis aproveitadores da ciência, como muitas vezes se disse no passado. E como falamos de profissão, queremos reportar uma passagem de Gomperz que es­clarece este ponto: O mundo moderno não apresenta nenhuma forma de vida profissional que possa constituir um termo de comparação com a deles. O sofista se distingue do professor dos nossos dias tanto
pela falta de qualquer relação [...] com o Estado, como pelo fato de nenhuma especialização limitar a sua atividade. Enquanto homens de ciência, pelo menos na maioria, eram especialistas em quase tudo o que então constituía o conhecimento, enquanto oradores e escritores, prontos e dispostos sempre, como eram, a empenhar-se em diatribes e polêmicas, o tipo hodierno que mais se lhes aproxima é o do jor­nalista. Meio professores e meio jornalistas, eis a fórmula talvez mais apta para nos dar uma idéia bastante aproximativa do que eram os sofistas no século V ’10. Isso é verdade, porém, somente se temos presente que o professor e o jornalista são, normalmente, apenas veículos de informação e de formação de opinião, mas não criadores, enquanto os sofistas foram também criadores.

Espírito pan-helênico da sofística

Os sofistas foram também tachados de erradios, por irem de ci­dade em cidade e, portanto, infringirem a fidelidade à sua cidade, rompendo o laço que o grego (que se sentia, muito mais que [30] indivíduo privado, essencialmente cidadão de determinada cidade) conside­rava intocável. Pois bem, se para o homem de então a reprovação se compreende, esta se inverte e se torna mérito quando nos pomos numa perspectiva histórica mais ampla: os gregos, para salvar-se politicamente e sair das mortais lutas entre cidades, precisavam anco­rar-se num sólido ideal pan-helênico e os sofistas foram, justamente, expressão deste ideal: sentiram que os estreitos limites da polis não se justificavam mais, não tinham mais razão de ser e, mais que cida­dãos de determinada cidade, sentiram-se cidadãos da Hélade. E nisso eles souberam ir até mesmo além de Platão e de Aristóteles, que continuarão a ver na polis o paradigma de Estado.

O iluminismo da sofística grega

Ligada às características acima examinadas, e até mesmo como mínimo denominador comum entre todas, aparece a liberdade de espírito própria da sofística. Eles subverteram as velhas concepções da physis nas quais o pensamento ameaçava cristalizar-se, criticaram a religião tradicional, abalaram os pressupostos aristocráticos sobre os quais se fundava a política passada, abalaram as instituições esclerosadas, contestaram a tradicional tábua de valores que então era defendida sem convicção. Essa liberdade de espírito e essa libertação espiritual de todas as tradições que foram próprias dos sofistas vale­ram-lhes o epíteto de “iluministas gregos”: epíteto que, se entendido adequadamente, define-os muito bem. De fato, os sofistas conquista­ram esta sua libertação na base da razão; e, como os iluministas, eles tiveram ilimitada confiança na razão e na inteligência: o que eles negaram foi a possibilidade de alcançar algum absoluto do modo como acreditaram alcançá-lo os naturalistas ou, pelo menos, do modo como a tradição acreditava possuí-lo. “Mas negar o absoluto do pen­samento — diz bem Saitta — não significava para os sofistas negar o pensamento. O seu ataque contra as representações acabadas, que na sua generalidade afogavam as sensações e os particulares, era a exigência do pensamento crítico que quer exercitar o seu poder e o [31] seu domínio sobre todos. Assim, no próprio sentido do relativismo sofístico, o pensamento se demonstra feitor e, ao mesmo tempo, des­truidor das representações e, como tal, não se revela mais como um poder limitado, circunscrito, finito. De fato, a preocupação dos sofistas foi constantemente dirigida a tornar os homens cultos, e a cultura devia ser para eles o resultado de uma consciência crítica, voltada, como a objetos primeiros, imediatos, para as leis, os costumes, as paixões, a religião. Com isso se dá a atitude original do pensamento sofístico, que não crê, mas investiga e critica e, desse modo, constrói o conceito da produtividade do espírito, que se torna consciente de que ele só pode colher o fruto de todas as coisas em plena liberdade”.

As diferentes correntes da sofística

Para concluir, devemos esclarecer um último ponto. Não existe um sistema sofístico ou uma doutrina sofística; é impossível reduzir o pensamento dos vários sofistas a proposições comuns. Mas também não é verdade que as doutrinas dos sofistas individuais constituam unidades incomensuráveis entre si. É verdade, ao invés, como disse bem um estudioso francês, que “[...] a sofística do século V represen ta um complexo de esforços independentes para satisfazer, com meios análogos, necessidades idênticas"'11, e, nós acrescentamos, impli­cando uma série de problemas idênticos. Veremos amplamente quais são essas necessidades: são as da sociedade do século V a.e.c., que evoluía para a democracia; os temas e os problemas idênticos, já os caracterizamos amplamente: concernem ao homem, à sua areté, à tábua dos valores morais; em poucas palavras, são os temas e pro­blemas ético-políticos.

Devemos agora ver os vários esforços independentes realizados pelos sofistas individualmente e examinar os métodos análogos por eles empregados. Mas antes de proceder a este exame, é preciso ainda dizer que, para poder entender e avaliar corretamente os sofistas, é [32] preciso distinguir entre sofistas e sofistas, sem fazer de qualquer vara um feixe. A sofística, com efeito, sofreu uma evolução, antes, uma involução muito marcada, e entre os mestres da primeira geração e os discípulos da segunda geração existe uma diferença notável, como em parte o próprio Platão já observara. É preciso, portanto, distinguir pelo menos três grupos de sofistas: 1) os grandes e famosos mestres da primeira geração, de modo algum privados de discrição moral e, antes, como Platão reconhece, substancialmente dignos de respeito; 2) os “cristas”, isto é, aqueles que, explorando o método sofístico e exaltando o seu aspecto formal sem qualquer interesse pelos conteú­dos e sem a discrição moral dos mestres, transformaram a dialética sofística numa estéril arte de contendas através de discursos, e numa verdadeira arte da logomaquia; 3) enfim os “políticos sofistas”, ho­mens políticos e aspirantes ao poder político, que, desprovidos de qualquer discrição moral, usaram ou, melhor, abusaram de certos princípios sofísticos para teorizar um verdadeiro imoralismo, que desembocou no desprezo da “assim chamada justiça”, de toda lei constituída, de todo princípio moral: mas estes, mais que o espírito autêntico da sofística, representam a excrescência patológica da pró­pria sofística. [33]

Filosofia - Filosofia Clássica
Ética - Moral, 
10/31/2021 4:07:13 PM | Por Giovanni Reale
Gênese e natureza do problema moral

A filosofia, que com Tales nasceu como tentativa de compreen­são racional do cosmo, ou seja, como tentativa de encontrar o “prin­cípio” que explica o todo, permaneceu ancorada nesta perspectiva por todo o século VI e parte do século V a.e.c. Ela tratou constantemente do cosmo e do ser encarado exclusiva ou prioritariamente como cos­mo. Desse modo ela descuidou ou, pelo menos, deixou na sombra o ser do homem, e não se preocupou com a compreensão racional da natureza específica do homem; em conseqüência, não soube nem pôde compreender cientificamente a areté, ou seja, a excelência do homem, nem soube justificar filosoficamente as leis, as regras e as prescrições às quais o homem tenta conformar-se no seu agir.

Naturalmente, também o homem faz parte do cosmo, e a physis, buscada de Tales em diante, ao explicar todas as coisas, também explicava, em certo sentido, o homem; mas — e este é o ponto sobre o qual deve-se prestar atenção — explicava-o só como coisa ao lado das outras coisas, ou seja, como objeto e não como sujeito. De fato, no âmbito da filosofia da physis, não se atribuía ao homem lugar privilegiado, ou melhor, não se compreendia nem se justificava este lugar privilegiado.

Por mais que isso possa parecer estranho ao homem moderno, que realizou um itinerário muito longo na compreensão do sujeito humano, ao invés, resulta bem compreensível e quase óbvio, se nos reportarmos à situação do pensamento humano nas suas origens. Como bem o notaram os historiadores da filosofia, a condição que permite a algo tornar-se ou poder se tornar objeto de reflexão sistemática é que ele constitua ou, pelo menos, apareça como uma unidade orgâ­nica e não como uma multiplicidade desagregada ou sem visíveis conexões. Ora, enquanto o mundo e os procedimentos cósmicos já aparecem à imediata representação sensorial como uma unidade orgâ­nica, os homens e os procedimentos humanos aparecem, ao invés, em forma totalmente diferente: aparecem, precisamente, como uma mul­tiplicidade na qual não se vêem claros nexos e na qual, pelo contrário, parecem prevalecer cisões e separações. [11]

Escreve Zeller numa página exemplar:

“O mundo exterior já se apresenta à percepção sensível como um todo, ou seja, um edifício cujo solo é a terra e cujo teto é a abóbada celeste; no mundo moral, ao invés, o olhar não acurado vê em princípio só um formigueiro de indivíduos ou de pequenos grupos, que se movem arbitrariamente e de maneira confusa. Lá as grandes relações do edifício do mundo, as vastas ações dos corpos celestes, as alternadas fases da terra e o fluxo das estações e, em geral, os fenômenos universais que regularmente se renovam, são os que acima de tudo chamam a atenção; aqui, as ações ou questões pessoais. Lá a fantasia encontra-se incitada a integrar com a poesia cosmológica as lacunas do conhecimento natural; aqui o intelecto encontra-se estimulado a estabelecer as regras da conduta prática para os casos particulares. Enquanto, portanto, a reflexão cosmológica desde o início dirige-se ao todo, e esforça-se por tornar concebível a sua origem, a reflexão ética, ao invés, pára nas observações particulares e nas regras de vida: o fundamento disso está, certamente, numa concepção homogênea das relações mo­rais, mas não expressamente ou conscientemente reconduzidas a prin­cípios universais; e só na forma indeterminada e imaginosa das repre­sentações religiosas ligam-se a considerações gerais sobre a sorte dos homens, o destino das almas no além e o divino governo do mundo”1.

É claro, portanto, por que se formou antes uma cosmogonia e uma cosmologia filosófica e só posteriormente uma reflexão ética e, por último, uma filosofia moral. E é também claro por que a cosmo­gonia devia favorecer as origens da cosmologia filosófica muito mais eficazmente do que podia fazê-lo a reflexão ética pré-filosófica com relação à filosofia moral. Portanto, não é um fato anômalo que a filosofia moral só se tenha constituído cerca de um século e meio depois do nascimento da filosofia (da filosofia da physis). [12]

Distinções terminológicas e conceituais essenciais à compreensão do problema ético

O antecedente da cosmologia filosófica, sabemos, foram as teogonias, obra de poetas. Assim também o antecedente da filosofia moral, vale dizer, a reflexão ética pré-filosófica, foi expressa sobre­tudo pelos poetas e, em parte, alimentada também pelos legisladores.

Mas para poder examinar, embora brevemente, as características da reflexão moral pré-filosófica e para compreender a fundo a dife­rença que a distingue da filosofia moral e o sentido e alcance da influência daquela sobre esta, é necessário que procedamos a algumas distinções terminológicas, da máxima importância:

  1. uma coisa é a moralidade ou conduta moral;
  2. outra são as convicções morais que os homens expressamente professam;
  3. outra ainda é a filosofia moral.
  • Moralidade ou conduta moral, todos os homens a possuem indistintamente, mesmo os primitivos e os selvagens. De fato, não é possível viver sem se comportar de determinados modos, que, por mais rudes ou primitivos que sejam, subsistem e são bem reconhecí­veis.
  • Também as convicções morais são uma herança espiritual de todos os homens. Estas se constituem, em primeiro lugar, do núcleo familiar, depois dos ambientes freqüentados e, em geral, da sociedade em que se vive. Mesmo o homem primitivo possui convicções mo­rais, embora muito rudes e informes, à medida que tem de respeitar e sabe que deve respeitar regras de convivência com a família e com a tribo, modos de se comportar com o inimigo etc. E à medida que se civiliza e apura a própria civilização, o homem determina e acresce progressivamente o patrimônio destas convicções, explicita-o e dá-lhe forma de máximas e de preceitos, canta-o, exalta-o, propõe-no diante de todos.
  • Ora, enquanto no nível da pura conduta moral a razão pode mesmo não intervir (ou intervém em grau mínimo), uma vez que pode bastar a imitação instintiva, a mimese de exemplos ou de [13] para­digmas de vida intuitivamente colhidos, é claro que na reflexão moral entra a razão. Não se podem explicitar, determinar e exprimir regras de vida senão, justamente, comparando, sopesando, discriminando e, portanto, raciocinando. Mas — e este é o ponto ao qual queremos chegar — este tipo de reflexão e de razão permanece pré-filosófico, porque voltado para o particular, permanecendo ancorado e disperso nele, sem elevar-se a princípios universais.
  • E com isso já se esclarece a essência da filosofia moral. No nível da filosofia moral, a razão vai além do particular, busca estabe­lecer não regras que valham para casos particulares, mas, em geral, busca estabelecer nexos e ligações universais e necessários. O móvel da filosofia moral é dado, naturalmente, pelas convicções morais correntes, assim como o móvel da filosofia do cosmo é dado por aquilo que nos é fornecido pelos sentidos e pela experiência; mas logo esta submete tais convicções ao crivo crítico, perguntando-se se são verdadeiras ou falsas, vale dizer, se são fundadas ou infundadas e, portanto, se justificáveis ou injustificáveis. E como a filosofia do cosmo se constitui remetendo os vários fenômenos ao primeiro prin­cípio e mostrando os nexos que eles têm com o princípio, assim a filosofia moral se constitui remetendo as normas de vida do homem a um princípio.

Que princípio?

Quem nos seguiu até aqui já terá compreendido que esse princí­pio não poderá ser dado senão pela natureza ou essência do homem. Por isso a condição para que surgisse uma filosofia moral era que fosse previamente determinada de modo orgânico e preciso a essência ou natureza do homem, a fim de que essa essência se diferenciasse e mostrasse em que se diferencia da essência de todos os outros seres. Só sobre esta base seria possível estabelecer em que consiste a tão falada areté humana, ou seja, a excelência, que é o que permite rea­lizar plenamente a natureza humana, o que faz o homem ser plena e perfeitamente homem (não se pode, com efeito, saber que é que rea­liza perfeitamente uma natureza, se não se sabe, antes de tudo, em que consiste essa natureza). E somente sobre estas bases, vale dizer, em conexão com a essência do homem e a partir da sua verdadeira areté, seria possível estabelecer em que consistem os autênticos va­lores (o bem, o justo, o belo, o santo etc.). [14]

A reflexão moral anterior ao surgimento da filosofia moral

Mas, antes do surgimento da filosofia moral, como se desenvol­veram as convicções morais dos gregos, e a que ponto chegou a reflexão moral?
Lugar relevante na formação das convicções morais e no desencadeamento de reflexões éticas tiveram, em primeiro lugar, os poemas homéricos; porém, mais pelos paradigmas e tipos humanos que eles representam do que pelas sentenças e máximas postas na boca dos personagens.
Com efeito, personagens como Aquiles, Heitor, Ulisses, Agamenon, Ajax, Nestor, Helena, Andrômaca, Penélope, Nausica e tantos outros que encontramos na Ilíada e na Odisséia, são esculpidos com tal plasticidade e eficácia, e respondem tão bem às exigências do espírito arcaico, que não é de admirar que se tenham tornado e per­manecido por longo tempo verdadeiros paradigmas e modelos de vida, verdadeiros universais fantásticos, para usar termos fora de moda.

Na Odisséia, ademais, parece que já se delineia, embora de modo rudimentar, uma concepção ética mais geral, segundo a qual o ho­mem reverente e obediente aos deuses tem sempre vantagem sobre os homens prepotentes e maus, os quais não podem fugir à vingança divina.

Contudo, é certo que, cantando ou ouvindo cantar a Homero, o grego ficará sempre fortemente impressionado pelo heroísmo de Aquiles, pela sabedoria de Nestor, pela engenhosidade e a audácia de Ulisses, pela fidelidade de Penélope, e assim por diante; e se pergun­tará até mesmo qual dos heróis é o melhor e, assim, porá problemas éticos e apurará progressivamente sua própria consciência moral.

Notável passo na direção da reflexão moral dá-se com Hesíodo, não só e não tanto porque o seu poema Os trabalhos e os dias acres­centa ao ideal da vida heróica da Ilíada o ideal da vida camponesa, elevando à mais alta dignidade moral o humilde sacrifício de cada dia, a cotidiana fadiga sem prêmio, o trabalho como tal; mas sobre­ tudo porque o poema contém preceitos, máximas e sentenças.

A concepção ético-religiosa da vida delineia-se de maneira nítida em Hesíodo. Os males dos quais os homens sofrem são a punição [15] infligida pelos deuses por causa da arrogância dos próprios homens. O duro trabalho vincula-se a culpas humanas, mas é a única via que resta ao homem para viver; quem não trabalha deve recorrer à injustiça, a qual reclama a expiação, a punição.

Hesíodo exorta a seguir a via da virtude, embora dura e difícil; recomenda parcimônia, moderação, prudência e benevolência. Mas, por elevados que sejam tais conceitos, em Hesíodo permanecem con­fiados a sentenças ou a reflexões de caráter intuitivo e, portanto, não justificadas ou, no máximo, só miticamente motivadas.

Um ulterior refinamento à reflexão ética trazem os poetas do século VII e, sobretudo, os poetas gnômicos do século VI a.e.c, tais como Sólon, Focílides e Teôgnis. Das sentenças destes poetas emer­ge, já bastante claramente, a norma da justa medida, do estado médio e da medida média como fundamento da vida sensata e da felicidade. Veremos esta norma dominar a ética de Platão, de Aristóteles e as éticas filosólicas pós-aristotélicas: mas — e esta é uma observação que deve ser levada em conta — enquanto pelos poetas ela é apenas colhida e afirmada intuitivamente, pelos filósofos será, ao invés, fun­dada e justificada conceitualmente.

Enfim, devem-se recordar os assim chamados sete sábios (cujo elenco, como é sabido, é dado por várias fontes de diferentes modos), entre os quais se relaciona o próprio Tales.

Sobre estes sele sábios pode-se dizer bem pouco de historica­mente seguro; das sentenças que lhes são atribuídas, algumas, certa­mente.. não são autênticas e, além disso, é difícil estabelecer com exatidão quais das autênticas pertencem a um ou a outro dos sábios. Em todo caso, os sete sábios assinalam o momento em que emerqe ao primeiro plano o interesse moral anterior ao surgimento da filo­sofia. Platão dá o seguinte elenco: Tales, Pítaco, Bias, Sólon, Cleóbulo, Míson, Quílon. Estobeu, seguindo Demétrio Falero, em lugar de Míson põe o nome de Periandro, e fornece-nos a mais rica coleção de sentenças atribuídas a esses sábios. Posto que essas sen­tenças nos dão o mapa da sabedoria moral dos gregos antes do [16] surgimento da filosofia moral, seja no seu aspecto positivo, seja no seu aspecto negativo, é oportuno lê-las todas.

1. Cleóbulo líndio, filho de Evágoro, disse:

  • Ótima é a medida.
  • Deve-se respeitar o pai.
  • Está bem no corpo e na alma.
  • Sê ávido de escutar e não de tagarelar.
  • Sabe muito em vez de ser ignorante.
  • Tem uma língua que não blasfema.
  • Amigo da virtude e inimigo da maldade.
  • Odeia a injustiça, salvaguarda a piedade.
  • Acon­selha o melhor aos cidadãos.
  • Domina o prazer.
  • Não faças nada com violência.
  • Educa os filhos.
  • Reza à sorte.
  • Compõe as inimizades.
  • Considera inimigo quem é contra o povo.
  • Não discutas com a mulher e não excedas em afeto na presença de estranhos: a primeira é demonstração de estultície, a segunda de insânia.
  • Não punas os servos sob efeito do vinho: caso contrário parecerás embriagado.
  • Toma mulher entre os teus iguais: se a tomares dentre os que são mais do que tu, terás senhores, não parentes.
  • Não rias de quem é desprezado: serás, com efeito, odioso aos que são desprezados.
  • Não te ensoberbeças quando as coisas são favo­ráveis e não te abatas quando há dificuldades.]

2. Sólon ateniense, filho de Execéstide, disse:

  • Nada em demasia.
  • Não te assentes como juiz, caso contrário serás mal visto pelo acusado.
  • Foge do prazer, que gera aflição.
  • Conserva a probidade do caráter, mais digna de fé que o juramento.
  • Sela os discursos com o silêncio e o silêncio com a oportunidade.
  • Não mintas, sê verda­deiro.
  • Ocupa-te de coisas honestas.
  • Não digas coisas mais justas que os pais.
  • Não faças amizades apressadamente e não interrompas intempestivamente as que fizeste.
  • Aprendendo a obedecer, aprenderás a mandar.
  • Se consideras justo que os outros prestem contas, submete-te também tu.
  • Não aconselhes aos cidadãos as coisas mais prazerosas, mas as melhores.
  • Não te vanglories.
  • Não te deixes acompanhar pelos maus.
  • Mantém relações com os deuses.
  • Venera os amigos.
  • O que não sabes, não o digas.
  • Sabendo, cala.
  • Sê benévolo com os teus.
  • Dá testemunho das coisas invisíveis com as visíveis. [17]

3. Quílon espartano, filho de Damageto, disse:

  • Conhece-te a ti mesmo.
  • Não tagareles muito quando beberes: acaba­rás dizendo bobagens.
  • Não ameaces homens livres: não é justo.
  • Não fales mal de teu próximo: caso contrário, escutarás coisas que te molestarão.
  • Aos banquetes dos amigos vai sem pressa, às suas desgraças, rapidamente.
  • Faze núpcias modestas.
  • Chama o morto de bem-aventurado.
  • Venera quem é mais velho.
  • Odeia quem se intromete nas coisas alheias.
  • Escolhe a perda mais que o ganho torpe: pela primeira te lamentarás uma só vez, pelo segundo, toda a vida.
  • Não rias do desgraçado.
  • Mesmo sendo violento, mostra-te tranqüilo, para que experimentem antes respeito que temor.
  • Governa a tua casa.
  • Não corra a tua língua antes do pensamento.
  • Domina o impulso.
  • Não desejes o impossível.
  • Não te apresses em ir adiante pela estrada.
  • Não agites a mão: é gesto de loucos.
  • Obedece às leis.
  • Se sofreste injustiça, reconcilia-te, se sofreste insolência, vinga-te.

4. Tales milesiano, filho de Exâmio, disse:

  • Fiança traz desgraça.
  • Recorda-te dos amigos presentes e ausentes.
  • Não embelezes a tua aparência, mas sê belo no que fazes.
  • Não enri­queças de modo desonesto.
  • O teu discurso não te torne odioso aos que te são próximos confiadamente.
  • Não hesites em comprazer os pais.
  • Não acolhas do pai o que não vale nada.
  • Os benefícios que proporciona­res aos pais, receberás na velhice dos filhos.
  • É difícil conhecer-se a si mesmo.
  • O que há de mais agradável é obter o que se deseja.
  • Má é a inação.
  • Danosa é a intemperança.
  • Grave é a falta de educação.
  • Aprende e conserva o que é melhor.
  • Não sejas inativo, nem mesmo se enriqueceres.
  • Esconde os males em casa.
  • Sê invejado mais que comiserado.
  • Usa de medida.
  • Não acredites em tudo.
  • Para come­çar embeleza-te a ti mesmo.

5. Pítaco de Lesbos, filho de Irra, disse:

  • Conhece o que é oportuno.
  • Não digas o que estás para fazer: se falhas suscitarás o riso.
  • Trata com pessoas convenientes.
  • O que atribuis ao pró­ximo, não deves fazê-lo.
  • Não repreendas quem é ocioso: para estes existe a vingança dos deuses.
  • Restitui o depósito.
  • Suporta ser um pouco prejudi­cado pelos próximos.
  • Não fales mal do amigo, nem bem do inimigo: tal coisa [18] não é razoável.
  • É terrível conhecer o que acontecerá, mas conhecer o que aconteceu dá segurança.
  • Digna de confiança é a terra, não confiável é o mar.
  • O ganho não sacia.
  • Possui as coisas próprias.
  • Cultiva a piedade, a educação, a sabedoria, a prudência, a verdade, a confiança, a experiência, a habilidade, a amizade, a solicitude, o cuidado da casa, a arte.

6. Bias de Priene, filho de Teutamo, disse:

  • A maioria dos homens é má.
  • É necessário que te olhes no espelho e que, se pareces belo, faças coisas belas; se, ao invés, pareces feio, que corrijas com probidade as deficiências da natureza.
  • Com calma põe-te à obra, mas persevera no que começaste.
  • Odeia o fácil falar, para não errar: segue-se depois o arrependimento.
  • Não sejas tolo nem mau.
  • Não aceites a insensatez.
  • Ama a sabedoria.
  • Sobre os deuses, dize que existem.
  • Pensa no que fizeste.
  • Escuta muito.
  • Fala oportunamente.
  • Se és pobre não condenes os ricos, a menos que tenhas com isso grandes vantagens.
  • Não louves o homem indigno pela sua riqueza.
  • Obtém com a persuasão, não com a violência.
  • Atribui aos deuses, não a ti mesmo, o que fazes de bom.
  • Na juventude tem prosperidade; na velhice, sabedoria.
  • Com aplicação terás memória; com oportunidade, precaução; com caráter, nobreza de alma; com fadiga, temperança; com temor, piedade; com riqueza, amizade; com discurso, persuasão; com silêncio, compostura; com fama, hegemonia.

7. Periandro coríntio, filho de Sipselo, disse:

  • Ocupa-te de todos.
  • Bela é a tranqüilidade.
  • Perigosa é a temeridade.
  • Torpe é o ganho.
  • A democracia é melhor que a tirania.
  • Os prazeres são mortais, as virtudes imortais.
  • Se tens sucesso, sê comedido, se tens insucesso, sê sábio.
  • É melhor morrer respeitado que conti­nuar vivendo na necessidade.
  • Prepara-te para ser digno dos pais.
  • Sê louvado enquanto vivo e considerado bem-aventurado depois de morte.
  • Sê o mesmo com os amigos, na boa e na má sorte.
  • Mantém o que voluntariamente aceitaste, grave é transgredir.
  • Não divulgues discursos secretos.
  • Reprova de modo a te tornares logo amigo.
  • Serve-te de leis antigas, mas também de alimentos frescos.
  • Não punas só os que erram, mas também os que estão para errar.
  • Esconde as desgraças, para não dar alegria aos inimigos. [19]

Dizíamos que estas sentenças são verdadeiramente exemplares ao mostrar as características e os limites da reflexão moral pré-filosófica: são fruto de longa experiência e reflexão, mas desligadas umas das outras, não são sustentadas por um princípio, não são motivadas e, portanto, não são justificadas. Estão aquém da filosofia.

E o fato de Tales ser contado entre os sete sábios é particular­mente significativo: ele fundou a filosofia (como cosmologia), mas não a filosofia moral, e as razões disso já conhecemos agora muito bem. Por outra parte, não só Tales, mas todos os filósofos pré-socráticos, como moralistas não foram além do plano da sentença intuitivamente apreendida e expressa, justamente porque indagavam o princípio do cosmo, não a natureza do homem enquanto tal. E aqueles filósofos que, como os pitagóricos e Empédocles, foram, em certa medida, além desse tipo de sabedoria moral, puderam fazer isso com base na visão do homem e da vida que extraíram da fé órfica, e não da sua doutrina da physis, ficando depois prisioneiros das aporias acima examinadas.

Portanto, para que nascesse a filosofia moral era preciso que o homem como tal se tornasse objeto de reflexão da filosofia; era preciso que fossem determinados a essência e o significado do ho­mem enquanto homem; era preciso que desta essência se deduzisse o conceito de areté; enfim, era preciso que se provasse sistematica­mente a tábua dos valores tradicionais e se acertasse teoricamente a sua consistência.

E esta foi a grande obra que os sofistas iniciaram e que Sócrates levou a termo, como veremos. [20]

Filosofia - Filosofia Clássica
Metafísica - Teologia, Alma
10/26/2021 4:02:01 PM | Por Giovanni Reale
O orfismo e a novidade da sua mensagem

Os estudos modernos sobre o orfismo chegaram a conclusões muito contrastantes entre si: a uma tendência que, com muita segurança, pen­sava poder reconstruir o fenômeno do orfismo nas suas várias dimen­sões e, até mesmo, explicar com o próprio orfismo não só grande parte da vida espiritual grega, mas também grande parte do pensamento filo­sófico (e que, conseqüentemente, foi justamente chamada de “panórfica”), se contrapôs uma tendência no sentido contrário e decidida­mente hipercrítica, a qual não só sistematicamente pôs em dúvida o fundamento de uma série de convicções comumente aceitas sobre o orfismo, mas reduziu radicalmente as suas influências até quase anulá-las, chegando a sustentar que certas teses consideradas tipicamente órficas devem, ao invés, ser consideradas invenções dos filósofos, em primeiro lugar de Pitágoras e, depois, de Empédocles e de Platão. Entre estas duas tendências extremas, a crítica busca hoje um justo equilíbrio, ten­tando evitar não só asserções que não sejam suficientemente críticas, mas também as hipercríticas e céticas em excesso.

Na verdade, trata-se de um equilíbrio bem difícil de alcançar, dado o estado verdadeiramente problemático da literatura órfica que nos chegou. Antes de tudo, deve-se observar que as obras integrais que nos foram transmitidas como órficas são falsificações de época muito tardia, situando-se provavelmente na época dos neoplatônicos e, por­tanto, cerca de um milênio posteriores ao orfismo original. Estas obras [175] são: 1) 87 hinos (precedidos de um poema) num complexo de 1.133 versos dedicados a várias divindades e distribuídos segundo uma ordem conceituai precisa, 2) um poema com o título Argonautas, composto de 1.376 hexâmetros épicos, 3) um pequeno poema de 774 versos, também em hexâmetros épicos, intitulado Líticos. Nos Hinos estão contidos, além de idéias órficas, teses extraídas do Pórtico e até mesmo de Fílon de Alexandria; nos Argonautas (dedicado à mítica viagem dos famosos heróis) as teses órficas são muito limitadas, enquanto nos Líticos (que tratam das virtudes mágicas das pedras), de órfico não há quase nada. É evidente, portanto, que tais obras só servem para compreender as posições de alguns epígonos do orfismo.
Para reconstruir as posições do orfismo primitivo, nosso interes­se aqui, possuímos apenas testemunhos e fragmentos. Otto Kem, na sua coletânea de 1921, que permanece até hoje canônica, apresenta 262 testemunhos indiretos e 363 fragmentos, para um montante de mais de 600 versos. Mas também o valor deste material é muito heterogêneo. De fato, entre os testemunhos, só um pertence ao sécu­lo VI, poucos são do século V e IV a.e.c., enquanto a maior parte pertence à tardia antigüidade. Quanto aos fragmentos, a sua genui­nidade e antigüidade são muito dificilmente acertáveis, dado que nos foram transmitidos, na maioria dos casos, por autores pertencentes ao período tardo-antigo. [176]

A perplexidade dos estudiosos tem, pois, sérios fundamentos e é, indubitavelmente, correto usar de grande cautela crítica: todavia, o ceticismo em excesso não parece justificado.

Deve-se observar que já o poeta Ibico, no século VI a.e.c., fala de “Orfeu de nome famoso”, atestanto assim a grande notoriedade da personagem naquela época, o que só se explica supondo a existência e a difusão do movimento religioso que a ele se remetia. Eurípides e Platão atestam que na sua época corria um grande número de escri­tos sob o nome de Orfeu, referentes aos ritos e purificações órficas. De ritos e iniciações órficas nos falam Heródoto e Aristófanes. Mas talvez o mais interessante de todos os testemunhos é o de Aristóteles, segundo o qual Onomácrito pôs em versos doutrinas atribuídas a Orfeu. Ora, dado que Onomácrito viveu no século VI a.e.c., temos um ponto de referência seguro: no século VI a.e.c. se compunham segu­ramente escritos em versos sob o nome do mítico poeta e, portanto, existia um movimento espiritual que reconhecia em Orfeu o seu pa­trono e inspirador.

Mais difícil se apresenta a situação no que concerne à doutrina, dado que, de um lado, certas crenças que, como veremos, só podem ser órficas, nem sempre são qualificadas como tais pelas nossas fon­tes, e, de outro lado, os fragmentos diretos muito amiúde não são datáveis. Todavia, como veremos, considerando alguns testemunhos paralelos, pode-se chegar a uma elevada probabilidade de atribuir aos órficos certas doutrinas. Os numerosos versos órficos pertencentes à assim chamada teogonia rapsódica (Discursos sacros em vinte e qua­tro rapsódias), primeiro considerados genuínos, depois considerados falsificações de época tardo-antiga, são hoje reconsiderados sob nova luz: o autor da teogonia rapsódica parece ter utilizado um material antigo, sistematizando-o e completando-o. Mas um fato particularmente­ [177] importante demonstrou recentemente que a hipercrítica não se sustenta: um fragmento de teogonia, típica expressão do sentimento “panteísta” órfico, reportado no Tratado sobre o cosmo por Alexan­dre, atribuído a Aristóteles, considerado como composição da época helenística, assim como o Tratado, resultou muito mais antigo, a partir da descoberta de um papiro de Derveni, ocorrida em 1962. O papiro, de fato, pertence à época socrática, mas, dado que o carme é submetido a um comentário, isso quer dizer que, naquela época, ele já gozava de autoridade e notoriedade consideráveis e, portanto, per­tencia a uma época ainda mais antiga.

Estas especificações eram indispensáveis para esclarecer a obje­tiva complexidade da situação, assim como a necessidade de fornecer uma abundante documentação mesmo num trabalho de síntese como é o nosso.

A novidade de fundo do orfismo

Nos documentos literários gregos que nos chegaram aparece pela primeira vez em Píndaro uma concepção da natureza e dos destinos do homem praticamente desconhecida aos gregos das épocas prece­dentes, e expressão de uma crença revolucionária sob muitos aspec­tos, a qual, justamente, foi considerada como elemento de um novo esquema de civilização. De fato, começa-se a falar da presença no homem de algo divino e não mortal, que provém dos deuses e habita no próprio corpo, de natureza antitética à do corpo, de modo que este algo só é ele mesmo quando o corpo dorme ou quando se prepara para morrer e, portanto, quando enfraquecem os vínculos com ele, deixando-o em liberdade.

Eis o célebre fragmento de Píndaro:

O corpo de todos obedece à poderosa morte, em seguida permanece ainda viva uma imagem da vida, pois só esta vem dos deuses: ela dorme enquanto os membros agem, mas em muitos sonhos [178] mostra aos que dormem o que é furtivamente destinado de prazer e de sofrimento1.

Os estudiosos há tempo observaram que esta concepção tem paralelos exatos, mesmo terminológicos, além de conceituais, por exemplo em Xenofonte, no final da Ciropédia, e num fragmento que nos chegou da obra exotérica de Aristóteles, Sobre a filosofia.

Eis a passagem de Xenofonte:

Quanto a mim, filhinhos, jamais consegui persuadir-me disso: que a alma, enquanto se encontra num corpo mortal, viva; quando se libertou dele, morra. Vejo, com efeito, que a alma torna vivos os corpos mortais por todo o tempo em que neles reside. E tampouco jamais me persuadi de que a alma seja insensível, uma vez separada do corpo, o qual é insensível. Antes, quan­do o espírito se separa do corpo, então, livre de toda mistura e puro, é logicamente mais sensível do que antes. Quando o corpo do homem se dis­solve, vemos as partes individuais juntarem-se aos elementos da sua própria natureza, mas não a alma: só ela, presente ou ausente, foge à vista. Observai em seguida — prosseguiu —, que nenhum dos estados humanos é mais próximo da morte que o sono: e a alma humana então, melhor do que nunca, revela com clareza a sua natureza divina, prevendo o futuro, sem dúvida porque então é quando se encontra mais livre2.

Eis o fragmento aristotélico:

Aristóteles diz que a noção dos deuses tem nos homens uma dupla origem, do que acontece na alma e dos fenômenos celestes. Mais precisamente do que acontece na alma em virtude da inspiração e do poder profético, próprios a ela, que se produzem no sono. Quando, de fato, diz ele, no sono a alma se recolhe em si mesma, então, assumindo a sua verdadeira e própria natureza, profetiza e vaticina o futuro. Assim também ela é quando, no momento da morte, separa-se do corpo. E assim ele aprova o poeta Homero por ter observado o seguinte: representou a Pátroclo que, no momento de ser morto, vaticinou a morte de Heitor, e Heitor vaticinou o fim de Aquiles. De fatos deste gênero, diz ele, os homens suspeitaram que existe algo divino, que é em si semelhante à alma e, mais do que todas as outras coisas, é objeto de ciência3.

O novo esquema de crenças consiste, pois, numa concepção dualista do homem, que contrapõe a alma imortal ao corpo mortal e [179] considera a primeira como o verdadeiro homem ou, melhor dizendo, o que no homem verdadeiramente conta e vale. Trata-se de uma concepção, como foi bem notado, que inseriu na civilização européia uma nova interpretação da existência humana.

Não parece dubitável que esta concepção seja de origem órfica. Com efeito, Platão refere uma concepção, ligada estreitamente a esta, expressamente aos órficos, como fica claro desta passagem do Crátilo:

De fato alguns dizem que o corpo é túmulo [sema] da alma, como se esta estivesse nele enterrada: e dado que, por outro lado, a alma exprime [semainei] com ele tudo o que exprime, também por isso foi chamado jus­tamente “sinal” [sema]. Todavia, parece-me que foram sobretudo os seguidores de Orfeu a estabelecer este nome, como se a alma expiasse as culpas que devia expiar, e tivesse em torno de si, para ser custodiada [sozetai], este recinto, semelhante a uma prisão. Tal cárcere, portanto, como diz o seu nome, é “custódia” [soma] da alma, enquanto esta não tenha pago todos os seus débitos, e não há nada a mudar, nem mesmo uma só letra4.

O conceito da divindade da alma resulta também central nas “lâminas áureas” encontradas em alguns túmulos, das quais se extrai que tal conceito constituía o fulcro da fé órfica.

Eis uma das lâminas encontradas em Turi:

Venho pura dos puros, ó rainha dos infernos,
Eucles e Eubuleu e vós, deuses imortais,
pois me orgulho de pertencer à vossa estirpe feliz;
mas a Moira me suplantou, e outros deuses imortais
... e o fulgor arrojado pelas estrelas.
Voei para fora do círculo que traz afano e opressora dor,
e subi com pés velozes para alcançar a desejada coroa, depois emergi no seio da Senhora, rainha das profundezas, e desci da desejada coroa com pés velozes,
“Feliz e bem-aventurado, serás deus e não mortal”. Cordeiro, caí no leite5.

Esta solene proclamação de que a alma pertence à estirpe dos deuses resulta ser também volta a ser tematizada em outras lâminas, e é expressa até com a mesma fórmula ou com uma fórmula de [180] significado totalmente análogo: “eu sou filha da terra e do céu cinti­lante”. Mas sobre isto voltaremos adiante.

Este novo esquema de crença, como dizíamos, estava destinado a revolucionar a antiga concepção da vida e da morte, como diz de modo paradigmático um célebre fragmento de Eurípides:

Quem sabe se o viver não é morrer e o morrer, viver?6

E Platão, no Górgias, partindo exatamente desta idéia, mostra toda a carga revolucionária da nova mensagem: ela postula uma nova concepção de toda a existência, e, em particular, postula uma morti­ficação do corpo e de tudo o que é próprio do corpo, e uma vida em função da alma e do que é a alma.

O orfismo e a crença na metempsicose

Já acenamos ao fato de que a opinião mais difundida dos estu­diosos é que, na Grécia, foram os órficos a difundir a crença na metempsicose. Já Zeller, embora resistindo muito a admitir que os mistérios tivessem uma incidência de relevo sobre a filosofia, escre­via: “[...] em todo caso, parece seguro que, entre os gregos, a doutrina da transmigração das almas não veio dos filósofos aos sacerdotes, mas dos sacerdotes aos filósofos”.

Todavia, como alguns estudiosos contestaram este ponto, vale a pela esclarecê-lo, porque entre as vozes de dissenso (que, contudo, não são muitas) elevou-se a autorizada voz de Wilamowitz-Moellendorf.

Nenhuma fonte antiga nos diz expressamente que foram os órficos a introduzir a crença na metempsicose; antes, algumas fontes tardias dizem até mesmo que foi Pitágoras. [181]

Todavia, deve-se observar o seguinte: a) Píndaro conhece esta crença e não se pode demonstrar que ele a tenha derivado dos pitagóricos e não dos órficos; b) as antigas fontes, ademais, quando falam da metempsicose, referem-na como doutrina revelada por “antigos teólogos”, “adivinhos” e “sacerdotes”, ou usam expressões com as quais comumente aludem aos órficos; c) numa passagem do Crátilo, Platão menciona expressamente os órficos, atribuindo-lhes a doutrina do corpo como lugar de expiação da culpa original da alma, que pressupõe estruturalmente a metempsicose, e também Aristóteles re­fere expressamente aos ófficos doutrinas que implicam a metempsicose; d) algumas fontes antigas fazem depender expressamente Pitágoras de Orfeu e não vice-versa.

Eis dois fragmentos de Píndaro, cujo teor é já por si eloqüente, enquanto não parece remeter ao pitagorismo:

E daqueles de quem Perséfones aceitará a punição
pelo antigo luto, no nono ano restitui novamente
as almas ao esplendor do sol, no alto; delas surgem
reis augustos e grandes homens, subitâneos por força e sabedoria:
e heróis sagrados são chamados pelos mortais do tempo vindouro.

... Sim, se quem possui a riqueza conhece o futuro,
se sabe que os ânimos violentos dos mortos daqui logo
pagaram a pena — enquanto sob a terra alguém julga
os erros neste reino de Zeus, declarando
a sentença com hostil necessidade;
mas gozando da luz do sol em noites
sempre iguais e em dias iguais, os nobres recebem
uma vida menos difícil, sem turbar a terra com o vigor
da sua mão, nem a água marinha,
por uma vazia subsistência; e, ao invés — junto aos favoritos dos deuses que gozaram da fidelidade aos juramentos —
eles percorrem um trecho de vida sem lágrimas,
enquanto os outros suportam uma prova que o olhar não suporta. E os que tiveram a coragem de permanecer por três vezes
em um e no outro mundo, e guardar totalmente a alma
de atos injustos, percorreram até o fim a estrada de Zeus [182] para a torre de Crono: lá as brisas oceânicas sopram ao redor da ilha dos bem-aventurados...7.

Já o pitagórico Filolau — e isto é muito indicativo — escrevia: Atestam também os antigos teólogos e adivinhos que a alma está unida ao corpo para pagar alguma pena; e nele como numa tumba está sepultada8.

Platão, no Ménon, ao reportar a primeira passagem de Píndaro acima lida, escreve:

[...] Dizem, de fato, que a alma do homem é imortal, e que às vezes chega a um fim — o que chamam morte — às vezes ressurge novamente, mas nunca é destruída: justamente por isso é preciso transcorrer a vida da maneira mais sensata possível |...9.

E noutras passagens ele usa expressões análogas e, em particular, a expressão “discurso antigo”, com a qual só se podem entender os discursos sagrados dos órficos.

Análogas conclusões devem ser tiradas do seguinte fragmento aristotélico do Protrético:

Considerando estes erros e estas tribulações da vida humana, parece às vezes que viram algo aqueles antigos, seja profetas, seja intérpretes dos desígnios divinos na narração das cerimônias sagradas e das iniciações, os quais disseram que nascemos para pagar o preço de algum delito cometido numa vida anterior, e parece verdade o que se encontra em Aristóteles, ou seja, que sofremos um suplício semelhante ao que sofreram aqueles que em outros tempos, quando caíam nas mãos dos piratas etruscos, eram mortos com uma crueldade refinada: os corpos vivos eram atados aos mortos com a máxima precisão, adaptando a parte posterior de um vivo à parte posterior de um morto. E como aqueles vivos eram conjugados com os mortos, assim as nossas almas estão estreitamente ligadas aos corpos10.

Já lemos acima a passagem platônica do Crátilo, na qual os órficos são mencionados expressamente. Mas não menos interessante é a seguinte passagem aristotélica, tirada do tratado Sobre a alma, onde claramente se diz que os órficos admitiam uma preexistência da alma: [183]

A tal erro confronta-se também o discurso que se encontra na assim cha­mada poesia órfica: esta diz, com efeito, que a alma, levada pelos ventos, do universo penetra nos seres quando respiram, e não é possível que isto ocorra com as plantas, e nem mesmo com certos animais, enquanto nem todos os animais respiram: mas isto escapou àqueles que têm tais convicções11.

Depois, o fato de antigas fontes afirmarem que Pitágoras pôs em versos certas doutrinas, atribuindo-as a Orfeu, se não pode ser considerado literalmente, testemunha, todavia, qual era a mais antiga convicção sobre as relações entre os dois personagens.

A metempsicose tem, fundamentalmente, um significado moral, o qual é muito bem destacado já por Platão, além das páginas do Fédon conhecidas por todos, em duas passagens das Leis que con­vém ler:

Isto seja dito como prelúdio ao tratamento desta matéria, e acrescente-se a isso a tradição, à qual, quando ouvem falar disso, muitos daqueles, que nas iniciações aos mistérios se interessam por estas coisas, prestam muita fé, ou seja, que no Hades se dá uma punição por tais erros, e que os seus autores, voltando novamente, devem necessariamente pagar a pena natural, isto é, aquela de padecer o que fizeram, terminando assim por mãos de outros a nova vida12.

Aquele mito, portanto, ou tradição, ou como quer que se o deva chamar, diz claramente, como nos foi transmitido por antigos sacerdotes, que a vigilante justiça, vingadora do sangue dos parentes, segue a lei há pouco referida; e, portanto, estabeleceu que quem comete um delito deste gênero, deve ne­cessariamente padecer o mesmo que fez: se mata o pai, deve suportar que o mesmo tratamento lhe seja um dia violentamente infligido por obra dos fi­lhos; e se a mãe, ele deve necessariamente renascer como mulher e, mais tarde, deixar a vida por obra dos filhos: pois não há outra expiação do sangue delituosamente derramado, nem a mácula pode ser lavada sem que a alma culpada tenha pagado o assassinato com o assassinato, o semelhante com o semelhante, e tenha aplacado a ira de toda a parentela13.

Entre os estudiosos modernos, Dodds esclareceu melhor do que todos o significado destas passagens, do seguinte modo: “O castigo [184] de além-túmulo [...] não conseguia explicar por que os deuses acei­tam a existência da dor humana e, em particular, a dor imerecida dos inocentes. A reencamação, ao invés, o explica: para esta não existem almas inocentes, todas pagam, em diversos graus, culpas de várias gerações, cometidas nas vidas anteriores. E toda esta soma de sofri­mentos, neste mundo e no outro, é só uma parte da longa educação da alma, que encontrará o seu último termo na libertação do ciclo dos renascimentos e no retorno da alma à sua origem divina. Só deste modo, e sob a medida do tempo cósmico, pode ser realizada comple­tamente, por cada alma, a justiça entendida no sentido arcaico, isto é, segundo a lei do ‘quem pecou pagará”’.

O fim último da alma segundo o orfismo

Se o corpo é prisão da alma, ou seja, lugar onde paga a pena de uma antiga culpa, e se a reencarnação é como a continuação desta pena, é claro que a alma deve libertar-se do corpo e, justamente, este é o seu fim último, o “prêmio” que lhe compete.

A literatura grega anterior ao século VI a.e.c. fala de castigos e prêmios no além, mas só em sentido muito restrito: trata-se, com efeito, de castigos por algumas culpas excepcionalmente graves e prêmios por méritos igualmente excepcionais; e, sobretudo, num e noutro caso, trata-se de destinos que tocam exclusivamente a alguns indivíduos, a pouquíssimos e, ademais, a indivíduos de épocas passa­das. Em Homero, aos homens do presente, como já foi observado, não cabe nem prêmio nem castigo.

A revolução do orfismo é, pois, evidente, e é errado supervalorizar os antecedentes dos quais falamos: de fato, segundo a nova concepção, a todos os homens, sem exceção, compete um prêmio ou uma pena, segundo o modo como tenham vivido. Assim aquilo que era a exceção torna-se a regra, aquilo que era o caso privilegiado torna-se o destino comum a todos.

Desta nova crença, Píndaro, mais uma vez, nos oferece a primei­ra expressão completa. Na segunda Ode olímpica fala explicitamente [185] de um além, no qual os maus são implacavelmente julgados pelos seus erros e, conseqüentemente, condenados, enquanto os bons são premiados:

Para estes refulge o poder do sol, enquanto aqui embaixo é noite;
junto à cidade está a sua sede, nos prados das rosas vermelhas,
de sombrias plantas de incenso [...] e é carregada
[de árvores] de frutos de ouro; e uns se alegram
com os cavalos e os exercícios do corpo, outros com os jogos de xadrez, outros com o som da lira, e entre eles prospera em plenitude
a abundância: um perfume amável se difunde sobre aquela terra, enquanto levam sempre ao fogo, que de longe se distingue ofertas de todas as espécies sobre os altares dos deuses.

Píndaro, na verdade, vivifica o além com a sua acesa fantasia, valendo-se das cores do aquém (como é sabido, os estudiosos consi­deram que esta não foi a pessoal crença do poeta, mas, antes, a da pessoa à qual a sua poesia era dirigida) e, sobretudo, não nos diz qual é o destino supremo das almas dos bons. Isto, ao invés, é dito com toda clareza nas lâminas órficas.

Na lâmina encontrada em Hipônio, diz-se que a alma purificada no além fará um longo caminho pelas vias que percorrem também os ou­tros iniciados e possuídos por Dionísio. Na lâmina encontrada em Petélia, diz-se que a alma reinará junto com outros heróis. Em uma das lâminas de Turi, diz-se que a alma purificada, assim como originariamente per­tencia à estirpe dos deuses, será Deus e não mortal. Enfim, em outra lâmina de Turi, diz-se que de homem ela se tornará Deus.

Eis o texto desta bela lâmina:

Mas, apenas a alma abandona a luz do sol
à direita ... encerrando, ela que conhece tudo junto.
Alegra-te, tu que sofreste a paixão: antes não havias ainda sofrido isto De homem te tornaste Deus: cordeiro caíste no leite.
Alegra-te, alegra-te, tomando o caminho à direita
para os prados sagrados e os bosques de Perséfone14.

“De homem, nascerás Deus, porque do divino derivas”: eis a mais revolucionária novidade do novo esquema de crenças, cujo [186] acolhimento estava destinado a transformar o mais antigo significado da vida e da morte.

A teogonia órfica, o mito de Dionísio e os Titãs e a gênese da culpa original que a alma deve expiar

Não é tarefa nossa aprofundar-nos neste ponto na reconstrução da teogonia órfica, pois só indiretamente interessa ao tema principal que estamos tratando. Tal reconstrução resulta, ademais, muito com­plexa e incerta, pois apresenta diferentes variantes. Recordemos que a antigüidade tardia distinguia três diferentes teogonias órficas: a) a referida a Eudemo, discípulo de Aristóteles, b) a assim chamada de Jerônimo e de Helânico e c) a dos Discursos sagrados em vinte e quatro rapsódias (a assim chamada teogonia rapsódica), da qual já falamos. Dos poucos acenos de Platão e Aristóteles, unidos ao que nos restou de Eudemo, extraem-se apenas poucos traços, totalmente insuficientes; da teogonia de Jerônimo e de Helânico possuímos um breve resumo transmitido por Damásio. Da teogonia rapsódica pos­suímos numerosos fragmentos, sobre os quais, porém, gravam as pesadas hipotecas sobre as quais falamos no início.

A idéia de fundo das teogonias órficas é, em grande parte, a mesma da teogonia de Hesíodo. Nela se explica em nível mitológico e, portanto, fantástico-poético, o que era no princípio de tudo, como nasceram progressivamente os vários deuses e se instauraram os seus vários reinos, e a geração de todo o universo.

Com relação à teogonia hesiodiana, todavia, duas parecem ser as diferenças, uma e outra de considerável importância.

Em primeiro lugar, aquela parece ser, embora sob a capa mítica, mais conceituai, como já notava Rohde: “Atendo-se claramente àque­la antiqüíssima teologia grega que se recolhera no poema hesiodiano, estas Teogonias órficas descreviam o devir e o desenvolvimento do [187] mundo, dos obscuros impulsos primitivos até a variedade bem deter­minada do cosmo ordenado à unidade; e o descreviam como a histó­ria de uma longa série de potências e figuras divinas que, desenvol­vendo-se uma de outra e uma superando a outra, revezam-se na obra de formar e governar o mundo e absorvem em si o Todo, para restituí-lo, depois, animado por um único espírito e Uno na sua infinita pluralidade. Certamente estes não são mais deuses do antigo tipo grego. Não só as divindades recriadas pela fantasia órfíca e subtraí­das, pela força do símbolo, à possibilidade de uma clara representa­ção sensível, mas também as figuras tiradas do Olimpo grego são aqui pouco menos que personificações de conceitos. Quem reconhe­ceria o Deus de Homero no Zeus órfico, o qual, absorvendo em si o deus que está em toda parte, e tendo ‘assumido a força de Eripeu, tornou-se por sua vez o Todo: ‘Zeus é o princípio, o meio é Zeus, em Zeus o Todo se cumpre’. Aqui o conceito alarga de tal modo a personalidade, que ameaça fazê-la explodir; ele tira os contornos às figuras individuais e, com sábia ‘mistura de deuses’, confunde-os entre si”.

Ora, o que dizia Rohde, ao nosso ver, adquire hoje importância ainda maior, pois o fragmento de teogonia ou, pelo menos, o carme em que Zeus é chamado de princípio, meio e fim, e no qual parece perder as suas aparências míticas para se tornar o Todo e o fundamen­to do Todo, resulta ser do século V a.e.c., como já recordamos.

Eis o fragmento:

Zeus nasceu primeiro, Zeus do fulgurante brilho é o último; Zeus é a cabeça, Zeus é o meio: por Zeus tudo se cumpre; Zeus é o fundo da terra e do céu brilhante;
Zeus nasceu varão, Zeus imortal foi menina;
Zeus é o sopro de todas as coisas, Zeus é o ímpeto do fogo imperecível. Zeus é a raiz do mar, Zeus é o sol e a lua;
Zeus é o rei, Zeus do fulgurante brilho é o dominador de todas as coisas: de fato, depois de ter escondido todos, novamente do coração sagrado trouxe-os à luz cheia de alegria, operando ruínas15.

Em segundo lugar, como sobretudo Guthrie observou, as teogonias órficas, diferentemente da hesiodiana, terminavam com o mito de [188] Dionísio e os Titãs (do qual logo falaremos) e com a explicação das origens dos homens, assim como do bem e do mal que neles existem. Por conseqüência, enquanto “uma [isto é, a teogonia hesiodiana] não poderia nunca se tornar uma doutrina de base para a vida espiritual, a outra [isto é, a teogonia órfica] podia constituir esta doutrina, e com efeito a constituía”.

Ora, a idéia de fundo da parte final da teogonia era a seguinte. Dionísio, filho de Zeus, foi triturado e devorado pelos Titãs, os quais, por punição, foram queimados e incinerados pelo próprio Zeus, e das suas cinzas nasceram os homens.

É evidente em que sentido e medida este mito pode constituir a base de uma ética. Ele explica a constante tendência ao bem e ao mal presente nos homens: a parte dionisíaca é a alma (e liga-se a ela a tendência ao bem), a parte titânica é o corpo (e liga-se a ela a tendên­cia ao mal). Daqui deriva a nova tarefa moral de libertar o elemento dionisíaco (a alma) do elemento titânico (o corpo). A reencarnação e o ciclo dos renascimentos são, portanto, a punição desta culpa, e estão destinados a continuar até que o homem se liberte da própria culpa.

Alguns estudiosos puseram em dúvida a antigüidade deste mito, não considerando suficiente o testemunho de Pausânias, que o relaci­ona a Onomácrito (portanto, ao século VI a.e.c.), e notando que a expressa conexão do elemento dionisíaco com a alma só se encontra nos neoplatônicos. Mas, ao contrário, foi observado que a natureza seguramente arcaica do mito, assim como alguns acenos de Platão (que não se podem explicar a não ser supondo que aludam a este mito) garantem a sua autenticidade.

O mistério do homem e o seu sentimento de ser um misto de divino e beluíno, com os opostos impulsos e as contrastantes tendências, eram assim explicados de modo verdadeiramente radical. Platão tirará inspi­ração desta intuição e, transpondo-a e fundando-a no plano metafísico, construirá a visão do homem “em duas dimensões”, da qual falaremos amplamente, que condicionou largamente o pensamento ocidental. [189]

As iniciações e as purificações órficas

Para concluir, devemos ainda acenar às práticas que os órficos uniam a estas crenças, e às quais atribuíam essencial importância.

Nessas práticas podemos distinguir dois momentos: o que impli­cava a participação em ritos e cerimônias e o que comportava a ade­são a um certo tipo de vida, cuja regra fundamental era abster-se de comer carne.

Nas cerimônias de iniciação, provavelmente, representava-se e imitava-se o assassinato e o dilaceramento de Dionísio pelos Titãs, realizavam-se ritos e pronunciavam-se fórmulas de caráter mágico.

A purificação da culpa, em suma, era em larga medida confiada ao elemento não racional ou, como dissemos, mágico.

Já Pitágoras e os pitagóricos, embora conservando ainda muitos elementos deste gênero, começaram a atribuir à música e, posterior­mente, à ciência o meio de purificação, como vimos acima. Mas a grande revolução foi operada, mais uma vez, por Platão, o qual, numa passagem exemplar do Fédon, teorizou, de maneira esplêndida, que a verdadeira força purificadora está na filosofia, e apresentou esta sua asserção como a verdade da antiga intuição órfica.

Eis a célebre passagem:

E certamente não foram tolos aqueles que instituíram os Mistérios: e na verdade já dos tempos antigos nos revelaram de maneira velada que aquele que chega ao Hades sem ter-se iniciado e sem ter-se purificado jazerá em meio à lama; ao invés, aquele que se iniciou e se purificou, chegando lá, habitará com os deuses. De fato, os intérpretes dos mistérios dizem que ‘os portadores de tirso são muitos, mas são poucos os Bacantes’. E estes, penso eu, não são senão aqueles que praticam retamente a filosofia16. [190]

Filosofia - Filosofia Clássica
Cartas e dilálogos - Moral, Virtude
10/20/2021 4:16:25 PM | Por Marcus Tullius Cicero
Lélio, ou a Amizade

1. Quinto Múcio Cévola, o áugure, costumava evocar seguidamente, através de anedotas pre­cisas saborosas, a lembrança de Caio Lélio, seu sogro, e não hesitava, toda vez que falavam dele, em qualificá-lo de sábio. De minha parte, eu fora colocado por meu pai na escola de Cévola, ao passar a usar a toga viril: sempre que me fosse possível e permitido, jamais deixava a sombra do velho. Minha memória registrava assim inúmeros debates por ele sabiamente conduzidos, inúmeras formulações concisas e oportunas, e esforçava-me por desenvolver meus conhecimentos ao contato de sua experiência. Após sua morte, relacionei-me com seu primo, o pontífice Cévola, uma figura de nossa cidade excepcional, ouso dizer, por seu talen­to e seu senso de justiça. Mas falarei dele noutra ocasião: voltemos ao áugure.

2. Com frequência o revejo em sua casa, sen­tado, como sempre, em sua sala de recepção, espe­cialmente uma vez em que lá me encontrava com um grupo de familiares: no decorrer da conversação havia surgido o caso que todos, ou quase todos, discutiam então. Certamente recordas, Ático - pois eras muito ligado a Públio Sulpício - , a época em que, tribuno da plebe, Públio se indispusera num ódio mortal com Quinto Pompeio, por ocasião de sua eleição consular: tendo sido os dois homens até aquele momento de sua vida indefectíveis aliados e amigos íntimos, que clima de espanto misturado de injúrias os envolvia!

3. Naquela oportunidade, Cévola, à guisa de comentário a esse triste caso, nos relatou uma série de reflexões de Lélio sobre a amizade, que este último emitira diante dele e de seu outro genro, Caio Fânio, filho de Marco, alguns dias após a morte de Cipião, o Africano. Guardei na memória, com nitidez, a substância dessa conversação, que exponho aqui, neste livro, à minha maneira: nele introduzi, de certo modo, os próprios interlocutores, para evitar a intervenção demasiado freqüente de “eu disse” ou “ele disse” e, ao mesmo tempo, para dar a impressão de os protagonistas conversarem diante de nós.

4. Várias vezes me incitaste a escrever algo sobre a amizade: o assunto me pareceu valer efetivamente a pena, para a edificação de todos
e em razão de nossa intimidade recíproca; assim apliquei-me de bom grado a servir toda a gente, dando-te essa satisfação. Em Catão, o Velho (Cato maior, De Senectuté), que trata da velhice em tua intenção, eu havia confiado a um Catão encanecido a argumentação, porque ninguém me parecia mais apto a falar dessa idade que um personagem cuja existência de velho fora tão longa e que. durante essa mesma velhice, se cobrira de honras mais do que ninguém. Desta vez, já que nossos pais nos ensinaram que a intimidade entre Caio Lélio e Públio Cipião foi a mais memorável que existiu, é a pessoa de Lélio que me pareceu adequada para desenvolver as idéias das quais precisamente Cévola se lembrava por tê-lo ouvido discorrer. De resto, esse gênero de exposição, posta sob a autoridade de homens do passado, e dos mais ilustres, não sei por que razão me parece ter mais peso. Assim, quando me releio, experimento às vezes a bizarra impressão de que é Catão, e não eu, quem fala.

5. Em suma, do mesmo modo que, na intenção de um velho, um outro velho dissertava sobre a velhice, neste livro é a um amigo que, como amigo atento, escrevi sobre a amizade. Catão então se expressava: era certamente o homem mais velho naquele tempo, e o mais avisado; agora é Lélio, igualmente sábio - pelo menos lhe foi dada essa reputação - e famoso pela glória que lhe valeu a amizade, quem falará da amizade. Gostaria que, por um momento, desviasses teu espírito de mim, que imaginasses ouvir discorrer o próprio Lélio. Caio Fânio e Quinto Múcio vêm ver seu sogro após a morte de Cipião, o Africano; são eles que iniciam a conversação, Lélio responde: toda a dissertação sobre a amizade é dele, e ao lê-la descobrirás a ti mesmo.

II

6. Fânio - É muito triste, Lélio. Jamais houve homem melhor que o Africano, nem mais ilustre... Deves saber que todos os olhares estão fixados agora sobre ti: não há outro, como tu, a quem chamem e a quem considerem realmente sábio. Há pouco atribuíam esse título a Marco Catão, e sabemos que Lúcio Acílio, no tempo de nossos pais, era também chamado sábio. Mas ambos por outras razões: Acílio, por sua sagacidade bem conhecida em direito civil; Catão, por sua experiência numa série de domínios: citavam-se suas participações no senado e no fórum, as mais diversas previsões clarividentes, atos firmemente assentados, respos­tas mordazes; em conseqüência, sábio já era quase um cognome que ele tinha em sua velhice.

7. Em troca, a teu respeito, as razões são outras: é por natureza e por temperamento, mas sobretudo por vontade e instrução que és sábio. E não na acepção vulgar, mas no sentido que as pessoas cultas dão correntemente ao qualificativo de “sábio”. Um título com o qual ninguém, em nosso conhecimento, foi agraciado na Grécia - os chamados “Sete Sábios”, com efeito, a julgar pelos mais finos especialistas no assunto, não figuram realmente no número dos sábios —, exceto um único homem, que vivia em Atenas: precisamente aquele que o oráculo de Delfos havia julgado “o mais sábio”. Concedem-te essa mesma sabedoria, ao te verem considerar tudo o que te concerne como dependendo de ti, e tudo o que acontece aos humanos como inferior à virtude.

Eis por que alguns me perguntam, a Cévola igualmente, creio, qual o segredo que te ajuda a suportar a morte do Africano, tanto mais que nas últimas Nonas, quando nos reunimos nos jardins do áugure Décimo Bruto, como de hábito, para ali meditarmos juntos, tu não vieste, tu que sempre respeitaste pontualmente aquela jornada e aquela obrigação.

8. Cévola - É verdade que muitos. Caio Lélio, fazem-me a mesma pergunta que a Fânio; respon­do-lhes. por tê-lo observado, que suportas com calma a dor infligida pela morte daquele que foi ao mesmo tempo um homem eminente e teu mais caro amigo; que não saberias ser indiferente, que isso não faz parte de tua sensibilidade; e que, se não compareceste à nossa reunião, no dia das Nonas, foi a meu ver por razão de saúde, e não de luto.

Lélio - Percebeste acertadamente, Cévola, e é verdade: o que me constrangeu a faltar àquela obri­gação, que sempre cumpri quando me achava bem de saúde, não foi o desgosto: nenhuma dificuldade desse gênero, em minha opinião, pode constranger um homem de caráter a ceder no cumprimento de seu dever.

9. Quanto a ti, Fânio, ao dizeres que me atribuem tantas qualidades, nas quais aliás não me reconheço e que de maneira nenhuma recla­mo, certamente te comportas como amigo; mas, parece-me, não fazes perfeitamente justiça a Catão. Com efeito, ou jamais houve sábio, o que eu acreditaria mais naturalmente, ou, se houve algum, foi ele. De qualquer modo, para citar ape­nas isto, não suportou ele a morte de seu filho? Lembrava-me de Paulo, de Galo: mas seus filhos eram garotos; quanto a Catão, ele perdeu um homem maduro e admirado.

10. Por conseguinte, guarda-te de estimar quem quer que seja mais que Catão, mesmo aquele que Apolo, como disseste, julgou "o mais sábio : num, são os atos que se mostram admiráveis, no  outro, as palavras. Mas, para falar desse assunto, e doravante dirijo-me aos dois juntos, eis aqui meu ponto de vista.

III

Se eu negasse minha emoção por ter perdido Cipião, teria razão de fazê-lo? Cabe às pessoas avisadas responder. Mas, sem dúvida, eu mentiria. Forçosamente contrista-me ser privado de um amigo como, acredito, jamais se verá outro igual e, posso certificá-lo, jamais se viu outro igual. Entretanto, não tenho necessidade de remédio. Consolo-me a mim mesmo e pelo melhor dos consolos: procurando não incidir no erro que ator­menta geralmente as pessoas após o falecimento de seus amigos. Não penso que um infortúnio tenha atingido Cipião; atingiu a mim, se atingiu alguém; suportar tristemente suas próprias misérias não é amar um amigo: é amar a si mesmo.

11. Quanto a ele, quem ousaria verdadeira­mente negar que tenha tido um papel brilhante na existência? Pois, a menos que desejasse - ele não  pensava nisto em absoluto — obter a imortalidade, o que não obteve ele daquilo que é lícito a um ho­mem desejar? Ele que, a partir de sua adolescência, ultrapassou continuamente, com uma incrível força de caráter, as mais altas esperanças que, desde sua infância, seus concidadãos haviam depositado nele; que, sem jamais ter lutado para conseguir o con­sulado, foi cônsul duas vezes, a primeira antes da idade legal, a segunda numa idade para ele normal, mas quase demasiado tarde para a república, que, por ter destruído duas cidades irredutivelmente hostis ao nosso poderio, pôs um termo não apenas às guerras da época, mas também às que delas te­riam decorrido no futuro. O que dizer de seu caráter tão sociável, da veneração que tinha por sua mãe, de sua generosidade para com suas irmãs, de sua bondade para com os familiares, de sua preocupa­ção de justiça em relação a todo mundo?

Estais a par de tudo isso. Quanto ao grau de afeição que lhe votavam seus concidadãos, sua consternação, por ocasião dos funerais, deu a medida dela! Assim, o que poderia acrescentar a isso uma prorrogação de alguns anos? Pois a velhice, mesmo quando não é penosa - e recordo Catão, um ano antes de sua morte, explicando-o a Cipião e a mim nos subtrai aquele verdor do qual Cipião ainda gozava.

12. De fato, no plano da fortuna e da glória, sua vida terá sido tão plena que ele nada podia acrescentar-lhe; e ele morreu tão bruscamente
que nem teve tempo de dar-se conta. Um caso de morte sobre o qual, aliás, dificilmente podemos nos pronunciar; estais ao par daquilo que suspeitamos.

O que em troca podemos dizer com certeza é que, para Públio Cipião, entre tantos dias de sua exis­tência que o terão visto no topo da celebridade e da alegria, a jornada mais brilhante foi aquela em que. ao anoitecer, deixando o senado, os senadores, o povo romano, os aliados e os latinos o acompa­nharam de volta para casa: era também a véspera de deixar a vida, de modo que tão elevado grau de dignidade foi como o trampolim graças ao qual entrou diretamente na casa dos deuses do céu, em vez de descer aos mundos infernais.

 IV

13. Com efeito, não poderia filiar-me às teses daqueles que, recentemente, começaram a afirmar que os espíritos perecem juntamente com os corpos e que tudo é destruído pela morte. Dou mais cré­dito à autoridade dos antigos, e mesmo de nossos ancestrais, que atribuíram aos mortos direitos tão sagrados: o que seguramente não teriam feito se julgassem que nada mais lhes concernia; à autori­dade daqueles que estiveram sobre nosso solo e puseram a Magna Grécia, arruinada hoje mas então florescente, sob o ensinamento de suas instituições e de suas concepções; ou ainda à autoridade daquele que o oráculo de Apolo havia julgado “o mais sá­bio”: um sábio que, nesse ponto, não diz ora isto, ora aquilo, como na maioria dos casos, mas sempre a mesma coisa: que as almas dos homens são divi­nas e que, tão logo saídas do corpo, veem abrir-se diante delas o retorno para o céu, tanto mais direto quanto pertenceram a humanos particularmente bons e justos.

14. Coisas que Cipião considerava do mesmo modo: como se houvesse pressentido o que o esperava, poucos dias antes de sua morte, em presença de Filo e de Manílio, e de vários outros, entre os quais tu também, Cévola, pois tinhas vindo comigo, ele dissertou sobre a república durante três dias seguidos, uma exposição cujo final tratava es­sencialmente sobre a imortalidade das almas: ele dizia ter tido durante o sono, graças a uma visão, revelações do Africano a esse respeito.

Se portanto é verdade que, no momento da morte, a alma dos melhores escapa com tanta fa­cilidade à prisão assim como às cadeias do corpo, quem então, vos pergunto, terá conhecido uma corrida mais tranqüila em direção aos deuses que Cipião? Por conseguinte, receio que afligir-se com o que lhe aconteceu procederia mais da inveja que da amizade. Se, afirmo, a outra tese é que é exata - se a mesma morte afeta igualmente as almas e os corpos, e se nenhuma consciência subsiste - , então não há nada de bom na morte, mas nada de mau tampouco, evidentemente. Pois o desaparecimento da consciência, para o homem de quem falamos, eqüivale praticamente a que não tivesse nascido em absoluto, ele que no entanto nasceu, com o que nos felicitamos e o que para nossa cidade, enquanto ela existir, será motivo de alegria.

15, Por isso, mais acima, eu dizia que ele conheceu todos os favores de um destino que, comigo, se mostrou antes desagradável: em boa lógica, tendo entrado primeiro na vida, eu também deveria ter saído primeiro. Todavia, a lembrança de nossa amizade me dá tanto prazer que tenho o sentimento de ter vivido feliz, pois vivi na com­panhia de Cipião, pois juntos nos preocupamos ao mesmo tempo com assuntos públicos e privados; juntos compartilhamos a vida familiar e a vida militar, e reside aí toda a força da amizade, a mais nobre cumplicidade no plano das escolhas, dos interesses, das idéias. Assim, essa reputação de sabedoria, que Fânio evocava para nós há pouco, não me traz, sobretudo falsa como ela é, senão uma satisfação mínima em comparação com a lembrança de nossa amizade, que, espero, durará eternamente. E convenço-me tanto mais disso quanto não saberiam nomear, em toda a extensão dos séculos, senão três ou quatro pares de amigos: tal raridade me autoriza, parece-me, a confiar que a amizade de Cipião e Lélio permanecerá legen­dária nas gerações futuras.

16. Fânio - Sem dúvida nenhuma, Lélio, é o que acontecerá. Mas, já que acabas de fazer alusão à amizade e já que temos tempo à nossa disposição, me darias um grande prazer - a Cévola também, espero, se, como o fazes habitualmente em relação a outros assuntos sobre os quais te questionam, nos expusesses uma concepção da amizade: qual é para ti seu valor, a que princípios ela deve obedecer.

Cévola - Sim, isso me agradaria de fato e eu ia precisamente fazer-te a mesma solicitação antes que Fânio a fizesse. Assim, proporcionarias incontestavelmente um prazer a nós dois.

V

17. Lélio - Acreditem, eu consentiria nisso sem reticências se tivesse confiança em mim: primeiro, o assunto é magnífico e, depois, como o disse Fânio, temos tempo à nossa disposição. Mas quem sou eu ou, sejamos claros, tenho em mim os recursos necessários para improvisar sobre tal questão? Os doutos estão habituados, sobretudo os gregos, a que lhes coloquem questões que eles debatem quanto se quiser na mesma hora: é uma grande arte e isso requer um treinamento considerável. Por conseguinte, para explorar o que se pode dizer sobre a amizade, penso que deveríeis interrogar aqueles que fazem profissão de fé desse tipo de exercícios. De minha parte, tudo o que posso fazer é vos incitar a preferir a amizade a todos os bens desta terra; com efeito, nada se harmoniza melhor com a natureza, nada esposa melhor os momentos, positivos ou negativos, da existência.

18. Antes de mais nada, a amizade, estou con­vencido, só pode existir nos homens de bem. Sobre essa noção, não me pronunciarei categoricamente, como alguns cujo raciocínio teórico é mais exi­gente, por certo justificadamente, mas sem grande proveito para o governo das pessoas comuns. Eles afirmam que ninguém é homem de bem exceto o sábio. Admitamos. Mas eis que essa sabedoria, eles a definem de tal modo que nenhum mortal até hoje pôde segui-la; ora, a nossa, há necessidade que ela leve em conta o que constitui o costume e a vida corrente, não o que faz a substância dos sonhos e das aspirações. Eu jamais poderia dizer que Caio Fabrício, Mânio Cúrio, Tibério Coruncânio, que nossos antepassados tinham como sábios, o fossem verdadeiramente, se aplicasse as normas de nossos brilhantes teóricos: que eles guardem portanto para si a definição da palavra sabedoria, com o que esta comporta de desejável e de obscuro, e nos conce­dam que nossos concidadãos eram homens de bem. Mesmo a isso, infelizmente, eles não consentirão: recusarão que esse título possa ser dado a pessoas que não são “sábias”.

19. Em suma, decidiremos, como se diz, com nosso bom senso primário. Todas as pessoas que, em sua conduta, em sua vida, deram prova de leal­dade, de integridade, de equidade, de generosidade, que não trazem dentro de si cupidez, nem paixões, nem inconstância, e são dotadas de uma grande força de alma, como o foram os homens que eu há pouco nomeava, podem todas, penso, ser contadas entre as pessoas de bem: isso as caracteriza, já que elas seguem, tanto quanto um ser humano é capaz, a natureza, que é o melhor dos guias para viver de maneira correta.

Nesse sentido, penso discernir que somos feitos para que exista entre todos os humanos algo de so­cial, e tanto mais quanto os indivíduos têm acesso a uma proximidade mais íntima. Assim, nossos con­cidadãos contam mais para nós que os estrangeiros; nossos parentes próximos, mais que as outras pessoas. Entre parentes, a natureza dispôs com efeito uma espécie de amizade; mas ela não é de uma resistência a toda prova. Assim a amizade vale mais que o parentesco, em razão de o parentesco poder se esvaziar de toda afeição, a amizade não: retire-se a afeição, não haverá mais amizade digna desse nome, mas o parentesco subsiste.

20. A força que a amizade encerra torna-se inteiramente clara para o espírito se considerarmos o seguinte: em meio à infinita sociedade do gênero humano, que a própria natureza dispôs, um vínculo é contraído e cerrado tão intimamente que a afeição se acha unicamente condensada entre duas pessoas, ou raramente mais que duas.

VI

Assim, a amizade não é senão uma unanimida­de em todas as coisas, divinas e humanas, acom­panhada de afeto e de benevolência: pergunto-me se ela não seria, excetuada a sabedoria, o que o homem recebeu de melhor dos deuses imortais. Alguns amam mais as riquezas, outros a saúde, outros o poder, outros as honrarias, muitos prefe­rem ainda os prazeres. Essa última escolha é a dos brutos, mas as escolhas precedentes são precárias e incertas, repousam menos sobre nossas resoluções que sobre os caprichos da fortuna. Quanto aos que colocam na virtude o soberano bem, sua escolha é certamente luminosa, já que é essa mesma virtude que faz nascer a amizade e a conserva, pois, sem virtude, não há amizade possível!

21. Tão logo definirmos a virtude a partir de nossos hábitos de vida e de pensamento, em vez de avaliá-la, como alguns doutos personagens, de acordo com o esplendor verbal, contaremos efe­tivamente no rol dos homens de bem aqueles que são tidos como tais: os Paulo Emílio, Catão, Galo, Cipião, Filo. Estes últimos constituem modelos satisfatórios para a vida corrente: portanto, não falemos mais daqueles que absolutamente jamais encontramos.

22. Sendo assim, uma amizade entre homens de bem possui tão grandes vantagens que mal posso descrevê-las. Para começar, em que pode consistir uma “vida vivível”, como diz Ênio, que não encon­trasse um descanso na afeição partilhada com um amigo? Que há de mais agradável que ter alguém a quem se ousa contar tudo como a si mesmo? De que seria feita a graça tão intensa de nossos sucessos, sem um ser para se alegrar com eles tanto quanto nós? E em relação a nossos reveses, seriam mais difíceis de suportar sem essa pessoa, para quem eles são ainda mais penosos que para nós mes­mos. Por outro lado, os outros privilégios a que as pessoas aspiram só existem em função de uma única forma de utilização: as riquezas, para serem gastas; o poder, para ser cortejado; as honrarias, para suscitarem os elogios; os prazeres, para deles se obter satisfação; a saúde, para não termos de padecer a dor e podermos contar com os recursos de nosso corpo. Quanto à amizade, ela contém uma série de possibilidades. Em qualquer direção que a gente se volte, ela está lá, prestativa, jamais excluí­da de alguma situação, jamais importuna, jamais embaraçosa. Por isso, nem água nem fogo, como se diz, nos são mais prestimosos que a amizade. E aqui não se trata da amizade comum ou medíocre, que no entanto proporciona igualmente satisfação e utilidade, mas da verdadeira, da perfeita, à qual me refiro, tal como existiu entre os poucos personagens citados. Pois a amizade torna mais maravilhosos os favores da vida, e mais leves, porque comunicados e partilhados, seus golpes duros.

VII

23. Ora, se a amizade encerra todas as van­tagens, e a valer, ela as ultrapassa todas, porque aureola o futuro de otimismo e não admite nem a desmoralização dos espíritos nem sua capitulação. De fato, observar um verdadeiro amigo eqüivale a observar uma versão exemplar de si mesmo, os ausentes são então presentes, os indigentes são ricos, os fracos, cheios de força e, o que é mais difícil de explicar, os mortos são vivos, na medida em que o respeito, a lembrança, o pesar de seus amigos continuam ligados a eles. De modo que a morte de uns não parece ser uma infelicidade, e a vida dos outros suscita a estima. Enfim, se afastássemos da ordem natural o relacionamento de amistosa simpatia, nenhuma casa, nenhuma cidade restariam de pé, e a agricultura não poderia subsistir. Se não se percebe claramente qual a força da amizade e da concórdia, pode-se ter uma ideia disso através das dissensões e das discórdias. Com efeito, que casa é bastante sólida, que cidade possui uma coesão suficiente para não se arriscar, pelos ódios e os desentendimentos, a ser completamente arruinada? É por aí que se pode avaliar o que há de bom na amizade.

24. Um sábio homem de Agrigento exprime inclusive em poemas em grego, ao que dizem, esta ideia visionária de que, fixas ou móveis, todas
as coisas na natureza e em todo o universo se estruturam graças à amizade, e se desconjuntam por causa da discórdia. O que todos os mortais, aparentemente, ao mesmo tempo compreendem e demonstram nos fatos: se sucede de alguém ajudar um amigo em perigo, seja intervindo, seja prestando-lhe socorro, quem lhe regateará felicitações entusiastas? Que clamores em todo o teatro, recentemente, durante a nova peça de meu hóspede e amigo Marco Pacúvio: era no momento em que, diante do rei que ignorava qual dos dois era Orestes, Pílades dizia que Orestes era ele, para ser executado no lugar de seu amigo, enquanto Orestes, em conformidade à verdade, continuava a afirmar que ele era Orestes! Todos os especta­dores se levantaram para aplaudir uma ficção: que não teriam feito, em vossa opinião, diante de uma realidade? A própria natureza demonstrava claramente sua força, naquele instante em que homens aprovavam em outrem um ato de lealdade do qual eles próprios eram incapazes. Aí está: creio ter explicado da melhor maneira que pude minha concepção da amizade. Se quereis mais - não duvido que haveria ainda muito a dizer ide interrogar os que fazem profissão de discutir sobre essas questões.

25. Fânio - Preferimos interrogar a ti. Pois com frequência questionei e escutei - sem esprazer, admito - essas pessoas; mas tua maneira de explicar tem algo de diferente.

Cévola - Então, que não terias dito, Fânio, se tivesses estado, da outra vez, nos jardins de Cipião, quando se discutiu sobre a república e seu funcio­namento? Que defensor da justiça ele foi, face à eloqüência adestrada de Filo!

Fânio - Certamente era fácil, para um homem profundamente justo, defender a justiça.
Cévola - E então? Não seria a amizade, ela, um assunto fácil para alguém que a cultivou com tanta lealdade, constância e justiça, que isso lhe valeu seu mais belo título de glória?

VIII

26. Lélio - Estais querendo me coagir! Que dizer, se o “fazeis pela boa causa”? Usais incontestavelmente a força! Já é difícil resistir aos desejos
de dois genros, mas se, por acréscimo, eles estão cheios de boas intenções, a resistência não é mais sequer justificável!

Na maioria das vezes, portanto, ao refletir sobre a amizade, tenho o hábito de voltar ao ponto que me parece fundamental: será por fraqueza e indigência que se busca a amizade, cada um visando por sua vez, através de uma reciprocidade dos serviços, receber do outro e devolver-lhe esta ou aquela coisa que não pode obter por seus próprios meios, ou seria isto apenas uma de suas manifestações, a amizade tendo principalmente uma outra origem, mais interessante e mais bela, escondida na própria natureza? Com efeito, o amor, de onde provém a palavra amizade, é no primeiro fundamento sim­patia recíproca. Quanto aos favores, não é raro que sejam obtidos também de pessoas iludidas por uma aparente amizade e um desvelo de circunstância: ora, na amizade nada é fingido, nada é simulado, tudo é verdadeiro e espontâneo.

27. Isso tenderia a provar que a amizade se origina da natureza, parece-me, e não da indigência; que ela é uma inclinação da alma associada a um certo sentimento de amor, e não uma especu­lação sobre a amplitude dos benefícios que dela resultarão.

Pode-se constatar esse estado de coisas mesmo em alguns animais, que amam seus filhotes por um tempo determinado e são igualmente amados: o sentimento deles é evidente. No homem, isso é mais evidente ainda: primeiro, porque existe uma ternura especial entre pais e filhos, impossível de destruir exceto por um crime execrável; depois, quando o mesmo sentimento de amor surge de um encontro fortuito com uma pessoa cujas maneiras e o caráter coincidem com os nossos, porque ela nos parece interiormente iluminada, por assim dizer, de probidade e de virtude.

28. Afirmo que nada é mais amável que a virtude, nada favorece tanto o afeiçoar-se, já que virtude e probidade, de certo modo, nos fazem sentir afeição mesmo por pessoas que jamais vimos. Quem não evocaria sem uma benevolente simpatia a memória de Caio Fabrício, de Mânio Cúrio, mesmo sem tê-los conhecido? Em contrapartida, quem não odiaria Tarquínio, o Soberbo, Espúrio Cássio, Espúrio Mélio? Dois chefes militares rivalizaram conosco em armas pela supremacia da Itália: Pirro e Aníbal. A honestidade do primeiro nos impede de sentir em relação a ele demasiada animosidade; o segundo, sua crueldade o tomará para sempre odioso à nossa cidade.

IX

29. Se há tanta força no valor moral para que o amemos, seja nas pessoas que jamais vimos, seja, o que é mais impressionante, inclusive num inimigo, devemos nos espantar que o coração dos homens se comova quando lhe parece, nas pessoas com as quais pensa em atar relações íntimas, perceber virtude e retidão? De resto, o sentimento se confirma por um benefício recebido, por uma tendência manifesta, por um convívio regular. Coisas que, alimentando aquele primeiro movimento da alma e do amor, fazem maravilhosamente resplandecer a intensidade de uma afeição.

Mas quando se afirma que ela provém da fraqueza, baseando-se no fato de haver, na ami­zade, alguém que dá a um outro o que este deseja, abandona-se a origem da amizade à abjeção e à mesquinharia total: faz-se dela algo nascido, por assim dizer, do constrangimento e da indigência. Se fosse assim, todo aquele que se julgasse o mais interiormente desvalido seria o mais apto à ami­zade. A realidade é bem diferente.

Pois aquele que tem mais confiança em si, aquele que está tão bem armado de virtude e de sabedoria que não tem necessidade de ninguém e sabe que traz tudo dentro de si, este sobressai sem­pre na arte de ganhar amizades e de conservá-las. Quê! O Africano? Necessidade de mim? Senhor! De jeito nenhum. Nem eu dele tampouco, mas eu admirava a força de sua personalidade: ele, por seu lado, talvez não julgasse ruim meu temperamento: ele me apreciou. O hábito de nos vermos fez crescer nossa simpatia recíproca. Mas ainda que muitas vantagens importantes tenham resultado disso, certamente não foi a ambição de obtê-las que pro­vocou nossa afeição.

31. Com efeito, quando somos generosos e bondosos, quando não exigimos reconheci­mento - não contando com nenhum proveito próprio, tendo apenas uma vontade espontânea de ser generoso —, é então, penso, que convém, não movidos por uma esperança mercantil, mas convencidos de que o amor traz em si seu fruto, querer atar amizade.

32. Assim, estamos muito distantes das pes­soas que, a exemplo dos animais, reduzem tudo à volúpia. Isso não é surpreendente. Como poderiam se voltar para algo de elevado, de magnífico, de divino, elas que rebaixaram toda preocupação ao nível de uma coisa tão vil e desprezível?

Eis o que basta para eliminá-las de nossa conver­sação, mas conservemos no espírito que é a natureza que engendra o sentimento da afeição e a ternura nascida da simpatia, uma vez estabelecida a prova da lealdade. Os que a procuram se abordam e depois se freqüentam mais de perto, para se beneficiarem da presença daquele por quem começaram a se afeiçoar, e de sua personalidade; para instaurarem uma reciprocidade e uma igualdade de afetos: mostram-se então mais inclinados a prestar serviço que a exigir retorno, e entre eles se estabelece uma nobre rivali­dade. É assim que ao mesmo tempo serão obtidas da amizade as maiores vantagens e, por esta se originar da natureza e não da fraqueza, seu crescimento será mais intenso e mais verdadeiro. Pois, se o interesse cimentasse as amizades, à menor mudança de interesses as veríamos desfazerem-se. Mas, assim como a natureza não poderia mudar, as verdadeiras amizades são eternas. Eis portanto a origem da amizade, a menos que tenhais algo a contestar. 

Fânio - Não, podes prosseguir, Lélio. Res­pondo também por ele, pois minha condição de mais velho me dá esse direito.

33. Cévola - Não contestarei esse ponto. So­mos todos ouvidos!

X

Lélio - Então escutai bem, meus excelentes rapazes, o que discutíamos com frequência, Cipião e eu. a propósito da amizade. Nada é mais difícil apesar de tudo, dizia ele, que conservar intacta uma amizade até o último dia da vida. Pois seguidamente acontece que ora os interesses, ora as sensibilidades políticas divergem; com frequência também o caráter dos homens se altera, ele dizia, por causa de alguns reveses, ou por causa do fardo crescente da idade. E, a título de exemplo, traçava um paralelo com o início da vida, quando nossas mais vivas amizades da infância são seguidamente abandonadas com a toga pretexta.

34. Se elas resistem, acrescentava, acabam sen­do destruídas durante a adolescência por diversas rivalidades, ou pela perspectiva de um casamento, ou porque os dois amigos não são capazes de obter as mesmas oportunidades na vida. E mesmo para aqueles cuja amizade resistiu por mais tempo, ela é abalada quando intervém rivalidades de carreira política: a mais desastrosa das calamidades que afeta as amizades, para a maior parte dos homens, vem do atrativo do lucro e, entre os melhores, da concorrência por certos postos de magistrados e pela glória; essa concorrência provoca frequente­mente as mais irremediáveis desavenças entre os maiores amigos.

35. Outras violentas dissensões surgem, e na maioria das vezes com razão, quando se exige de um amigo algo de inconveniente, como ajudar a saciar uma paixão ou ser cúmplice de uma in­justiça. Os que se recusam o fazem com a maior honestidade; no entanto, os amigos pelos quais não se deixaram arrastar os acusam de faltar aos deveres da amizade; ora, os que ousam pedir não importa o que a um amigo atestam, por seu pedido mesmo, que nenhum escrúpulo os detém se se trata de favorecer a causa de um amigo. Suas recriminações têm geralmente por efeito não apenas secar as afeições mais antigas, mas engendrar igualmente ódios eternos. Tais são as múltiplas ameaças, quase fatais, que pesam sobre a amizade: para conseguir eludi-las todas, Cipião dizia que havia a sabedoria, mas também a sorte, pensava.

XI

36. Por isso veremos primeiramente, se o permitis, até onde a afeição tem o direito de ir, em amizade. Se Coriolano tinha amigos, eram eles obrigados a usar armas com Coriolano contra sua pátria?

Será que os amigos deviam apoiar Vecelino, ou Mélio, quando armavam intrigas para serem reis?

37. Quando Tibério Graco maltratou a repúbli­ca, vimo-lo ser abandonado por Quinto Tuberão e os amigos de sua geração. Ao contrário. Caio Blóssio Cumano, um hóspede de vossa família, Cévola, quando veio rogar-me - porque eu era conselheiro oficial junto aos cônsules Lenate e Rupílio - perdoar-lhe suas atitudes, julgou desculpar-se assim: como Tibério Graco havia feito grandes coisas, Caio estava convencido de que devia segui-lo quaisquer que fossem seus empreendi­mentos. Eu disse:

“Mesmo se ele quisesse que fosses atear fogo no templo do Capitólio? - Ele jamais teria desejado isso, respondeu, mas, se o quisesse, eu o teria feito. Imaginai a impiedade dessa voz criminosa! E ele havia de fato feito coisas do gênero, e mesmo outras que não confessava: não apenas subscreveu as intrigas temerárias de Tibério Graco, mas as inspirou: não encontrou um simples companheiro, mas um instigador para suas loucuras. De modo que esse terrível desvio o levou, apavorado por uma nova comissão de inquérito, a fugir para a Ásia: lá juntou-se às forças inimigas, mas acabou pagando suas empreitadas contra a república com um castigo severo e justo. É que não há nenhuma desculpa para as más ações, mesmo se é por amizade que agimos mal. Com efeito, como a convicção de virtude é a alcoviteira da amizade, é difícil conservar essa amizade se faltamos à virtude.

38. Suponhamos que adotássemos como regra conceder aos amigos tudo o que eles querem, ou obter deles tudo o que queremos: seria preciso que fôssemos de uma perfeita sabedoria para que isso não ocasionasse falta de nossa parte. Mas falamos de amigos que estão diante de nós, que vemos ou dos quais nos transmitiram a memória, aqueles que uma vida normal nos fez conhecer: é dessa catego­ria que cumpre tirar nossos exemplos, e escolher aqueles que mais se aproximam da sabedoria.

39. Sabemos que Papo Emílio foi amigo íntimo de Lúscino - nossos pais nos contaram - , e que eles foram duas vezes cônsules, e depois colegas durante sua censura; ademais, as ligações que mantinham com Mânio Cúrio e Tibério Coruncânio, eles pró­prios extremamente ligados, permaneceram em todas as memórias. Não é sequer imaginável sus­peitar um deles tendo exigido de um amigo o que quer que fosse de contrário à lealdade, à fé jurada, à república. Pois, no caso de tais personagens, de que serviria esclarecer que, mesmo se um deles tivesse pedido, ele nada teria obtido, sabendo-se que eram homens rigorosamente irreprocháveis e que é tão criminoso satisfazer quanto formular semelhante pedido? Ao passo que, na verdade, Tibério Graco foi efetivamente escorado por Caio Carbo, Caio Cato e seu irmão Caio Graco, pouco incitado na época, extremamente agressivo hoje.

XII

40. Em amizade, será portanto uma lei nada pedir de vergonhoso e não ceder a nenhuma súplica dessa espécie. É uma desculpa escandalosa, com efeito, e inteiramente inadmissível, pretender que, embora prejudicando o Estado por más ações, defendeu-se a causa de um amigo.
Isso se aplica particularmente a nós, prezados Fânio e Cévola: ocupamos uma posição tal que nosso dever é prever de longe os acontecimentos que farão o destino da república. Ela já se desviou um bocado da direção e do percurso traçados por nossos ancestrais.

41. Tibério Graco tentou ocupar o lugar de rei, ou melhor, realmente reinou durante alguns meses. Havia o povo romano alguma vez ouvido
ou visto semelhante coisa? Após sua morte, não posso falar sem lágrimas daquilo que seus fiéis e seus próximos fizeram a Públio Cipião. Quanto a  Carbo, nós o suportamos como pudemos, por causa da execução recente de Tibério Graco. Mas o que esperar do tribunato de Caio Graco? Os presságios não são bons. A coisa volta a rastejar, se ramifica, e na encosta do desastre, quando tomou impulso, arrebata tudo. Já vistes, no que se refere ao modo de votar, que danos provocaram, a dois anos de intervalo, as leis Gabinia e Cassia. Parece-me já ver o povo dissociado do senado, o arbítrio da populaça decidir sobre as mais graves questões. Pois é mais fácil aprender a agitar as multidões de todas as maneiras do que resistir a elas.

42. Por que falei disso? Porque, sem amigos, ninguém empreenderia tais coisas. Eis portanto a lição a tirar para as pessoas honestas: se a sorte as fez cair contra a vontade numa amizade desse tipo, elas não devem se considerar manietadas a ponto de não ousarem dessolidarizar-se de amigos que agem mal em alguma questão importante. Quanto aos indivíduos culpados de malversações, cumpre instaurar para eles um castigo, que não deverá ser menor para os seguidores que para os instigadores de crimes contra a pátria. Quem foi mais ilustre na Grécia que Temístocles? Quem, mais poderoso? General dos exércitos, ele havia livrado a Grécia da escravidão por ocasião da guerra contra os persas; mas, forçado ao exílio pelo ciúme de seus inimigos, ele não suportou a injustiça de sua ingrata pátria, como o deveria ter feito: fez o que Coriolano fizera entre nós vinte anos antes. Mas eles não encontraram ninguém para ajudá-los contra sua pátria: é por isso que ambos escolheram dar-se a morte.

43. Uma associação de pessoas sem fé nem lei não poderia portanto se abrigar sob a escusa da amizade: devemos antes nos vingar dela por todos os suplícios possíveis, a fim de que ninguém se julgue autorizado a seguir cegamente um amigo, sobretudo quando este põe sua pátria a ferro e fogo; aliás, a observar como andam as coisas, pergunto-me se não é isso que nos espreita num futuro próximo. Ora, o futuro da república após minha morte não me preocupa menos, a mim, que sua evolução presente.

XIII

44. Essa é portanto a primeira lei que se deve instaurar em amizade: não pedir a nossos amigos senão coisas honestas, não prestar a nossos ami­gos senão serviços honestos, sem sequer esperar que no-los peçam, permanecer sempre confiante, banir a hesitação, ousar dar um conselho em total liberdade. No domínio da amizade, é preciso que predomine a autoridade dos amigos mais avisados. e que essa influência se aplique em acautelar os outros, não só com franqueza mas com suficiente energia, se a situação o exigir, para que o conselho seja posto em prática.

45. Notemos que alguns personagens, conside­rados, conforme o que deixei dito, como sábios na Grécia, propuseram teorias a meu ver bastante estranhas; mas não há nada que esses homens não saibam desenvolver através de argúcias: para uns, todo leque de amizades um tanto vasto deve ser evitado, a fim de não precisarmos, estando sós, nos apoquentar com um monte de pessoas; nossos pró­prios problemas já são o bastante, e mais do que o bastante, implicar-se demais nos dos outros só pode ser ruim; o mais judicioso é deixar, tanto quanto possível, a rédea no pescoço de nossas amizades, de modo a poder, a nosso critério, apertá-la forte ou soltá-la. Para ser feliz, o principal, com efeito, é a tranqüilidade, que um espírito não pode gozar se está, sozinho, preocupado com uma multidão de pessoas.

46. Mas outros sustentam teses muito mais indignas, aludi brevemente a isso há pouco: seria por necessidade de assistência e de proteção, e não de simpatia e de afeição, que se busca a amizade; segundo esse princípio, é na medida em que al­guém possui menos solidez e menos forças viris que mais buscará a amizade; é o que explicaria por que as frágeis mulheres buscam mais a proteção da amizade que os homens; e os infelizes, mais que os reputados felizes.

47. Bela sabedoria, essa! Dir-se-ia que eles retiram o sol do mundo, os que retiram a amizade da vida, quando nada de melhor, nada de mais agra­dável recebemos dos deuses imortais. De fato, que tranqüilidade é essa, aparentemente sedutora, mas que, pensando bem, deve ser rejeitada em muitos casos? Sem contar que não é muito nobre recusar seu apoio a um empreendimento ou a uma ação honestos, somente para evitar complicações, nem desinteressar-se após ter começado a apoiá-los. E se fugimos das preocupações, temos que fugir também da virtude, que implica necessariamente sua parte de preocupação porque ela despreza e detesta tudo o que lhe é contrário: assim a bondade detesta a malícia, a temperança a paixão, a coragem a covardia; por isso vê-se que a injustiça faz padecer sobretudo os justos, a covardia os fortes, a infâmia as pessoas honestas. Em suma, o característico de um espírito bem constituído é alegrar-se com o que é bom e padecer com o contrário.

48. Desse ponto de vista, se a dor aflige a alma do sábio - e muito certamente é o que se passa, a menos que toda humanidade esteja erradicada de sua alma -, que razão justificaria eliminar-se completamente de nossa vida a amizade, pelo único motivo de que ela nos impõe alguns desagrados?

Qual seria a diferença, uma vez suprimida da alma a emoção, não digo entre um animal e um homem, mas entre um homem e um tronco de árvore, ou uma pedra, ou qualquer outra coisa do mesmo gênero? Fechemos portanto nossos ouvidos aos discursos dos indivíduos que gostariam que a virtude fosse dura e como que de ferro, quando em muitos casos, entre os quais a amizade, ela é terna e condescendente, dilatando-se, diríamos, para acolher a felicidade de um amigo, contraindo-se para fazer frente às suas dificuldades. Vista sob esse ângulo, a ansiedade que frequentemente so­mos levados a sentir por um amigo não é capaz de expulsar a amizade de nossa vida; como tampouco iremos repudiar as virtudes porque elas ocasionam não poucas preocupações e desagrados.

XIV

Pelo fato de haver amizade, como eu disse mais acima, a afeição, se transparece algum indício de virtude ao qual uma alma similar pode se ligar e se associar, não deixa, quando isso acontece, de se levantar como o sol.

49. Que há de mais absurdo do que ser atraído por vaidades como a honraria, a glória, a edificação de monumentos, a vestimenta e o culto do corpo, e não sê-lo por uma alma ornada de virtude, que saberia amar ou, melhor dizendo, dar amor por amor? Nada oferece mais satisfação, com efeito, do que ser recompensado por sua cortesia, nada é mais sedutor do que trocar alternadamente atenções e bons serviços.

50. Se acrescentarmos ainda, e temos o direito de fazê-lo, que nada tem tanta força de sedução e de atração quanto a semelhança que conduz à ami­zade, seguramente nos concederão ser verdadeiro que os homens de bem amam os homens de bem e se associam a eles, como se estivessem ligados pelo parentesco e pela natureza. Nada é mais ávido de seu semelhante nem mais rapace que a natureza. Partindo daí, prezados Fânio e Cévola, para mim é evidente que se cons­tata uma simpatia quase inevitável dos bons entre si, que é o princípio da amizade instaurado pela natureza. Mas essa mesma bondade se estende também ao conjunto das pessoas. Com efeito, a virtude não é inumana, nem avara, nem orgulhosa: tem mesmo por hábito proteger povos inteiros e agir da melhor maneira por seus interesses, o que seguramente não faria se lhe repugnasse amar as pessoas.

51. Parece-me, por outro lado, que os que atribuem às amizades motivações baixamente utilitárias escamoteiam, assim fazendo, o mais amável núcleo da amizade. Pois não é tanto os serviços prestados por um amigo, mas a afeição desse amigo, em si, que dá prazer: o que um amigo
nos oferece só nos faz felizes na medida em que é oferecido com afeição; e a indigência está longe de levar a cultivar a amizade, se pensarmos que os indivíduos que menos precisam de outrem - no plano dos recursos, das riquezas, da virtude princi­palmente, na qual reside o principal amparo - são os mais generosos e os mais obsequiosos. De resto, não sei se é uma coisa boa nossos amigos jamais sentirem falta de algo. Com efeito, em que domínio nosso interesse mútuo teria podido se manifestar, se jamais Cipião tivesse a necessidade de um conselho ou de algum serviço de minha parte, seja na vida civil ou no exército? Assim, não foi a amizade que decorreu da utilidade, mas a utilidade que decorreu da amizade.

XV

52. Preservaremo-nos portanto de escutar ho­mens afeitos aos prazeres, quando dissertam sobre a amizade sem ter sobre o assunto conhecimentos práticos nem teóricos. Quem, de fato, sustentaria, diante dos deuses e dos homens, que sonha não amar ninguém e não ser amado por ninguém, ape­nas para se ver submerso em todas as riquezas e para viver na opulência absoluta? Eis aí a existên­cia dos tiranos, indiscutivelmente, na qual não há nenhuma sinceridade, nenhuma ternura, nenhuma afeição duradoura em que se possa confiar: tudo nela é sempre suspeito e alarmante, não há lugar para a amizade.

53. Sim, quem amaria uma pessoa que ele teme ou uma pessoa que ele julga temê-lo? Muitos, no entanto, se mostram obsequiosos em torno dessas pessoas, por hipocrisia, enquanto as coisas duram. Mas se porventura, como acontece comumente, elas caem, então descobre-se o quanto eram desprovidas de amigos. É o que Tarquínio, dizem, teria obser­vado durante seu exílio: ele teria descoberto nesse momento quem era leal ou desleal entre seus ami­gos, pelo fato de não mais poder, em sua situação, retribuir nem a uns nem a outros.

54. Parece-me surpreendente de resto, consi­derando sua soberba e seu caráter odioso, que ele tenha podido ter um amigo qualquer. Seja como for, assim como o caráter do personagem que acabo de evocar dificilmente lhe permitiu fazer verdadeiros amigos, o poder de que dispõem muitos homens poderosos é incompatível com toda amizade fiel. É que a Fortuna não apenas é cega, mas sobretudo torna cegos, na maior parte do tempo, os que ela favorece; eles tombam facilmente na arrogância e na fatuidade, e nada poderia ser mais insuportável que um imbecil feliz. Assim, podemos ver pessoas, até então de um convívio agradável, se metamorfosearem: sob o efeito do comando, do poder, do êxito nos negócios, ei-los a desdenhar suas antigas amizades para cultivar novas.

55. Mas que há de mais estúpido, quando se dispõe de riquezas, facilidades, consideração, que oferecer-se tudo o que o dinheiro pode proporcionar, cavalos, domésticos, roupas luxuosas, baixela preciosa, e não fazer amigos, que são, como eu disse, o melhor e mais belo ornamento da vida? Pois, ao se oferecerem todos esses bens materiais, não sabem quem tirará proveito deles, nem para quem trabalham tanto: qualquer desses bens ma­teriais será de quem souber apoderar-se deles à força, enquanto na amizade cada um conserva um direito de propriedade firme e inalienável; de sorte que, se nos restam os bens materiais, que são mais ou menos dons da Fortuna, uma vida abandonada e desertada pelos amigos não pode ter um aspecto muito risonho. Mas é o bastante sobre esse ponto.

XVI

56. Todavia, há também em amizade limites, e quase fronteiras, a instaurar para a afeição. So­bre essa questão, vejo apresentarem-se três teses diferentes, nenhuma das quais me satisfaz: para uma, devemos sentir em relação a um amigo o mesmo sentimento que em relação a nós mesmos, para a outra, nossa bondade para com os amigos deve corresponder à sua bondade para conosco segundo uma estrita e simétrica reciprocidade, para a terceira, a estima que cada um faz de si dita a estima que seus amigos devem fazer dele.

57. Não subscrevo nenhuma dessas três má­ximas inteiramente. A primeira já não é verda­deira, quando diz que devemos agir em relação aos amigos como o faríamos em relação a nós mesmos. Quantas vezes, com efeito, fazemos por nossos amigos coisas que jamais faríamos para nós mesmos, recorrer a um personagem indigno, suplicar, ou então atacar violentamente alguém e invectivá-lo com excessiva paixão! Tudo aquilo que, em relação a nossos próprios assuntos, não seria muito honroso, torna-se inteiramente nobre quando se faz por amigos, e há muitos domínios nos quais frequentemente homens de bem consentem em perder ou em não obter certas vantagens, a fim de que sejam seus amigos, ao invés deles próprios, os beneficiados.

58. Há também a outra máxima, que define a amizade por uma equivalência de serviços e de atenções recíprocos. É votar a amizade a uma contabilidade demasiado vulgar, demasiado mes­quinha, sim, querer essa paridade rigorosa entre o que se dá e o que se recebe. A amizade verdadeira parece-me ser mais rica e mais desinteressada: ela não fica, severa, a controlar se está dando mais do que recebeu. E, para dizer tudo, não se deve temer que um de nossos benefícios se perca, que uma de nossas proposições seja deixada de lado: em amizade, jamais se carrega em excesso o prato da balança.

59. Quanto à terceira máxima, a estima que cada um faz de si dita a estima que os amigos de­vem fazer dele, é realmente a pior das definições! Não é raro, com efeito, em algumas pessoas, que o moral esteja muito baixo, ou que a esperança de uma melhora de sua existência seja muito pequena. Não cabe portanto a um amigo manter com uma pessoa a mesma relação que mantém consigo mes­mo: ele deverá antes esforçar-se por elevar o moral de seu amigo, conseguindo aos poucos insuflar-lhe otimismo e pensamentos positivos.

Percebe-se que uma nova definição da amizade verdadeira resta por estabelecer, voltarei a isso assim que tiver exposto aquela que Cipião mais costumava reprovar: segundo ele, não se podia encontrar frase mais hostil à amizade que a do personagem que dizia: “Importa amar como se o
futuro nos reservasse odiar”', ele não podia real­mente acreditar que, como se pensa, Bias dissera isso, ele que é reputado ser um dos Sete Sábios; essa máxima provinha de alguém infame, ambicioso, que reduzia tudo à preocupação com seu próprio poder. Como poderíamos ser amigos de alguém que imaginamos capaz de tornar-se inimigo? Mais ainda: teríamos que desejar e esperar que o amigo cometesse faltas o mais seguidamente possível, que assim se expusesse a todo momento à reprovação: inversamente, os atos de retidão e os privilégios dos amigos inspirariam necessariamente ansiedade, sofrimento, ciúme.

60. Por isso tal regra de conduta, não importa quem tenha sido seu inventor, serve apenas para destruir a amizade. A regra que caberia antes en­sinar é escolher o leque de nossas amizades com bastante cuidado para jamais começarmos a amar alguém que corremos o risco de um dia odiar. Ade­mais, se ocorresse de não termos sido muito felizes na escolha de nossas afeições, Cipião pensava que deveríamos suportá-la, e não prepararmo-nos para tempos de inimizades.

XVII

61. Eis portanto os limites a respeitar, em minha opinião: se os costumes dos amigos forem bem civilizados, eles instaurarão entre si uma comunhão em todas as coisas, ambições, projetos, sem nenhuma exceção; além disso, se eventualmente precisarmos assistir amigos em projetos não muito convenientes, nos quais estão em jogo sua pessoa ou sua reputação, permitir-nos-emos um desvio de conduta, contanto não fira gravemente a honra. Com efeito, até certo ponto, há concessões que podem ser feitas à amizade sem ser preciso re­nunciar à nossa reputação, ou sem perder de vista que a simpatia dos cidadãos, no domínio político, não é uma arma a subestimar: o fato de ser ignóbil buscá-la através de adulações e demagogia não implica de maneira nenhuma que a virtude, que suscita também a afeição, deva ser rejeitada.

62. Ora - retorno com frequência a Cipião, cujas conversas giravam sempre em torno da amizade -, ele se queixava de que os homens se empenham mais em todas as outras atividades: cada um sabe dizer quantas cabras e carneiros possui, mas não quantos amigos; quando as pessoas adquirem esses animais, fazem-no com o maior cuidado, enquanto na escolha de seus amigos são negligentes e não sabem em que tipo de sinais, de marcas, se quiserem, irão confiar para reconhecer os que seriam capazes de amizade. Nesse sentido, são as pessoas seguras, estáveis, constantes que devemos escolher, uma espécie muito rara. Ora, é difícil julgá-las corretamente sem a prova dos fatos, e justamente essa prova só pode realizar-se dentro da própria amizade. De sorte que a amizade precede o julgamento e suprime toda possibilidade de colocação à prova.

63. Alguém ponderado, portanto, saberá con­ter, como por uma trela, o impulso espontâneo de sua simpatia, com o qual se comportará da mesma forma que com cavalos a serem testados: assim, na perspectiva de uma amizade, sondar-se-á primeiro de algum modo o caráter dos amigos. Há alguns que, em muitos casos, por um pouco de dinheiro deixam transparecer sua volubilidade; já outros, que uma pequena quantia não pôde abalar, cedem diante de uma grande. É verdade que descobrimos aqueles que consideram sórdido preferir o dinheiro à amizade, mas onde encontraremos os que não fazem passar as honrarias, as magistraturas, os comandos militares, o poder, o prestígio à frente da amizade, e que, nos momentos em que tais pri­vilégios se medem com as exigências da amizade, preferem de longe esta última? A natureza, com efeito, é frouxa quando lhe é preciso desprezar o poder: mesmo se o obtiveram com prejuízo de uma amizade, os homens pensam que sua responsabilidade será justificada, por não ter sido sem um mo­tivo de importância capital que faltaram à amizade.

64. Isso explica por que é tão difícil encontrar verdadeiras amizades entre os que se preocupam com as honrarias e os assuntos públicos. Onde se descobriria alguém que pusesse a glória de um amigo antes da sua? Onde? E nem me refiro a todo o sofrimento, a toda a dificuldade que sentimos, na maioria das vezes, em compartilhar as infelicidades dos outros! Não é fácil encontrar pessoas que con­cordem com isso. No entanto, o poeta Ênio disse muito justamente: O amigo certo se vê nos dias incertos. Resta que duas coisas demonstram aqui, na maioria das pessoas, a inconstância e a fraqueza de caráter: quando tudo vai bem elas não levam isso em conta, quando tudo vai mal elas desertam. Por conseguinte, aquele que nos dois casos se mostrar profundo, constante, estável na amizade, é um homem que devemos considerar como de uma es­sência raríssima, quase divina.

XVIII

65. No entanto, essa estabilidade, essa constân­cia são uma confirmação daquilo que buscamos na amizade: a lealdade. Com efeito, nada é estável no que é desleal. Para nosso igual, devemos escolher também uma pessoa franca, afável, com quem po­demos nos entender, isto é, que reage às coisas da mesma maneira que nós. Tudo isso está relacionado à fidelidade. Não pode haver de fato lealdade num en­tendimento complicado e tortuoso e, afirmo, aquele que não reage às mesmas coisas, cujo temperamento não está em harmonia com o nosso, não poderia se mostrar nem fiel nem estável. Acrescentemos que ele não deve ser daqueles que têm prazer em lançar acusações ou em acreditar nas que se apresentam. Todos esses traços estão relacionados àquela cons­tância sobre a qual reflito há muito tempo. Assim, se verifica o que eu disse no começo: só pode existir amizade entre homens de bem. Com efeito, é próprio do homem de bem, que nos é lícito chamar então um sábio, ater-se, em amizade, a estas duas regras de conduta: primeiro, nunca admitir o que é fingido ou simulado; pois é mais honesto odiar abertamente que dissimular, sob uma face hipócrita, seu sentimento. A seguir, não se contentar em rechaçar as acusações feitas por alguém, mas preservar-se a si mesmo de uma suspeita que leve a imaginar constantemente que o amigo teria algo de reprovável.

66. Acrescentemos a isso uma certa afabili­dade na conversação e nas maneiras, com a qual não se deve esquecer de condimentar a amizade. Se a austeridade e o rigor em tudo têm nobreza, a amizade deve no entanto ser mais distendida, mais espontânea, mais agradável, e mais inclinada, de maneira geral, à amenidade e ao convívio.

XIX

67. Nesse domínio, porém, coloca-se um pro­blema um pouco delicado: não se deveria, em alguns casos, dar prioridade a amigos recentes, dignos dessa amizade, sobre os antigos, como te­mos o costume de dar prioridade aos cavalos novos sobre os velhos? Hesitação indigna de um homem! Pois não se pode admitir, como o fazemos noutros domínios, saciedade na amizade: a mais antiga, como os vinhos que suportam o envelhecimento, deve ser a melhor, e se diz a verdade quando se diz que é preciso ter comido muito sal juntos antes de cumprir nossos deveres de amizade.

68. É que se os novos relacionamentos, como plantas que nos fazem esperar que amadurecerão o fruto desejado, evidentemente não devem ser rejeitados, há todavia que conservar à antiguidade seu lugar. Com efeito, há uma força muito profunda na antiguidade e no hábito. Mesmo no caso de um cavalo, para retomar a comparação, ninguém deixará de montar, se nada o impede, com mais gosto aquele ao qual está habituado do que um novo animal que jamais fez trabalhar. Essa questão do hábito, aliás, não vale apenas para o reino animal, mas igualmente para as coisas inanimadas, como a predileção que sentimos por certos lugares, mesmo montuosos e eriçados de florestas, onde residimos mais tempo que noutras partes.

69. É no entanto da maior importância em amizade apagar a diferença de nível social com um inferior. Pois às vezes há personalidades excepcionais, como o era Cipião dentro, digamos, de nosso círculo. Ora, jamais, seja com Filo, com Rupílio, ou com Múmio, ele se colocou acima, nem com nenhum de seus amigos de uma posi­ção social inferior. Assim, com seu irmão Quinto Máximo, personagem notável mas que não se lhe equiparava, e que lhe era mais avançado em idade, Cipião comportava-se como diante de um superior, e queria que através dele pudesse se realçar a ima­gem de todos os familiares.

70. Maneira de agir que os homens em seu conjunto deveriam imitar, se acaso adquiriram al­guma superioridade por sua virtude, seu gênio, sua fortuna, compartilhando tudo isso com os familia­res e os íntimos, ou, se seus pais são humildes de nascimento, se têm parentes pouco brilhantes pelo espírito ou a fortuna, elevando seu nível de recursos e obtendo-lhes honrarias e dignidades. A exemplo daqueles personagens das peças de teatro que, por algum tempo, conheceram a servidão, na ignorância de seu sangue e da nobreza de sua origem, mas que, uma vez descobertos e restabelecidos em sua filiação real ou divina, não deixam de conservar sua afeição pelos pastores que haviam tomado por seus pais durante muitos anos. Comportamento que, obviamente, com mais razão ainda, se impõe em relação aos pais autênticos e incontestáveis. É que o benefício obtido do talento, da virtude e de toda espécie de excelência culmina quando a ele são associadas as pessoas de nosso meio.

XX

71. Assim, os que detêm uma superioridade na rede das amizades e alianças devem saber se colocar no mesmo plano que os menos brilhantes; do mesmo modo, os mais modestos não devem se queixar de serem superados por seus amigos, seja em gênio, em fortuna ou em dignidade. A maioria deles tem sempre uma reclamação ou uma queixa a fazer, e tanto mais acerba se julgam ser lícito fazer valer algum serviço prestado por obséquio, por amizade, e ao preço de um certo esforço. Odiosa espécie, na verdade, a das pessoas que vos lançam no rosto seus serviços, que compete a quem dele se beneficiou lembrar-se espontaneamente, e não a quem os propôs lembrar constantementel

72. Deste modo, os que têm uma posição des­tacada não devem se contentar em torná-la menos visível na amizade, devem também de algum modo elevar a posição dos mais modestos. Há com efei­to pessoas que tornam as amizades difíceis, pelo fato de se julgarem desprezadas: semelhante coisa geralmente só ocorre aos que, eles próprios, se consideram desprezíveis, e há que empenhar-se em tirar-lhes tal opinião do espírito por palavras, mas sobretudo por atos.

73. Quanto a isso, para começar, não prome­teremos mais do que podemos realizar, nem o que a pessoa que afeiçoamos e queremos ajudar não poderá enfrentar. Com efeito, mesmo para alguém eminente, é impossível elevar todos os seus parentes às dignidades supremas: se Cipião pôde obter o consulado para Públio Rupílio, para seu irmão Lúcio ele não o conseguiu. Mesmo supondo que se pudesse oferecer tudo o que se quer a alguém, é preciso no entanto verificar se o outro é capaz.

74. Como regra geral, só se julgarão as ami­zades quando elas já tiverem sido fortalecidas e confirmadas, tanto pela evolução do caráter quanto pelas épocas da vida, e não é porque, na juventude, as pessoas se freqüentaram na caça ou no jogo de pela que devem se considerar inseparáveis daqueles que amaram, no tempo em que compartilhavam a mesma paixão. Se fosse assim, caberia às amas de leite e aos preceptores, por direito de antiguidade, reclamar a maior parcela de afeição: longe de mim o pensamento de que devamos negligenciá-los, mas não é deste modo que as coisas se passam. Aliás, as amizades não poderiam permanecer estáveis. Pois as diferenças entre os temperamentos acarretam interesses diferentes, cuja divergência desfaz as amizades: que outra razão haveria para o fato de as pessoas de bem não poderem ser amigas de pessoas desonestas, nem estas amigas daquelas, senão que houve entre elas o desvio de temperamentos e de gostos mais considerável que pode haver?

75. Pode-se também colocar justamente como princípio, nas amizades, que uma afeição imoderada, como acontece muito seguidamente, não deve frear amigos a caminho de grandes conquis­tas. Assim, e retorno ao teatro, Neoptólemo não teria tomado Troia se houvesse consentido, por ter sido educado na casa de seu avô Licômedes, em ceder às abundantes lágrimas do velho que queria impedi-lo de prosseguir seu caminho. E é freqüente sobrevirem importantes acontecimentos que levam a afastar-se dos amigos! Quem deseja evitar isso porque há o risco de lhe ser difícil su­portar os lamentos, tem uma natureza fraca, frouxa e, precisamente por essa razão, encontra-se numa situação inteiramente falsa no plano da amizade.

76. Aliás, em todas as coisas, é preciso levar em conta tanto o que se exige de um amigo quanto o que se admite dever-lhe conceder.

XXI

Há inclusive um gênero de flagelo que exige às vezes romper amizades. Pois nossa conversa doravante irá passar das ligações íntimas entre sábios para as amizades vulgares. Com frequência, inesperadamente, alguns graves defeitos de amigos se manifestam, seja em relação a seus próprios ami­gos, seja em relação a outras pessoas, e infelizmente é sobre os amigos que recai a desonra. As amizades desse tipo, convém deixá-las se afrouxarem até o desaparecimento completo, pois, como ouvi Catão dizer, elas devem antes ser descosidas que rasgadas, a menos que um escândalo absolutamente intolerá­vel surja, a ponto de não mais se poder fazer algo correto e razoável para evitar que se produzam imediatamente conflito e ruptura.

77. Mas se ocorrerem certas mudanças de caráter ou de gostos, como é comum acontecer, ou divergências de partidos no seio da república, deveremos cuidar para não dar a impressão de que, com o fim da amizade, é um ódio que começa. Nada é mais vergonhoso do que fazer a guerra a alguém com quem se viveu numa estreita afeição. Cipião, como o sabeis, abandonou, em meu favor, sua amizade com Quinto Pompeio; e foram divergências no seio da república que o afastaram de nosso colega Metelo: em ambos os casos, ele agiu com uma autoridade ponderada e uma distância moral que não deram margem a nenhum rancor.

78. Resulta disso que a primeira das coisas a fazer é evitar os conflitos entre amigos; se tal coisa acontecer, que a amizade pareça ter-se extinguido naturalmente, em vez de ter sido sufocada. Cumpre de fato zelar, sobretudo, para que a amizade não se transforme num ódio funesto, engendrando discus­sões, insultos, acusações injuriosas. Se apesar de tudo isso ocorrer - dentro dos limites do tolerável, é claro -, será preciso, à guisa de homenagem à antiga amizade, demonstrar resignação, e assim a falta recairá sobre quem profere calúnias e não sobre quem as sofre. De qualquer maneira, face a todos os ultrajes e prejuízos desse gênero, a única precaução e medida de previdência consiste em não se apressar em amar, sobretudo pessoas que não são dignas disso.

79. São dignos de amizade aqueles que têm dentro de si uma qualidade intrínseca que os faz amar. Espécie evidentemente rara, como tudo o que é excelente e raro: nada mais difícil de descobrir que o que é, em sua categoria, perfeito em todos os aspectos. Mas a maioria das pessoas, entre as coisas humanas, não dão nenhum valor às que se acompanham de um proveito essencial, e entre seus amigos amam sobretudo, a exemplo de seus animais, aqueles dos quais esperam tirar o máximo de benefícios.

80. Assim, elas se privam daquela amizade, a mais bela e a mais autenticamente natural, à qual aspiramos por ela mesma e por causa dela mesma, porque não possuem dentro de si o arquétipo do que é a realidade da amizade, sua qualidade e sua grandeza. Com efeito, cada um ama sua própria pessoa, não para receber de si os dividendos dessa afeição, mas porque sua pessoa em si lhe é cara. Se não transpusermos isso ao semelhante no domínio da amizade, jamais descobriremos um verdadeiro amigo, o qual é para nós como um outro nós mesmos.

81. Se verificamos, entre as aves, os peixes, os animais dos campos, domésticos, selvagens, primeiro que eles amam a si mesmos (sentimento que, evidentemente, nasce junto com todo ser animado), a seguir que buscam e desejam seres animados da mesma espécie aos quais se ligarem, e que fazem isso com manifestações de desejo e de amor bastante próximas às dos humanos, como é que a natureza não levaria ainda mais um homem a amar a si mesmo, e a buscar um outro homem cujo espírito se mesclaria ao seu de maneira tão íntima que os dois seriam quase um só?

XXII

82. Mas a maioria das pessoas, por ausência de discernimento, para não dizer por impudência, que­rem ter um amigo tal como não saberiam ser elas próprias: gostariam de receber de seus amigos o que não lhes dão. Convém, preliminarmente, sermos nós mesmos homens de bem, antes de buscarmos alguém semelhante a nós. Entre homens assim, a estabilidade na amizade, da qual falamos já há um bom tempo, poderá se consolidar contanto que, por um lado, os homens unidos pela afeição controlem suas paixões, enquanto os outros são subjugados por elas, e, por outro, se comprazam na equidade e na justiça, se apoiem mutuamente em tudo, nada exijam do outro a não ser honestidade e retidão; e não apenas se freqüentem e se amem, mas se respeitem. Pois a amizade carece de seu maior ornamento quando falta o respeito.

83. É portanto um erro pernicioso de certas pessoas imaginar que em amizade a porta está aberta a todos os abusos e a todos os atos indignos: a amizade nos foi dada pela natureza como auxiliar de nossas virtudes, não como cúmplice de nos­sos vícios, a fim de que a virtude, não podendo alcançar sozinha o soberano bem, o alcançasse ligada e apoiada à virtude de outrem. Se portanto, entre as pessoas, tal comunidade existe, existiu ou existirá, sua associação deve ser considerada como o melhor e o mais ditoso caminho rumo à perfeição natural.

84. Em tal círculo de amizade, afirmo, acham-se todos os bens que os homens julgam ser neces­sário buscar, consideração, glória, tranqüilidade de espírito e alegria, de modo que, quando esse círculo existe, a vida é feliz, e sem ele não poderia sê-lo. E como aí se encontra o melhor e o mais importante, se quisermos alcançá-lo temos de dedicar todos os nossos cuidados à virtude: sem ela, não obteremos nem a amizade nem qualquer desses bens dignos de ser cobiçados; aqueles que, tendo negligenciado a virtude, imaginam ter amigos, percebem que se enganaram tão logo uma grave dificuldade os obri­ga a colocar seus supostos amigos à prova.

85. Por todas essas razões - e cabe repeti-lo várias vezes é quando se pôde julgar que convém ligar-se, e não julgar após ter-se ligado.

Aliás, em muitos casos a negligência nos pune, sobretudo quando se trata de escolher e de ligar-se a amigos. Com efeito, tomamos nossas decisões demasiado tarde e agimos inoportunamente, apesar da advertência de um velho provérbio. Pois, implicados por diversos lados num tecido de relações cotidianas e profissionais, é repentina­mente, tropeçando em algum aborrecimento, que rompemos, em pleno curso, nossas amizades.

XXIII

86. Tamanho descuido em relação a uma coisa absolutamente necessária merece uma reprovação severa. A amizade, com efeito, é a única dentre as questões humanas cuja utilidade é unanimemente reconhecida por todos. A despeito disso muitos desprezam a própria virtude, dizendo que ela é ape­nas poeira nos olhos e ostentação; muitos olham a riqueza de cima e, contentes com pouco, encontram satisfação numa alimentação e num bem-estar de uma sobriedade refinada; quanto às honrarias, pelas quais alguns ardem de cobiça, quantos as desde­nham, a ponto de julgarem que não há nada mais vão, nada mais inconsistente! O mesmo em relação ao resto: o que se afigura a uns admirável, aos olhos de muitos outros não vale nada. Sobre a amizade, em troca, as pessoas todas têm um único e mesmo sentimento; os que se consagraram à política e os que se dedicam ao conhecimento e à ciência, os que administram tranquilamente seus negócios e os que se entregaram por inteiro aos prazeres: sem amizade a vida não é nada, pelo menos se quiser­mos, de um jeito ou de outro, viver como homens.

87. Pois a amizade se insinua, não sei como, em todas as existências e não admite nenhuma concepção de vida onde ela não entraria. Melhor ainda: imaginemos alguém de uma natureza tão rude e selvagem que deteste e evite o comércio dos homens, como foi o caso de um certo Tímon em Atenas, ao que consta: mesmo tal indivíduo não saberia resistir à necessidade de buscar alguém junto ao qual expelir a bile de sua amargura. Com­preenderíamos melhor ainda se porventura um deus nos tirasse da multidão dos homens, nos pusesse num lugar solitário e lá, embora nos fornecendo com fartura tudo o que a natureza pode desejar, nos privasse de toda possibilidade de rever humanos. Quem teria a alma suficientemente temperada para suportar esse gênero de vida, e para evitar que a solidão retirasse de seus prazeres todo o seu sabor?

88. Assim, é verdade o que o filósofo grego Arquitas de Tarento, creio, tinha o hábito de dizer, e que ouvi de nossos avós, que por sua vez o ouviram dos seus: “Suponhamos que alguém suba ao céu e lá penetre com o olhar a natureza do mundo e o esplendor dos astros: ele achará desagradável esse maravilhamento com o qual se encantaria se não tivesse alguém a quem contá-lo”. Assim, a natureza não ama o que é solitário e se apoia sempre numa espécie de tutor, porque na mais profunda amizade se acha também a mais profunda doçura.

XXIV

Ora, apesar da natureza nos transmitir por tan­tos sinais o que ela quer, busca e deseja, fazemos ouvidos moucos, não sei por que, e as advertências que ela nos prodigaliza escapam a nosso entendi­mento. Certamente, servimo-nos da amizade de numerosas e diversas formas, de modo que resultam outros tantos motivos de suspeitas e de vexações que compete ao sábio seja evitar, seja abrandar, seja suportar.

Em todo caso, há uma forma de suscetibilidade a corrigir, em amizade, para conservar-lhe ao mesmo tempo sua utilidade e sua confiabilidade: com frequência somos obrigados a fazer aos amigos advertências, e até mesmo repreensões, e cumpre que o amigo em questão as aceite, quando forem feitas numa boa intenção.

89. Entretanto, sem que eu compreenda bem a razão, o que disse um de meus amigos em Andria tem fundamento:

A complacência engendra os amigos, a verdade o ódio.

Funesta verdade, pois faz nascer o ódio que é o veneno da amizade: mas complacência mais funesta ainda, porque, ao tolerar as faltas, deixa o amigo deslizar em direção ao abismo; todavia, mais culpado é aquele que, não contente de des­denhar a verdade, deixa a complacência levá-lo a atos indignos. Em tudo isso, portanto, deve-se ponderar, procurando evitar tanto ser categórico na advertência quanto injurioso na repreensão,
24. Título de uma peça de teatro do dramaturgo Terêncio. mas que essa “complacência” - não relutamos em empregar a palavra de Terêncio - repouse sobre a cortesia e rejeite a adulação, auxiliar dos vícios, que não é digna de um amigo como tampouco de um homem livre. Uma coisa é viver com um tirano, outra com um amigo.

90. Quanto àqueles cujos ouvidos se fecharam tanto à verdade que são incapazes de ouvi-la pela boca de um amigo, pode-se desesperar de sua sal­vação. A esse respeito, Catão, como sempre, disse uma frase famosa:

“As vezes é mais compensador ter que lidar com rudes inimigos que com certos amigos, apa­rentemente melífluos: com frequência aqueles dizem a verdade, estes jamais. ”

E o mais surpreendente nesse caso é que as pessoas que advertimos não ficam tristes com o que deveria penalizá-las, mas zangadas com o que não deveria tocá-las; pois a falta cometida não as aborrece em absoluto, em troca têm dificuldade de admitir repreensões: o que caberia, no entanto, é sofrermos por termos sido culpados de um delito, e alegrarmo-nos por nos infligirem uma correção.

XXV

91. Fazer e receber advertências é portanto o critério da amizade verdadeira, contanto seja feito com isenção de espírito, sem maldade, e que o outro aceite pacientemente, sem irritar-se: assim devemos nos persuadir de que não há flagelo maior na amizade que a adulação, a bajulação, a baixa complacência. Pois, chame-se com os nomes que se quiser, é preciso estigmatizar esse vício das pessoas frívolas e hipócritas, cuja palavra busca sempre agradar, jamais exprimir a verdade.

92. Como a simulação em todos os domínios é nefasta - já que ela desvia da verdade nosso julga­mento e o deforma - , ela repugna particularmente à amizade: ela arruina a verdade, sem a qual a palavra amizade não tem o menor valor. Pois, se a força da amizade reside no fato de reunir de certo modo vários espíritos num só, como isso poderia se realizar-se dentro de cada um não se pudesse encontrar um espírito único e estável, mas volúvel, inconstante, múltiplo?

93. Com efeito, que pode haver de mais ins­tável, de mais errante que um espírito que gira como um catavento ao sabor das impressões, das decisões de outra pessoa, e até mesmo de um franzir de cenhos ou de um sinal de cabeça?

Dizem não, digo não. Sim? sim!

Em suma, dei-me a mim mesmo como lei consentir a tudo, diz também Terêncio, mas desta vez através do personagem de Gnathon, um tipo de amigo que geralmente é um tanto leviano freqüentar.

94. No entanto há muitos como Gnathon, e, ainda que superiores a ele pela posição, a fortuna ou a reputação, sua complacência permanece insuportável, quando sua inconsistência é acrescida de um certo prestígio.

95. Mas identificar o adulador ou o amigo verdadeiro, e distingui-los, é tão fácil, com um pouco de aplicação, quanto discernir tudo o que é falsidade e imitação em geral do que é autêntico e verdadeiro. A assembléia do povo, em parte consti­tuída por gente bastante ignorante, sabe facilmente reconhecer o que diferencia o demagogo, isto é, um cidadão complacente e irresponsável, e o cidadão responsável, sério e ponderado. 

96. A que adulações, recentemente, não recor­reu Caio Papírio para influenciar a dita assembléia, quando ele apresentava uma lei sobre a reeleição dos tribunos da plebe! Nós o combatemos; mas não direi nada de meu papel: prefiro falar de Cipião.

Que gravidade, deuses imortais, que grandeza havia em seu discurso: facilmente se teria acreditado ser ele o chefe do povo romano, e não um de seus ci­dadãos! Mas vós estáveis lá e esse discurso circula nas mãos de todos. A tal ponto que uma lei vinda do povo foi rechaçada pelo voto do povo. Para voltar a um exemplo que me concerne: vós recordais, na época do consulado de Quinto Máximo, irmão de Cipião, e de Lúcio Mancino, o quanto se afigurava popular a lei de Caio Licínio Crasso sobre o es­tatuto sacerdotal. Nela, a nomeação dos membros do colégio era entregue à arbitragem do povo. E foi ele o primeiro a querer, no fórum, dirigir-se ao povo para consultá-lo. No entanto, seu discurso aliciador não pesou muito face à religião dos deu­ses imortais, defendida por mim. Isso aconteceu quando eu era pretor, cinco anos antes de ser eleito ao consulado: assim, a própria causa, bem mais do que uma grande autoridade da defesa, assegurou o feliz desfecho desse caso.

 XXVI

97. Se nesse palco que é a assembléia, onde ficções e suposições dominam a cena, a verdade conserva seu valor, certamente à condição de ser revelada e demonstrada, como se deverá agir em relação à amizade - da qual a verdade é o único critério, e na qual, se não consentimos em nos mos­trar, como se diz, de coração aberto, nada haverá de confiável, de positivo, em amar e ser amado - quan­do se ignora o quanto ela corresponde à verdade? Essa complacência, porém, mesmo perniciosa, não pode prejudicar ninguém, a não ser aquele que a acolhe e faz dela suas delícias. Disso resulta que o mais autocomplacente, o mais contente consigo, será também o que dará mais ouvidos aos tagarelas complacentes.

98. Claro está que a virtude também ama a si mesma: ela se conhece, evidentemente, bem de perto, e sabe a que ponto merece ser amada. Mas, de minha parte, não é da virtude, no sentido estrito, que falo, mas da concepção que as pessoas fazem dela. As pessoas que podem se honrar da referida virtude são menos numerosas que as que querem se passar por tais. São estas que a complacência afaga agradavelmente: tão logo lhes é dirigida uma velhacaria que vai no sentido do que elas querem, ficam convencidas de que essas balelas são a prova de seu mérito. Portanto é nulo esse tipo de amizade, no qual um não quer ouvir a verdade, enquanto o outro está pronto a mentir. A complacência dos parasitas de comédia não nos pareceria tão divertida se os fanfarrões não existissem:

Tais realmente metem muito reconhecimento ?

Teria sido suficiente responder: “Muito...” “Enormemente!”, responde o outro: o obsequioso jamais perde a ocasião, não importa em que domínio, de encarecer ainda mais os desejos de grandeza da pessoa que ele quer envolver.

99. Por conseguinte, mesmo que essa triste e vã adulação não tenha muito crédito senão junto àqueles que se comprazem nela e a atraem, convém prevenir as pessoas mais ponderadas e mais sérias a prestarem atenção para não se deixarem cair na armadilha de uma complacência hábil. O adulador que manobra abertamente não pode passar desper­cebido, a não ser de um perfeito idiota; mas para evitar que o adulador hábil, oculto, consiga se in­sinuar, é preciso ser muito crítico. Pois é bem mais difícil detectar aquele que pratica a complacência pela contradição: para adular, ele faz de conta que contesta, depois entrega as armas no último minuto dando a impressão de capitular totalmente, para que aquele com quem discutiu pareça ter sido mais perspicaz que ele. Mas que há de mais vergonhoso que ser logrado? Para que isso não aconteça, é preciso estar muito viligante.

Hoje vais me envolver e lograr magistralmente, como àqueles estúpidos velhos de comédia!...

100. Mesmo nas peças de teatro, é particular­mente estúpida a figura do velho imprevidente e crédulo! Mas pergunto-me agora por que razão, tendo partido da amizade dos homens perfeitos, ou seja, dos sábio - falo daquela sabedoria que parece poder descer entre os humanos a discussão derivou para as amizades de baixa categoria. Voltemos portanto a nosso primeiro debate, que concluiremos em breve.

XXVII

A virtude, insisto: a virtude, meus bons Caio Fânio e Quinto Múcio, ao mesmo tempo nos concilia as amizades e no-las conserva. É nela que reside a concordância geral de todas as coisas, a estabilidade, a constância: quando elevou e fez resplandecer sua luz, e depois percebeu e reconhe­ceu a mesma luz em outrem, ela se aproxima dele e recebe, em recompensa, uma parte do brilho que vem do outro; no centro dessas interferências, passa a brilhar, seja a figura do amor, seja a figura da amizade. Ambas, com efeito, derivam do verbo amar; entretanto, amar não é senão querer bem o ser que se ama, sem que se trate de preencher uma falta ou de obter um benefício: o qual desabrocha sozinho, no contexto da amizade, mesmo que de maneira nenhuma tenha sido buscado.

101. Essa afeição, no tempo de nossa juven­tude, nós a tivemos por homens velhos. Lúcio Paulo, Marco Catão, Caio Galo, Públio Nasica, Tibério Graco, o sogro de nosso Cipião. Velhos por nossa vez, encontramos uma forma de quietu­de na afeição dos jovens, a vossa, ou a de Quinto Tuberão; na verdade, experimento igualmente um prazer genuíno na afetuosa assiduidade dos jovens Públio Rutílio e Aulo Virgínio. E posto que a vida e a natureza são articuladas de tal modo que uma geração suceda à outra, é acima de tudo desejável acompanhar os que partiram ao mesmo tempo que nós, e chegar com eles, como se diz, ao final da corrida.

102. Mas, como o humano é frágil e perecível, teremos sempre de buscar ao redor de nós pesso­as que amaremos e por quem seremos amados, privada de afeição e de simpatia, a vida não tem qualquer alegria. Para mim, afirmo, Cipião, embora subitamente arrebatado, vive e viverá sempre: amei a virtude desse homem brilhante, e essa virtude não se extinguiu. Não sou o único a ver seu brilho passar diante de meus olhos, eu que sempre a tive a meu alcance, firme como uma lanterna: ela brilhará e será um farol para nossos descendentes. Ninguém jamais conceberá ambições ou esperanças um pou­co elevadas sem pensar que deve tomar por modelo a memória e a imagem de Cipião.

103. Em suma, não há nada, em tudo o que recebi da fortuna ou da natureza, que eu possa comparar à sua amizade: nela eu encontrava uma comunidade de concepções políticas, conselhos para meus assuntos privados, um descanso cheio de satisfação. Jamais o ofendi no menor detalhe, tanto quanto pude perceber; nada ouvi dele que eu não quisesse ter ouvido. Tínhamos uma única e mesma casa, o mesmo estilo de vida, e isso nos aproximava; e não apenas o tempo passado no exército, mas também nossos passeios no campo nos reuniam.

104. Que dizer também de nossos esforços para saber sempre mais e para aprender coisas novas, estudos que nos mantiveram afastados do olhar das multidões e ocuparam nossas horas de lazer?

Se a recordação dessas imagens, a emoção que a elas permanece ligada, morresse juntamente com Cipião, eu seria totalmente incapaz de suportar a falta de um homem que foi o mais próximo de mim, e que eu mais amava. Mas essas imagens não se extinguiram, minha meditação e minha memória tendem antes a conservá-las e aumentá-las, e, mesmo que eu fosse radicalmente despojado delas, a própria idade me traria um poderoso consolo. Pois, de todo modo, doravante não terei mais de passar muito tempo no meio dessas saudades; todo sofrimento breve é obrigatoriamente suportável, mesmo que intenso.

Eis o que eu tinha a dizer sobre a amizade. E como não há amizade sem virtude, exorto-vos a reservar à virtude tal importância que, exceto ela, em vosso pensamento nada seja preferível à amizade.

Filosofia - Estoicismo
Cartas e dilálogos - Moral, Virtude
10/20/2021 4:13:00 PM | Por Marcus Tullius Cicero
Saber envelhecer

Qual será então minha recompensa, Tito, se alivio tua pena e se apazíguo o tormento que te faz sofrer? Pois me é permitido, não é mesmo, Atico?, dirigir-me a ti com os mesmos versos que os dirigidos a Flaminino, esse homem sem recursos mas cheio de boa-fé. Estou certo, de resto, que não irás. como Flaminino, te inquietar assim, Tito, dias e noites1. Conheço tua ponderação e a impavidez de teu caráter; sei igualmente que não trouxeste de Atenas so­ mente um sobrenome, mas também uma cultura e uma sabedoria. Suspeito porém que te perturbas às vezes mais que eu com o rumo que tomam os acontecimentos2. Consolar-te seria um empreendimento demasiado árduo, deixemo-lo para mais tarde.

Em troca, hoje pareceu-me útil escrever-te sobre a velhice.

Com efeito, gostaria que fôssemos aliviados, tu e eu, desse fardo que já nos pesa ou - fatalmente - nos pesará. Um fardo que suportas e suportarás, como sa­bes tudo suportar, com paciência e razão. Mas isso não poderia te impedir de ser o objeto da dedicatória desta obra sobre a velhice que eu tinha vontade de escrever. Ela será útil a nós dois. No que me concerne, senti tal prazer em escrevê-la que esqueci os inconvenientes dessa idade; mais ainda, a velhice afigurou-se-me re­pentinamente doce e harmoniosa. Jamais os benefícios da filosofia serão suficientemente enaltecidos! Contanto seja praticada, ela permite atravessar sem desagrado todas as épocas da vida. Mas, de tudo isso, falamos com frequência e tomaremos a falar ainda; o livro que te dedico aqui trata da velhice. Atribuí as palavras que ele enuncia não a Titono3, como o fez Aríston de Ceos - pois lhe dariam pouco crédito sobre esse assunto mas ao velho Marco Catão. Para dar mais força à exposição, coloquei frente a ele Lélio e Cipião, maravilhados ante sua capacidade de suportar a velhice.

E portanto a eles que Catão responde. Se sua erudição te parece aqui maior que em seus livros, imputa isto à literatura grega que ele
muito admirava, como sabemos, em seus velhos dias. Mas por que dizer mais? Deixemos Catão te expor tudo o que penso da velhice.

Cipião: Gaio Lélio e eu admiramos tua imensa sabedoria em muitos domínios, Catão! Mas uma coisa nos espanta acima de tudo: jamais pareceste achar a velhice penosa. No entanto, a maior parte dos velhos diz que ela é mais pesada de suportar que o Etna!

Catão: Pareceis vos maravilhar. Cipião e Lélio, de uma coisa em verdade bem normal. Por certo, os que não obtêm dentro de si os recursos necessários para viver na felicidade acharão execráveis todas as idades da vida. Mas todo aquele que sabe tirar de si próprio o essencial não poderia julgar ruins as necessidades da natureza. E a velhice, seguramente, faz parte delas! Todos os homens desejam alcança-la, mas, ao ficarem velhos, se lamentam. Eis aí a inconsequência da estupidez! Queixam-se de que ela chegue mais furtivamente do que a esperavam. Quem então os forçou a se enganar assim? E por qual prodígio a velhice sucederia mais depressa à adolescência do que esta última sucede à infância? Enfim, por que diabos a velhice seria menos penosa para quem vive oitocentos anos do que para quem se contenta com oitenta? Uma vez transcorrido o tempo, por longo que seja, nada mais consolará uma velhice idiota...

Vós que costumais admirar minha sabedoria - possa ela ser digna de vossa opinião e de meu nome! -, reparai que somos sábios se seguimos a natureza como um deus, curvando-nos às suas coerções. Ela é o melhor dos guias. Aliás, não seria verossímil que, tendo disposto tão bem os outros períodos da vida, ela se precipitasse no último ato como o faria um poeta sem talento. Simplesmente, era preciso que houvesse um fim; que, à imagem das bagas e dos frutos, a vida, espontaneamente, chegada sua hora, murchasse e caísse por terra. A tudo isso o sábio deve consentir pacificamente. Pretender resistir à natureza não teria mais sentido do que querer - como os gigantes - guerrear contra os deuses.

Lélio: De pleno acordo, Catão! Mas já que esperamos e mesmo queremos nos tomar velhos, ficaríamos felizes, Cipião e eu, de aprender con­tigo (e com muito tempo de antecedência) como suportar da melhor maneira os assaltos progressivos da idade.

Catão: Responderei de bom grado, Lélio, so­ bretudo se, como dizes, isto vos é agradável.

Lélio: Sim, nós o desejamos, se isso não te aborrece. Gostaríamos que, após a longa estrada que percorreste e que teremos de percorrer por nossa vez, nos descrevesses o lugar onde chegaste.

Catão: Farei o melhor possível, Lélio. Com frequência escutei os lamentos das pessoas de mi­ nha idade. (Cada qual com seu igual, diz um velho provérbio!) Assim ouvi Gaio Salinator e Espúrio Albino, dois antigos cônsules de minha geração, queixarem-se amargamente de estarem privados dos prazeres sem os quais, supunham, a vida nada mais vale; ou, ainda, de serem agora negligenciados pelos mesmos que os honravam outrora. Escutan­ do-os, eu tinha a impressão de que se enganavam de culpado. Será de fato a idade que devemos in­ criminar? Nesse caso, eu também deveria padecer dos mesmos inconvenientes, e, comigo, todas as pessoas idosas. Ora, sei de muitos que vivem sua velhice sem jeremiadas, aceitam alegremente estar liberados da carne e são respeitados pelos que os cercam. É portanto ao caráter de cada um, e não à velhice propriamente, que devemos imputar todas essas lamentações. Os velhos inteligentes, agradá­ veis e divertidos suportam facilmente a velhice, ao passo que a acrimônia, o temperamento triste e a rabugice são deploráveis em qualquer idade.

Lélio: Certamente, Catão! Mas poderiam te objetar que teu poder, tua riqueza e teu prestígio tomam tua velhice mais suportável. Não é o caso da maioria...

Catão: Há verdade no que dizes, Lélio, mas isso não explica tudo. Conta-se que um serifiano [habitante da ilha grega de Serifos], querendo discutir com Temístocles, disse-lhe que este devia seu renome menos à sua própria glória que à de sua pátria. Temístocles respondeu: “Por Hércules! Se eu fosse serifiano e tu ateniense, nem por isso serias mais ilustre”. Pode-se raciocinar do mesmo modo a propósito da velhice. Na extrema indigência, mes­mo o sábio não poderia considerá-la leve; quanto ao imbecil, ele ajulgará pesada mesmo na riqueza.

Para dizer tudo, Cipião e Lélio, as melhores armas para a velhice são o conhecimento e a prática das virtudes. Cultivados em qualquer idade, eles dão frutos soberbos no término de uma existência bem vivida. Eles não somente jamais nos abando­nam, mesmo no último momento da vida - o que já é muito importante - como também a simples consciência de ter vivido sabiamente, associada à lembrança de seus próprios benefícios, é uma sensação das mais agradáveis.

Quando eu era jovem, amei como a um compa­nheiro de minha idade o velho Quinto Máximo4, o que reconquistou Tarento. Havia nesse homem um ar de gravidade jovial e cortês que não se perdera com os anos. Certamente, no começo de nossa ami­zade, embora de uma idade respeitável, ele não era ainda muito velho. Seu primeiro consulado datava de um ano após meu nascimento; jovem recruta, eu o acompanhei diante de Cápua durante seu quarto consulado, e depois, cinco anos mais tarde, diante de Tarento. Questor, exerci esse cargo sob o con­sulado de Tuditano e Cetego, enquanto ele. então muito velho, fazia votar a lei Cincia destinada a proibir presentes e gratificações aos advogados. Não obstante sua idade, ele conduzia ainda a guerra como um jovem, mas sabendo temperar o ímpeto juvenil de Aníbal. Nosso amigo Ênio exprime tudo isso soberbamente:

Um homem, dando tempo ao tempo, soube restabelecer nosso governo. A todos os ru­mores, preferiu a salvação. E a glória desse herói resplandeceu assim ainda mais.

E que controle, que habilidade na tomada de Tarento! Salinator, que se refugiara na cidadela após ter perdido a cidade, gabou-se diante dele dizendo: “Foi graças a mim, Quinto Fábio, que retomaste Tarento”. Ao que o ouvi responder soltando uma gargalhada: “Mas claro! Se não a tivesses perdido, eu jamais a teria retomado”. Ele foi tão brilhante sob a toga quanto sob o uniforme. Por ocasião de seu segundo consulado, apesar da apatia de seu colega Espúrio Carvílio, resistiu o quanto pôde ao tribuno da plebe Gaio Flamínio, que queria, contra a opinião do Senado, distribuir as terras públicas do Picenum e da Gália aos particulares. Quando foi áugure, ousou dizer que se agia sempre sob bons auspícios ao buscar a salvação do Estado, ao passo que todas as decisões que colocavam o Estado em perigo eram necessariamente tomadas sob maus auspícios.

Desse homem conheço numerosos fatos e gestos notáveis, mas nada é mais digno de admiração que a maneira como suportou a morte de seu filho, um ex-cônsul de grande renome. O elogio fúnebre que pronunciou nessa ocasião circulou muito; quando o lemos, que filósofo encontraria graça aos nossos olhos? Esse homem não era apenas admirável em público, à vista de todos, era mais sublime ainda na vida privada, em sua casa. Que conversação! Que julgamento! Que conhecimento da Antiguidade! Que ciência do direito augural! Singularmente culto para um romano, ele conhecia, além da his­tória romana, a do mundo inteiro. De minha parte, saboreava apaixonadamente suas conversas, como se eu pressentisse o que ia acontecer, a saber: que, ele morto, eu não mais teria mestre.

Por que ter falado tão longamente de Máximo? Para vos mostrar a que ponto seria um erro julgar infeliz sua velhice. Por certo, nem todo mundo tem a chance de ser um Cipião ou um Máximo, que colecionam as cidades tomadas de assalto, os combates vitoriosos em terra ou no mar. as guerras conduzidas até a vitória... Mas uma vida tranqüila, honorável e distinta pode do mesmo modo levar a uma velhice pacífica e suave. Tal foi, dizem, a de Platão, que morreu aos oitenta anos em pleno trabalho de escrita; ou ainda a de Isócrates, que afirma ter redigido seu livro O Panatenaico em seu nonagésimo quarto ano e que viveu, depois, cinco anos ainda. Seu mestre, Górgias de Leôncio, viveu aliás cento e sete anos sem interromper jamais seus estudos nem suas pesquisas. Como lhe perguntas­ sem por que se obstinava em viver tanto tempo, ele respondeu: “Nada tenho a reprovar à velhice”.

Luminosa resposta, e digna de um homem culto!

São suas próprias faltas, suas insuficiências, que os imbecis imputam à velhice. Não é o caso de Ênio, que citei há pouco. Ênio, como um cavalo valente, muitas vezes vitorioso na arena de Olímpia e que, cumulado de velhice, hoje repousa...

Ele compara sua velhice à de um cavalo va­lente e vitorioso! Podeis aliás lembrar-vos dele facilmente: dezoito anos após sua morte foram eleitos os dois cônsules Tito Flaminino e Mânio Acílio. Foi portanto sob o segundo consulado de Cepião e de Filipo que ele morreu. Quanto a mim, aos sessenta e cinco anos defendi, com voz forte e a plenos pulmões, a lei Voconia5, enquanto Ênio, aos setenta - pois ele chegou a essa idade -, su­portava tão bem a pobreza e a velhice, esses dois fardos reputados os mais pesados, que quase dava a impressão de se alegrar com elas.

O que reprovam à velhice?

Pensando bem, vejo quatro razões possíveis para acharem a velhice detestável. 1) Ela nos afastaria da vida ativa. 2) Ela enfraqueceria nosso corpo. 3) Ela nos privaria dos melhores prazeres. 4) Ela nos aproximaria da morte.

Muito bem. Se estais de acordo, examinemos essas razões e vejamos um pouco a justeza desses argumentos.

A velhice afasta da vida ativa e subtrai dos as­suntos públicos? De quais? Daqueles que, sozinho, um homem jovem e vigoroso pode enfrentar? Não há assuntos públicos que, mesmo sem força física, os velhos podem perfeitamente conduzir graças à sua inteligência? Porventura restava de braços cru­zados Quinto Máximo? De braços cruzados também Lúcio Paulo, o Macedônio, teu próprio pai, o sogro do excelente homem que foi meu filho? E os outros velhos, os Fabrício, Cúrio ou Coruncânio, quando punham sua sabedoria e sua autoridade a serviço do Estado, não faziam nada?

Ápio Cláudio6 era não apenas velho, mas cego. Isto porém não o impediu de se insurgir quando o Senado se preparava para assinar o tratado de paz com Pirro, nem de pronunciar estas fortes palavras que Ênio transcreveu em versos:

Fossa razão, até então, era correta, Onde foi que ela se desencaminhou para ter se tornado assim e outras coisas mais, ditas sem rodeios!

Vós conheceis o poema de Ênio. Mas pode-se ler tam­bém o discurso autêntico de Ápio Cláudio. Esse feito notável se produzia dezessete anos após seu segundo consulado. Ora, dez anos haviam trans­corrido entre os dois; além disso, sabe-se que ele havia sido inicialmente censor, antes de seu pri­meiro consulado. Outras tantas provas de que era realmente muito velho no momento dessa guerra contra Pirro... E no entanto, é exatamente assim que o descreve a tradição.

Os que negam à velhice a capacidade de tomar parte dos assuntos públicos não provam nada, por­tanto. É como se dissessem que, num barco, o piloto repousa, tranquilamente sentado na popa, apoiado ao timão, enquanto os outros escalam os mastros, se ocupam sobre o convés ou esvaziam a latrina. Em verdade, se a velhice não está incumbida das mesmas tarefas que a juventude, seguramente ela faz mais e melhor. Não são nem a força, nem a agili­dade física, nem a rapidez que autorizam as grandes façanhas; são outras qualidades, como a sabedoria, a clarividência, o discernimento. Qualidades das quais a velhice não só não está privada, mas, ao contrário, pode muito especialmente se valer.

Porventura julgais-me ocioso, a mim que estive implicado em todo tipo de guerras - como soldado, tribuno, legado ou cônsul -, porque não mais participo de nenhuma? Na verdade, doravante sugiro ao Senado as campanhas a empreender e as táticas a empregar; previno os desígnios som­brios de Cartago recomendando que lhe declarem guerra. Cartago que só cessarei de temer após sua destruição...

Possam os deuses te permitir, Cipião, levar a cabo todos os empreendimentos de teu avô!7 Eis já trinta e três anos que ele morreu, mas a lembrança desse herói corre de um ano a outro. Morreu um ano antes que eu fosse censor e nove anos após meu consulado, durante o qual ele próprio foi eleito cônsul pela segunda vez. Acaso ele lamentaria ter ficado velho, se tivesse vivido cem anos? Por certo que não. Sem dúvida, seria incapaz de atacar, pular, saltar, lançar o dardo ou brandir sua espada no corpo a corpo... Em compensação, seguramente se serviria de sua reflexão e de seu julgamento. Se essas qualidades não existissem entre os velhos, nossos antepassados jamais teriam chamado o conselho supremo Senado, isto é, “assembléia dos anciãos” .

Em Esparta, os magistrados mais importantes são “velhos” que obtêm inclusive sua glória desse nome. E se vos derdes o trabalho de aprender um pouco de História estrangeira, vereis que numero­sos Estados desmoronaram por culpa de homens jovens, e que outros foram mantidos e restabelecidos por velhos.

Vejamos! Como pudestes deixar vosso país deteriorar-se tão rapidamente?

A essa questão colocada pelo poeta Névio, em O Jogo, a primeira das respostas é sempre:

Sob a influência de novos oradores, de jovens loucos!

Sem dúvida alguma, a irreflexão é própria da idade em flor, e a sabedoria, da maturidade.

O fio da lembrança

Certo. Mas com a velhice, dirão, a memória declina!

É o que acontece, com efeito, se não a culti­vamos ou se carecemos de vivacidade de espírito. Temístocles conhecia de cor o nome de todos os seus concidadãos; pensais que, ao envelhecer, ele passou a chamar Aristides de Lisímaco? No que me concerne, conheço bem o nome de meus con­temporâneos e também o de seus pais e avós. Ao ler os epitáfios funerários, não temo perder o fio da lembrança, como se diz; muito pelo contrário, essa leitura me refresca a memória. E, além disso, jamais vi um velho esquecer o lugar onde escondeu seu dinheiro. Os velhos se lembram sempre daquilo que os interessa: promessas sob caução, identidade de seus devedores e credores, etc.

E os jurisconsultos? Os pontífices? Os áugures? Os filósofos? Certamente são idosos, mas que me­mória! Aliás, os velhos a conservam tanto melhor quanto permanecem intelectualmente ativos. Isso é tão verdadeiro para os homens públicos, os homens célebres, quanto para os particulares tranqüilos e sem ambição. Quando já era bastante idoso, Sófocles escrevia ainda tragédias. Por esse motivo, acusaram-no de negligenciar seus negócios fami­liares e seus filhos o fizeram comparecer à justiça. Assim como é corrente, em Roma, retirar aos pais julgados incapazes a administração de seus bens, eles queriam que os juizes, levando em conta seu desatino, o impedissem de gerir seu patrimônio. Conta-se então que o velho, lendo a estes últimos a peça que acabava de escrever - Édipo em Colona -, perguntou-lhes se, em sua opinião, era a obra de um débil. E foi após essa leitura que os juizes decidiram absolvê-lo.

Assim, a idade o constrangeu a cessar sua atividade? E o que dizer em relação a Homero ou Hesíodo. Simonides ou Estesicoro? E em relação a todos de quem já falei? E em relação a Isócrates e Górgias? E os primeiros filósofos, Pitágoras e Demócrito, e Platão, e Xenócrates, e depois deles Zenão e Cleantes ou o estoico Diógenes que vós mesmos vistes em Roma, acaso um único deles viu-se reduzido à inatividade pela velhice? Ao contrário, não estudaram e trabalharam até o fim?

A lira de Sócrates

Seja! Ponhamos de lado esses divinos estu­dos! Eu poderia igualmente vos citar camponeses romanos do país sabino, vizinhos e amigos meus que, por nada deste mundo, quereriam se abster dos principais trabalhos agrícolas: semear, colher ou enceleirar as colheitas. Também entre eles isso não é muito espantoso: ninguém é bastante velho para não esperar viver um ano mais. E é sem esperança precisa de se beneficiarem que eles se entregam a esses trabalhos:

Ele planta árvores que crescerão para outros, como diz nosso caro Cecílio Estácio em Os Sinefebos.

Não, não há nenhuma hesitação nesse campo­nês, por mais velho que seja, se lhe perguntassem para quem semeia:

Para os deuses imortais que querem que eu, tendo recebido esses bens de meus ancestrais, os transmita a meus descendentes.

Cecílio Estácio é muito mais convincente ao fazer falar assim esse velho preocupado com a geração futura, do que quando escreve:

Por Pólux! Mesmo se não trouxesses nenhuma outra calamidade, velhice, já é muito, quando se vive muito tempo, nos obrigares a sofrer tantos desagrados. é esquecer as satisfações.

Aliás, os adolescentes são vítimas dos mesmos desagrados... Mas Cecílio está redondamente en­ganado quando nos diz:

Pior, na velhice, é sentir que desagradamos a todo o mundo.

O certo seria agradar e não desagradar! Se os velhos veem encanto nos adolescentes de boa natureza, se a velhice é aliviada pela deferência da juventude, os adolescentes, por seu lado, apreciam os preceitos dos velhos que sabem lhes dar o gosto das virtudes morais. No que me concerne, tenho a impressão de vos ser tão agradável quanto o sois para mim.

Assim, percebeis que, longe de ser passiva e inerte, a velhice é sempre atarefada, fervilhante, ocupada em atividades relacionadas com o passado e os gostos de cada um. E certos velhos, em vez de se repetirem, continuam mesmo a estudar coisas novas. Sólon, por exemplo, se deleita, em seus versos, de aprender todo dia alguma coisa nova, ao envelhecer. Fiz como ele, descobrindo a literatura grega numa idade avançada. Entreguei-me a esse estudo com avidez, como se quisesse estancar uma sede premente. Recolhi todos os exemplos que vos cito aqui. Ao ficar sabendo que Sócrates agiu do mesmo modo estudando a lira, cogitei fazer o mesmo. (Os antigos gostavam de dedicar-se à lira.) Mas foi à literatura que finalmente consagrei meus esforços.

As forças da idade

A falta de vigor. É o segundo inconveniente suposto da velhice. Confesso não sentir essa falta; tampouco quando adolescente eu lamentava não possuir a força do touro ou do elefante. É preciso servir-se daquilo que se tem e, não importa o que se faça, fazê-lo em função de seus meios. Que frase mais pungente a de Mílon de Crotona! Envelhecido, e observando no estádio atletas em treinamento, eis que ele olha seus próprios bíceps e exclama num lamento: “Ai, os meus estão agora arruinados!”. Não são apenas teus bíceps que estão arruinados, imbecil, mas tu mesmo! Pois não é a ti mas a teus bíceps e abdominais que devias teu renome. Em vão buscar-se-ia um pensamento desse gênero num Sexto Elio, ou, muitos anos antes dele, num Tibério Coruncânio, ou, mais recentemente, num Públio Crasso. Ao formularem regras de direito para seus concidadãos, estes permaneceram clarividentes até seu último suspiro.

É antes para o orador que eu temeria os incon­venientes da velhice. Seu ofício, com efeito, exige não apenas espírito mas também pulmões sólidos e força física. É verdade que, não sei por qual proces­so, o timbre da voz, quando envelhecemos, adquire um certo brilho. De minha parte, e vós sabeis minha idade, não perdi minha voz. Todavia, é bom que um homem idoso se exprima pausada e suavemente. Aliás, o discurso tranqüilo de um velho eloqüente basta às vezes para reter sua audiência. E, se não se consegue isso, ao menos pode-se dar (como o estou fazendo) lições a um Cipião e a um Lélio. Que há de mais agradável que uma velhice cercada de jovens estudiosos?

Reconhecer-se-á à velhice suficiente vigor para instruir os adolescentes, para formá-los e prepará-los aos deveres de seu futuro encargo? E que outra tarefa mais bela do que esta? Em minha opinião, Cneu e Públio Cipião8, assim como teus dois antepassados Lúcio Emílio Paulo e Cipião, o Africano, tinham sorte de estarem cercados de jovens de qualidade. Jamais deveríamos lamentar os que ensinam os bons princípios, mesmo quando suas forças declinam ou enfraquecem. Aliás, esses enfraquecimentos físicos são com frequência mais imputáveis aos excessos da juventude que aos da idade madura. A herança de uma juventude volup­tuosa ou libertina é um corpo extenuado.

Numa frase que lhe atribui Xenofonte, o ve­lho Ciro, moribundo, assegura que não se sentia, envelhecido, mais fraco que em sua juventude. Lembro-me de ter visto, em criança, o quanto Lúcio Metelo havia conservado forças, ele que, nomeado grande pontífice após seu segundo con­sulado, exerceu seu sacerdócio durante vinte e dois anos, com tanto vigor que não tinha a lamentar sua juventude.

Enfim, nada direi de mim mesmo, embora essa tentação seja própria dos velhos e em geral a perdoem. Vós observastes que, em Homero, Nestor não cessa de exibir seus méritos. Vendo crescer uma terceira geração, ele não teme, ao cobrir a si próprio de elogios merecidos, passar por presunçoso ou tagarela. Como o diz Homero:

De sua boca escorriam palavras mais doces que o mel.

Para essa espécie de doçura não há nenhuma necessidade de força física. Agamêmnon, o chefe dos gregos, teria aliás preferido ter a seu lado dez Nestor que dez Ajax. E sua convicção era certa: se os tivesse tido, Troia logo seria conquistada.

Um boi sobre os ombros

Voltemos a mim. Estou em meu octagésimo quarto ano de vida e, claro, gostaria de poder me glorificar do mesmo modo que Ciro. Mas sejamos francos: não sou mais o homem vigoroso que foi o simples soldado, o questor durante a guerra Púnica, o cônsul na Espanha ou ainda, quatro anos mais tar­de, o tribuno militar combatendo nas Termópilas sob o consulado de Mânio Acílio Glabrião. No entanto, como podeis constatá-lo, a velhice não me exauriu nem me abateu completamente. E ninguém pode me censurar um enfraquecimento qualquer: nem a Cú­ ria, nem a tribuna dos oradores, nem meus amigos, meus clientes ou meus hóspedes. Com efeito, jamais assumi aquele provérbio muito antigo e famoso que recomenda ser velho cedo se quisermos sê-lo por muito tempo. De minha parte, prefiro ser velho por menos tempo do que sê-lo prematuramente. Por essa razão, j amais recusei uma conversa a ninguém.

Ah, evidentemente, tenho menos força que cada um de vós dois! Mas vós também não tendes o vigor do centurião Tito Pôncio. Isso quer dizer que ele %os é superior? O essencial é usar suas forças com parcimônia e adaptar seus esforços a seus próprios meios. Então não sentimos mais frustração nem fraqueza. Conta-se que Mílon fez sua entrada no estádio de Olímpia carregando um boi sobre os ombros. O que vale mais? Ter esse vigor físico ou aquele, inteiramente intelectual, de Pitágoras? Em suma, usemos tal vantagem quando a tivermos e não a lamentemos quando ela desapareceu. Acaso os adolescentes deveriam lamentar a infância e depois, tendo amadurecido, chorar a adolescência? A vida segue um curso muito preciso e a natureza dota cada idade de qualidades próprias. Por isso a fraqueza das crianças, o ímpeto dos jovens, a seriedade dos adultos, a maturidade da velhice são coisas naturais que devemos apreciar cada uma em seu tempo.

Suponho que sabes, Cipião, o que ainda é capaz de fazer Masinissa, rei da Numídia9 aos noventa anos. Quando ele empreende uma viagem a pé, segue até o fim sem montar a cavalo; quando é a  cavalo que viaja, jamais desce dele. Quer chova ou faça frio, vai com a cabeça descoberta. Seu corpo é seco e vigoroso. Assim ele assume todos os deveres e os encargos de um rei. Isso prova que o exercício físico e a temperança permitem conservar até na velhice um pouco da resistência de outrora.

A velhice seria sem forças?

Mas ninguém exige dela ser forte! As leis e os costumes são feitos de modo a dispensarem nossa idade dos encargos que exigem um mínimo de vigor. Assim jamais nos exigem ir além de nossas forças, permitem-nos mesmo permanecer aquém. Objetar-me-ão que muitos velhos são tão fracos que não podem mais sequer assumir qualquer dos encargos ligados a uma função ou simplesmente à vida. Mas esse defeito não é próprio da velhice; é uma questão de saúde. Como era fraco teu pai adotivo, o filho de Cipião, o Africano! Que saúde precária ou mesmo nula! Apesar disso, ele foi a segunda chama da cidade, ele cuja sólida cultura se somava à grandeza de alma de seu pai. Por que espantar-se de que certos velhos sejam fracos quan­do os próprios adolescentes nem sempre escapam a essa fatalidade? Compreendei bem isto, Lélio e Cipião: é preciso resistir à velhice e combater seus inconvenientes à força de cuidados; é preciso lutar contra ela como se luta contra a doença; conservar a saúde, praticar exercícios apropriados, comer e beber para recompor as forças sem arruiná-las. Mas não basta estar atento ao corpo; é preciso ainda mais ocupar-se do espírito e da alma. Ambos, com efeito, se arriscam ser extintos pela velhice como a chama de uma lâmpada privada de óleo. E se o corpo se afadiga sob o peso dos exercícios, o espírito se ali­ via exercitando-se. Quando Cecílio fala dos “velhos tolos de comédia”, ele pensa naqueles caquéticos, molengões, sem memória, defeito que não se deve imputar à velhice propriamente dita mas a uma velhice preguiçosa, indolente e embotada. O atre­vimento e a libertinagem, se são mais freqüentes entre os adolescentes que entre os velhos, nem por isso são próprios de todos os adolescentes; somente dos menos virtuosos; assim também, o disparate, essa forma senil da estupidez, é próprio dos velhos inconseqüentes, e somente deles.

Ápio10, ao ficar velho e cego, tinha o encargo de quatro filhos na força da idade, de cinco filhas, de uma grande casa e de uma vasta clientela. Ele conservava o espírito tenso como a corda de um arco e não se abandonava languidamente à velhi­ ce. Não apenas preservava intacto seu prestígio como também mantinha sua autoridade sobre os familiares. Seus escravos o temiam, seus filhos o respeitavam, mas todos lhe queriam bem. Em sua casa, tradição e autoridade paterna permaneciam a regra.

A velhice só e honrada na medida em que resiste, afirma seu direito, não deixa ninguém roubar-lhe seu poder e conserva sua ascendência sobre os familiares até o último suspiro. Gosto de descobrir o verdor num velho e sinais de velhice num adolescente. Aquele que compreender isso envelhecerá talvez em seu corpo, jamais em seu espírito.

Trabalho atualmente no sétimo livro de minhas Origens. Reúno todos os testemunhos sobre a Antiguidade. Organizo, nesse exato momento, todos os discursos que pronunciei a favor de causas célebres. Ocupo-me do direito augural, pontifical e civil. Estudo assiduamente a literatura grega e, para exercitar minha memória, aplico o método caro aos pitagóricos: toda noite, procuro lembrar- me de tudo o que fiz, disse e ouvi na jornada. Eis como mantenho meu espírito, eis a ginástica a que submeto minha inteligência. Suando e me esfalfando dessa maneira, não me ocorreria pensar em me lamentar sobre o declínio de minhas forças físicas. Meus amigos podem sempre contar comigo. Vou ao Senado regularmente e sem que me forcem. Faço ali proposições maduramente refletidas e as defendo com todas as minhas forças intelectuais —não físicas. E se eu não fosse mais capaz de fazer isso, restar-me-ia o lazer de distrair-me em meu divã pensando em tudo o que doravante me é interdito. Graças ao que foi minha vida, não cheguei a esse ponto. Permaneço ativo. Dedicando nossa vida ao estudo, empenhando-nos em trabalhar sem descanso, não sentimos a aproximação subreptícia da velhice. Envelhecemos insensivelmente, sem ter consciência disso, e, em vez de sermos brutalmente atacados pela idade, é aos poucos que nos extinguimos.

Do bom uso da volúpia

Chegamos agora ao terceiro agravo feito com frequência à velhice: ela seria privada de prazeres. Mas que maravilhosa dádiva nos proporciona a idade se ela nos poupa do que a adolescência tem de pior! Escutai, excelentes jovens, o que dizia outrora Arquitas de Tarento, homem de primeiro plano cujas palavras me foram ditas, em minhaju­ ventude, quando eu estava em Tarento com Quinto Máximo". Não há pior calamidade para o homem que o prazer do sexo, dizia ele; não há flagelo mais funesto que essa dádiva da natureza. A busca de­senfreada da volúpia é uma paixão possessiva, sem controle. Ela é a causa da maior parte das traições em relação à pátria, da queda dos Estados, das conivências funestas com o inimigo. Não há um crime, uma prevaricação que a concupiscência não possa inspirar. É por causa dela que se cometem violações, adultérios e outras torpezas. Se a inteli­gência constitui a mais bela dádiva feita ao homem pela natureza - ou pelos deuses - , o instinto sexual é seu pior inimigo. Onde reina a devassidão, ob­viamente não há lugar para a temperança; lá onde o prazer triunfa, a virtude não poderia sobreviver. Para fazer compreender isso melhor, Arquitas sugeria que se imaginasse um homem no auge da excitação voluptuosa. Nesse estado de extremo gozo, como poderia formular o menor pensamento, refletir ou meditar legitimamente? Assim, nada é mais detestável que o prazer. Quando ele é inten­so e perdura, é capaz de obscurecer totalmente o  espírito. Tais foram as palavras pronunciadas por Arquitas durante uma conversação com o samnita Gaio Pôncio (cujo filho triunfou dos cônsules Es­púrio Postumo e Tito Vetúrio em Caudinium). Meu anfitrião, Nearco de Tarento, sempre devotado a Roma, dizia-me tê-las ouvido de seus pais e seus avós. O próprio Platão de Atenas teria assistido a essa conversação: descobri que ele se encontrava de fato em Tarento durante o consulado de Lúcio Camilo e de Ápio Cláudio.

Por que contei tudo isso? Para vos fazer compreender que, se o bom senso e a sabedoria não são suficientes para nos manter afastados da devassidão, cumpre agradecer também à velhice por nos livrar dessa deplorável paixão. A volúpia corrompe o julgamento, perturba a razão, turva os olhos do espírito, se posso me exprimir assim, e nada tem a ver com a virtude. Foi a contragosto que excluí do Senado, sete anos após seu consulado, Lúcio Flaminino, irmão do muito enérgico Tito Flaminino. Mas julguei ser meu dever sancionar a devassidão. Quando era cônsul na Gália, ele se deixara convencer por uma prostituta12, por oca­sião de um festim, a decapitar a machado um dos  prisioneiros condenados por crime. Enquanto seu irmão fora censor, justamente antes que eu próprio o fosse, ele havia escapado ao castigo. Mas nem Flaco13 nem eu pudemos tolerar tão escandalosas depravações que somavam ao opróbrio privado a desonra do poder.

Com frequência ouvi pessoas mais velhas - que diziam tê-lo sabido da boca dos velhos quando elas próprias eram crianças - evocarem o testemunho de Gaio Fabrício. Este repetia, sempre com espanto, o que lhe teria dito o tessálio Cíneas, por ocasião de uma embaixada junto ao rei Pirro: havia em Atenas um indivíduo14que, embora gabando-se de ser um sábio, afirmava que a busca do prazer devia determinar todos os nossos atos. Mário Cúrio e Tibério Coruncânio desejavam vivamente, por sua parte, que os samnitas - e o próprio Pirro - fossem seduzidos pelas teorias desse homem, pois assim, chafurdados na devassidão, eles seriam bem mais fáceis de vencer. Mário Cúrio fora amigo daquele Públio Décio que, cinco anos antes dele, e cônsul pela quarta vez, havia escolhido a morte para salvar o Estado. Fabrício e Coruncânio também o haviam conhecido, e todos, como o atestam a vida e o heroísmo de Décio, acreditavam firmemente num ideal bastante nobre, naturalmente belo e sublime, para convencer todo homem a devotar-lhe a vida sem considerar o prazer.

Por que falar tanto do prazer? Porque, em vez de censurar a velhice, devemos nos felicitar que ela não nos faça lamentar demais os prazeres. Ao renunciarmos aos banquetes, às mesas que desabam sob os pratos e as taças inumeráveis, renunciamos ao mesmo tempo à embriaguez, à indigestão e à insônia.

Certamente, incapazes que somos de resistir a todas as tentações, temos que ceder, aqui e ali, ao prazer. (Platão escreve formosamente que ele é “a isca do mal”, os homens deixam-se fisgar por ele como peixes.) Se a velhice deve evitar banquetes excessivos, ela pode muito bem desfrutar o prazer das refeições equilibradas. Criança, vi com frequên­cia o velho Gaio Duílio - primeiro vencedor dos cartagineses no mar - retomando do jantar. Imbuí­ do de sua glória, ele tinha a petulância de se fazer escoltar por um portador de tocha e um tocador de flauta; nenhum particular havia se permitido isso antes dele.

A felicidade da partilha

Mas falei bastante dos outros, voltemos a mim! Primeiramente, sempre estive cercado de confrades. Instituíram-se as confrarias durante minha questura, quando se adotou o culto de Cibele, a “Grande Mãe”, vindo da Frigia. É portanto com meus con­frades que eu festejava, com toda a simplicidade apesar dos ardores da juventude. Ora, quanto mais avançava a idade, tanto mais nos moderávamos. E, nesses banquetes, eu apreciava menos o prazer dos sentidos que a companhia de meus amigos e suas conversas. Nossos antepassados tiveram de fato razão de chamar “convívio” (viver junto) o fato de reunir-se em tomo de uma mesa, julgando assim que ele implicava uma certa comunhão de vida. Os gregos são menos bem inspirados: falam de “bebidas em comum” ou de “comidas em comum”, dando assim a impressão de privilegiarem o menos importante. De minha parte, é porque amo a con­versação que me aprazem as refeições prolongadas; não apenas com pessoas da minha idade - restam poucas - mas também da vossa, e especialmente convosco. Sou grato portanto à velhice por ter agu­çado meu gosto pela conversação ao mesmo tempo que abrandava meu interesse pelos pratos e pelos vinhos. Admitindo que há prazer em comer - e não - tendo colocar-me como adversário encarniçado : prazer, muito natural dentro de certos limites quero também reconhecer que a velhice não é insensível a ele. Quanto a mim, gosto de presidir a _ma refeição como o faziam nossos antepassados; gosto dos discursos pronunciados com um copo de vinho à mão depois do banquete principal, como quer a tradição; gosto das taças “muito pequenas " que, como no Banquete de Xenofonte, "se cobrem de gotas de orvalho”; gosto do frescor das salas de refeições de verão, assim como, no inverno, gosto das salas de refeições bem aquecidas e ensolaradas... Aliás, perpetuo esses modestos rituais, mesmo em país sabino; cada dia convido vizinhos à minha mesa e prolongamos a refeição até bem tarde da noite, discutindo sobre várias coisas.

Objetar-me-ão que os velhos não sentem mais tão intensamente aquela espécie de cócegas que o prazer proporciona. É verdade, mas eles tampouco sentem falta disso. Não se sofre por ser privado daquilo de que não se tem saudades. Alguém perguntava um dia a Sófocles, já idoso, se ainda lhe ocorria fazer amor. Ele deu esta resposta admirável: “Os deuses me preservam disso! É com o maior prazer que me subtraí a essa tirania, como quem se livra de um mes­tre grosseiro e exaltado”. Os devassos sentem mais duramente, por certo, e mais cruelmente, a privação da volúpia; mas as pessoas saciadas, apaziguadas, acham preferível ser liberadas do prazer. Sem desejo, não há frustração: logo, é preferível não desejar. E se a juventude permanece a idade dos prazeres, esses são apenas gozos fúteis, como acabo de mostrá-lo.

Além disso, se a velhice não os aproveita da mesma maneira, ela não está totalmente privada deles. Claro que Turpião Ambívio diverte sobretudo os espectadores da primeira fila, mas os do fundo aproveitam igualmente seu espetáculo. Do mesmo modo. a juventude, que vê os prazeres de perto, os usufrui intensamente, mas a velhice, que os consi­dera de mais longe, tira deles um proveito suficiente.

Uma vez liberada a alma, se posso dizer, das obrigações da volúpia, da ambição, das rivalidades e das paixões de toda espécie, as pessoas têm o direito de se isolarem para viverem enfim, como se diz, “consigo mesmas”! Se podemos nos ali­mentar de estudos e de conhecimentos, nada mais agradável que uma velhice tranqüila. Gaio Galo, um amigo de teu pai, Cipião, estudava sem parar o céu e a terra, chegando a calcular quase todas as suas medidas. Quantas vezes foi surpreendido, em pleno dia, completando os desenhos das constela­ções observadas durante a noite! Quantas vezes foi. isto trabalhando em plena noite, quando havia se levantado de manhã cedo! Que prazer ele sentia em nos predizer os eclipses da lua ou do sol!

E que dizer das pesquisas menos técnicas mas que mesmo assim exigem um espírito penetrante! Qual não terá sido o prazer de Névio ao trabalhar em sua Guerra Púnical E de Plauto, em seu Truculentus ou em seu Pseudolusl Eu mesmo conheci Lívio Andronico velho, ele que havia produzido uma peça de teatro seis anos antes de meu nascimento, sob o consulado de Cento e Tuditano, e cuja vida se prolongou até minha adolescência. Para que falar das pesquisas de Públio Licínio Crasso sobre o direito pontificai e o direito civil, ou as do nosso Públio Cipião15, nomeado recentemente grande Pontífice? Todos esses velhos que acabo de nomear estão ligados com paixão a seus estudos. E Marco Catego! Ênio o chama - e lhe cai bem - “a medula da persuasão”. Com que aplicação, mesmo velho, ele se exercitava na eloqüência! Os prazeres da mesa, do jogo ou das prostitutas seriam capazes de rivalizar com essas felicidades? O saber se vale das competências acumuladas e se enriquece à medida que envelhecemos. Assim, é digno de seu autor aquele verso de Sólon em que ele afirma que aproveita cada dia de sua velhice para adquirir novos conhecimentos. Sim, nenhum prazer é superior ao do espírito.

A velhice nos campos

Chego agora às alegrias da agricultura. Para mim, seu encanto é incomparável. De modo ne­nhum elas são incompatíveis com a velhice e me parecem convir muito bem a uma vida de sábio. Os agricultores têm uma espécie de crédito na terra; esta jamais se recusa ao trabalho deles e sempre restitui o que recebeu com juros às vezes modestos, mas geralmente consideráveis. Aliás, não é apenas o que o solo produz que me agrada, é também a potência generosa da própria terra. Quando suas profundezas revolvidas e trabalhadas recebem o grão semeado, elas primeiro o retêm protegido da luz - donde o nome occatio dado ao esterroamento - , depois calor e pressão o fazem eclodir e germinar. Dele surge um broto verde que, das raízes, logo se eleva num caule nodoso e embainhado em sua casca. Quando sai para fora desta, faz desabrochar uma espiga de grãos bem ordenados, protegidos, por trás da muralha de suas pontas, da voracidade dos passarinhos.

Devo lembrar como se planta, cresce e se corta a vinha? Não me canso desse prazer. (Ides conhecer assim o que descansa e distrai minha velhice.) Não insistirei sobre o vigor próprio a todos os produtos da terra, capazes de engendrar troncos e ramos de belo porte a partir de sementes tão minúsculas quanto as do figo, da uva e de outros frutos. As pequenas vagens, os chantões, sarmentos, plantas vivas ou mergulhões de videira não encantam toda gente? A vinha, sabemos, tende a vergar-se se não for sustentada. Vemo-la agarrar-se espontaneamen­te a tudo o que encontra com suas gavinhas que são outras tantas mãos. Quando ela impele em todos os sentidos suas ramagens serpentinas e vagabundas, o agricultor, armado de uma lâmina, vem cortá-la adestradamente para impedi-la de produzir uma floresta de sarmentos anárquica e desmesurada. Na primavera, sobre os nós dos sarmentos, surgem excrescências que chamamos botões e dos quais nascerá o cacho de uvas. Este logo aumenta de tamanho graças à seiva que tira do solo e ao calor do sol. No início, seu gosto é muito ácido, mas aos poucos se torna açucarado.

As parras que o protegem detêm os raios mais penetrantes do sol, sem todavia privá-lo de um calor benfazejo.

Pode-se imaginar algo mais proveitoso e mais belo que esse cacho de uvas? Como já vos disse, não é o caráter rentável da vinha que mais me seduz, é todo o resto: a maneira de cultivá-la, a natureza mesma da planta, as fileiras de chantões, a reunião dos sarmentos, a ligadura e a mergulhia, a poda de alguns sarmentos que favorece o desenvolvimento dos outros. Devo ainda mencionar a irrigação, a cava, a sachadura que revolvem e fertilizam a ter­ ra? Direi a utilidade da adubação? Tratei de todas essas questões em meu livro sobre os trabalhos dos campos. Hesíodo, por mais instruído que fosse, não diz uma palavra a respeito em sua obra sobre a agricultura. Homero, em troca, vários séculos antes, nos mostra Laertes cultivando e adubando seu campo para se consolar da ausência de seu filho. O encanto da agricultura não se resume ali­ ás às colheitas, campinas, vinhedos e arbustos; é preciso também contar com as hortas e os vergéis, o gado no pasto, as colmeias de abelhas e as flores inumeráveis. Enfim, somando-se ao prazer de plan­tar, há o de enxertar, a mais engenhosa descoberta da agricultura.

Eu poderia enumerar muitos outros prazeres campestres, mas percebo que já falei demais. Perdoai-me! A velhice é tagarela - convém confessá-lo para não dar a impressão de sempre absolvê-la - e deixei-me arrastar por meu amor pelos campos!

Eis a vida que Mânio Cúrio escolheu para terminar seus dias após triunfar dos samnitas, dos sabinos e de Pirro. Quando contemplo sua casa, não distante da minha, só posso admirar - e, mesmo assim, insuficientemente - sua modéstia e a virtude de sua época. Ele se achava sentado junto à lareira quando os samnitas vieram propor-lhe uma grande quantidade de ouro. Ele os repeliu sem hesitar, dizendo que à riqueza preferia a autoridade sobre os ricos. Como tal grandeza de alma não tomaria agradável a velhice?

Mas voltemos aos camponeses para melhor falar de mim mesmo. Naquela época, os senadores - isto é, os velhos - viviam nos campos: Lúcio Quíncio Cincinato estava lavrando a terra quando vieram lhe anunciar que fora nomeado ditador. E foi por ordem sua que Gaio Servílio Ahala16, chefe dos cavaleiros, deu morte a Espúrio Mélio, que queria tomar o poder. É em suas quintas que vinham buscar Cúrio e os outros senadores para que fossem ao Senado. Donde o nome de “cor­reios” dado aos que os convocavam. Dirão que era lamentável a velhice dos que encontravam assim um passatempo na agricultura? De minha parte, duvido que possa haver uma outra mais feliz. Não apenas se é útil, a agricultura beneficiando a todos, mas dela se tira igualmente todo o prazer que falei. Usufrui-se assim em abundância de tudo o que é necessário à vida na terra e mesmo ao culto dos deuses. E, como tudo isso é conforme ao desejo dos homens, há uma reconciliação com o prazer. Um dono de casa atento e eficiente man­tém sempre bem abastecidos sua adega de vinho e de azeite, seu guarda-comidas. Sua quinta é bem provida de porcos, cabritos, cordeiros, frangos; nela há leite, queijo e mel em abundância. Quanto à horta, os próprios agricultores chamam-na o “segundo guarda-comidas”. E a caça que prati­cam nos momentos de lazer permite aumentar um pouco mais a provisão de alimentos.

O parque de Ciro

Cantarei ainda o verde das pradarias, as aleias de árvores, o esplendor dos vinhedos ou dos campos de oliveiras? Sejamos breves: nada é mais proveitoso nem mais belo que um campo cuidadosamente cultivado. Ora, a todos esses prazeres campestres a velhice não representa nenhum obstáculo; pelo contrário, ela nos convida e nos encoraja a eles. Com efeito, onde ela poderia melhor desfrutar o suave calor do sol ou de uma lareira, o frescor salubre da sombra ou da água? Deixemos a outros as armas, os cavalos e as lanças, a clava e os projéteis! A outros a caça e a corrida! Uma boa velhice pode mesmo abster-se disso sem desprazer. Que nos deixem, a nós, velhos, os jogos de ossinhos e de dados.

Os livros de Xenofonte são preciosos sob mui­tos aspectos. Peço-vos que os leiais atentamente, como aliás o fazeis. Em O Econômico, obra de­dicada à gestão do patrimônio, vede o elogio que ele faz da agricultura! E, para mostrar que a seus olhos nenhum labor é mais digno de um rei que os trabalhos dos campos, ele relata em seu livro algumas palavras de Sócrates. Numa conversação com Critóbulo, Sócrates evoca o rei da Pérsia,

Ciro, o jovem, que se distinguiu por seu gênio e o prestígio de seu reinado. Este recebeu em sua casa, em Sardes, o lacedemônio Lisandro, homem irreprochável, que chegou carregado de presentes da parte dos aliados de seu anfitrião. Ciro mostrou-se afável e cortês. Levou-o a visitar um parque soberbamente conservado. Lisandro extasiava-se diante da altura das árvores plantadas em quincunce, o solo arado e limpo de ervas daninhas, os perfumes sutis exalados pelas flores. Ele exprimiu toda a sua admiração pelos cuidados e a habilidade do jardi­neiro que havia traçado e arrumado aquele parque. “Fui eu que organizei tudo isso! Os alinhamentos e a disposição geral são obra minha. E muitas árvores foram plantadas por mim mesmo!” Então Lisandro considerou com atenção aquele rei elegantemente vestido de púrpura, com seus enfeites persas carre­gados de ouro e pedras preciosas. Depois declarou: “Há muita razão em te dizerem feliz, Ciro, pois em ti a fortuna se alia à virtude”.

Os velhos podem gozar dessa mesma fortuna. A idade, mesmo avançada, não impede de praticar a agricultura. Se acreditarmos no que diz a tradição, Marco Valério Corvino, que viveu até cem anos, havia se retirado no campo e lá cultivava a terra. Quarenta e seis anos haviam transcorrido entre seu primeiro e seu sexto consulado. Assim o período de sua vida considerada como ativa por nossos antepassados fora não apenas longo mas cumulado de honras. Entretanto, o final de sua vida foi ainda mais feliz, pois ele teve mais autoridade e menos trabalho. A autoridade natural, eis o verdadeiro coroamento da velhice!

Que autoridade e que prestígio teve justamente Lúcio Cecílio Metelo! E Aulo Atílio Calatino, cujo epitáfio diz:

Esse homem que todas as famílias reconhecem figurou entre os mais destacados do povo.

Conhece-se na íntegra a inscrição gravada em seu túmulo. Seu prestígio não foi usurpado, já que todos concordaram em fazer seu elogio. Que homem foi também, ainda ontem, Públio Crasso, nosso grande Pontífice! E Marco Lépido, que lhe sucedeu! Que dizer de Paulo Emílio, de Cipião, o Africano, e de Quinto Fábio Máximo, de quem falei há pouco? Sua autoridade não se devia apenas ao que diziam mas à maneira como sabiam, com um simples gesto, exprimir sua vontade. O prestígio dos velhos, sobretudo quando exerceram cargos públicos, compensa largamente todos os prazeres da juventude.

Não esqueçais, porém, que todos os elogios que faço da velhice se dirigem àquela cujos trun­fos remontam à adolescência. Como eu o disse um dia com o assentimento de todos, é evidente que uma velhice reduzida a defender sua própria causa seria lastimável. Os cabelos brancos e as rugas não conferem, por si sós, uma súbita res­peitabilidade. Esta é sempre a recompensa de um passado exemplar.

Eis alguns sinais de respeito que podem parecer frívolos mas que têm para nós seu valor: vêm nos visitar, buscam nossa companhia, afastam-se à nossa passagem, cedem-nos o lugar, levantam-se em nossa presença, escoltam-nos, consultam-nos e nos acompanham de volta a casa... Claro, essas ho­menagens são tanto melhor observadas, em Roma e noutras partes, quanto correspondem aos costumes. Lisandro comprazia-se em dizer que nenhum lugar era mais favorável à velhice que Esparta, seu país. Em nenhuma outra parte se reservam tantas defe­rências aos velhos, em nenhuma outra eles são tão honrados. Melhor ainda: conta-se que em Atenas, durante os jogos, um velho, que entrara num teatro lotado e para quem seus concidadãos não haviam reservado lugar, dirigiu-se então até a delegação lacedemônia que ocupava um espaço reservado.

Imediatamente, todos se levantaram para lhe dar lugar, enquanto a multidão aplaudia repetidas vezes. Um dos lacedemônios declarou então que, se os atenienses conheciam os costumes, tinham aversão de conformar-se a eles. Uma das mais belas tradições de vosso colégio, o dos áugures, ilustra aliás nosso assunto: lá se recolhem primeiro as opiniões dos mais idosos antes de consultar os que estão num posto mais elevado ou mesmo os que detêm o poder verdadeiro.

Que prazeres físicos podem se comparar a todas essas satisfações proporcionadas pelo prestígio? Os que dele se beneficiam me parecem de certo modo ter desempenhado a peça até o final, sem titubear no último ato como maus atores.

Os rabugentos e os outros

Ouve-se ainda dizer que os velhos são mal-humorados, atormentados, irascíveis e rabugentos - e mesmo avarentos, examinando bem. Mas esses são defeitos inerentes a cada indivíduo, não à velhice. O mau humor e as outras manias que citei são aliás relativamente escusáveis. Injustificadas, por certo, mas compreensíveis. Tais pessoas se julgam desprezadas, depreciadas, caídas no ridículo. Além disso, um corpo debilitado nos torna ainda mais vulneráveis a esses ataques. O que não impede que um caráter sólido e bons hábitos permitam atenuar tais inconvenientes. Na vida ocorre o mesmo que no teatro, quando pensamos, por exemplo, nos dois irmãos dos Adelfos de Terêncio: que acrimônia na casa de um, que urbanidade na casa do outro! Assim como o vinho, o caráter não azeda necessariamente com a idade. Agrada-me que a velhice seja grave, mas com moderação, como em relação a tudo. Não aceito que ela seja carrancuda. Quanto à avareza dos velhos, eu a compreendo mal. Não é insensato, quando o caminho a percorrer diminui, querer aumentar seu viático?

Diante da morte

Resta a quarta razão de temer a velhice, a que desola e acabrunha particularmente as pessoas de minha idade: a aproximação da morte. Ela é incon­testável. Mas como é lastimável o velho que, após ter vivido tanto tempo, não aprendeu a olhar a morte de cima! Cumpre ou desprezá-la completamente, se pensamos que ela ocasiona o desaparecimento da alma, ou desejá-la, se ela confere a essa alma sua imortalidade. Não há outra alternativa.

Por que eu temeria a morte se, depois dela, não sou mais infeliz, quem sabe até mais feliz? Aliás, quem pode estar seguro, mesmo jovem, de estar ainda vivo até o anoitecer? Mais ainda: os jovens correm mais o risco de morrer que nós. Adoecem mais facilmente, e mais gravemente; são mais difíceis de tratar. Assim, não são mui­tos a chegar à velhice. Se fosse de outro modo, o mundo viveria melhor e mais razoavelmente, já que a inteligência, o julgamento e a sabedoria são próprios dos velhos, sem os quais jamais teria havido cidades.

Mas retorno à morte que nos espreita. Por que fazer disso motivo de queixa à velhice, se é um risco que a juventude compartilha? De minha parte, foi após o desaparecimento de meu excelente filho que me dei conta de que a morte sobrevêm a qualquer idade; e tu, Cipião, foi após a de teus irmãos, pro­metidos no entanto a um brilhante futuro.

Alimentaria o jovem, apesar de tudo, a esperança de viver ainda muito tempo, enquanto isso é interdito ao velho? Mas vejam, é uma esperança insensata: que pode haver de mais insano que ter por certo o que não o é e por verdadeiro o que é falso?

E o velho, por sua vez, nada mais teria a esperar? 

Então sua posição é melhor que a do adolescente. Aquilo com que este sonha, ele já o obteve. O ado­lescente quer viver muito tempo, o velho já viveu muito tempo! E, grandes deuses!, que quer dizer “muito tempo” para a natureza humana? Tomemos a duração máxima calculada sobre uma vida tão longa quanto a do rei dos tartéssios [antigos habi­tantes da Andaluzia], (Li que em Gades [Cádis], um certo Argantônio reinou oitenta e viveu cento e vinte anos.) Mesmo nesse caso, não me decido a considerar “longo” o que de todo modo tem um fim. Quando esse fim chega, o passado desapareceu. Dele vos resta apenas o que vos puderam trazer a prática das virtudes e as ações bem conduzidas. Quanto às horas, elas se evadem, assim como os dias, os meses, os anos. O tempo perdido jamais retorna e ninguém conhece o futuro. Contentemo-nos com o tempo que nos é dado a viver, seja qual for!

Para ser aplaudido, o ator não tem necessidade de desempenhar a peça inteira. Basta que seja bom nas cenas em que aparece. Do mesmo modo, o sábio não é obrigado a ir até o aplauso final. Uma existência, mesmo curta, é sempre suficientemente longa para que se possa viver na sabedoria e na honra. E se acaso ela se prolonga, não iremos nos queixar, como tampouco fazem os camponeses, de que após a clemência da primavera venham o verão e o outono. A primavera, em suma, representa a adolescência e a promessa de seus frutos; as outras estações são as da colheita, da seara.

Os frutos da velhice, tenho dito e repetido, são todas as lembranças do que anteriormente se adquiriu. Ora, tudo o que é conforme à natureza deve se considerar como bom. Que há de mais natural para um velho que a perspectiva de morrer? Quando a morte golpeia a juventude, a natureza resiste e se rebela. Assim como a morte de um ado­lescente me faz pensar numa chama viva apagada sob um jato d’água, a de um velho se assemelha a um fogo que suavemente se extingue. Os frutos verdes devem ser arrancados à força da árvore que os carrega; quando estão maduros, ao contrário, eles caem naturalmente. Do mesmo modo, a vida é arrancada à força aos adolescentes, enquanto deixa aos poucos os velhos quando chega sua hora. Consinto de tão boa vontade tudo isso que, quanto mais me aproximo da morte, parece que vou me aproximando da terra como quem chega ao porto após uma longa travessia.

Aliás, não há um termo preestabelecido à ve­lhice. Vive-se muito bem enquanto se é capaz de assumir os encargos de sua função e de desprezar a morte. A tal ponto que, nesse domínio, os velhos podem se revelar mais corajosos e mais enérgicos que os jovens. Eis o que respondeu, ao que consta, Sólon17 ao tirano Pisístrato que lhe perguntava o que lhe dava a força de resistir tão valentemente. “A velhice!”. A maneira mais bela de morrer é, com a inteligência intacta e os sentidos despertos, deixar a natureza desfazer lentamente o que ela fez. Aquele que construiu um barco ou erigiu um prédio é o mais indicado para destruí-lo; assim também, é pela natureza que o cimentou que o homem é melhor desagregado. Ora, o cimento dificilmente se desagrega quando é fresco, mas facilmente se é velho. Conclusão: os velhos não devem nem se apegar desesperadamente nem renunciar sem razão ao pouco de vida que lhes resta.

Pitágoras proíbe que abandonemos nosso posto - ou seja, a vida - sem a ordem formal do comandante-em-chefe que no-lo designou —ou seja, Deus. Em seu epitáfio, o sábio Sólon declara, por sua vez, que não deseja morrer sem ser saudado  pela dor e pelas lágrimas de seus amigos. Em suma, ele deseja, parece-me, ser amado pelos seus. Mas prefiro muito mais o que disse Ênio:

Que ninguém me homenageie com suas lágri­mas, que ninguém chore sobre meu túmulo!

A seu ver, não devíamos nos afligir com a mor­te, já que ela dava acesso à eternidade. Pode acon­tecer que se sinta uma certa apreensão no momento de morrer, mas isso dura pouco. Após a morte, ou não há nada, ou essa apreensão se transforma em beatitude. E é desde a adolescência que convém se preparar para o desprezo da morte. Sem essa preparação, nenhuma serenidade é possível. Cada um de nós deve morrer, com efeito; hoje mesmo, talvez. Mas com a obsessão da morte que pode sobrevir a qualquer momento, como conservar o espírito calmo?

Não creio que seja necessário estender-se sobre esse ponto quando evoco precedentes: não falemos de Lúcio Bruto18, que morreu libertando sua pátria, nem dos dois Décio, que lançaram seus cavalos a galope de encontro a uma morte voluntária, nem de Marco Atílio19, que marchou ao suplício para respeitar sua palavra dada ao inimigo, nem dos dois Cipião que quiseram, com seus corpos, barrar o caminho aos cartagineses, nem de teu avô. Lúcio Paulo20, que pagou com a vida a imprudência de seu colega por ocasião do desonroso desastre de Cannes, nem de Marco Marcelo21, que o inimigo mais cruel não ousou privar das honras fúnebres. Falemos de nossas legiões que, como relatei em As Origens, partiram ao combate alegres e orgulhosas mas sem esperança de retorno. O que jovens igno­rantes e até mesmo camponeses desprezam poderia fazer tremer velhos instruídos?

Em geral, parece-me, perdemos o apetite de viver quando nossas paixões são saciadas. Devem os adolescentes lamentar a perda do que adoravam quando crianças? E poderiam os homens maduros ter saudade do que amavam quando adolescentes?

Também eles têm seus gostos, que não são os dos velhos. A velhice, enfim, tem suas inclinações próprias. E estas por sua vez se desvanecem como desapareceram as das idades precedentes. Quando esse momento chega, a saciedade que sentimos nos prepara naturalmente para a proximidade da morte.

Por que eu hesitaria em vos dizer tudo o que penso da morte? Estou tanto melhor situado para compreendê-la à medida que me aproximo dela. Tenho certeza de que vossos pais, o teu, Cipião, e o teu, Lélio, esses homens admiráveis que foram meus amigos, vivem ainda e daquela verdadeira vida que é a única a merecer esse nome. Encerrados que estamos na prisão de nosso corpo, cumprimos de certo modo uma missão necessária, uma tarefa ingrata: pois a alma, de origem celeste, foi pre­cipitada das alturas onde habitava e se encontra como que enterrada na matéria. É um lugar con­trário à sua natureza divina e eterna. Creio que os deuses imortais distribuíram as almas em corpos de homens para ajudar estes a imitarem a ordem celeste, escolhendo a firmeza moral e o espírito de moderação.

Foi refletindo por mim mesmo, mas também graças à autoridade e à notoriedade dos maiores filósofos, que cheguei a essa convicção. Assim descobri que Pitágoras e os pitagóricos - quase compatriotas, outrora chamados filósofos italiotas (da Itália meridional) - jamais duvidaram que nos­sas almas fossem a emanação do espírito divino que anima o universo. Também me foram expostas as teses sobre a imortalidade da alma desenvolvidas por Sócrates no dia mesmo de sua morte, ele que o oráculo de Delfos (Apolo) proclamara o mais sábio de todos os homens. O que mais? Quereis saber minha convicção, meu sentimento? A substância que engloba uma viva inteligência, uma vasta me­mória do passado, uma sólida presciência do futuro, tantos talentos, saber e descobertas, não poderia ser mortal. A alma está sempre em movimento: este não tem começo - a alma é seu próprio motor - e não terá fim, pois a alma não abandonará a si mesma. Além disso, como a alma é homogênea por natureza e não contém elemento estranho díspar, ela não pode ser fracionada. Ora, sem fracionamento não há morte possível.

E ademais temos a prova de que os homens sabem o essencial do que devem saber antes mes­mo de nascerem. Confrontadas a estudos difíceis, as crianças rapidamente adquirem tantos conheci­mentos que parecem não aprendê-los pela primeira vez, mas lembrar-se deles. É mais ou menos o que disse Platão.

Em Xenofonte, Ciro, o Grande, pronuncia estas palavras ao morrer:

Meus caríssimos filhos, não creiais, quando eu vos tiver deixado, que não serei mais nada e que desaparecerei. Enquanto eu vivia entre vós, não discerníeis minha alma mas compreendíeis, por meus atos e gestos, que ela estava em meu corpo. Estai certos de sua exis­tência, mesmo se nada mais a torna visível.

Os grandes homens, após sua morte, não seriam tão duradouramente venerados se não emanasse de sua alma algo que conserva sua lembrança. Jamais pude acreditar que a alma, viva enquanto habitava o corpo, morresse ao deixá-lo; nem que, ao se evadir do corpo de um insensato, ela permanecesse insensata. Creio ao contrário que, desvencilhada de seu invólucro carnal, voltando a serpura e homo­gênea, a alma volta a ser sábia. Aliás, quando o corpo se desagrega, após a morte, percebe-se bem de onde vinham e para onde retornam os elementos que o constituíam. Somente a alma, esteja presente ou não, jamais se mostra.

Vós constatais, além disso, que nada se asseme­lha tanto à morte quanto o sono. E a alma do adormecido manifesta claramente sua natureza divina: em repouso, relaxada, esta prevê com frequência o futuro. Isso nos dá uma ideia do que ela será no dia em que estiver totalmente
livre de sua prisão corporal. Se o que creio é verdadeiro, ele acrescentou, então honrai-me como a um deus. Se a alma, ao contrário, morre com o corpo, é venerando os deuses, organiza­dores e guardiães do universo, que cultivareis como bonsfilhos minha lembrança.

Tais foram as palavras pronunciadas por Ciro no momento de sua morte. Mas vejamos, se o preferirdes, o que se passa entre nós.

XXXXXXX

Jamais me farão acreditar, Cipião, que teu pai Lúcio Emílio Paulo, o Macedônio, teus dois avós, Paulo Emílio e Cipião, o Africano, seu pai e seu tio, e tantos outros heróis que é inútil citar, tenham se dado tanto trabalho para passar à posteridade se nela não acreditassem. Acaso crês —eu me envio flores, é um reflexo de velho —que teria passado meus dias e minhas noites atarefado, em tempo de guerra como em tempo de paz, se julgasse que minha glória se deteria com minha vida? Não teria sido melhor, nesse caso, deixar-me docemente viver, sem esforço nem trabalho? Ignoro a razão, mas minha alma desperta sempre pressagiou o futuro, como se tivesse adivi­nhado que, uma vez deixada a vida, ela finalmente viveria. Não, se fosse verdade que as almas não são imortais, os grandes homens não desdobrariam tan­ tos esforços para alcançar a glória e a imortalidade.

E se o sábio morre com tanta serenidade en­ quanto um imbecil morre com tão grande pavor, não será porque a alma do primeiro, lúcida e clarividente, percebe que voa assim em direção ao melhor, enquanto a do segundo, obtusa, é incapaz disso? No que me concerne, grande é minha im­ paciência de reencontrar vossos pais que estimei e respeitei; de rever todos aqueles que pessoalmente conheci, de conhecer aqueles de quem me falaram, de quem li as façanhas e sobre os quais eu mesmo escrevi. Teriam muita dificuldade, no momento da grande partida, de me reter para me fazer ferver num caldeirão como Pélias22. E, mesmo se um deus me oferecesse generosamente voltar a ser um bebê dando vagidos em seu berço, eu recusaria ser leva­ do de volta ao ponto de partida após ter percorrido, por assim dizer, toda a arena.

Que há portanto de positivo na vida? Não ofe­rece ela sobretudo provações? Seguramente, ela comporta muitas vantagens, mas, seja como for, no final restam apenas a saciedade e o término. Não tenho vontade de queixar-me sobre a morte como o fizeram com frequência alguns, inclusive entre os sábios; tampouco vou lamentar ter vivido, posto que, minha vida o testemunha, não fui inútil. Aliás, deixo a vida não como quem sai de sua casa mas como quem sai de um albergue onde foi recebido. A natureza, com efeito, nos oferece uma pousada provisória e não um domicílio. Oh, como será bela a jornada quando eu partir para juntar-me, no além, à assembléia divina formada pelas almas, quando eu deixar o tumulto e o lamacento caos deste mundo! Então reencontrarei não apenas todos os homens de quem falei aqui, mas sobretudo meu querido Catão, o melhor de todos, o filho mais amável e o mais respeitoso. Fui eu que queimei seu corpo quando ele é que deveria ter queimado o meu. Mas sua alma não me abandonou; ela vela sobre mim desde aquele lugar aonde ela sabe que devo ir. Viram-me aceitar corajosamente meu luto; não era resignação de minha parte. Eu apenas reconfortava-me à ideia de que a separação e o afastamento seriam de curta
duração.

Eis assim por que, Cipião - e para ti e para Lélio era um motivo de espanto considero a velhice tão fácil de suportar.

Ela me parece bastante leve, até mesmo agradá­vel. E, se me engano sobre a imortalidade da alma, é com muito gosto. Enquanto eu viver, recusarei sempre que me privem desse “erro” que me é tão doce. Se, como pensam certos pequenos filósofos, não há nada após a morte, então não preciso temer as zombarias dos filósofos desaparecidos. Se não estamos prometidos à imortalidade, mesmo assim continua sendo desejável extinguir-se no momento oportuno. A natureza fixa os limites convenientes da vida como de qualquer outra coisa. Quanto à velhice, em suma, ela é a cena final dessa peça que constitui a existência. Se estamos fatigados dela, então partamos, sobretudo se estamos saciados.

 Eis aí tudo o que vos tinha a dizer sobre a velhice. Desejo-vos que a alcanceis para verificar, por vós mesmos, a justeza de minhas palavras.

Filosofia - Estoicismo
Cartas e dilálogos - Tópicos gerais, 
10/10/2021 12:24:07 PM | Por Lucius Annaeus Seneca
Da felicidade

Todos os homens, caro Galião, querem vi­ver felizes, mas, para descobrir o que torna a vida feliz, vai-se tentando, pois não é fácil alcançar a felicidade, uma vez que quanto mais a procura­ mos mais dela nos afastamos. Podemos nos enga­nar no caminho, tomar a direção errada; quanto maior a pressa, maior a distância.

Devemos determinar, por isso, em primeiro lugar, o que desejamos e, em seguida, por onde podemos avançar mais rapidamente nesse senti­ do. Dessa forma, veremos ao longo do percurso, sendo este o adequado, o quanto nos adiantamos cada dia e o quanto nos aproximamos de nosso objetivo. No entanto, se perambularmos daqui para lá sem seguir outro guia senão os rumores e os chamados discordantes que nos levam a vários lugares, nossa curta vida se consumirá em erros, ainda que trabalhemos dia e noite para melhorar o nosso espírito.

Devemos decidir, por conseguinte, para onde vamos nos dirigir e por onde, não sem a aju­da de algum homem sábio que haja explorado o caminho pelo qual avançamos, porque a situação aqui não é a mesma que em outras viagens; nes­ tas há atalhos, e os habitantes a quem se pergunta o caminho não permitem que nos extraviemos. Quanto mais freqüentado e mais conhecido que seja o trajeto, maior é o risco de ficar à deriva.

Nada é mais importante, portanto, que não se­guir como ovelhas o rebanho dos que nos prece­deram, indo assim não aonde querem que se vá, senão aonde se deseja ir.

E, certamente, nada é pior do que nos aco­modarmos ao clamor da maioria, convencidos de que o melhor é aquilo a que todos se submetem, considerar bons os exemplos numerosos e não vi­ver racionalmente, mas sim por imitação.

Daí, a grande quantidade de pessoas que se precipitam umas sobre as outras. Como aconte­ce em uma grande catástrofe coletiva, quando as pessoas são esmagadas, ninguém cai sem arrastar a outro, e os primeiros são a perdição dos que os seguem. Isso tu podes ver acontecer ao longo da vida; ninguém erra por si só, apenas repete o erro dos outros.

É prejudicial, portanto, apegar-se aos que estão à tua frente, ainda mais quando cada um prefere crer em lugar de julgar por si mesmo, deixando de emitir juízo próprio sobre a vida. Por isso, adota-se, quase sempre, a postura alheia. As­sim, o equívoco, passando de mão em mão, acaba por nos prejudicar.

Morremos seguindo o exemplo dos demais. A saída é nos separarmos da massa e ficarmos a salvo. Mas agora as pessoas entram em conflito com a razão em defesa de sua própria desgraça. A mesma coisa acontece nas eleições. Aqueles que foram eleitos para o cargo de pretores são admi­rados pelos que os elegeram. O beneplácito po­pular é volúvel. Aprovamos algo que logo depois é condenado. Este é o resultado de toda decisão com base no parecer da maioria.

II

Quando se trata da felicidade, não é adequa­do que me respondas de acordo com o costume da separação dos votos: “A maioria está deste lado, então, do outro está a parte pior”. Em se tratando de assuntos humanos, não é bom que as coisas melhores agradem à maioria. A multidão é argumento negativo.

Busquemos o melhor, não o mais comum, aquilo que conceda uma felicidade eterna, não o que aprova o vulgo, péssimo intérprete da verdade.

Chamo vulgo tanto àqueles que vestem a clâmide quanto aos que carregam coroas. Não olho a cor das roupas que adornam os corpos, não confio nos olhos para conhecer o homem. Tenho um instrumento melhor e mais confiável para dis­cernir o verdadeiro do falso; o bem do espírito, o espírito o há de encontrar.

Se o homem tivesse a oportunidade de olhar para dentro de si próprio, como se torturaria, con­fessaria a verdade e diria: “Tudo que tenho feito até agora, preferia que não tivesse sido feito; quando penso em tudo o que disse, invejo os mudos; tudo o quanto desejei, a maldição de meus inimigos; tudo o que temi. Ó deuses justos! Melhor não tivesse de­sejado. Fiz muitas inimizades, e o ódio substituiu a amizade (se é que há amizade entre os maus), e nem sou amigo de mim mesmo. Fiz os maiores es­forços para sair da multidão e fazer-me notar por alguma qualidade: o que tenho feito senão ofere­cer-me como um alvo e mostrar à maldade onde poderia me machucar? Vê aqueles que elogiam a eloqüência, escoltam a riqueza, adulam os ben­feitores, louvam o poder? Todos são inimigos, ou podem sê-lo. Tantos são os admiradores quanto os invejosos. Por que não buscar algo realmente bom, para sentir, não para mostrar? Essas coisas que se contemplam, diante das quais as pessoas se detêm, que um mostra a outro com assombro, por fora brilham, por dentro são deploráveis.”

III

Busquemos as coisas boas, não na aparên­cia, mas sólidas e duradouras, mais belas no seu interior. Devemos descobri-las. Não estão longe, serão encontradas; apenas se precisa saber quan­do as encontramos. No entanto, passamos como cegos ao lado delas, tropeçando no que desejamos. Porém, para evitar delongas, passarei por alto as opiniões dos demais, pois é cansativo enumerá-las e rejeitá-las. Ouve a nossa.

Quando digo a nossa, não me associo a ne­nhum dos mestres estoicos. Também tenho di­reito a opinar. Portanto, seguirei um, pedirei a outro para dividir sua tese; talvez, depois de haver citado a todos, não rejeitarei qualquer coisa que decidiram os anteriores, e direi: “e ainda penso alguma coisa mais”.

Entretanto, de acordo com todos os estoicos, eu sigo a natureza. A sabedoria reside em não se afastar dela e adequar-se à sua lei e ao seu exemplo.

A felicidade é, por isso, o que está coeren­te com a própria natureza, aquilo que não pode acontecer além de si. Em primeiro lugar, a mente deve estar sã e em plena posse de suas faculdades; em segundo lugar, ser forte e ardente, magnâni­ma e paciente, adaptável às circunstâncias, cuidar sem angústia do seu corpo e daquilo que lhe pertence, atenta às outras coisas que servem para a vida, sem admirar-se de nada; usar os dons da fortuna, sem ser escrava deles.

Compreendes, ainda que não claramente, que disso advém uma constante tranqüilidade e liberdade, uma vez afastadas as coisas que nos perturbam ou nos amedrontam. Em lugar de prazeres e gozos mesquinhos e frágeis, até mes­mo prejudiciais em sua desordem, que venha uma grande, inabalável e constante alegria e, ao mesmo tempo, a paz e a harmonia da alma, a generosidade com a doçura. Qualquer tipo de maldade é resultado de alguma deficiência.

IV

O bem, como se concebe, também pode ser definido de outras maneiras, ou seja, pode ser en­tendido no mesmo sentido, mas não nas mesmas condições.

Um exército pode se estender em uma ampla frente ou concentrar-se; dispor o centro em cur­vas, arqueando as alas, ou avançar em uma linha reta, continuando igual a sua força e a vontade de lutar pela mesma causa. Da mesma forma, a defi­nição do bem supremo pode ser ampla e detalhada ou breve e concisa.

Será o mesmo, portanto, se eu disser: “O bem supremo é uma alma que despreza as coi­sas futeis e se satisfaz com a virtude”, ou, ainda, “uma força de espírito é invencível, alerta, cala no agir e atenta aos interesses da humanidade, tendo cuidado especial por aqueles que nos rodeiam”.

Pode-se ainda dizer que o homem feliz é aquele para quem não existe nem bem nem mal, apenas uma alma boa ou má; que pratica o bem, contenta-se com a virtude, não se deixa nem elevar nem abater pelo destino, não conhece bem maior do que o que pode dar a ele próprio, para quem o verdadeiro prazer será o desprezo dos prazeres.

Podes, se gostas de digressões, apresentar a mesma ideia com outras imagens sem alterar o seu significado. Nada nos impede, na verdade, de dizer que a felicidade consiste em uma alma livre, sem medo e constante, inacessível ao temor e à ganância, para quem o único bem é a dignidade e o único mal é a desonestidade, sendo todo o restante um aglo­merado de coisas que não retiram ou acrescentam nada à felicidade da vida. Em síntese, fatos que vão e vêm sem aumentar ou reduzir o bem supremo.

Este princípio, fundado sobre tal perspecti­va, queiramos ou não, acarreta serenidade e uma profunda alegria que vem do interior, pois é para seu próprio prazer, não desejando bens maiores que os próprios.

Por que é que tais coisas não hão de com­pensar os movimentos mesquinhos, frívolos e in­constantes de nosso fraco corpo? Pelo contrário, no dia em que ele dominar o prazer, também do­ minará a dor.

V

Vê, então, quão ruim e funesta servidão terão que sofrer aqueles que têm alternadamente prazeres e dores, senhores mais caprichosos e despóticos. Tem-se que encontrar, portanto, uma saída para a liberdade. Essa liberdade dá-nos a indiferença ante a sorte. Assim esses inestimáveis bens surgirão, a calma do espírito posto em segurança e a elevação; e, rejeitados todos os erros, do conhecimento da verdade irá surgir uma grande alegria, a afabilidade e o contentamento do espírito. De todos esses bens, a alma desfruta não porque são excelentes em si, mas porque brotam de seu próprio bem.

Uma vez que se começa a discutir a questão amplamente, pode-se chamar de feliz aquele que, graças à razão, não deseja nem teme. As pedras também não têm medo e tristeza, bem como os animais, mas nem por isso diz-se que são felizes aqueles que não têm consciência da felicidade.

Ponha no mesmo nível os homens os quais a natureza obtusa e a ignorância de si mesmos os reduzem ao conjunto dos animais e das coisas ina­nimadas. Não há diferença entre estes e aqueles. De fato, os animais carecem totalmente de razão. Nesses homens, ela é pequena e nociva e serve apenas para corrompê-los, pois ninguém pode ser chamado de feliz estando distante da verdade.

A vida feliz, por isso, tem o seu fundamento em uma ação simples e segura. Porque a alma é pura e livre de todo o mal quando evita os riscos, sempre disposta a permanecer onde está e a de­fender a sua posição contra os sucessos e os gol­pes da sorte.

No que se refere ao prazer, mesmo quando difundido à nossa volta, insinuando-se por todos os meios, lisonjeando o espírito com seus afagos e ganhando um após o outro, para seduzir-nos total ou parcialmente, cabe indagar: quem, den­tre os mortais, dotado de um mínimo de racionalidade, ainda que atraído, ousaria, relegando a alma, dedicar-se apenas ao corpo?

VI

Mas também a alma, dirão alguns, tem os seus prazeres. Concordo que os tem. Ela se torna centro e árbitro da sensualidade e dos prazeres. Então, enche-se de todas as coisas que tendem a deliciar os sentidos. Volta o pensamento ao pas­sado e, lembrando prazeres, recompõe sua expe­riência e indaga por aqueles ainda por vir. Assim, enquanto o corpo é abandonado aos festins pre­sentes, a mente corre com o pensamento ao en­contro de prazeres futuros. Tudo isso me parece mesquinho, já que preferir o mal ao bem é lou­cura. Ninguém pode ser feliz se não tiver a men­te sadia, e, certamente, não a tem quem opta por aquilo que vai prejudicá-lo.

É feliz, por isso, quem tem um julgamen­to correto. Feliz é aquele que, satisfeito com sua condição, desfruta dela. Feliz é quem entrega à razão a condução de toda a sua vida.

Observa agora aqueles que conceituam o bem supremo junto aos prazeres. Insistentemen­te, negam que seja possível separar o prazer e a virtude. Assim, afirmam não ser possível viver honestamente sem prazer, nem ter vida com pra­zer sem honestidade. Não vejo como coisas tão diversas podem ser conciliadas. O que proíbe separar o prazer da virtude? Acreditas que todo o princípio de bem procede da virtude e de suas bases advém aquilo que amas e desfrutas? Ora, se prazer e virtude fossem inseparáveis, então não haveria coisas agradáveis, apenas desonrosas; nem coisas honestas, apenas onerosas, só alcançadas a duras penas.

VII

Digo ainda que o prazer está ligado à vida mais infame, mas a virtude não aceita a desonestidade. Há indivíduos descontentes não por causa da fal­ta de prazer, mas em decorrência do prazer em si, o que não aconteceria se o prazer estivesse ligado à virtude. A virtude frequentemente abre mão do prazer e dele não tem necessidade. Por que, então, juntar o que é contraditório e diverso?

A virtude é algo de elevado, nobre, invencí­vel e infatigável. O prazer é fraco, servil, frágil e efêmero, cuja sede e casa são bordéis e tabernas. Você encontrará a virtude no templo, no fórum, na cúria, vigiando nossas muralhas. Anda coberta de poeira, queimada de sol e com as mãos cober­tas de calos.

O prazer, por sua vez, quase sempre anda escondido em busca de trevas, perto das casas de banho, lugares longe dos edis. Apresenta-se flácido, frouxo, cheirando a vinho e a perfume, pá­lido, quando não cheirando a formol e parecendo embalsamado como um cadáver.

O bem supremo é imortal, não desaparecerá e não está familiarizado com tédio ou arrependi­mento, pois uma alma correta não muda nunca, não se aborrece, não se altera, porque sempre se­guiu o caminho certo. Ao contrário disso, o pra­zer quanto mais deleita, logo se extingue. Sendo limitado, fica logo satisfeito. Sujeito ao tédio, logo depois do primeiro ímpeto já se mostra fadigado. Não demonstra estabilidade porque é fugaz. As­sim, não pode ter consistência aquilo que aparece e desaparece como um relâmpago, destinado a fin­dar no mesmo instante em que se faz presente. Em verdade, o fim já está próximo quando começa.

VIII

Importa que o prazer esteja presente tanto entre os bons quanto entre os maus e não delei­te menos os malvados em suas torpezas do que os bons em suas ações honestas? É por isso que os antigos recomendavam seguir a vida melhor e não a mais agradável, de modo que o prazer se torne um aliado e não o guia da vontade digna e honesta.

É a natureza quem deve nos guiar. A ela se dirige a razão em busca de conselho. Deixa que eu explique o que entendo. Se soubermos man­ter, com cuidado e serenidade, os dotes físicos e as nossas capacidades naturais como bens fugazes e de apenas um dia; se não somos escravos deles nem dominados pelas coisas exteriores; se as oca­sionais alegrias do corpo têm para nós o mesmo valor que as tropas auxiliares (devem servir e não comandar), então, por certo, tudo isso será útil para a alma.

Que o homem não se deixe corromper nem dominar pelas coisas exteriores e somente olhe para si mesmo, que confie em seu espírito e esteja preparado para o que o destino lhe envie, isto é, que seja o próprio artífice de sua vida. Que sua confiança não seja desprovida de conhecimento, nem seu conhecimento, de constância; que suas decisões sejam para sempre e não sofram qual­quer alteração. Compreende-se, sem necessidade de repetir, que tal homem será tranqüilo e organi­zado, fazendo tudo com grandeza e amabilidade. A verdadeira razão estará incluída nos sentidos e fará, a partir deles, o seu ponto de partida, uma vez que não tem mais onde apoiar-se para que possa se lançar em direção à verdade e, depois, voltar para si mesma. Assim como o mundo que engloba todas as coisas, deus, governante do uni­verso, dirige-se às coisas externas, mas novamen­te retorna a si próprio de onde estiver. Que nossa mente faça o mesmo; quando seguir seus sentidos e se estender por meio deles através de coisas ex­teriores, seja dona destas e de si própria. Desse modo, resultará uma unidade de força e de poder em conformidade com ela própria, e nascerá uma razão segura, sem hesitação ou divergência em seu ponto de vista e compreensão, nem em sua convicção. Assim, quando harmonizada em seu todo, atinge o supremo bem. Pois nada de errado ou inseguro subsiste; nada que possa escorregar ou tropeçar.

Fará tudo através de seu controle, nada de inesperado irá acontecer, e tudo ficará bem, fácil e direito, sem desvios no agir, porque preguiça e hesitações demonstram luta e inconstância. Por­ tanto, podes declarar resolutamente que o supre­mo bem é a harmonia da alma, porque as virtudes devem estar onde estão a harmonia e a unidade; os vícios são aqueles que discordam.

IX

“Mas tu mesmo”, dizes, “praticas a virtude porque esperas que te traga algum prazer.” Em pri­meiro lugar, se a virtude há de proporcionar prazer, então por isso mesmo é desejada. Não é porque ela proporciona tal satisfação que deve ser buscada e, sim, porque, sobretudo, daí advém algum prazer. O empenho em busca da virtude não ocorre em razão do prazer, mas em vista de outro objetivo, embora possa decorrer algum prazer dessa busca.

Embora em campo lavrado possam aparecer algumas flores, não foi por causa de tais plantas, ainda que proporcionem uma bela visão, que foi gasto tanto trabalho. A intenção do semeador era outra. O “a mais” é apenas um acréscimo even­tual. Dessa forma, o prazer também não é o valor nem o motivo da virtude, mas, sim, um acessó­rio dela. Não é porque deleita que agrada; mas, se agrada, então deleita.

O bem supremo reside no próprio julgamen­to e na estruturação de um espírito perfeito que, respeitando os seus limites, realiza-se plenamente de maneira a mais nada desejar. Portanto, não há nada fora da plenitude a não ser seus limites.

Enganas-te ao questionar acerca do motivo que me leva a desejar a virtude; procuras, então, buscar algo além do que consideras o máximo, dizes. Queres saber que vantagem tiro da virtude? Apenas ela mesma, ela é o maior prêmio.

Isso te parece pouca coisa? Se digo: o bem supremo é a firmeza, a previsão, a agudeza, a li­berdade, a harmonia e a dignidade de uma alma  inquebrantável, poderias ainda imaginar algo de mais grandioso a que se referem todas essas coisas? Por que falar de prazer? Eu busco o bem do homem, não a barriga que em bestas e feras é maior.

X

“Desvirtuas o que digo”, poderias replicar. “Eu também não creio que alguém possa viver fe­liz sem que viva de modo virtuoso. Isso não vale para os animais nem para quem mede a felicida­de apenas pela comida. Afirmo, claramente, que a vida que eu chamo agradável não deve ser outra senão a que esteja ligada à virtude.”

Ninguém ignora que alguns homens pen­sam apenas nos prazeres, e que a alma sugere prazeres e gozos exuberantes. Em primeiro lugar, a insolência e a excessiva autoestima; o orgulho que despreza o outro; o amor cego pelas próprias coisas; a euforia por pequenos e fúteis pretextos; a maledicência com a soberba violenta; a inércia e a indolência que, cansada pelo acúmulo de praze­res, acaba dormindo sobre si mesma.

A virtude rejeita tudo isso. Para todas essas coisas, faz-se surda. Ela avalia o prazer antes de aceitá-lo. Não o acolhe para simples deleite, ao contrário, fica feliz em poder fazer uso dele com moderação.

“O equilíbrio ao limitar o prazer é lesivo para o bem supremo.” Ao falares assim, estás privile­giando o prazer. Eu o controlo. Tu o desfrutas, eu apenas me sirvo dele. Tu acreditas que ele seja o bem supremo; para mim sequer é bem. Tu fazes tudo por prazer; eu, nada.

XI

Quando digo que nada faço apenas por pra­zer, falo daquele a quem atribuímos o conceito de prazer. Penso que não é sensato chamar sábio a quem está escravizado por alguma coisa, ainda mais pela volúpia. De fato, se estiver totalmente sujeito àquilo, como poderia vencer o perigo, a pobreza em torno da vida humana? Como su­portar a visão da morte e da dor; como enfrentar o estrépito do mundo amargo e de tantos inimigos violentos, quando se submete diante de um adversário tão débil?

Dirás: “Faz tudo o que o prazer sugerir.”

Digo: “Certo. Acontece que nem podes ima­ginar os tipos de insinuações que ele fará.”

Dirás: “Nada me aconselhará de muito sór­dido, já que tudo está ligado à virtude.”

Digo: “Não vês, mais uma vez, que o bem su­premo precisa de um tutor para ser bom? Como poderá a virtude ser guia do prazer se a fazes mera acompanhante?”

Colocas atrás quem deveria comandar. A virtude tem um papel importante a desempenhar segundo tua forma de pensar: ela é apenas pregustadora do prazer.

Vejamos agora se a virtude, assim conside­rada, ainda seria virtude, uma vez que não pode conservar o nome ao perder a função.

Para que fique claro o argumento, mostra­rei como muitos homens cercados pelos prazeres, acobertados pela sorte e seus favores, não deixam de ser vistos como indivíduos corruptos.

Olha para Nomentano e Apício que, como afirmam, buscam coisas valiosas por terra e por mar. Depois, nas mesas de banquetes, expõem animais de todas as partes do mundo.

Olha como eles, do alto de seus leitos enfei­tados com rosas, contemplam a fartura de suas festas, deliciando os ouvidos com músicas e cantos, os olhos com espetáculos e o paladar com di­ferentes sabores.

Estão vestidos com roupas delicadas. Para não deixarem de apreciar os odores, o ambiente está permeado de perfumes diversos. Neste local, acontecem orgias luxuosas.

Podes reconhecer que estão submetidos aos prazeres, mas isso não é um bem para eles, já que de alguma coisa verdadeiramente boa não estão desfrutando.

XII

“Será um mal para eles”, dizes, “porque muitas são as circunstâncias que perturbam o seu humor, sem falar nas posições antagônicas que ajudam a perturbar o espírito.”

Também posso pensar que seja assim, embo­ra loucos e volúveis, e mesmo sujeitos ao arrepen­dimento, irão experimentar tais prazeres que os deixarão afastados da inquietude e do bom-senso. Como costuma acontecer, tornam-se reféns de uma alegria enorme e de uma trepidante festivi­dade a ponto de enlouquecerem de tanto rir.

Ao contrário, os prazeres dos sábios são mo­derados, comedidos, controlados e pouco per­ceptíveis, uma vez que vêm de improviso. Ao se fazerem presentes, não são acolhidos com pompa e circunstância por parte de quem os recebe. É que o sábio os inclui em sua vida tal como peças de um jogo, misturando-os a coisas mais sérias de forma a não se destacarem.

Deixe-se, pois, de unir coisas incompatí­veis entre elas, confundindo prazer com virtude. É com tal engano que se lisonjeia os perversos. Aquele que se deixa afundar nos prazeres, bê­bado e inebriado, ao mesmo tempo em que está consciente de conviver com o prazer também crê estar com a virtude.

Ouviu falar que prazer e vir­tude são inseparáveis e, por essa razão, nomeia os vícios com o nome de sabedoria, anunciando o que deveria esconder.

Assim, não se entregam à sensualidade leva­dos por Epicuro, mas, apegados ao vício, escon­dem na filosofia a própria corrupção, lançando-se para onde o prazer é elogiado. Também não levam em consideração o quanto era moderado o prazer segundo Epicuro, mas apegam-se apenas ao nome dele, esperando encontrar justificativa e apoio para uma vida devassa e corrupta. Portanto, perdem a única coisa boa que havia entre os seus males: a vergonha do pecado. De fato, elogiam aquilo que os arruina enquanto se afundam em vícios. Por isso, sequer é possível corrigirem-se, uma vez que se aplica um título honroso para uma indolência vergonhosa. Esta é a razão por que este elogio do prazer é prejudicial: os preceitos virtuosos ficam escondidos; o que corrompe está manifesto.

XIII

Eu próprio sou de opinião (afirmo isso apesar do que dizem nossos partidários) que os preceitos de Epicuro são nobres e corretos e, se analisados sob uma perspectiva mais acurada, até severos. Ele reduz o prazer a algo pequeno e mes­quinho. A mesma lei que atribuímos à virtude, ele atribui aos prazeres; isto é, obedecer à natureza. No entanto, o que é suficiente para a natureza é muito pouco para a luxúria. Então, o que ocorre?

Existe quem chame felicidade o lazer preguiçoso, a gula e a luxúria, buscando apoio para sua con­duta devassa. Quando encontra o prazer, sob um nome atraente, não adota aquele do qual ouve fa­lar, mas, sim, aquele que já trazia consigo. Não é por isso, no entanto, que diria que a escola de Epicuro, segundo opinião da maioria, professa a perdição.

Digo, no entanto, que está desacredi­tada, e sua fama é das piores, o que, em verdade, não passa de injustiça. Quem poderia saber isso senão aquele que nela fez sua iniciação? É o as­pecto dele que dá margem a falatórios e levanta falsa esperança, da mesma forma que quando um homem muito másculo veste roupas femininas. Sua honra não é manchada, sua masculinidade continua intocável, uma vez que o corpo não sofre qualquer desonra, porém ele carrega a sineta na mão. Quem se aproxima da virtude demons­tra ter índole nobre. Ao contrário, quem segue o prazer demonstra ser fraco, degenerado, propen­so ao vício mais sórdido, a não ser que haja quem o faça enxergar a diferença entre os prazeres e, dessa maneira, possa aprender quais deles são os que se encaixam nos limites da necessidade na­tural e quais os imoderados e insaciáveis, aqueles que quanto mais procurados mais se tornam exigentes.

Que a virtude tenha precedência, pois, assim, estaremos em segurança. O prazer excessivo pre­judica; na virtude não há de se temer o excesso, porque ela mesma contém em si a medida adequa­da. Não poderia ser um bem o que padece por sua própria magnitude.

XIV

Para os que foram privilegiados com uma natureza racional, o que poderia ser-lhes ofe­recido de melhor senão a própria razão? Se é desejável tal união, se se quer que a felicidade acompanhe, a virtude deve permanecer à frente, e o prazer deve acompanhá-la, mantendo-se tão perto como a sombra de um corpo. No entanto, fazer da virtude escrava do prazer é coisa de uma alma incapaz de algo maior. Que a virtude seja quem leva o estandarte. Dos prazeres, devemos fazer uso moderado.

Algumas vezes, os prazeres poderão nos le­var a alguma concessão, mas não devem nunca nos impor nada. Mas aqueles que tenham se entregue ao comando do prazer enfrentarão duas dificuldades. Primeiro, perdem a virtude e não têm o prazer, pois por ele são dominados; ou se atormentam pela sua falta, ou se sufocam em sua abundância. Infeliz quem dele se afasta, mas mui­to mais quem por ele for soterrado. Tal ocorre quando alguém é surpreendido pela tempestade no mar Sirtes. Ou procura a praia, ou se deixa ficar a favor da violência das ondas.

Este é o resultado do excesso de prazer e de amor cego a qualquer coisa. Aquele que prefere o mal ao bem se coloca em perigo caso alcance o seu objetivo. Cansado e não sem riscos, porta-se como se estivesse à caça de animais selvagens. Mesmo após a captura, deve portar-se cautelosamente, porque, frequentemente, costumam devorar seus donos. Dessa forma, os grandes prazeres acabam trazendo tragédias a quem os cultiva, deixando-os dominados por eles.

Parece-me bom esse exemplo da caça. Como aquele que, abandonando suas ocupações e ou­tros afazeres agradáveis, procura os esconderijos das feras, contente em armar-lhes armadilhas en­quanto fecha o cerco com os latidos dos cães nos rastros dos animais, assim persegue os prazeres.

Colocando-o frente a tudo o mais, o homem des­cuida, em primeiro lugar, da liberdade. Este é o preço pago, já que prazer libertino não se compra, a ele se é vendido.

XV

Poderias contestar: “O que impede a união de virtude e prazer como uma única coisa e o es­tabelecimento do bem supremo de modo que seja ao mesmo tempo nobre e agradável?” Acontece que não pode haver uma parte do virtuoso que não seja algo virtuoso, e o bem supremo não terá sua nobreza se guardar algo distinto do íntegro. Nem mesmo a alegria que vem da virtude, em­bora seja um bem, é uma parte do bem absoluto. Assim são a alegria e a tranqüilidade, ainda que se originem de boas causas. É certo que são coi­sas boas, mas não fazem parte do bem supremo. Dele são apenas conseqüência. Qualquer um que estabeleça uma aliança entre o prazer e a virtu­de, mesmo sem colocá-los em pé de igualdade, faz com que a fragilidade de um deles debilite o quanto haja de vigor no outro, e coloca sob jugo a liberdade que só é invencível se não conhece nada de mais precioso do que ela mesma. De fato, necessita-se da sorte quando começa a escravi­dão.

Disso advém uma vida plena de ansiedade, suspeita e inquieta, que se torna temerosa frente aos acontecimentos e no aguardo dos momentos do tempo.

Dessa forma, não se propicia para a virtude uma sólida e permanente base, passa-se a restringi-la à condição de instabilidade. O que há de tão mais incerto do que a espera das coisas fortuitas e da mudança do corpo e daquilo que o afeta? Como pode obedecer a deus e aceitar de bom grado tudo o que lhe ocorre, não queixar-se do destino e encontrar o lado positivo em qualquer evento, quando até o menor estímulo de prazer ou de dor o afeta? Quem se entrega aos prazeres não pode tornar-se defensor ou salvador da pátria nem protetor de seus amigos. Assim, deve-se colocar o bem supremo num lugar de onde nada possa de lá afastá-lo. A ele não deve ter acesso nem a dor, nem a esperança, nem o medo, nem qualquer outra coi­sa que possa ameaçá-lo. Só a virtude pode dele se aproximar.

Só a virtude pode lá chegar; passo a passo do­minará o caminho, mantendo-se firme, suportan­do todos os imprevistos, sem resignação, mas com alegria, consciente de que as adversidades da vida fazem parte da lei da natureza. Como o bom solda­do, que suporta os ferimentos, acumula cicatrizes e, mesmo à morte, traspassado por dardos, ainda admira o seu comandante aos pés do qual tomba.

Terá sempre em mente o velho preceito: se­guir a deus. Em vez disso, o que reclama, cho­ra e geme é obrigado a fazer à força o que lhe é ordenado.

Deixa-se arrastar, não caminha acom­panhando os demais. É estupidez e falta de cons­ciência da própria condição afligir-nos quando nos falta algo ou somos atingidos de forma mais violenta por adversidades. Da mesma forma, ficar indignado com coisas que ocorrem tanto para os bons quanto para os maus, como doenças, luto, fraquezas e todos os demais infortúnios da vida humana. Devemos saber suportar com espírito forte tudo o que por lei universal nos é dado a en­frentar. É nossa obrigação suportar as condições da vida mortal e não nos perturbarmos com o que não está em nosso poder evitar. Nascemos em um reino onde obedecer a deus significa liberdade.

XVI

Para concluir, a verdadeira felicidade con­siste na virtude. O que essa virtude te aconselha? Ela considera como bem apenas o que está unido à virtude e como mau o que tem ligação com a maldade. Mais ainda, manda que sejas inabalável, quer frente ao mal, quer junto ao bem, de forma a que possas imitar deus dentro dos limites de tua própria capacidade. O que ganhas com isso? Pri­vilégios dignos dos deuses. Não serás forçado a nada. Não terás necessidade de nada. Serás livre, seguro e imutável. Nada tentarás executar em vão. Tudo ocorrerá conforme o teu desejo. Nada será contrário aos teus desejos nem à tua vontade.

“Então”, perguntas, “basta a virtude para vi­ver feliz?” “Se é perfeita e divina, por que então não é suficiente, ou melhor ainda, mais do que suficiente? O que faltaria àquilo que está além de qualquer desejo? Quem, ao contrário, ainda não alcançou a meta final da virtude, mesmo que já tenha empreendido longa caminhada, precisa, sim, de sorte, uma vez que ainda luta em meio aos desejos humanos enquanto não consegue os laços de tantos obstáculos da mortalidade.”

Qual a diferença, então? A diferença reside em uns estarem algemados, outros decapitados e alguns estrangulados. Aquele que tenha atingido um plano superior, elevando-se ao máximo, leva algemas frouxas. Não se encontra ainda livre, mas já prevê a futura liberdade.

XVII

Alguém, dentre os que falam contra a filoso­fia, poderá dizer: “Por que há mais coragem em tua fala do que em tua vida? Por que moderas o tom de tua voz diante dos poderosos e julgas o di­nheiro como necessário? Por que te abates diante de contrariedades? Por que choras a morte da es­posa e do amigo? Por que és tão apegado à cele­bridade? Por que te afetam as palavras maldosas?

“Por que é que a tua área cultivada produz mais do que o necessário para viveres? Por que tuas refeições não seguem teus preceitos? Por que ter um mobiliário elegante também? Por que se bebe em tua casa um vinho mais velho do que o dono? Por que instalar um aviário? Por que são plantadas árvores só para te dar mais sombra? Por que tua esposa traz nas orelhas enfeites de igual valor ao dote de uma opulenta casa? Por que teus escravos vestem belas roupas? Por que é uma arte em tua casa servir a mesa, e são colocados talhe­res de prata, e tens até um mestre para cortar a carne?”

Acrescenta ainda, se quiseres: “Por que tens propriedades para além-mar, sem sequer sa­ber quantas são elas? É uma pena que sejas tão negligente a ponto de não saber quem são os teus escravos, ou tão rico que perdes a conta de quan­tos são eles?”

Responderei logo às críticas e acusações que me fazes. Além disso, vou fazer mais objeções do que imaginas. Agora te responderei isto: “Eu não sou um sábio e, para que a tua malevolência se regozije, acrescento, nunca serei.”

É por isso que não exijo ser igual aos melho­res, apenas melhor que os maus. Basta-me que, a cada dia, eu corte um pouco os meus vícios e castigue os meus erros.

Não estou curado nem ficarei de todo sadio. Tomo mais calmante que remédios para o mal de gota e dou-me por feliz se os ataques são mais esporádicos, e as dores, um pouco menos doloro­sas. Seja como for, comparado com tua caminha­da, eu, mesmo impotente, ainda assim sou um corredor.

XVIII

Podes dizer: “Falas de uma maneira e ages de outra”. Essas mesmas censuras, ó espíritos ma­lignos e agressivos, contra indivíduos de virtudes, também foram feitas a Platão, Epicuro e Zenão. Eles também não procuravam apregoar o modo como viviam e, sim, o modo como se devia viver. Eis o motivo por que não estou falando de mim, mas da vida virtuosa em si. Quando falo contra os vícios, estou reprovando, em primeiro lugar, os meus. Portanto, se for possível, procurarei viver corretamente.

Não será a malignidade venenosa a me afas­tar dos meus objetivos, nem esse veneno, que é jogado sobre os outros, vai me impedir de elogiar não a vida que levo e, sim, a que deveria levar. Também não me impede de cultuar a virtude e de segui-la, mesmo que seja me arrastando e à gran­de distância.

Esperavas que eu escapasse da maldade que não poupou a magnitude de Rutílio e de Catão? Será que alguém se preocupa em parecer demasiado rico para aquelas pessoas para quem o cíni­co Demétrio não é bastante pobre? Mesmo contra um homem como ele, extremamente forte na luta contra todas as exigências naturais, sendo o mais pobre de todos cínicos, já que, além de ser proi­bido de ter qualquer coisa, também foi proibido de pedir, atreveram-se os difamadores a dizer que ele não era bastante pobre!

XIX

Negam que Diodoro, filósofo epicúreo, que há poucos dias terminou sua vida pelo seu pró­prio punho, agiu de acordo com os preceitos de Epicuro ao cortar o pescoço. Alguns querem ver loucura nessa ação; outros, ousadia. Ele, porém, feliz e com a consciência satisfeita, deixou com a vida testemunho sobre a tranqüilidade de seus dias passados em porto seguro.

Pronunciou uma frase que é ouvida contra a vontade, porque soa como um convite a ser imi­tado: “Vivi. Fiz a caminhada que o destino me traçou.”

Discutem a vida de um, a morte de outro e, ao ouvirem a notícia da morte de um grande ho­mem, ladram como animais de estimação ao ir ao encontro de pessoas desconhecidas. Interessa a esses que ninguém viva como uma pessoa de bem, já que a virtude alheia parece demonstrar os seus próprios vícios.

Por inveja, comparam ador­nos brilhantes deles com as suas vestes miseráveis e não avaliam quanto isso traz de prejuízo para eles mesmos. Se homens dedicados à virtude são avaros, libidinosos e ambiciosos, quem são vocês, que não suportam a virtude a ponto de sequer querer ouvir-lhe o nome.

Afirmam que nenhum daqueles faz o que prega, não vivendo de acordo com a própria dou­trina. Mesmo que isso fosse verdade, por acaso as palavras deles deixariam de ser grandiosas e su­periores a todos os infortúnios humanos, posto que se esforçam para se soltar das cruzes nas quais cada um de vocês prende seus próprios pregos? Contudo, os condenados ao suplício estão sus­pensos na própria cruz. Os que se atormentam a si mesmos terão tantas cruzes quanto desejos. Realmente, os maledicentes se enfeitam com as ofensas dos outros. Acreditam, por isso, que es­tão isentos de culpa, se não fosse o fato de alguns cuspirem, do alto do patíbulo, nos espectadores.

XX

“Os filósofos não fazem o que dizem.” É verdade que já fazem muita coisa quando falam e pensam honestamente. Se o comportamento deles fosse adequado às suas palavras, quem seria mais feliz do que eles?

Entretanto, não devemos ignorar as palavras boas e os corações repletos de bons pensamentos. O cultivo de resoluções saudáveis, independente­mente do resultado, é louvável. Não é estranho que não atinja o topo quem escala encostas íngre­mes. Mas, se tu fores humano, admira, apesar da queda, os que se esforçam para conseguir grandes escaladas. Uma alma generosa, sem olhar para as próprias forças, apenas para a da natureza, aspira atingir os mais elevados objetivos, elaborar pla­nos mais elevados do que ela pode realizar, mes­mo com um espírito forte.

Há quem proponha a si mesmo o seguinte: “Olharei a morte com o mesmo ânimo com que ouvi falar sobre isso; suportarei qualquer cansaço com espírito forte, também desprezarei as rique­zas presentes e futuras, sem ficar mais triste ou mais orgulhoso se elas estão em torno de mim ou em outro local; serei insensível aos ditames da sorte venturosa ou desafortunada; observarei to­das as terras como se minhas fossem, e as minhas como se pertencessem a todos; viverei como al­guém que sabe que nasceu para os outros e darei graças à natureza por isso.”

A natureza foi muito benevolente para co­migo, já que me entregou a todos os meus seme­lhantes e, por sua vez, tenho todos só para mim. Se tenho algo de meu, conservarei, sem ganân­cia, mas também não esbanjarei prodigamente. Acredito ser o dono daquilo que ofereci de modo consciente. Não costumo avaliar os benefícios por número e peso, mas, sim, pelo valor dado a quem os recebe. Nunca será demais o que posso oferecer a quem o merece. Farei tudo o que mi­nha consciência mandar, sem me submeter ao que os outros pensam. Mesmo que apenas eu saiba o que estou fazendo, agirei como se todos estives­sem me vendo. Ao comer e beber, o meu objetivo será apenas atender a uma necessidade natural e não encher o estômago vazio. Serei agradável para com os amigos, gentil e indulgente para com os inimigos. Cederei antes que me solicitem, adian­tando-me a todas as demandas honestas.

Sei que a minha pátria é o mundo, e que os deuses o comandam, e eles estão acima de mim e ao redor, agindo como censores de meus atos e de minhas palavras. Quando a natureza solicitar o meu espírito, ou minha razão ordenar que eu o libere, partirei dizendo que sempre cultivei a reti­dão de caráter e as melhores intenções, sem haver reduzido a liberdade de ninguém, muito menos a minha. Qualquer pessoa que pretenda, que quei­Rá, que se proponha a fazer isso estará trilhando a estrada que leva aos deuses. Caso não consiga atingir a meta, terá então sucumbido depois de ter ousado grandes coisas.

XXI

Tu, que odeias a virtude e quem a cultiva, nada de novo estás fazendo. De modo igual, quem tem algum problema na vista não suporta a luz, tal como os animais noturnos evitam o brilho do sol. Mal desponta a luz do dia, correm para seus refú­gios e, com medo da claridade, escondem-se em qualquer buraco. Geme e grita, insultando os bons. Escancara a boca e morde. Assim, rapidamente quebrarás os teus dentes antes que deixem marcas.

Como é que um adepto da filosofia pode vi­ver com essa opulência? Por que diz que despre­za riqueza e é possuidor de tantos bens? Por que acha a vida desprezível e vive?

Despreza a saúde; no entanto, trata de pre­servá-la com todo o rigor, desejando estar em ex­celente forma. Por que julga a palavra exílio como absurda e, ao mesmo tempo, diz: “Que mal existe em mudar de país?” Por que, sendo isso possível, acaba envelhecendo em sua própria terra natal?

Assegura, além disso, que não existe dife­rença entre vida longa e vida breve, mas, nada impedindo, procura viver a mais longa existên­cia possível, mantendo-se com energia até a mais avançada velhice.

Ele afirma que essas coisas devem ser igno­radas, não no sentido de que não devam ser pos­suídas e, sim, de que devam estar presentes sem ansiedade. Dessa maneira, não as joga fora, mas, vindo a perdê-las, continua sua caminhada com tranqüilidade.

Onde a sorte acolhe, com maior segurança, as riquezas senão de onde poderá retomá-las sem protesto?

Marco Catão, embora louvasse Cúrio e Coruncânio, naqueles tempos em que possuir um pouco de prata era crime punível pelos censores, tinha ele próprio quarenta vezes mais sestércios. Certamente valor menor do que possuía seu bi­savô Crasso, mas maior do que Catão, o censor. Apesar disso, se outros bens lhe fossem ofereci­dos, não os desprezaria.

Da mesma forma, o sábio, não é considera­do indigno ao ser agraciado pelo dom da fortuna. Não ama a riqueza, mas a aceita de bom grado. Permite que entre em sua casa, não a rejeita, des­de que ela enseje oportunidades para a virtude.

XXII

Assim, não resta dúvida de que o homem sá­bio tem um campo mais vasto para desenvolver o seu espírito em meio à riqueza do que na pobreza. Na pobreza, a virtude consiste em não se deixar abater, não cair em desalento. Na riqueza, existe oportunidade para a temperança, a generosidade, o discernimento, a organização, a magnificência com total liberdade.

O sábio não se despreza caso seja de estatura pequena, embora preferisse ser mais alto.

Se for franzino ou tiver um olho a menos, assim mesmo terá consciência de seu valor, pre­ferindo ser robusto, mas sem esquecer que algo de mais valioso existe dentro de si. Suportará a moléstia, mas desejará ter saúde. Existem muitas coisas, apesar de terem pouca importância para o todo, que podem faltar sem que causem prejuízo ao bem principal, embora possa propiciar alguma vantagem para a serenidade duradoura da virtu­de. Portanto, a riqueza é agradável para o sábio, assim como o vento favorável para o navegante, ou um dia ensolarado no frio do inverno.

Nenhum dentre os sábios - falo daqueles sábios para os quais a virtude é o único bem ver­dadeiro - sustenta que as vantagens da riqueza, ditas como indiferentes, não tenham o seu real valor. Também não nego que algumas coisas se­jam preferidas a outras, uma vez que a algumas delas é dado certo valor e a outras, muito mais.

E não nos devemos enganar, portanto. As ri­quezas aparecem entre as preferidas.

Dirias, então: “Por que zombas de mim, se para ti elas têm o mesmo valor que para mim?”

Deves saber que o valor não é idêntico para nós. Para mim as riquezas, se as perdesse, não me diminuiriam em nada, apenas elas seriam reduzi­das. Tu, ao contrário, ficarás abatido, sentindo-te como que privado de ti mesmo, caso te abando­nem. Para mim, as riquezas têm certo valor, para ti, têm um valor imensurável. Assim, as riquezas pertencem a mim, no teu caso, tu estás subordi­nado a elas.

XXIII

Deixa, por isso, de querer proibir aos fi­lósofos o direito de possuírem bens. Ninguém condenou a sabedoria à miséria. O sábio pode­rá possuir grandes riquezas, desde que não sejam roubadas, manchadas com o sangue dos outros, que sejam adquiridas sem prejuízo algum, sem negócio sujo. Os gastos devem ser tão honestos como os ganhos, de forma que ninguém, exceto os maldosos, possa criticar. Os bens podem ser acumulados. São ganhos limpos, porque não há quem possa reivindicá-los, embora não falte quem queira tomá-los.

Com certeza, o sábio que não rejeita os favo­res da sorte não se vangloria e também não se en­vergonha de um patrimônio adquirido por meios honestos.

Terá motivo para se sentir glorificado se, aberta a casa e convidada toda a cidade, puder di­zer: “Se alguém descobrir algo de seu, pode levar embora”.

Grande será o homem que, ditas essas palavras, continue com os mesmos bens que tinha antes. Quero dizer que, se permitiu ao povo inqui­rir sobre ele com tranqüilidade e sem preocupa­ção, e ninguém encontrou nada para reivindicar, poderá ser rico de maneira franca e aberta. O sábio não deixará transpor o limiar de sua casa dinheiro suspeito, mas não rejeitará, certa­mente, uma grande riqueza, quando dom da sor­te ou fruto da virtude.

Por que lhes negar um bom lugar? Deixe-as entrar, serão aceitas. Não haverá ostentação, mas também não ocultará um grande valor, nem o jogará fora. O primeiro gesto seria tolice, o segun­do, mesquinharia. O que lhes diria ele? “Você é inútil” ou “Eu não sei usar da riqueza?” Da mesma forma, embora possa viajar a pé, prefere fazer isso com um veículo. Assim, se puder ser rico, vai preferir ser de verdade. Possuirá uma fortuna, mas estará consciente de que é algo in­constante e instável, não permitindo, portanto, que seja um fardo para si mesmo nem para os outros.

Dará... Por que aguças os ouvidos? Por que estendes a tua bolsa?

Dará a quem merecer ou a quem tenha po­tencial para ser merecedor, sabendo escolher, com grande prudência, os mais dignos, como quem lembra que deve dar conta tanto dos gas­tos quanto dos créditos. Dará por motivos justos, pois presente errado é inútil. Terá a bolsa aberta, mas não furada, da qual muito sai, sem esbanjar demais.

XXIV

Engana-se quem pensa que é fácil doar. Ao contrário, é mais difícil, visto que se deve agir com discernimento, e não por ímpeto ou instin­to. Dou crédito a um, fico em débito com outro; presto favores àquele; tenho compaixão por este. Ajudo, para que não cometa desatinos, a quem não merece passar fome. Não darei um centavo a quem, mesmo precisando, por mais que receba, sempre quer receber mais.

A alguns apenas ofereço ajuda, enquanto que a outros, necessito convencê-los a receber. Não posso ser negligente nesse assunto, porque ao doar faço o melhor dos investimentos.

Então, dirás: “Tu dás para receber algo em tro­ca?” Respondo: “Eu dou para que não se perca. O que for doado vai ficar em um lugar onde não pode ser reclamado, mas pode ser devolvido.” O impor­tante é que o benefício seja tratado como um tesou­ro que permaneça muito bem cuidado, guardado, sendo desenterrado apenas quando for necessário.

A casa do homem rico oferece material para fazer o bem. Quem disse que devemos ser gene­rosos apenas para aqueles que usam toga? A natu­reza ordenou-me ser útil para os homens, sejam escravos ou livres, ou assim nascidos ou não. Qual a diferença se é uma liberdade legal ou concedi­da por amizade? Onde houver um ser humano, aí haverá possibilidade de se fazer o bem.

Também é possível doar dinheiro no inte­rior de nossa casa, praticando a liberalidade, as­sim chamada não por que dirigida a indivíduos livres, mas porque parte de uma alma livre.

Não existe razão para escutares de má von­tade as palavras fortes e corajosas de quem seguia pela sabedoria. Fica atento, pois uma coisa é o empenho para ser sábio, e outra, sê-lo de fato. Al­guém irá dizer-te: “Eu falo muito bem, mas ainda me encontro envolvido com muitos males”.

Não posso ser colocado em choque com meus princípios quando faço o máximo que pos­so, procuro melhorar e desejo um ideal grandio­so. Apenas depois de ter alcançado os progressos que tinha em mente é que me poderia ser exigido o confronto entre o que falo e o que concretizo.

De maneira diversa, quem já atingiu o cume da perfeição falaria assim: “Antes de tudo, não po­des emitir juízo sobre quem é melhor do que tu”.

No que diz respeito a mim, sendo despreza­do pelos maus, significa que estou no caminho certo. Para explicar-te, visto que a ninguém se deve negar, ouve o que vou dizer e qual o valor que dou pelas coisas em questão. Volto a afirmar que as riquezas não são coisas boas em si mesmas. Se realmente fossem, elas nos tornariam bons. Não me é possível definir como algo bom em si aquilo que também faz parte da vida de maus indivíduos. Enfim, estou convicto de que riquezas são úteis e proporcionam grande con­forto à vida.

XXV

Escuta agora por que não incluo as riquezas entre os bens e por que a minha atitude no que diz respeito a elas é diferente da tua, embora seja consenso que é necessário possuí-las.

Coloca-me na mais opulenta casa onde não se distingue ouro e prata. Não tenho nenhuma admiração por estas coisas, que, mesmo estando
junto a mim, estão fora de mim. Traslada-me para a ponte Sublício, entre os pobres e miseráveis. Não é por isso que pensarei ter menos valor só porque me encontro entre os que pedem esmola. Assim, o que muda? Eles não têm o que comer, mas não lhes falta o direito de viver. E daí? Seja como for, prefiro uma casa opulenta a uma ponte.

Põe-me no meio de um suntuoso e requinta­do mobiliário de luxo. Não é por esse motivo que serei mais feliz, por me encontrar sentado sobre almofadas macias ou por poder estender tapetes vermelhos sob os pés de meus convidados.

Troca o meu colchão, e não serei mais infeliz se puder descansar meus membros exaustos so­bre um pouco de feno ou dormir sobre uma cama de circo com o estofado gasto devido à velhice da costura. O que isso significa? Eu prefiro mostrar-me vestido com a pretexta e ficar agasalhado, não deixando seminus ou descobertos os ombros.

Mesmo que todos os meus dias passem se­gundo meus desejos, que novas felicitações se juntem às anteriores, não me contentarei com isso.
Mesmo que o meu espírito seja atormen­tado por todos os lados com lutos, tristeza e contrariedades de qualquer tipo, de maneira que cada momento seja motivo de choro, nem por isso terei razão para reclamação. Mesmo sob tanta desgraça, não amaldiçoarei qualquer dia de minha vida. Tomei medidas para garantir que nenhum dia seja desastroso para mim.

Então? Eu prefiro temperar as minhas ale­grias a reprimir a minha dor.

O grande Sócrates te diria o seguinte: “Fa­ça-me vencedor de todas as nações, que o carro de Baco voluptuoso leve-me a partir do Orien­te para Tebas, que os reis dos persas me façam consultas. Não é por isso que esquecerei que sou apenas um homem, mesmo sendo exaltado como um deus.”

De repente, uma desgraça pode lançar- me do alto, e, assim, serei apenas carregado tal qual enfeite em carro alheio para o desfile de um vendedor orgulhoso e feroz. Não obstante, não me sentirei menos em carro alheio do que quando me encontrava em pé no meu, triun­fante!

É isso mesmo, prefiro vencer a ser vencido. Desprezo a sorte com toda convicção, mas, se me for dado escolher, escolherei o que me for mais agradável. Aconteça o que acontecer, será uma coisa boa para mim, no entanto, será melhor ain­da ser for algo prazeroso que não cause a menor perturbação.

Então, não acho que haja qualquer força sem trabalho, porém, com relação a algumas virtudes, é preferível o uso de esporas e, com outras, o do freio.

Da mesma forma que o corpo deve ser reti­do em uma descida e ser impulsionado em uma subida, também há virtudes para um declive e outras para a escalada.

Há alguma dúvida que a constância, a tena­cidade, a perseverança impliquem cansaço, es­forço e resistência como todas as outras virtudes que se opõem às adversidades? Ao contrário, não é evidente que a liberalidade, a temperança e a mansidão seguem em disparada?

De um lado, deve-se frear o espírito para não escorregar; de outro, empurrá-lo e incentivá-lo vivamente. Por isso, na pobreza, vamos fazer uso de virtudes aptas à luta; na riqueza, daquelas mais cuidadosas, que controlam os movimentos e man­têm o equilíbrio.

Feita essa divisão, prefiro fazer uso daque­las que podem ser cultuadas na tranqüilidade em lugar de controlar as que exigem muito sangue e suor.

Por isso, o sábio disse: “Não sou eu que falo de uma maneira e vivo de outra. Ês tu que enten­des uma coisa por outra. Estás ouvindo o que te chega aos ouvidos, mas não procuras entender o significado das palavras.”

XXVI

“Então, o que há de diferente entre mim, desvairado, e ti, sábio, já que nós dois desejamos posses?”

“Muita coisa. As riquezas servem ao sábio, enquanto comandam o louco. O sábio não permi­te nada às riquezas; elas, a ti, tudo permitem. Tu, como se a titivesse sido garantida posse eterna, fi­cas preso a elas como se fosse um vínculo habitual. O sábio pensa na pobreza justamente quando está instalado na riqueza.”

Jamais um general confia na paz a ponto de deixar de lado a vigilância e a preparação para uma guerra. Embora sem combate, a guerra continua declarada.

Para ti, basta uma casa luxuosa para que te tornes arrogante, como se ela não pudesse desmo­ronar ou queimar. A riqueza te embriaga porque pensas que ela tem o poder de superar qualquer dificuldade e que o destino não poderá aniquilá-la. Ficas despreocupado em meio à riqueza sem o me­nor cuidado com o perigo que ela pode trazer.

Da mesma forma, os bárbaros, estando cer­cados, não conhecem a utilidade das máquinas de guerra e olham indiferentes o cansaço dos inimi­ gos, não compreendendo para que servem aque­las coisas construídas à distância.

O mesmo acontece contigo. Ficas envaide­do com os teus pertences e não pensas nas desgraças que ameaçam de todos os lados. Elas se preparam para arrebatar a presa valiosa. Qualquer um pode tirar a riqueza do sábio, mas não lhe ti­ram os bens verdadeiros, porque ele vive feliz no presente e está despreocupado com o futuro.

“Nada” - dirá Sócrates, ou algum outro que tenha a mesma autoridade e o mesmo poder sobre as coisas humanas - “prometi a mim mesmo com mais firmeza do que não submeter os atos de minha vida à opinião alheia. Joguem sobre mim suas duras palavras. Não pensarei estar sendo injuriado, pois parecem gemer como criaturas in­ felizes.”

Isso dirá aquele a quem foi dada a sabedoria, porque, livre de vícios, sente-se levado a julgar os outros não por raiva e, sim, por bem. Acrescenta­rá, ainda: “A opinião de vocês me abala não por­ que sou atingido, mas porque vocês continuam a praguejar contra a virtude como inimigos dela, não lhes restando nenhuma esperança de mudan­ça de atitude.”

A mim não causas nenhuma afronta. De fato, quem destrói os altares não ofende aos deu­ses, mas fica clara a sua má intenção, mesmo ali onde não consegue causar nenhum dano.

Tolero tais tolices tal como Júpiter tolera as fantasias dos poetas. Um lhe dá asas; outro, coroa; um outro o representa como adúltero, vagando pelas noites; outro o faz seqüestrador de homens livres e até de seus familiares; outro, por fim, par­ricida e usurpador do reino paterno.

Se fôssemos acreditar nisso, pareceria que os deuses nada fizeram senão tirar dos homens a vergonha do pecado.

Embora isso não me atinja, quero advertir para o seu proveito: “Olha a virtude com respei­to; confia naqueles que, tendo-a seguido durante toda a vida, demonstram tratar-se de algo muito importante e que sempre ganha novas dimen­sões de grandeza. A ela como aos deuses e a seus oráculos, tal qual sacerdote, venera. Sempre que forem citados textos sagrados, mantém silêncio respeitoso para ouvir.”

XXVII

Quando alguém agita o sistro e apregoa, sob encomenda, frivolidades mentirosas; quando o impostor finge estar ferindo os braços e ombros e o faz de leve; quando uma mulher se arrasta pelas ruas, de joelhos, gritando; quando um velho, ves­tido de linho e louro, com uma lanterna na mão, em pleno dia, grita dizendo que algum deus está irritado, vocês acodem e juram que se trata de pessoas inspiradas pelos deuses. Procedendo as­sim, estão promovendo a própria perturbação.

Sócrates, da prisão, purificada com a sua presença e tornada mais honrosa do que qualquer cúria, proclama: “Que loucura é essa, tão inimiga dos deuses e dos homens, que destrata a virtude e profana com palavras maldosas as coisas sagradas? Se puderes, elogia o bom, se não, segue o teu ca­minho. Mas, se gostas de ser infame, agridam-se mutuamente. Quando ficas furioso contra o céu, não vou dizer que cometes um sacrilégio, apenas lutas em vão.”

Eu próprio fui, certa vez, zombado por Aristófanes. Todos aqueles poetas satíricos me enve­nenaram com suas anedotas sobre mim. Minha força, no entanto, foi reforçada graças aos golpes com que pensaram destroçá-la. Foi-lhe proveito­so ser posta à prova. Ninguém entendeu o quão grande era como aqueles que, ao tentar atingi-la, sentiram o seu poder. Ninguém conhece melhor a dureza das pedras do que o escultor.

Eu sou como uma rocha isolada em meio a um mar agitado. Quando a maré baixa e as ondas não param de flagelar de todos os lados, sem descanso, nem mesmo depois de séculos de constantes investidas, não conseguem removê-la ou desgastá-la. Assaltem-me, ataquem-me. Eu vencerei a todos resistindo. Quem se atira con­tra um recife, está praticando a violência contra si próprio. Assim, procurem um alvo mais maleável para atirar os seus dardos.

Vocês têm tempo para investigar os males dos outros e lançar julgamentos como este: por que este filósofo vive em casa tão ampla? Por que oferece jantares tão lautos? Ficam a ver brotoejas nos outros quando têm o corpo coberto de feridas.

Parecem como alguém que, tendo o corpo tomado por lepra, zomba de manchas e verrugas em belos corpos.

Criticam Platão por ter pedido dinhei­ro; Aristóteles por ter recebido; Demócrito por ter negligenciado; Epicuro por ter esbanjado. A mim, criticam por causa de Alcebíades e de Fedro. Vocês seriam mais felizes se pudessem imitar os nossos vícios!

Por que não olham para os seus próprios males, que estão a atacar seu exterior e a devo­rar suas entranhas? Os assuntos humanos - ainda que conheçam pouco o seu estado - não estão em tal situação para que sobre espaço para vocês da­rem com a língua nos dentes, ferindo os que são mais dignos e melhores que vocês. Mas vocês não compreendem isso. Estão sempre demonstrando atitudes que não se ajus­tam às suas vidas. Parecem com aqueles que, des­frutando o circo ou o teatro, esquecem o luto de suas casas.

Mas eu, que vejo de cima, percebo a tem­pestade ameaçando explodir em breve, com suas nuvens já perto, prontas para arrancar e espalhar suas riquezas.

O que eu digo? Em breve? Não, agora mes­mo. Ainda que não pensem nisso, um furacão vai envolver suas almas que, ao tentarem escapar sem se desprender da volúpia, serão jogadas para o alto ou precipitadas para as profundezas.

Filosofia - Estoicismo
Cartas e dilálogos - Tópicos gerais, 
10/10/2021 12:22:02 PM | Por Lucius Annaeus Seneca
Da tranquilidade da alma

Examinando a mim mesmo, ó Sêneca, apa­recem alguns vícios expostos tão abertamente que poderia segurá-los com a mão, outros mais obscu­ros e escondidos, outros ainda que não são contí­nuos, mas que voltam a intervalos intermitentes, os quais afirmo serem os mais incômodos, como inimigos escondidos que atacam nas ocasiões mais oportunas, contra os quais não se pode estar tão preparado como na guerra nem tão seguro como na paz.

De fato, o estado em que me encontro (por que não te confessarei a verdade como a um mé­dico?) é o de não estar, de boa fé, liberto daque­las coisas que eu temia e odiava, nem totalmente submetido a elas. Neste estado, não sendo o pior, é o mais lamentável e incômodo, porque não es­ tou doente nem são.

E não é o caso tu me dizeres que todas as virtudes são tênues nos seus princípios, e que com o tempo adquirem dureza e robustez. Não ignoro também que nas coisas pelas quais se trabalha pelas aparências, digo pela dignidade e pela fama de eloqüência e o que quer que ve­nha do sufrágio alheio, com o tempo se conso­lidam inteiramente. E as coisas que comunicam as verdadeiras forças, tal como para agradar, se revestem de falsas aparências, esperam anos até que paulatinamente a duração lhes dê cor. Mas eu temo que o costume, que consolida as coisas, não fixe este vício mais profundamente em mim. Tanto dos males quanto dos bens, uma longa familiaridade induz ao amor.

Seja qual for esta debilidade da alma, que nem se inclina fortemente ao que é certo nem ao que é depravado, não consigo expor tudo de uma única vez, mas apenas por partes. Eu te direi o que está me acontecendo, e tu encontrarás um nome para essa doença.

Confesso que tenho um grande amor pela parcimônia: agrada-me uma cama que não seja adornada de modo exagerado, sem vestes retiradas da arca e prensadas para recuperar o brilho. Prefiro roupas que sejam caseiras e baratas e que, sem exa­geros, sejam conservadas e guardadas para o uso.

Agrada-me uma comida que não tenha sido preparada nem observada por muitos escravos domésticos, com muitos preparativos, nem mui­ tos dias antes, mas que seja comum e de fácil pre­ paro, que não tenha nada de rebuscado nem de exótico, que seja encontrada em qualquer lugar, que não seja pesada nem ao bolso nem ao corpo, que não saia por onde entrou.1

Agrada-me o criado inculto e o escravo rude, a pesada prata do meu rústico pai, sem o nome do artífice, e uma mesa não tão vistosa pela  variedade de cores, nem famosa na cidade pelas suas sucessões de donos elegantes, mas, que posta em uso, não desperte a volúpia de nenhum dos convidados nem lhes acenda a inveja.

Embora tais coisas me agradem, alegra-me a alma o aparato de algum pedagogo2, o qual, ves­tido com muito cuidado e com mais ouro do que se fosse para um desfile, é cortejado por outros também elegantes. Já a casa em que pisam é pre­ ciosa, as riquezas estão disseminadas por todos os cantos, os tetos são refulgentes, e sempre há um povo que assiste aos jantares e ao desperdício dos patrimônios. O que direi dessas águas, reluzentes até o fundo e que circundam aos próprios convi­dados e dos banquetes dignos desse cenário?

Vindo eu de um longo período de frugali­dade, me circundou com tamanho esplendor o luxo que resplandece ao redor. Minha vista titu­beia um pouco, mais facilmente reajo com a alma do que com os olhos. Eu me retiro não pior, mas mais triste entre os meus parcos bens. Não estou satisfeito, e me ocorre a dúvida de que outras coi­sas seriam melhores. Nenhuma dessas coisas me muda, mas todas me deixam abalado.

Resolvi seguir os comandos dos preceptores e me envolver nos assuntos públicos. Aí me entusiasmam as honras e os fasces3, não por andar vestido de púrpura e cercado de varas, mas para ser mais útil aos amigos, aos familiares, a todos os cidadãos e, de modo geral, a todos os mortais. De modo mais concreto, sigo a Zenão, a Cleanto e a Crisipo. Ne­nhum deles se envolveu com a política, mas nunca deixaram de enviar para lá seus discípulos.

Quando algo insólito me atinge, eu que não estou acostumado a tais impactos; quando acon­tece algo indigno, tal como, rotineiramente, acon­tece na vida, ou alguma coisa de difícil resolução; quando fatos pequenos e sem importância tomam muito tempo, volto-me para o meu retiro. Da mesma maneira como acontece com o rebanho fatigado, que rapidamente retorna para o curral, volto para casa cada vez mais apressado. Não há nada de mais relaxante do que ficar entre as pare­ des de nosso lar. Que ninguém me furte um úni­co dia, já que nunca poderia me compensar tão grande perda. Neste local, a alma fica dedicada a si mesma, pode ser cultivada, nada nem nenhum juízo alheio pode afetá-la. Livre dos cuidados par­ticulares e públicos, dedica-se à tranqüilidade.

Desde que uma leitura excitante elevou a minha alma, e nobres exemplos a estimularam, compraz-me ir ao foro, dar a palavra a uns, traba­ lho a outros e, mesmo que não sirvam para nada, visam a uma utilidade. Dessa forma, refreio, no foro, a soberba daqueles que, em virtude de sua prosperidade, se tornam insolentes.

Baseado em meus estudos, acredito ser me­lhor contemplar as próprias coisas e falar movido por elas, emitindo palavras adequadas aos fatos, de modo que, para onde quer que levem, o dis­ curso siga esta espontaneidade. Por que, então, compor obras que durem séculos? Queres fazer isso para que os pósteros não te esqueçam? Nasceste para morrer: causa menos incômodo um funeral silencioso.

Às vezes, a minha alma se eleva com a mag­nitude do pensamento, torna-se ávida por pala­vras e aspira às alturas. Assim, o discurso já não é mais meu. Esquecido das normas e dos critérios rigorosos, elevo-me e falo com uma boca que não é mais minha.

Não me detendo em detalhes, atento para o fato de que, em minhas preocupações, sou acom­panhado por certa timidez cheia de boas inten­ções. Temo me inclinar paulatinamente para elas ou, o que é mais preocupante, ficar sempre pen­ dente e que talvez isso seja mais forte do que eu havia previsto. Isso porque as coisas costumeiras nos parecem familiares e sempre são julgadas de modo benevolente.

Penso que muitos poderiam ter chegado à sabedoria se não pensassem já serem sábios, se não tivessem dissimulado para si mesmos algu­mas coisas e se não tivessem passado por outras tantas com os olhos fechados. Não há razão para pensares que a adulação alheia nos é mais perigo­ saque a nossa própria. Quem ousa dizer a verda­de para si mesmo? Quem, posto entre a multidão daqueles que elogiam e lisonjeiam, não elogia a si mesmo ainda mais?

Rogo, pois, se tens algum remédio com o qual possas refrear essa flutuação, para que me consideres digno de dever a ti a minha tranqüi­lidade.
Sei que esses movimentos da alma não são perigosos nem trazem qualquer inquietação mais tumultuosa. Lançando mão de uma imagem que expresse o que sinto, digo que não me cansa a tempestade, mas, sim, a náusea. Portanto, afasta o que quer que seja este mal e socorre ao náufrago que já avista a terra.

II

Desde há muito, Sereno, eu questiono, em silêncio, a que se poderia comparar semelhante estado de espírito e não encontro exemplo mais adequado que o daqueles que, tendo saído de uma longa e grave enfermidade, ainda sentem pe­quenos incômodos. Embora já estejam livres das seqüelas, já estejam curados, ainda se inquietam com suspeitas e fazem com que os médicos lhes tomem o pulso, interpretando como doença todo pequeno mal-estar.

O corpo deles, ó Sereno, está curado, em­ bora não esteja acostumado à saúde, assim como o mar, já tranqüilo, sempre tem certa agitação, mesmo depois que passou a tormenta. Não é pre­ ciso aqueles recursos drásticos aos quais já se re­ correu anteriormente, como resistir a si mesmo, censurar-se e atormentar-se. Neste momento, é necessário que tenhas confiança em ti mesmo e creias que vais pelo caminho reto, sem se deixar chamar para veredas transversais como de muitos que vão de um lado para outro, enquanto alguns se extraviam bem próximos do caminho.

O que tu queres, pois, é grande, de máxima importância e próximo de um deus: não ser aba­ lado. Os gregos chamam a este estado estável da alma de eutymia, sobre tal tema existe uma exce­lente obra de Demócrito. Eu o chamo de tranqüi­lidade. Assim, não é preciso imitar ou traduzir as palavras pela sua forma; a própria coisa deve ser designada por algum nome, que deve ter a força da nomenclatura grega e não a aparência. Portanto, investiguemos de que modo a alma deverá prosseguir sempre de modo igual e no mesmo ritmo. Ou seja, estar em paz consigo mesmo, e que essa alegria não se interrompa, mas permaneça em estado plácido, sem elevar-se, sem abater-se. A isso eu chamo tranqüilidade. Investiguemos como alcançá-la. Isso feito, tu tomarás desse remédio universal a teu gosto.

Examinando tal mal-estar, cada um reconhe­ce qual a parte dele é sua. Ao mesmo tempo, compreenderás quão pequeno é teu problema pessoal em relação ao de outros, presos a uma profissão brilhante ou a um título importante. Em tal situa­ção, mais por vergonha do que por decisão pró­pria, impera a simulação.

Todos eles estão na mesma situação, tanto os que estão envergonhados por sua própria le­viandade - pelo tédio e pela contínua mudança de propósitos, aos quais agrada sempre mais o que foi abandonado - quanto aqueles que rela­xam e passam a vida bocejando. Acrescente a es­tes os que, não de modo diferente daqueles aos quais o sono é difícil, se reviram de um lado e de outro até que venha o quieto descanso. Tratando sempre de reformar o estado de sua vida, perma­necem por último naquele que os surpreendeu no ódio às mudanças, pois a velhice é preguiço­sa para a novidade. Acrescente também aqueles pouco dados a mudanças, não por obstinados, mas por inércia, já que vivem como não gosta­ riam, mas como sempre o fizeram.

São inumeráveis as propriedades do vício, mas o seu efeito é um só: o aborrecer-se consi­go mesmo. Isto nasce do desequilíbrio da alma e dos desejos tímidos ou pouco prósperos, visto que não ousam tanto quanto desejam ou não o conseguem. Dessa forma, realizam-se apenas na esperança. Sempre são instáveis e volúveis. Por todas as vias tentam realizar seus desejos. Eles se instruem e se conduzem para coisas desonestas e difíceis e, quando o seu trabalho é frustrado, atormentam-se não por terem desejado o mal, mas por tê-lo desejado em vão.

Então eles se arrependem de terem começa­ do e temem recomeçar. Daí advém uma agitação que não encontra saída, porque não podem nem dominar nem se submeter aos seus desejos. Em conseqüência, reflete-se a indecisão de uma vida que pouco se expande e o torpor de uma alma em meio aos seus desejos fracassados.

Todos os males se agravam quando, lon­ge dessa incômoda angústia, obtém-se a paz na tranqüilidade ou nos estudos solitários, os quais não pode suportar uma alma dedicada às coisas cívicas, desejosa de ação e, por natureza, inquieta. Ou seja, não encontra consolo em si mesma. Por isso, privado dos deleites que as mesmas ocupa­ções proporcionam aos que as perseguem, não suporta a casa, a solidão e as paredes. Desgostoso, vê-se como um ser abandonado.

Daí o tédio e o desgosto para consigo mes­ mo. Tal o desassossego que em lugar nenhum encontra descanso, projetando uma aflitiva in­ tolerância da própria inércia, cujos motivos não ousa confessar. Assim, seus desejos, fechados em sua estreiteza, sem possibilidade de evadir-se, acabam por sufocar a si mesmos.

Por esse motivo, advêm tristeza, fraqueza e milhares de flutuações de uma mente tomada pela indecisão. Ela mantém em suspenso as espe­ranças suscitadas e se frustra na desolação.

Consequentemente, aquela disposição de de­ testar o seu próprio repouso e de se queixar por não ter nada para fazer, e também de invejar forte­ mente o sucesso do próximo. A inércia não dese­jada alimenta a inveja, ambiciona a ruína de todos, porque não conseguiu atingir o seu próprio êxito.

Dessa aversão pelo sucesso alheio e do de­sespero em virtude de seus fracassos, a alma exaspera-se contra a sorte e queixa-se do tempo, esconde-se e afunda na autocomiseração, porque entediada e com vergonha de si própria. Por na­tureza, a alma humana é ágil e pronta ao movi­ mento, grata a tudo aquilo que lhe excite e lhe distraia, e mais gratos ainda são aqueles nascidos com os piores instintos, os quais sentem prazer com a confusão em suas obrigações.

Assim como certas feridas instigam as mãos para que as machuquem e, do mesmo modo, se deleita o corpo tomado pela sarna com o ato de coçar, assim também digo que, para essas mentes, não é diferente. Nelas irrompem desejos como fe­ridas cujo tormento eqüivale à sensação de prazer.

Existem, pois, algumas coisas que, também com dor, deleitam o nosso corpo, como esticar-se e mudar de lado na cama, sentindo alívio com a mudança de posição. A mesma situação ocorria com Aquiles4, ora de bruços, ora de costas, mu­ dando muitas vezes a sua posição, como é pró­prio do doente, não suportando nada por muito tempo e fazendo das mudanças lenitivo para suas dores.

Daí o empreender vagas peregrinações e o percorrer praias e mares desconhecidos, tanto na terra como no mar, sempre em busca de emoções, experimentando o que não tem no fastio da situa­ção presente.

Então diz: “Agora, vamos à Campanha”. Já enfastiado das coisas delicadas, clama: “Que se vejam as coisas selvagens, recorramos às florestas de Brúcio e da Lacônia”.

De fato, nos lugares desertos desfruta-se algo ameno, onde os olhos lascivos aliviam-se na feiu­ra das regiões inóspitas. “Vamos a Tarento e a seu famoso porto e seus invernos de céu límpido e à região bastante opulenta para seu antigo povo.” Ou então: “Retornemos para Roma, pois nossos ouvidos já descansaram demais dos aplausos e da algazarra dos circos. Sentimos falta até de ver cor­rer sangue humano.”

Uma coisa sucede a outra, e os espetáculos se transformam em outros espetáculos. Como disse Lucrécio: “Desse modo, cada um foge de si mesmo”. Mas em que isso é proveitoso, se, de fato, não se foge? Seguimos a nós mesmos e não conseguimos jamais nos desembaraçar de nossa própria companhia!

Assim, devemos saber que o mal contra o qual trabalhamos não vem dos lugares, mas de nós mesmos; somos fracos para tolerar qualquer incômodo, não suportamos trabalhos, prazeres, desconfortos por muito tempo.

Isso levou muitos à morte, porque, frequen­temente mudando seus propósitos, voltavam sem­ pre para o mesmo ponto de partida, não deixando espaço para as novidades. Assim, a vida começou a lhes entediar e também o próprio mundo, até que, sem perspectiva, ouça aquele clamor: “Até quando sempre as mesmas coisas?!”

III

Tu me perguntas o que penso que deves fa­zer contra este tédio. De acordo com Atenodoro, o melhor seria te ocupares intensamente, fazendo parte dos interesses da república, ocupando car­ gos públicos, participando de compromissos so­ ciais. Desse modo, assim como existem pessoas que passam o dia no sol para o exercício do cor­po, o que, de fato, é muito útil aos atletas, que consagram a maior parte do tempo para nutrir e fortalecer seus músculos e sua força, a única coisa à qual se dedicam, do mesmo modo para nós, que preparamos a alma para as guerras civis, é mui­ to mais interessante nos atermos longamente ao nosso trabalho.

Quem quer que tenha o firme propósito de se tornar útil aos cidadãos e, em geral, a to­ dos os mortais, ao mesmo tempo quem trabalha e produz, deve administrar, de acordo com suas condições, tanto as coisas comuns quanto as par­ticulares.

“Mas”, tu dizes, “já que é tão insana a ambi­ção dos homens e são tantos os caluniadores que distorcem as coisas retas no mais torpe sentido, que a simplicidade está pouco segura, e, visto que no futuro serão mais numerosos os obstáculos que os auxílios, convém se retirar do foro e do serviço público.

Também existe lugar na vida privada para que uma alma grande possa se desenvolver am­plamente, do mesmo modo que a fúria do leão e de outros animais não diminui em suas jaulas, as­ sim também ocorre com os homens, cujas maio­ res ações são as que realiza no recolhimento.”

Assim, pois, ao se recolher, onde quer que o seu repouso seja acolhido, o indivíduo irá querer ser útil a todos e a cada um em particular com seu talento, sua voz e seu conselho.

Pois não apenas é proveitoso aos assuntos públicos quem promove candidatos, defende os réus e delibera sobre paz e guerra, mas também quem exorta a juventude; quem, com a falta de bons preceptores, infunde virtude às almas; quem prende ou retrai os que correm em direção do dinheiro e da luxúria e, se nada mais consegue, certamente os retarda e age, de modo particular, para o bem privado e público.

Por acaso serve melhor ao bem público o pretor que emite sentenças entre estrangeiros e cidadãos ou, se é pretor urbano, ao repassar as sentenças de seu assessor, estaria realizando ta­refa mais importante que o filósofo que ensina o que vêm a ser justiça e dever, o que é piedade, paciência, fortaleza, desprezo pela morte, enten­dimento acerca dos deuses e, finalmente, como é seguro e gratificante estar com a consciência tranqüila?

Portanto, se empregas em estudos o tem­po que subtraíste dos deveres, não significa que faltaste com as tuas obrigações. Não é soldado apenas aquele que está no fronte de combate e defende ambos os lados, esquerdo e direito, mas também aquele que defende as portas e permane­ce em lugar de menor perigo, assim como não é em vão servir como vigia e guardar o armamento.

Tais ocupações, embora não sejam sangrentas, também fazem parte dos serviços militares.

Se te recolhes aos estudos, fugirás de todo o fastio da vida. Não será porque te aborrece o dia que escolherás a noite, nem a presença de pessoas te será excessivamente pesada. Atrairás a amizade de muitos homens e também os melhores acor­rerão a ti. Isso porque a virtude, ainda que esteja obscura, nunca se esconde, mas emite os seus si­nais. Quem quer que seja digno dela captará os seus vestígios.

Assim, pois, se prescindirmos de toda co­municação, renunciarmos ao gênero humano e vivermos voltados unicamente para nós mesmos, resultará uma solidão vazia de ação. E, sem nada para fazer, começaremos a construir alguns edifí­cios, a derrubar outros, a remover o mar, a con­duzir as águas contra as dificuldades dos terrenos, a gastar mal o tempo que a natureza nos conce­deu para consumir proveitosamente. Alguns o utilizam com parcimônia, outros prodigamente. Uns gastam fazendo cálculos escrupulosos. Ou­tros nada poupam, coisa muito estúpida. Fre­quentemente, alguém muito velho não tem outro argumento para provar que viveu muito a não ser a sua idade.

IV

Parece-me, caríssimo Sereno, que Atenedoro se rendeu cedo demais às circunstâncias do tem­po, retirou-se muito cedo. Nem eu negaria que de vez em quando se deve ceder, mas gradualmente, salvaguardando as insígnias e a dignidade militar. Com certeza, fica mais seguro e respeitado pelos inimigos quem se rende com as armas na mão.

Isso eu penso ser conveniente para a virtude e para quem a cultiva; ou seja, se o destino preva­lece e impede a faculdade de agir, não fuja logo dando as costas desarmadas, buscando onde se esconder, como se existisse algum lugar onde se possa escapar do destino. Deve-se agir com mais cautela com relação aos deveres públicos. Com cuidado deve-se buscar algo que seja útil para o Estado.

Não podes ser militar? Busca a função públi­ca. Estás relegado à vida privada? Procura patro­cinar causas. Foste condenado ao silêncio? Então ajuda aos cidadãos de modo calado. É perigoso o ingresso no fórum? Nas casas, nos espetáculos, nos banquetes, age como um amigo fiel, um com­panheiro de temperamento afável. Perdeste teus deveres de cidadão? Cumpre os de homem.

Por isso, nós, com grande ânimo, não nos enclausuramos nas muralhas de uma única cida­de, mas temos comunicação com a Terra inteira e proclamamos que a nossa pátria é o mundo, para dar à virtude um mais largo campo de ação. O tribunal se fechou para ti e foste proibido de falar na tribuna ou nos comícios? Olha ao teu redor e verás quão vasta região está aberta e quanta gente há. Assim, nunca uma grande parte se fechará para ti sem que reste uma maior ainda.

Mas veja que todo esse mal pode não ser teu. Talvez o que não queiras seja servir à república como cônsul, prítane5, ceryx6 ou sufete.7 Por que não? Para seres militar, por acaso, não queres outro cargo a não ser o de general ou tribuno? Mesmo que outros estejam antes de ti no combate e a que sor­ te te mantenha na retaguarda, luta de lá com a voz, com a exortação, com exemplo e com ânimo.

Ainda que com as mãos cortadas, perma­nece em pé no combate e contribui com os teus companheiros, persistindo firme em teu posto e ajudando com teu clamor.

Espero que te comportes da mesma manei­ra. Se o destino te afasta dos cargos de poder da república, ainda assim permanece firme e ajuda com teus brados inflamados. Se alguém te aperta a garganta, permanece firme e ajuda com o teu silêncio. Nunca é inútil o trabalho de um bom cidadão. Ele sempre coopera seja pelo que ouve ou pelo que vê, seja pela fisionomia ou pelos ges­tos, seja pela tácita obstinação ou até pelo modo como caminha.

Tal como certos medicamentos que, em­bora não sejam ingeridos ou tocados, agem pelo odor, assim também é a virtude, que difunde a sua utilidade à distância e de modo oculto. Ela ou se espalha livremente e usa do seu direito, ou tem precários meios de se expandir e é coagida a recolher suas velas, ou parada e muda se man­tém estreitamente cercada ou ainda publicamen­te aberta, é de todo modo proveitosa. Por que tu pensas que é de pouca utilidade o exemplo da­quele que, em recolhimento, vive bem?

Assim, o melhor é misturar o repouso com a ação, sempre que a vida ativa não trouxer im­pedimentos ocasionais ou por circunstâncias políticas. Em todo caso, nunca se fecham comple­tamente todos os espaços de modo que não haja lugar a algum gesto de virtude.

V

Poderias, por acaso, encontrar uma cidade mais miserável do que Atenas quando despeda­çada por trinta tiranos?8 Eles haviam assassinado 1,3 mil cidadãos, dentre os melhores da cidade, e nem assim davam fim à sua própria crueldade, que, pelo contrário, se tornava mais terrível. Na­ quela cidade, havia o Areópago, o mais sagrado dos tribunais, onde se reunia o Senado do povo, semelhante ao nosso Senado. Ali, todos os dias, encontravam-se os verdugos e ainda a infeliz cúria que se tornara apertada para os trinta tiranos!

Poderia, assim, ter descanso uma cidade como aquela, onde havia tantos satélites9 quanto tiranos? Não se podia oferecer aos corações nenhuma esperança de recobrar a liberdade, nem em lugar nenhum aparecia remédio contra tão grande força dos males. Onde, pois, esta triste cidade encontraria outros tantos Harmódios?10

Sócrates encontrava-se entre eles. Consola­va os senadores que choravam e exortava os que estavam desesperados com relação ao futuro da república. Além disso, reprovava os ricos, que te­miam pelas suas riquezas e, muito tarde, se ar­rependeram de sua avareza. E, a quem quisesse, oferecia o exemplo de um homem que caminha­va livre com trinta dominadores ao redor.

Ainda assim, essa mesma Atenas levou a morte, no cárcere, àquele que havia insultado todo o bando dos tiranos. A liberdade não to­lerou que fosse livre. Isso é para que saibas que, mesmo numa república oprimida, existe ocasião para que um homem sábio se manifeste e, mesmo numa república florescente e feliz, muitas vezes reinam petulância, inveja e outros milhares de ví­cios inertes.

Portanto, conforme a república se apresente e a sorte nos permita, assim vamos ou nos expan­dir ou nos retrair, mas, de todo modo, sempre haveremos de nos mover sem nos deixar entor­pecer pelas amarras do medo.

Além do mais, um homem de valor sem­pre está rodeado de perigos iminentes e, mes­mo morrendo entre as armas e as algemas, não macula a sua virtude nem a esconde, porque foi guardada e não enterrada.

Se não me engano, Cúrio Dentato dizia que preferia estar morto a viver como morto. O úl­timo dos males é sair do número dos vivos antes de morrer. Mas, se te coube viver num tempo menos propício da república, deves te dedicar mais ao repouso e às letras, tal como, numa navegação perigosa, encontras abrigo num porto. Não esperes então que os negócios te deixem, mas tu mesmo deves te desprender deles.

VI

Primeiro, devemos examinar a nós mesmos; em seguida, os negócios que vamos empreender; por fim, aqueles pelos quais e com os quais iremos trabalhar.

Antes de tudo, é necessário estimar a própria capacidade, pois, muitas vezes, parece que pode­mos suportar mais do que realmente podemos. Assim, um fracassa por sua confiança na eloquência; outro, porque exigiu do seu patrimônio mais do que podia; um terceiro, de saúde debilitada, ficou sobrecarregado pelo trabalho penoso.

A uns, a timidez é pouco adequada para os cargos públicos, que requerem a cabeça erguida; a outros, a inflexibilidade não os torna aptos para a vida social; outros, ainda, não têm controle so­bre a sua ira, e qualquer indignação os faz lançar palavras agressivas; há aqueles também que não sabem se conter com civilidade nem se abster de gracejos perigosos.

Para todos estes, é mais útil o recolhimento que os negócios públicos. Uma natureza feroz e impaciente deve evitar as irritações nocivas à liberdade.

Deves considerar, pois, se a tua natureza te torna mais apto para as ações ou para o estudo ocioso e contemplativo, e deves te inclinar ao que com força te atrai: Isócrates11 retirou Éforo12 do foro com mão firme quando percebeu que ele era mais útil na composição de registros de história. Talentos forçados respondem mal; se a natureza é relutante, o trabalho é infrutífero.

Depois, devemos examinar as obras que em­preendemos e comparar as nossas forças com as coisas que vamos tentar fazer, pois sempre deve ser maior a força daquele que trabalha do que a da obra a ser realizada, visto que, obrigatoriamente, se as cargas forem maiores que o carregador, elas irão oprimi-lo com seu peso.

Além do mais, existem outras atividades que não são tão grandes nem fecundas, trazendo mui­tos outros afazeres. Devemos fugir delas, pois, uma vez que nos aproximamos, não existe uma saída fácil. Apenas se deve pôr a mão naquelas coisas que se sabe que têm fim, ou que se pode fazer, ou ainda as que certamente se pode esperar concluir. Dei­xemos de lado todas as atividades que vão além da medida e não terminam onde deveriam.

 

VII

Deve-se ter uma cuidadosa escolha dos homens, para sabermos quais são dignos de que lhes consagremos uma parte da nossa vida ou se é proveitoso que com eles percamos tempo, pois alguns nos imputam como dever aquilo que vo­luntariamente lhes concedemos.

Atenodoro dizia que nem sequer iria jantar com alguém que pensasse que não lhe devia nada por isso. Penso que compreendes que muito me­ nos iria à casa daqueles que igualam os jantares aos deveres dos amigos, os que contam os pratos pelas dádivas, como se a falta de moderação fosse uma honra aos outros.

Aliás, tire-lhes as testemunhas e os especta­dores que não se deleitaram com um banquete secreto.

Nada, pois, é mais proveitoso a uma alma do que uma amizade fiel e doce. Quão bom é en­contrar corações preparados para guardar todo segredo. Tu temes menos a consciência deles que a tua própria. A conversa deles alivia a solidão. As sentenças deles se tornam conselhos. O seu grace­jo dissipa a tristeza, a própria presença deleita!

Tanto quanto for possível, devemos escolhê-los dentre os isentos de paixões desregradas, porque os vícios entram sutilmente e passam para quem está próximo e prejudicam pelo contato.

Assim, como em uma epidemia, deve-se cui­dar de não nos aproximarmos de corpos já infec­tados e ardendo na doença, porque atraímos os perigos com a própria respiração.

Assim, na escolha dos amigos, devemos ter trabalho de escolher os menos maculados. O iní­cio da doença resulta da mistura dos doentes com os sãos.

Nem por isso te aconselharei que não sigas ou não atraias ninguém exceto o sábio. Onde, pois, encontrar este que há tantos séculos se busca? O melhor é mesmo o menos mau.

Apenas terias a faculdade de eleição mais feliz se encontrasses bons amigos entre Platões e Xenofontes e em toda a ala de discípulos de Sócrates, ou se tivesses poder de voltar à época de Catão, que produziu muitos homens dignos da era dele. Não obstante, gerou também os piores criminosos de todos os tempos. Tanto uns quan­to outros foram necessários para que se pudesse valorizar a figura de Catão. Os bons para aprova­rem seus méritos, e os maus para testarem o seu valor. Agora, porém, com tanta falta dos homens bons, a eleição se faz menos cansativa e exigente.

Deve-se evitar, no entanto, os tristes e aque­les que deploram todas as coisas, para os quais tudo é motivo de brigas, mesmo que eles demonstrem fidelidade e benevolência, pois é ini­migo da tranqüilidade o companheiro inquieto e que geme por tudo.

VIII

Passemos, agora, ao patrimônio, que é a maior fonte dos sofrimentos humanos.

Se comparares todas as outras coisas que nos angustiam - como mortes, doenças, medos, dese­jos, intolerância de dores e de trabalhos - com os danos que nos traz a riqueza, a parte desta certa­mente pesará muito mais.

Assim, deve-se considerar quão mais leve é a dor de não tê-la do que de perdê-la, e compreen­demos com isso que a pobreza é matéria de tormentos menores porque oferece menores danos. Erras, pois, se pensas que os ricos sofrem com mais ânimo as perdas. Nos maiores e nos meno­res corpos a dor das feridas é igual.

Bion13 elegantemente disse que não causa menos moléstia a um calvo que a um cabeludo que lhe arranquem algum cabelo. O mesmo se aplica tanto ao pobre quanto ao rico. Para eles, o tormento é igual, pois tanto a um quanto a outro o dinheiro adere de tal modo que não pode ser tirado sem dor.

Porém, como já disse, é mais tolerável e fácil não adquirir do que perder, e por isso verás mais alegres aqueles a quem a sorte nunca olhou do que aqueles a quem a sorte abandonou.

Diógenes14, homem de alma brilhante, per­cebeu isso e agiu de modo que nada lhe pudesse ser tirado. Tu chamas a isso de pobreza, escassez, necessidade. Podes dar a essa segurança o pior dos nomes. Pensarei que esse homem não é feliz se encontrar algum outro que não possa perder nada. Ou eu me engano, ou ser rei é viver entre avarentos, espiões, ladrões e plagiadores, sendo ele o único a abrigo de prejuízo.

Se alguém duvida da felicidade de Diógenes, pode o mesmo duvidar do estado dos deuses imor­tais, se de fato vivem de modo feliz, porque não tem prédios, nem hortas, nem campos preciosos  cultivados por outro colono, nem grande ren­da no foro. Não te envergonhas por te fascinares com as riquezas? Olha então para o mundo e verás os deuses desnudos, aqueles que tudo dão e nada têm. Disso, tu pensas que o pobre é semelhante aos deuses, pois se despoja de todos os bens fortuitos?

Proclamas mais feliz Demétrio Pompeano, que não se envergonhou de ser mais rico que o próprio Pompeu? Quotidianamente lhe era dada a lista de seus escravos como se ele fosse general de um exército, a ele que, pouco tempo antes, era riqueza ter dois substitutos de escravos e  uma cela um pouco mais larga.

Por sua vez, o único servo de Diógenes fu­giu, e, quando este o descobriu, considerou que não valia a pena reconduzi-lo. Então exclamou: “Seria vergonhoso que Manes não pudesse viver sem Diógenes e que Diógenes não pudesse viver sem Manes”.

Para mim é como se tivesse dito: “O destino cuida de seus próprios assuntos! Nada tens de ti com Diógenes. Meu servo fugiu. Quem está livre sou eu.”

A família pede o que vestir e comer; assim, devo satisfazer o apetite de tantos animais vorazes, comprar roupas, cuidar dos mais rapaces e utilizar os serviços daqueles que estão sempre chorando e maldizendo.

Mais feliz é quem não deve nada a ninguém a não ser a si mesmo, a quem é fácil negar. Como não temos tanta força, certamente devemos estrei­tar o patrimônio para que estejamos menos expos­tos às injurias da sorte. Na guerra, são mais hábeis os corpos que podem se contrair e se proteger com os escudos que aqueles cujo grande tamanho os deixa expostos às feridas.

Com relação ao dinheiro, o melhor critério consiste em não cair na pobreza nem dela afastar-se totalmente.

IX

Esta medida de contenção só nos agradará se antes tomar-se gosto pela parcimônia, sem a qual nenhuma riqueza é o bastante, já que a modéstia também pode levar ao desperdício. Como se trata de recurso que está ao alcance de nossas mãos, se assumirmos a parcimônia, a própria pobreza poderá converter-se em riqueza.

Convém nos afastar da pompa e medir a utitidade das coisas, e não a sua beleza exterior.

A comida deve aplacar a fome, a bebida, a sede, sendo, portanto, o prazer reduzido ao apenas ne­cessário.

Aprendamos a nos apoiar em nossos pró­prios membros; moderemos o nosso comer e o nosso vestir não a modismos, mas ao que nos ensinaram os antepassados.

Aprendamos a cultivar o comedimento, a re­frear a luxúria, a moderar a ânsia de glória, a suavi­zar a ira, a olhar com simpatia a pobreza, a cultivar a frugalidade; embora essas coisas envergonhem a muitos, empregando remédios mais simples para os desejos naturais. Aprendamos a eliminar os de­sejos licenciosos e a tensão em relação ao futuro. Devemos agir de modo que se possa pedir as rique­zas a nós mesmos e não ao destino.

Nunca pode tanta variedade e iniqüidade de casos ser assim repelida, do mesmo modo que não se pode livrar das tormentas a frota lançada ao mar.

Convém diminuir nossas atividades para que os arroubos do destino caiam no vazio. Por isso, às vezes os exílios e as calamidades se tor­nam um remédio, e leves incômodos curam os de maior proporção.

Quando a alma pouco ouve os preceitos, não pode mais se curar de modo suave, não seria então para o seu bem que lhe fossem prescritas a pobre­za, a infâmia e a ruína, já que um mal se opõe a outro mal?

Portanto, devemos nos acostumar a jantar sozinhos, a servir-nos de poucos escravos, a usar as roupas de modo adequado e a morar em casas menores. Não apenas nas corridas e nas lutas do circo, sobretudo na vida, precisamos não ir além dos limites que nos são impostos.

Até mesmo os gastos com os estudos, em­bora sejam os melhores gastos, só serão razoáveis se tiverem moderação. Para que inúmeros livros e bibliotecas dos quais o dono, durante uma vida inteira, lê apenas os índices? Uma infinidade de li­vros sobrecarrega, mas não instrui. Melhor ater-se a poucos autores do que errar por muitos.

Quarenta mil livros arderam em Alexan­dria. Belíssimo monumento de régia opulência elogiou outro, assim também como Lívio, que disse ter sido uma obra máxima da elegância e do cuidado dos reis.

Não foi, porém, do meu ponto de vista, nem elegância nem cuidado, mas estudada luxúria, ou melhor, não foi estudada, pois não para os estudos, apenas para o espetáculo essas obras foram reunidas. Tal como acontece com muitos que, embora desconheçam as primeiras letras, fa­zem dos livros não instrumentos de estudos, mas apenas ornamentos das salas de jantar. Assim, juntem-se apenas os livros que sejam suficientes, nenhum por ostentação.

Dirias: “É mais honesto gastar o dinheiro com livros do que com vasos de Corinto e com quadros”. Cabe-me responder que sempre é vi­cioso o que está em excesso.

Qual o motivo de tua complacência com quem coleciona armários de cipreste e de marfim e busca livros de autores desconhecidos ou não recomendados para bocejar entre tantos milhares de livros, uma vez que se compraz apenas com as capas e os títulos?

Verás, pois, na casa dos homens mais ilus­tres, qualquer livro que tenha sido escrito sobre oratória e história, tendo as estantes abarrotadas até o teto.

Hoje, como as piscinas nas termas, a biblioteca também é um ornamento obrigatório em qualquer casa de prestígio.

Eu perdoaria tal mania se o erro fosse por um exagerado desejo dos estudos. Agora, estas conquistadas obras dos gênios consagrados, instaladas em torno das estátuas de seus autores, são compradas apenas para adorno das paredes.

X

Porém te encontras numa situação de vida difícil. A adversidade pública ou privada te pren­deu com um laço que não podes nem desatar, nem romper.

Considera que os prisioneiros apenas no princípio se afligem com as algemas e os grilhões que impedem seus passos. Porém, quando resolvem não mais se irritarem e se propõem a suportá-los, a necessidade lhes ensina a levá-los com fortaleza, e o costume, com facilidade. De fato, em qualquer gênero de vida, encontrarás distrações, compensações e deleites, desde que queiras avaliar como leves os teus males, em lu­gar de fazê-los insuportáveis.

Sabendo das desgraças para as quais nasce­mos, a natureza fez do hábito um alívio para a calamidade, tornando logo costumeiras as mais graves.

Ninguém resistiria se a força das coisas adversas fosse a mesma na continuidade como o é no primeiro golpe.

Estamos algemados ao destino. Para alguns, as algemas são douradas e frouxas; para outros, são apertadas e sórdidas. Que diferença faz?

A mesma prisão cerca a todos, tanto os que estão presos quanto os que aprisionam, a não ser que talvez penses que é mais leve a algema no bra­ço esquerdo.

A uns prendem as honras, a outros, a opu­lência. A alguns a notoriedade oprime, a outros, a obscuridade. Alguns inclinam suas cabeças sob o domínio alheio, outros sob o seu próprio. Alguns têm como único lugar o exílio, outros, o sacerdó­cio. Enfim, toda vida é servidão.

Cada qual, portanto, deve conformar-se à sua condição e, queixando-se dela o mínimo pos­sível, apreender tudo o que ela tem de favorável. Não existe nada de tão amargo que não encontre consolo numa alma equilibrada.

Frequentemente, áreas exíguas se tornam aptas para muitos usos devido à arte do arquiteto e uma boa disposição torna habitável mesmo um lugar estreito. Usa a razão nas dificuldades. As si­tuações mais duras podem se suavizar, as aper­tadas podem se afrouxar, e as pesadas, se tornar mais leves, é só saber levá-las.

Além do mais, os desejos não devem ser lançados para muito longe, mas permitamos que desabrochem nas proximidades, já que, de todo, não são passíveis de clausura.

Abandonando essas coisas que não podem ser feitas ou apenas podem ser feitas de modo muito difícil, sigamos as coisas próximas e que alimentam a nossa esperança. Saibamos que to­das as coisas são igualmente volúveis; embora ex­teriormente possam ter diversas faces, por dentro são igualmente vãs.

Não invejemos a sorte dos que estão em po­sição privilegiada. O que parece ser altura é, na verdade, um precipício.

Aqueles a quem uma sorte iníqua colocou em uma encruzilhada, estarão mais seguros diminuindo as coisas que são por si elevadas, conduzindo seu destino tanto quanto for possível no nível da normalidade.

Muitos são os que devem se manter em seu pedestal, do qual não podem descer a não ser caindo. Por isso procuram demonstrar que são pesados aos outros, não porque se comprazem em pairar sobre eles e, sim, por serem a isso obri­gados. Assim, por sua justiça, mansidão, humani­dade e generosidade, preparam-se para enfrentar as adversidades do destino, já que tal esperança lhes deixa mais seguros.

Porém, nada poderá nos defender dessas flu­tuações da alma, a não ser determinar limites à ambição de crescimento, assim como não deixar a última palavra ao arbítrio do destino. É certo que alguns desejos incitam a alma, mas, sendo limita­dos, não se tornarão nem imensos nem incertos.

XI

Meu discurso se dirige aos imperfeitos, aos medíocres e doentes, não ao sábio. Este não deve andar timidamente nem de modo vacilante, já que tem tanta confiança em si que não receia ir ao encontro do destino, ao qual não fará nenhu­ma concessão. Nem tem por que temê-lo, porque não apenas os escravos, as posses, a dignidade, até o seu corpo, os olhos e as mãos com tudo o que faça a vida mais agradável, e até a si próprio, tudo está entre as coisas precárias. Tem consciência de que a vida é algo que lhe foi dado de emprésti­mo e, por isso, sujeita à restituição, sem tristeza, quando lhe for reclamada.

Não perde a autoestima por saber que não é dono de si. Ao contrário, faz tudo tão diligente­mente, tão cuidadosamente quanto um homem religioso e santo guarda o que lhe é confiado.

E, quando coagido a devolver, não se queixa da sorte e diz: “Obrigado pelo que tive e utilizei. Eu cultivei teus bens com grande esforço, mas, já que ordenas, cedo e devolvo agradecido e de bom grado. Se ainda queres que eu tenha algo teu, eu o guardarei. Se decidires o contrário, eu te entrego a prata, a casa e a minha família. Devolvo-te tudo.”

Se a natureza reclama suas dádivas, já que foi ela, primeiro, que nos deu, eu diria “Recebe esta alma melhor do que quando a concedeste”. Não sou evasivo nem fujo. Acolha-a pronta e acabada de quem a recebeu. Leva-a.

Retornar de onde se veio, qual é o problema disso? Mal vive aquele que não sabe morrer bem. Assim, pois, primeiro deve-se diminuir o valor disto e situar a vida na categoria de coisa descartável.

Odiamos os gladiadores, como dizia Cícero, se desejam conservar a vida de qualquer forma. No entanto, nós os aplaudimos se demonstram desprezo por ela. Saibas que o mesmo ocorre conosco. Com frequência, a causa do morrer é o medo da morte.

O destino, que se diverte conosco, diz: “Por que hei de te conservar, animal ruim e covarde? Tu serás mais ferido e golpeado por não saberes receber os golpes. Porém, tu viverás mais tempo e morrerás mais rapidamente se esperares o ferro sem desviar a cabeça nem te protegeres com as mãos, mas o receberes amistosamente.”

Aquele que teme a morte nunca fará nada com dignidade. Porém, aquele que sabe estar a sorte decidida desde quando foi concebido vive em conformidade com o determinado e o procu­rará com a mesma fortaleza de alma de modo que nada ocorra a partir disso que seja imprevisto.

Considerando o que quer que possa ocorrer no futuro, suavizará o ímpeto de todos os males, porque, para os que estão preparados e esperando, não trazem nada de novo. Vêm graves apenas para os que estão descuidados e esperam apenas coisas felizes.

Existe a doença, o cativeiro, a ruína, o fogo. Nenhuma dessas coisas é surpresa. Eu sabia em que tumultuosa hospedaria a natureza me enclau­surou. Muitas vezes houve lamento na minha vi­zinhança; muitas vezes, na frente da minha porta, tochas e archotes precederam exéquias prematuras; frequentemente, soa ao meu lado o fragor de um edifício que desmorona. A noite levou a muitos daqueles que o fórum, a cúria, o discur­so uniram a mim, e as mãos, que estavam unidas pela amizade, foram separadas pela morte. Então vou me admirar quando, por ventura, os perigos me atinjam, aqueles que sempre me rondam?

Grande parte dos homens não pensa sobre a tempestade ao embarcar.

Nunca me envergonharei de citar uma sentença boa de um mau autor. Publílio, mais veemente que os gênios trágicos e cômicos, sem­pre que deixava as mímicas ineptas e as palavras chulas destinadas aos espectadores, entre muitas outras coisas mais fortes, dizia isto: “O que pode ferir a alguém pode ferir a qualquer um”.

Se essa sentença for avaliada no seu significado pleno, considerando todos os males, embora livre deles, mas também sujeito aos mesmos, seja precavido, já que não resta tempo quando o perigo chega.

“Eu não pensava que isto iria acontecer. Nunca acreditaria que isso aconteceria um dia.”

Ora, por que não? Quais são as riquezas que a miséria, a fome e a mendicância não alcançam? Qual dignidade, com sua toga pretexta, seu bastão augural e calçados patrícios, não é acom­panhada de sordidez, acusações públicas, mil máculas e o extremo desprezo? Que reino existe cuja ruína não esteja preparada além da degradação do tirano e do carrasco? Não é necessário um gran­de intervalo de tempo, mas poucas horas bastam para se ir do trono até os pés do dominador.

Sei, portanto, que toda condição é variável, e o que quer que caia sobre outro pode também ocorrer a ti. És rico? Mas por acaso mais do que Pompeu? A ele, quando Gaio, seu antigo paren­te e novo hóspede, lhe abriu a casa de César para fechar a sua, faltou pão e água. E ele, que possuía tantos rios que nasciam e morriam em seus do­mínios, mendigou água da chuva. Passou fome e sede no palácio desse parente, enquanto isso, seu herdeiro lhe preparava funerais públicos.

Tu que desfrutaste das maiores honras, por acaso foram tão grandes ou tão inesperadas ou tão universais quanto as de Sejano? Pois no mesmo dia em que o Senado o acompanhou, o povo o esquartejou. Daquele a quem tanto os deuses quanto os homens haviam concedido tudo o que se pudesse querer, nada sobrou para que o carras­co pudesse recolher. És rei? Oxalá não sejas como Creso, que mandou acender e viu extinguir-se a sua própria fogueira, e sobreviveu não apenas ao seu reino, mas também à sua própria morte. Não te enviarei à Jugurta, a quem o povo romano, no transcur­so de um único ano, temeu e viu prisioneiro. Não se viu Ptolomeu, rei da África, nem Mitrídates, rei da Armênia, presos entre os guardas de Gaio. Um foi mandado para o exílio, o outro optou por melhor destino.

Em meio a tantas subidas e descidas contí­nuas das coisas, se não tens ideia de tudo quanto pode acontecer no futuro, darás força para o que age contra ti. Por outro lado, poderás desarmá-las se fores tu a vê-las antes.

XII

Em vista disso, não devemos trabalhar para coisas inúteis nem por motivos inúteis, isto é, não devemos desejar o que não podemos conseguir, ou, se o conseguimos, que não compreendamos muito tarde e com vergonha a inutilidade dos nossos desejos, ou seja, que o trabalho não seja indigno nem desagradável e sem efeito ou que o efeito do trabalho seja indigno. Quase sempre a tristeza advém a partir disso, seja por causa do fracasso, seja pelo resultado vergonhoso.

É preciso diminuir as idas e vindas, às quais se entregam grande parte dos homens que perambulam por casas, teatros e mercados, intrometendo-se nos negócios alheios, como se estivessem sempre ocupados.

Se perguntas a alguém ao sair de casa: “Aon­de vais? Qual o teu destino?” Ele te responderá: “Por Hércules, não sei! Mas verei algumas pessoas, farei alguma coisa!”

Vagam sem propósito, buscando alguma ocupação. Não fazem o que tinham proposto, mas o que se apresenta naquele momento. O percurso deles é sem proveito, igual à formiga que sobe e desce pela árvore, indo até o ponto mais alto e des­cendo para a base do tronco sem nada produzir.

Muitos conduzem a sua vida de modo se­melhante. Deles, não sem razão, alguém diria que são de uma inércia inquieta.

Terias pena de alguns que correm como se fossem apagar um incêndio. Até mesmo atro­pelam os que encontram e se precipitam sobre os demais, Para onde se dirigem? Correm para saudar alguém que não lhes responderá ou para acompanhar os funerais de algum homem desconhecido ou assistir à solenidade de qualquer espe­cialista em novas núpcias ou escoltar uma liteira, levando-a por muitos lugares.

Depois, em casa, quando voltam exauridos por nada, juram não saber por que saíram, onde foram, para, no dia seguinte, errarem pelos mesmos descaminhos.

Assim, todo trabalho tem um objetivo, tem algo em vista. Não é uma atividade válida que move os inquietos, mas, como os loucos, são as falsas imagens das coisas que os movem, pois nem esses se movem sem alguma esperança. Por isso os prende a aparência de alguma coisa cuja
inutilidade a mente decrépita não apreende.

Do mesmo modo, acontece a cada um desses que, para aumentar a multidão, circulam pela ci­dade em causas vãs e levianas. Nada tendo no que trabalhar, saem de casa ao nascer do sol, depois de terem, sem resposta, batido à porta e saudado aos escravos-porteiros. Ninguém é mais difícil do que a eles de serem encontrados em casa.

Desse mal depende e se origina aquele vício odioso: o de ouvir e investigar os segredos públi­cos, inteirando-se de muitas coisas perigosas de divulgar e até mesmo de ouvir.

 

XIII

Penso que Demócrito professa tal doutrina quando diz: “Quem quiser viver tranquilamente, não faça muitas coisas nem particulares nem pú­blicas”. Claro que se referia às coisas desnecessárias, pois, se são úteis, tanto privada quanto publica­ mente, não apenas muitas, mas inúmeras devem ser feitas. No entanto, quando nenhum dever obriga, devemos restringir nossas ações.

Quem faz muitas coisas com frequência coloca-se sob o poder do destino. O mais segu­ro é provocá-lo raramente. Ao contrário, pensar sempre sobre ele e nada esperar de sua fidelidade. “Navegarei, a não ser que aconteça alguma coi­sa”; “serei pretor, a não ser que algo o impeça”; ‘ a negociação será bem-sucedida, a não ser que algo
intervenha”.

É por isso que dizemos que nada acontece contra a vontade para o sábio. Não o eximimos dos azares da vida e, sim, dos erros. Assim, se as coisas não acontecem como ele quis, ao menos não fugiram de sua previsão. O que se prevê é que há sempre algo por vir que poderia criar obstáculos para a realização de nossos propósitos. Certamente o pesar causado por uma decepção é bem menor quando o suces­so não foi previsto com antecipação e plena se­gurança.

XIV

Devemos também ter flexibilidade e não nos entregarmos obstinadamente às nossas decisões de maneira que possamos transitar para aquilo que o acaso traz. Não temamos a mudança nos projetos e nas situações, de modo que a leviandade, inimigo vício da quietude, não nos surpreenda.

Certamente, a obstinação perturba, pois fre­quentemente o destino lhe extorque algo. Por sua vez, a leviandade é muito mais grave, pois nunca se fixa em coisa nenhuma.

Esses dois defeitos perturbam a tranqüilida­de, porque, de um lado, opõem-se à mudança e, de outro, nada toleram.

Certamente a alma deve ser resguardada de todas as coisas externas. Confia em ti. Alegra-te contigo. Afasta-te o quanto podes das coisas alheias.

Dedica-te a ti mesmo. Não te sensibilizes com pre­juízos materiais. Enfim, procura interpretar com benevolência os fatos adversos.

Anunciado o naufrágio, o nosso Zenão, quan­do ouviu que todas as suas coisas estavam submer­sas, disse: “A sorte me manda filosofar de modo mais desprendido”. Quando o tirano ameaçava de morte o filósofo Teodoro34e de deixá-lo sem se­pultura, ele perguntou: “Tens com o que te alegrar, pois meu sangue está em teu poder; mas, no que diz respeito à sepultura, és um tolo se pensas que me interessa se vou apodrecer sobre ou debaixo da terra”.

Júlio Cano, homem grande entre os pri­meiros, cuja admiração não há de contestar quem nasceu no nosso século, após ter discutido com  Gaio, ao sair, comentou o novo Faláride: “Para que não te iludas com vã esperança, mandei que te conduzissem à execução”. Ao que ele replicou: “Eu te agradeço, ótimo príncipe”.

O que ele sentia, não tenho certeza, pois me ocorrem muitas coisas. Quis ofender o príncipe e mostrar quão grande era sua crueldade, já que, depois dela, a morte seria um benefício? Ou jo­gou-lhe no rosto sua costumeira demência? Pois lhe agradeciam aqueles cujos filhos havia assas­sinado e cujos bens havia roubado. Ou aceitava livremente a morte como se fosse a liberdade? O que quer que seja, respondeu com grande alma.

Poderia ser dito que, depois disso, Gaio po­deria deixar que ele vivesse. Cano não pressentiu isso. A fidelidade de Gaio a tais ordens era famosa. Acreditas, pois, que os dez dias anteriores ao seu suplício passaram com alguma preocupação? É difícil de acreditar nas coisas que aquele homem disse, no que fez e na tranqüilidade que manteve.

Jogava xadrez.37 Quando o centurião que buscava o grupo de condenados ordenou que também o tirassem, chamado, contou as suas pe­dras e disse ao seu companheiro: “Veja, não minta  depois da minha morte que tu venceste”. Então, acenando ao centurião, disse: “Tu serás testemu­nha de que estou ganhando por um ponto”. Pen­ as que Cano se importava com aquele tabuleiro? Ele zombava de seu carrasco.

Aos amigos que estavam tristes por perder tal homem, disse: “Por que estão tristes? Vocês questionam se as almas são imortais, eu já sabe­ rei.” Não deixou de investigar a verdade no seu próprio fim e fez de sua morte uma questão.

Aquele seu filósofo38o acompanhava. Quan­do já estavam próximos do túmulo em que quotidianamente se fazia sacrifício a César, nosso deus, lhe perguntou: “Cano, em que estás pensando agora? Ou o que está na tua mente?” “Eu me pro­pus”, respondeu Cano, “a observar se naquele velocíssimo momento sente-se a alma expirar.” E prometeu que, se descobrisse, voltaria aos amigos e lhes indicaria o estado das almas.

is a tranqüilidade em meio à tempestade, eis uma alma digna da eternidade, que chama o seu destino de prova da verdade, que, no último mo­ mento, interroga a sua alma que exala e aprende não apenas no momento da morte, mas a partir da própria morte. Ninguém filosofou por mais tempo. Tão grande homem não será esquecido nunca. Sim, iremos louvar teu nome pelas gerações futuras. Tu, vítima ilustre, patrimônio imortal em meio às calamidades promovidas por Gaio.

XV

Mas em nada interessam as causas da triste­ za particular, já que, às vezes, nos ocupa o ódio pelo gênero humano, quando se pensa quão rara é a simplicidade, quão desconhecida é a inocência e como raramente, salvo algum interesse, perma­nece a fidelidade. Dessa forma, faz-se presente a maldade interessada nos lucros e danos, impul­sionada pela ambição que não se contém em seus limites.

Então a alma penetra na escuridão, porque diante da falência das virtudes, das quais nada mais se espera, já que não as possui, só lhe resta penetrar nas trevas.

Diante disso, devemos nos esforçar para que todos os vícios nos pareçam não como odiosos, mas como ridículos, e imitar antes Demócrito que a Heráclito. Este sempre que se encontrava em público, chorava; aquele ria. Tudo o que faze­ mos, a um parecia misérias; a outro, idiotices.
Deve-se, pois, aceitar todas as coisas e su­ portá-las com bom humor. É mais adequado à natureza humana rir que lamentar a vida.
Além do mais, serve melhor ao gênero hu­mano quem dele ri do que quem o deplora.

Aquele que ri tem alguma esperança, po­rém aquele que chora estupidamente não espe­ra que possa se corrigir. Enfim, quem contempla o conjunto da realidade humana demonstra ter maior grandeza de alma ao não conter o riso do que quem não consegue reter as lágrimas. Sim­plesmente deixa-se levar por leve emoção, já que nada de grandioso, sério ou digno de lástima se faz presente nas falsas aparências.

Que cada um reflita sobre o porquê de estar­ mos tristes ou alegres e saberá que a verdade é o que Bion dizia: “Nem todos os negócios dos ho­ mens são semelhantes nos seus princípios, nem a vida deles é mais santa ou severa do que quando foram concebidos”.

Mas é bastante aceitar placidamente os cos­tumes públicos e os vícios humanos sem cair no riso ou em lágrimas, porque se atormentar com os males alheios é uma eterna miséria e se deleitar com tais males é um prazer desumano.

Assim, é inútil chorar porque alguém enter­ ra o seu filho ou ficar entristecido.

Convém se conduzir de tal modo que, em teus próprios males, dês à dor o quanto a natu­reza pede, não o quanto os costumes cobram. De fato, muitos derramam lágrimas por simples os­ tentação, uma vez que mantêm olhos secos sem­pre que o espectador se vai, julgando ser torpe não fazê-lo quando todos o fazem. Tão profundamente se fixou este mal de estar dependente da opinião alheia que simula até uma coisa tão sim­ples como a dor.

XVI

Segue-se a parte que, não sem razão, cos­tuma nos entristecer e conduzir à precaução. Quando homens de bem são levados para fins desastrosos. Assim, Sócrates é coagido a morrer no cárcere, Rutílio a viver no exílio, Pompeu e Cí­ cero a entregarem suas cabeças a seus clientes, e Catão, imagem viva da virtude, joga-se sobre sua espada, fazendo perecer consigo, ao mesmo tem­po, a república.

Impossível não se perturbar com o fato de a sorte distribuir prêmios tão iníquos. E então o que cada um pode esperar para si quando vê os melhores sofrerem coisas tão horríveis?

Que fazer diante de tudo isso?

Olha como cada um deles suportou o sofri­ mento, sendo forte. Oxalá desejes ter a mesma firmeza de espírito.

Se foram fracos e covardes diante da mor­ te, nada se perdeu. Ou são dignos de terem suas virtudes como modelo, ou sua covardia os torna até indignos de pena. De fato, o que há de mais vergonhoso que homens insignes, morrendo de modo heroico, fizessem de nós covardes?

Louvemos o que é digno de louvor e diga­ mos: “Quanto mais forte, tanto mais feliz! Fugiste de todas as quedas, inveja, doença; saíste da prisão, não pareceste aos deuses digno de má sorte, mas indigno de que a sorte pudesse fazer algo contra ti.” Porém, aos que fogem e que da própria morte voltam para a vida, deve-se empurrá-los para o carrasco.

Não choro a ninguém que esteja alegre nem a ninguém que se lamenta. Aquele enxugou as minhas lágrimas, este, com seu choro, fez com que não fosse digno de nenhuma lágrima. Eu vou chorar por Hércules, que foi queimado vivo; por Régulo, que foi crivado de dardos; por Catão, que suportou suas feridas. Todos estes alcançaram, pelo empenho de uma parte mínima da própria existência, agiram de forma a se fazerem eternos, e a morte foi para eles a porta para a imortalidade.

XVII

Também causa preocupação o fato de al­guém tomar atitudes que não demonstram aos outros o que cada um é realmente. Assim, é a vida de muitos, falsa e pronta para a ostentação. De fato, o constante autocontrole atormenta tanto quanto o receio de ser pego num papel diverso daquele que está acostumado a representar.

Nunca nos livraremos dessa preocupação, já que cada olhar que examina é também questionador.

De fato, ocorrem muitos incidentes que nos ex­ põem contra a nossa vontade. Portanto, não é se­gura a vida daqueles que vivem sob uma máscara.

Quanto prazer tem a simplicidade sincera e autêntica, que nada esconde de seus costu­mes! No entanto, essa vida corre perigo de ser desprezada, se ela for exposta a todos. De fato, existem aqueles que se enfastiam do que veem muito de perto. Mas não existe perigo de que a virtude se torne vil ao se aproximar dos olhos, e é melhor ser incomodado pela simplicidade do que por uma perpétua dissimulação. Desse modo, sejamos moderados, pois há muita dife­ rença entre viver com simplicidade e viver com negligência.

XVIII

Faz-se necessário muito recolhimento para dentro de si próprio.

O contato com aqueles que são de outro nível atinge o nosso equilíbrio, renova paixões e excita debilidades latentes e tudo o que não esteja bem curado.
Solidão e companhia devem ser mescladas e alternadas. Esta desperta o desejo de viver entre os homens, aquela, conosco mesmos. Portanto, uma é remédio para outra. A solidão irá curar a aversão da multidão, e a multidão, o tédio da so­lidão.

 XIX

Igualmente, não se deve manter a men­ te fixa apenas num único objetivo, ela deve ser conduzida, por vezes, às distrações. Sócrates não se envergonhava de divertir-se jogando com os meninos. Catão relaxava o espírito com o vinho, quando se sentia cansado das preocupações da vida pública. Cipião exercitava seu corpo triun­fante e militar através da dança. Não como agora costumam fazer, com trejeitos afeminados, mas como os antigos costumavam fazer, nos jogos e nas festas, dançando virilmente, sem serem, por isso, desconsiderados, mesmo que tenham sido vistos pelos seus inimigos.

Deve-se dar à alma algum descanso. Repou­sando, ela se torna mais atilada para a ação.

Assim como não se deve exigir demais dos campos férteis, porque uma fertilidade nunca interrompida os esgotaria, também o trabalho contínuo abate o ímpeto das almas, cujas forças se recuperariam com um pouco de descanso e de distração. Quando o esforço é demais, ele trans­ mite à mente certo esgotamento e frouxidão.

Certos homens não tenderiam tanto para passatempos e jogos se disso não tirassem al­ gum deleite. A frequência, no entanto, absorve do espírito toda a força. Também o sono é muito necessário ao descanso, porém, se for contínuo, levará à morte. Existe muita diferença entre o afrouxar e o desligar.

Os legisladores instituíram os dias festivos para coagirem publicamente os homens a se ale­grarem, interpondo ao trabalho uma interrupção necessária. Portanto, como já disse, grandes ho­ mens se davam mensalmente alguns dias de férias. Outros, enfim, alternavam uma jornada de traba­lho com outra de lazer.

Lembremos o grande orador Asínio Polião, que de nada se ocupava após as quatro horas da tarde. Ele não lia nem uma carta depois dessa hora, para que não surgissem novas preocupa­ções. Assim, em duas horas repunha as energias gastas durante o dia. Alguns cessavam suas ativi­dades ao meio-dia, reservando as horas da tarde para os trabalhos mais leves.

Nossos antepassados vetavam, após as qua­tro horas, sessão no Senado.

À noite, os soldados dividem as vigílias, e delas estão livres os que retornaram de alguma expedição.

XX

Convém ser condescendente com a alma e dar-lhe algum descanso que atue como um ali­ mento restaurador. Os passeios devem ser feitos em lugares abertos, para que a alma se fortifique com o ar puro. Às vezes, um passeio, uma viagem com mudança de região. Isso proporciona ener­gia renovada.

Igualmente, uma refeição alegre e uma be­bida mais abundante, podendo chegar à em­briaguez, não para nos afogarmos, mas para nos divertirmos, porque dissolve as preocupações, comove até o íntimo da alma e cura não apenas a tristeza, mas também outras doenças. Baco39foi chamado de livre não por soltar a língua, mas por libertar a alma da servidão das preocupações e fazê-la mais forte e audaz para todos os desejos.

Assim como para a liberdade, a moderação também é saudável em relação ao vinho. Comenta-se que Sólon e Arcesilau eram dados ao uso do vinho. No entanto, a embriaguez de Catão foi reprovada. Quem quer que fosse que o repro­vava, é mais fácil tornar o vício honesto do que manchar a dignidade de Catão.

Mas não se deve fazer referência a isso com frequência, para que o indivíduo não seja levado pelos maus costumes. De toda forma, é necessá­rio, de vez em quando, afrouxar as rédeas, para interromper, de leve, a moderação e levá-la à exultação e à liberdade.

 Demos crédito ao poeta grego: “De vez em quando é alegre enlouquecer”. Também Platão afirmava: “Em vão se dirige às portas das musas quem tem o domínio de si”.43E ainda Aristóteles: “Nunca existiu um grande gênio sem nenhuma mistura de loucura”.

O espírito, quando despreza as coisas vul­gares e costumeiras e se ergue ao alto por um instinto sagrado, então, por fim, entoa palavras divinas com boca mortal. Enquanto o espírito está atrelado a si mesmo, o sublime fica inatingí­vel. É necessário que se afaste do costumeiro, que se liberte e, soltando o freio, arrebate consigo o cavaleiro, que é conduzido às alturas, aonde ja­mais chegaria só por si mesmo.

Aqui estão, meu caro Sereno, os meios para conquistar a tranqüilidade e a forma como podes recuperá-la, já que tens como resistir aos vícios quando aparecem sub-repticiamente. Porém, e isso já deves saber, nenhum deles é suficiente­mente forte para conservar um bem tão frágil se não houver intenso e assíduo cuidado.

Filosofia - Estoicismo
Cartas e diálogos - Tópicos gerais, 
10/10/2021 12:17:46 PM | Por Lucius Annaeus Seneca
Da vida retirada

Os vícios nos acompanham constantemen­te. Mesmo que não buscássemos nenhuma outra coisa saudável, retirar-se, por si só, ainda poderia ser proveitoso, pois nos tornaria melhores do que somos. Que pensar então da utilidade de se retirar para perto de homens qualificados e escolher um exemplo para orientar a nossa vida? Isso, a não ser em uma vida retirada, não pode ser conse­guido. Somente assim pode ser alcançado aquilo com que sonhamos, em um lugar onde ninguém interfere em nossas ações, para não deixarmos de lado nossos propósitos. Somente dessa forma pode-se conduzir a vida segundo um único prin­cípio, em lugar de fragmentá-la com projetos di­versificados.

Por exemplo, dentre todos os males, o pior de todos é quando resolvemos mudar nossos de­feitos. Passar de uma coisa para outra pode agradar, mas, ao mesmo tempo, é vergonhoso, uma vez que nossas decisões tornam-se levianas. Hesi­tamos e somos levados para cá e para lá. Abrimos mão de nossos anseios, reclamamos do que aban­donamos, as mudanças se alternam entre a nossa ambição e o nosso arrependimento. Dependemos inteiramente dos julgamen­tos alheios, e parece-nos melhor aquele que tem muitos pretendentes e adoradores e não o que deve ser elogiável e desejável. Nem avaliamos o caminho do bem e do mal por si, mas pela quan­ tidade de pistas, sendo que nenhuma assinala re­torno.

Pergunta: “O que dizes, Sêneca? Abando­nas os teus pares? Teus amigos estoicos dizem com certeza ‘que até o último momento da vida estaremos em ação, não desistiremos de traba­lhar para o bem comum, de ajudar cada um, até considerar o poder de dar auxílio ao inimigo debilitado pela idade. Somos os que não damos privilégio a nenhuma idade e, como diz aquele homem respeitadíssimo, apertamos nossos cabe­los brancos com capacete-, nós estamos entre os que, mesmo diante da morte, não ficamos para­dos e, se as circunstâncias permitirem, nem mes­mo para própria morte será dado descanso.’ Por que nos repassas os preceitos de Epicuro junto aos princípios de Zenão? Por que, em lugar de trair Zenão, visto que ele te causa aborrecimen­tos, não o abandonas completamente?”

Quero provar que não estou em conflito com a doutrina estoica, nem eles estão contra os próprios ensinamentos. Mesmo que eu os abandobasse, seria desculpado, porque continuaria se­guindo os exemplos deles.

O que passo a dizer será dividido em duas partes. Em primeiro lugar, alguém pode, desde a primeira idade, se entregar inteiramente à contemplação da verdade e buscar a razão de vi­ver, praticando de forma reservada. Depois, vou mostrar que, em idade já avançada, o homem, com plena capacidade, pode continuar servin­do e orientando os demais, tal como as virgens vestais, que gastaram muitos anos entre vários ofícios para aprender funções sagradas. Depois, passavam a ensinar aos outros aquilo que tinham aprendido.

II

Demonstrarei que isso também agrada aos estoicos, não porque eu siga uma lei que proíbe dizer algo contra Zenão e Crisipo, mas porque a própria situação me faz seguir a opinião deles, pois, se alguém está ligado à posição de uma úni­ca pessoa, seu lugar não é na cúria e, sim, entre as facções partidárias. Se tudo fosse bem explicado e sendo a verdade professada abertamente, nada te­ríamos de mudar em nossas decisões. Agora bus­camos a verdade na companhia daqueles mesmos que nos ensinam a respeito dela.

As duas maiores correntes filosóficas, a dos epicuristas e a dos estoicos, discordam entre si sobre esse tema, embora por caminhos diversos concordem com a vida retirada. Epicuro diz: “O sábio não deve ter acesso a negócio público a não ser que seja obrigado”. Zenão fala: “Exerça função pública, a não ser que haja algum empecilho”.

Dessa forma, um ordena, por princípio, a vida retirada, outro pressupõe para isso uma cau­sa, mas o termo “causa” tem sentido amplo. Se a república estiver tão corrompida que não possa ser ajudada, se estiver toda tomada pelo mal, o sá­bio iria dedicar-se ao não realizável, empenhar-se para não conseguir nenhum resultado. Acrescen­te-se que, se tiver pouca autoridade e pouca força, a própria república não iria aceitá-lo se a saúde o impedisse. Assim como não se lança ao mar um navio com o casco danificado, nem se alistaria no exército quem estivesse debilitado, da mesma for­ma não se deve empreender uma caminhada para a qual se sabe não estar capacitado.

Portanto, aquele com plena capacidade fí­sica, antes de procurar problemas, pode colocar-se em segurança e, imediatamente, dedicar-se a artes nobres, vivendo em ócio justificado, culti­vando virtudes que podem ser praticadas no mais absoluto retiro.

O que se exige do homem é que seja útil ao maior número de semelhantes, se possível. Caso não consiga, sirva a poucos, ou aos mais próximos, ou a si mesmo.

Ao tornar-se útil para os demais, acaba por iniciar um trabalho comunitário. Da mesma for­ma como quem se degenera prejudica não apenas a si, mas também a todos os quais poderia prestar auxílio caso fosse melhor, quem se aprimora ape­nas por isso já beneficia os outros, já que apronta quem vai poder beneficiá-los no futuro.

III

Suponhamos que haja duas repúblicas: uma grande e verdadeiramente pública na qual vivem homens e deuses e na qual nada se vê apenas por um ângulo, medindo a sua extensão pelo percur­so do sol. A outra é aquela que nos foi dada ao nascer. É a dos atenienses ou a dos cartagineses ou qualquer outra que não pertença a todos os homens, apenas a alguns deles. Há indivíduos que se dedicam ao mesmo tempo a ambas; ou­tros apenas à menor e outros, ainda, somente à maior.

À república maior, mesmo na vida retirada, podemos servir, o que me parece até ser melhor, podendo ainda inquirir o que é a virtude; se há uma ou muitas; se é a natureza ou a prática que faz os homens bons; se aquilo que abrange as ter­ras e os mares e o que neles está inserido é apenas uma coisa ou muitos corpos espalhados por deus; se a matéria da qual tudo nasce é alguma coisa contínua e plena ou descontínua e vazia ou uma mistura de partes sólidas; onde está deus; se sua obra está espalhada no exterior da matéria ou in­cluída no conjunto; se o mundo é eterno ou deve ser olhado como coisa efêmera inserida no tem­po. Aquele que contempla tudo isso presta que serviço a deus? Oxalá suas obras tão grandiosas não fiquem sem testemunhas!

Costumamos dizer que o bem supremo consiste em viver de acordo com a natureza. A natureza gerou-nos tanto para a contemplação quanto para a ação.

Agora podemos provar o que dissemos anteriormente. Por que agora? Isso não ficaria provado de maneira suficiente se cada um buscasse dentro de si próprio o desejo que possui para buscar o desconhecido e a curiosidade dian­te da narração de uma história?

Alguns navegam e enfrentam os trabalhos de uma peregrinação muito longa apenas pelo prê­mio de conhecer algo longínquo e oculto. É isso que reúne a multidão para os espetáculos; é isso que leva a buscar coisas não aparentes, a questio­nar as secretas, a remexer antiguidades, a ouvir sobre costumes dos povos bárbaros.

A natureza deu-nos um espírito curioso e consciente de sua perícia e beleza; criou-nos para a contemplação desses grandes espetáculos. Tudo isso perderia a sua riqueza de coisas grandiosas, excelsas, tão nitidamente estruturadas, tão bri­lhantes e formosas, se ficasse visível apenas para a solidão!

Para que saibas que ela quer que tudo isso fosse admirado e não apenas avistado, observa, então, o local onde nos situou, isto é, colocou-nos em meio dela própria e concedeu-nos o po­der de observar todos os seres ao nosso redor. Não fez o homem apenas ereto, mas, sobretudo, deu-lhe habilidade para a contemplação. A fim de que, desde o nascer do sol até o ocaso, pudesse observar o curso dos astros e para que seu rosto girasse, deu-lhe uma cabeça erguida, colocando-a sobre ombros flexíveis. Direcionando o curso de seis constelações durante o dia e de seis outras no decorrer da noite, a natureza não oculta nada de si mesma, pondo diante dos olhos humanos tais ma­ravilhas que estimulam a curiosidade para outras.

Mas nem por isso já vimos tudo o que existe, já que a nossa visão descortina o caminho para a investigação e apresenta-nos os fundamentos da verdade de maneira que a averiguação pas­sa do claro para o escuro, pondo a descoberto o que existe de mais antigo no universo, como, por exemplo, procurar a origem dos astros que se mostram como elementos distintos entre si; qual foi a lei que separou elementos ligados entre si e os que se encontram misturados; quem indicou o lugar para cada um deles; se os elementos mais pesados caíram sozinhos e os mais leves alçaram voo, ou, independente do peso dos corpos, uma outra força mais forte determinou a lei de cada um deles; se é verdade, segundo dizem, que o ho­mem é constituído de espírito divino; se particulas e fagulhas de astros caíram sobre a Terra e ai ficaram escondidas em lugar inacessível.

IV

O nosso pensamento invade as barreiras do céu e não se contenta em saber apenas o que está ao nosso alcance. Alguém poderia perguntar, afir­mando: “examino o que está localizado além de nosso mundo para saber se é uma grande vasti­dão ou está circunscrito por alguns limites; qual a forma dos elementos estranhos; são disformes ou confusos ou com igual volume em cada parte; se estão ligados com o nosso mundo ou dele separa­dos; se vagueiam pelo espaço; se é com elementos indivisíveis que se compõe tudo o que surgiu ou surgirá; ou, ainda, se a matéria de tudo isso é es­pessa e móvel ao mesmo tempo; se os elementos são opostos entre si ou se não estão em conflito já que contribuem para um mesmo fim por cami­nhos diferentes”.

Uma vez que veio ao mundo para descobrir tais problemas, vê como é pequeno o tempo de que o homem dispõe, embora se dedique a isso por inteiro. Ainda que não permita que lhe per­turbem nem se descuide, ainda que controle seu tempo com muito cuidado e estenda as suas ho­ras até o fim de sua vida, desde que o destino não retire nada do que recebeu da natureza, o homem é por demais mortal para compreender as coisas imortais.

Assim, vivo segundo a natureza, já que a ela me entreguei totalmente, já que sou seu ad­mirador e servo. Entretanto, a natureza quer que eu faça duas coisas: agir e dedicar-me à reflexão. Tanto uma quanto outra realizo, pois não pode haver contemplação sem alguma forma de ação.

V

“Mas faz diferença”, dizes, “dedicar-se ao es­tudo da natureza apenas levado pelo prazer, não pedindo nada mais que a contemplação, sem visar a qualquer outro objetivo, uma vez que ela, com seus atrativos, já proporciona satisfação?”

A isso, respondo que é importante saber qual o propósito de dedicar-se à vida pública, ou seja, se é apenas para estar sempre ocupado e sem tempo para voltar os olhos das coisas humanas para as divinas.

Da mesma forma que desejas as coisas sem o mínimo apreço pelas virtudes, sem cultivar o espírito, agindo de forma injusta através de atos não dignos de aprovação - já que todos os ele­mentos devem estar ligados -, assim uma virtude distanciada da vida retirada é um bem imperfeito e doente, uma vez que inativa não demonstra ne­nhuma aprendizagem.

Ninguém pode negar que a virtude deve provar a sua eficiência em obras e não apenas ficar refletindo sobre o que faz; deve, às vezes, entregar-se inteiramente a uma tarefa e pôr-se a fazer algo com empenho e resolutamente pela sua prática. Se o atraso na execução não ocorre por causa do sábio, então não é o agente que está em falta e, sim, aquilo que deve ser feito. Por que ra­zão, então, condená-lo a ficar recluso?

Com que propósito o sábio se retira para o sossego? É para ter certeza de que, também ali, deve praticar atos que serão de utilidade para toda a posteridade. Certamente, sabemos que tanto Zenão como Crisipo realizaram obras mais so­berbas do que comandar exércitos, ocupar cargos públicos, promulgar leis. Até as promulgaram, mas não apenas para uma cidade e, sim, para toda a humanidade. Por que, então, não seria conve­niente ao homem honesto e digno a vida retirada, graças a qual se organizam os séculos futuros. É através dessa que se divulga uma mensagem não apenas para um pequeno auditório e, sim, para homens de todas as nações, sejam os que ali se encontram, sejam os que hão de vir.

Em síntese, pergunto, se Cleanto, Crisipo e Zenão viveram de acordo com seus ideais. Não duvido que responderás que viveram da mesma forma como ensinaram, porém nenhum deles ad­ministrou república alguma. Dirás ainda que não tiveram a fortuna e a dignidade que costumam ter os que são aceitos na gerência dos negócios públicos. Mas nem por isso levaram uma vida negligente e tediosa. Agiram de modo que o seu sossego fosse mais útil aos homens do que as ati­vidades e o suor de muitos outros. Dessa forma, são percebidos como grandes empreendedores, apesar de não terem exercido cargos públicos.

VI

Além disso, há três modos de vida. Cabe ques­tionar qual o melhor: o que se consagra ao prazer, o que se consagra à contemplação ou aquele que se dedica à ação? Primeiramente, abandonando qualquer discussão e o implacável ódio que se de­ clara aos que decidem trilhar caminhos diferentes dos nossos, vejamos se todas essas doutrinas, de diferentes denominações, não estariam levando a um mesmo caminho sob um ou outro aspec­to. Mesmo o que preconiza a doutrina do prazer não abandona a contemplação, como o que só se dedica à contemplação também não está afastado do prazer, e o terceiro, embora dedicando a vida às atividades, não está livre da contemplação.

Dirás que existe uma sensível diferença en­tre alguma coisa ser proposital ou estar direcio­nada para alguma intenção. Evidentemente, há diferença, porém uma coisa não acontece sem a outra. Nem contemplação sem ação, nem ação sem contemplação, nem o terceiro, que conside­ramos negativo, demonstra ter um prazer apático, uma vez que captura aquilo que a razão assinala como estável para si. Por esse motivo, também a comitiva do prazer é ativa.

E por que não seria? É ativa porque Epicuro declara, em algum lugar, que se afastaria do pra­zer e até suportaria a dor se o prazer fosse amenizado pelo arrependimento, ou uma dor menor substituísse outra mais séria.

Por que importa dizer tais coisas? Importa deixar claro que a contemplação agrada a todos. Uns a desejam como fim último; nós a temos como um porto de passagem, não como porto de chegada.

Acrescente-se a tudo isso que, segundo a lei de Crisipo, é lícito viver uma vida retirada. Não digo resignar-se a ela, mas escolher voluntariamente esse modo de vida. Dizem que o sábio não deve aproximar-se de qualquer tipo de negócio público. Não importa qual o caminho que ele es­colhe para o descanso final. Pode acontecer que os negócios públicos não o escolham; pode acon­tecer que ele não os escolha; pode, enfim, aconte­cer que nem existam. O fato é que tais negócios faltarão para os que os buscarem com disposição destrutiva.

Pergunto, então, de qual república o sábio deve aproximar-se? A dos atenienses, na qual Só­crates foi condenado e da qual Aristóteles teve de fugir para que não tivesse o mesmo destino? Da­quela na qual a inveja persegue a virtude? Assim dirás que o sábio não deve se aproximar de tal tipo de república?

Se ele se acerca da república de Cartago, na qual a revolta é constante e a liberdade hostiliza os melhores, sofrendo a justiça e a hones­tidade igual aviltamento, enquanto a crueldade contra os inimigos é enorme com reflexos sobre os cidadãos, então dessa também ele fugirá.

Se eu decidisse percorrer uma a uma todas as repúblicas atuais, não acharia nenhuma que estivesse à altura para receber o sábio, ou que o sábio pudesse dela fazer parte. Já que não se pode encontrar a república de nossos sonhos, então nos invade a necessidade de descanso, porque não encontramos nenhum lugar que possa substituir a vida retirada.

Se alguém disser que navegar é ótimo, mas, em seguida, advertir que não se deve fazê-lo por águas onde são freqüentes os naufrágios e nas quais as tempestades desorientam os pilotos, ­ concluo que esse indivíduo me aconselha a não en­frentar o mar, por mais que louve a navegação.

Filosofia - Estoicismo
Cartas e diálogos - Tópicos gerais, 
10/2/2021 3:32:06 PM | Por Lucius Annaeus Seneca
Sêneca saúda o amigo Lucílio: Da viagem

Pensas que só a ti isso aconteceu e te admiras como se fosse uma coisa nova o fato de em tão longa peregrinação e em tanta variedade de lugares não teres tirado a tristeza e a gravidade da mente? Deves mudar o Animo, não o céu. Mesmo que atravesses o vasto mar, mesmo que, como diz o nosso Virgílio, “se percam a terra e as cidades”, os vícios te seguem e te perseguem onde quer que vás.

Sendo perguntado sobre isso, Sócrates disse: “Por que te admiras de que em nada as viagens te beneficiem quando te levas contigo? Vai atrás de ti a mesma causa que te faz fugir.” A quem pode ajudar a novidade das terras? A quem o conhecimento das cidades ou dos lugares? Toda essa agitação é em vão. Perguntas por que essa fuga não te ajuda; ora, tu foges de ti mesmo. É o peso da alma que deves deixar, antes disso, nenhum lu­gar te agradará.

Julgas, agora, que a tua condição seja tal qual aque­la que o nosso Virgílio apresenta naquela sacerdotisa exaltada e muito instigada e que tem em si um espírito que não é o seu: “A sacerdotisa se agita para que possa expulsar do seu peito um grande deus”. Vai daqui para la a fim de sacudir o peso que te oprime e que volta mais grave devido à tua própria agitação; assim como em um navio a carga imóvel pesa menos e a que está disposta de modo desigual se move de um lado para outro, fazendo afundar o flanco que mais pesa. Qualquer coisa que faças a fazes contra ti e no mesmo movimento te prejudicas, pois tu carregas um homem doente.

No entanto, quando te livrares desse mal, toda mudança de lugar se tornará alegre. Mesmo se fores lançado em terras distantes, ou fores transferido para qualquer país bárbaro, aquela distância, qualquer que seja, te parecerá acolhedora. Mais importante não é o lugar, mas o estado de ânimo, pois o ânimo não se tor­na escravo de nenhum lugar. Vive com essa convicção: “Não nasci para um único lugar, a minha pátria é este mundo inteiro”.

Se isso fosse claro para ti, não te admirarias que não te ajudassem as diversas regiões para as quais cons­tantemente migras, cansado daquelas onde vivias antes; as primeiras te teriam agradado se as tivesses conside­rado como se fossem tuas. Agora não peregrinas, mas erras e te deixas levar de um lugar para outro, de modo que o que buscas, isto é, viver bem, encontra-se em to­dos os lugares.

Pode existir um lugar tão conturbado quanto o fórum? Também aqui se pode viver tranqüilamente, se for necessário. Mas se é possível dispor livremente de nós mesmos, fugiria para longe da proximidade do fó­rum, pois como os lugares insalubres minam uma saúde muito firme, assim, também, lugares perigosos atacam os espíritos ainda não perfeitos e convalescentes.

Discordo daqueles que se jogam no meio das on­das e que, atraídos por uma vida tumultuosa, lutam, cotidianamente, com grande ânimo, contra as difi­culdades das coisas. O sábio o suporta, não o escolhe, prefere a paz à luta; não é muito útil abandonar-se aos próprios vícios se é preciso lutar contra os alheios.

“Trinta tiranos”, fala, “rodearam Sócrates, mas não puderam quebrantar seu espírito.” Que importa quantos são os senhores? A servidão é uma só; se alguém despreza, por maior que seja a dominação, é livre. É tempo de terminar, mas não sem antes pagar os pedágios. “Ter consciência dos próprios pecados é o início da salvação.” Esta frase, dita por Epicuro, parece-me ser das mais sábias, pois quem ignora pecar não quer ser corrigido; é necessário que reconheças a culpa antes de te emendares.

Alguns se vangloriam dos seus vícios; e tu pensas que busca remédio quem enumera os seus vícios como se fossem virtudes? Por isso, tanto quanto possas, re­preende-te a ti mesmo, faze um exame de consciência; assume primeiro o papel do acusador, depois o de juiz e, por último, o de intercessor. Em algum as ocasiões, sê duro contigo mesmo. Passa bem!

Filosofia - Filosofia Clássica
Cartas e diálogos - Felicidade, 
10/2/2021 3:28:53 PM | Por Epicuro
Carta sobre felicidade

Que ninguém hesite em se dedicar à filosofia enquanto jovem, nem se canse de fazê-lo depois de velho, porque ninguém jamais é demasiado jovem ou demasiado velho para alcançar a saúde do espírito. Quem afirma que a hora de dedicar-se à filosofia ainda não chegou, ou que ela já passou, é como se dissesse que ainda não chegou ou que já passou a hora de ser feliz. Desse modo, a filosofia é útil tanto ao jovem quanto ao velho: para quem está envelhecendo sentir-se rejuvenescer por meio da grata recordação das coisas que já se foram, e para o jovem poder envelhecer sem sentir medo das coisas que estão por vir; é necessário, portanto, cuidar das coisas que trazem a felicidade, já que, estando esta presente, tudo temos, e, sem ela, tudo fazemos para alcançá-la.

Pratica e cultiva então aqueles ensinamentos que sempre te transmiti, na certeza de que eles constituem os elementos fundamentais para uma vida feliz.

Em primeiro lugar, considerando a divindade como um ente imortal e bem-aventurado, como sugere a percepção comum de divindade, não atribuas a ela nada que seja incompatível com a sua imortalidade, nem inadequado à sua bem-aventurança; pensa a respeito dela tudo que for capaz de conservar-lhe felicidade e imortalidade.

Os deuses de fato existem e é evidente o conhecimento que temos deles; já a imagem que deles faz a maioria das pessoas, essa não existe: as pessoas não costumam preservar a noção que têm dos deuses. ímpio não é quem rejeita os deuses em que a maioria crê, mas sim quem atribui aos deuses os falsos juízos dessa maioria. Com efeito, os juízos do povo a respeito dos deuses não se baseiam em noções inatas, mas em opiniões falsas. Daí a crença de que eles causam os maiores malefícios aos maus e os maiores benefícios aos bons. Irmanados pelas suas próprias virtudes, eles só aceitam a convivência com os seus semelhantes e consi­deram estranho tudo que seja diferente deles. Acostuma-te à ideia de que a morte para nós não é nada, visto que todo bem e todo mal residem nas sensações, e a morte é justamente a privação das sensações. A consciência clara de que a morte não significa nada para nós proporciona a fruição da vida efêmera, sem querer acrescentar-lhe tempo infinito e eliminando o desejo de imortalidade.

Não existe nada de terrível na vida para quem está perfeitamente convencido de que não há nada de terrível em deixar de viver. É tolo, portanto, quem diz ter medo da morte, não porque a chegada desta lhe trará sofrimento, mas porque o aflige a própria espera: aquilo que não nos perturba quando presente não deveria afligir-nos enquanto está sendo esperado.

Então, o mais terrível de todos os males, a morte, não significa nada para nós, justamente porque, quando estamos vivos, é a morte que não está presente; ao contrário, quando a morte está presente, nós é que não estamos. A morte, portanto, não é nada, nem para os vivos, nem para os mortos, já que para aqueles ela não existe, ao passo que estes não estão mais aqui. E, no entanto, a maioria das pessoas ora foge da morte como se fosse o maior dos males, ora a deseja como descanso dos males da vida.

O sábio, porém, nem desdenha viver, nem teme deixar de viver; para ele, viver não é um fardo e não viver não é um mal. Assim como opta pela comida mais saborosa e não pela mais abundante, do mesmo modo ele colhe os doces frutos de um tempo bem vivido, ainda que breve. Quem aconselha o jovem a viver bem e o velho a morrer bem não passa de um tolo, não só pelo que a vida tem de agradável para ambos, mas também porque se deve ter exatamente o mesmo cuidado em honestamente viver e em honestamente morrer. Mas pior ainda é aquele que diz: bom seria não ter nascido, mas, uma vez nascido, transpor o mais depressa possível as portas do Hades.

Se ele diz isso com plena convicção, por que não se vai desta vida? Pois é livre para fazê-lo, se for esse realmente seu desejo; mas se o disse por brincadeira, foi um frívolo em falar de coisas que brincadeira não admitem.

Nunca devemos nos esquecer de que o futuro não é nem totalmente nosso, nem totalmente não nosso, para não sermos obrigados a esperá-lo como se estivesse por vir com toda a certeza, nem nos desesperarmos como se não estivesse por vir jamais.

Consideremos também que, dentre os desejos, há os que são naturais e os que são inúteis; dentre os naturais, há uns que são necessários e outros, apenas naturais; dentre os necessários, há alguns que são fundamentais para a felicidade, outros, para o bem-estar corporal, outros, ainda, para a própria vida. E o conhecimento seguro dos desejos leva a dire­cionar toda escolha e toda recusa para a saúde do corpo e para a serenidade do espírito, visto que esta é a finalidade da vida feliz: em razão desse fim praticamos todas as nossas ações, para nos afastarmos da dor e do medo.

Uma vez que tenhamos atingido esse estado, toda a tempestade da alma se aplaca, e o ser vivo, não tendo que ir em busca de algo que lhe falta, nem procurar outra coisa a não ser o bem da alma e do corpo, estará satisfeito. De fato, só sentimos necessidade do prazer quando sofremos pela sua ausência; ao contrário, quando não sofremos, essa necessidade não se faz sentir.

É por essa razão que afirmamos que o prazer é o início e o fim de uma vida feliz. Com efeito, nós o identificamos como o bem primeiro e inerente ao ser humano, em razão dele praticamos toda escolha e toda recusa, e a ele chegamos escolhendo todo bem de acordo com a distinção entre prazer e dor.

Embora o prazer seja nosso bem primeiro e inato, nem por isso escolhemos qualquer prazer: há ocasiões em que evitamos muitos prazeres, quando deles nos advêm efeitos o mais das vezes desagradáveis; ao passo que consideramos muitos sofrimentos preferíveis aos prazeres, se um prazer maior advier depois de suportarmos essas dores por muito tempo. Portanto, todo prazer constitui um bem por sua própria natureza; não obstante isso, nem todos são escolhidos; do mesmo modo, toda dor é um mal, mas nem todas devem ser sempre evitadas. Convém, portanto, avaliar todos os prazeres e sofrimentos de acordo com o critério dos benefícios e dos danos. Há ocasiões em que utilizamos um bem como se fosse um mal e, ao contrário, um mal como se fosse um bem. Consideramos ainda a autossuficiência um grande bem; não que devamos nos satisfazer com pouco, mas para nos contentarmos com esse pouco caso não tenhamos o muito, honestamente convencidos de que desfrutam melhor a abundância os que menos dependem dela; tudo o que é natural é fácil de conseguir; difícil é tudo o que é inútil.

 

Xxxx

Os alimentos mais simples proporcionam o mesmo prazer que as iguarias mais requintadas, desde que se remova a dor provocada pela falta: pão e água produzem o prazer mais profundo quando ingeridos por quem deles necessita.
Habituar-se às coisas simples, a um modo de vida não luxuoso, portanto, não só é conveniente para a saúde, como ainda proporciona ao homem os meios para enfrentar corajosa­ mente as adversidades da vida: nos períodos em que conseguimos levar uma existência rica, predispõe o nosso ânimo para melhor aproveitá-la, e nos prepara para enfrentar sem temor as vicissitudes da sorte.
Quando então dizemos que o fim último é o prazer, não nos referimos aos prazeres dos intemperantes ou aos que consistem no gozo dos sentidos, como acreditam certas pessoas que ignoram o nosso pensamento, ou não concor­ dam com ele, ou o interpretam erroneamente,
mas ao prazer que é ausência de sofrimentos físicos e de perturbações da alma. Não são, pois, bebidas nem banquetes contínuos, nem a posse de mulheres e rapazes, nem o sabor dos peixes ou das outras iguarias de uma mesa farta que tornam doce uma vida, mas um exame cuidadoso que investigue as causas de toda escolha e de toda rejeição e que remova as opiniões falsas em virtude das quais uma imensa perturbação toma conta dos espíritos. De todas essas coisas, a prudência é o princípio
e o supremo bem, razão pela qual ela é mais preciosa do que a própria filosofia; é dela que originaram todas as demais virtudes; é ela que nos ensina que não existe vida feliz sem pru­ dência, beleza e justiça, e que não existe prudência, beleza e justiça sem felicidade.

Porque as virtudes estão intimamente ligadas à felicidade, e a felicidade é inseparável delas. Na tua opinião, será que pode existir alguém mais feliz do que o sábio, que tem um juízo reverente acerca dos deuses, que se comporta
de modo absolutamente indiferente perante a morte, que bem compreende a finalidade da natureza, que discerne que o bem supremo está nas coisas simples e fáceis de obter, e que o mal supremo ou dura pouco, ou só nos causa sofri­ mentos leves? Que nega o destino, apresentado por alguns como o senhor de tudo, já que as coisas acontecem ou por necessidade, ou por acaso, ou por vontade nossa; e que a necessidade é incoercível, o acaso, instável, enquanto nossa vontade é livre, razão pela qual nos acompanham a censura e o louvor?
Mais vale aceitar o mito dos deuses, do que ser escravo do destino dos naturalistas: o mito pelo menos nos oferece a esperança do perdão dos deuses por meio das homenagens que lhes prestamos, ao passo que o destino é uma necessidade inexorável.
Entendendo que a sorte não é uma divin­ dade, como a maioria das pessoas acredita (pois um deus não faz nada ao acaso), nem algo incerto, o sábio não crê que ela proporcione aos homens nenhum bem ou nenhum mal que sejam fundamentais para uma vida feliz, mas, sim, que dela pode surgir o início de grandes bens e de grandes males. A seu ver, é preferível ser desafortunado e sábio, a ser afortunado e tolo; na prática, é melhor que um bom projeto não chegue a bom termo, do que chegue a ter êxito um projeto mau.
Medita, pois, todas estas coisas e muitas outras a elas congêneres, dia e noite, contigo mesmo e com teus semelhantes, e nunca mais te sentirás perturbado, quer acordado, quer dormindo, mas viverás como um deus entre os homens. Porque não se assemelha absoluta­ mente a um mortal o homem que vive entre bens imortais.

Filosofia - Filosofia Clássica
Período naturalista - Pré-socráticos, 
9/30/2021 3:55:58 PM | Por Giovanni Reale
Os mitos teogônicos e cosmológicos

Já foi há muito tempo observado que o antecedente da cosmolo­gia filosófica é constituído pelas teogonias e cosmogonias mítico-poéticas, das quais é muito rica a literatura grega, e cujo protótipo paradigmático é a Teogonia de Hesíodo, a qual, explorando o patri­mônio da precedente tradição mitológica, traça uma imponente sínte­se de todo o material, reelaborando-o e sistematizando-o organica­mente. A Teogonia de Hesíodo narra o nascimento de todos os deu­ses; e, dado que alguns deuses coincidem com partes do universo e com fenômenos do cosmo, além de teogonia ela se torna também cosmogonia, ou seja, explicação fantástica da gênese do universo e dos fenômenos cósmicos.

Hesíodo imagina, no proêmio, ter tido, aos pés do Hélicon, na Beócia, uma visão das Musas, e ter recebido delas a revelação da verdade da qual ele se faz, mediatamente, arauto. Em primeiro lugar, diz ele, gerou-se o Caos, em seguida gerou-se Gea (a Terra), em cujo seio amplo estão todas as coisas, e nas profundidades da Terra gerou- se o Tártaro escuro, e, por fim, Eros (o Amor) que, depois, deu origem a todas as outras coisas. Do Caos nasceram Erebo e Noite, dos quais se geraram o Éter (o Céu superior) e Emera (o Dia). E da Terra sozinha se geraram Urano (o Céu estrelado), assim como o mar e os montes; depois, juntando-se com o Céu, a Terra gerou Oceano e os rios.

Procedendo no mesmo estilo, Hesíodo narra a origem dos vários deuses e numes divinos. Zeus pertence à última geração: de fato, foi gerado de Crono e de Rea (que, por sua vez, tinham sido gerados da Terra e de Urano); e, como Zeus, fazem parte da última geração todos os outros deuses do Olimpo homérico, vale dizer, os deuses que o grego então venerava.

Ora, como dissemos, é indubitável que a Teogonia de Hesíodo e, em geral, as representações teogônico-cosmológicas são o anteceden­te da cosmologia filosófica; todavia, é igualmente indiscutível que entre essas tentativas e a cosmologia filosófica (mesmo a mais primi­tiva, isto é, a de Tales) há uma nítida diferença. Para compreender a diferença entre uma e outra, voltemos às três características que acima indicamos como distintivas da filosofia, ou seja, a) a representação da totalidade do real, b) o método de explicação racional, c) o puro [41] interesse teórico. Ora, não há dúvida de que as teogonias possuem a primeira e a terceira dessas características, mas carecem da segunda, que é qualificante e determinante. Elas procedem com o mito, com a representação fantástica, com a imaginação poética, com intuitivas analogias sugeridas pela experiência sensível; portanto, permanecem aquém do lógos, ou seja, aquém da explicação racional.

E quando Aristóteles disse que o amante do mito é de algum modo filósofo1, disse-o referindo-se exatamente ao fato de que, como a filosofia, o mito nasce para satisfazer a admiração ou o puro desejo de saber, não por fins pragmáticos2: mas o mito permanece mito, parente da filosofia, não filosofia.

É dado que sobre este ponto, recentemente, se discutiu, e alguns acreditaram poder negar a existência dessa diferença, é bom que nos detenhamos em reafirmar alguns conceitos que consideramos essenciais. Jaeger escreveu: “Na Teogonia hesiodiana reina de alto a baixo o mais obstinado intelecto construtivo, com toda a coerência de um ordenamen­to e de uma pesquisa racional. Na sua cosmologia, por outra parte, há ainda uma força inata de intuição mítica, a qual permanece eficaz, além do limite no qual costumamos apontar o começo do reino da filosofia ‘científica’, nas doutrinas dos ‘físicos’ e sem a qual nos resultaria in­compreensível a maravilhosa fecundidade filosófica daquele antiquíssi­mo período científico. As forças naturais de atração e de repulsão da doutrina de Empédocles, o Amor e o Ódio, têm a mesma origem espi­ritual do Eros cosmogônico de Hesíodo. O início da filosofia científica não coincide, pois, nem com o do pensamento racional nem com o fim do pensamento mítico. Encontramos ainda a mais genuína mitogonia no núcleo da filosofia de Platão e de Aristóteles, como no mito platônico da alma ou na intuição aristotélica do amor das coisas para com o motor imóvel do mundo”3. Mas Jaeger é vítima de uma ilusão de ótica: nin­guém nega que antes do advento da filosofia existisse a razão e ninguém afirma que na Teogonia hesiodiana (assim como na épica homérica) não existam mais que mito e fantasia e nada de razão; assim como ninguém nega, ao contrário, que na filosofia permaneçam por muito tempo elementos míticos e fantásticos. Mas o ponto essencial está no papel de­terminante que desempenham uns e outros fatores; e veremos logo que, enquanto em Hesíodo ou nos autores de teogonias, o papel determinante é dado ao elemento fantástico-poético-mitológico, em Tales será, ao invés, dado ao lógos e à razão: e é precisamente por isso que a tradição chamou Tales de primeiro filósofo, dando-se perfeitamente conta de que no seu discurso algo mudara radicalmente com relação ao discurso dos poetas, e que esse algo assinalava a passagem do mito ao lógos.

De resto, note-se que na Teogonia hesiodiana falta exatamente o ponto que qualifica a cosmologia filosófica, vale dizer, a tentativa de individuar o primeiro princípio imprincipiado, a fonte absoluta de tudo. E o próprio Jaeger, contradizendo a tese da qual falamos acima, revela-o escrevendo: “O pensamento genealógico de Hesíodo considera advindo também o caos. Ele não diz: no princípio era o caos, mas: primeiro adveio o caos, depois a terra etc. Neste ponto se apresenta a questão de se não deve haver também um início do devir que, por sua vez, não seja advindo. A tal questão Hesíodo não res­ponde, nem sequer a põe. Isso pressupõe uma lógica de pensamento ainda muito longe dele”4.

Mas, note-se, não põe a questão e não pode pô-la, justamente porque a fantasia, que se alimenta do sensível e das analogias extraí­das do sensível, quando chega ao caos se apaga, e, não sabendo mais imaginar formas ulteriores, se detém; e a fantasia pode se representar como gerando o próprio caos, vale dizer, a realidade primeira, jus­tamente porque vê que tudo é gerado (deuses e coisas); para repre­sentar-se isso em sentido contrário, ela deveria ir contra si mesma e, portanto, negar-se. E é exatamente isso que fará a filosofia desde o seu nascimento: irá contra a fantasia, a imaginação e os sentidos e inferirá suas figuras especulativas com a força do lógos, contestando o mito e as aparências sensíveis, criando algo completamente novo.

E quando se diz que a Teogonia é de grande importância para o advento da futura filosofia, diz-se algo justo: mas o advento da filosofia pressupõe a aquisição do novo plano do lógos, isto é, uma revolução, como em seguida veremos.

Filosofia - Filosofia Clássica
Temas gerais - Tópicos gerais, 
9/25/2021 5:31:16 PM | Por Giovanni Reale
Natureza e problemas da filosofia grega

Até agora falamos de filosofia sem determinar de modo específico o conceito: é só neste ponto que podemos fazê-lo, à luz das observações precedentes. Digamos logo de início que a tradição sustenta ter sido Pitágoras o inventor do termo, o que, se não é historicamente verificável, é veros­símil. O termo foi cunhado certamente por um espírito religioso, que pressupunha ser possível só aos deuses uma “sophia” como posse certa e total, enquanto destacava que ao homem só era possível tender à “sophia”, um contínuo aproximar-se, um amor jamais totalmente satisfeito dela, de onde justamente o nome filosofia, amor à sapiência.

Mas que entenderam os gregos por essa amada e buscada sapiência? Prescindindo das várias oscilações e incertezas que de fato se encontram no uso do termo (incertezas na verdade assaz notáveis, porque os vários autores e as várias correntes de pensamento na filosofia ou incluem amiú­de muito pouco, ou incluem demais, segundo as circunstâncias), é possí­vel estabelecer aquilo que de direito merece ser chamado de filosofia, e aquilo que também de fato, a partir de Tales, fizeram todos os que me­receram o nome de filósofos. (As incertezas surgiram porque os vários filósofos, além de ocupar-se daquilo que veremos ser propriamente filo­sofia, ocuparam-se também de numerosos outros tipos de conhecimento que pretenderam fazer entrar globalmente na filosofia, como se, sendo um o pesquisador, uma também devesse ser toda a ciência por ele possuída.)

Pois bem, a partir do seu nascimento, a ciência filosófica apresentou de modo nítido as seguintes características, que dizem respeito, respectivamente,

  1. ao seu conteúdo,
  2. o seu método,
  3. ao seu escopo,

Quanto ao conteúdo, a filosofia quer explicar a totalidade das coisas, ou seja, toda a realidade, sem exclusão de partes ou momentos dela, distinguindo-se assim estruturalmente das ciências particulares, que, ao invés, limitam-se a explicar determinados setores da realidade, grupos particulares de coisas e de fenômenos. E já na pergunta de Tales (o primeiro dos filósofos) sobre o princípio de todas as coisas, esta dimen­são da filosofia está presente em todo o seu alcance. [28]

Quanto ao método, a filosofia quer ser explicação puramente racional da totalidade que é seu objeto. O que vale em filosofia é o argumento de razão, a motivação lógica: é, numa palavra, o lógos. Não basta à filosofia constatar, verificar dados de fato, coletar expe­riências: a filosofia deve ir além do fato e das experiências para encontrar as suas razões, a causa, o princípio.

E é este caráter que confere cientificidade à filosofia. Tal caráter é comum também a outras ciências, as quais, exatamente enquanto ciên­cias, nunca são apenas constatação e verificação empírica, mas são sem­pre busca de causas e de razões. Mas a diferença está em que, enquanto as ciências particulares são busca de causas de realidades particulares ou de setores de realidade particulares, a filosofia é, ao invés, busca de causas e princípios de toda a realidade (como, de resto, impõe necessa­riamente a primeira das características acima ilustrada).

Enfim, devemos esclarecer qual é o escopo da filosofia. E sobre este ponto Aristóteles explicou melhor do que todos que a filosofia tem um caráter puramente teórico, ou seja, contemplativo: ela visa simples­mente à busca da verdade por si mesma, prescindindo das suas utiliza­ções práticas. Não se busca a filosofia por qualquer vantagem que lhe seja estranha, mas por ela mesma; ela é, pois, “livre” enquanto não se submete a qualquer utilização pragmática e, portanto, realiza-se e se resume em pura contemplação do verdadeiro. E também deste ponto de vista o nome filosofia resulta, na verdade, perfeitamente dado: amor ao saber em si mesmo, amor desinteressado ao verdadeiro.

Eis algumas afirmações de Aristóteles, particularmente iluminadoras:

Que ela não tenda a realizar alguma coisa depreende-se claramente das afirmações daqueles que por primeiro cultivaram a filosofia. De fato, os homens começaram a filosofar, agora como na origem, por causa da admi­ração: enquanto no início ficavam maravilhados diante de dificuldades mais simples, em seguida, progredindo pouco a pouco, chegaram a pôr-se proble­mas sempre maiores: por exemplo, os problemas relativos aos fenômenos da lua e os relativos ao sol e aos astros, ou os problemas relativos à geração de todo o universo. Ora, quem experimenta uma sensação de dúvida e de ma­ravilha reconhece que não sabe; e é por isso que também aquele que ama o mito é, de certo modo, filósofo: o mito, com efeito, é constituído por um conjunto de coisas que despertam admiração. Assim, se os homens filosofa­ram para libertar-se da ignorância, é evidente que buscaram o conhecimento só com a finalidade de saber e não para alcançar alguma utilidade prática. E o próprio modo segundo o qual as coisas se desenvolveram o demonstra. [29]

Quando já se possuía praticamente tudo o que era necessário para a vida e também para a prosperidade e para o bem-estar, então se começou a buscar aquela forma de conhecimento. É evidente, portanto, que nós não a busca­mos por nenhuma vantagem que lhe seja estranha; e, antes, é evidente que, como chamamos livre o homem que é fim para si mesmo e não serve a outros, assim só ela, entre todas as outras ciências, chamamos livre: só ela, de fato, é fim para si mesma1.

Tornar-se agora perfeitamente claro o discurso que até aqui con­duzimos sobre a originalidade da ciência filosófica dos gregos.

As sapiências orientais são profundamente embebidas de repre­sentações fantásticas e nelas predomina o elemento imaginativo e mítico e, portanto, carecem exatamente do caráter de cientificidade. E as próprias ciências e artes orientais (matemática e geometria egíp­cias, astronomia caldéia), embora chamando em causa a razão, care­cem do elemento da teoricidade, isto é, da liberdade especulativa e, naturalmente, como conhecimentos particulares, também do primeiro dos elementos. É, portanto, clara a absoluta originalidade dessa admi­rável síntese criativa do gênio grego que foi a filosofia, assim como sua grandeza, à qual não é retórica chamar de sublime, justamente porque leva o homem a tocar o vértice das suas possibilidades.

Com razão Aristóteles a chamará de “divina”, porque além de levar-nos a conhecer a Deus, ela possui as mesmas características que deve possuir a própria ciência que Deus possui, vale dizer, a desinteressada, livre, total contemplação da verdade. Por isso, diz ainda muito bem Aristóteles, “todas as outras ciências serão mais necessárias do que esta, mas nenhuma lhe será superior”2. [30]

E queremos concluir com esta observação, uma vez que hoje não se põe a categoria do desinteresse, mas a do interesse e do útil no vértice de tudo. Quando se afirma, na trilha do pensamento marxista ou de origem marxista, que a filosofia não deve contemplar, mas transformar a realidade e que, portanto, a filosofia antiga, que queria apenas contemplar, deve ser superada por uma forma de filosofia que penetre a realidade para mudar e fazer mudar, não se substitui sim­plesmente uma visão filosófica por outra, mata-se a filosofia: o ato de transformar a realidade, de fato, só pode ser um momento conseqüen­te à verdade buscada e encontrada, e, em vez de ser filosofar é, no máximo, corolário do filosofar. O ato de transformar só pode ser empenho ético, político, educativo e não pode ser nunca, do ponto de vista filosófico, momento primário, porque supõe estruturalmente que se saiba e se determine previamente por que, como, em que sentido e medida deve-se transformar; portanto, supõe sempre o momento teórico (vale dizer, propriamente filosófico) como condicionante. E não vale objetar, como aqueles que, com complexo de culpa diante da objeção praxística, afirmam que transformar a realidade não é, de fato, filosofia, mas que, todavia, o homem de hoje deve filosofar para mudar alguma coisa. Também esta posição é depreciativa: com efei­to, quem filosofa com este espírito perde a liberdade, e a ânsia de transformar condiciona fatalmente e perturba o momento do contem­plar; perturba-o a ponto de, invertidos os termos, submetida ao jugo da práxis, a especulação pura tornar-se ideologia e, portanto, deixar de ser filosofia.

Portanto, também nisso os gregos foram e continuam sendo mes­tres: só se é filósofo se e enquanto se é totalmente livre, ou seja, só se e enquanto, com absoluta liberdade, se contempla ou se busca o verdadeiro como tal, sem ulteriores razões determinantes. E aquilo que se consegue como efeito prático da verdade encontrada e contem­plada já está essencialmente fora do momento mais propriamente filosófico. [31]

Os problemas da filosofia antiga

Dissemos que a filosofia quer conhecer a totalidade da realidade com método racional e com finalidade puramente teórica. Ora, é claro que a totalidade da realidade não é um bloco monolítico, mas um con­junto de coisas distintas entre si, embora orgânica e estreitamente liga­ das. É claro que o problema filosófico geral deverá, necessariamente, subdividir-se e, por assim dizer, cadenciar-se em problemas mais parti­culares e determinados, ligados entre si segundo os modos e à medida que são conexas as realidades que eles têm por objeto. E é claro, a priori, que esses problemas particulares, no âmbito do problema geral, virão à luz não simultânea, mas progressivamente no tempo.

Assim, num primeiro momento, a totalidade do real, a physis, foi vista como cosmo e, portanto, o problema filosófico por excelên­cia foi o problema cosmológico: como surge o cosmo, qual o seu princípio? quais as fases e os momentos da sua geração? etc. É esta a problemática que, essencial ou, pelo menos, prioritariamente, ab­ sorve toda a primeira fase da filosofia grega.

Mas com os sofistas o quadro muda: a problemática do cosmo, por razões que explicaremos, cai na sombra, e a realidade que atrai a atenção é o homem. Por isso a filosofia dos sofistas e de Sócrates concentrará a própria atenção sobre a natureza do homem e da sua virtude ou areté, de onde nascerá o problema moral.

Com Platão e Aristóteles, a problemática filosófica se diferenci­ará e enriquecerá ulteriormente, distinguindo alguns âmbitos e seto­res de problemas que permanecerão depois em todo o curso da his­tória da filosofia como pontos de referência.

Neste ínterim, Platão descobrirá e demonstrará que a realidade, ou o ser, não é de um único gênero, e que, além do cosmo sensível, existe uma realidade inteligível supra-sensível e transcendente. Daqui derivará a distinção aristotélica de uma física ou doutrina da realidade sensível, e de uma metafísica ou doutrina da realidade supra-sensível. Ulterior­ mente, os problemas morais se especificarão, serão distinguidos os dois momentos da vida do homem como indivíduo e do homem associado, e nascerá assim a distinção dos problemas propriamente éticos dos pro­blemas propriamente políticos (problemas que, ademais, para o grego permanecem muito mais intimamente ligados do que para os modernos). [32]

Ainda com Platão e sobretudo com Aristóteles, serão fixados os problemas (já presentes nos filósofos precedentes) epistemológicos e lógicos. E, olhando bem, estes são atualização e explícita determina­ção da segunda das características que vimos ser peculiar à filosofia, ou seja, do método de busca racional. Qual é a via que o homem deve seguir para alcançar a verdade? Qual é a verdadeira contribui­ção dos sentidos, e qual a da razão? Qual é a característica do ver­dadeiro e do falso? E, mais ainda em geral, quais são as formas lógicas através das quais o homem pensa, julga, raciocina? Quais são as regras para pensar corretamente? Quais são as condições pelas quais um tipo de raciocínio pode ser qualificado como científico?
Em conexão com os problemas lógico-epistemológicos, nasce também o problema da determinação da natureza da arte e do belo, da expressão e da linguagem artística e, portanto, nascem aqueles que hoje chamamos de problemas estéticos. E, sempre em conexão com estes, nascem os problemas da determinação da natureza da retórica e do discurso retórico, isto é, do discurso que visa convencer e à habilidade para convencer.

A especulação pós-aristotélica tratará como definitivamente adqui­ridos todos esses problemas, e os agrupará em 1) físicos, 2) lógicos e 3) morais. À primeira vista, a especulação pós-aristotélica parecerá modi­ficar uma característica da filosofia: a característica da teoricidade pura, ou seja, do desinteresse prático da filosofia. De fato, as escolas helenístico-romanas visarão essencialmente construir o ideal de vida do sábio, vale dizer, ideal de vida que garanta a tranqüilidade de ânimo, a felici­dade, e resolverão os problemas físicos e lógicos unicamente em função dos problemas morais. Mas, olhando bem, o espírito puramente teórico da filosofia não é absolutamente renegado, mas só determinado diferen­temente. Com a destruição da pólis e da tradicional hierarquia dos va­lores que se sustentava sobre a pólis, o filósofo pedirá à filosofia uma nova hierarquia. E aquilo que o filósofo pedirá à filosofia não será, contudo, que ela transforme os outros e as coisas, mas a ele mesmo: pedirá à filosofia a verdade para poder viver na verdade.
Enfim, a filosofia antiga, no último período, especialmente com o neoplatonismo, se enriquecerá com uma problemática místico-religiosa: diante do cristianismo nascente e triunfante, o pensamento grego buscará indicar ao homem uma visão do Todo e um tipo de [33] vida no Todo que contraste e supere os que são pregados pelo cris­tianismo; mas apesar de conseguir, nessa tentativa, abrir ulteriores horizontes metafísicos, não se sustentará senão por breve tempo em confronto, porque o cristianismo se apresentará como portador de um verbo que dissolverá a visão grega do mundo e conduzirá o pensamento a outras margens. [34]

Filosofia - Filosofia Clássica
Estoicismo - Cartas, As cartas de Sêneca
9/19/2021 4:47:49 PM | Por Lucius Annaeus Seneca
Sêneca saúda o amigo Lucílio: Dos cuidados com a saúde e com a paz de espírito

Adivinhas do que fugi para a minha proprieda­de em Nomento? Da cidade? Em verdade, da febre que me atacou de repente. O médico falava que a doença já estava instalada, meu pulso agitado e fora da batida normal. Dessa forma, rapidamente mandei preparar a carruagem. É verdade que a minha Paulina queria me impedir. Eu, no entanto, dizia para mim mesmo o di­tado de Galião que, ao ser atacado por uma febre em Acaia, logo embarcou, repetindo em voz alta que o mal não vinha dele, e sim daquele lugar mórbido.

Isso eu explicava para minha Paulina, sempre atenta à minha saúde. Como sei que sua vida depende da minha, para que possa cuidar dela, cuido antes de mim. Embora a velhice tenha me tornado mais forte para muitas coisas, estou perdendo este privilégio que nos traz a idade, pois lembro que existe neste velho um jovem, que é protegido. E, já que é impossível fazer com que ela me ame mais, ela consegue fazer com que eu ame a mim mesmo com mais cuidados.

É preciso, efetivamente, ser indulgente com os verdadeiros afetos e, quando as fraquezas físicas apare­cem, é necessário, por deferência aos seus, passar pelos mais cruéis sofrimentos, chamar a si a vida, às vezes, com grande tormento, reter em si o sopro da vida, uma vez que o homem de bem é obrigado a viver não o tempo que lhe apraz, mas, sim, o tempo que é o seu dever. Aquele que não crê que deve permanecer vivo pela esposa, pelo amigo, e se entrega à morte é um fraco. Entre os deveres da alma está manter-se vivo quando está envol­vido o interesse dos seus.

Ela queria ir-se, chegou até a ameaçar morrer, mas não faz isso, se rende às pessoas a quem ama. É merecedor de uma alma generosa retornar à vida por afeto a um outro, assim com o fizeram grandes homens. A perfeição humana atinge, penso, a total perfeição quando, ao renunciar ao privilégio da velhice, que é o de tornar-se mais negligente no trato pessoal, se atém à sua preservação, se estamos certos que tal conduta é cara, propícia e mesmo desejada aos seus.

Assim, tal coisa proporciona muita alegria, pois há algo mais agradável do que se sentir tão amado pela esposa a ponto de desejar ser mais cuidadoso consigo mesmo? Por isso, a minha querida Paulina pode me atribuir não apenas os temores delas, mas, sobretudo, os meus.

Desejas saber o que ganhei ao decidir a minha partida? Logo que deixei o ar poluído de Roma e o cheiro das cozinhas enfumaçadas que, quando a todo vapor, derramam, além da poeira, toda a gama de va­pores doentios, logo senti estar melhorando. Senti-me mais forte ainda ao chegar aos meus vinhedos! No bos­que, encontrei o meu alimento. Logo me recuperei e desapareceu aquela fraqueza que determinava os meus pensamentos. Recomeço a trabalhar cheio de ânimo.

A influência deste lugar não ajuda muito para esse efeito; é necessário que a alma esteja de posse total de si. Mesmo no centro do maior tumulto, ela pode, se quiser, criar para si solidão. No entanto, se com freqüência escolhe lugares especiais e o ócio, em qualquer lugar encontrará alguma coisa que a perturbe. Para aquele, segundo dizem, que reclamou a Sócrates não conseguir aproveita as suas viagens, o sábio replicou ser o ocorrido natural uma vez que aquele se levava sempre consigo.

Oh, como seria maravilhoso a alguns se conseguissem sair de si e não apenas dos lugares! O certo é que forçam, solicitam, corrompem e amedrontam a si próprios. De que adianta atravessar o mar, mudar de cidade? Como livrar-te dos males que te acometem indagas. Convém visitar outros lugares? Não; ser um outro eu. Imagina que estejas em Atenas, em Rodes. Elege livremente outra cidade qualquer. De que maneira te atingirão os costumes daquele lugar? Tu carregas os teus.

Julgas que as riquezas são um bem; a pobreza irá então te perturbar e, o que é mais grave, será apenas uma pobreza imaginária. Assim, toda a riqueza que tens se apresentará pequena se achares alguém mais rico, te sentindo em débito com relação ao que possui mais do que tu. Julgas um bem as honrarias; assim te causará mal-estar a eleição de um ou a reeleição de outro ao consulado. Sentirás inveja ainda que um mesmo nome poucas vezes se faça presente nas festas. Tamanho será o furor da ambição se imaginares sempre alguém à tua frente e nunca atrás de ti.

O pior dos males, para ti, é a morte, embora nada seja pior do que aquilo que a precede, ou seja, o temor. Tremerás diante do perigo e te agitarás em vão. Assim, de que adiantará “ter escapado de tantas cidades Argólicas e ter conseguido fugir através das forças inimigas?”*

Mesmo a paz te causará temor. Uma mente perturbada não confiará nem mesmo nos fatos mais óbvios, pois o sentimento incontrolável do medo, que ela sempre so­fre, acaba por torná-la totalmente insegura. Não evita o perigo, simplesmente foge dele; no entanto, dando as costas ao perigo estamos mais expostos a ele.

Não há maior desconforto, para ti, do que a perda daqueles que te são caros; porém, isso é tão absurdo quanto chorar pela queda das folhas das árvores de tua casa. A todos que te alegram, considera como as árvores que verdejam, deles desfrutando. “Mas hoje um, ama­nhã outro, todos cairão!” Da mesma forma que facil­mente ficas resignado com a queda das folhas, porque elas renascerão, assim deves considerar a perda dos que amas e que vês como a felicidade de tua vida, já que po­derão ser substituídos, embora não possam renascer.

“Mas não serão mais as mesmas!” E, por acaso, tu serás o mesmo? Todos os dias, todas as horas te mo­dificam. Na verdade, o que é roubado do outro de for­ma clara te escapa porque esse roubo ocorre de forma secreta. Os outros são roubados abertamente; nós, às ocultas. Tu, no entanto, não conseguirás refletir dessa maneira, nem colocarás remédio nas feridas; criarás di­ficuldades, seja esperando, seja perdendo. Se fores sábio em meio a toda essa confusão criada por ti, ameniza uma coisa com outra: não esperarás sem desespero, nem desesperarás sem esperança.

Que benefício pode trazer uma viagem a quem quer que seja? Jamais controlou prazeres, conteve pai­xões, reprimiu impulso de raiva, refreou ímpetos amo­rosos, nunca livrou a alma de qualquer um de seus males. Uma viagem jamais emitiu um julgamento ou desfez um erro. Seu efeito se iguala ao que uma criança sente quando se depara com o desconhecido, ou seja, diverte por um breve tempo enquanto é novidade.

De tudo, o espírito, que já é inconstante, é ainda mais atingido pelo mal; a agitação faz aumentar a sua necessidade de se mover por causa de sua instabilidade. Os lugares por onde se espalha com grande ardor logo são deixados de lado, assim como aquelas aves migrató­rias que retomam o seu rumo e voltam mais apressadas do que chegaram.

A viagem te dará o conhecimento dos povos, te fará observar diferentes formas de montanhas, locais que não são visitados pelos comuns, vales cavados por fontes incessantes, alguns rios que oferecem espetácu­los naturais, assim como o Nilo, com seu fluxo e refluxo no verão; assim com o o Eufrates, que some por completo para ficar sob a terra e ali traçar o seu curso invisível e dali aparecer em grande correnteza; também com o o Meandro, tema eterno dos poetas, que mistura suas curvas e, muitas vezes, perto de seu leito, curva-se, mais uma vez, antes de se fazer presente. No que diz respeito às demais coisas, a viagem não te fará melhor nem mais racional.

O campo de toda a atividade deve ser o estudo, e no meio dos sábios, para relembrar as verdades adqui­ridas e para descobrir novas. Assim, é dever retirar a alma de sua terrível escravidão, libertá-la. Enquanto ignorares o que deve ser evitado e deve ser procurado, o que é imprescindível e o que é supérfluo, o que é justo e o que é injusto, o que é honesto e o que não é honesto, jamais viajarás, serás apenas um errante.

Tua busca por aventuras de nada te será útil, pois viajas junto com tuas paixões, teu mal vai junto. Pu­desse ele não te seguir! Menos perto de ti ficariam tuas paixões, mas as levas contigo, as tens junto a ti. Dessa maneira, qualquer lugar te é incômodo; em todo lugar, em virtude da tua pouca disposição, elas te perturbam. Não é algo agradável à vista, mas um remédio necessá­rio ao doente.

Se alguém quebrou ou torceu a perna e não pode andar de carro ou barco, chama o médico para endi­reitar a fratura ou o músculo torcido. Mas e essa alma, quebrada e deslocada em tantos lugares, acreditas que as mudanças de lugar poderão recuperá-la? O ferimen­to é muito grave para ser curado a penas com uma mu­dança de lugar.

A viagem não cria um médico nem um orador; não se consegue aprender nenhuma arte apenas porque estamos em determinado lugar. Então, a mais impor­tante de todas as artes, a sabedoria, pode ser obtida em uma viagem? Nenhuma viagem, acredita, pode defender-te de tuas paixões, raivas, medos. Se fosse possível, toda a humanidade passaria em fila por ali. Tais males estarão junto a ti e te acompanharão por terras e mares enquanto estiveres carregando suas causas.

Ficas espantado por fugir em vão? Aquilo do que estás tentando te livrar está sempre junto a ti. Começa, portanto, a te corrigir, a livrar-te desse fardo. Põe um limite respeitável nesses desejos que devem ser elimi­nados. De tua alma retira toda a maldade. Se queres viagens agradáveis, cura aquilo que te acompanha. Se conviveres com os avarentos, a avareza te seguirá; se conviveres com os soberbos, o orgulho te seguirá. Teu mal jamais te abandonará se continuares freqüentando os ambientes nocivos, e a amizade com os adúlteros au­mentará o fogo da licenciosidade que há em ti.

Se queres te livrar desses vícios, é preciso livrar-te dos exemplos perniciosos. O avarento, o corrupto, o cruel e o velhaco fazem mal se estão próximos de ti, se estão em ti mesmo. Transita entre os melhores, com os Catões, com Lélio, com Tuberão. Se achares melhor, procura a companhia dos gregos, de Sócrates, de Zenão: um te ensinará a morrer quando se fizer necessá­rio; outro, a morrer antes que seja preciso.

Vive com Crisipo, com Posidônio, que te levarão ao conhecimento do divino e do humano, te mostra­rão como agir, a ser não apenas um sagaz orador, espa­lhando frases para o encanto dos ouvintes, mas sim ensinarão como revigorar a alma e proteger-se contra as ameaças. O único porto seguro nesta vida agitada e violenta é desprezar tudo o que acontece, manter-se firme em seus propósitos, receber de forma madura os golpes da sorte sem se perturbar ou se esquivar.

A natureza nos deu o dom da magnanimidade e, assim com o deu a alguns animais a ferocidade, a outros a astúcia e a outros mais o medo, deu-nos um espírito ilustre e elevado que nos estimula a procurar, em lugar de uma vida segura, uma vida honesta, semelhante à alma do universo que deve ser seguida e imitada tanto quanto possível pelos mortais. Ele, ao se expor, confia ao ser exigido e provocado.

Como senhor de todas as coisas, está acima de tudo. Assim, nenhuma atitude de subordinação lhe é permitida; nenhuma força pesará sobre si e fará abater um coração viril. “Formas terríveis de se ver, a morte e o sofrimento!”*; assim não seriam se fôssemos capazes de encará-las firmemente e revelar as trevas; à luz do dia, tornam-se risíveis aquelas coisas que nos atormentam durante a noite. “Formas terríveis de se ver, a morte e o sofrimento!” Nosso caro Virgílio não afirmou que são terríveis em si, mas sim terríveis de se ver, ou seja, o são apenas na aparência e não na realidade.

O que há nelas, pergunto, de tão terrível para ser difundido pela plebe? Diga-me, então, meu caro Lucílio, por que razão um homem digno de assim ser chamado teme o sofrimento, e um mortal, a morte? Encontro se­guidamente pessoas que acham impossível fazer aquilo para o qual se julgam incapazes e afirmam que nossos preceitos ultrapassam a capacidade humana.

Ah, tenho deles um a opinião melhor, pois podem tanto quanto os outros, apenas não tentam realizar. En­fim, quem não conseguiu após tentar? Quem não achou mais fácil na hora de cumprir a tarefa? As dificuldades não são a causa de nossa falta de audácia; é nossa falta de audácia que cria a dificuldade.

Se desejas um exemplo, dou-te o de Sócrates, um velho de grande resistência, perseguido por todas as di­ficuldades e, no entanto, invencível, seja pela pobreza, cujo fardo familiar tornava mais pesado, seja pelos rigo­res da guerra e mesmo pelos domésticos. Sua mulher? Uma megera de língua viperina. Seus filhos? Resistentes a todo ensinamento, mais parecidos com a mãe do que com o pai. Eis aqui um pouco de sua vida: uma guerra, uma tirania e uma liberdade mais cruel do que ambas.

Os combates duraram vinte e sete anos; termi­nadas as hostilidades, a cidade ateniense foi entregue a trinta tiranos, a maior parte deles inimigos do filó­sofo. O golpe final foi sua condenação, seguida de um processo no qual pesaram sobre ele sérias acusações graves. A cusavam-no de violar a religião, de corromper a juventude, levando-os a atingir os deuses, os pais de família e a República. Por fim, a prisão, o veneno. Tudo isso perturbava muito pouco a alma de Sócrates, tanto que seu semblante permanecia impassível. Percebe que elogio admirável e único! Até o seu fim, ninguém viu Sócrates mais alegre ou mais triste. Ele permaneceu constante frente a um destino tão inconstante.

Queres um outro exemplo? Eis um mais recente, o de Catão, o Jovem, contra o qual o destino se mostrou mais terrível e violento. Porém, resistiu a tudo sempre e, próximo da morte, demonstrou que um homem de coragem, embora perseguido pelo destino, sabe tanto viver como morrer. Toda a sua vida se desenrolou du­rante as guerras civis, ou em um período em que tais guerras já estavam iniciando. Dele pode-se dizer, assim com o de Sócrates, que manteve a liberdade na escravi­dão, a menos que julgues que Pompeu e Crasso fossem aliados na defesa da liberdade.

Ninguém viu Catão mudar enquanto a Repúbli­ca passava por alterações constantes. Ele se conservou o mesmo em todos os atos: como pretor, quando ex­pulso do cargo; como acusador, na província, diante da plebe; no exército, diante da morte. Resumindo, na crise pela qual a República passava, de um lado César, com o apoio de dez legiões, com as melhores tropas e com o apoio estrangeiro; de outro, Pompeu, totalmen­te só, mas forte o suficiente para encarar o que viesse. Enquanto alguns se voltavam para César e outros para Pompeu, Catão, sozinho, forma um partido - aquele da República.

Desejas imaginar esta época com o um quadro? Verás, então, de um lado a plebe e as massas popula­res prontas para a revolta; de outro, a aristocracia e a ordem dos cavaleiros - tudo o que havia de honrado e distinto - e, entre eles, os dois isolados: a República e Catão. Grande será a tua admiração ao ver “Agamênon e Príamo, e Aquiles furioso com ambos”A Assim como Aquiles, ele condena a ambos e procura desarmá-los.

Eis o julgamento que ele fazia dos dois: se César vencer, o caminho será a morte; se for Pompeu o vito­rioso, o exílio. O que tinha ele a temer se, vencendo ou sendo vencido, ele infligia a si os castigos de inimigos mais implacáveis? Dessa forma, por seu próprio decre­to, morreu.

Como vês, é possível suportar as piores fadigas. Ele conduziu a pé suas tropas pelos desertos da Áfri­ca. Podes ver que é possível suportar a sede, pois, sobre colinas ardentes, sem comboio, trazendo restos de um exército vencido, sofreu a falta de água, sempre sob sua couraça, e, quando achavam o que beber, sempre era o último a fazê-lo. Como podes perceber, é possível desprezar o poder e as ofensas. No dia em que fracassou na sua eleição, foi jogar péla na praça dos comícios. Pode-se deixar de temer os poderosos: ele provocou César e Pompeu ao mesmo tempo, em uma época na qual ninguém ousava desagradar a um a não ser que estives­ se buscando os favores de outro. Como vês, podem-se desprezar a morte e o exílio. Ele se impôs o exílio, a morte e, entre os dois, a guerra.

Podemos, então, demonstrar a mesma coragem contra as adversidades; basta ficarmos livres do jugo. Mas, antes de tudo, devemos abandonar os prazeres, aqueles que nos enfraquecem e nos levam a exigir de­ mais do destino. A seguir, deixemos de lado a riqueza que nos escraviza, larguemos o ouro, a prata e tudo o mais que cobre as casas dos que se dizem felizes. A li­berdade não nos é dada de graça. Se realmente a queres, o resto deve contar pouco. Passa bem!*

Filosofia - Filosofia Clássica
Estoicismo - Cartas, As cartas de Sêneca
9/19/2021 4:46:56 PM | Por Lucius Annaeus Seneca
Sêneca saúda o amigo Lucílio: Dos benefícios da natureza

Cada vez que faço uma descoberta, não espero que me digas: “é nossa”; eu mesmo o digo. Indagas qual foi a descoberta? Abre a bolsa, é uma situação de muito lucro. Vou ensinar-te como ficar rico de forma rápida. Ficaste interessado! Não é para menos: vou, rapida­mente, conduzir-te às supremas riquezas. Será necessá­rio, no entanto, que tenhas um fiador. Para que faças o negócio, precisarás de um empréstimo, mas não quero que chegues a isso através de um intermediário, nem que as tuas dívidas sejam alardeadas pelos agiotas.

Tenho pronto para ti um credor, aquele que Ca­tão recomenda, ou seja, toma emprestado de ti pró­prio. Por menos que seja, suficiente será se aquilo de que necessitamos for pedido a nós mesmos. Não há, com certeza, nenhuma diferença, Lucílio, entre não de­sejar e possuir. Nos dois casos, o resultado é idêntico, isto é, não há sofrimento. Também não te recomendo que negues algo à natureza - ela é contumaz, não pode ser vencida e reclama o que lhe pertence - , mas que saibas que o excedente na natureza, longe de ser indis­pensável, apenas está a nosso dispor como algo a mais, não imprescindível.

Tenho fome: é preciso comer. Seja o pão feito com trigo de qualidade ou não, isso não importa. O que a natureza quer não é o deleite, e sim o estômago satis­feito. Tenho sede: que a água seja do reservatório mais próximo, ou seja aquela colocada entre blocos de neve para refrescar não interessa à natureza. O importante é matar a sede, esteja a água em copo de ouro, de cristal, de mirra*, de Tíbur ou na concha da mão.

Em tudo, leva em conta a finalidade das coisas, deixando de lado, portanto, o supérfluo. A fome castiga-me, pego o que está mais à mão; ela própria dará sabor ao que eu colher. O faminto não se ofende com nada.

Queres saber o que me causou prazer? Um dito que considero admirável: “O sábio é um pesquisador incansável das coisas naturais”. Fico a imaginar tua resposta: “Tu me presenteias com um prato vazio. O que isso quer dizer? Já estava pronto a abrir os cofres; já imaginava em que mares iria negociar; que impostos me beneficiariam; que mercadorias poderia exportar. É decepcionante: pregar a pobreza depois de haver prometido imensas riquezas!” Então, crês pobre aquele a quem nada falta? “Isso ele deve”, dizes tu, “a si pró­prio e à sua paciência, não à sorte.” Assim, não acredi­tas que ele seja rico apenas porque suas riquezas não podem acabar?

O que preferes: ter muito ou ter apenas o suficien­te? Aquele que tem muito deseja ter mais, o que prova não ser suficiente o que já possui. Aquele que possui o suficiente obteve o que o rico jamais poderá atingir, ou seja, o fim de seus desejos. Não julgas isso riqueza porque jamais alguém foi condenado por tal? Porque ninguém foi envenenado pelo filho ou pela esposa? Por que é tudo, na guerra e na paz, a tranqüilidade? Porque não traz perigo nem dá trabalho para administrar?

“Porém, é bem pouco não conhecer o frio, a fome ou a sede.” Júpiter mais não tem. Jamais é pouco o suficiente, jamais é muito o que não satisfaz. Alexandre, após vencer Dario e os persas, continua pobre. Estou enganado? Continua a buscar novas conquistas, a aventurar-se por mares desconhecidos, a enviar ao oceano frotas nunca vistas, pode-se dizer, a romper todas as fronteiras. Aquilo que é suficiente para a natureza não o é para esse homem!

Encontrou-se alguém que desejou mais após ter tudo - tão grande é a cegueira das mentes e o esqueci­mento que cada um tem de suas origens quando come­ça a enriquecer. Este homem, que há pouco era senhor de um pequeno território e ainda não reconhecido, ao atingir os confins da terra, se entristece por ser obriga­do a voltar através de um mundo que já lhe pertence.

O dinheiro nunca tornou alguém rico; ao contrá­rio, sempre causou mais cobiça. Queres saber por quê? É porque quem mais tem mais quer ter. Em resumo, traz até mim um homem que consideres do mesmo ní­vel de um Crasso ou de um Licínio; pede que mostre seus livros de contabilidade, que conte tudo o que pos­sui e ainda espera possuir. Este, na minha opinião, é um homem pobre; na tua, quem sabe, poderá vir a ser.

Mas aquele que se sujeitou às exigências da natu­reza está livre da sensação de pobreza e, além disso, não a teme. No entanto, para que saibas como é difícil res­tringir os próprios bens ao mínimo indispensável, esse a quem impusemos uma série de limitações, e a quem chamas de pobre, esse homem possui algo de sobra.

As riquezas, porém, deslumbram o povo, e uma casa é sempre atraída pelos olhares quando gasta muito ou é coberta, do chão ao teto, de muito ouro, ou, ainda, se depende de um grande número de escravos elegantes e bem-apresentados. A felicidade está, assim, posta às vistas do público; contudo, aquele a quem privamos do olhar do povo e do poder da fortuna possui a riqueza interior.

Na verdade, para aqueles a quem uma pobreza la­boriosa recebe o nome de riqueza, esses têm a riqueza tal como dizemos que alguém tem febre, quando é a fe­bre que nos tem. Pode-se dizer então, de forma inversa, “a febre apoderou-se dele”. Da mesma maneira, deve-se dizer “as riquezas apoderaram-se dele”. Eu tenho apenas um conselho a te dar (e que nunca repetirei o suficiente): avalia todas as coisas pelos desejos naturais, aqueles que podem ser satisfeitos de graça ou por pou­co preço; jamais confunde os vícios com os desejos.

Desejas saber em que mesa, em que prataria te será servida a refeição, se os escravos estarão bem-apresentáveis? À natureza nada mais importa do que o alimento. “Quando a sede te queima a garganta, pedes taça de ouro? E, quando tens fome, rejeitas tudo o que não seja pavão ou linguado?”*

A fome não é pretensiosa, ela quer apenas ser aplacada, não importando com o quê. Esses luxos são preocupações dos glutões, ou seja, como voltarão a se esfomear depois de estarem fartos; como voltarão a in­char a barriga mais do que enchê-la; como voltarão a provocar a sede após ter sido saciada com a primeira bebida. Horácio diz, de forma primorosa, que, para a sede, não importa o copo ou a elegância da mão que a sacia. Em verdade, se te interessa a cabeleira daquele que vai te servir, ou o brilho da taça que te é oferecida, não estás com sede.

Dentre outros benefícios, a natureza dotou-nos do principal, qual seja, livrar o fastio da necessidade.

O supérfluo admite opção: “Isto é pouco conveniente; aquilo não merece ser celebrado; este outro me fere os olhos.” O criador, ao ditar as leis da vida, desejou que mantivéssemos a opção para a nossa sobrevivência, e não para nos corromper. No primeiro caso, tudo estará à mão e de modo fácil; no segundo, as benesses serão obtidas à custa de sofrimento e de trabalho intenso.

Façamos uso, então, desse benefício da natureza, considerado como o melhor, e não esqueçamos que, se ela merece nosso reconhecimento, é, antes de tudo, porque nos permite consumir sem dificuldade aquilo que a necessidade nos faz desejar. Passa bem!

Filosofia - Filosofia Clássica
Filosofia clássica - Tópicos gerais, 
9/19/2021 4:36:56 PM | Por Giovanni Reale
As formas da vida espiritual grega que prepararam o nascimento da filosofia

Antes do nascimento da filosofia, os educadores incontrastados dos gregos foram os poetas, sobretudo Homero, cujos poemas foram, como se disse com justiça, quase a Bíblia dos gregos, no sentido de que a primitiva grecidade buscou alimento espiritual essencial e prioritariamente nos poemas homéricos, dos quais ex­traiu modelos de vida, matéria de reflexão, estímulo à fantasia e, portanto, todos os elementos essenciais à própria educação e for­mação espiritual.

Ora, os poemas homéricos, como há tempo se notou, contêm algumas dimensões que os diferenciam nitidamente de todos os poe­mas que estão nas origens dos vários povos e já manifestam algumas das características do espírito grego que criaram a filosofia.

Em primeiro lugar, foi bem observado que os dois poemas, construídos por uma imaginação tão rica e variada, transbordantes de maravilha, de situações e eventos fantásticos, não caem, senão raras vezes, na descrição do monstruoso e do disforme, como em geral acontece nas primeiras manifestações artísticas dos povos primitivos: a imaginação homérica já se estrutura segundo o sen­tido da harmonia, da eurritmia, da proporção, do limite e da medida, que se revelará, depois, uma constante da filosofia grega, a qual erigirá a medida e o limite até mesmo em princípios metafisicamente determinantes.

Ademais, observou-se também que, na poesia de Homero, a arte da motivação é uma constante, no sentido de que o poeta não narra só uma cadeia de fatos, mas busca, embora em nível fantástico-poético, as suas razões. Homero não conhece, escreve justamente Jaeger, “mera aceitação passiva de tradições nem simples narração de fatos, mas exclusivamente desenvolvimento interiormente necessário da ação de fase em fase, nexo indissolúvel entre causa e efeito [...]. A ação não se distende como uma fraca sucessão temporal: vale para ela, em [19] todos os pontos, o princípio de razão suficiente, cada evento recebe rigorosa motivação psicológica”1. Este modo poético de ver as coisas é exatamente o antecedente da pesquisa filosófica da “causa”, do “princípio”, do “porquê” das coisas.

E uma terceira característica da épica homérica prefigura a filo­sofia dos gregos: em ambos “a realidade é apresentada na sua to­talidade: o pensamento filosófico a apresenta de forma racional, en­quanto a épica a mostra de forma mítica. A ‘posição do homem no universo’, tema clássico da filosofia grega, está também presente a todo momento em Homero”2.

Enfim, os poemas homéricos foram decisivos para a fixação de determinada concepção dos deuses e do Divino, e também para a fixa­ção de alguns tipos fundamentais de vida e de caracteres éticos dos homens, os quais se tomaram verdadeiros paradigmas. Mas falaremos separadamente da importância deste fator porque, sobre este ponto, o discurso nos leva além de Homero e se estende a toda a grecidade.

Os deuses da religião pública e sua relação com a filosofia

Estudiosos afirmaram em várias ocasiões que entre religião e filosofia existem laços estruturais (Hegel dirá até mesmo que a re­ligião exprime pela via representativa a mesma verdade que a filo­sofia exprime pela via conceitual): e isso é verdade, seja quando a filosofia subsume determinados conteúdos da religião, seja, também, quando a filosofia tenta contestar a religião (neste último caso, a função contestatária permanece sempre alimentada e, portanto, con­dicionada, pelo termo contestado). Pois bem, se isso é verdade em geral, o foi de modo paradigmático entre os gregos.

Mas quando se fala de religião grega é preciso operar uma nítida distinção entre religião pública, que tem o seu mais belo modelo em Homero, e religião dos mistérios: entre a primeira e a segunda há [20] uma divisão claríssima: em mais de um aspecto, o espírito que anima a religião dos mistérios é negador do espírito que anima a religião pública. Ora, o historiador da filosofia que se detenha no primeiro aspecto da religião dos gregos, veta a si mesmo a com­preensão de todo um importantíssimo filão da especulação, que vai dos pré-socráticos a Platão e aos neoplatônicos, e falseia, por­tanto, fatalmente a perspectiva de conjunto. E isso aconteceu jus­tamente com Zeller e com o numeroso grupo dos seus seguidores (e, portanto, com o grosso da manualística que por longo tempo reafirmou a interpretação de Zeller).

O estudioso alemão soube indicar bem exatamente os nexos entre religião pública grega e filosofia grega (e, sobre este ponto nós reproduziremos as suas preciosas observações, que continuam paradigmáticas); mas depois caiu numa visão totalmente unilate­ral, desconhecendo a incidência dos mistérios, e em particular do orfismo, com as absurdas conseqüências que apontaremos.

Mas, por enquanto, vejamos a natureza e a importância da religião pública dos gregos e em que sentido e medida ela influiu sobre a filosofia. Pode-se dizer que, para o homem homérico e para o homem grego filho da tradição homérica, tudo é divino, no sentido de que tudo o que acontece é obra dos deuses. Todos os fenômenos naturais são promovidos por numes: os trovões e os raios são lançados por Zeus do alto do Olimpo, as ondas do mar são levantadas pelo tridente de Posseidon, o sol é car­regado pelo áureo carro de Apolo, e assim por diante. Mas também os fenômenos da vida interior do homem grego individual assim como a sua vida social, os destinos da sua cidade e das suas guerras são concebidos como essencialmente ligados aos deuses e condicionados por eles.

Mas quem são esses deuses? São — como há tempo se reco­nheceu acertadamente — forças naturais diluídas em formas hu­manas idealizadas, são aspectos do homem sublimados, hipostasiados; são forças do homem cristalizadas em belíssimas figuras. Em suma: os deuses da religião natural grega são homens ampli­ficados e idealizados', são, portanto, quantitativamente superiores a nós, mas não qualitativamente diferentes. Por isso a religião pública grega é certamente uma forma de religião naturalista. E tão naturalista que, como justamente observou Walter Otto, “a santidade aí não pode encontrar lugar”3, uma vez que pela sua [22] própria essência os deuses não querem, nem poderiam, elevar o homem acima de si mesmo. De fato, se a natureza dos deuses e dos homens, como dissemos, é idêntica e se diferencia somente por grau, o homem vê a si mesmo nos deuses, e, para elevar-se a eles, não deve de modo algum entrar em conflito com ele mes­mo, não deve comprimir a própria natureza ou aspectos da pró­pria natureza, não deve em nenhum sentido morrer em parte a si mesmo; deve simplesmente ser si mesmo.

Portanto, como bem diz Zeller, o que a Divindade exige do homem “não é de modo algum uma transformação interior da sua maneira de pensar, não uma luta com as suas tendências naturais e os seus impulsos; porque, ao contrário, tudo isso, que para o homem é natural, é legítimo também para a divindade; o homem mais divino é aquele que desenvolve do modo mais vigoroso as suas forças humanas; e o cumprimento do seu dever religioso consiste essencialmente nisso: que o homem faça, em honra da divindade, o que é conforme com a sua natureza”4.

Assim como foi naturalista a religião dos gregos, também “[...] a sua mais antiga filosofia foi naturalista; e mesmo quando a ética conquistou a preeminência [...], a sua divisa continuou sendo a conformidade com a natureza”5.

Isso é indubitavelmente verdadeiro e bem-estabelecido, mas ilumina apenas uma face da verdade.

Quando Tales disser que “tudo está cheio de deuses”, mover-se- á, sem dúvida, em análogo horizonte naturalista: os deuses de Tales serão deuses derivados do princípio natural de todas as coisas (água). Mas quando Pitágoras falar de transmigração das almas, Heráclito, de um destino ultraterreno das almas e Empédocles explicar a via da purificação, então o naturalismo será profundamente lesionado, e tal lesão não será compreensível senão remetendo-se à religião dos mistérios, particularmente ao orfismo.

Mas antes de dizer isso, devemos ilustrar outra característica essencial da religião grega, determinante para a possibilidade do nascimento da reflexão filosófica. [23] Os gregos não possuíam livros tidos como sagrados ou fruto de divina revelação. Eles não tinham uma dogmática teológica fixa e imodificável. (Nessa matéria, as fontes principais eram os poemas homéricos e a Teogonia de Hesíodo.) Conseqüentemente, na Grécia não podia haver sequer uma casta sacerdotal que custodiasse os dog­mas. (Os sacerdotes na Grécia tinham um poder muito limitado e uma escassa relevância, uma vez que, além de não terem a tarefa de custodiar e comunicar um dogma, não tinham nem mesmo a exclusividade de oficiar os sacrifícios.)

Ora, a falta de um dogma e de guardiães dele deixou a mais ampla liberdade à especulação filosófica, a qual não encontrou obs­táculos de caráter religioso semelhantes aos que se encontrariam entre os povos orientais, dificilmente superáveis. Justamente por isso os estudiosos destacam essa fortunosa circunstância histórica na qual se encontraram os gregos, única na antigüidade, e cujo alcance é de valor verdadeiramente inestimável.

A religião dos mistérios: incidência do orfismo sobre a constituição da problemática da filosofia antiga

O fato de uma religião dos mistérios ter florescido na Grécia constitui claro sintoma de que para muitos não bastava a religião oficial, ou seja, muitos não encontravam nela satisfação adequada para o autêntico sentido religioso.

Não nos interessa traçar aqui, nem mesmo sumariamente, uma his­tória das religiões mistéricas, dado que só o orfismo incidiu sobre a problemática filosófica de modo determinante. Os órficos consideravam como fundador do seu movimento o mítico poeta da Trácia, Orfeu (que, ao contrário do tipo de vida encarnado pelos heróis homéricos, teria cantado um tipo mais interior e espiritual de vida) e dele derivam o nome. Não sabemos a origem do movimento e como ele se difundiu na Grécia. Heródoto o faz derivar do Egito6; o que é impossível, porque os documentos egípcios não apresentam traços de doutrinas órficas e, ade­mais, o cuidado dos corpos e o seu embalsamamento contrasta nitidamente com o espírito do orfismo, que despreza o corpo como cárcere e grilhão da alma. O movimento é posterior aos poemas homéricos (que não apresentam nenhum traço dele) e a Hesíodo. É certo o seu flores­cimento ou reflorescimento no século VI a.e.c. O núcleo fundamental das crenças ensinadas pelo orfismo, despojadas das várias incrustações e amplificações que aos poucos se lhe acrescentaram, consiste nas seguin­tes proposições:

  1. No homem vive um princípio divino, um demônio, caído num corpo por causa de uma culpa originária.
  2. Esse demônio, preexistente ao corpo, é imortal e, portanto, não morre com o corpo, mas é destinado a reencarnar-se sempre de novo em corpos sucessivos através de uma série de renasci­mentos para expiar a sua culpa.
  3. A vida órfica, com as suas práticas de purificação, é a única que pode pôr fim ao ciclo das reencarnações.
  4. Por conseqüência, quem vive a vida órfica (os iniciados) goza, depois da morte, do merecido prêmio no além (a liberta­ção); para os não-iniciados há uma punição.

Note-se: muitos reconheceram que a doutrina da transmigra­ção das almas veio aos filósofos justamente através dos órficos. Porém nem todos tiraram as conseqüências que esse reconheci­mento comportava, as quais são da máxima importância.

Com o orfismo nasce a primeira concepção dualista de alma (=demônio) e corpo (=lugar de expiação da alma): pela primeira vez o homem vê contrapor-se em si dois princípios em luta um contra o outro, justamente porque o corpo é visto como cárcere e lugar de punição do demônio. Enfraquece-se a visão naturalista da qual fala­mos no parágrafo anterior e, assim, o homem começa a compreender que nem todas as tendências que percebe em si são boas, que algu­mas, ao contrário, devem ser reprimidas e comprimidas, e que é necessário purificar o elemento divino nele existente do elemento corpóreo e, portanto, mortificar o corpo.

Com isso estão lançadas as premissas de uma revolução de toda a visão da vida ligada à religião pública: a virtude dos heróis homéricos, a areté tradicional, deixa de ser a verdadeira virtude; a vida passa a ser vista segundo uma dimensão totalmente nova.

Ora, sem o orfismo não conseguiremos explicar Pitágoras, Heráclito, Empédocles, e, naturalmente, Platão e tudo o que dele deriva. E [24] quando Zeller objeta que as crenças órficas, nesses filósofos, simples­mente se acrescentam às suas teorias científicas e que nestas “ninguém poderia encontrar uma lacuna se aquela [a fé órfica] faltasse”7, demons­tra simplesmente que se põe contra a história. De fato, justamente na Sicília e na Magna Grécia, onde o orfismo foi particularmente florescen­te, as escolas filosóficas assumiram características diferentes com relação às escolas que floresceram na Asia Menor, e levantaram uma pro­blemática em parte diferente e criaram até mesmo uma têmpera teórica diferente. E se é verdade que os filósofos itálicos não saberão operar uma perfeita síntese entre doutrinas científicas e fé órfica, é igualmente verdade que se tirássemos daqueles as doutrinas órficas, perderíamos exatamente o que, justapondo-se num primeiro momento às dou­trinas naturalistas, levará, num segundo momento, à sua superação. E quando Zeller escreve ainda ulteriormente: “Só em Platão a fé na imor­talidade é fundada filosoficamente, mas dele dificilmente se poderá pensar que tal crença ser-lhe-ia impossível sem os mitos que por ela opera”8; também nesse caso Zeller se põe contra a verdade histórica, porque de fato é verificável que Platão começa a falar de imortalidade quando começa a falar dos mitos órficos. E será justamente a solicitação da visão órfica que levará Platão a empreender sua “segunda navegação”, vale dizer, a via que o levará a descobrir o mundo do supra-sensível.

As condições políticas, sociais e econômicas que favoreceram o nascimento da filosofia entre os gregos

Muito insistiram os historiadores na peculiar posição de liberda­de que distingue o grego dos povos orientais. O oriental estava preso a uma cega obediência ao poder religioso e ao poder político. No que diz respeito à religião, já vimos de que liberdade o grego gozava. Quanto às condições políticas, o discurso é mais complexo; todavia pode-se dizer que o grego gozou, também nesse campo, de uma situação de privilégio. Com a criação da polis, o grego não sentiu mais nenhuma antítese entre o indivíduo e o Estado e nenhum limite [25] à própria liberdade e, ao contrário, foi levado a compreender-se não acidentalmente, mas essencialmente como cidadão de determinado Estado, de determinada polis. O Estado se tornou e se manteve até a era helenística como o horizonte do homem grego e, portanto, os fins do Estado foram sentidos pelos cidadãos individuais como os seus próprios fins, o bem do Estado como o próprio bem, a grandeza do próprio Estado como a própria grandeza, a liberdade do próprio Estado como a própria liberdade.

Mas, concretamente, dois são os fatos políticos “que dominam sobre os outros”9, como bem o nota Zeller, no progresso da civili­zação grega anterior ao surgimento da filosofia:

  1. o nascimento de ordenamentos republicanos e
  2. a expansão dos gregos para o Orien­te e para o Ocidente com a formação das colônias. Esses dois fatos foram decisivos para o surgimento da filosofia.

Quanto ao primeiro ponto, Zeller adverte: “Nos esforços e nas lutas dessas revoluções políticas [que levaram os gregos das velhas formas aristocráticas de governo às formas republicanas e democrá­ticas] todas as forças deviam ser despertadas e exercitadas; a vida pública abria passagem à ciência, e o sentimento da jovem liberdade devia dar ao espírito do povo grego um impulso, do qual não podia ficar de fora a atividade científica. Se, pois, contemporaneamente à transformação das condições políticas, e em meio a vivas disputas, foi posto o fundamento do florescimento artístico e científico da Grécia, não se pode desconhecer a conexão dos dois fenômenos; pelo contrário, a cultura é, por isso mesmo, entre os gregos, plena­mente e da maneira mais aguda, o que ela será sempre em qualquer vida sadia de um povo: ao mesmo tempo, fruto e condição da liber­dade”10.

Mas deve-se notar um fato, que confirma isso da melhor manei­ra (e com isso nos ligamos ao segundo dos fenômenos da história grega acima recordados): a filosofia nasceu antes nas colônias que na mãe pátria; nasceu antes nas colônias do Oriente da Ásia Menor, em seguida nas colônias do Ocidente da Itália meridional, só mais tarde refluindo para a mãe pátria.

Por que isso aconteceu? Porque, como há tempo se notou, as colônias puderam, com a sua operosidade e com o seu comércio, alcançar o bem-estar e, portanto, a cultura. E por causa de certa mobilidade que a distância da mãe pátria lhes deixava, puderam também dar-se livres constituições antes daquela.

Foram as condições socioeconômicas mais favoráveis das colô­nias que permitiram o nascimento e o florescimento nelas da filoso­fia, a qual, depois, tendo passado à mãe pátria, alcançou os mais altos cimos, não em Esparta ou noutras cidades, mas justamente em Atenas, isto é, na cidade onde existiu, como o próprio Platão reco­nheceu, a maior liberdade da qual os gregos gozaram.

Filosofia - Filosofia Clássica
Filosofia clássica - Tópicos gerais, 
9/19/2021 4:32:14 PM | Por Giovanni Reale
O nascimento da filosofia na Grécia

A “filosofia”, seja como indicação semântica (isto é, como termo lexical), seja como conteúdo conceitual, é uma criação peculiar dos gregos. De fato, se para todos os outros componentes da civilização grega encontra-se idêntico correlativo junto a outros povos do Oriente — os quais alcançaram, antes dos gregos, níveis de progresso muito elevados —, não se encontra, ao invés, idêntico correlativo da filoso­fia ou, pelo menos, algo assimilável ao que os gregos e, posterior­mente, com os gregos, todos os ocidentais, chamaram de “filosofia”.

Crenças e cultos religiosos, manifestações artísticas de natureza diversa, conhecimentos e habilidades técnicas de diferentes espécies, instituições políticas, organizações militares existiam seja nos povos orientais que chegaram à civilização antes dos gregos, seja entre os gregos, e, conseqüentemente, é possível fazer confrontos (embora den­tro de certos limites) e estabelecer se e em que medida os gregos, nesses âmbitos, podem ser ou são efetivamente devedores dos povos do Oriente, e se pode estabelecer em que medida os gregos superaram os povos do Oriente nos vários domínios. No que diz respeito à filosofia, porém, encontramo-nos diante de um fenômeno tão novo que, como dissemos, não só não há entre os povos orientais idêntico correlativo, mas nem mesmo algo que analogicamente comporte comparação com a filosofia dos gregos ou que a prefigure de modo inequívoco.

Destacar isso significa, nem mais nem menos, reconhecer que, nesse campo, os gregos foram criadores, ou seja, que deram à civiliza­ção algo que ela não tinha e que, como veremos, revelar-se-á de alcan­ce revolucionário tal, que mudará o rosto da própria civilização. Por isso, se a superioridade dos gregos com relação aos povos orientais em outros âmbitos é — para dizer com uma imagem simplificadora — de natureza meramente quantitativa, no que se refere à filosofia a sua superioridade é de natureza qualitativa. E quem não tenha bem presen­te isso não conseguirá compreender por que a civilização de todo o Ocidente tomou, sob o impulso dos gregos, uma direção completamente [11] diferente dos rumos da civilização do Oriente; e não compreenderá por que a ciência só pôde nascer no Ocidente e não no Oriente. Ade­mais, não compreenderá por que os orientais, quando quiseram bene­ficiar-se da ciência ocidental e dos seus resultados, tiveram de apro­priar-se, em larga medida, também das categorias ou pelo menos de algumas categorias essenciais da lógica ocidental. Com efeito, foi pre­cisamente a filosofia a criar essas categorias e essa lógica, ou seja, um modo de pensar totalmente novo, e foi a filosofia a gerar, em função dessas categorias, a própria ciência e, indiretamente, algumas das prin­cipais conseqüências da ciência. Reconhecer isso significa reconhecer aos gregos o mérito de terem trazido uma contribuição verdadeiramente excepcional à história da civilização; por isso devemos justificar de maneira crítica o que dissemos e aduzir provas bem circunstanciadas.

Inconsistência da tese de uma presumível derivação da filosofia do Oriente

Na verdade, não faltaram — seja da parte de alguns dos antigos, seja da parte de modernos historiadores da filosofia, especialmente na era romântica, e da parte de ilustres orientalistas — tentativas de sus­tentar a tese de uma derivação da filosofia grega do Oriente, com base em observações de gênero diverso e de variado alcance; mas nenhum deles teve sucesso, e a crítica mais rigorosa, já a partir da segunda metade do século XIX, levantou uma série de contra-argumentos que, hoje em dia, podem ser considerados objetivamente incontestáveis. [12]

Examinemos, antes de tudo, como surgiu na antigüidade a idéia de uma presumível origem oriental da filosofia grega. Em primeiro lugar, deve-se notar que os primeiros a sustentar a derivação oriental da filo­sofia grega foram justamente os orientais, movidos por intenções que bem poderíamos chamar de nacionalistas: visavam tirar dos gregos e reivindicar para o próprio povo o particularíssimo título de glória que foi a descoberta da mais elevada forma de saber. De um lado, foram os sacerdotes egípcios que, no tempo dos Ptolomeus, ao travar conheci­mento com a especulação grega, pretenderam sustentar ser ela um de­rivado da sabedoria egípcia precedente. De outro lado, foram os he­breus de Alexandria, que absorveram a cultura helenística, a pretender sustentar uma derivação da filosofia grega das doutrinas de Moisés e dos profetas contidas na Bíblia. Mais tarde, os próprios gregos deram crédito a essas teses. O neopitagórico Numênio escreverá que Platão não é senão um “Moisés aticizante” e muitos outros sustentarão teses análogas, particularmente os neoplatônicos da última fase, ao defender a tese de que as doutrinas dos filósofos gregos não seriam mais que elaborações de doutrinas nascidas no Oriente e recebidas originalmente pelos sacerdotes orientais por divina inspiração dos deuses.
Mas essas afirmações não possuem qualquer base histórica, pelas seguintes razões:

  1. Na época clássica, nenhum dos gregos, nem os historiadores nem os filósofos, faz o mínimo aceno a uma presumível derivação da filosofia do Oriente. Heródoto (que faz derivar o orfismo, contra toda evidência, dos egípcios) não diz nada; Platão, mesmo admiran­do os egípcios, sublinha o seu espírito prático e antiespeculativo, em contraste com o espírito teórico dos gregos, e Aristóteles atribui aos egípcios unicamente a descoberta das matemáticas.
  2. A tese da origem oriental da filosofia encontrou crédito na Grécia somente a partir do momento em que a filosofia perdeu seu vigor especulativo e a confiança em si mesma e buscava não mais na razão, mas numa revelação superior, a própria fundação e justificação. [13]
  3. De outro lado, a filosofia grega, tendo-se tornado na última fase uma doutrina mística e ascética, podia facilmente encontrar analogias com certas doutrinas orientais anteriores e, portanto, crer na sua dependência delas.
  4. Por sua vez, egípcios e hebreus puderam encontrar coincidên­cias entre a sua “sabedoria” e a filosofia grega somente com a interpretação alegórica bastante arbitrária dos mitos egípcios ou das nar­rações bíblicas.

E por que os modernos afirmaram poder defender a tese das ori­gens orientais da filosofia? Em certa medida, porque acolheram como válidas as afirmações dos antigos, das quais falamos acima, sem dar-se conta da sua falta de credibilidade, não levando em conta o que acima afirmamos. Porém, de modo mais genérico, porque acreditaram descobrir analogias de conteúdo e tangências ideais entre determinadas doutrinas dos povos orientais e certas doutrinas dos filósofos gregos. Seguindo tal via, os estudiosos se deleitaram em inferir fantasiosas conclusões, que, com Gladisch, chegaram ao limite. Este estudioso alemão (que recordamos porque o paroxismo ao qual levou a tese sobre a qual refletimos representa de modo paradigmático a falta de criticidade à qual se chega seguindo certos critérios) pretendeu até mesmo poder concluir, do exame das concordâncias internas, que os cinco principais sistemas pré-socráticos derivavam, com poucas variações, dos cinco principais povos orientais, a saber:

  • o sistema pitagórico da sabedoria chinesa;
  • o sistema eleata da sabedoria indiana;
  • o siste­ma heraclitiano da sabedoria persa;
  • o sistema empedocliano da sa­bedoria  egípcia e
  • a filosofia de Anaxágoras da sabedoria judaica.

Concordamos que, levadas a tais extremos, essas teses se tornam fantasias romanescas; mas permanece o fato de que, embora atenu­adas, circunstanciadas e nuançadas, mesmo perdendo as característi­cas fantasiosas, permanecem igualmente puras conjeturas que, ade­mais, não apresentam fundamento histórico e têm contra si os se­guintes dados factuais bem precisos, que as esvaziam:

  1. É historicamente demonstrado que os povos orientais com os quais os gregos tiveram contato possuíam convicções religiosas, mitos teológi­cos e cosmológicos, mas não possuíam uma ciência filosófica no verda­deiro sentido da palavra; possuíam, nem mais nem menos, aquilo que os [14] próprios gregos possuíam antes de criar a filosofia: as descobertas arque­ológicas vindas à luz não autorizam de modo algum ir além disso.
  2. Em segundo lugar, mesmo dado (mas não concedido) que os povos orientais com os quais os gregos entraram em contato tivessem doutrinas filosóficas, a possibilidade da sua transferência para a Grécia não seria facilmente explicável. Escreveu justamente Zeller: “Quando se considere quão estreitamente os conceitos filosóficos, especialmente na infância da filosofia, estão ligados às expressões lingüísticas; quan­do se recorde quão escasso era o conhecimento de línguas estrangeiras entre os gregos, e de outro lado quão pouco os intérpretes, normalmen­te preparados só para relações comerciais e para a explicação das curiosidades, seriam capazes de levar à compreensão de um ensinamento filosófico; quando se acrescente que da utilização de escritos orientais por parte dos filósofos gregos e de traduções de tais escritos nada nos é dito, nem de longe, que mereça fé; quando se pergunte, ademais, por que meios as doutrinas dos hindus e de outros povos da Ásia oriental teriam podido, antes de Alexandre, chegar à Grécia: então se dará conta das proporções da dificuldade da questão”. E note-se que não vale a objeção de que os gregos, apesar disso, puderam extrair dos orientais certas crenças e cultos religiosos e tam­bém certas artes pelo menos no nível empírico: de fato, tais coisas são bem mais fáceis de comunicar à medida que, diferentemente da filoso­fia, como sublinha Burnet, não exigem nem uma linguagem abstrata nem o veículo de homens instruídos, sendo mais que suficiente a sim­ples imitação. Escreve Burnet: “Não conhecemos, na época da qual nos ocupamos, nenhum grego que soubesse a língua oriental bastante bem para ler um livro egípcio ou mesmo para ouvir um discurso de um sacerdote egípcio, e é só em época muito posterior que ouvimos falar de mestres orientais que escrevem ou falam grego”.
  3. Em terceiro lugar (e parece-nos que isso não foi até agora adequadamente observado), muitos estudiosos que pretendem destacar coincidências entre a sabedoria oriental e a filosofia grega, mes­mo sem dar-se perfeitamente conta, são vítimas de ilusões óticas à [15] medida que, de um lado, entendem as doutrinas orientais em função de categorias ocidentais, e, de outro, colorem as doutrinas gregas com tintas orientais, de modo que as correspondências são, em últi­ma análise, pouco ou nada dignas de fé.
  4. Enfim, mesmo que se pudesse demonstrar que certas idéias de filósofos gregos efetivamente têm antecedentes nas sabedorias orien­tais e se pudesse historicamente provar que elas beberam daquelas fontes, tais correspondências não modificariam a substância do pro­blema: a filosofia, a partir do momento em que nasceu, na Grécia, representou uma nova forma de expressão espiritual tal que, no ins­tante mesmo em que subsumia conteúdos frutos de outras formas de vida espiritual, transformava-os estruturalmente. Esta última obser­vação nos permite compreender outro fato interessantíssimo, isto é, como e por que, por obra dos gregos, se transformaram essencialmen­te aquelas mesmas artes e conhecimentos particulares, matemáticos e astronômicos, respectivamente, dos egípcios e dos babilônios.

A peculiar transformação teórica das cognições egípcias e caldaicas operada pelo espírito dos gregos

Que os gregos tenham derivado as suas primeiras cognições matemáticas e geométricas dos egípcios está fora de dúvida. Mas, como bem observa Burnet, por obra dos gregos elas se transforma­ram radicalmente.

Como podemos observar por um papiro da coleção de Rhind, a matemática egípcia devia consistir prevalentemente na determinação de operações de cálculos aritméticos com finalidades essencialmente práticas (mensuração dos cereais e dos frutos, determinação dos modos de dividir certas quantidades de coisas entre certo número de pessoas etc.) e, apesar do que se disse em contrário, isso corresponde bem ao que Platão observa nas Leis, recordando como eram ensinadas as operações aritméticas às crianças nas escolas egípcias.

Analogamente, a geometria tinha principalmente um caráter práti­co (como se pode deduzir do mesmo papiro de Rhind e de Heródoto), [16] qual seja a mensuração dos campos depois das inundações do Nilo, a construção das pirâmides e semelhantes. Mas a matemática como teoria geral dos números e a ciência geométrica teoricamente fundada e de­senvolvida foram criações dos pitagóricos. E, quanto à objeção de al­guns estudiosos a Burnet, de ter cavado um fosso muito nítido e, por­ tanto, arbitrário entre interesse prático (dos egípcios) e interesse teórico (dos gregos) e de ter operado uma cisão em si ilícita entre os dois interesses, porque à medida que os egípcios souberam determinar as regras práticas explicitaram também atividade teórica; pois bem, por inegável que seja isso, resta todavia o fato de que o destaque do mo­mento propriamente teórico e a purificação especulativa dos problemas matemático-geométricos foram próprios dos gregos; e o mesmo proce­dimento racional com o qual fundaram a filosofia permitiu-lhes purifi­car a matemática e a geometria e levá-las a um nível especulativo.

Raciocínio análogo vale para a astronomia dos babilônios, os quais, como foi notado há tempo, estudaram os fenômenos celestes com finalidades astrológicas, para fazer previsões e predições e, portanto, com finalidades utilitaristas e não propriamente científicas e especulativas. E, embora se tenha sublinhado como nas concepções da astrologia caldaica estivessem implícitos conceitos especulativos muito importan­tes, como por exemplo a idéia de que o número é instrumento de conhecimento de todas as coisas, a idéia de que todas as coisas estão ligadas por uma íntima conexão e, portanto, a idéia da unidade do todo e talvez também a idéia do caráter cíclico do cosmo e outras semelhan­tes; pois bem, permanece contudo sempre verdadeiro o ponto acima afirmado, isto é, que aos gregos cabe o mérito de ter explicitado esses conceitos, e eles puderam fazer isso em virtude do seu espírito especu­lativo, vale dizer, em virtude do espírito que criou a filosofia.

Conclusões

No estado atual da pesquisa, não se pode falar de derivação da filosofia ou da ciência especulativa do Oriente. Certamente os gregos extraíram dos povos orientais com os quais tiveram contato noções de diverso gênero, e sobre esse ponto as pesquisas poderão progressiva­mente trazer à luz novos fatos e novas perspectivas. Um ponto, po­rém, é incontestável: os gregos transformaram qualitativamente [17] aquilo que receberam. Por isso apraz-nos concluir com Mondolfo (o qual, note-se, insistiu muitíssimo na positividade e importância das influ­ências orientais sobre os gregos e sobre a fecundidade espiritual de tais influências): “[...] essas assimilações de elementos e de impulsos culturais [vindos do Oriente] não podem enfraquecer de modo algum o mérito de originalidade do pensamento grego. Ele operou a passa­gem decisiva da técnica utilitária e do mito à ciência desinteressada e pura; ele afirmou por primeiro sistematicamente as exigências lógi­cas e as necessidades especulativas da razão: ele é o verdadeiro cria­dor da ciência como sistema lógico e da filosofia como consciência racional e solução dos problemas da realidade universal e da vida”.

Mas isto que estabelecemos abre um problema ulterior: existem razões que explicam no todo ou em parte como e por que justamente os gregos e não outros povos, que chegaram à civilização antes deles, criaram a filosofia e a ciência?

Devemos agora responder a este problema. [18]

Filosofia - Filosofia Clássica
Estoicismo - Tópicos gerais, 
9/15/2021 10:53:24 AM | Por Lucius Annaeus Seneca
Sêneca saúda o amigo Lucílio: Da eternidade da alma

Ensina, tu, com razão, a elevar o pensamento para a imensidão. Uma coisa muito grande e generosa é a alma humana. Ela não tolera mais limites do que aque­les que são comuns à divindade. Por princípio, não aceita uma pátria no sentido restrito do termo, Éfeso ou Alexandria, ou qualquer outro lugar, caso exista, de maior população ou maiores construções. Sua pátria compreende tudo o que é rodeado pelo universo até os confins mais distantes, é tudo o que se encontra sob a abóbada celeste, os mares e as terras, onde o ar sepa­ra e une ao mesmo tempo o mundo dos deuses e dos homens, onde as divindades, cada uma em seu posto, cumprem uma missão específica.

Além disso, não permite que restrinjam a sua du­ração. “Todos os anos são meus”, diz ela, “não existe época proibida aos grandes espíritos; não há idade inalcançável ao pensamento. Quando surgir o dia em que se dividirá o que é humano e divino, este corpo ficará ali mesmo onde foi encontrado e me reunirei aos deu­ses. Mesmo agora não estou longe deles; apenas ainda sou detida pela existência terrestre.”

Tais esperas da vida mortal são apenas um pre­lúdio para uma outra existência, melhor e mais durá­vel. Da mesma forma como durante nove meses somos abrigados e preparados pelo ventre materno não para si, mas para onde deve nos lançar quando já somos capazes de respirar e viver ao ar livre, assim, durante esse período que vai da infância à velhice, amadurecem os para um outro nascimento.

Um outro nascimento nos aguarda, uma outra ordem das coisas. Ainda não podemos suportar o céu senão de longe, por isso prevê com coragem a hora de­cisiva não para a alma, mas para o corpo. A tudo que te rodeia, olha como móveis em um quarto de hospe­daria, pois estás de passagem. A natureza despoja tanto quem entra quanto quem sai.

Não te é permitido levar mais do que tens, e até o que trouxeste para a vida ao nascer aqui deverá ser deixado. Perderás a pele, o mais superficial de teus en­voltórios; perderás a carne e o sangue que corre pelo teu corpo; perderás os ossos e os nervos, aquilo que sus­tenta as partes informes e flácidas de teu corpo.

Esse dia que temes como o último será o de teu nascimento para a eternidade. Deposita o teu fardo. Por que hesitas, como se já não estivesses fora de um cor­po no qual estavas escondido? Hesitas, resistes. Tam­bém foste expulso com grande força do corpo de tua mãe. Gemes, choras como quando nasceste. O choro é próprio daquele que nasce, mas, na época, eras inex­periente e ignorante, podias ser perdoado. Ao saíres do aconchegante esconderijo do ventre materno, um ar fresco soprou sobre ti, depois sentiste o contato de uma mão rude e, ainda tenro e inexperiente, sentiste o estupor do desconhecido.

Agora, já não é novidade para ti apartar-te daqui­lo de que antes fazias parte. Abandona com serenidade estes membros que já não te servem mais e deixa este corpo que por tanto tempo habitaste. Ele será destruí­do, vai sumir, acabará. Por que ficas triste? É assim, também se tira a membrana que recobre o recém-nas­cido. Por que te apegas tanto a estas coisas como se tuas fossem? Apenas estás coberto por elas. Dia virá em que elas serão tiradas e, então, estarás liberto desse ventre repugnante e infecto.

Desde já, te desfaz desse invólucro e, livre de tudo o que te prende e que não é necessário, pensa, desde agora, em planos mais altos e mais sublimes. Um dia, os segredos da natureza te serão revelados, a névoa que te encobre será retirada e serás iluminado por uma brilhante luz. Imagina o fulgor das luzes de inúme­ros astros juntas em um único feixe. Nenhuma sombra abalará tal serenidade. O céu resplandecerá como um todo. O dia e a noite só ocorrem em nossa inferior atmosfera. Então, poderás dizer que viveste nas trevas, quando, em toda a plenitude, puderes contemplar a to­talidade da luz que agora apenas espreitas pelas frestas de teus olhos. O que dizer quando perceberes que isso que agora te encanta nem de longe se eqüivale à luz di­vina que vais contemplar em lugar desta?

Tal pensamento não permite que deposites no fundo de tua alma nenhuma baixeza ou crueldade. Ele nos faz perceber que os deuses são testemunhas de tudo. Faz com que possamos merecer a sua aprovação, prepara-nos para a sua presença futura e para que não percamos de vista a eternidade. Aquele que firmou em sua alma esse propósito não teme nenhum exército, ne­nhuma ameaça o deixa inquieto. Quem espera a morte nada teme.

Até mesmo aquele que pensa que a alma só existe enquanto presa ao corpo e que, quando este se dissolve, ela se esvai junto faz tudo para ser útil mesmo após a morte. E isso ocorre porque, ainda que tenha sido tirado da vista de todos, “a grande virtude do varão e a grande honra de sua raça continuam a viver em nos­so espírito”.* Pensa no quanto nos são úteis os bons exemplos e saberás que igualmente úteis são a presença e a memória dos grandes homens. Passa bem!

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Estoicismo - Tópicos gerais, 
9/15/2021 10:48:10 AM | Por Lucius Annaeus Seneca
Sêneca saúda o amigo Lucílio: Da futilidade de planejar o futuro

Cada dia, cada hora mostram-nos o pouco que valemos e qualquer outra importante situação relem­bra nossa fragilidade esquecida. Nós, que sonhávamos com a eternidade, somos obrigados a encarar a morte. Perguntas o porquê dessa introdução? Vê bem, conheceste Cornélio Senecião, brilhante cavaleiro ro­mano e homem honrado? Sendo de origem humilde, fez fortuna com esforço próprio e abriu um longo ca­minho de sucesso. Com certeza, para a ascensão social, são essas premissas que contam.

E, do mesmo modo, o dinheiro chega lentamente onde há pobreza e permanece enquanto dela provém. Da mesma forma, Senecião alcançou a riqueza graças a duas qualidades indispensáveis nesse domínio: a arte de adquirir e a arte de conservar. Tanto um a coisa como outra era suficiente para torná-lo rico.

Esse homem, de uma extrema sobriedade e que administrava da mesma maneira a sua pessoa e fortu­na, veio visitar-me pela manhã com o de hábito. Passou todo o resto do dia e parte da noite à cabeceira de um amigo enfermo, condenado. Depois de haver jantado alegrem ente, foi acometido de u a crise aguda de angi­na e, a custo, sobreviveu até a madrugada. Assim, pou­cas horas após ter cumprido seu dever de um homem de bem, ele morreu.

Ele, que estava investindo na terra e nos mares, que entrou para a vida pública, que se aventurou em todos os tipos de negócio, estando em plena realização de suas atividades financeiras, foi repentinamente ar­rancado dessa vida. “Agora, Melibeu, enxerta as perei­ras, põe em ordem as videiras”.* Que bobagem fazer planos para o futuro quando não sabemos nem do dia seguinte. Que tolice planejar grandes projetos para o futuro. “Eu comprarei, construirei, farei em préstimos, cobranças, ocuparei cargos importantes. Depois, já idoso e cansado, me entregarei ao ócio.”

Creia-me, tudo isso é incerto mesmo para os mais felizes. Ninguém deveria fazer promessas para o futuro. Mesmo o que já possuímos pode nos escapar e, nessa hora, que pensamos estar bem, um mal pode nos arra­sar. O tempo transcorre segundo leis imutáveis, é certo, mas obscuras. E que me importam as certezas da natu­reza se eu permaneço na incerteza?

Longas navegações e tardios retornos à pátria ao final de aventuras em lugares estrangeiros, esses são nossos projetos. E o trabalho de soldado e seu esforço tardiamente remunerado, as promoções. Durante esse tempo, a morte está ao nosso lado, mas como não pen­samos nela senão com relação a outro, a idéia de nossa mortalidade, passo a passo a nós ensinada, não causa efeito senão enquanto dura a surpresa.

Há tolice maior do que ficar admirado de ver acontecer o que pode ocorrer a qualquer dia? Com certeza, há um limite já fixado para nós pelo destino, mas esse final nenhum de nós sabe enquanto está vivo ou quão próximo está. Preparemos nossa alma, então, com o se esse fim estivesse nos atingindo. Não deixem os nada para mais tarde. Acertemos nossas contas com a vida dia após dia.

O defeito maior da vida é ela não ter nada de completo e acabado, e o fato de sem pre deixarmos algo para depois. Aquele que sabe levar sua vida no dia-a- dia não precisa do tempo. Essa necessidade aparece, bem como o medo do futuro, da fome desse futuro que corrói a alma. Nada é pior do que se indagar a propó­sito do que está por vir: “Para onde isso vai me levar? Quanto tempo me resta e como será minha vida?” É isso que agita uma mente atemorizada.

Como fugir dessa inquietação? Há apenas uma maneira: não deixando nossa vida na pendência de um futuro incerto, mas que se concentre nela mesma. Em verdade, só se concentram no futuro aqueles que estão insatisfeitos com o presente. Ao contrário, se eu estiver satisfeito com o que tenho, quando a mente souber que não existe diferença entre um dia, a alma visualizará, do alto, o conjunto dos dias e dos acontecimentos que estão por vir e apenas sorrirá. De que maneira a incons­tância e a mudança do acaso podem perturbar aquele que permanece estável na instabilidade?

Portanto, meu caro Lucílio, trata de viver cada dia como se fosse uma vida inteira. O homem que está as­sim preparado, aquele que viveu cada dia de sua vida plenamente, está tranqüilo. Contudo, quem vive na esperança do amanhã deixa escapar o presente. Assim, se aproxima de um desejo insaciável acompanhado de um sentimento miserável que torna as coisas mais mi­seráveis, ou seja, o pavor da morte. Daí o vil desejo de Mecenas, que não recusa as enfermidades, aceita as de­ formações e ainda ser pregado na cruz, contanto que, através desses sofrimentos, possa continuar a viver:

Faz de mim um maneta,
Estropiado de uma perna, reumático
Coloca em minhas costas uma corcova
Faz cair meus dentes:
Enquanto me restar vida, está bem;
Mesmo na cruz, sobre a estaca, conserva a minha vida.

Isso, se acontecesse, seria o cúmulo da miséria e é esse o desejo dele! Acredita estar pedindo a vida, mas apenas está prolongando um tormento. Já o considera­ria bastante desprezível se desejasse viver até ser crucifi­cado, mas ainda diz: “Podem me aleijar, desde que ainda me reste um sopro de vida em meu corpo mutilado e impotente. Deixa-me aleijado e disforme, mas permita que eu viva um pouco mais. Podes até me crucificar e colocar em uma estaca!” Vale a pena aumentar o sofrimento, ficar dependurado com os braços abertos, tudo isso para adiar o que o suplício tem de melhor, o seu fim? Vale a pena conservar a alma para extingui-la no sofrimento? Que se pode desejar a esse homem senão que obtenha a complacência dos deuses?

O que significa esse vergonhoso poema, digno de um covarde? Esse pacto de pavor e loucura? Essa maneira ignóbil de mendigar a vida? Como imaginar que, diante de tal homem , Virgílio tenha lido um dia este verso: “É um mal assim tão grande o fato de mor­rer?”* Ele deseja os piores suplícios, os mais penosos sofrimentos, deseja ardentemente que se prolonguem, que continuem. O que pode ganhar com isso? Viver um pouco mais? Mas que tipo de vida é essa morte lenta?

Vê-se, então, um homem que prefere se afundar em suplícios, que prefere morrer membro a membro e exalar sua vida gota a gota a deixar escapar, de uma vez por todas, seu último suspiro? Vê-se um homem que deseja ser pregado na cruz, que quer ficar muito doente, deformado, sofrendo, com o peito e os ombros feridos, e que ainda quer um sopro de vida em meio a toda essa tortura? Penso que já teria muitos motivos para morrer mesmo antes de ir para a cruz.

Não digas, portanto, que a necessidade de mor­rer não seja um benefício da natureza. Muitos estão preparados para pactos ainda mais abjetos, até para trair um amigo a fim de conservar a vida, a deixar os filhos na prostituição para desfrutar de uma luz que é testemunha de tantos crimes. Deixemos, pois, de lado a paixão pela vida e saibamos que importa pouco quando sofreremos aquilo que nos está reservado. O que real­mente importa é viver bem, e não viver muito. Muitas vezes, o melhor é que a vida não dure muito tempo. Passa bem!

Filosofia - Filosofia Clássica
Biografia e pensamento - , 
9/11/2021 3:50:05 PM | Por Odsson Ferreira
Entendendo Platão, um suprassumo em 5 minutos

Platão, o mais "nobre" dos discípulos de Sócrates, foi o seu mais fiel defensor e o que mais fez referências a ele, a tal ponto que os estudiosos chegam a ter certa dificuldade em separar as suas ideias e conceitos das de Sócrates, que nunca escreveu nada. Platão tornou-se assim, a voz socrática que ecoa ao longo dos milênios. Platão nasceu em berço de ouro no V século antes da era comum mais precisamente em 428, e morreu em 347. Sua educação, como a de qualquer cidadão de família aristocrática, foi voltada ao governo e a guerra, educado nas letras clássicas e nos esportes, fato comprovado pelo seu epiteto "Platão" que significa “costas largas”. Platão era o filósofo atleta. Não há relatos sobre sua vida amorosa, diferentemente de Aristóteles que era conhecido por seu amor ao sexo feminino.

Platão fora fortemente abalado e influenciado pelo julgamento, condenação e execução de Sócrates, fato que considerava até certo ponto como sua própria culpa.

Como já foi dito, a obra de Platão foi fortemente orientada pelos "sermões" de Sócrates, mas também o fora pelos trabalhos de Parmênides e Heráclito. Era muito preocupado com a corrupção do sistema democrático ateniense e em certa altura, abandonou a política e a cidade se tornando consultor de reis e monarcas pela Hélade. Afirmava categoricamente que era necessário refazer o Estado, assentando sua base na Justiça e na Ética, pois como filósofo racionalista, afirmava que a fonte do conhecimento verdadeiro é o intelecto puro, independentemente dos sentidos, vemos aqui as influências de Sócrates.

Depois da experiência malfadada na Sicília, quando chegou a ser vendido como escravo, voltou para Atenas e fundou a Academia, a primeira Universidade do ocidente.

O sistema defendido por Platão era divido em três partes:

Conhecimento científico, o conhecimento verdadeiro.
Comportamento ético, virtude, o que é o Homem justo?
Política, quais as características de um Estado justo?

Conhecimento científico

Platão defendia a Teoria das ideias ou formas, onde haviam dois tipos de conhecimento: o do mundo sensível, e o do mundo inteligível.

O conhecimento do mundo sensível é relacionado a Heráclito e é o mundo dos sentidos; do senso comum (Doxa); um tipo de conhecimento raso e superficial que priva o saber apenas ao que o individuo sente ou experimenta através de seus sentidos como a visão, tato, olfato, audição e paladar. Este é o mundo empírico (emperia, ou seja a experiência). Nesse sentido para Platão, a realidade é apenas uma ficção, pois os sentidos nos enganam. Os sentidos ficam apenas na superfície do que de fato existe, funcionando assim como uma barreira que dificulta chegar a realidade verdadeira. Nosso mundo é na verdade um rascunho da realidade, onde cada elemento é uma cópia irregular do conceito, da ideia ou essência, que existe apenas no mundo inteligível.

O Conhecimento do mundo inteligível é relacionado a Parmênides. Aqui não existem emoções ou paixões na busca do conhecimento. Apenas o intelecto pode acessar essa dimensão e contemplar o que é Invisível aos sentidos e visível apenas a razão. Platão afirmava que nessa instância os conceitos não são criados por nós, sendo alcançados apenas por nossa inteligência. A realidade é a ideia, a essência que só pode ser atingida pelo intelecto e não pelos sentidos. Dessa forma, Platão defende uma dialética ascendente, onde os sentidos chocam-se com o pensamento racional. É preciso questionar, duvidar, contestar os sentidos para se alcançar uma verdade que já está presente desde o nascimento. Platão é filosofo inatista, pois para ele o conhecimento é inato e a psique e o intelecto já existiam no mundo inteligível antes do mundo sensível fazendo com que o papel da educação seja o de recordar aquilo que foi esquecido.

Comportamento ético

Para Platão havia uma tripartição da alma composta pela Alma racional, que é o equivalente da classe governante de seu Estado ideal (os magistrados), é a cabeça que governa o corpo; a Alma irascível (militares), que é responsável pelas emoções, a defesa da honra e que não consegue controlar a si mesma; e a Alma concupiscível (trabalhadores e comerciantes), que é responsável pelos desejos, pelos prazeres, e bens materiais e que também não consegue controlar a si mesma.

O indivíduo sábio, como o Estado ético, é aquele onde a Alma racional governa todo esse sistema. Uma pessoa ou Estado governado por suas emoções ou desejos é um indivíduo/sociedade desequilibrado, que inevitavelmente está fadado aos equívocos do mundo sensível, e portanto, longe do verdadeiro conhecimento: o conhecimento dos conceitos e essências.

Política

Platão, talvez influenciado pelo sistema espartano, defendia uma educação rígida onde as crianças deveriam pertencer ao Estado e não aos seus pais. Logo após os 7 anos de idade, todo menino e menina deveria ser entregue ao sistema educacional para que fosse educado(a) e assim no futuro ocupar a classe a qual terá aptidão e/ou direito. Em seu sistema de Estado perfeito, não havia diferença entre gêneros, assim sendo as mulheres deveriam ocupar em pé de igualdade todos os cargos e assumir todas as responsabilidades de um homem, algo impensável e até bizarro para os atenienses do século V e IV.

Para Platão a pirâmide do Estado ideal era composta por: trabalhadores e comerciantes, na base, classe preenchida por aqueles que descobriam essa aptidão no primeiro teste de sua vida educacional, aos 12 anos; pelos militares, no meio, classe preenchida pelos que se encaixassem na segunda prova de aptidão realizada aos 20 anos de idade; e pelos magistrados, no governo, pessoas anciãs que atingiam esse nível devido ao mérito de serem aprovadas no último teste aos 50 anos e se formarem sábias, conhecedoras das verdades da vida e por tanto, aptas a governar. Dessa forma, o Estado ideal de Platão era uma Sofocracia ou Aristocracia, um Estado justo governado pelos sábios e orientado pela Ética.

O fato mais notável na política de Platão é o seu ataque a democracia, pois para ele, um governo de "qualquer um" deixa o Estado susceptível aos equívocos do domínio dos militares (emoções) e/ou comerciantes (desejos), fazendo dessa sociedade uma organização injusta, governada pela tirania militar, ou pela barganha comercial. Um comerciante ou empresário jamais governaria e legislaria de forma neutra e idônea, sendo tentado a se corromper e a defender a sua própria classe e interesses pessoais. Um militar jamais governaria sem o uso da força e do estado de terror e intimidação. Por esse motivo ele acreditava que a democracia é um sistema destinado a ser corrupto, se colapsar e por fim se tornar uma tirania, pois apenas um "super homem", assim reconhecido pela sociedade ignorante, possuiria “super poderes” para colocar ordem ao caos, que seria o destino óbvio de um Estado injusto e em desequilíbrio.

Influências

A influência do pensamento de Platão foi e ainda é esmagadora na sociedade ocidental pós-moderna, herdeira direta do pensamento clássico. Tornou-se senso comum chamar tudo que é perfeito de "platônico". O amor platônico, por exemplo, seria o amor romântico, fogo fátuo do prazer dos amantes. Um equívoco bizarro, já que o amor para Platão era justamente o contrário, pois para ele o homem/mulher perfeitos eram orientados ao desapego, ou pelo menos ao controle total dos impulsos do desejo. O verdadeiro amor platônico é o amor ao conhecimento, a essência, a pureza do conceito no mundo inteligível e não tem nada a ver com reprodução da espécie ou prazer hedônico da carne.

Há também o exemplo do cristianismo, religião usurpadora por excelência que já havia se apoderado e se inspirado nos preceitos egípcios e zooratristas mas que viu no pensamento platônico uma oportunidade ideal de unir os "desejos" de um mundo justo, no céu, para aqueles que eram marginalizados e excluídos pelas outras religiões, como bandidos, doentes, mendigos, mulheres etc. Santo Agostinho durante a idade média dedicou a sua vida a ligar o cristianismo ao pensamento socrático e platônico com a finalidade de dar uma base, um vigor intelectual a fé cristã. Lembro-me, com horror, em uma aula sobre Teorias da Educação, quando o professor que discorria sobre Platão foi interrompido por um aluno e colega que questionou se Platão fora influenciado pelo cristianismo, pois segundo esse colega, a religião era atemporal e ancestral estando além das influências culturais e do desenvolvimento da história humana. Para mim foi um desses momentos em que sentimos vergonha pelo outro. Infelizmente o nível de esclarecimento da maior parte da população brasileira é muito baixo, e onde há vazio de conhecimento, há espaço para as mais exóticas ideologias.

Filosofia - Filosofia Clássica
Estoicismo - Tópicos gerais, 
9/9/2021 8:00:09 PM | Por Lúcia Sá Rebello
Sêneca saúda o amigo Lucílio: Da velhice

Por toda parte, vejo sinais da minha velhice. Fui à minha casa de campo e me lamentei das despesas extraordinárias do edifício já em ruínas. O zelador dis­se-me que não era culpa de sua negligência, pois ele fez tudo o que era possível, mas a propriedade é velha. Esta vila foi construída por mim: qual será o meu futuro se tão podres estão as pedras do meu tempo?

Irritado com ele, aproveito o primeiro pretex­to para descarregar a minha raiva: “É evidente”, digo, “que estes plátanos estão descuidados: não têm folhas, os ramos estão secos e cheios de nós, quão tristes e ári­dos os troncos! Isso não aconteceria se alguém cavasse em torno, se lhe regasse”. Ele jura pelo meu gênio* que faz todo o necessário, que não deixa de cuidá-los, mas são árvores já muito velhas. Que isto fique entre nós: eu as plantara, eu vira suas primeiras folhas.

Olho para a porta e pergunto: “Quem é este de­crépito dado ao ócio? Por que está na porta? Onde o encontraste? Para que recolher um morto que não é nosso?”E o homem diz a ele:“Não me reconheces?Sou o Felício, aquele que presenteavas sempre com estatue­tas de argila; sou filho do zelador Filósito, eu era o teu preferido”. Eu afirmei: “Este homem está delirando! O [20] meu preferido tornou-se criança novamente? Mas, sim, pode ser, pois vejo que os dentes estão caindo.”

Devo isto à visita a minha vila: onde quer que eu fosse, parecia-me evidente a minha velhice. A barque­mos e amemos a velhice: é cheia de prazeres, se sabe­mos fazer uso dela. Agradabilíssimos são os frutos de uma estação; a infância é mais bela quando está por terminar; o último gole de vinho é o mais agradável aos que gostam de beber, aquele que entorpece, que dá à embriaguez o impulso final.

De cada prazer, o melhor é o fim. É doce a idade avançada, mas não ainda sob a decrepitude, e também eu penso que o período extremo da vida tem os seus prazeres ou, ao menos, no lugar dos prazeres, não sentir mais necessidade deles. Como é doce ter se cansado e abandonado os desejos!

“É triste, porém, ter a morte diante dos olhos”. Em primeiro lugar, tanto os velhos a têm diante dos iilhos quanto os jovens. Não somos chamados de acordo com a idade e, além disso, ninguém é tão velho que não possa esperar mais um único outro dia. Um único dia é o tamanho da vida. A existência inteira é feita de tantas partes como círculos, em que os grandes contêm os pequenos e há um que os abraça e encerra a todos, que vai do nascimento à morte. Há um círculo que separa os mós da adolescência, outro que tem dentro de si toda a Infância; depois chega o ano que reúne em si todos os instantes, cuja multiplicação forma a completude da vida. Um círculo mais estreito contém o mês, uma curva mais reduzida ainda encerra o dia, que também vai de ter início a um fim, da aurora ao poente.

Por isso Heráclito, o qual por sua linguagem foi chamado de “obscuro”, disse: “Um dia é igual a todos [21] os outros”.* Essa frase é interpretada de modos diferen­tes. De acordo com alguns, é igual em número de horas, e isto é verdade: se o dia é de vinte e quatro horas, todos os dias devem ser iguais entre si, porque as horas per­didas do dia são ganhas à noite. De acordo com outros, um dia é igual a todos porque se assemelham; também em um só dia se pode encontrar, de fato, um espaço de tempo muito grande, luz e noite se tornam iguais nas mudanças do céu, onde a noite é ora mais breve, ora mais longa. Por isso, cada dia deve ser organizado como se fosse o último e concluísse a nossa vida.

Pacúvio**, que se instalou na Síria com todos os poderes, com vinho e banquetes fúnebres, celebrava suas próprias exéquias (funerais), era levado da mesa à cama entre os aplausos dos seus convidados que can­tavam uma música.*** Nenhum dia deixava de realizar esse ritual. Aquilo que Pacúvio fazia como espetáculo nós devemos fazer imbuídos de honestidade. Vamos para a cama dormir e alegres digamos: “Vivi e percor­ri o curso que a sorte me destinou!”.**** Se um deus nos conceder um amanhã, aceitemos com alegria. É verda­deiramente feliz e dono de si o que espera o amanhã sem preocupação; aquele que diz “vivi” recebe mais um dia como lucro.

Mas já devo concluir a carta. “Assim”, dirás, “vem a mim sem nenhum presente?” Não tenhas medo: leva algo contigo. Por que digo algo? Muito!

O que seria [21] mais importante que a palavra que recomendo que te entregue? “Mal é viver na necessidade, mas não há ne­nhuma necessidade de viver sob a necessidade”*. Por que não? Por toda parte se abrem caminhos breves e laceis para a liberdade. Agradeçamos aos deuses porque ninguém pode ser mantido na vida: é possível se libertar das próprias necessidades.

“De Epicuro”, dizes, “é essa afirmação. O que tem uma outra escola a ver com a nossa?” Tudo o que é ver­dadeiro também é meu. Continuarei a te fazer ingerir Epicuro, para que os que juram sobre palavras de outro e avaliam não o que é dito, mas quem o diz, saibam que as coisas melhores fazem parte do patrimônio comum . Passa bem! [23]

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Estoicismo - Tópicos gerais, 
9/9/2021 7:54:21 PM | Por Lúcia Sá Rebello
Sêneca saúda o amigo Lucílio: Da solidão dos filósofos

“Tu me aconselhas a evitar a multidão”, escreves, "e que me afaste e me contente com a minha consciência? Onde estão aqueles teus preceitos que recomendam morrer em ação?” O quê? Pensas que estou te aconse­lhando à inércia? Eu me refugiei e fechei as portas para poder ser útil a mais gente. Nunca passo um só dia no ócio, dedico parte da noite aos estudos. Não me aban­dono ao sono, mas sucumbo, e continuo no trabalho com olhos caídos e cansados pela vigília.

Eu me afastei não apenas dos homens, mas tam­bém das coisas, e em primeiro lugar das minhas: ajo no interesse da posteridade. Escrevo para transmitir adver­tências salutares, por exemplo, receitas de medicamen­tos úteis, que experimentei como eficazes em minhas próprias feridas, as quais, se não se curaram completa­mente, ao menos não se alastraram mais.

Mostro aos demais o caminho certo, que conheci tarde e cansado de tanto vaguear. Clamo que evitem o que agrada à plebe, que vem do acaso; que per­maneçam desconfiados e temerosos diante de todo bem fortuito. Tanto as feras quanto os peixes deixam - se apanhar por alguma esperança tola. Pensas que essas coisas são presentes do destino? São ciladas. Qualquer um que queira ter uma vida segura deve evitar o mais possível essas armadilhas que nos traem e nos tornam infelizes. Pensando tê-las, somos fisgados por elas. Esse curso conduz ao precipício; e o resultado dessa vida que [17] quer se sobressair é cair. E, depois, não se pode resistir: quando a felicidade começa a nos desviar do bem, der­ruba os bons, um por um, ou todos de uma vez; a sorte não causa ruína a ninguém, mas faz cair e despedaça.

Segue, pois, esta sã e salutar forma de vida: con­cede ao corpo apenas o que for suficiente para um bom estado de saúde. É necessário tratá-lo com severidade para que não desobedeça à mente: a comida deve acal­mar a fome, o beber, a sede, as roupas devem proteger do frio, a casa, ser abrigo contra o mau tempo. Não importa se foi construída com taipa ou com mármore importado: saiba que um teto de palha abriga o homem tão bem quanto o de ouro. Despreza tudo o que um trabalho supérfluo estabelece com o enfeite e requinte; pensa que nada é extraordinário a não ser a alma e que, para uma alma grande, nada é grande.

Digo estas coisas a mim mesmo, digo-as aos pósteros; e não te pareço mais útil do que se me apresen­tasse como advogado, ou para selar os testamentos, ou pusesse minhas mãos e voz a serviço de algum candi­dato ao senado? Acredita-me, quem menos parece agir faz coisas maiores, pois trata simultaneamente das coi­sas humanas e divinas.

Mas já é tempo de concluir esta carta e de dar a minha contribuição como disse no início. Não o farei com o que é meu, uso mais uma vez o sábio Epicuro, de quem, hoje, li estas palavras: “Consagra-te à filosofia se desejas ser verdadeiram ente livre”. Não espera o dia seguinte para se modificar quem a ela se submete e é fiel, pois, de fato, esse mesmo servir à filosofia é a liberdade.

Provavelmente me perguntarás por que eu cito tantas belas frases de Epicuro, ao invés daquelas dos estóicos: mas por que pensas que são de Epicuro e [18] não do patrimônio comum? Quantos poetas expri­mem conceitos já formulados ou que deveriam ser for­mulados pelos filósofos! Não mencionarei os trágicos nem os nossos dramas, que têm uma certa gravidade e estão entre a tragédia e a comédia. Quantos versos eloqüentíssimos são ouvidos entre os comediantes! Quan­tas frases de Publílio Siro deveriam ser recitadas não pelos atores cômicos, e sim pelos trágicos! 

Recordo que também tu expressaste o mesmo conceito melhor e com mais concisão: “Não é teu isto que a sorte fez teu”. Mas quero citar esta tua outra ainda melhor: “Um bem que pode ser dado tam­bém pode ser tomado”.

Isso não te dou como pagamento: devolvo-te um bem que já era teu. Passa bem!

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9/9/2021 7:53:00 PM | Por Lucius Annaeus Seneca
Sêneca saúda o amigo Lucílio: Da brevidade da Vida

Meu Lucílio, é de fato alguém indiferente e negligente quem traz à memória um amigo a partir da visão de algum lugar. Algumas vezes, lugares familiares evocam em nosso espírito a lembrança adormecida, permitem que a memória se apague, mas a despertam do torpor; assim se reanima a dor de quem sofre, mesmo que seja algo já amortecido pelo tempo, tal como a visão de um servo doméstico ou uma roupa ou a casa. Eis corno a Campânia e, sobretudo, Nápoles, e a vista da tua Pompéia, de modo incrível, trouxeram ate mim lembranças tuas: tu estás inteiro diante de meus olhos. É como se fosse o momento de nossa despedida. Vejo as tuas lágrimas, não podendo conter a tua emoção, que brotam quando procuras reprimi-las.

Parece que eu acabara de te perder ha pouco tempo, mas o que é esse "há pouco tempo" se estou recordando? Ha pouco tempo, eu era um menino sentado na escola do filósofo Sotione; há pouco tempo, comecei a discutir causas; há pouco tempo, resolvi não discuti-las mais; há pouco tempo, já não posso mais fazê-lo. Infinita é a velocidade do tempo, a qual parece maior quando olhamos para trás. Pois aos atentos ao presente engana, porque leve é a passagem de sua fuga precipitada.

Queres a causa disso? Todo o tempo transcorrido está no mesmo lugar; o vemos simultaneamente, está tudo junto. Todas as coisas caem no mesmo buraco.

E, além disso, não podem existir grandes intervalos em uma coisa que, na sua completude, é breve. O que vivemos é um instante, menos que um instante; porém, a natureza dividiu essa coisa mínima para dar aparência de duração a esse pequeno espaço de tempo. De uma parte, fez a infância, de outra, a meninice, depois a adolescência, o declínio da adolescência a velhice e, por fim, a própria velhice. Em algo tão estreito, quantos degraus ha!

Há pouco tempo me despedi de ti; e, todavia, esse "há pouco tempo" é uma boa parte da nossa existência, cuja breve duração, pensemos, um dia terminará. Não me parece que no passado o tempo fosse tão veloz. Agora, a sua rapidez me parece incrível, seja porque percebo que o fim se aproxima, seja porque comecei a observar e fazer as contas das minhas perdas.

Por isso, mais me indigno com aqueles que desperdiçam com coisas supérfluas a maior parte desse tempo que já não é suficiente para as coisas necessárias, mesmo se for usado com o máximo cuidado. Cícero nega que, mesmo que lhe duplicassem a vida, teria tempo para ver todos os líricos. No mesmo lugar ponho os dialéticos, cuja ignorância é mais triste. Aqueles reconhecem sua frivolidade; estes pensam que fazem algo sério.

Não nego que se deva dar uma olhada nessas coisas, mas que se deve apenas dar uma olhada, e devendo ser saudadas do limiar, para não sermos enganados e para que não nos façam crer que nelas há grandes e secretos bens. Por que te atormentas e te cansas com essa questão que é mais inteligente desprezar que resolver? É próprio de quem está em segurança e viaja comodamente procurar minúcias. Porém, quando o inimigo esta em nosso encalço, e o soldado recebeu a ordem de se mover, a necessidade se desfaz de todas as coisas inúteis.

Não tenho tempo para procurar palavras de duplo sentido e para provar com elas a minha pericia. "Observa como se juntam os povos, quais cidades fecham as portas afiando as armas." Devo escutar com grande coragem esse rumor de guerra que ressoa em torno de mim.

Com razão a todos pareceria louco se, enquanto mulheres e velhos juntam pedras para fortificar o muro, enquanto a juventude armada entre as portas da cidade espera ou reclama o sinal de partida, enquanto os dardos inimigos vibram contra as portas e o próprio solo treme devido a túneis e galerias subterrâneas, eu permanecesse. Igualmente, vou te parecer demente se agora me ocupo dessas coisas: também agora estou sitiado. Então, o perigo me seria externo, um muro me separaria do inimigo. Ao contrario, os perigos mortais estão dentro de mim. Não tenho tempo para essas bobagens; tenho nas mãos um imenso negócio. O que devo fazer? A morte me segue, a vida foge.

Ensina-me algo contra esses males: faz com que eu não fuja da morte, que a vida não fuja de mim. Encoraja-me contra as dificuldades, sobre a equanimidade, acerca dos males inevitáveis; relaxa as angústias da minha idade. Ensina-me que o valor da vida não esta na sua duração, mas no uso que dela pode ser feito; que pode acontecer, como acontece com freqüência, que quem viveu muito, muitas vezes, viveu pouco. Dize-me, quando eu estiver por adormecer, "podes não acordar mais"; e, quando eu estiver acordado, "podes não dormir mais". Dize-me, quando estiver eu saindo, "podes não voltar; e, quando eu estiver de volta, pode ser que não saias mais".

Erras se pensas que apenas na navegação a vida se distância pouco da morte: em todo lugar essa distância é tênue. A morte não se mostra em todos os lugares, mas em todos os lugares ela está próxima. Dissipa essas trevas e mais facilmente me ensinarás as coisas para as quais já estou preparado. A natureza nos criou dóceis e nos deu uma razão imperfeita, mas capaz de se aperfeiçoar.

Discute comigo sobre a justiça, sobre a piedade, sobre a sobriedade, sobre as duas formas de pudor, aquela que não viola o corpo alheio, bem como a que cuida de si mesmo. Se não me quiseres conduzir por desígnios, chegarei mais facilmente à meta a que me dirijo, pois, como diz o famoso trágico: "o discurso da verdade é simples". Assim, não é preciso complicá-la, pois nada convém menos a um espírito que tem grandes aspirações que essa inferior astúcia. Passa bem!

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9/9/2021 7:46:33 PM | Por Lucius Annaeus Seneca
Sêneca saúda o amigo Lucílio: Da fugacidade da fortuna

Não acredites que um homem possa ser feliz se a sua estabilidade depende de sua fortuna. Apóia-se em bases frágeis quem faz sua felicidade depender de ele­mentos externos. Toda alegria que assim surge logo se vai; no entanto, aquela que vem do interior é firme e sólida. Ela cresce e nos acompanha até o final. Quanto aos objetos de admiração da plebe, esses são bens de apenas um dia. “Então, deles não podemos tirar proveito e prazer?” Não é isso que se diz, desde que eles de nós dependam, não nós deles.

Tudo o que vem da riqueza não gera frutos, não proporciona satisfação, se o possuidor não possui a si próprio e não toma posse do que lhe pertence. É uma tolice, Lucílio, pensar que a riqueza pode nos fazer al­gum bem ou mal; ela apenas fornece material para os nossos bens e nossos males, os elementos daquilo que junto a nós poderá se desenvolver em bem ou em mal.

Bem mais poderosa que a fortuna é nossa alma. Para o melhor ou o pior, é ela que conduz os nossos destinos, é ela a responsável pela nossa felicidade ou miséria.

Se for má, tudo se converte em maldade, mesmo aquilo que tem a aparência de bem. Se for direita e ínte­gra, corrige todos os erros da fortuna, ameniza sua infle­xibilidade, praticando a arte da tolerância, recebendo com reconhecimento e modéstia a prosperidade e com firmeza e coragem as desventuras. Apesar da sabedoria, do juízo acurado que preside a todos os seu atos, apesar do cuidado para não ir além do que lhe é permitido, não obterá esse bem fora de qualquer ameaça se, frente à incerteza das coisas, não se mantiver na certeza.

Quer observes os outros (julgamos mais facil­mente o que não nos é próximo), quer observes a ti mesmo com toda a imparcialidade, te darás conta de que nada do que desejas e sentes prazer te será útil se não te precaveres contra a inconstância da sorte e de tudo o mais que dela depende; se, em todos os momen­tos de contrariedade, repetires sem queixas: “Os deuses julgaram de forma diferente”.

Vamos um pouco além. Para procurar uma fór­mula mais corajosa, mais justa, para melhor equilibrar tua alma, dize a ti mesmo, cada vez que algo saia ao contrário do que esperavas: “Os deuses julgaram me­lhor do que eu”. Se tiveres esse equilíbrio, nada te atin­girá. Pois bem, atingimos esse estado começando por imaginar o poder das imprevisibilidades humanas antes até de experimentá-las. Ou seja, tendo mulher, filhos e patrimônio, levar em conta que talvez não os tenhamos para sempre. Assim, se os perdermos, não seremos, por isso, mais infelizes.

Desprezível é a alma obcecada pelo futuro, é infeliz antes da infelicidade, deseja ter para sempre as coisas que lhe causam prazer. Não terá descanso, e a necessidade de querer conhecer o futuro lhe fará deixar de lado o pre­sente que poderia ser melhor desfrutado. Temer a perda de algo é o mesmo que já não tê-lo mais consigo.

Não pensa que eu sou a favor da indiferença. Foge dos perigos. Fica atento a tudo que pode ser previsto. O que for que te ameaça, não espera que te atinja, pas­sa longe. Nessa situação, a confiança em ti e o firme propósito de tudo suportar serão muito importantes.

Podemos nos sentir abrigados do destino quando temos força para agüentar seus golpes. De qualquer for­ma, não é das ondas calmas que nasce a tempestade, ou seja, nada é mais lamentável e menos sábio do que o medo antecipado. Que insensatez é essa de antecipar a adversidade?

Em síntese, e para bem demonstrar esses carrascos de si próprios, digo que eles sofrem o mesmo na espera e durante as suas desgraças. Tal criatura aflige-se mais do que é preciso e antes do que é necessário. A mesma fraqueza que faz com que veja a aflição faz com que não saiba avaliá-la. O mesmo descomedimento com que julga ser feliz para sempre, que considera tudo de bom que lhe acontecer, durar e crescer sempre, faz com que esqueça que o fio sobre o qual o gênero humano oscila nada mais nos promete do que o imprevisto.

Por essa razão, considero admirável esta frase de Metrodoro para o irmão que havia perdido o filho, rapaz de grande futuro: “Todos os bens dos mortais são mor­tais”.* Ele está se referindo àqueles bens que os homens buscam precipitadamente. O verdadeiro bem não desa­parece; certo e duradouro, consiste na sabedoria e na vir­tude, sendo a única coisa imortal que cabe aos mortais.

Alguns são tão descuidados que esquecem a meta para onde cada dia os leva, que se admiram com a perda de uma ou outra coisa, como se não fossem perder tudo um dia. Todos esses bens dos quais te intitulas “possui­dor” estão contigo, mas não são teus. Para o fraco, não há nada certo; para o frágil, nada é eterno e invencí­vel. É tão necessário perder quanto morrer e, se isso for bem compreendido, torna-se um consolo. Perde sem dor, porque também perderás, um dia, tua vida.

Para minimizar os efeitos dessa perda, de que dispomos? De guardar a lembrança do perdido e, assim, não deixar desvanecer o que de proveito se tenha tido com o que se foi. Se a posse vai embora, fica para sempre o privilégio de ter possuído. Muito ingrato é aquele que, quando não tem mais nada, imagina nada dever por aquilo que tenha recebido. A sorte tira o objeto, mas deixa o fruto que nossas queixas nos fazem perder.

De todos os males que parecem infundir temor, nenhum é invencível; todos, um após outro, encontraram um vencedor. O fogo por Múcio. A cruz por Régulo. O veneno por Sócrates. O exílio por Rutílio. A morte por um golpe de espada por Catão. Que nós tenhamos também nossas vitórias.

No entanto, essas ilusórias felicidades que atraem a plebe foram, muitas vezes, desdenhadas por diversas pes­soas. Fabrício, o comandante, recusou a riqueza e pro­curou dobrá-la como censor. Tuberão julgou ser, junto com o Capitólio, digno da pobreza quando, em uma festa pública, fez uso de um prato de barro, procurando mostrar que o homem devia se contentar com coisas ain­da usadas pelos deuses. Sexto, o Pai, recusa honras, ele que nasceu para conduzir o poder. Não aceitou a toga laticlava*, oferecida por César, pois estava convicto de que o que pode ser dado também pode ser tirado. De nossa parte, façamos, da mesma forma, algo de generoso. Mar­quemos nosso lugar entre esses exemplos.

Por que falhamos? Por que nos desesperamos? Tudo o que já foi feito pode por nós ser feito. Comece­mos purificando nossa alma e seguindo a natureza, pois quem dela se afasta condena a si próprio a desejar e a tornar-se escravo da sorte. Podemos retomar o caminho correto, podemos tomar posse daquilo que nos é de direito. Recuperemos tais coisas e saberemos, que o fim, suportar as dores que de qualquer maneira atacarem o nosso corpo. Assim, diremos ao destino: “Estás tratando com um homem. Procura em outro lu­gar alguém a quem dominar”.

Graças a essas palavras, e a outras do mesmo cali­bre, que a malignidade de uma ferida é atenuada, e pre­firo, podes acreditar, que possa ser atenuada ou, pelo menos, que se mantenha estacionada e, ainda, envelhe­ça com o paciente. Estou seguro quanto ao paciente; o que se discute agora é nossa própria perda, o arrebatamento de um velho notável, que viveu uma vida plena e que, se deseja prolongá-la, é para aqueles a quem pode servir e não para si.

Viver é um ato generoso de sua parte. Um outro já quis pôr fim a seus tormentos, julga tão vergonhoso pro­curar a morte como dela fugir. “Mas como? Se o fato está posto, não devo ir?” Por que deixará de ir se não é mais útil a ninguém, nada mais tem senão o sofrimento?

Eis, meu caro Lucílio, o que se chama aprender a filosofia pela prática e exercê-la concretamente; é ver a coragem de um homem esclarecido diante da mor­te, diante da dor, quando uma se aproxima e a outra o pressiona. O que deve ser feito aprendemos com aquele que o faz.

Até o presente momento, nossos argumentos leva­ram a indagar se é possível a qualquer indivíduo resistir à dor; se a morte, ao se aproximar, chega a derrubar as grandes almas. Analisemos os fatos e os encaremos: não é a morte que fortalece esse homem diante da dor, nem é a dor que o encoraja frente à morte. Em face das duas, ele confia em si próprio. Não é a esperança da morte que o faz suportar pacientemente a dor, nem a entrega ao sofrimento que o faz morrer de bom grado. Ele suporta a dor e aguarda a morte. Passa bem!

Filosofia - Filosofia Clássica
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9/9/2021 7:40:08 PM | Por Lucius Annaeus Seneca
Sêneca saúda o amigo Lucílio: Do consolo ao enlutado

Envio-te a carta que escrevi a Marulo quando da perda de seu jovem filho, morte que, dizem, suportou com pouca coragem. Nessa carta, não agi como sem­pre, nem julguei que devia tratá-lo com suavidade, uma vez que devia ser repreendido e não consolado. Aquele a quem um grande sofrimento atingiu e que o suporta mal devemos consolar. Que chore todas as suas lágri­mas até diminuir seu sofrimento. Mas aqueles que de­cidem viver se lamentando, a esses é preciso castigar e fazer com que aprendam que mesmo nas lágrimas pode haver estupidez.

“Esperas consolação? Eis uma repreensão. Mostras tão pouca coragem pela morte de um filho? Que farias se fosse um amigo que houvesses perdido? Foi-te tirado um filho, tão pequeno que não se pode dizer o que se esperaria dele. Pouco tempo foi perdido. Procuramos razões para sofrer e queremos nos queixar do destino como se ele não devesse nos oferecer razões verdadeiras para queixas. Mas, por favor, te julgava mais corajoso com os verdadeiros males, quanto mais com esses pe­quenos de que se queixam todos não mais do que por hábito. Caso tivesses perdido um amigo, a maior das perdas, deverias ainda assim ficar feliz porque o tiveste, e não porque o perdeste.

Mas a maior parte dos homens não leva em conta o bem recebido nem os prazeres que desfrutaram. Um dos defeitos da dor, entre outros, é não ser apenas vã, mas também ingrata. Assim, por que perdeste esse ami­go, perdeste tudo? De que serviram tantos anos, tanta intimidade e familiaridade intelectual? Como amigo enterras também a amizade? Assim, por que choras a perda se de nada te serviu o convívio com ele? Acredita em mim, uma grande parte daqueles que amamos, embora nos sejam tirados, permanece conosco. O tem­po que passou nos pertence, e nada está em lugar tão seguro com o aquele que já se foi. Na esperança do fu­turo, somos ingratos para com aquilo que possuímos, como se o que está por vir, caso chegue a se concretizar, não se torne passado imediatamente. Aquele a quem só contentam as coisas do presente restringe muito o seu prazer. O futuro e o passado têm o seu encanto. Um é a espera, o outro, a lembrança. Acontece, porém, que o futuro é uma incógnita, mas o passado não poderá nunca deixar de ser. Que loucura é essa de deixar de lado o que é mais seguro? Contentemo-nos com o que já nos deu prazer, se é que não o tenham os recebido com a alma fechada e não tenhamos percebido a ponto de deixar esvair-se.

Inumeráveis são os exemplos daqueles que en­terraram os filhos jovens sem lágrimas, saindo da ceri­mônia para o senado, ou para qualquer outra atividade pública, dedicando-se imediatamente a outras coisas. E não sem razão, uma vez que é inútil chorar, pois as lágrimas não trarão nenhum consolo, e de nada serve queixar-se de algo que está, desde sempre, reservado a todos. Enfim, é estúpido lamentar-se da saudade, já que o espaço que separa aquele que se perdeu daquele que o deseja é mínimo. Precisamos ter a certeza na alma de que seguiremos aqueles que perdemos.

Considera a velocidade do tempo, é muito rápi­do. Pensa na brevidade desse período que percorremos. Observa o cortejo dos seres humanos que se dirigem todos para um mesmo lugar, separados por pequenos espaços de tempo, embora nos pareçam grandes. Aque­le que achas que perdeste apenas foi antes de ti. Por que chorar aquele que partiu antes se vais seguir o mesmo caminho?

Existe alguém que chore por algo que sabe que vai acontecer? Aquele que lamenta a morte de alguém lamenta ter nascido. Uma mesma lei rege a todos nós. Quem nasceu deve um dia morrer. Os tempos podem ser diferentes, mas o fim é o mesmo. O espaço com­preendido entre o primeiro e o último dia é variável e incerto. Se levas em conta as doenças, é longo mesmo para as crianças. Se levas em conta a rapidez, é curto mesmo para os velhos. Não existe nada que não seja tão escorregadio, enganoso e imprevisível como qualquer tempestade.Tudo vai, tudo vem, tudo muda ao capri­cho do destino e, em meio a tudo isso, nada é mais cer­to do que a morte. Apesar de tudo, todos se queixam de um acontecimento para o qual sempre foram avisados.

‘Mas morreu ainda muito jovem.’Não me atrevo a dizer, ainda, que vai melhor quem menos tempo teve. Pensemos naquele que envelheceu. Quanto mais teve que o jovem? Imagina a extensão do abismo do tempo, observa o conjunto e compara depois com a eternidade isso que chamamos de idade dos homens. Verás como é pequeno o que queremos ampliar. Pensa, além disso, quanto perdemos desse tempo com lágrimas, ansieda­des, desejo de morrer, medos? Quanto perdemos nos anos de ignorância e de inutilidade. A metade ainda se passa dormindo. Junte-se a tudo as fadigas, as penas, os perigos. Compreenderás que mesmo na mais longa vida o que se vive é muito pouco.

Mas quem te confirmará que é mais feliz aquele a quem foi concedido um retorno mais rápido e acabou o seu caminho antes? A vida não é um bem nem um mal; é período de bem e de mal. Assim teu filho nada perdeu. Ele poderia ter conhecido o equilíbrio e a prudência; poderia, sob teus cuidados, formar-se para o melhor, porém o mais certo é temer que poderia ter sido como todos os demais.

Repara naqueles jovens de melhores famílias a quem a luxúria jogou na rua; naqueles que exercem contra os outros a sua libido; nunca terminam o dia sem uma embriaguez ou outra baixeza. Assim, verás que há mais motivo para temor do que para esperança. Não deves, pois, procurar causas para sofrimento, nem aumentar com falta de resignação o que não passou de um pequeno problema. Não te induzo a que faças um esforço e te levantes; não acredito que seja necessário mobilizar toda a tua energia e dignidade contra esse in­cidente. Isso não é dor, é uma tortura. Tu a convertes em dor. Não há dúvida que de grande proveito te terá sido a filosofia se com ânimo forte deplorares a perda de uma criança mais chegada à sua ama que ao seu pai.

O quê? Agora te aconselho a ser insensível e que, durante as exéquias, teu semblante permaneça impassí­vel e sem aperto no coração? Não, de maneira alguma. Não seria humano, e de nenhuma virtude, acompanhar o enterro dos seus com os mesmos olhos que os via enquanto vivos e não sentir nenhuma emoção a uma primeira separação. Ainda que quisesses vetar tais sen­timentos, eles estão entre aquelas coisas que se impõem sem pedir permissão. As lágrimas rolam mesmo dos olhos que as retêm e apazíguam o coração. Que fazer, então? Deixemos que rolem essas lágrimas, mas não as provoquemos; que brotem apenas aquelas que deno­tem sentimento, não aquelas por conveniência. Não juntemos nada à tristeza nem a aumentem os para imitar os outros. A ostentação da dor é mais exigente que a própria dor. Raros são aqueles que ficam tristes sozinhos. Quando há público, redobram de intensidade os gemidos e, silenciosos e calmos na solidão, em presença de outros sentem necessidade de novos prantos. Nesse momento, tentam arrancar os cabelos, o que poderia ter sido feito mais livremente quando não havia nin­guém para impedi-los; dizem querer a morte e deba­tem-se no leito. Sem espectador, cessa a dor.

Acontece que, como em todas as coisas, também nessas circunstâncias deixamo-nos levar pelo hábito de ter um comportamento esperado pela maioria, passa­mos a agir não como convém, mas como é costume. Afastamo-nos da natureza e nos lançamos no meio do povo, que nunca é um bom conselheiro e, nessa situa­ção, como em outras, é um modelo de inconstância. Se vê alguém forte em sua dor, chama de desumano e desalmado. Ao contrário, se vê abraçado ao cadáver, declara que é fraco e efeminado. É preciso, em todas as coisas, agir com a razão. E não há coisa mais insensata que glorificar sua tristeza e achar mérito em mostrar suas lágrimas. A meu ver, se o sábio deixa rolar algu­mas, outras fluem espontaneamente. Vou dizer-te em que são diferentes. Quando a primeira notícia de uma morte sentida nos fulmina bruscamente, quando enlaçamos aquele corpo que em breve passará às chamas, é natural que as lágrimas rolem e os soluços, impelidos pela dor súbita, sacodem o corpo todo e somos presos de uma emoção que comprime e expulsa todas as lágrimas de nossos olhos. Sob tal pressão, essas lágrimas caem contra nossa vontade. Mas há aquelas que deixamos rolar livremente ao lembrar aqueles que perdemos. Há um quê de doçura nesse tipo de tristeza quando relembram os as conversas, a convivência agradável, a ternura da afeição. Então, nossos olhos relaxam e, de forma espontânea, nos abandonamos a essas lágrimas. Sobre as outras não tem os controle.

Não há razão, assim, para reter ou derramar as lágrimas por consideração a quem está à tua volta ou te acompanha; nem reprimir nem soltar é tão deplorável como fingi-las. Que venham quando devem vir. Que corram brandas ou comedidas. Freqüentemente, sem perda do prestígio do sábio, correram com tal sobrie­dade que não lhes faltou dignidade nem humanidade. É possível, repito, obedecer à natureza sem perder a compostura.

Eu tenho visto, em homens respeitáveis, no en­terro de seus entes queridos, assomar o amor doloroso em seus rostos sem nenhuma encenação trágica; não fazem concessão nenhuma senão aos sentimentos sin­ceros. A dor também tem o seu recato, o qual o sábio sabe preservar; como nas demais coisas, também nas lágrimas há uma justa medida. Nos insensatos, dores e gozos são impetuosos.

Recebe com temperança o inevitável. O que te aconteceu de inacreditável e de extraordinário? Quan­tos, neste mesmo momento, encomendam ofícios fú­nebres, para quantos se prepara o enterro, quantos ainda vão chorar depois de teu luto? Em todos os mo­mentos que pensares que ainda era uma criança, pen­sa, igualmente, que era um ser humano a quem nada mais se prometeu, que o destino não se comprometeu de levá-lo até a velhice; quando achou que era conve­niente, fê-lo partir. Por fim, fala dele sempre e celebra a sua memória que voltará repetidamente quanto menos amargor houver. Ninguém, com razão, aprecia a com­panhia de um homem triste e, sobretudo, da tristeza. Se ouviste com prazer muitas de suas conversas, se admiraste alguns de seus feitos, por mais infantis que fos­sem, lembra-os seguidamente. Afirma, com segurança, que ele poderia ter realizado todas as esperanças que teu amor paternal havia concebido para ele.

Não é do ser humano esquecer os seus, enterrar suas recordações junto com o corpo, chorá-los copiosamente e lembrá-los minimamente. É assim que os pássaros e as feras amam seus filhos. Seu amor é breve e violento, quase raivoso, mas, assim que os perdem, se extingue completamente. Tal conduta não convém a um homem sábio: que preserve a lembrança, mas que pare de se lamentar.

Eu não aprovo, de forma alguma, a opinião de Metrodoro, segundo a qual existe certo prazer aparen­te na tristeza e que se deve gozá-lo. Escrevo aqui suas palavras: ‘Há uma espécie de prazer no fundo da dor, prazer que é bom experimentar em tais situações’.

Não tenho nenhuma dúvida do que pensas sobre isso. O que há de mais vergonhoso do que saborear o prazer no luto, ou melhor dizendo, graças ao luto, bus­cando nas lágrimas a volúpia? Esses são os que repro­vam nosso rigor excessivo e acusam nossos preceitos de serem desumanos, porque pregamos que a dor não deve ser admitida em nossas almas, ou deve ser logo abandonada. Qual dessas duas coisas pode ser conside­rada mais inconveniente e insensível: não sentir a dor pela perda de um amigo, ou procurar prazer nessa dor? Nossos preceitos são honrados: quando o sentimento já derramou algumas lágrimas e, assim, aliviou a alma, não é necessário entregar-se à dor. Como assim? Pensas que a dor deve misturar-se ao prazer? É assim que con­solamos as crianças, dando-lhes um doce; é assim que paramos o choro de um bebê, dando-lhe o leite. Nem sequer quando teu filho arde na pira, ou teu amigo exa­la o último suspiro permites que cesse o prazer? O que é mais honesto: arrancar a dor da alma, ou acolher junto a ela o prazer? ‘Acolher esta dor’, disse eu? Procurá-la, são essas as palavras.

‘Existe’, segundo Metrodoro, ‘uma espécie de voluptuosidade nascida simultaneamente com a tristeza.’ Dizer isso é lícito para nós, mas não para ti a conheces um só bem, o prazer; um só mal, a dor. Que parentesco pode haver entre o bem e o mal? Ainda que houvesse, seria este o melhor momento para experimentá-lo? Rea­vivar a dor para ver se traz algum prazer?

Alguns remédios são salutares para alguns órgãos, mas não serão utilizados em outros, e o que em um lu­gar é benéfico torna-se inconveniente em outro. Não te causa vergonha curar o luto com o prazer? Tal ferida requer um tratamento mais rigoroso. Presta a atenção a isto: o morto não é sensível ao mal, se o fosse, estaria vivo. Nada, repito, pode atingir a quem não existe mais. Se o atinge é porque ele vive. Onde está o mal para ele do teu ponto de vista? Não ser mais ou ser ainda? Ele não é afetado pelo fato de não existir - que sensação tem quem não existe mais - nem o afeta o fato de es­tar morto, porque estando ficou livre do mal maior da morte que é, justamente, o não ser.*

Digamos, pois, ao que chora e sente saudades do filho levado na infância o seguinte: todos, moços ou ve­lhos, no que diz respeito à brevidade da vida, se com­parada com a eternidade, estamos em pé de igualdade. O que nos coube da totalidade é menos do que se possa imaginar, porque, em verdade, a menor parte é ainda uma parte, já que a duração de nossa vida é quase nada. E, todavia, (quanta insensatez) buscam os dispor desse tempo sem contá-lo.

Se te escrevi tais coisas, não foi para que recebesses de mim um remédio tardio - já que estou seguro de ter te falado tudo isso que agora lês -, mas para castigar-te daquele breve momento no qual te afastaste de ti mesmo e, ainda, para te estimular, de hoje em diante, a preparar teu espírito contra o destino, para que pre­vejas seus golpes não como possíveis, mas, com certeza, vindouros.” Passa bem!

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9/9/2021 7:36:40 PM | Por Lucius Annaeus Seneca
Sêneca saúda o amigo Lucílio: Da qualidade da vida comparada com a sua duração

Em carta na qual te queixas da morte do filósofo Metronax, como se ele pudesse ou quisesse viver mais, não pude reconhecer o espírito de justiça que demons­tras em relação a todos e a tudo. Percebi que esse espí­rito estava ausente em um assunto que também falta a todo mundo. Já tive a oportunidade de encontrar muitos que se dão bem com os homens, porém, com os deuses, nenhum. Todos os dias, acusamos o destino: “Por que este foi levado, quando ainda estava no auge de sua carreira, e não aquele outro?”. “Por que a velhice se prolonga quando é um fardo para si e para os outros?”

O que é mais correto, pergunto, obedecer à natu­reza ou ser obedecido por ela? O que importa sair antes ou depois de um lugar de onde deveremos todos sair um dia? O que importa não é viver muito, mas viver com qualidade. Com efeito, viver muito tempo quem decide é o destino. Viver plenamente, o teu espírito. A vida é longa se for vivida com plenitude. Assim, ela está plena quando a alma tomou posse do bem que lhe é próprio e não depende senão de seu poder.

Qual o proveito, para este homem, seus oitenta anos passados sem nada produzir? Não viveu, apenas passou por algum tempo pela vida. Não morreu tarde, passou longo tempo morrendo. Viveu oitenta anos, mas viveu mesmo? Tudo depende a partir de quando se conta a sua morte.
Aquele outro, ao contrário, morreu em plena ati­vidade, cumpriu os seus deveres de bom cidadão, bom amigo e bom filho, não falhou em nenhum ponto. Se ele não atingiu seu tempo, ainda assim, cumpriu a sua obra. O outro viveu oitenta anos? Não, ele apenas per­durou oitenta anos, a menos que penses que viver é ser como as plantas e os vegetais. Peço-te, Lucílio, que nossas vidas, como as pedras preciosas, valham não por sua duração, mas por seu peso. Devemos medi-las por sua atividade real, não por seu tempo. Desejas saber a diferença existente entre aquele que despreza a for­tuna e que, após ter cumprido todas as exigências da vida, conheceu a sublime felicidade e aquele homem que apenas viu os anos passarem em branco? Um ain­da vive após ter morrido; o outro, antes de morrer, já havia deixado de viver.
Louvemos e coloquemos entre os mais felizes aqueles que fizeram um bom emprego do tempo que lhes foi dado. Este conheceu a verdadeira luz. Ele não foi apenas um entre tantos. Conheceu vida e vigor. Por vezes, gozou de um tempo sereno; por outras, como acontece, o sol foi encoberto por algumas nuvens. Por que indagas qual foi a duração de sua vida? Ele vive. Passou de uma vez para a posteridade e ficou na lembrança dos homens.

Nem por isso negarei um acréscimo de anos para a minha vida. Mas se o período dela for cortado, não poderei dizer que minha felicidade não foi completa. Não estou preparado para aquele dia que a minha sô­frega esperança me prometeu como o último. Não há um dia de minha vida que não tenha considerado como o último. Por que me indagas quando nasci e se ainda sou jovem o bastante para não partir? Eu tenho a minha própria contagem.

Da mesma maneira que um homem pode habitar um corpo miúdo, também a vida pode ser perfeita se tiver uma curta duração. A idade faz parte das coisas exteriores. A duração de minha vida não depende de mim. O que depende é que não percorra de forma pou­co nobre as fases dessa vida; devo governá-la, e não por ela ser levado.

Queres saber qual é a vida mais longa? Aquela que tem seu fim na sabedoria. Chegar a esse ponto é atingir o fim mais longínquo e também mais elevado. Assim, o homem pode celebrar audaciosamente, prestar home­nagem aos deuses e, dentre os deuses, a ele próprio, fa­zendo com que a natureza agradeça-lhe pelo que é, pois devolve a ela uma vida melhor que a recebida. Estabe­leceu o tipo ideal do homem de bem, demonstrou sua qualidade e sua magnitude. Se algo mais fosse acres­centado a seus dias, apenas conseguiria levar adiante o seu passado.

Afinal, até quando desejamos viver? Pudemos co­nhecer todas as coisas. Sabemos como se constroem os princípios da natureza, como comanda o mundo, por quais movimentos das estações encerra o ciclo anual, como deixa delineados todos os fenômenos que deve­rão ocorrer, sem procurar os seus fins fora de si mesma. Sabemos que os astros giram com movimento próprio, que, com exceção da Terra, nada é fixo, que tudo o mais percorre o seu curso com velocidade inalterável. Também sabemos que a lua ultrapassa o sol, porque, sendo mais lenta, deixa-o atrás de si, de forma a receber ou perder a sua luz, trazendo um o dia e outro a noite. O que nos resta é atingir esse lugar no qual essas coisas extraordinárias possam ser observadas de perto.

“Nem a esperança”, diz aquele sábio, “de um ca­minho aberto para mim em direção aos deuses me faz partir com mais coragem. Sem dúvida, mereci ser admi­tido entre eles e já me imagino lá. Elevo meu pensa­mento até eles e os deles chegam até mim. Suponha, entretanto, que eu esteja destruído aqui e que não reste nada ao homem após sua morte. Ainda assim, eu man­tenho a minha coragem, mesmo se ao deixar esse mun­do não vá para lugar nenhum .”

“Mas ele não viveu o número de anos que pode­ria ter vivido.” Um número reduzido de linhas pode formar um livro, apreciável e útil. Tens conhecimento de como os Anais de Tanúsio são indigestos e qual o nome que lhe é dado. A vida longa de certos homens se iguala ao livro de Tanúsio. Consideras que o gladiador que morre no fim do espetáculo é mais feliz que aquele que morre no meio? Podes imaginar que algum desses homens deseje tanto viver que prefira ser enforcado no vestiário a morrer lutando na arena? O tempo que nos separa uns dos outros não é o mais importante. A morte está sempre junto a nós, sem esquecer ninguém; o assas­sino persegue a sua vítima. Apenas por um momento a mais é que as pessoas procuram com tanto empenho. De que serve evitar por mais ou menos tempo aquilo que é inevitável? Passa bem!

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9/9/2021 7:28:59 PM | Por Lucius Annaeus Seneca
Sêneca saúda o amigo Lucílio: Das artes liberais

Queres saber o que penso a respeito das “artes li­berais”? Nenhuma delas tem valor para mim, nenhuma tem o mérito de figurar entre os bens autênticos, uma vez que são praticadas pelo dinheiro. São ciências se­cundárias, que têm por utilidade apenas preparar a in­teligência, sem atrapalhá-la. Não devemos praticá-las. Devemos nos deter nelas apenas enquanto o espírito não está preparado para coisas mais importantes. Re­presentam apenas rudimentos, e não obras definitivas. É por isso, compreendes, que são chamados de estudos liberais: porque são para o homem livre. Na rea­lidade, há apenas um estudo que seja verdadeiramente liberal, o que torna livre: o da sabedoria, estudo pleno de grandeza, de coragem e de nobreza. Todo o resto é pequeno, pueril. Acreditas, realmente, que possa haver algo de bom nessas matérias que ensinam as coisas mais desonestas e indignas? Tais disciplinas não devemos aprendê-las, mas tê-las aprendidas. Alguns julgaram interessante examinar se esses estudos poderiam tornar o homem honesto, coisa que eles não têm como objeti­vo nem capacidade.

O gramático se ocupa com a linguagem e, se de­seja alargar seu campo de estudo, dirige-se à história, à poesia. De todas essas disciplinas, qual abre o caminho da virtude? A escansão das sílabas? A escolha escrupu­losa das palavras? A leitura de fábulas mitológicas? A lei e as variações do verso? Qual, dentre essas artes, livra da ambição, suprime o medo, refreia a paixão?

Passemos à geometria e à música. Tu não encontrarás lá quem nos defenda do medo ou da ambição. Há de se procurar saber se ensinam a virtude; se não ensinam, todo o saber é inútil, pois não sabem co­municar a sua sabedoria. Se a ensinam, são filósofos. Queres te convencer de que não se propõem a ensinar a virtude? Repara com o são diferentes os ensinamentos de uns e de outros. Se executassem a mesma doutrina, seriam iguais.

Se não estás convencido de que Homero foi filó­sofo, os seus argumentos provam o contrário. Fazem dele um estóico que não aceita senão a virtude, que se esquiva dos prazeres e que nem mesmo em troca da imortalidade se aparta do caminho que julga correto. Outras vezes, julgam -no um epicurista, que admira a posição pacífica de uma cidade, passando a vida en­tre festas e cantos. Também o consideram peripatético, que apresenta uma versão tripartida dos fatos. Por vezes, ainda, chamam-no acadêmico, um pregador da incerteza universal. Evidentemente, não existe em Ho­mero nenhuma dessas características separadamente, porque nele todas estão juntas e são incompatíveis. Digamos que Homero foi um filósofo. Assim, conheceu a sabedoria antes de fazer poesia. Aprendamos, portanto, tudo o que tornou Homero um sábio.
Pesquisar, entretanto, se Homero é anterior a Hesíodo é tão importante quanto saber por que Hécuba, sendo mais jovem que Helena, carregava com tanto peso a sua idade. Em que ajuda saber a idade de Pátroclo ou Ulisses?

Indagar por onde errou Ulisses, em lugar de nós sairmos a errar? Não temos tempo para procurar saber se foi perseguido por tempestades entre a Itália e a Sicilia ou fora do mundo conhecido, pois ele não poderia errar tanto tempo por um espaço tão limitado. As tormentas da alma nos assaltam todos os dias, e todas as maldades possíveis nos são lançadas. Não falta uma bela forma que nos tente os olhos, não falta um inimigo. Monstros enormes em busca de sangue, traiçoeiras lisonjas, naufrágios e todas as espécies de males. Dize-me como amar minha pátria, minha mulher, meu pai, e, naufragando, como poderei nadar em direção a no­bres objetivos?

Por que indagar se Penélope traiu e enganou a todo mundo? Se suspeitou, antes de todos, que era Ulisses a estar em sua frente? Ensina-me o que é a casti­dade, se é um bem e se reside no corpo ou na alma.

Passo, agora, ao músico. Tu me ensinas como os sons agudos e graves combinam entre si, de que maneira os diferentes sons produzidos pela corda formam uma harmonia. Mostra-me, antes, de que maneira a minha alma poderá ficar em harmonia com ela mesma, de modo que não haja dissonância com as minhas resoluções. Indica-me quais são os tons chorosos, mos­trando-me, sobretudo, como, em meio aos infortúnios, não passar a me lam entar.

O geômetra ensina-me a medir as grandes pro­priedades. Faria melhor se me ensinasse a encontrar a medida exata daquilo que satisfaz ao homem. Apren­do a contar e treinar os meus dedos para a avareza, em lugar de aprender que todos esses cálculos não têm nenhuma espécie de utilidade e que não é mais feliz o dono de tal patrimônio cujo gerenciamento causa cansaço. Ao contrário, o dono de tais bens supérfluos seria bem infeliz se tivesse que fazer o levantamento de tudo o que possui.

De que me adianta saber lotear um terreno se não sei dividi-lo com um irmão? Para que saber calcular o número de pés de uma jeira* e, ainda, constatar que parte da medida me escapou, se me entristece ter um vizinho insaciável que subtrai algo que me pertence? Ensinam-me a não perder nada de minhas terras. Eu, no entanto, quero é perdê-la toda com alegria. “Mas é da terra de meu pai e de meu avô que me expulsam!”
E daí? Antes de teu avô, quem possuía essas ter­ras? Podes apurar a qual povo - já nem digo homem - pertencia essa terra? Tu não entraste nela como dono, mas como lavrador. Lavrador de quem? Mais adequa­damente falando, do herdeiro. Os juizes dizem não ser possível tomar para si aquilo que é do domínio público; o lugar que ocupas, que entendes ser teu, faz parte do bem comum e mesmo da humanidade inteira.
Ó arte admirável! Sabes medir tudo o que é redon­do, sabes reduzir ao quadrado toda figura proposta, co­nheces as distâncias entre os astros. Não há nada que não possas medir. Se és um grande geômetra, mede a alma do homem, dize-nos sua grandeza ou pequeneza. Sabes o que é uma linha reta, mas de que te serve isso se ignoras o que é um a vida de retidão?

Eis o que deve querer saber quem muito quer sa­ber. Pensa no tempo que nos toma a doença, as ocupa­ções públicas e privadas, os encargos cotidianos, o sono. Avalia a tua vida; ela não é tão vasta para tudo isso.

Eu falo das artes liberais, porém muito de supérfluo e inútil existe também nos filósofos. Mesmo eles penderam para as divisões silábicas, para as propriedades das conjunções e proposições, a competir com os gramáticos, a ter inveja dos geômetras. Tudo de inútil nessas artes trouxeram para a sua própria. O resultado? Souberam melhor falar do que viver.

Escuta como é perniciosa a sutileza em demasia, como é nefasta a verdade. Protágoras diz que se pode, em todas as situações, discutir os prós e os contras de forma igual, a começar pelo fato de saber se toda situa­ção pode ser defendida em ambos os sentidos. Neusífanes diz que, daquilo que parece ser, tudo pode ser como não ser. Parmênides diz que não há nenhuma diferença entre todos os objetos que vemos. Zenão de Eléia li­vrou-se do problema para sempre: para ele, nada existe. Está bem perto a tese dos pirrônicos, os megáricos, os eretríacos e os acadêmicos, que trouxeram um novo sa­ber: a ignorância total.

Tudo isso se coloca no conjunto de questões que nos ensinam as artes liberais. Uns me ensinam uma arte que de nada me servirá; outros, me tiram toda a espe­rança de aprender o que quer que seja. Assim, mais vale saber o supérfluo do que não saber nada... Uns não me dão a luz que poderá me conduzir para a compreensão da verdade; outros me arrancam os olhos. Se acredito em Protágoras, não há nada que não seja incerto na na­tureza. Se acredito em Nausífane, a única coisa certa é a incerteza. Se em Parmenides, só existe uma coisa; se em Zenão, nenhuma.

Afinal, que somos nós? E todas as coisas que nos rodeiam, nos alimentam, nos equilibram? A natureza, como um todo, é uma ilusão, é vazia. Não saberia dizer quem mais me exaspera: se os que não permitem que saibamos algo, ou os que nem sequer isso nos conce­dem - não saber nada. Passa bem!

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9/9/2021 7:26:24 PM | Por Lucius Annaeus Seneca
Sêneca saúda o amigo Lucílio: Do ler e do escrever

Essas viagens que agitam a minha preguiça são vantajosas tanto para a minha saúde quanto para os meus estudos. Vantajosas para a minha saúde? Vê bem: o amor pelas letras me torna indolente e faz com que negligencie meu corpo. Carregado em liteira, deslo­co-m e fisicamente sem me fatigar. Vantajosas para o estudo? Vou dizer-te como. Não me afastei de minhas leituras por elas. Do meu ponto de vista, considero-as indispensáveis: primeiro, para evitar que me contente comigo mesmo; segundo, porque me permitem, após ter conhecimento das pesquisas dos outros, poder ava­liar as descobertas já feitas e refletir sobre as que ainda estão por fazer. A leitura alimenta o espírito fatigado pelo estudo sem, contudo, deixá-lo de lado.

Devemos evitar apenas escrever e apenas ler, pois se só escrevemos esgotaremos nossas forças (falo do trabalho de escritura), enquanto somente escrever fará com que se diluam. É necessário passar de um exercício para outro com justa medida, a fim de que a escritura organize tudo que foi recolhido na leitura.

Devemos, como se diz, imitar as abelhas, que vão de um lugar a outro para escolher as flores que lhes darão mais mel e depois repartem e dispõem em favos tudo o que recolheram e, como diz Virgílio, “elas fabricam o mel líquido e incham os alvéolos de doce néctar”.*

A propósito das abelhas, não se sabe com certeza se tiram das flores o suco que se transformará em mel ou se transformam aquilo que recolhem, por meio de alguma propriedade própria, de modo a dar-lhe aquele sabor especial. Para alguns, a sua arte consiste não em fazer o mel, mas apenas em recolhê-lo. Diz-se que, na índia, existem certos tipos de cana em cujas folhas o mel é encontrado. Esse seria produzido pelo clima ou por um a secreção doce abundante da própria cana. Tal secreção existiria em nossas plantas, embora não de maneira tão manifesta, sendo buscada e extraída pelo inseto nascido para esse fim. Outros, contudo, pensam que depende de certa preparação e disposição que as abelhas transformem em mel a matéria extraída das partes mais tenras das folhas e das flores, através da
ação de algum fermento que une os elementos distin­tos. Mas, para não deixar de lado o assunto de que vinha tratando, também devemos imitar as abelhas, e tudo o que acumularmos com nossas diferentes leituras deve­mos ordenar (melhor se conservam as coisas, se estão em lugares certos) e, após, com todo o nosso esforço e a nossa inteligência, unir em um só saber todos os diver­sos conhecimentos, de forma a que se consiga perceber a sua origem e se possa demonstrar, igualmente, a sua transformação. Podemos perceber que a natureza faz o mesmo com o nosso corpo sem que o percebamos.

Os alimentos que absorvemos, enquanto mantêm as suas qualidades e ficam em suspensão em nosso estô­mago, antes da decomposição, são um peso. No entan­to, logo que ocorre a transformação, tornam-se sangue e nos dão força. Façamos o mesmo com o alimento do espírito, não permitindo que aquilo que absorvemos mentalmente continue igual, e sim passe a ser outro.

Temos que digeri-los para que não alimentem apenas a nossa memória, mas também a nossa inteligência. Esforcemo-nos para assimilá-los e fazê-los render a fim de que um se transforme em muitos, como se faz um só número de muitos, a partir da soma de quantidades pequenas e desiguais. Que nosso espírito faça o mesmo: que dissimule tudo com o que se nutriu e apresente so­mente o resultado final.

Desejo, ainda, que se revele em ti a semelhança com algum autor que admires. Desejo que te asseme­lhes a ele como um filho a seu pai, e não como um re­trato a seu modelo. O retrato é uma coisa morta. “Que dizes? Não se reconhecerá aquele cujo estilo, raciocínio e pensamentos se estão a imitar?” Creio que seja possí­vel que isso ocorra, se é um homem de grande talento que imprimiu sua própria marca ao modelo escolhido, transformando-o em uma unidade.

Observa de quantas vozes é formado um coro. No entanto, todas elas formam apenas uma, a aguda, a grave e a média. Juntam-se as vozes masculinas e fe­mininas, acompanhadas pela flauta. Todas elas ficam indistintas e ouve-se apenas o conjunto.

Estou falando do coro tal como o conheceram os filósofos antigos. Nos espetáculos de hoje, há mais cantores do que havia, no passado, espectadores no tea­tro. Os corredores ficam cheios pelas filas de cantores, a platéia fica rodeada de trombetas. Da orquestra res­soam flautas e todos os tipos de instrumentos: de sons tão diferentes, faz-se uma só harmonia. Desejo que nosso espírito faça o mesmo. Que seja rico de conheci­mentos, de preceitos, de exemplos tomados de épocas diferentes, mas que aspirem à unidade.

“Como”, me perguntarás, “pode-se chegar a tudo isso?” Através de uma vigilância contínua, não agindo jamais senão sob o controle da razão. Se desejares es­cutá-la, ela te dirá: “Deixa de lado essas coisas atrás das quais os homens correm. Deixa as riquezas, perigo e fardo para aqueles que as possuem. Renuncia aos prazeres do corpo e da alma; eles amolecem e debilitam. Renuncia à ambição, coisa vã e pomposa, que não tem limite nem freio, procurando sempre ultrapassar os que caminham à frente ou ao lado, atormentada pela dupla inveja. Sabes bem como é ruim invejar e ser invejado.”

Repara nos palácios dos poderosos. Todos se aco­tovelam em sua porta para saudar os donos. Muitas afrontas têm que agüentar para conseguir entrar e, uma vez lá, outras mais. Passa longe das escadarias dos ricos e de seus terraços, pois, se neles ousares entrar, estarás à beira de um precipício, de um terreno prestes a ruir. O melhor é dirigir-te para a sabedoria, onde encontrarás, ao mesmo tempo, tranqüilidade e grandes possibilida­ des de crescimento.

A tudo o que se sobressai nas coisas humanas, mesmo que pareça pequeno e não se faça perceber senão se comparado com algo menor, somente se chega atra­vés de árduo trabalho. Difícil é o caminho que conduz ao cume da dignidade. No entanto, se te propuseres a alcançar esse caminho, diante do qual também o desti­no fez reverência, poderás ver, a teus pés, todas aquelas coisas que os homens julgam como as mais nobres. E, a partir deste ponto, o caminho se tornará fácil de ser trilhado em direção ao supremo bem. Passa bem!

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Estoicismo - Tópicos gerais, 
9/9/2021 7:24:34 PM | Por Lucius Annaeus Seneca
Sêneca saúda o amigo Lucílio: Da utilidade dos princípios básicos

Os médicos de antigamente não sabiam prescre­ver refeições mais freqüentes, nem conter com o vinho um pulso mais fraco. Ignoravam a sangria e os banhos de vapor que dissipam as doenças crônicas. Não sabiam que, amarrando pés e braços, era possível levar para as extremidades uma doença que residia no fundo de nos­so organismo. Um sistema de defesa assim tão comple­to era inútil, uma vez que os perigos eram raros.

Mas, agora, como se multiplicaram os males que afetam a saúde! Esse é o preço que pagamos pelos pra- zeres ilícitos, usufruídos sem qualquer medida. Nos­sas doenças são inumeráveis. Isso te espanta? Conta o número de cozinheiros. Todo o trabalho intelectual cessou. Os professores das artes liberais estão abando­ nados, sem público, com escolas desertas. Nas escolas dos retóricos e dos filósofos, reina a solidão. Mas as co­zinhas, que multidão! Um grande número de jovens se amontoa ao redor dos fornos dos perdulários.

E nem falo desses infelizes rebanhos de mocinhos a quem , terminada a festa, aguardam , em cubículos, outros tipos de ultrajes. Não falo, também, dos grupos de adolescentes, separados por nação, cor e a fim de que, em cada grupo, todos tenham a mesma quantida­de de pêlos, a mesma cor de cabelos, e que não sejam misturados aqueles de cabelos lisos com os de cabelos crespos. Não faço referência, igualmente, ao grupo de doceiros e ao de servidores que, a um sinal do senhor, põem-se a circular para servir a ceia. Ó deuses, quantos homens um só ventre faz trabalhar!

Quê? Acreditas que aqueles cogumelos, veneno delicioso, não se agitam no estômago se não m atarem instantaneamente? Quê? Crês que aquele glacê não obs­trui o fígado? Quê? Estás certo de que aquelas ostras, carne mole cevada com limo, não te transmitem nada do recipiente de onde vieram? Quê? Não achas que aquela salmoura da província, podridão preciosa de peixes ruins, queima as entranhas quando se decompõe em um líquido salgado? Quê? Aquelas carnes purulentas que saem direto do fogo para a boca, acreditas que, sem mal algum , se dissolvem facilmente nas entranhas? Em seguida, que arrotos repugnantes e pestilentos! Como se desgostam de si mesmos com tais expurgos! Saiba que esses alimentos não são digeridos, eles apodrecem .

Lembro que há algum tempo falava-se muito de um prato famoso no qual foi reunido tudo aquilo que faz parte da mesa de um glutão durante um dia: con­chas de Vênus, espôndilos, ostras picadas com extrema arte. Entre esses mariscos, encontravam-se ouriços-do- mar. O conjunto repousava sobre um leito de rascasso do qual haviam sido retiradas todas as espinhas.

Causa fastio comer um a um todos esses petiscos, pois os sabores se misturam . M ostra-se à mesa aquilo que acontece no estômago farto. Espero o dia de ver servir pratos já mastigados. Não dá muito menos tra­balho colocar o cozinheiro a retirar conchas e ossos e a fazer o trabalho dos dentes? “É desagradável saborear iguarias um a a um a; deve-se servi-las todas ao mesmo tempo, tudo concentrado em um único sabor. Por que

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levar a mão a um a coisa apenas? Que venham todas ao mesmo tempo; unam-se e combinem-se as proprie­dades de muitos alimentos. Aqueles que dizem ser a mesa um pretexto para a ostentação e fausto devem saber que não se mostram os guisados, eles devem sei adivinhados. Alimentos cujo costume é servir separada m ente sejam servidos juntos, enfeitados com um m es­ mo molho; que nenhum se distinga. Ostras, ouriços, espôndilos, rascassos, quando servidos, estejam todos misturados e tenham sido cozidos ao mesmo tempo.” Não seria mais confusa a comida vomitada.

Assim como essas comidas são complexas, tam­bém as doenças por elas causadas não são simples. São confusas, desconhecidas, de muitos tipos. Contra elas, a medicina passou a armar-se com diferentes remédios e cuidados.

O mesmo te digo da filosofia. Houve um tempo em que foi mais simples, porque os pecados eram me­nores e curáveis com pequenos cuidados. Contra tanta subversão dos costumes, todos os recursos deverão ser tentados. Queiram os deuses que, assim, se possa ven­cer tal calamidade! Passa bem!

Filosofia - Filosofia Clássica
Estoicismo - Tópicos gerais, 
9/9/2021 7:20:21 PM | Por Lucius Annaeus Seneca
Sêneca saúda o amigo Lucílio: Dos enganos do mundo

Hoje, estou livre, não por meu próprio mérito, mas devido a um espetáculo ao qual todos os inoportu­nos chamam de péla. Ninguém irrompe à minha casa sem avisar, ninguém impede a minha reflexão, que, nessa confiança, procede mais audaz. A porta não se abrirá subitamente, ninguém levantará a cortina do meu gabinete; poderei prosseguir livre de tudo, o que é tão necessário para quem caminha só e percorre uma estrada. Não sigo, pois, os meus predecessores? Sim, mas me permito descobrir coisas novas, modificar al­gumas e abandonar outras. Não sou um servidor deles, apenas alguém que com eles concorda.

Mas falei demais quando prometi silêncio e soli­dão sem interrupção. Eis que um grande clamor chega do estádio, o qual, embora não apague os meus pen­samentos, desvia a minha reflexão. Penso que muitos exercitam os corpos e poucos exercitam a mente; quan­tos correm ao espetáculo dos jogos do qual nada será ti­rado de útil; penso no descaso com as boas artes. Quão débil é o espírito daqueles que admiram os ter músculos e envergadura.

E sobretudo, nisto, penso comigo mesmo: se o cor­po pode, através do exercício, resistir a socos e pontapés, e não de um único homem, durante um dia inteiro sob o sol ardente na areia escaldante, perdendo sangue, quão mais fácil seria reforçar o espírito para que recebesse, invicto, os golpes do destino, para que se erguesse nova­mente mesmo que fosse derrubado e pisoteado!

De fato, o corpo precisa de muitas coisas para es­tar bem; o espírito, ao contrário, cresce por si mesmo, se alimenta e se exercita sozinho. Os atletas precisam de muita comida, muita bebida, muito óleo, enfim, de muito exercício. Tu podes ter a virtude sem nenhum aparato nem despesa. O que quer que te faça virtuoso já está contigo.

De que precisas para te tornares bom? Apenas de vontade! O que, pois, tu mais deves querer do que te libertares desta servidão que oprime a todos, que até os escravos, que estão em condições extremas, nascidos na sordidez, desejam de todo modo se libertar? Gastam todo o seu dinheiro, mesmo tendo que passar fome, para obter a liberdade; e tu, que pensas ter nascido li­vre, não desejas ter a todo custo a liberdade?

Por que olhas para o cofre? A liberdade não pode ser comprada. Assim, é inútil colocar o nome de liberda­de em documentos: não pode ser comprada nem ven­dida. Esse bem deves dar a ti mesmo, peça-o para ti. Primeiro, livra-te do medo da morte, pois ela nos impõe o seu jugo, e, depois, deves perder o medo da pobreza.

Para que saibas que na pobreza não existe mal, compara os rostos dos pobres e dos ricos. O pobre ri com mais freqüência e de forma mais espontânea. Não tem nenhuma preocupação no seu íntimo e, se algo o preocupa, passa por ele como uma nuvem ligeira. No entanto, aqueles que são chamados felizes mostram uma alegria fingida, enquanto a sua tristeza é pesada e doentia, porque não podem, muitas vezes, se mostrar abertamente tristes, mas devem, entre o que lhes corrói o próprio coração, parecer felizes.

Um exemplo é muito freqüentemente usado por mim, pois exprime com mais eficácia que outros a farsa da vida humana, na qual representamos mal os nossos papéis. Aquele que entra em cena altivo e diz em voz alta: “Eu impero sobre Argos, Pélopes me deixou este reino, que vai do Helesponto e do mar Jônio ao Istmo” é um escravo, recebe cinco medidas de trigo e cinco denários. E aquele que, soberbo, orgulhoso pela confiança em sua força, diz: “Se não te aquietares, Menelau, morrerás por minha mão!” é pago por dia e dorme sobre um palheiro. O mesmo se pode dizer de todos esses re­quintados que andam em liteiras suspensos acima dos homens e da multidão. Sua felicidade é um a máscara usada em público; se a tirares eles te causarão piedade.

Ao comprar um cavalo, queres que lhe tirem a manta; se for um escravo, manda despi-lo para que não esconda nenhum a doença. E julgas um homem pelas roupas? Os mercadores de escravos procuram esconder as doenças de todo modo; por isso, os compradores des­confiam dos ornamentos: se notam um braço ou uma perna enfeitado, os fazem descobrir e mostrar o corpo.

Vês aquele rei dos Citas ou dos Sármatas, com a cabeça esplendidamente adornada? Se queres julgá-lo e saber como de fato é, retira-lhe a coroa: sob ela se escondem muitas maldades. Por que falo dos outros? Se queres avaliar a ti mesmo, põe fora dinheiro, casa, posição, considera-te no mais íntimo e não pelo valor que os outros agora te atribuem. Passa bem!

Filosofia - Filosofia Clássica
Estoicismo - Tópicos gerais, 
9/9/2021 7:15:11 PM | Por Lucius Annaeus Seneca
Sêneca saúda o amigo Lucílio: Do suicídio

Hoje nos apareceram, subitamente, os navios ale­xandrinos que costumam preceder a frota e anunciar a chegada dos demais. São chamados navios-correio. Com alegria a Campânia os vê chegar: a multidão se concentrou nos molhes de Putéolos e, pelo próprio tipo das velas alexandrinas, reconheceu o navio em meio a um grande número de embarcações. Pois só eles po­dem desfraldar a vela pequena que, em alto-mar, todos os navios têm. Nenhuma coisa ajuda mais o curso do navio como a parte superior do velame; ela é que impele o navio com maior força. Assim, quando o vento aumenta e se torna maior do que o esperado, a antena é abaixada: embaixo o sopro tem menor força. Quando entram em Capri e passam o promontório a partir do qual “Palas é visto no proceloso vértice”*, os demais navios têm de se contentar com a vela grande: a gávea é a insígnia das naus alexandrinas.

Nesse precipitar de todos para o cais, eu sentia prazer na minha preguiça; embora estivesse esperando cartas dos meus, não me apressei em saber qual era o es­tado das minhas coisas por lá, o que teriam me enviado; já há algum tempo ganhos e perdas eram o mesmo para mim. O mesmo ocorreria se eu não fosse velho, muito mais agora. Por menos que eu tenha, ainda me sobraria mais viático* do que via, até porque não é necessário que percorramos até o fim a via em que ingressamos.

Seria uma viagem incompleta se parássemos na metade ou antes do lugar estabelecido? A vida não é incompleta se é honesta. Onde quer que pares, se pa­rares bem, estará completa. Muitas vezes, pois, há que acabá-la por motivos fortes; na verdade, não são mais importantes as causas que nos mantêm vivos.

Túlio Marcelino, a quem tu conheceste muito bem, adolescente quieto e velho precoce, acometido de uma doença não-incurável, mas longa, penosa e que exigia muitos cuidados, começou a deliberar sobre a morte. Convocou inúmeros amigos. Uns, porque co­vardes, aconselhavam-no a fazer aquilo que eles pró­primos fariam; outros, porque aduladores e amáveis, davam-lhe o conselho que pensavam ser mais agradá­vel à sua decisão. Um estóico, nosso amigo, homem exemplar e, para louvá-lo com palavras dignas dele, homem forte e corajoso, parece-me ter lhe dado o con­selho mais adequado. Assim, pois, ele começou: “Meu Marcelino, não te atormentes como se deliberasses so­bre um grande fato. Viver não é uma grande coisa; to­dos os teus escravos vivem, todos os animais também; o verdadeiramente grande é morrer com honestidade, prudência e coragem. Pensa que há muito tempo fazes a mesma coisa: comida, sono, libido - a vida se resume a isso. Não só o prudente, o forte ou o miserável pode desejar morrer, também pode o enfastiado.”

Ele não precisava de quem o persuadisse, mas sim de quem o ajudasse: os seus servos não queriam prepará-lo. Primeiro, o estóico lhes dissipou o medo e lhes mostrou então que só haveria perigo familiar se não houvesse certeza de que a morte do senhor era volun­tária; de todo modo, era tão mau exemplo assassinar o seu senhor quanto proibi-lo de se matar.

Em seguida, aconselhou ao próprio Marcelino que seria agir com humanidade se, assim como terminado o jantar se divide as sobras entre aqueles que cir­cundam, ele, ao dar fim à vida, desse algo àqueles que foram seus servidores durante tanto tempo. Marcelino era afável e liberal, mesmo com o que era seu; assim, distribuiu pequenas somas entre os servos que chora­vam e, além disso, os consolou.

Não foi necessário espada nem sangue: por três dias, absteve-se de comer e ordenou que fosse posta uma tenda no seu quarto. Depois, foi colocada uma banheira na qual ele se acomodou enquanto lhe der­ramavam água quente, até que, aos poucos, desfaleceu não sem algum prazer, como disse aquele que assistiu o desmaio, sensação que desconhecemos já que perde­mos os sentidos.

Eu me excedi na história que, certamente, não te será desagradável; assim, sabes que a morte do teu amigo não foi difícil nem infeliz. Embora se suicidando, ainda assim o fez suavemente, e a vida se foi. Espero que esta narrativa não tenha sido inútil. Muitas vezes, é necessário dar tais exemplos. Muitas vezes, devemos morrer e não queremos, ou obrigatoriamente iremos morrer e tampouco queremos.

Ninguém é tão ignorante que não saiba que um dia deverá morrer; no entanto, quando a hora se torna próxima, ele hesita, treme, implora. Não te pareceria o mais estúpido dos homens aquele que chorasse por não ter vivido milhares de anos antes? Igualmente estúpido é quem chora por não viver daqui a milhares de anos. São situações idênticas: não serás como não foste, ne­nhum dos dois tempos te pertence.

Neste espaço de tempo estás preso. Mesmo que o estendas, até onde o estenderás? Por que choras? O que esperas? Perdes o teu tempo. “Não esperes que, re­zando, possas mudar os destinos que os deuses deter­minaram .”* São predeterminados e fixos e conduzidos por uma grande e eterna necessidade. Irás para onde tudo vai. O que é novidade para ti? Nasceste para essa lei. Isso aconteceu a teu pai, a tua mãe, aos teus avós, a todos que antes de ti foram e aos que depois de ti irão. Uma série invencível, e em nada mutável, envolve e ar­rasta tudo consigo.

Quantos dos que vão morrer não te seguirão? Quantos não te acompanharão? Mais forte serias, pen­so, se muitos milhares morressem contigo; então, se neste mesmo momento de morrer tu duvidas, muitos milhares de homens e animais estarão exalando o espí­rito de vários modos. Tu, porém, não pensavas que um dia ou outro chegarias a esse lugar para onde sempre caminhavas? Não existe caminho sem fim.

Pensas que agora te relatarei exemplos dos gran­des homens? Falarei dos meninos. Aquele da Lacônia, cuja memória é lembrada, ainda imberbe, que, tendo sido capturado, clamava naquela sua língua dórica: “Não serei escravo”. E impôs fé às suas palavras; quan­do primeiro lhe ordenaram uma função humilhante e servil - buscar um vaso para excrementos - quebrou a cabeça contra a parede.

A liberdade está tão próxima e há escravos ainda? Então, não preferirias que um filho teu morresse assim a vê-lo envelhecer servil e covarde? Por que, então, te perturbares, se até mesmo um m enino é mais forte que a morte? Pensa que, se não quiseres seguir, serás arras­tado. Faze por vontade própria aquilo que não podes mudar. Não assumirás o espírito daquele menino para dizer “não sou escravo”? Infeliz, já és escravo dos ho­mens, escravo das coisas, escravo da vida; até mesmo a vida, se falta a virtude para morrer, é uma escravidão.

Tens algo ainda para esperar? Os próprios prazeres que te atrapalham e te retêm já consumiste; nenhum é novo para ti; nenhum te será odioso pela própria saciedade. Tu sabes o que é o vinho, sabes qual é o sabor do mel misturado com água. Não importa se pela tua vesícula passam cem ou mil ânforas: não passas de um filtro. Conheces melhor do que ninguém o gosto das ostras e dos rascassos*; a tua luxúria não te deixou nada intacto para os anos futuros. E essas são as coisas que tu deixas de má vontade.

O que mais há que te causa dor deixar? Os ami­gos? Mas tu sabes ser um amigo? A pátria? Por acaso a tens em tanta estima que por ela retardes o jantar? O sol? Aquele que, se pudesses, o extinguirias. Fizeste algo para ser de digno de sua luz? Confessa que não é por causa do senado, nem do foro, nem do desejo das próprias coisas da natureza que tu retardas a morrer; tu abandonas de má vontade um mercado do qual nada te falta experimentar.

Temes a morte; porém, logo te esqueces dela fren­te a um prato de cogumelos? Queres viver; mas sabes viver? Temes morrer; por quê? Esta vida não é a morte? Enquanto Caio César passava pela Via Latina, um dos seus prisioneiros, um velho com uma longa barba junto ao peito, lhe pediu a morte. “Ainda, pois, tu vi­ves?”, perguntou. Isto é o que se deve responder a estes para quem a morte seria um favor: “Temes morrer?” Mas ainda estás vivo? “Mas eu”, responde, “quero vi­ver, porque faço muitas coisas importantes; de má von­tade me afasto dos deveres da vida, que realizo fiel e industriosamente.” Por quê? Não sabes que um dos de­veres da vida também é morrer? Não renegas nenhum dever, pois não há um número certo de deveres que de­vas terminar.

Toda vida é breve, porque, se comparada com a duração das coisas da natureza, foi curta a de Nestor e a de Sátia, que mandou que fosse escrito em seu túmulo que vivera noventa e nove anos. Vês que há quem se vanglorie de uma velhice longa. Quem poderia supor­tar tal fardo se tivesse atingido os cem anos? Tal como uma fábula, assim é a vida: não interessa pelo que dura, mas por quão bem foi vivida. Não importa onde irás parar. Onde quiseres, pára; apenas lhe impõe um bom desfecho. Passa bem!

Filosofia - Filosofia Clássica
Estoicismo - Tópicos gerais, 
9/9/2021 7:12:44 PM | Por Lucius Annaeus Seneca
Sêneca saúda o amigo Lucílio: Da morte desejável

Após um longo intervalo, vi a tua Pompéia. Fui reconduzido à minha adolescência; parecia-me que tudo o que fizera na juventude poderia novamente fa­zer, era como se tivesse feito um pouco antes. Navegamos, Lucílio, pela vida e, como no mar, como disse o nosso Virgílio, “as terras e as cidades se afastam”. Assim, neste rapidíssimo curso do tempo, antes de tudo deixamos para trás a infância, depois a adolescência, em seguida aquele tempo, chame com o quiser, confinado entre a juventude e a velhice, coloca­do na fronteira de ambas, por último, os melhores anos da velhice. Para terminar, começa a se fazer presente o fim, comum ao gênero humano.

Pensamos de modo muito insensato que é um perigo; porém, ao contrário, é um porto que devemos procurar e nunca evitar. Se alguém chega a ele nos pri­meiros anos de vida, não deve se queixar mais do que se tivesse navegado muito rápido. Além disso, com o sabes, muitas vezes é um vento fraco que os prende no jogo e cansam-lhes com uma grande e exasperante calmaria; outras vezes, ao contrário, uma corrente impetuosa o transporta com grande velocidade.

Considera que conosco advém o mesmo: a uns a vida conduziu com grande velocidade ao lugar a que se deve chegar, ainda que relutantes; a outros macerou e se­cou. Como sabes, a vida nem sempre deve ser retida, pois o bom não é viver, mas sim viver bem. Por isso, o sábio viverá o quanto for necessário e não o quanto puder.

Verá aonde deve ir, com quem, de que modo e o que deve fazer. Ele pensa na qualidade da vida e não na sua duração. Se muitas adversidades lhe ocorrem e perturbam a sua serenidade, ele se afasta. E não faz isso em caso de extrema necessidade, mas sim quando começa a duvidar da sorte; ele diligentemente examina se não deve deixar de viver. Não considera importante se busca ou aceita o seu fim, se virá mais cedo ou mais tarde. Não teme uma grande perda; ninguém pode perder grande coisa naquilo que se escorre gota a gota. Morrer mais cedo ou mais tarde não importa, importa é morrer bem ou mal. Morrer bem é fugir do perigo de viver mal.

Por isso, considero muito efeminadas as palavras daquele homem de Rodes que, jogado por um tirano em uma cova e alimentado como uma fera, respondia a quem o aconselhava a não tocar na comida: “O ho­mem, enquanto viver, deve ter esperança”.

Mesmo que isso seja verdadeiro, não se deve comprar a vida a qualquer preço. Pode ser que as coisas se­jam grandes, pode ser que sejam seguras, mas não as obterei através de uma torpe declaração de fraqueza. Pensarei que a sorte pode tudo naquele que vive, ou que nada pode a sorte contra aquele que sabe morrer?

Às vezes, entretanto, mesmo se a morte certa for iminente e souber que lhe foi destinado o suplício, não se impingirá a pena com suas próprias mãos, isso seria um alívio. É estupidez morrer de medo da morte. Espe­Rá, pois aquele que mata sempre vem. Por que precedê- lo? Por que cumprir a crueldade alheia? Invejas o teu carrasco ou o poupas?

Sócrates poderia ter dado fim à vida através do jejum e morrer de fome em vez de veneno. No entanto, passou trinta dias na cela esperando a morte, não com aquele ânimo de que tudo pode acontecer, nem tampouco que um longo tempo permitiria muitas espe­ranças, mas para se sujeitar às leis, para que os amigos pudessem desfrutar de Sócrates em seus últimos momentos. O que seria mais estúpido: desprezar a morte ou temer o veneno?

Escribônia, mulher severa, era tia de Druso Libão, um adolescente tão tolo quanto nobre, que nutria maiores esperanças que qualquer um poderia ter no seu tempo, ou ele próprio em qualquer época. Quando dente, foi levado do Senado em uma liteira sem um longo cortejo fúnebre, porque todos os seus parentes o haviam deixado só, pois já era mais um cadáver do que um réu. Começou a considerar se deveria suicidar-se ou esperar a morte. Escribônia lhe disse: “Por que te de­leita realizar o trabalho de outro?” Não o persuadiu; ele pôs fim à vida e não sem razão. Condenado a morrer dentro de três ou quatro dias, de acordo com a vontade do inimigo, estaria tornando isso um negócio bem-su­cedido se continuasse vivo.

De maneira geral, não há muito a dizer sobre adiantar-se à morte ou aguardá-la quando uma violên­cia externa a anuncia. As circunstâncias podem fazer que se vá para um lado ou para outro. Se a alternativa se dá entre uma morte com tormentos ou uma morte simples e fácil, por que não optar por essa última? Do mesmo modo que escolho o navio com que navegarei e a casa em que habitarei, assim também posso escolher o meio pelo qual sairei da vida.

Além disso, do mesmo modo que a vida não se torna melhor se for mais longa, a morte se torna pior se for mais demorada. Em coisa alguma mais do que na morte devemos agir de acordo com o nosso arbí­trio. Dissipe-se a alma de acordo com a forma de morte escolhida; busca o punhal, ou a corda, ou o veneno que se espalha pelas veias, avança com decisão e rompe os vínculos da servidão. A vida de qualquer um deve ser aprovada pelos outros, a morte, só por si mesmo; a melhor é a que mais lhe agradar.

É estupidez pensar assim: “Alguém dirá que demonstrei pouca coragem, outro, que fui muito preci­pitado, outro, que existia um tipo mais heróico de sui­cídio”. Não deves deixar para outros essa decisão que não pertence à opinião pública. Pensa uma só coisa: fu­gir o mais rápido possível dos golpes da sorte. De todo modo, sempre haverá quem pense mal da tua decisão.

Encontrarás ainda adeptos da sabedoria que ne­gam que devas tirar a tua própria vida e consideram nefasto o suicídio; deve-se esperar a saída prescrita pela natureza. Quem diz isso não vê que fecha o caminho da liberdade. A lei eterna não fez nada melhor do que, quando nos deu uma única entrada para a vida, nos ter dado muitas para a saída.

Eu esperarei a crueldade da doença ou do homem quando posso sair através das tormentas e despistar as adversidades? Este é o único ponto sobre o qual não podemos nos queixar da vida: ela não prende ninguém. As condições humanas estão assentadas em bases sóli­das, pois ninguém é infeliz a não ser por sua culpa. Te agrada? Vive. Não te agrada? És livre para regressar de onde vieste.

Para aliviares a dor de cabeça, recorreste freqüen­temente à sangria; para extenuar o corpo, se abre uma veia. Não é necessário que uma vasta ferida divida o peito; com um bisturi se abre o caminho para aquela grande liberdade e uma pequena picada garante a segu­rança. O que é, pois, que nos faz preguiçosos e inertes? Nenhum de nós pensa que, a qualquer momento, de­ verá sair deste domicílio. Assim, o apego ao lugar e o hábito mantêm os velhos inquilinos, mesmo com todas as incomodações.

Queres ser livre em relação ao próprio corpo? Ha­bita-o, pois, como se fosses migrante. Propõe-te que, cedo ou tarde, esta companhia virá a faltar: mais for­te te sentirás quando tiveres que deixá-lo. Mas de que modo pensarão no seu fim aqueles cujos desejos por todas as coisas não têm fim?

Deve-se meditar muito sobre isso, o que não é tão necessário para outras atitudes. Para a pobreza, o espírito está preparado; os bens permanecem. Nós nos armamos para enfrentar a dor; assim o bem-estar do corpo íntegro e saudável nunca nos exigirá a prática dessa virtude. Somos fortes para suportar a perda dos amigos; a sorte conserva ilesos todos os que amamos. A consciência da morte chegará, sem dúvida, no dia em que isso tiver que ocorrer.

Não deves pensar que apenas os grandes homens tiveram força para romper as cadeias da servidão hu­mana; não deves pensar que isso não pode ser feito a não ser por Catão, que, não podendo libertar o espírito com o punhal, o fez com as próprias mãos. Homens muito miseráveis, num grande ímpeto, evadiram-se totalmente: como não podiam escolher o modo de morrer, nem mesmo escolher por seu arbítrio o instrumento da morte, pegaram o que estivesse mais perto e, por sua forte violência, fizeram armas daquelas coisas que por natureza não eram nocivas.
Há pouco tempo, no circo dos gladiadores, um dos germanos, quando se preparava para os espetácu­los matutinos, dirigiu-se ao único lugar onde podia ir sem os guardas. Uma vez na latrina, tomando um bas­tão com uma esponja amarrada para limpar os excre­mentos, enfiou-o todo na garganta e, ficando sufocado, morreu. Fez isso com profundo desprezo pela morte. Assim, morreu de modo imundo e indecente: mas o que é mais estúpido que ter escrúpulos com a morte?

Ó homem forte, ó varão digno de poder escolher o seu destino! Quão fortemente teria feito uso da espa­da, quão corajosamente teria se lançado das altitudes às profundezas do mar ou teria se jogado de uma rocha escarpada. Destituído de recursos, ainda assim encon­trou a arma para se matar; nada impede a morte, só a falta de vontade. Julgue-se como quiser o gesto desse homem intrépido, mas consinta-se nisto: deve-se pre­ferir a mais imunda morte à mais limpa servidão.

Como comecei usando exemplos sórdidos, con­tinuarei neles. Exigirá mais de si mesmo aquele que vir que a morte pode ser desprezada até pelos homens mais desprezíveis. Catão, Cipião e outros, que se cos­tuma enumerar com admiração, julgamos estar acima da imitação. Já eu te mostrarei que há exemplos dessa virtude tanto no circo dos gladiadores quanto entre os generais da guerra civil.

Há pouco tempo, um homem que era levado sob custódia para o espetáculo matutino, fingindo um sono premente, cambaleante, inseriu a cabeça entre os raios da roda, permanecendo firme até que a roda girou e lhe quebrou o pescoço. Assim, o próprio veículo que o leva­ria ao sofrimento foi seu instrumento para a liberdade.

Não existem obstáculos para quem deseja deixar a vida. A natureza nos mantém em cárcere aberto. Quan­do as necessidades permitem, busque-se uma saída fá­cil; quando se tem em mãos muitas saídas possíveis, deve-se fazer a escolha e considerar o melhor modo de se libertar; quando a ocasião é difícil, deve-se conside­rar a melhor, a que estiver mais próxima, seja inaudita ou insólita. A quem não falta coragem para a morte não faltará também imaginação.

Não vês que até mesmo os mais humildes escra­vos, quando a dor lhes dá estímulos, se enchem de co­ragem e despistam as mais intensas vigilâncias? Aquele homem que não apenas ordena a si mesmo a morte, mas a realiza, é de valor.

Eu prometi mais exemplos desse gênero. No se­gundo espetáculo de naumaquia*, um dos bárbaros enfiou em sua própria garganta a lança inteira que rece­bera para lutar contra os adversários. “Por quê?”, disse a si próprio, “por que não fujo já de todo tormento e de toda humilhação? Por que eu, estando armado, espero a morte?” Tão mais especial foi esse espetáculo, quan­to mais honroso é os homens aprenderem a morrer do que a matar.

O quê? O que quer que tenham essas almas perdi­das ou mesmo criminosas, não têm aqueles que contra essas adversidades foram preparados por uma longa meditação e pela razão, mestra de todas as coisas? Ela nos ensina que vários são os acessos usados pelo desti­no, mas o fim é um só; em nada interessa onde começa algo que é inevitável. Essa mesma razão te aconselhará a morrer, se possível, como te agradar, agarrando qual­quer coisa que te possa levar à morte. É indigno viver num ímpeto, mas, ao contrário, morrer num ímpeto é belíssimo. Passa bem!

Filosofia - Filosofia Clássica
Estoicismo - Tópicos gerais, 
9/9/2021 7:08:24 PM | Por Lucius Annaeus Seneca
Sêneca saúda o amigo Lucílio: Da sabedoria e do recolhimento

Concordo com a tua decisão de ficar escondido no ócio, mas esconde também o próprio ócio. Saibas que assim farás não segundo o preceito dos estóicos, mas se­gundo o seu exemplo, e, ainda, porque manda tal precei­to, como ficará claro para ti ou quem quer que seja. Não impomos ao sábio que participe sempre do go­verno da república; antes, damos ao sábio uma república digna para ele, isto é, a república do mundo, da qual ele não fique fora, ainda que se afaste, ou deixe um pequeno canto dessa república. Ao se transportar para maiores e mais largos espaços, elevando-se até o céu, dar-se-á con­ta de quão modesta lhe era a poltrona da cúria ou o as­sento no tribunal. Guarda contigo essas palavras: nunca um sábio age mais do que quando se encontra compene­trado acerca das coisas divinas e humanas.

Agora, torno àquilo que começara a te dizer, isto é, que o teu ócio seja ignorado. Não imponhas para ti o rótulo de filósofo ou de recluso. Põe outro nome no teu propósito, chama-o de debilidade, imbecilidade ou pre­guiça. Ganhar glória com o ócio é desejo de preguiçoso.

Alguns animais, para que não possam ser alcança­dos, confundem seus vestígios perto de seu covil; deves fazer o mesmo, pois, do contrário, não faltará quem te siga. Muitos passam pelas coisas abertas e buscam aquelas escondidas e obscuras; as coisas seladas estimu­lam o furto. Se algo se mostra a qualquer um, parece de pouco valor; o arrombador despreza o que está aberto. Esse costume tem o povo e, do mesmo modo, todos os ignorantes: desejam penetrar nas coisas secretas.

O melhor é não se vangloriar do próprio ócio. Além disso, é um tipo de exibicionismo esconder-se demais e afastar-se da vista dos homens. Fulano escon­deu-se em Tarento, sicrano confinou-se em Nápoles, beltrano, por muitos anos, não atravessou os limites da sua casa. Chama a si a multidão quem faz do próprio ócio uma lenda.

Quando te isolares, não o faças de maneira que os homens falem de ti, mas que tu fales contigo mesmo. E sobre o que falarás? Fazendo aquilo que os homens fazem livremente com os demais: critica a ti mesmo, pois assim te acostumarás a dizer a verdade e a ouvi-la. Trata com maior rigor aquilo que tu sentes como mais débil no teu caráter.

Qualquer um tem conhecimento dos próprios males. Assim, aquele alivia o estômago pelo vômito; o outro o sustenta com freqüentes jantares; outro, ain­da, exaure e purifica o corpo com jejuns; os que sofrem de gota se abstêm do vinho ou do banho. Negligentes quanto às demais coisas, freqüentemente voltam aos males mais comuns. Assim, em nosso espírito, existem algumas partes doentes que devem ser curadas.
O que faço no meu ócio? Curo a minha doença. Se te mostrasse um pé inchado, uma mão pálida, os nervos tortos de uma perna contraída, permitidas que eu permanecesse num único lugar e curasse a minha doença. Maior é este mal que não posso te mostrar; no meu próprio peito está a úlcera e o abscesso. Não quero que me elogies, não quero que me digas: “Oh, grande homem! Desprezou todas as coisas, repudiou os Iulores da vida humana”. A ninguém repudiei exceto a mim mesmo.

Não penses vir a mim para ter proveito. Estás en­ganado se esperas um auxílio, pois aqui não mora um médico, mas um doente. Prefiro que, quando te vás, di­gas: “Eu pensava que este homem fosse feliz e erudito, mas em verdade, estou decepcionado. Não vi nada, não ouvi nada que desejava e que me faça voltar”. Se sentes isso, se dizes isso, houve algum progresso. É melhor que tu ignores o meu ócio do que o invejes.
“Ao ócio, Sêneca”, perguntas, “tu me aconselhas? Tu te referes às palavras de Epicuro*?” Eu te aconselho ao ócio para que faças coisas mais elevadas e mais be­las do que as que abandonaste. Talvez bater às portas dos poderosos, receber favores de velhos sem herdeiros, ler, no fórum, um invejável poder. Todas as coisas que atraem a inveja, bens efêmeros que, se pesares com jus­tiça, parecerão sórdidos.

Aquele em prestígio me ultrapassa em influência no fórum; este, pelos serviços militares e pela autori­dade neles conquistada; outro, ainda, pela multidão de clientes. Não posso ser igual a eles, pois têm muitos méritos. No entanto, é pouco ser vencido por todos se o destino for vencido por mim.

Quem dera já tivesses decidido seguir esse propó­sito já há algum tempo! Quem dera não fosse tão próxi­mo da morte que buscássemos uma vida feliz! Mas não demorem os também agora; muitas coisas que devía­mos ter considerado supérfluas e nocivas pela razão, agora sabemos pela experiência.

Façamos o que fazem aqueles cavaleiros que lar­garam tarde e querem recuperar o tempo perdido com a velocidade. Esta idade é a melhor para tais estudos, pois já perdeu a espuma, deixou os vícios descontrolados do primeiro fervor da adolescência e, agora, não falta muito para superá-los ou extingui-los de vez.

“E quando”, perguntas, “te será proveitoso isto que aprendes no fim da vida? E para que servirá?” Para isto: para que eu saia da vida da melhor forma. Mas é necessário pensares que não existe uma idade melhor para o saber que esta que domina muitas experiências, longas e freqüentes penitências, em que se chega às coi­sas saudáveis pelo abrandamento das paixões. Todo aquele que chega à sabedoria pela velhice chega através dos anos. Passa bem!

Filosofia - Filosofia Clássica
Estoicismo - Tópicos gerais, 
9/9/2021 7:05:41 PM | Por Lucius Annaeus Seneca
Sêneca saúda o amigo Lucílio: Do pesar dos amigos falecidos


Lamento muito pela morte do teu amigo Flaco, porém não quero que tu sofras mais do que deves. Ouso exigir fortemente que não sofras, também sei ser o melhor. Mas quem terá esta firmeza de espírito a não ser quem já está elevado muito acima do destino? A ele também entristecerão essas coisas, mas apenas isso. Mas a nós, se irrompemos em lágrimas, isto é perdoável, se não forem em excesso e se nos esforçamos, nós próprios, por reprimi-las. Morto um amigo, os olhos não devem ficar nem secos nem inundados; devem lacrimejar, não chorar copiosamente.

Parece que te imponho uma dura lei, quando o maior dos poetas gregos concede o direito de chorar, mas por um único dia, quando disse ser esse o tempo durante o qual Níobe se preocupou com o alimento. Perguntas de onde vêm as lamentações e os prantos desenfreados? Através das lágrimas queremos mostrar nossa saudade, e não nos conformamos com a dor, nós a ostentamos. Ninguém é triste para si. Oh, infeliz estupidez! Existe também uma certa exibição na dor.

“Como?”, perguntas. “Deverei esquecer um ami­go?” Será breve a memória dele junto a ti se ela ficar muito com a dor; algo fortuito a mudará em riso. Não remeto para um tempo longínquo que transform a toda dor e atenua os lutos mais fechados. Tão logo deixes de te observar, a imagem dessa tristeza desaparecerá. AgoRá, tu mesmo guardas a tua dor, mas ela foge do guar­dião; quanto mais forte, mais rapidamente termina.

Façamos com que seja alegre a memória dos nos­sos mortos. Ninguém volta livremente àquilo que não pode pensar sem sofrimento, e é necessário que assim seja. O nome daqueles que amávamos e perdemos provoca-nos dor, mas também essa traz em si um prazer que lhe é próprio.

Como costumava dizer o nosso Átalo, “a memó­ria dos amigos falecidos é como alguns frutos que são suavemente ásperos, como o vinho muito envelhecido cujo próprio amargor nos deleita; porém, quando pas­sou um espaço de tempo, toda angústia se extingue e nos vem um prazer puro”.

Se cremos nele, “pensar nos amigos vivos é como bolo com mel, mas também é útil a memória dos que se foram, embora traga uma satisfação amarga. Quem negaria que coisas acres e ásperas também estimulam o estômago?”

Eu, porém, não penso igual. Para mim, o pensa­mento sobre os amigos falecidos é doce e brando, pois os tive sabendo que ia perdê-los e, quando os perdi, era como se ainda os tivesse. Faze, pois, meu Lucílio, de acordo com o teu equilíbrio, não interpreta mal um be­nefício da sorte; ela tirou, mas deu.

Por isso, desfrutamos avidamente da presença dos amigos, porque não podemos ter certeza por quan­to tempo ainda os teremos. Pensemos que, freqüente­mente, os relegamos por alguma longa viagem, ou que, muitas vezes, não os vemos mesmo morando no mes­mo lugar, e com preenderemos que, quando estavam vivos, perdemos muito tempo.

Podes tolerar aqueles que tratam os amigos de forma negligente e depois os choram com muita lásti­ma, não amando a ninguém exceto depois que os per­deram? Por isso, choram efusivamente, porque temem que haja dúvidas de que os amaram, querem indícios tardios do seu afeto.
Se temos outros amigos além deste, nós os ofen­demos e os estimamos pouco, pois pouco importam para nos consolar da perda de um apenas; se não temos, o mal que fazemos a nós mesmos é maior que aquele que recebemos do destino: este nos tirou um amigo; nós, todos aqueles que não soubemos conquistar. Ora, quem não pode amar mais de um não pode, na verdade, nem amar aquele único. Se alguém, tendo sido espolia­do de sua única túnica, preferisse chorar a buscar um modo de proteger-se do frio e encontrar algo para co­brir suas costas, não te pareceria muito estúpido?

Quem amavas morreu, procura outro para amar. É melhor recuperar um amigo do que chorar. Sei que isso que vou acrescentar é dito e repetido, mas não vou omitir porque já foi comentado por todos: o fim à dor se a vontade não pôs, o tempo porá. Mas é muito tor­pe para um homem prudente que o remédio da dor seja o cansaço da própria dor. É melhor que tu abandones a dor do que ela te abandone; desiste disso, porque, mes­mo que queiras, não poderás fazê-lo por muito tempo.

Os nossos ancestrais estabeleceram um ano de luto para as mulheres, mas como limite máximo, não mínimo; para os homens, ao contrário, a lei não fixa nenhum período, porque não é digno. Tu podes me dizer de quantas daquelas mulheres tiradas à força da pira funerária, que à força foram separadas dos mari­dos, as lágrimas duraram um mês inteiro? Nada vem tão rápido na direção do ódio do que a dor. Ela, quando recente, encontra consolo e reúne outros ao seu redor; contudo, se é inveterada, produz riso, não sem mérito. Com razão, ou era simulada ou estúpida.
Eu te escrevo essas coisas, eu, que chorei tão imoderadamente o meu caríssimo Aneu Sereno, eu, que de modo algum desejava, estou entre os exemplos da­queles a quem a dor venceu. Hoje, porém, condeno o meu comportamento e compreendo que a maior causa do meu pranto foi nunca ter pensado que ele poderia morrer antes de mim. Esta é a única coisa que me ocor­ria: que ele era mais jovem que eu, muito mais jovem, como se o destino seguisse uma ordem cronológica.

Assim, assiduamente reflitamos sobre a mortali­dade tanto nossa quanto de todos aqueles que estima­mos. Eu deveria ter dito: “O meu Sereno é mais jovem que eu, mas o que isso importa? Deve morrer depois de mim, mas pode morrer antes.” Já que não agi assim, o destino me pegou despreparado para uma desventu­ra súbita. Agora leva em conta que todas as coisas são mortais e, enquanto mortais, têm leis incertas.

Poderia acontecer hoje aquilo que poderia acontecer num dia qualquer.

Pensemos, pois, querido Lucílio, logo nós tam ­bém iremos para onde ele já foi e lamentamos. Talvez, se os sábios dizem a verdade, se há um lugar que nos recebe, aquele que pensamos que morreu simplesmente nos precedeu. Passa bem!

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Estoicismo - Tópicos gerais, 
9/9/2021 7:00:36 PM | Por Lucius Annaeus Seneca
Sêneca saúda o amigo Lucílio: Das contrariedades

Tu ficas indignado e te queixas! Não compreen­des que todo o mal provém não do que te acontece, mas sim de tua indignação e de tuas reclamações? Do meu ponto de vista, não existe miséria para um homem a não ser a de achar que algo que faz parte da natu­reza das coisas não está correto. Nem a mim mesmo suportarei quando, um dia, começar a considerar algo insuportável. Minha saúde não é boa; faz parte do meu destino. Meus criados estão na cama? Minhas rendas estão em baixa? Minha casa está rachando? Perdas, fe­rimentos cansaços, inquietudes me assolam? São coisas que acontecem. Indo além, elas devem acontecer, pois não são obras do acaso, estavam determinadas.

Acredita, o que agora te digo faz parte dos meus mais íntimos sentimentos. Sempre que a vida me parece cruel e adversa, imponho a seguinte regra a ser seguida: não obedecer aos deuses, mas segui-los. Faço isso por­ que quero, não por obrigação. Nada do que vier a me acontecer me abaterá e me deixará com a aparência alte­rada. Aceitarei de boa vontade aquilo que me cabe, pois tudo o que provoca nossos sofrimentos e nossos medos é da lei da vida. E eu, meu caro Lucílio, não espero que assim seja diferente e que possa estar livre disso.

Tua bexiga te incomoda? Chegaram más notícias pelo correio? Há perdas incessantes? Indo mais longe, temes por tua vida? Pensa bem, não sabias que desejavas tudo isso ao querer envelhecer? Tudo isso faz parte do percurso de uma longa vida, como a poeira, a lama e a chuva durante uma viagem.

“Mas eu gostaria de viver livre de todas essas incomodações”, dizes. Afirmação tão insensata não é digna de um homem. Aceita como achares melhor esse meu conselho, se não for pelo que nele há de bom, pelo menos em razão de minha boa vontade: “Não queiram os deuses e deusas que a fortuna te prenda em seus prazeres”.

Interroga a ti mesmo, pressupondo que um deus te permita escolher se preferes viver em um mercado ou em um acampamento. Viver, Lucílio, é ser soldado. É por isso que aqueles que se arriscam em missões mais perigosas, através de penhascos e desfiladeiros, são os mais valentes, a elite da tropa. Já aqueles que se ocupam apenas com leves tarefas, enquanto os outros dão o má­ximo de si, esses não passam de mocinhos delicados, no abrigo, mas sem honras. Passa bem!

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Estoicismo - Tópicos gerais, 
9/7/2021 10:57:54 AM | Por Lucius Annaeus Seneca
Sêneca saúda o amigo Lucílio: Das boas companhias

Mentem aqueles que querem mostrar ser a grande quantidade de negócios o impedimento para se dedicar aos estudos. Simulam ocupações e as aumentam, mas só se ocupam consigo mesmos. Eu sou livre, Lucílio, sou livre e, onde quer que esteja, me pertenço. Não me dou às coisas, apenas as aproveito, e nem busco razões para perder tempo. Eu me aquieto em algum lugar, onde me entrego aos meus pensamentos e medito so­bre qualquer coisa útil.

Quando me dedico aos amigos, também não me distraio de mim mesmo, nem me entretenho com aque­les que alguma circunstância ou causa oficial nascida dos assuntos públicos me reuniu, mas me detenho com os melhores. A eles, em qualquer lugar, em qualquer século que tenham existido, dirijo o meu espírito.

Sempre trago comigo Demétrio, o melhor dos ho­mens, e, abandonando os homens de toga púrpura, falo com um despojado: eu o admiro. Por que não admirá-lo? Vejo que nada lhe falta. Alguém pode desprezar todas as coisas, mas ninguém pode ter tudo. O cami­nho mais rápido para a riqueza é desprezá-la. O nosso Demétrio vive assim: não despreza todas as coisas, mas deixa a posse delas aos outros. Passa bem!

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9/7/2021 10:55:32 AM | Por Lucius Annaeus Seneca
Sêneca saúda o amigo Lucílio: Do encontrar a morte com alegria

Deixemos de desejar aquilo que desejávamos! Eu, certamente, agora que sou velho, me recuso a ter os mes­mos desejos de quando eu era menino. Nisso se vão os meus dias e as minhas noites, esta é a minha ocupação, o meu pensamento, pôr fim a antigos males. Faço isso de modo que cada dia seja para mim a vida toda; e, pelos deuses, não me apego a ele como se fosse o último, mas o contemplo como se pudesse também ser o último.

Eu te escrevo esta carta com tal estado de ânimo como se a morte fosse me chamar enquanto a escrevo; estou preparado a sair da vida e, por isso, a desfrutar a vida porque em nada me preocupa a sua duração. An­tes de me tornar velho, procurei viver bem; agora que sou velho, procuro morrer bem; contudo, morrer bem significa morrer livremente.

Vê que não faças nada contra a tua vontade. Aquilo que é necessário para quem o rejeita, não o é para quem o aceita voluntariamente. Assim, quem obedece com boa vontade às ordens evita a parte mais amarga da ser­ vidão, ou seja, fazer aquilo que não quer. Não é aquele que faz algo quando mandado, mas quem o faz contra a vontade. Conformemos, pois, nosso espírito para que desejemos qualquer coisa que nos seja exigida e, antes de tudo, pensemos sem tristeza acerca do nosso fim.

Devemos estar preparados antes para a morte do que para a vida. A vida é suficientemente fecunda, mas nós estamos sempre ávidos de meios para viver e nos parece que sempre nos falta algum a coisa. Não os anos nem os dias, mas o espírito é que nos diz se vivemos o suficiente. Já vivi o suficiente, caríssimo Lucílio; agora, satisfeito, espero a morte. Passa bem!

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9/7/2021 10:53:14 AM | Por Lucius Annaeus Seneca
Sêneca saúda o amigo Lucílio: Das preces nocivas

Queixo-me, brigo, fico irritado. Ainda queres o que desejava a tua ama de leite, o preceptor, a tua mãe para ti? Não compreendeste ainda quanto de mal de­sejavam? Oh! Quão contrários nos são os desejos da­queles que nos são caros! E tanto mais funestos, maior êxito têm. Já não me admira se, desde a nossa primeira infância, nos têm ocorrido todos os males; crescemos entre as pragas de nossos pais. Escutem também os deuses a nossa própria voz.

Até quando pediremos algo aos deuses? Não po­dem os ainda manter a nós próprios? Até quando enche­remos de sementeiras os campos ao redor das grandes cidades? Até quando o povo fará a colheita por nós? Até quando muitos navios, provenientes de vários mares, trarão provimentos para uma única mesa? O touro se sacia com o pasto terreno de pouquíssimas dimensões; uma única selva é o suficiente para muitos elefantes. O homem, no entanto, se alimenta de tudo o que vem da terra e do mar.

O quê, portanto? A natureza nos deu um corpo tão pequeno e um ventre tão insaciável, de tal modo que conseguimos vencer em avidez os maiores e mais vorazes animais? De modo algum. Quão pouco é o que é dado à natureza! Sacia-se com pouco. Não é a fome do ventre que nos custa muito, mas a ambição.

Não devemos contar entre os homens aqueles, como diz Salústio, que são “servos do ventre”, e alguns deles não estão nem mesmo dentre os animais vivos, mas dos mortos. Vive quem é útil a muitos, vive quem é útil a si mesmo; aqueles que se escondem e se entor­pecem assim estão em sua casa como numa sepultura. No mármore podes escrever o seu nome; no entanto, no limiar de suas casas, já anteciparam a sua morte. Passa bem!

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9/7/2021 10:43:10 AM | Por Lucius Annaeus Seneca
Sêneca saúda o amigo Lucílio: Da asma e da morte

Meus males me haviam concedido uma longa tré­gua, porém, de repente, me atacaram. “De que gênero?”, perguntas. Com razão me indagas, pois nenhum mal me é desconhecido. Mas a um único mal fui destinado, que não precisa ser chamado pelo nome grego “asma”, já que se pode dizer, sim plesmente, “suspiro”. O seu ataque é breve e semelhante a uma tempestade; termina por volta de uma hora. Quem poderia suportar mais?

Todos os incômodos ou perigos do corpo passa­ram por mim, mas nenhum me parece mais penoso. Por que não? Qualquer outro mal significa apenas estar doente; este é expulsar a alma. Por isso, os médicos o chamam de “meditação sobre a morte”: um dia o espí­rito faz aquilo que tanto desejou.

Pensas que sou hilário por te escrever essas coisas quando escapei da crise? Ridículo seria se me deleitas­se com o fim dessa crise como se significasse a recupe­ração da saúde, tanto quanto aquele que, no tribunal, pensa ter vencido por ter conseguido uma trégua. Mas eu, na própria sufocação, não deixei de encontrar con­forto em pensamentos alegres e fortes.

“O que é isto?”, perguntava. “Por que tão freqüen­temente a morte me experimenta? Prossiga, pois eu também a tenho experimentado muito.” “Quando?”, perguntas. Desde antes de nascer. A morte é a não-existência. O que quer que isso seja, depois de mim , será o mesmo que foi antes de mim. Se nisso existe algum tormento, é necessário que também houvesse antes que viéssemos à luz; porém, naquela ocasião não sentimos nenhum constrangimento.

Peço que me digas: tu julgarias muito estúpido quem pensasse estar em situação pior uma lanterna depois de apagada que antes de ser acesa? Nós tam­bém nos acendemos e nos extinguimos; no intervalo, padecemos alguma coisa; nos dois extremos ficamos impassíveis. Nisso, pois, meu Lucílio, se não me enga­no, erra-se quando se pensa que seguimos a morte; ao contrário, ela nos precedeu e seguirá. Qualquer coisa que tenha existido antes de nós é morte. Que importa, então, não começar a ser ou deixar de ser, se ambas as coisas têm o mesmo efeito, isto é, o não ser?

Com essas e outras exortações, em silêncio, pois eu não podia falar, não deixei de falar comigo mes­mo; depois, paulatinamente, aquele suspiro que agora começava a diminuir fez intervalos maiores e acabou. Contudo, mesmo tendo cessado, a respiração não fluiu de modo natural, sinto que ela hesita e demora. Seja como for, só não quero esse sufoco na alma.

Recebe isto de mim: não tremerei no momento extremo, já estou preparado, não faço planos para um dia inteiro. Louva e imita aquele a quem não entristece morrer quando lhe agrada viver. Qual é então a virtude em sair quando se é expulso? Porém, nisso ainda há em mim virtude, pois sairei da vida como se fosse por mi­nha vontade. Por isso, o sábio nunca é expulso, pois ser expulso é ser retirado de onde se está contra a vonta­de. O sábio não faz nada contra a sua própria vontade. Longe da necessidade, porque ela o obriga a fazer aquilo que ela quer. Passa bem!

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Estoicismo - Tópicos gerais, 
9/5/2021 2:12:28 PM | Por Lúcia Sá Rebello
Sêneca saúda o amigo Lucílio: Da futilidade das meias-medidas

Já compreenderás que deves deixar essas ocupa­ções belas e nocivas, mas questionas como podes con­seguir isso. Certas coisas só se mostram para quem está presente; o médico não pode decidir à distância a hora da refeição ou do banho: deve verificar o pulso, estar presente. Diz um velho provérbio que o gladiador se decide na arena: algum vulto do adversário, alguns movimentos das mãos, ou a própria inclinação do corpo, em que ele mantém o olhar fixo.

Como costuma acontecer, pode-se formular so­bre o que convém no modo de agir, em linhas gerais, por meio de alguém ou por escrito; tais conselhos não são apenas para os ausentes, mas também são dados aos pósteros; porém, quando deve ser feito e de que modo, ninguém pode aconselhar à distância: deve-se deliberar no momento da ação.

Não basta estar presente, mas permanecer vigi­lante e observar a ocasião propícia; deves procurar encontrá-la e, se a vires, deves prendê-la e, com todo ímpeto, todas as forças, faça isso para te libertares desses deveres. E esteja atento à minha sentença: penso que ou deves sair desse tipo de vida, ou sair da vida. Mas penso também que não deves fazê-lo de modo brusco: desa­ta mais que rompe aqueles nós nos quais te encontras enredado. Se não existir outro modo de fazê-lo, simplesmente os rompa. Ninguém é tão tímido que prefira licar sempre pendente a cair de uma vez por todas.

Entretanto, o principal é que nada te impeça; já bastam os deveres que abraçaste ou, como queres fazer crer, os que te comprometeram. Não deves abraçar outiros, ou então não poderás mais te desculpar por eles. Estas coisas que se costum a dizer são falsas: “Eu não podia agir de outro modo. O que aconteceria se não o fizesse? Era necessário? A ninguém é necessário seguir o curso da felicidade: já é alguma coisa não a contrariar­mos, nos opor ou resistir ao sermos levados pela sorte.

Não me leve a mal se não te aconselho sozinho, mas recorro também a outros certamente mais sábios do que eu, aos quais, seguidamente, peço auxílio quan­do devo tomar alguma decisão. Acerca disso, leia a carta que Epicuro escreveu a Idomeneo, na qual o aconse­lha a fugir o mais rápido possível, antes que uma força maior intervenha e o impeça de se retirar.

Também afirma que não devemos agir a não ser quando se poderia fazê-lo de modo adequado e no momento oportuno; porém, quando se apresenta uma ocasião há muito tempo esperada, é necessário aproveitá- Ia logo. Ele proíbe que durma quem pensa em fugir, e podemos esperar salvação nas situações mais adversas se não nos precipitarmos antes do tempo e não nos re­tirarmos no momento de agir.

Creio que queres também conhecer a opinião dos estóicos. Ninguém pode acusá-los de temeridade, pois, aos mais cautelosos que corajosos. Esperas, talvez, que eles te digam: “É torpe ceder ao peso, luta com os de­veres que te dizem respeito. Não é um homem forte e valoroso aquele que foge ao trabalho, nem lhe cresce o animo diante da dificuldade”. Sim, te dirão essas coisas, que vale a pena perseverar se não somos obrigados a fazer ou suportar o que seja indigno a um homem de bem. Tal homem não se deterá a um trabalho sórdido e ultrajante, não executará o trabalho pelo trabalho. Nem agirá como pensas, ou seja, sempre suportar, impelido pela ambição, as coisas que esta acarreta. Quando vir que as coisas nas quais se encontra são graves, incertas e ambíguas, retirar-se-á, retrocederá gradualmente para estar seguro.

É fácil, pois, meu Lucílio, abandonar as ocupa­ções quando não se dá valor às recompensas. Os argu­mentos que nos envolvem e retêm são estes: “E agora? Abandonarei tão grandes esperanças? Abandonarei a colheita? Ninguém mais ao meu lado, desacompanha­ da minha liteira, vazio o meu átrio?” A essas coisas os homens renunciam de má vontade, pois amam as mi­sérias que desprezam.

Assim, queixam-se da ambição como de suas amantes, isto é, se olhares o seu verdadeiro sentimento, verás que não as odeiam, apenas brigam com elas. Exa­mina estes que deploram desejar e falam em fugir da­quelas coisas de que não podem ser privados; verás que eles permanecem voluntariamente naquilo que dizem suportar com dor e miséria.

É assim, Lucílio: poucos são presos pela servidão, muitos se deixam prender por ela. Contudo, se tens a intenção de deixá-la, se desejas de boa-fé a liberdade, e para isso esperas um único chamado, para viver sem uma perpétua preocupação, poderás contar com toda a aprovação dos estóicos? Todos, Zenão e Crisipo, te exortam a uma vida moderada e honesta.

Todavia, se hesitares, para calcular o quanto podes manter contigo e quão grande fortuna poderás usufruir no ócio, nunca encontrarás saída. O náufrago não pode nadar com bagagem. Emerge a uma vida melhor com a ajuda dos deuses, mas não com aquelas ajudas com as quais, com rosto bom e benigno, eles distribuem males magníficos, com esta única desculpa: que estas coisas que angustiam, que atormentam, são dadas aos que as escolhem .

Já havia selado a carta, mas devo reabri-la para que chegue a ti com um pequeno presente e leve contigo uma bela máxima; vem-me à mente uma, não apenas a mais verdadeira ou a mais eloqüente. “De quem é?”, perguntarás. De Epicuro. Mais um a vez faço minhas as coisas de outros: “Ninguém sai da vida tal como en­trou”. Pensa em quem quiseres: jovens, velhos, homens maduros. Tu os encontrarás com igual medo da morte, com igual ignorância da vida. Ninguém concluiu nada; sempre remetemos tudo para o amanhã. O que mais me agrada nessa frase é que reprova aos velhos por se­rem infantis. Epicuro diz: “Ninguém morre diferente de como nasceu”. Isto é falso: morrem os piores do que nascemos. E a culpa é nossa, não da natureza. Esta tem o direito de se lamentar conosco: “E agora?”, diz, “eu gerei a todos sem desejos, sem medo, sem superstições, sem perfídia, sem outros males: saiam da vida como entraram ”.

Quem morre tão sereno quanto nasceu é como se tivesse conquistado a sabedoria; mas ao contrário, quando o perigo nos é próximo, temos medo, a cora­gem nos deixa, empalidecemos, derramamos lágrimas inúteis. O que é mais vergonhoso do que ficar pertur­bado diante do umbral da serenidade?

O motivo é que somos privados de todo bem e sofremos por ter desperdiçado a vida. Não sobrou nada; ela passou, foi jogada fora. Ninguém se preocupa em viver bem, mas em viver muito; porém, todos podem agir de modo a viver bem mesmo que não saiba por quanto tempo. Passa bem!

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9/5/2021 2:11:36 PM | Por Lúcia Sá Rebello
Sêneca saúda o amigo Lucílio: Da economia do tempo

Comporta-te assim, meu Lucílio, reivindica o teu direito sobre ti mesmo e o tempo que até hoje foi leva­do embora, foi roubado ou fugiu, recolhe e aproveita esse tempo. Convence-te de que é assim como te es­crevo: certos momentos nos são tomados, outros nos são furtados e outros ainda se perdem no vento. Mas a coisa mais lamentável é perder tempo por negligência. Se pensares bem, passamos grande parte da vida agin­do mal, a maior parte sem fazer nada, ou fazendo algo diferente do que se deveria fazer.

Podes me indicar alguém que dê valor ao seu lempo, valorize o seu dia, entenda que se morre diaria­mente? Nisso, pois, falhamos: pensamos que a morte é coisa do futuro, mas parte dela já é coisa do passado. Qualquer tempo que já passou pertence à morte.

Então, caro Lucílio, procura fazer aquilo que me escreves: aproveita todas as horas; serás menos depen­dente do amanhã se te lançares ao presente. Enquanto adiamos, a vida se vai. Todas as coisas, Lucílio, nos são alheias; só o tempo é nosso. A natureza deu-nos posse de uma única coisa fugaz e escorregadia, da qual qualquer um que queira pode nos privar. E é tanta a estupidez dos mortais que, por coisas insignificantes e desprezíveis, as quais certamente se podem recuperar, concordam em contrair dívidas de bom grado, mas ninguém pensa que alguém lhe deva algo ao tomar o [15] seu tempo, quando, na verdade, ele é único, e mesmo aquele que reconhece que o recebeu não pode devolver esse tempo de quem tirou.

Talvez me perguntes o que faço para te dar esses conselhos. Eu te direi francamente: tenho consciência de que vivo de modo requintado, porém cuidadoso. Não posso dizer que não perco nada, mas posso dizer o que perco, o porquê e como; e te darei as razões pelas quais me considero miserável. No entanto, a mim acontece o que ocorre com a maioria que está na miséria não por culpa própria: todos estão prontos a desculpar, ninguém a dar a mão.

E agora? A uma pessoa para a qual basta o pouco que lhe resta, não a considero pobre. Mas é melhor que tu conserves todos os teus pertences, e começarás em tempo hábil. Porque, como diz um sábio ditado, é tarde para poupar quando só resta o fundo da garrafa. E o que sobra é muito pouco, é o pior. Passa bem! [16]

Filosofia - Filosofia Clássica
Estoicismo - Tópicos gerais, 
9/5/2021 2:08:20 PM | Por Lucius Annaeus Seneca
Sêneca saúda o amigo Lucílio: Do senhor e do escravo

Com alegria, tive notícias tuas por aqueles que vêm de tua casa, informando que vives de forma familiar com os teus servos, atitude própria e honrada de uma pessoa esclarecida com o tu. “São escravos.” Não, são homens. “São escravos.” Não, companheiros. “São escravos.” Não, amigos humildes. “São escravos.” Sim, como nós o somos, se pensares que a sorte tem igual poder sobre nós e eles. Por isso, acho cômico esses grandes homens que pensam ser humilhante jantar com o seu escravo. Por quê? Apenas em virtude de um costume arrogante, que impõe ficar o patrão, enquanto come, rodeado por uma multidão de servos em pé? E ele que come além da capacidade do seu estômago e, com grande avidez, distende o estômago já satisfeito, que já não sabe mais as suas funções, ingerindo à força e com grande esforço o excesso de comida. Por sua vez, aos escravos infelizes não é permitido nem mesmo mover a boca para falar. Todo comentário é repreendido com a vara. Não esca­pam nem mesmo rumores casuais, tosse, pigarro, es­pirro. Toda interrupção do silêncio é paga com severo castigo. Os escravos devem passar a noite toda em pé, sem comer e mudos.

O resultado disso é que os escravos, não podendo falar na presença do senhor, falam sobre ele. Outrora, eles falavam na frente do senhor e com ele, não estavam amordaçados e, sendo necessário, eram os primeiros a oferecer a cabeça por ele e a desviar dele qualquer pe­rigo que o ameaçasse. Falavam durante o jantar, mas se calavam sob tortura. De fato, me vem à mente, com muita freqüência, aquele provérbio, fruto da máxima arrogância: “tantos escravos, tantos inimigos”. Eles não são inimigos, nós é que os fazemos assim. Deixemos, por ora, os tratamentos cruéis e desumanos, como se não fossem humanos, mas animais. Quando nos sen­tamos para jantar, um escravo trata de nossos pés, um segundo limpa, sob o divã, o vômito dos convidados embriagados. Outro, ainda, corta as aves raras, com a hábil mão, em pedaços de peito ou perna. Coitado, vive apenas para trinchar corretamente aves gordas. No en­tanto, não é mais digno de pena quem faz tudo isso por prazer do que aquele que o faz por obrigação?

E aquele que serve o vinho, vestido de mulher, pro­curando esconder a sua idade: é uma criança, ou melhor, forçam a que assim continue. Apesar de já possuir postura de um soldado, tem todos os pêlos raspados ou extirpados e o corpo coberto de óleo. Vela a noite inteira, dividindo-a entre a embriaguez e a libido do se­nhor. É um homem no quarto de dormir, um menino durante as festas.

Existe ainda aquele outro, infeliz, cujo dever é ob­servar os convidados, ficar atento aos bajuladores e aos glutões, ou seja, os que adulam e comem muito, pois se­rão esses os que devem ser chamados no dia seguinte.

Somem-se a esses os chefes da cozinha, aqueles que se ocupam com as provisões, que conhecem exa­támente o gosto do senhor e sabem de qual armazém lhe agradam os sabores, de qual lhe dá prazer o aspecto, qual prato insólito pode levá-lo à náusea, qual lhe causa repulsa quando está satisfeito, o que deseja comer na­quele dia. Porém, o senhor não suporta comer com eles e considera uma diminuição da sua dignidade sentar-se à mesma mesa que os criados. Pelos deuses!

Quantos senhores não há que estão criando ou­tros senhores para si mesmos! Vi, diante da porta de Calisto, o seu ex-senhor, despedido enquanto outros eram admitidos; aquele mesmo que um dia havia pre­gado um cartaz de “À Venda” no pescoço de Calisto hoje era rejeitado pelo seu antigo escravo, julgando-o não apto a entrar na casa. O senhor vendeu Calisto, mas como Calisto retribuiu ao seu senhor!

Considera que este, que tu chamas de teu escravo, nasceu da mesma semente que tu, vive sob o mesmo céu, respira, morrerá como tu! Tu podes vê-lo livre, como ele pode ver-te escravo. Com a derrota de Varro, a sorte degradou socialmente muitos homens de nobilíssima origem, que, através do serviço militar, aspi­ravam ao posto de senadores, mas foram traídos pela sorte. De alguém fez pastor, de outro guardião de uma casa. Se ousares, desprezas, então, aquele que agora se encontra em um estado para o qual podes ser reduzido no mesmo momento em que o desprezas.

Não quero me prender a um argumento tão cansati­vo e discutir sobre o tratamento dos escravos: com eles somos excessivamente soberbos, cruéis e insolentes. Este é o núcleo dos meus ensinamentos: age com o teu infe­rior como gostarias que o teu superior agisse contigo.*  que te vier à mente quanto poder tens sobre o teu servo, pensa que o teu senhor tem sobre ti o mesmo poder. [40] 

“Mas eu”, respondes, “não tenho senhor”. Por enquanto, estás bem; talvez, porém, o venhas a ter. Não sabes em que idade Hécuba, Creso, a mãe de Dário, Platão e Diógenes começaram sua servidão?

Trata de forma clemente e afável o teu servo; fala com ele, pede-lhe conselho, come com ele. Nesse ponto, todos os homens refinados me gritarão: “Não existe nada de mais humilhante, nada mais vergonhoso”. Eu, po­rém, poderei surpreender a eles próprios a beijar a mão de outros servos. Leva em conta com o os nossos antepas­sados desejaram eliminar todo motivo de ódio contra os senhores e de ultraje contra os escravos. Chamavam de pai de família o senhor e de familiares os escravos. Esta­beleceram um dia festivo, não para que os senhores comessem com os escravos apenas nessa ocasião, mas para que, em tal ocasião, concedessem a eles ocupar lugares de responsabilidade no âmbito familiar, administrar a justiça e considerar a casa um pequeno Estado.

“E então? Convidarei à minha mesa todos os es­cravos?” Sim, porém não mais que todos os homens livres. Tu te enganas se pensas que rejeitarei algum porque realiza um trabalho muito humilde, por exemplo, o limpador de pés, ou o que exerce funções mais grosseiras. Não os julgarei pela sua ocupação, mas pela sua conduta; pela própria conduta cada um é responsá­vel, enquanto a função, ao contrário, vai de acordo com a situação. Convida alguns porque merecem, outros para que venham a merecer e outros para que possam aprender o serviço. Se há neles qualquer aspecto servil, devido ao contato com gente humilde, o convívio com homens mais nobres o eliminará.

Não deves, meu Lucílio, procurar amigos apenas no fórum e no senado. Se prestares a atenção, tu os encontrarás também em casa.

Freqüentemente, um bom material se torna inútil sem um hábil artífice: procu­ra fazer essa experiência. Se alguém, ao comprar um cavalo, não o examina, mas olha a sela e os arreios, é estúpido; assim é ainda mais estúpido quem julga um homem pela vestimenta e pela condição social, que não passa de um a cobertura externa.

“É um escravo.” Mas talvez seja livre na alma. “É um escravo.” E isso te prejudicará? Mostra-me quem não o seja! Há os escravos da luxúria, da avidez, da am­bição: todos somos escravos da esperança e do medo. Tenho condições de te mostrar um cônsul servo de uma criada, um rico senhor submisso a uma escrava, jovens de nobre origem sujeitos a dançarinos de panto­mima. Nenhuma escravidão é mais vergonhosa do que a voluntária.

Por isso, essas desculpas não te devem inibir de ser cordial com os teus servos sem sentir-te soberbamente superior, esquecendo os afetados; desperta nos teus mais o respeito do que o temor.

Alguém agora dirá que eu incito os escravos à revolta e que quero tirar a autoridade dos senhores, porque eu disse: “Respeitam o senhor mais do que o temem”. “Como assim?”, perguntam. “Respeitam-no como os clientes, como as pessoas que fazem a visita de cortesia?” Quem diz isso esquece que não é pou­co para os senhores aquela reverência que basta a um deus. Se alguém é respeitado, também é amado: o amor não pode misturar-se ao temor. Assim, fazes bem em não querer que os teus servos te temam e em corrigi-los apenas com palavras. É um animal aquele que pune com o relho.

Nem tudo o que nos golpeia nos causa danos, mas o hábito ao prazer induz à ira; aquilo que não é como desejamos provoca a nossa cólera. Infundimos em nós mesmos a altivez dos reis. Eles também esquecem a própria força e a debilidade dos outros, ficam rubros de raiva e tornam-se cruéis como se tivessem sido ofendidos, quando, em verdade, estão acima de qualquer injúria devido à sua posição. Eles o sabem bem , mas se lamentam, procuram a ocasião para fazer o mal. Com a desculpa de terem sido ultrajados, justificam os ultrajes cometidos. Não quero tomar mais teu tempo: de fato, não precisas de exortação. Os bons costumes, entre outrás coisas, têm como característica isto: agradam a si mesmos e permanecem. A malícia é inconstante, muda freqüentemente, e não para o melhor, mas para outra coisa. Passa bem!

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Estoicismo - Tópicos gerais, 
9/5/2021 2:08:06 PM | Por Lucius Annaeus Seneca
Sêneca saúda o amigo Lucílio: Do progresso

Pergunto por ti e para todos os que vêm desta re­gião; procuro saber o que andas fazendo, onde e com quem costumas andar. Não podes me iludir: estou con­tigo. Assim, vive como se estivesses convicto de que recebo notícias tuas e de que posso ver o que fazes. De­sejas saber o que mais me deleita do que eu ouço sobre ti? Pois não ouço nada, já que a maior parte dos que interrogo nada sabe do que tu andas fazendo. Isso é salutar, não conversar com os que são di­ferentes de nós e que têm aspirações outras que não as nossas. Porém, tenho confiança de que tu não podes ser deturpado e de que te manterás firme no teu pro­pósito, mesmo se uma multidão de tentações venha a te cercar. O que há, portanto? Não tenho medo que te mudem, temo apenas que te atrapalhem. E muito pre­judica quem nos retarda, porque, em tão breve vida, nós a tornamos ainda mais breve com a nossa incons­tância; recomeçando-a constantemente, ora de um jei­to, ora de outro, é que a reduzimos em partículas e a despedaçamos.

Apressa-te, pois, querido Lucílio, e pensa quão mais veloz tu serias se fosses perseguido por um ini­migo, se suspeitasses que um cavaleiro viesse sobre os fugitivos. Acontece realmente isto: estás sendo perse­guido, aperta o passo e foge, te esconde em lugar segu­ro. Considera suprema beleza consumar a vida antes da morte e espera serenamente a parte que resta do teu tempo, não pedindo nada para ti na posse de uma vida feliz, que não se torna mais feliz se for mais longa.

Ah! Quando chegará o dia em que te darás conta de que o tempo não te pertence, em que serás tranqüi­lo e sereno, despreocupado com o amanhã e satisfeito contigo mesmo! Queres saber o que faz os homens de­sejarem tanto o futuro? Nenhum é dono de si. Os teus pais desejaram para ti outras coisas, mas eu, contra to­dos, desejo que tu desprezes todos esses bens que eles te desejaram em abundância. Os desejos deles espoliaram muitos outros para te enriquecer; tudo isso que te le­garam tiveram de tomar de alguém.

Eu escolho para ti o domínio sobre ti mesmo, e que a tua mente, agitada por vagos pensamentos, se afirme e se torne convicta, de modo que encontre pra­zer em si mesma e conheça os bens verdadeiros, aqueles que passam a nos pertencer assim que compreendem os quais são, não sendo necessário aumentar o número de anos. Está acima das necessidades aquele que é com­pletamente emancipado, é livre quem viveu uma vida completa. Passa bem!

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Estoicismo - Tópicos gerais, 
9/4/2021 3:12:15 PM | Por Lucius Annaeus Seneca
Sêneca saúda o amigo Lucílio: Do canto das sereias

Reconheço, agora, meu Lucílio: começa a mostrar-te como prometera. Segue este impulso do espírito que te conduz às melhores coisas já tendo passado pe­los bens vulgares. Não desejo que tu te tornes maior ou melhor do que tens procurado ser. Tens bons e sólidos fundamentos: faze tudo o que desejas e põe em ordem os teus projetos.

Alcançarás a suma sabedoria se fechares os ouvi­dos, mas fechá-los com um pouco de cera não é sufi­ciente. É necessário que seja um tampo mais eficaz do que aquele que, segundo contam, foi usado por Ulisses e seus companheiros. A voz que ele temia era sedutora, mas não inteiramente. Porém, essa que devemos temer agora não ressoa de um único lugar, mas de todo can­to da terra. Não há um lugar único suspeito por seus insidiosos prazeres, mas sim todas as cidades. Torna-te surdo inclusive com as pessoas que te amam muito, pois, mesmo com as melhores intenções, te desejam o mal. E, se queres ser feliz, pede aos deuses que nada do que te desejam aconteça.

Não são verdadeiros bens aquelas coisas das quais te querem ver acumulado o bem é um só, causa e funda­mento da felicidade, ou seja, a confiança em si mesmo. Mas isso não podemos obter se não somos indiferentes ao cansaço e se não o colocamos entre as coisas que não são nem boas nem más. Não é possível que uma mesma coisa seja um pouco má e um pouco boa; algumas vezes leve e suportável e, outras, terrível.

O trabalho não é um bem; mas então o que é um bem? O desprezo pelo cansaço. Por isso, em vão repro­vei aqueles que se mostram atarefados por nada e, ao contrario, aprovo os que se esforçam por serem honestos, principalmente quando se esforçam sem se deixa­rem vencer ou descansar. Eu exclamarei dirigindo-me a eles: “Tenham ânimo, ergam-se, respirem fundo e su­perem este peso, se puderem, de uma única vez”.

O trabalho nutre os espíritos generosos... Não escolhas, de acordo com os desejos dos teus pais o que desejas para ti; é reprovável para um homem importunar os deuses com muitas súplicas. O que é preciso pedir? Faze feliz a ti mesmo e o farás se compreender que os bens são misturados às virtudes e os males aos vícios. Do mesmo modo, nada resplandece se não é impregnado de luz e nada é escuro se não é impregnado de trevas; nada é quente sem a ação do fogo e nada é Itio sem o ar. Assim, as coisas honestas e torpes são feitas a partir da associação às virtudes ou aos vícios.

O que é, pois, bom? A ciência das coisas. O que é mau? A ignorância acerca das coisas. Aquele que é prudente e realizador rejeita ou escolhe todas as coisas no tempo adequado, mas sem temer o que rejeita nem admirar o que escolhe, se seu espírito é grande e in­vencível. Proíbo que te submetas ou te deprimas. Não rejeitar o trabalho ainda é pouco; deves buscá-lo.

“Pois como?”, perguntas, “o trabalho frívolo e supérfluo que é motivado por razões mesquinhas não é mau?” Não é mais do que aquele em que se empregam belas ações, visto que é sempre a mesma tenacidade do espírito que instiga às coisas duras e ásperas e diz: “Por que tu paras? Não é viril temer o suor”.

Para que a virtude seja perfeita, é necessário que a tudo isso se acrescente igualdade e firmeza de vida, sempre coerente contigo mesmo, o que não pode ocor­rer a não ser que existam entendimento e arte pelos quais se conhece as coisas humanas e divinas. Este é o bem maior e, se o alcanças, começas a ser amigo dos deuses e não mais um suplicante deles.

“De que modo se alcança isso?”, perguntas. Não atravessando os Alpes ou os Montes Ilíricos, a enfrentar Sirtes, Cilia ou Caribde, que percorreste para conseguir o governo de uma pequena província. O itinerário in­teiro é seguro e agradável para aquilo que a natureza te preparou. Ela te deu as qualidades que, se não as aban­donares, te elevarão à altura de um deus. O dinheiro não te fará como um deus, pois um deus nada tem. Nem a toga pretexta ele usa. Nem a fama, a ostentação ou mesmo a notoriedade do teu nome entre os povos o fará, pois ninguém conhece um deus; muitos impu­nemente o julgam mal. E nem mesmo uma multidão de servos que carreguem a tua liteira por itinerários urbanos e mais longínquos te auxiliará, pois é aquele deus, mais poderoso, quem conduz todas as coisas. Do mesmo modo, nem a beleza nem a força podem te fazer feliz, nada resiste ao tempo.

Precisas encontrar algo que não se desvalorize com o passar dos dias, que não tenha obstáculos. O que é isso? O espírito, mas que seja reto, bom, nobre. E de que outro modo poderás chamá-lo que de um deus que habita o corpo humano? Esse espírito pode ser encon­trado tanto num cavaleiro romano quanto num liberto e, ainda, num escravo. O que é, pois, um cavaleiro romano, um liberto, um escravo? São apenas nomes que se originam da ambição ou da injustiça. É possível, do nada, subir ao céu. Ergue-te agora “e te tornes digno de um deus”. Mas não o farás através do ouro ou da prata, pois a partir desses metais não se pode exprimir uma imagem semelhante a um deus; lembra que, quando eles nos eram propícios, eram feitos de barro. Passa bem!

Filosofia - Filosofia Clássica
Estoicismo - Tópicos gerais, 
8/28/2021 5:37:02 PM | Por Lúcia Sá Rebello
Sêneca e as contradições da condição humana

Lúcio Anneo Sêneca nasceu em Córdoba, Espa­nha. Seu pai foi Anneo Sêneca - Sêneca, o velho conhecido com o retórico e do qual restou apenas uma obra escrita, intitulada Declamações. Sêneca, o moço, loi educado em Roma, tendo estudado retórica ligada à filosofia. Em pouco tempo, tornou-se conhecido como advogado e ascendeu politicamente, passando a ser membro do senado romano e, mais tarde, questor (magistrado encarregado das finanças).

Em Roma,o triunfo político não acontecia impune­mente, e a notoriedade de Sêneca suscitou a inveja do imperador Caligula, que morreu antes de poder des­trui-lo. Dessa forma, Sêneca pôde continuar vivendo em relativa tranqüilidade, mas essa não durou muito tempo. Em 41 e.c., foi desterrado para a Córsega sob a acusação de adultério, supostamente com Júlia Livila, sobrinha do novo imperador Cláudio César Germânico. Na Córsega, Sêneca viveu cerca de dez anos com grande privação material. Dedicou-se aos estudos e re­digiu vários de seus principais tratados filosóficos, entre os quais os três intitulados Consolationes {Consolos), dos quais expõe os ideais estóicos clássicos de renúncia aos bens materiais e de busca da tranqüilidade da alma por meio do conhecimento e da contemplação.

Em 49 e.c., Messalina, primeira esposa do imperador Cláudio, foi condenada à morte. O imperador casa-se, então, com Agripina. Pouco tempo depois, ela manda chamar Sêneca para se encarregar da educação de seu filho Nero, tornando-o, em 50 e.c., pretor.

Sêneca casou-se com Pompéia Paulina e organi­zou um poderoso grupo de amigos. Logo após a morte de Cláudio, ocorrida em 54 e.c., o escritor vingou-se do imperador com um texto que foi considerado a obra-prim a das sátiras romanas, Apocolocyntosis divi Claudii (Transformação em abóbora do divino Cláudio). Nessa obra, Sêneca critica o autoritarismo do impera­dor e narra como ele é recusado pelos deuses.

Quando Nero foi nomeado imperador, Sêneca tornou-se seu principal conselheiro e tentou orientá-lo para uma política de justiça e de humanidade. Durante algum tempo, exerceu influência benéfica sobre o jo­vem, mas, aos poucos, foi forçado a adotar uma atitu­de de complacência. Chegou ao ponto de redigir uma carta ao Senado para justificar a execução de Agripina, em 59 e.c., pelo filho. Nessa ocasião, foi muito critica­do por sua postura frente à tirania e à acumulação de riquezas de Nero, incompatíveis com as suas próprias concepções filosóficas.

O escritor e filósofo destacou-se por sua ironia, arma da qual se utilizava com muita sabedoria, prin­cipalmente nas tragédias, as únicas do gênero na li­teratura da antiga Roma. Conhecidas como versões retóricas de peças gregas, elas substituem o elemen­to dramático por efeitos violentos, como mortes em cena e discursos agressivos, demonstrando uma visão mais trágica e mais individualista da existência. Sêneca deixou a vida pública em 62 e.c. Dentre seus textos, constam a compilação científica Naturales quaestiones (Problemas naturais), os tratados De tranquillitate animi (Da tranqüilidade da alma), De vita beata (Da vida beata), as cartas reunidas em Sobre abrevidade davida, (De brevitale vitae) e, talvez sua obra mais profunda, as Epistolae morales dirigidas a Lucílio. As cartas mo­rais, escritas entre os anos 63 e.c. e 65 e.c, misturam elementos epicuristas com idéias estóicas e contêm ob­servações pessoais, reflexões sobre a literatura e crítica satírica aos vícios da época.

Acusado de participar na conjuração de Pisão, em 65 e.c., Sêneca recebeu de Nero a ordem de suici­dar-se, que executou com o mesmo ânimo sereno que pregava em sua filosofia. Conta-se que sua morte foi uma lenta agonia. Abriu as veias do braço, mas o san­gue correu muito lentamente; assim, cortou as veias das pernas. Porém, como a morte demorava, pediu a seu médico que lhe desse uma dose de veneno. Como este não surtiu efeito, enquanto ditava um texto a um dos discípulos, tomava banho quente para ampliar o sangramento. Por fim, fez com que o transportassem para um banho a vapor e, ali, morreu sufocado.

Da obra

Chama-se epístola a composição datada e escrita por um indivíduo ou em nome de um grupo com o objetivo de ser recebida por um destinatário. O termo lem uso antigo e constitui gênero literário importante a partir do conjunto de textos do Novo Testamento que ficaram conhecidos por epístolas. Assim, distingue-se uma epístola de uma carta comum, pois não se destina apenas à comunicação de fatos de natureza pessoal ou familiar, aproximando-se mais da crônica histórica que procura relatar acontecimentos do passado. A utiliza­ção do termo alarga-se, posteriormente, a todo tipo de correspondência privada ou oficial, literária ou filosófi­ca, religiosa ou política, tornando-se difícil estabelecer com rigor a diferença entre uma epístola e uma carta. À arte de escrever epístolas ou formas registradas de correspondência escrita entre indivíduos dá-se o nome de epistolografia.

Na literatura latina, são referências obrigatórias do gênero epistolar as Epístolas, de Horácio, as cartas de Varrão, Plínio, Ovídio e, sobretudo, de Cícero, que fixaram um modelo que foi fartamente imitado. Como referência obrigatória, deve-se incluir os textos epistolares de Sêneca, cujo tom coloquial define que o estilo que melhor convém a uma carta não deve conter um acúmulo de conhecimentos dos diversos ramos do sa­ber ou ser afetado.

Sêneca é o mais importante representante da filo­sofia estóica em seu último período, e suas preocupa­ções são, em essência, éticas. É um filósofo de espírito mais prático que teórico. Afasta-se, em alguns pontos, do estoicismo, aceitando elementos tomados do epicurismo, o que resulta em um ecletismo de caráter moralista, preocupado com a filosofia enquanto ensi­namento e consolo para a vida.

Para Sêneca, a filosofia gira em torno da figura do “sábio”. A sabedoria e a virtude são a meta da vida moral, o único bem imortal que possuem os mortais. A sabedoria consistirá, segundo a doutrina estóica, em seguir a natureza, deixando-se guiar por suas leis e seus exemplos. Estando a natureza regida pela razão, obede­cer-lhe é obedecer à razão, podendo o homem, assim, ser feliz. A felicidade consiste em se adaptar à natureza para manter um equilíbrio que nos deixe a salvo das vaidades da fortuna e dos impulsos do desejo que obscurecem a liberdade. A liberdade, então, configura-se corno a tranqüilidade do espírito, a imperturbabilidade do ânimo frente ao destino, ou seja, a ataraxia. Segundo sêneca, “O melhor é dirigir-te para a sabedoria, onde encontrarás, ao mesm o tempo, tranqüilidade e grandes possibilidades de crescimento” (LXXIV).

As cartas que Sêneca envia ao amigo Lucílio fazem parte de um a longa tradição do gênero epistolar, que se prolonga em autores modernos. Essas cartas, escritas entre os anos 63 e 65 e.c., misturam elementos epicuristas com idéias estóicas e contêm observações pes­soais, reflexões sobre a literatura e crítica satírica dos vícios com uns na época. Não se sabe se Lucílio existiu ou se configura apenas em mero interlocutor imaginário criado pelo filósofo para desenvolver a sua filosofia à maneira de diálogo, o que foi bastante comum durante muitos séculos.

Nas cartas a Lucílio, Sêneca aborda diversas questões. É um otimista. Considera que todas as pessoas tra­zem consigo a semente de uma vida honesta, embora os bons exemplos exerçam um papel essencial na adoção das virtudes. A educação moral consiste em fazer com que os atos correspondam aos princípios éticos. Por vezes, a vontade é fraca ou deficiente. Assim, faz-se necessário um guia espiritual. O homem possui uma natureza que o predispõe quer para o bem quer para o mal, e nem sempre possui a força de vontade e a sabedoria suficientes para optar pelo bem em detrimento tio mal.

Sêneca traça um programa de heroísmo passivo, que exige uma reformulação da mente para que não se impressione com o horror das dores, da miséria e da morte. Os homens devem auxiliar uns aos outros e viver em sociedade, professando o afeto e a estima. A nature­za exige o amor dos elementos que a compõem. Causar dano a outro homem é algo irracional que vai contra a própria essência da natureza.

A morte não é um bem nem um mal, podendo tornar-se uma libertação quando as circunstâncias da vida condenam o homem a uma escravidão incompatí­vel com a liberdade. Dessa forma, está aberto o caminho para que o homem deixe a vida. Nada os obriga a viver na miséria ou no cativeiro. Essas são apenas algumas das inúmeras questões tratadas nas 29 cartas de Sêneca dirigidas a Lucílio que estão reunidas neste volume.
Sem dúvida, muitas das observações e conclusões que fazem parte dessas cartas poderiam ser aplicadas às inquietudes do mundo atual. Sêneca escreveu as mais belas máximas de pureza da vida; nele se uniram todas as perfeições do pensamento humano, a elevação do espírito e o entusiasmo pela virtude. As cartas a Lucílio demonstram sua larga experiência e contêm as refle­xões mais profundas sobre as contradições da condição humana.

Que o leitor aprecie a leitura desta obra, fruto de um grande pensador da vida e de suas imprevisibilidades.

Filosofia - Filosofia Clássica
Sociedade - Ciências, Medicina
8/28/2021 10:30:16 AM | Por André Bonnard
Hipócrates e a ciência médica grega no século V

Prometeu, enumerando na tragédia de Esquilo os benefícios que a huma­nidade primitiva lhe deve. dava à medicina o primeiro lugar. "Sobretudo", diz ele, "quando os homens caíam doentes, não tinham para seu alívio nada que comessem, nada que bebessem, nenhum unguento: tinham de perecer. Fui eu que os ensinei a preparar remédios benéficos, que lhes permitiram defender-se de toda a espécie de doenças."

Hipocrates, apoiando-se numa longa tradição, foi, no século V, o Prometeu da medicina.

Esta tradição é um saber médico laico e prático, transmitido em tal ou tal corporação de homens da arte, e que remonta, para nós, até à Ilíada. Neste poema da presença da morte, encontramos mais que um médico, e mesmo simples profanos, capazes de desbridar feridas, desinfectá-las, ligá-las, aplicar compressas, por vezes pós feitos de raízes moídas. Acontece a estes médicos da Ilíada praticarem verdadeiras operações.
Homero conhece e descreve, muitas vezes com precisão, cento e quarenta e uma feridas. Conhece também um grande número de órgãos do corpo humano. A profissão de médico é,  no poema, exercida por homens livres, respeitados por todos. "Um médico", escreve, "vale só por si alguns homens."

A medicina mágica não ocupa, por assim dizer, nenhum lugar na Ilíada. Na Odisseia, que é um conto de fadas, são praticados exorcismos por ninfas enfeitiçadoras encontradas em terra exótica.

Nos séculos seguintes (incluindo o século V) uma corrente mística de origem oriental ganha força, parece invadir a consciência popular e obscurecer, mesmo aos olhos de filósofos, a investigação médica e científica. [351]

Nos santuários de Esculápio, em Trica, na Tessália, sobretudo em Epidauro. afluem os peregrinos e fervilham os milagres. Inscrições de Epidauro, redigidas por padres em forma de ex-voto, trazem-nos o eco destas curas miraculosas, que se operam sempre durante o sono, no seguimento de uma intervenção do deus em sonho (cura pela fé, dizem ainda hoje certos crentes). Eis uma entre muitas, e não a mais estranha.
"Ambrósia de Atenas, a zarolha. Esta mulher veio ao templo do deus e troçou de certas das suas curas, declarando que não se podia acreditar que coxos e cegos recobrassem a saúde, simplesmente por um sonho. Em seguida, ador­meceu no templo e teve um sonho. Pareceu-lhe que o deus se aproximava e lhe dizia que a curaria, mas que era preciso que ela lhe oferecesse, no templo, um porco de prata em testemunho da sua estupidez. Tendo assim falado, fendeu-lhe o olho doente e deitou nele um remédio. No dia seguinte, ela foi-se embora, curada.

Empédocles, nas suas Purificações, o próprio Platão em mais de uma passagem, dão testemunho de que a crença na virtude das encantações e da medicina mágica não era estranha ao pensamento da Grécia clássica.

As inscrições de Lourdes-Epidauro são contemporâneas das obras atribuídas a Hipócrates.

Seria erro grave admitir, como o fazem alguns hoje, que a medicina grega tenha saído dos santuários. Houve na Grécia, em plena época de racionalismo. duas tradições médicas paralelas, mas inteiramente distintas.

Enquanto na órbita dos santuários se multiplicam os exorcismos, os sonhos, os sinais, os milagres — tudo isto dócil à voz dos sacerdotes — verifica-se na mesma época a existência duma arte médica, inteiramente laica e independente, aliás de tendências muito diversas, mas que nunca se inclina para a superstição e em que nunca aparece, seja como objecto de crítica ou de troça, o vulto do sacerdote curador ou intérprete do deus curador.

Por um lado, não se fala nunca de pesquisa científica metódica visando a estabelecer as causas materiais das doenças nem regras que vão além do caso particular de cada doente, mas apenas de milagres cumpridos arbitrariamente, graças ao bom querer da divindade. Por outro lado, sem que o espírito do médico seja de modo algum ateu, vêmo-lo afastar resolutamente toda a explicação referida a Deus e só a Deus.
Característica e singularmente ousada é a abertura do tratado intitulado Do Mal Sagrado. O autor declara:

"Penso que a epilepsia, também chamada [352] mal sagrado, não é mais divina ou mais sagrada que os outros males. A sua natureza é a mesma. Os homens deram-lhe primeiro uma origem e uma causa divinas por ignorância, espantados dos seus efeitos, que não se parecem com os das doenças comuns. Perseveraram depois em ligar a ela uma ideia de divindade, por não saberem destrinçar-lhe a natureza, e tratam-na conforme a sua ignorância... Vejo aqueles que santificaram a epilepsia como pessoas da mesma espécie que os magos, os encantadores, os charlatães, os impostores, tudo gente que quer fazer acreditar ser muito piedosa e saber mais que o resto dos homens. Lançaram o manto da divindade sobre a sua incapacidade de procurar qualquer coisa de útil aos seus doentes."

Este tratado do Mal Sagrado faz parte daquilo a que se chama, desde os Alexandrinos, a Colecção Hipocrática, isto é, um conjunto de cerca de setenta tratados, atribuídos pelos antigos ao grande médico de Cós. A maior parte destas obras foram, com efeito, redigidas em vida de Hipócrates, na segunda metade do século V ou no começo do século IV. Alguns, aliás difíceis de distinguir, são da própria mão do mestre de Cós ou dos seus discípulos imediatos. Outros, pelo contrário, têm por autores médicos de escola ou de tendência rivais das de Cós.

Muito sumariamente, é permitido distinguir na Colecção Hipocrática três grandes famílias de médicos. Há os médicos teóricos, filósofos amadores de especulações aventurosas. Em oposição, situam-se os médicos da escola de Cnide, em quem o respeito dos factos é tal que eles se mostram incapazes de os ultrapassar. Finalmente — e este terceiro grupo é o de Hipócrates e dos seus discípulos, o da escola de Cós — há os médicos que, apoiando-se na obser­vação, partindo dela e só dela, têm a constante preocupação de interpretar, de compreender. Estes últimos médicos são espíritos positivos: recusam-se às suposições arbitrárias, apelam constantemente para a razão.

Estes três grupos de escritores são igualmente opostos à medicina dos santuários. Mas só o último grupo funda a medicina como uma ciência1. [353]

*

Os médicos teóricos não nos demorarão muito tempo. Trata-se de brilhantes jogadores de palavras, que participam nesse movimento muito vasto, tocante a todas as actividades humanas, muitas vezes com justeza, a que se dá o nome de sofística.

O seu método procede, aliás, inversamente ao método científico são. Em vez de partir do exame dos factos, os autores dos tratados deste grupo partem quase sempre de ideias gerais colhidas na filosofia ou nas crenças da época: contentam-se com aplicar, muito arbitrariamente, tal ou tal dessas ideias aos factos médicos que têm de explicar. Estas ideias são, frequentemente, simples ideias preconcebidas: é o caso do papel predominante do número 7 nas actividades humanas.

O tratado Das Carnes, o Feto de Sete Meses, seguido do Feto de Oito Meses, mostram ou pretendem mostrar que se o feto é viável ao fim de sete meses, e depois aos nove meses e dez dias, é porque nos dois casos conta um número exacto de semanas, a saber, respectivamente, trinta e quarenta. Estes tratados apresentam, igualmente, a título de provas, que a resistência do homem normal ao jejum é de sete dias, que as crianças têm os dentes aos sete anos, que as crises das doenças agudas se produzem ao fim de meia semana, de uma semana, de uma semana e meia, de duas semanas.

O tratado Dos Ventos, em que alguns persistem em ver a chave da doutrina de Hipócrates, é menos um tratado médico que uma dissertação, ornamentada sobre o papel do ar e da respiração, ao mesmo tempo como princípio da marcha do universo, da mudança das estações, e como causa de todas as doenças: febres epidêmicas ou pestilenciais, catarros, fluxões, hemop­tises, hidropisias, apoplexias, cólicas, e até os bocejos.
Uma dezena de tratados da nossa Colecção liga-se a esta medicina sofística, brilhante e oca, tão afastada quanto é possível da prática de Hipócrates. Contudo, nos menos maus, encontram-se ainda indicações judiciosas que parecem fruto duma experiência autêntica.

No tratado Do Regime, que começa por dissertar no vazio sobre a natureza do homem, sobre a natureza da alma, que é mistura de água e fogo, sem esquecer os sexos, os gémeos e as artes, encontramos com surpresa um catálogo muito bem feito das plantas hortenses e das suas propriedades, [354] nomea­damente uma enumeração das virtudes dos cereais, conforme, por exemplo, a cevada seja absorvida com o seu invólucro ou descascada, cozida ou torrada, conforme o pão de cevada seja consumido logo que amassado ou algum tempo depois, ou ainda, para o pão de fromento, conforme seja branco, de rolão ou fermentado. Há páginas e páginas sobre os vegetais, outras sobre as proprie­dades das carnes, a partir da vaca e não esquecendo o ouriço. O tom discursador e pseudofilosófico do começo do tratado dá lugar a incríveis ementas, tendo à margem todos os riscos de flatulência, os efeitos evacuantes. diuréticos ou nutrientes de cada alimento. As teorias nebulosas da introdução (Aristófanes troça deste género de medicina nas Nuvens) cedem o passo à onda das recomendações sobre a utilidade dos vómitos repetidos, o perigo dos excre­mentos pútridos e o bom uso dos passeios. Notemos, de passagem, que o autor declara elaborar os seus regimes para "o comum dos homens, aqueles que, ganhando apenas para o seu sustento, não têm os meios de renunciar a todo o trabalho para se ocuparem da sua saúde". Feito isto, elabora outro regime, que é sua "bela descoberta", para uso das pessoas de meios. Ninguém tinha pensado em tal antes dele, diz. E aqui o nosso homem cai num anfiguri de distinguo em que a sua vacuidade se compraz: deixou decididamente o caminho da ciência ao nível da terra, que durante certo tempo pacientemente seguira.

Façamos também justiça ao tratado Do Feto de Sete e de Oito Meses que, a par de divagações septenárias e lunares, contém pelos menos uma página justa, comovente até, sobre os perigos que a criança corre após o nascimento.

"Modificadas (pelo nascimento), as condições de alimentação e de respi­ração constituem um perigo. Se, com efeito, os recém-nascidos absorvem qualquer germe malsão, é pela boca e pelo nariz que o absorvem. Ao passo que precedentemente não entrava no organismo senão o que era exactamente suficiente e nada mais, doravante penetram nele muito mais coisas; e, em razão desta sobreabundância de contributos de fora como em razão da constituição do corpo da criança, as eliminações tornam-se necessárias: fazem-se, por um lado, pela boca e pelo nariz, por outro lado, pelo intestino e pela bexiga. Ora nada disto acontecia anteriormente.

"Em vez, pois, de respirações e de humores que lhe eram congéneres e aos quais, na matriz, estava aclimatada, como que num comércio de familiari­dade, a criança, desde o nascimento, usa de coisas que lhe são estranhas, ásperas, rudes, menos humanizadas: desde aí, é necessidade que de tal resultem sofrimentos e muitas mortes. Em vez de estar envolvida de carne e de humores [355] tépidos, húmidos, concordes com a sua natureza, a criança acha-se vestida de panos como o adulto. O cordão umbilical é, primeiramente, a única via pela qual a mãe comunica com a criança. É por ele que a criança participa no que a mãe recebe. As outras estão-lhe fechadas e só se abrem após a sua vinda à luz: nesse momento tudo se abre nela, ao passo que o cordão se adelgaça, se fecha e se resseca."

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Entretanto, nos antípodas destes médicos teóricos, destes iatrosofistas situa-se, na Colecção Hipocrática, a medicina da escola de Cnide, rival ou émula da de Cós (a de Hipócrates). Os tratados que melhor representam esta medicina cnidiana no Corpus são as Afecções Internas e as Doenças (secção II). Juntemos-lhes uns doze tratados que, sem serem rigorosamente cnidianos, são aparentados de perto ou de longe com esta escola. Nomeadamente diversos tratados de ginecologia.

O grupo cnidiano caracteriza-se pelo gosto da observação precisa e mesmo minuciosa, pela preocupação de dar descrições concretas e pormenorizadas das doenças, evitando toda a generalização abusiva, toda a evasão "filosófica". O médico é, nesta escola, reconduzido ao que em todo o tempo constituiu o núcleo da sua arte: a observação clínica. Estes Cnidianos são, pois, principal­mente, práticos. Não vão além da observação directa, temem forçar — inter­pretar demasiadamente — as palavras do doente. Têm em relação aos factos uma fidelidade um pouco limitada que lhes estreita o horizonte. Contentam-se com classificar as doenças e, quanto a tratá-las, atêm-se a uma terapêutica experimentada pela tradição.

Não se empenham em debates médicos. Não procuram as causas das doenças, reduzidas ao comportamento de dois "humores", bílis e fleuma. Fogem dos problemas difíceis, insolúveis para eles. Em suma, não procuram compreender.

As suas classificações multiplicam as divisões e parecem multiplicar as doenças. As Afecções Internas e as Doenças II enumeram e descrevem três espécies de hepatites, cinco doenças do baço, cinco espécies de tifo, quatro [356] doenças dos rins, três espécies de anginas, quatro pólipos, quatro icterícias, cinco hidropisias, sete tísicas, um grande número de afecções cerebrais.

Algumas destas distinções são justificadas, e novas. Por exemplo, a do reumatismo articular agudo e da gota, chamada podagra. Mas a maior parte delas são insuficientemente fundamentadas ou imaginárias.

Eis, a título de exemplo, a maneira como é descrita uma das tísicas mencionadas.

"Esta é produzida por excessos de fadiga. Os acidentes são mais ou menos os mesmos que no caso precedente, mas a doença oferece mais remissões e afrouxa no Verão. O doente expectora, mas os escarros são mais espessos. A tosse é mais premente nos velhos. As dores no peito são mais fortes. Parece que uma pedra pesa sobre ele. As costas também doem. A pele é húmida. Com o mais pequeno esforço, o doente arqueja e fica oprimido. Morre-se em geral desta doença ao fim de três anos."

Na descrição doutra tísica:

"À medida que a doença avança, o doente emagrece, excepto nas pernas, que incham. As unhas retraem-se. Os ombros tornam-se delgados e fracos. Sente-se a goela como se estivesse cheia de penugens: a garganta silva como através de um tubo. A sede atormenta. Todo o corpo enfraquece. Neste estado, não se vai além de um ano."

A descrição é frequentemente muito expressiva. Alguns traços forçam a atenção: o doente que procura respirar "abre as narinas como um cavalo que corre; deixa sair a língua como um cão que no Verão é queimado pelo calor do ar". Imagens exactas e impressionantes.

Mas os médicos de Cnide, nas suas classificações, são tomados por uma espécie de delírio nosológico. É de notar que a esta profusão de descrições corresponde uma assaz pobre terapêutica. É sempre purgar, fazer vomitar (o vómito é, para os antigos, uma purga por cima), dar leite, cauterizar.

Notemos, entretanto, um tratamento singular preconizado pelos Cnidianos. Os "errhins" são uma prática estranha que consiste em colocar no nariz substâncias de composição variada a fim de curar as doenças cuja sede se situa, para o médico, na cabeça: apoplexia, icterícia, tísica, etc. Estes "errhins" são purgativos da cabeça". O seu emprego supõe uma comunicação entre o nariz e o cérebro. Mas não dizemos nós ainda uma constipação da cabeça?

Salientemos igualmente o processo de exploração do pulmão empregado pelo médico, que tem necessidade, antes de tentar uma intervenção, de conhecer a posição exacta de um derramamento de cuja presença na cavidade pleural [357] suspeita. O texto indica que depois de ter "colocado o doente sobre um assento sólido e enquanto um ajudante segura as mãos do paciente", o médico "agarra-o pelos ombros e imprime-lhe uma sacudidela, ao mesmo tempo que aplica o ouvido sobre as costelas, a fim de saber se é à direita ou à esquerda que está o mal". Este processo chamado "sucussão hipocrática". embora seja cnidiano, esquecido ou não reconhecido pela tradição médica posterior, mostra bem o engenho inventivo dos médicos de Cnide na observação dos factos. Laènnec declara tê-lo empregado segundo os tratados antigos e ter tirado dele vantagem.

Esta "sucussão hipocrática" lembra-nos, a propósito, que a velha medicina cnidiana — cujo empirismo tendia a tornar-se puro pragmatismo, para não dizer rotina — foi levada, como compensação da sua fidelidade à observação, a várias descobertas, das quais a principal é a auscultação. Uma outra passagem, além da já citada, o atesta. O médico, escreve o autor de Doenças II. "aplicando durante muito tempo o ouvido contra as costelas, ouve um rumor como vinagre a ferver". Outras passagens confirmam ainda que a auscultação praticada pelos médicos do século V era sem dúvida uma invenção cnidiana.

Encontramos ainda, nestes tratados cnidianos ou aparentados a Cnide, a menção de numerosas intervenções cirúrgicas e a descrição dos instrumentos que as permitem. O tratamento dos pólipos do nariz é simples e brutal: ora se pratica a cauterização por meio de ferramentas aquecidas ao rubro, ora o arrancamento por meio de um pauzinho munido duma "corda de nervo": o médico ajusta-a e puxa vigorosamente. As incisões no rim são aconselhadas em três das quatro doenças renais: a incisão, especifica o autor, deve fazer-se "no sítio onde o órgão está mais inchado"; deve ser "profunda". As incisões na caixa torácica são numerosas: são intercostais, e o cirurgião usa primeiro um "bisturi convexo", depois continua com um "bisturi afilado". A operação mais ousada praticada pelos Cnidianos é a trepanação do crânio, a fim de dar saída a um derramamento líquido que ameaça a vista, sem que haja lesão do olho. As curas obtidas são mencionadas, assim como as duas espécies de trépano empregadas.

Basta. A medicina de Cnide representa incontestavelmente um imenso esforço dos homens de ofício, com vista a assentar a sua disciplina em, observações rigorosas de factos numerosos. Contudo, há que reconhecê-lo. esse esforço não chega a termo. O grande mérito destes médicos é terem-se recusado aos atractivos de hipóteses filosóficas inverificáveis. Não querem conhecer e transmitir senão os factos observados pela tradição médica; acrescentam a esta tradição os casos que eles próprios recolheram. Apenas conhecem doentes: o seu ofício é tratá-los segundo os métodos que consideram mais experimentados.

Notar-se-á, sem dúvida, e não sem razão, que esta desconfiança dos Cnidianos em relação à especulação e à hipótese provocou, na prática quotidiana da sua arte, uma espécie de desconfiança inconsciente mais geral para com a inteligência. Pensar a medicina não é com eles.

Efectivamente, é muito raro que os seus escritos produzam a menor ideia geral, a menor fórmula que tenha o estilo do pensamento. Muito raro, mas não excluído. Citemos uma dessas reflexões — talvez a única. Incide ela sobre o método que permitirá à medicina progredir.

Esta reflexão encontra-se no tratado intitulado Os Lugares no Homem. O autor do escrito é um médico, senão cnidiano, pelo menos estreitamente aparentado com a escola. É, em muito, o tratado mais interessante que encon­trámos até aqui. O autor escreve isto: "A natureza do corpo é o ponto de partida do raciocínio médico", frase que vai muito além do vulgar empirismo cnidiano.

O autor desta fórmula compreendeu que todas as partes do corpo são solidárias entre si. Razão por que, baseando-se na reflexão de método que citei, faz preceder a exposição patológica que empreende de uma descrição de anatomia geral. Assim, para ele, a medicina não tem outra base mais sólida que o estudo do organismo humano.

A propósito desta frase dos Lugares no Homem, alguns modernos pronun­ciaram o nome de Claude Bemard. Grande honra feita ao modesto prático anónimo que escreveu este tratado, e honra merecida. Nenhum outro escrito de tendência cnidiana provocaria uma tal aproximação.
Quanto à descrição anatómica do nosso autor, ainda falta muito para que ela seja exacta. Contudo, o médico que escreveu Os Lugares no Homem não ignora que os órgãos dos sentidos estão ligados ao cérebro; observou exacta­mente as membranas do olho e as do encéfalo; sabe que a veia cava superior leva o sangue ao coração. Em compensação, parece confundir a veia cava inferior com a acorta.

De resto, não é tanto de notar aqui a exactidão dos resultados do seu inquérito como dizer a justeza de um método que tenta fundar a patologia sobre o conhecimento anatómico. [359]

Antes de deixarmos os honestos práticos de Cnide para nos voltarmos para os autores propriamente hipocráticos da Colecção, digamos algumas palavras a respeito do notável tratado intitulado Do Coração. Esta obra sofreu aqui e além a influência da escola de Cnide: foi, recentemente, atribuída, com verosi­milhança, a um médico da escola siciliana, o sábio Filistião. Este médico professava no começo do século IV em Siracusa, e Platão conheceu-o bem. Filistião manipulou, sem dúvida, de escalpelo em punho, um coração humano. Não somente o afirma, referindo-se a um antigo uso dos Egípcios neste domínio, mas sobretudo a exactidão da sua descrição anatómica deste órgão confirma, com efeito, que "extraiu o coração de um homem morto". E o nosso sábio praticou, não só a dissecação, mas também a vivissecção dos animais. A não ser assim, como teria ele descoberto que os aurículos continuam a contrair-se quando os ventrículos já deixaram de bater?
O facto é exacto, e o aurículo direito é, por essa razão, chamado ultimun moriens.

Que conhecimento anatómico do coração tem pois o nosso autor? Sabe que o coração é "um músculo muito potente, não pelas suas partes tendinosas. mas pela feltragem da carne". Sabe que o coração possui dois ventrículos e dois aurículos; distingue o coração direito e o coração esquerdo e sabe que não existe entre eles nenhuma comunicação directa. Observa: "Os dois ventrículos são a fonte da vida do homem. De lá partem os (dois) rios (artéria pulmonar e aorta) que irrigam todo o interior do corpo: por eles é irrigada a habitação da alma. Quando estas duas fontes se esgotam, o homem está morto."

Mas Filistião faz observações mais delicadas ainda. Distingue as veias e as artérias, segundo a natureza diferente dos seus tecidos. Nota muito justa­mente que o coração está inclinado para a esquerda, que a sua ponta é formada unicamente pelo ventrículo esquerdo e que o tecido deste é mais espesso e mais resistente que o do ventrículo direito. Finalmente — e esta é a obra-prima da observação — , descreve com brevidade mas com grande precisão as válvulas que fazem comunicar ventrículos e aurículos e as que estão colocadas sobre a artéria pulmonar e sobre a aorta: compostas de três pregas membranosas — válvulas sigmóides ou semilunares — estão em condições de fechar rigorosa­mente o orifício arterial, observa que as válvulas da artéria pulmonar resistem mais debilmente à pressão que as da aorta.

Surpreender-nos-á talvez que um observador tão sagaz, um sábio que tenta uma verdadeira experiência (na verdade, mal conduzida) num porco para [360] descobrir a origem do líquido que se encontra no pericárdio e banha o coração — surpreender-nos-á que um tal sábio possa contentar-se, para explicar a função fisiológica do coração, com hipóteses extravagantes. O facto é esse. Esse facto indica que o autor do tratado Acerca do Coração não ultrapassou muito o nível de exigência científica dos médicos cnidianos. Mas o nosso espanto seria muito pouco científico. A ciência edifica-se lentamente num estranho amálgama de verdades, de "intuições justas" e de erros. A sua edificação foi durante longos séculos uma história de Torre de Babel. Os erros dos sábios, no fim de contas, são-lhe tão proveitosos como as justas intuições, porque são eles os primeiros a pedir rectificação.

Esta análise sumária da Colecção Hipocrática quereria contribuir para mostrar a marcha sempre ziguezagueante da ciência que nasce.

*

Eis agora, no centro da Colecção, alguns tratados — sete ou oito — cuja raça se conhece imediatamente: são os filhos do génio. Se não é possível apresentar a prova de que fosse Hipócrates em pessoa o autor, pode-se, pelo menos, assegurar que estes tratados são obra dos seus mais próximos discípulos. Que tal ou tal tratado seja do mestre de Cós, é mais do que provável. Mas qual?... Não nos percamos em falsos problemas. Sabemos que Hipócrates escreveu: oito obras lhe são hoje atribuídas, ora por um crítico, ora por outro, e os sábios que lhe reconhecem essa paternidade são da mais circunspecta espécie.

Os tratados são: Dos Ares, das Aguas e dos Lugares, Do Prognóstico, Do Regime nas Doenças Agudas, os livros I e III das Epidemias, Aforismos (as quatro primeiras secções), finalmente Das Articulações e Das Fracturas, tratados de cirurgia, obras-primas da Colecção.
Digna do mestre, e contudo certamente de uma outra mão, é a obra Da Antiga Medicina, contemporânea da juventude de Hipócrates (440 ou 430). Nesta obra se define com rara mestria a medicina de espírito positivo, a medicina racional que será a de Hipócrates na sua plena maturidade.

A esta enumeração de obras maiores, deverá mais adiante acrescentar-se algumas obras de tendência ética — O Juramento, A Lei, O Médico, O Decoro, Os Preceitos, etc. — que farão desabrochar nos finais do século V, começos do século IV, a medicina científica de Hipócrates em humanismo médico. [361]

"Uma nuvem paira sobre a vida de Hipocrates - , escreve Littré. Consideremos primeiramente os factos mais seguros.

Hipocrates nasceu em Cós. A ilha. colonizada pelos Dórios, era de civilização e de dialecto jónios. A data do seu nascimento é mais certa do que comumente para um autor antigo: Hipocrates nasceu em 460, contemporâneo exacto de Demócrito e de Tucídides. Pertence à família dos Asclepíades. corporação de médicos que pretende descender do grande médico dos tempos homéricos, Asclépio. (Foi somente após Homero que Asclépio foi considerado um deus.) Entre os Asclepíades, um saber médico humano transmite-se de pai para filho, de mestre para discípulo, Hipocrates teve filhos médicos, um genro médico e numerosos discípulos.

Esta corporação dos Asclepíades, a quem também se dá o nome de escola de Cós, conserva no século V, como toda a corporação cultural, quadros e usos religiosos: a prática do juramento, por exemplo, que liga estreitamente os alunos ao mestre, aos seus confrades, aos deveres da profissão. Mas este carácter religioso da corporação, se implica uma certa atitude moral, não altera em nada a pesquisa da verdade, que continua a ser de intenção rigorosamente científica.

A medicina que se funda na Grécia do século V, nomeadamente a de Cós. é inimiga de todo o sobrenatural. Se se quisesse procurar para o médico hipocrático um antepassado, não seria o padre, nem mesmo o filósofo da natureza que se deveria designar. Isto o compreendeu muito bem o autor da Antiga Medicina. Escreve uma obra polémica destinada a defender a medicina como uma arte. (A palavra que emprega é intermédia entre técnica e ciência). Ataca sobretudo Empédocles, que foi médico e filósofo, de uma filosofia cheia de intuições geniais, é certo, mas também de armadilhas para a razão, e que se engana quando declara "que é impossível saber a medicina quando não se sabe o que é o homem e que é essa precisamente a ciência que deve ter adquirido aquele que quer tratar correctamente os doentes". Não, responde o autor da
Antiga Medicina, a arte de curar não deriva nem do conhecimento da natureza, nem de qualquer filosofia do género místico. Rejeita toda a filiação do filósofo (ou do sacerdote) ao médico. O antepassado do médico, quere-o ele humilde, ocupado de humildes tarefas, necessárias e positivas: é, diz ele, o cozinheiro.

Explica, com grande perspicácia, que os homens, na origem, comiam a sua alimentação crua, à maneira dos animais selvagens. Este regime "violento e brutal" tinha como consequência uma forte mortalidade. Foi preciso um [362] longo período de tempo para descobrir uma alimentação mais "temperada". Pouco a pouco, os homens aprenderam a descascar a cevada e o fromento, a moer o grão, a amassar a farinha, a cozê-la no forno, a fazer o pão. Em tudo, "eles temperaram os alimentos mais fortes pelos mais fracos, fizeram massas, ferveram, assaram"... até que "a natureza do homem estivesse em condições de assimilar o alimento preparado e que daí resultasse para ela nutrição, desenvolvimento e saúde". E conclui com este ponto: "Ora, a esta busca e a esta descoberta, que nome mais justo atribuir que o de Medicina?"
Foi a esta cozinha destinada à criatura humana, a esta medicina da saúde tanto como da doença, a dos corpos atléticos tanto como dos mais sofredores, que Hipócrates serviu com uma paixão fervorosa durante a sua longa vida. Viajou muito pela Grécia e fora da Grécia, continuando a tradição dos médicos itinerantes ou "periodeutas". Estes médicos viajantes dos tempos homéricos, vêmo-los nós, através da obra de Hipócrates, instalarem-se para uma longa estada num país novo e aí praticarem a medicina, ao mesmo tempo que observam os costumes dos habitantes.

Hipócrates teve, em vida, a maior celebridade. Platão, uma geração mais novo, mas seu contemporâneo, no sentido amplo da palavra, comparando num dos seus diálogos a medicina com as outras artes, põe Hipócrates de Cós em paralelo com os maiores escultores do tempo, Policleto de Argos e Fídias de Atenas.

Hipócrates morreu numa idade avançada, pelo menos em 375, isto é, aos oitenta e cinco anos, no máximo aos cento e trinta anos. A tradição antiga, unânime, atribui-lhe uma grande longevidade.

Tais são os factos seguros desta vida toda votada ao serviço do corpo humano. Ao lado deles floresce, mesmo em vida do mestre, uma lenda fecunda. A prática natural da medicina parece um espantoso prodígio e faz nascer a lenda como um acompanhamento obrigatório duma melodia demasiado pura. Deixaríamos estes ornatos de parte, se alguns desses relatos não encon­trassem ainda hoje crédito. É o caso da presença de Hipócrates em Atenas aquando da famosa "peste" (que o não foi) e do que ele fez para desinfectar a cidade. Nada disto repousa em testemunho sério. Tucídides, que dá sobre esta epidemia numerosos pormenores e fala dos médicos que a combateram, não diz uma palavra a respeito de Hipócrates. Argumento e silentio, sem dúvida, mas na ocorrência plenamente decisivo. Do mesmo modo é pura lenda o relato da recusa dos presentes de Artaxerxes. Do mesmo modo ainda o relato do [363] diálogo entre Hipócrates e Demócrito, a que acima fiz alusão, por brincadeira, citando La Fontaine.

O que conta para nós infinitamente mais que estas "histórias", é o pensamento, é essa prática da medicina que enche de acções e de reflexões em absoluto convincentes os escritos autênticos do mestre.

O que impressiona em primeiro lugar, nestes textos, é o insaciável apetite de informação. O médico começa por olhar e o seu olho é agudo. Interroga e toma notas. A vasta colecção dos sete livros das Epidemias não é mais que uma sequência de notas tomadas pelo médico à cabeceira do doente. Apre­sentam, na desordem de uma volta médica, os casos encontrados e ainda não classificados. O texto é frequentemente cortado por uma reflexão geral, sem relação com os casos próximos, mas que o médico parece ter notado ao acaso do seu pensamento sempre em movimento.

Uma dessas reflexões vagabundas reporta-se à maneira de examinar o doente, e a palavra decisiva, reveladora, irrompe muitas vezes com rigor, ultrapassando a preocupação da simples observação e mostrando o contorno do espírito do sábio. "O exame do corpo é coisa complexa: reclama a vista, o nariz, o tacto, a língua, o raciocínio." Esta última palavra é uma surpresa que nos deslumbra, uma prenda de valor.

O tratado dos Aforismos, célebre entre todos — que Rabelais explicava no texto grego aos seus estudantes de Montpellier, proeza sem exemplo em 1531. e de que dava a primeira edição moderna — , esse tratado dos Aforismos não é outra coisa que a compilação destas reflexões sobrevindas como raios de luz no decurso do exame, anotadas no ardor do trabalho.

Todos conhecem o primeiro desses aforismos, denso como a soma de um método longamente experimentado. "A vida é curta, a arte é longa, a ocasião fugaz, a experiência fugidia, o juízo difícil.". Toda uma carreira de médico se resume nestas palavras, com os seus reveses, os seus riscos, as suas conquistas sobre a doença arrancadas pela ciência assente na prática, pelo diagnóstico ousadamente lançado no meio da dificuldade. A experiência não se separa aqui da razão que dificilmente se enraizou num terreno "escorregadio".

Eis, nas Epidemias /, uma longa reflexão sobre o exame do doente.

"Quanto a estas doenças, eis como as diagnosticamos: o nosso conhecimento apoia-se na natureza humana comum-a todos e sobre a natureza própria de cada indivíduo; sobre as doenças, sobre o doente; sobre as substâncias ministradas, [364] sobre aquele que as prescreveu — porque tudo isto pode ter contribuído para uma modificação para o bem ou para o mal —, sobre a constituição geral da atmosfera e as condições particulares de cada céu e de cada lugar; sobre os hábitos do doente, o regime de vida, as ocupações, a idade de cada um; sobre as palavras, os modos, os silêncios, os pensamentos que o ocupam, o sono, as insónias, a natureza e o momento dos sonhos; sobre os gestos desordenados das mãos, as comichões e as lágrimas; sobre os paroxismos, os excrementos, as urinas, os escarros e os vómitos; sobre a natureza das doenças que no doente se sucederam, assim como sobre o que delas ficou, princípios de destruição ou de crise; sobre o suor, o arrefecimento, a tosse, o soluço, o arroto, os gases silenciosos ou ruidosos, as hemorragias e as hemorróidas. São estes dados e o que eles permitem apreender que devemos examinar com atenção."

Note-se a extrema amplitude destas exigências. O exame do médico não tem em conta apenas o estado corporal presente do doente; tem em conta igualmente doenças anteriores e os rastos que elas podem ter deixado, tem em conta o seu género de vida, o clima em que vive, não esquece que este doente é um homem como os outros e que, para o conhecer, é preciso conhecer os outros homens; o exame sonda os seus pensamentos. Até os próprios "silêncios" o informam! Tarefa esmagadora, em que se perderia um espírito sem a necessária envergadura.
Esta medicina é claramente psicossomática, como hoje se diz. Digamos mais simplesmente que é a medicina do homem total (corpo e alma) ligada ao seu meio como ao seu passado. As consequências desta amplitude do exame incidirão no tratamento, que exigirá que o doente, por sua vez, sob a orienta­ção do médico, participe inteiramente também, de corpo e alma, na sua cura.

Ao alargamento da investigação junta-se a rapidez do golpe de vista. Porque "fugaz é a ocasião" de mudar para bem o curso da doença. A famosa descrição, que atravessou os séculos, do "fácies hipocrático" — esse fácies que denuncia a morte próxima — atesta a segurança e a acuidade do olhar do mestre.

"Nas doenças agudas", diz o autor do Prognóstico, "o médico fará as observações seguintes: examinará primeiro o rosto do doente e verá se a fisionomia é semelhante à das pessoas com saúde, e sobretudo se é parecida consigo mesma. Esta seria a aparência mais favorável, e quanto mais dela se afastar, maior será o perigo. As feições atingiram o último grau de alteração quando o nariz está afilado, quando os olhos estão fundos, as fontes cavadas... [365] os lóbulos das orelhas afastados, quando a pele da fronte está seca, tensa e árida, a pele de todo o rosto amarela ou negra, ou lívida, ou cor de chumbo.. Se os olhos fogem da luz, se se enchem involuntariamente de lágrimas, se se afastam do seu eixo, se um se torna mais pequeno que o outro... se estão ou agitados, ou saindo para fora da órbita, ou profundamente encovados, se as pupilas estão ressequidas e baças... o conjunto destes sinais é mau. Igualmente se dará um prognóstico funesto se os lábios estão soltos, pendentes, frios e pálidos."

A extrema atenção dada nesta passagem à pessoa do doente, como nos inúmeros casos estudados nas Epidemias, em que se sente o médico, por mais apressado que esteja, preocupado em nada anotar que não seja exacto e dado pela "sensação", esta abundante observação imediata não impede Hipócrates de dar uma atenção igual às condições do meio em que vivem os homens.

Dos Ares, das Aguas, dos Lugares é um estudo do mais alto interesse sobre as relações do meio com a saúde das populações.

Bourgey observa a propósito: "O médico (antigo) interessa-se não só pelos doentes, mas em maior grau do que hoje se faz, pelo homem com saúde, prescrevendo com este objectivo toda uma higiene de vida." Vimo-la mais acima: a Antiga Medicina declarava que a arte médica, atravancada de filosofia ou empolada de sofística, podia ser redescoberta a partir de uma pesquisa sobre a alimentação conveniente ao homem são e ao doente. Hipócrates segue esta linha de pesquisa. Não quer ser apenas curador, quer informar os homens sobre as condições desse bem precioso entre todos os bens, a saúde. Hipócrates é o médico da saúde, mais ainda que da doença.

Em Dos Ares, das Aguas, dos Lugares estuda o género de vida de um grande número de povos e descreve-o com um rigor e um relevo impressio­nantes. Hipócrates sabe que o conhecimento do género de vida de cada homem é útil para o médico e para o higienista.

O médico não pode ignorar se o seu paciente é amigo do vinho, inclinado à boa mesa, à volúpia, ou se prefere a ginástica e o esforço a estes prazeres mais fáceis. Só a natureza do meio social e, em primeiro lugar, físico, o informará. Põe uma perspicácia e uma consciência sem igual na determinação das relações precisas, das relações de causa e efeito que unem, em todas as regiões, o homem ao seu meio natural.

Numerosas regiões da Europa e da Ásia alimentam com factos o seu inquérito. [366]

Em cada uma delas, interroga o clima e daí tira consequências relativas a certas doenças locais, como febres, por exemplo, que se esforça por melhor tratar, após ter descoberto a sua origem.

Interroga atentamente as estações. Investiga a sua influência e a das suas mudanças, nos equinócios e nos solstícios, sobre diversas doenças. Algumas estações têm um carácter "desregrado" e, se assim se pode dizer, anormal. (Fala do assunto noutro tratado.) Essas estações são como as doenças do ano. Engendram por sua vez doenças na população. Não ignora as recrudescências das febres intermitentes durante o Verão.

Interroga as águas, trata dos efeitos que certas águas podem exercer no organismo, particularmente as águas pantanosas provenientes das lagoas, e as águas demasiadamente frias. As águas estagnadas provocam as febres quartãs. Manda que sejam fervidas certas águas...

E nada disto é feito de afirmações banais repisando que o homem é dependente do meio físico, que a natureza da terra contribui para modelar a natureza do corpo, etc. Trata-se, pelo contrário, para Hipocrates, de saber se tal homem, vivendo em tal lugar da crosta terrestre, submetido a tal e tal influência, comendo isto, bebendo aquilo, não estará sujeito a contrair tal doença determinada.

É entregando-se a esta investigação concreta, percorrendo os países da Europa e da Ásia, que Hipocrates chega a desenvolver verdadeiros estudos de costumes, a mostrar que o solo e o céu exercem uma clara influência nas disposições psicológicas dos povos. Faz o que antigamente se chamava etnopsiquia. O homem pensa e age de acordo com o meio que habita.

No entanto, em tudo isto, o autor não se esquece de evocar a influência das condições sociais sobre o desenvolvimento e a própria constituição do organismo. A este propósito introduz a distinção familiar aos sofistas entre a natureza (physis) e o costume (nomos).

Todas estas considerações, e muitas outras, fazem de Dos Ares, das Águas, dos Lugares uma tentativa solidamente documentada, talvez a única feita em dois mil anos para estudar atentamente e num mesmo lanço os factos médicos e os factos geográficos, sem falar nos factos meteorológicos. E isto que faz desta obra modesta uma das mais originais que a Antiguidade nos deixou. Habituados às compartimentações das ciências, os nossos espíritos modernos ficam desconcertados pela multiplicidade dos factos reunidos aqui por Hipocrates e orientados para uma única finalidade: a saúde dos homens. [367]

*

Mas, em Hipócrates, a observação não fica por aí.

Nos tratados propriamente hipocráticos da Colecção, uma forte vontade domina o que primeiro não parece ser mais que um amontoado de observações — a vontade de compreender os factos recolhidos, de lhes dar um sentido útil aos homens.

"Convém", escreve o autor do Regime das Doenças Agudas, "aplicar a inteligência a todas as partes da arte médica, quaisquer que sejam." Fórmulas semelhantes encontram-se na maior parte dos tratados atribuídos a Hipócrates. O pensamento está sempre presente na observação. Essa é a atitude funda­mental que distingue um médico de Cós de um médico de Cnide.

Aqui temos o Prognóstico. O médico está perante uma otite. Nota os seus numerosos sintomas. E acrescenta, sobretudo: "É preciso imediatamente, e desde o primeiro dia, prestar atenção (espírito, inteligência) ao conjunto dos sinais."

Eis as Epidemias, essa compilação de fichas de clínico. A cada momento vemos o médico, que pareceria dever estar submergido pela observação, libertar-se dela ou antes apoiar-se nela para tentar generalizar o caso individual em regra geral ou para elaborar um raciocínio. Diante de uma doença sujeita a recidiva, anota: "Importa dar atenção aos sinais de recidiva e lembrar que nesses momentos da doença as crises serão decisivas para a salvação ou para a morte, ou, pelo menos, que o mal se inclinará sensivelmente para o melhor ou para o pior." Inteligência sempre disponível, sempre visando a acção.

Ou ainda, nas Feridas da Cabeça: "Se o osso foi descamado, aplique-se a inteligência em tentar distinguir o que não é visível aos olhos, em reconhecer se o osso está fracturado e contuso, ou apenas contuso, e se tendo o instru­mento vulnerante produzido uma hedra (lesão oblíqua), há contusão ou frac­tura, ou contusão e fractura ao mesmo tempo." O espírito está atento, pronto a interpretar a observação. Poderiam citar-se inúmeros exemplos.

Assim, a abundância da observação de modo algum dispensa o sábio do esforço e compreensão. Os verbos que em grego significam pensar, reflectir são numerosos: Hipócrates escolhe, na maior parte dos casos, aquele que apresenta a reflexão como uma atitude permanente do espírito, e põe-no no tempo em que se inscreve a duração. De modo que reflectir é trazer sempre consigo no coração. Hipócrates trouxe consigo, alimentou com o seu [368] pensamento os casos que a observação lhe propõe, os dados dos sentidos, a vista, a auscultação, a palpação. Hipócrates tem essa paciência do espírito que faz frente às dificuldades e resolve os problemas.

Eis um exemplo manifesto, entre muitos, que mostra claramente a novi­dade do método de Cós em relação ao de Cnide. O tratado Das Articulações, que é um tratado de cirurgia, enumera os diferentes acidentes a que estão sujeitos os membros do corpo: fracturas do braço, do nariz, da perna, luxação do húmero, do fémur, etc... Indica, com abundantes pormenores, os múltiplos processos que permitem reduzir fracturas e luxações. Feito isto, escolhe entre estes processos e dá com precisão as razões dessa escolha. Os médicos que não sabem fazer e justificar esta escolha reflectida — os médicos cnidianos — são severamente julgados. O autor escreve: "Entre os médicos, há-os que têm as mãos hábeis, mas que não têm inteligência." Cnide, aqui, é apontada a dedo.

O estabelecimento do prognóstico é um dos objectivos essenciais da medicina hipocrática: traz-nos um belo exemplo da união da observação e do pensamento.

O médico hipocrático propõe-se, como é sabido, reconstituir a doença total com as suas causas, as suas complicações, a sua terminação, as suas sequelas. Quer, segundo as Epidemias e o tratado Do Prognóstico, "dizer o que foi, conhecer o que é, predizer o que será." Mais tarde, a escola de Alexandria dará nomes a estas três operações: a anamnese, evocação do passado: o diagnóstico, determinação da doença pelos sintomas presentes; finalmente, o prognóstico, previsão do futuro.

Na maior parte das histórias da medicina, não se presta inteira justiça ao prognóstico hipocrático, do qual se diz que é um meio destinado a estabelecer a autoridade do médico sobre o doente e os que o rodeiam. Sem dúvida, e a Colecção Hipocrática di-lo também, acessoriamente. Este juízo sobre o prog­nóstico tem paralelo na frase humorística de um professor de Lausana aos seus estudantes: "Um diagnóstico rigoroso espanta-vos a vós mesmos. Um trata­mento eficaz espanta o confrade. Mas o que espanta o doente é um prognóstico exacto." Juízo humorístico.

Contudo, este humor erra o alvo. Em todo o caso, o prognóstico não é um punhado de poeira atirado aos olhos do doente por um charlatão. Se é. por um lado, uma maneira de inspirar confiança ao doente, é sobretudo, para o médico, a solução dada a um problema de grande complexidade. [369]

Um doente no seu leito é um terrível nó que ali está para ser desatado. Causas obscuras, antigas e recentes o levaram ali. Quais? E que vai acontecer-lhe? A morte, ou a cura? O prognóstico — que aliás não será comunicado ao doente se for desfavorável — é uma ordenação, através do pensamento do médico, do extraordinário emaranhado de sinais que a observação lhe propõe. Hipócrates é muito sensível à grande complexidade de factos oferecidos aos médicos por qualquer doença. Por outro lado, conhece o valor relativo desses factos. Não ignora, por exemplo, que os sinais mais certos de um desenlace mortal podem ser contraditados, em certas doenças que nomeia, por sinais favoráveis que o médico fará bem em não esquecer. É sobre um conjunto de inúmeros sinais que o médico deve estabelecer o seu prognóstico: e ainda assim esse prognóstico tem sempre um carácter hipotético e, por assim dizer, movediço. Uma fórmula admirável aparece, mais que uma vez. sob formas diversas, nos textos de Hipócrates. Esta: "É preciso ter ainda em consideração os outros sinais. Palavras de honestidade intelectual, mas também palavras de esperança. A vida é um fenómeno demasiado complexo para que se não possa sempre, por um desvio inesperado, tentar salvá-la e muitas vezes consegui-lo.

A falar verdade, os sábios modernos não deixam de sublinhar as fraquezas do prognóstico hipocrático: estas fraquezas provêm de um facto que deve ser constantemente lembrado, a ignorância quase total do médico em anatomia e sobretudo em fisiologia. Como, persuadido, por exemplo, de que as artérias conduzem ar (!), estará o médico em condições de elaborar um prognóstico assente, como ele quereria, nas causas da doença? Contudo, há já casos em que os poucos conhecimentos que tem dessas matérias lhe permitem fazê-lo. Desde que saiba mais, o seu prognóstico tornar-se-á mais firme.

De resto, para Hipócrates, o prognóstico não tem o seu fim em si mesmo. E nele que assenta o tratamento (e neste sentido equivale ao diagnós­tico moderno). Ora, em matéria de tratamento, os outros médicos que não pertenciam à escola de Cós estavam entregues à imaginação ou ao acaso. Ou se apoiavam em considerações teóricas arbitrárias, ou aceitavam sem verificação os tratamentos ditos provados pela tradição. O autor do Regime das Doenças Agudas fala com ironia dos tratamentos contraditórios a que chegavam estes médicos ignaros. Escreve: 

"Os médicos não têm o hábito de agitar tais problemas. Se os agitassem, certamente não encontrariam soluções para eles. Contudo, daqui ressalta, para o público, um grande desfavor sobre toda a profissão médica, a tal ponto que [370] se chega a crer que a medicina é simplesmente uma arte inexistente. Verifica-se, com efeito, que, nas doenças agudas, os práticos diferem de tal maneira entre si que a prescrição ordenada por um como a melhor será pelo outro condenada como detestável. Deste ponto de vista, há que comparar a medicina com a arte dos adivinhos que olham a mesma ave como de bom augúrio se voa à esquerda, como de mau augúrio se voa à direita... Mas outros adivinhos têm, sobre as mesmas coisas, opiniões diametralmente opostas. Digo, pois, que a questão que acabo de levantar é de uma extrema beleza e toca a maior parte dos pontos da arte médica e os mais importantes; porque ela pode muito, para todos os doentes quanto ao seu restabelecimento, para as pessoas saudáveis quanto à conservação da saúde, para as pessoas que se entregam aos exercícios ginásticos quanto ao aumento das suas forças; numa palavra, aplica-se a tudo quanto se quiser."

Esta passagem é de um bom senso que faz pensar em Molière, não sem razão. A indignação do autor, o seu entusiasmo por esta medicina que levanta questões "de extrema beleza", brilham através da ironia.

Outros textos indicam claramente o bom método a seguir nas prescrições a dar. Não entremos no pormenor. Indiquemos antes uma das direcções que se afirmam, a propósito, na Colecção Hipocrática: essa direcção é também uma linha de cumeada do pensamento de Hipócrates.
Hipócrates conhece os limites da ciência que está fundando. Esses limites estão fixados ao mesmo tempo pela natureza do homem e pela natureza do universo. O homem-microcosmo e o mundo-macrocosmo são, cada um, o espelho do outro. Nesta maneira de pensar e de exprirmir não entra nenhuma concepção mítica do mundo natural. Nada mais que um realismo fundamental. Hipócrates reconhece que para as conquistas da medicina sobre a doença e a morte existem barreiras.

Admite, por outro lado, que estes dois mundos — microcosmo e macro-cosmo — , apoiados um no outro, são ao mesmo tempo fronteiras da ciência e caminho da cura. A cura produz-se no homem graças ao concurso da natureza e, em primeiro lugar, pelo trabalho do organismo humano. O objectivo de Hipócrates — que começa por parecer modesto — é a de dar uma ajuda à acção curativa da natureza. "A natureza é o médico das doenças", diz-se nas Epidemias V. "É a própria natureza que abre à sua acção os caminhos. Ela não tem de reflectir... A língua executa sozinha o seu ofício. Muitas outras coisas [371] se fazem assim. A natureza, que não recebeu ensinamentos, que nada aprendeu, faz o que convém." Noutra passagem, lê-se: A natureza age sem mestres. O médico, cuja função é manter o homem com saúde, procura e encontra no mundo natural e no corpo humano aliados que sabe serem benéficos. O trata­mento ordinário do doente consiste em abrir à acção da natureza medicadora um caminho justo, um caminho apropriado a cada caso determinado. Porque o corpo organizado possui como que uma vitalidade activa que lhe é própria: tende, por si mesmo, a manter-se na existência empregando recursos múltiplos. Por isso mesmo, o concurso do homem da arte, graças ao seu conhecimento dessas actividades salvadoras do corpo, não é de modo algum descurável: casos há em que é decisivo.

Esta concepção da natureza medicadora não é, como certos historiadores pensaram, a de uma medicina preguiçosa, que resultaria em deixar a natureza agir sozinha. É, pelo contrário, um conhecimento assente sobre factos obser­vados, segundo o qual cada organismo humano é um reservatório de forças biológicas, de forças que se defendem espontaneamente contra a sua própria destruição. O médico ajuda o homem na medida em que conhece o jogo dessas forças que o animam e constituem a vida. Conhecimento-acção, eis um dos temas clássicos da civilização grega.

Alguns dos processos de defesa do corpo funcionam por si mesmo. Mas é permitido pensar que este jogo de defesa pode ser também ajudado pelo médico que penetrou os seus poderes. A natureza precisa por vezes de ser amparada: Hipócrates pede ao médico que esteja sempre pronto a responder aos apelos e às possibilidades do organismo e a remediar as insuficiências que nele se encontrem.

O exemplo clássico nesta matéria é a prática da respiração artificial. Já o pulmão, privado de oxigénio, tentou aumentar o seu ritmo respiratório. O sangue multiplica os glóbulos vermelhos. Defesa natural e espontânea. O médico que pratica a respiração artificial não faz mais que suprir as lacunas da natureza: manobra as últimas reservas de um corpo cuja capitulação estava próxima.

Este médico, colaborador da natureza, não preencherá uma função mais alta e inteligente que o taumaturgo ignorante que se louvaria de "criar saúde" a partir de nada?

O médico que espreita "a ocasião fugaz" sobre o próprio terreno da "experiência escorregadia" é um modesto mas eficaz fabricante de vida. Tal como o poeta não fabrica as suas imagens a partir do nada, mas a partir do [372] real, o médico fabrica o homem com saúde a partir do que encontra no corpo do doente, a partir da natureza humana observada e utilizada.

Não foi ao nada, foi ao Sol que Prometeu arrancou o fogo.

*

Tais são os passos rigorosos da medicina hipocrática, tal é a filosofia da profissão médica que Hipocrates tira da natureza e do corpo humano. Nesta exposição insisti mais nos métodos da ciência que Hipocrates fundou do que nos resultados que obtém. É que a ciência progride mais pela justeza dos métodos que pela acumulação dos resultados.

Tanta altura intelectual, tanta modéstia e elevação de pensamento encon­tram a sua conclusão, o seu coroamento esplêndido no comportamento moral que Hipocrates exige dos discípulos e ele próprio pratica.

Indiquei acima os textos de carácter ético da Colecção — O Juramento, A Lei, O Médico, etc. Lembro que foram sem dúvida escritos no tempo da velhice de Hipocrates ou pouco depois da sua morte, mas conformemente aos seus princípios e à sua prática. Precisemos que o Juramento, que dá forma escrita a um uso antigo e sem dúvida primitivo da Escola, é, por um lado, o texto mais antigo da Colecção, e, por outro lado, e ao mesmo tempo, na sua forma actual, um pouco mais recente que os grandes tratados hipocráticos do século V. É também o mais importante dos textos éticos.

Eis a tradução integral desse juramento, que os médicos pronunciavam no momento de abordar a profissão:

"Juro por Apolo médico, por Esculápio, por Higia e Panaceia, por todos os deuses e deusas, tomando-os por testemunhas, que cumprirei, segundo o meu poder e o meu juízo, o juramento e o compromisso seguintes:

"Terei por aquele que me ensinou a arte da medicina o mesmo respeito que pelos autores dos meus dias; partilharei com ele os meus bens e, se for necessário, proverei às suas necessidades; seus filhos serão para mim meus irmãos e, se eles desejarem aprender a medicina, ensiná-la-ei sem salário nem compromisso.

"Darei parte dos preceitos, das lições orais e do resto do ensino que recebi a meus filhos, aos filhos de meus mestres e aos discípulos ligados por um compromisso e por um juramento à fé médica, mas a ninguém mais. [373]

"Dirigirei o regime dos doentes em seu benefício, segundo o meu poder e o meu juízo, com vista a afastar deles todo o mal e todo o dano.

"Não entregarei a ninguém veneno, mesmo se me pedirem, nem tomarei a iniciativa de o aconselhar. Igualmente não darei a mulher alguma pessário abortivo.

"Passarei a minha vida e exercerei a minha arte em continência e pureza

"Não praticarei a operação da talha e deixá-la-ei àqueles que dela se ocupam.

"Seja qual for a casa em que eu entre, entrarei nela para bem dos doentes, preservando-me de todo o erro voluntário, de toda a corrupção e particularmente da sedução de mulheres e de rapazes, livres ou escravos.

"Tudo quanto eu tiver visto ou ouvido no exercício e mesmo fora do exercício da minha profissão e que não deve ser divulgado, eu o calarei encarando o silêncio como meu estrito dever.

"Se me mantiver fiel a este juramento e o não infrigir, que me seja dado a gozar afortunadamente a minha vida e a minha profissão, honrado para sempre entre os homens; se o violar e for perjuro, que eu sofra a sorte contrária."

A maior parte dos estados modernos exigem que os médicos sejam ajuramentados. Mas o próprio emprego da palavra juramento se tornou as mais das vezes abusivo. Em geral, o médico apenas se compromete pela sua honra ou faz uma promessa. A evolução das crenças, os progressos da ciência parecem ter praticamente esvaziado o velho texto de Hipócrates do seu conteúdo.

Na minha terra, o cantão de Vaud, o médico compromete-se nestes termos perante o prefeito do distrito, representante do Conselho de Estado, que exerce o poder executivo.

"Depois de ter tomado conhecimento dos princípios fundamentais da deontologia e das disposições legais que regulam a minha profissão, compro­meto-me, por minha honra, a respeitá-los fielmente, prometo exercer esta profissão com a consciência, a dignidade e a humanidade que a sua finalidade auxiliadora exige."

Nada ficou da interdição de receitar venenos: o médico de hoje, que dominou os elementos tóxicos que um remédio pode conter, prescreve "venenos" remédios durante todo o dia. Nada sobre a interdição do aborto solicitado: esse aborto tornou-se legal, em mais de um caso. Ficou a deferência para corm os colegas, prevista pelas disposições da deontologia. Ficou o segredo profis­sional protegido — pelo menos teoricamente — pela Lei Sanitária de 9 de [374] Dezembro de 1952 e igualmente pelo Código Penal Suíço, cujo artigo 321 dispõe que aqueles "que tiverem revelado um segredo médico que lhes fora confiado em virtude da sua profissão, podem ser punidos com prisão e multa".

Ficam, sobretudo, na promessa de Vaud, tomada a título de exemplo, essas belas palavras de consciência, dignidade, humanidade, esse prossegui­mento de uma única finalidade auxiliadora, que são como que um eco longín­quo mas autêntico do amor que Hipócrates dedicava aos seus doentes e que ele exigia dos seus discípulos.

A promessa do médico genebrino, intitulada ainda Juramento de Genebra, está mais perto do juramento de Hipócrates. É prestada perante a assembleia geral da Associação dos Médicos, não perante a autoridade política. Nestes termos:

"No momento de ser admitido no número dos membros da profissão médica:
"Tomo o compromisso solene de consagrar a minha vida ao serviço da Humanidade.
"Conservarei para com os meus mestres o respeito e o reconhecimento que lhe são devidos.
"Exercerei a minha arte com consciência e dignidade.
"Considerarei a saúde do meu paciente como meu primeiro cuidado. "Respeitarei o segredo de quem a mim se tiver confiado.
"Manterei, na medida de todos os meus recursos, a honra e as nobres
tradições da profissão médica.
"Os meus colegas serão meus irmãos.
"Não permitirei que considerações de nação, de raça, de partido ou de
classe social venham interpor-se entre o meu dever e o meu paciente. "Guardarei o respeito absoluto da vida humana, desde a concepção. "Mesmo sob ameaça, não admitirei fazer uso dos meus conhecimentos
médicos contra as leis da Humanidade.
"Faço estas promessas solenemente, livremente, por minha honra."
Este Juramento de Genebra foi adoptado pela assembleia geral da Assembleia
Médica Mundial, em Genebra, em Setembro de 1948.

*

O Juramento, a Lei, e os outros tratados éticos de Hipócrates suscitam ainda outras observações. [375]

A primeira, não destituída de importância, é que as instruções dadas ac médico sobre a prática da sua profissão, se estão reunidas e reforçadas nestes escritos pela forma do juramento, nunca são contraditadas mas pelo contrário confirmadas pelos outros tratados da Colecção, nomeadamente por aqueles que é permitido atribuir a Hipócrates. Estamos pois perante a simples codificação de usos antigos, e esta codificação é feita conformemente à inspiração do Mestre, numa inteira fidelidade à sua memória.

Nenhuma das práticas interditas pelo Juramento se encontra nos sete livros das Epidemias, notas que, como vimos, foram redigidas sem cuidados, sem preocupação de publicidade, e de que uma parte pelo menos é do punho de Hipócrates; o conjunto, espelho sem mancha da prática da escola.
Outro aspecto. Os escritos éticos dão a maior atenção ao porte do médico, ao seu comportamento físico e moral. Ele só entra nas casas "para bem do doente". Esse doente, qualquer que seja, qualquer que seja a sua condição social, quer se trate de uma mulher, de um homem ou de uma criança, seja de condição livre ou escravo — não é para o médico mais do que um ser sofredor, um "paciente" no sentido forte e etimológico do termo. Tem direito às atenções, ao respeito do médico, e este respeita-o como deve respeitar-se a si próprio.

"O médi", escreve o autor da Boa Conduta, "como o bom filósofo, com quem se parece, pratica o desinteresse, a reserva, o pudor; veste com modéstia; tem a seriedade, a tranquilidade do juízo, a serenidade, a pureza da vida... Possui o conhecimento de tudo o que é útil e necessário, está liberto da superstição."

O autor do livro intitulado Do Médico declara por sua vez que o médico deve possuir a continência e "conservar as mãos puras... Os seus costumes são honestos e irrepreensíveis e, com isto, será grave e humano para com todos."

Numa palavra, a sua atitude é a do "homem de bem" e ele mostra-se "amável com as pessoas de bem". Diante do doente "nem impulsivo, nem precipitado". Nunca está de mau humor, "sem ser no entanto duma alegria excessiva".

"Não é coisa de somenos, na verdade", continua o mesmo autor, "as relações do médico com os seus doentes", mas relações que requerem "justiça-. a do juízo (a justeza) e a da conduta.

Uma das virtudes mais necessárias deste médico homem de bem é a modéstia, virtude intelectual tanto quanto moral. O médico pode enganar-se: reconhecê-lo-á logo que disso se aperceba, e diante do doente, pelo menos se se [376] tratar de "pequenos erros". A sua formação, que foi longa e feita sob a direcção de mestres esclarecidos, guardá-lo-á em geral dos erros graves. Se os comete e se eles podem levar à morte, não deve reconhecê-los na presença do doente, sob pena de comprometer a calma deste. Preferirá consigná-los nos escritos, a fim de esclarecer os médicos das gerações seguintes.

A modéstia, por outro lado, impõe ao médico o dever de apelar para os confrades se se encontrar embaraçado. Lê-se nos Preceitos:

"O médico que, por causa da sua inexperiência, não está vendo claro, reclamará a assistência doutros médicos, com quem consultará sobre o caso do doente e que se associarão a ele para encontrar a solução... Os médicos que vêem em conjunto um doente não discutirão nem se cobrirão reciprocamente de ridículo. Porque, afirmo-o sob juramento, nunca um médico que propõe um raciocínio deverá invejar o raciocínio de um confrade. Se o fizer, só mostra a fraqueza do seu."

Finalmente, sempre por modéstia, o médico recusar-se-á a empregar processos que teriam um ar ostensivo, procurando com isso impor-se ao doente. Porque "seria vergonhoso que depois de muito barulho, muita exibição e muitas palavras acabasse por chegar, no fim de contas, a coisa nenhuma". O médico deve escolher em todas as circunstâncias o meio de cura onde se encontre o mínimo de ostentação. Esta atitude é a única digna de um "homem de coração e de um homem da arte", ao mesmo tempo. Os dois termos implicam-se um ao outro, porque a arte do médico está ao serviço dos homens. Os Preceitos recordam-no numa fórmula inesquecível: "Lá onde houver amor dos homens, há também amor da arte."

A modéstia do médico resulta em primeiro lugar do amor que ele dedica à arte que exerce; o médico conhece com efeito a imensidade das exigências da sua arte; toma conhecimento delas quotidianamente no exercício da sua profissão, como toma consciência dos limites das suas capacidades. Mas em segundo lugar, porque ele ama os homens que trata, porque tem o sentimento agudo do carácter precioso e complexo da vida que deseja proteger, a modéstia impõe-se ao médico que tem em si a responsabilidade dessa vida.

O amor dos homens e o amor da arte são os dois pólos do seu humanismo. [377]

*

Insistamos, para terminar, num último aspecto, apenas indicado até aqui.

A Colecção Hipocrática nunca faz, em nenhum dos seus numerosos tratados, a menor distinção entre os escravos e as pessoas de condição livre. Uns e outros têm os mesmos direitos à atenção, ao respeito e aos cuidados do médico. Não apenas os escravos, mas os pobres, que começam a ser muitos em todo o mundo helénico, pelos finais do século v, e cuja vida, muitas vezes, não é menos dura que a dos escravos.

Nos livros das Epidemias não redigidos por Hipócrates (que indica rara­mente nas suas notas a profissão dos pacientes), eis algumas das profissões designadas pelo médico: carpinteiros, sapateiros, correeiros, pisoeiros, vinhateiros, hortelões, mineiros, pedreiros, mestres primários, taberneiros, cozinhei­ros, palafreneiros, atletas profissionais, diversos funcionários (que podem ser escravos públicos), etc. Num grande número de casos, a profissão não é dada. Há também muitas mulheres, livres ou escravas. Vê-se que estas profissões são modestas ou modestíssimas. É de crer que alguns dos operários indicados sejam escravos. Essa indicação é dada mais que uma vez.

Escravo, estrangeiro ou cidadão, para o médico não faz qualquer dife­rença. O autor dos Preceitos chega mesmo a pedir "que se trate com atenção particular o doente estrangeiro ou pobre".

Ora, acontece que este "preceito" é seguido, e mais do que isso. Se relermos as fichas de doentes de um só livro das Epidemias, tomado ao acaso, o quinto livro, verificamos que em cem doentes dezanove e talvez mais (é muitas vezes difícil distinguir) são seguramente escravos (doze do sexo masculino, sete mulheres). Alguns foram tratados em Larissa de Tessália, durante a estada assaz longa que ali fez o médico periodeuta que redige o livro V. Todos parecem ter beneficiado de cuidados vigilantes e prolongados. Uma das mulheres escravas morre duma afecção encefálica por altura do quadragésimo dia. depois de ter estado muito tempo sem conhecimento.

Eis o caso de um moço de cavalariça, um escravo escolhido entre estes dezanove. Tem onze anos, e foi ferido por uma patada de cavalo na testa, por cima do olho direito. "O osso parece não estar são", diz o médico, "e dele saiu um pouco de sangue. O ferido foi amplamente trepanado até à díploe (sutura de duas placas ósseas formando a superfície interna e externa do crânio). Em seguida foi tratado, conservando-se o osso a descoberto, e o tratamento [378] ressequiu a porção de osso primeiramente serrada. Por alturas do vigésimo dia, começou uma tumefacção perto da orelha, com febre e arrepios; o inchaço era mais considerável e doloroso durante o dia; o movimento febril começou por um estremecimento; os olhos tumeficaram-se, assim como a fronte e todo o rosto; o lado direito da cabeça era o mais afectado; mas a tumefacção passou também para o lado esquerdo. Não aconteceu nada de desagradável; para o fim, a febre foi menos contínua; isto durou oito dias. O ferido escapou: foi cauterizado, tomou um purgante, e teve aplicações medicamentosas sobre o inchaço. A ferida nada tinha que ver com estes acidentes."

São muito diversas as afecções de que sofrem os doentes deste livro V. Exemplo: angina, surdez, gangrena ou esfacelo, pleurisia, peripneumonia, tísica, diarreias e outras perturbações do intestino ou do estômago, tumor no ventre, perturbações da bexiga, cálculos, anorexia febril, erisipela, e muitas outras. Muitas vezes trata-se de chagas resultantes de acidentes, ou de casos de gravidez. Em geral, o médico não parece tratar ou anotar nas suas fichas senão doenças graves: não se interessa pelos pequenos achaques.

A mortalidade é muito elevada. Dos dezanove escravos tratados no livro V. doze morrem. Mas a proporção dos mortos não é menos forte para o conjunto dos doentes que para os escravos. Em quarenta e dois casos assinalados nos livros I e II das Epidemias, vinte e cinco têm desenlace mortal. Um médico do final da era pré-cristã declara que devem ser lidas as Epidemias porque elas são "uma meditação sobre a morte". Os homens desse tempo ainda morriam como moscas! E como poderia ser doutra maneira? A medicina, tal como a descre­vemos. ignorando o essencial da anatomia, porque a dissecação lhe é interdita pelos costumes, não está ainda em condições de baixar a taxa "natural" da mortalidade. Natural? Quero dizer: aquela que o meio natural e o seu próprio corpo tinham fixado à espécie humana. Contudo, virá uma dia em que os médicos poderão dizer, e não só como em Molière: "Nós modificámos tudo isto."

Pelo menos entre estes homens tão perigosamente mortais, a medicina não distingue. Os escravos, para ela, são também criaturas humanas. Trata-se de um facto tão surpreendente que vale a pena pô-lo em evidência, antes de concluir. É certo que o proprietário pode ter interesse em conservar este capital humano. Mas que vale este rapaz de onze anos, cuja história contei? Menos do que nada, menos do que as despesas do prático, sem dúvida.

Aliás, o tom em que são redigidas as anotações do médico, idêntico qualquer que seja a condição social do paciente, parece revelador desse misto
[379] de interesse científico e de simpatia humana que define o humanismo de Hipócrates.

Pensemos nos dois grandes filósofos dos séculos seguintes, no seu des­prezo por essas "ferramentas animadas" que são os escravos!

Pelo seu espantoso apetite de saber, pelo rigor da sua pesquisa sempre vivificada pelo raciocínio, enfim, pelo seu devotamento à criatura sofredora, por essa amizade oferecida a todos os homens sem distinção, a medicina de Hipócrates atinge o nível mais alto do humanismo de século V e ultrapassa mesmo ousadamente, neste último ponto, as maneiras de viver e de pensar desta época.

Oferecendo a todos os homens a salvação corporal que, no meio das dificuldades, procura para eles, é, nas trevas da sua ignorância, a mais bela das promessas.

Quanto ao resto, não esqueçamos as palavras de Bacon (que cito de memória): "A medicina pode mais do que julga." [380]

História - Civilização Grega
Temas gerais - , 
7/30/2021 1:48:28 PM | Por Ana Mercês Bahia Bock
Saúde ou doença mental, a questão da normalidade

Em muitos momentos de sua vida uma pessoa pode viver situações difíceis e de sofrimento tão intenso, que pensa que algo vai arrebentar dentro de si, que não vai suportar, que vai perder o controle sobre si mesma... que vai enlouquecer. Isto pode ocorrer quando se perde alguém muito próximo e querido, em situações altamente estressantes, em que o indivíduo se vê com muitas dúvidas e não percebe a possibilidade de pedir ajuda e/ou resolver sozinho tal situação. A pessoa, então, busca a superação desse sofrimento, o restabelecimento de sua organização pessoal e de seu equilíbrio, isto é, o retorno às condições anteriores de rotina de sua vida, em que não tinha insônia, não chorava a toda hora, não tinha os medos que agora tem, por exemplo. Embora o sofrimento seja intenso, não é possível falar de doença nessas situações. É necessário ter muito cuidado para não patologizar o sofrimento. Situações como essas, todos nós podemos vivê-las em algum momento da vida e, nessas circunstâncias, o indivíduo necessita de apoio de seus grupos (a família, o trabalho, os amigos), isto é, que estes grupos sejam “continentes” de seu sofrimento e de suas dificuldades e que não o excluam, não o discriminem, tornando ainda mais difícil o momento que vive. [pg. 346] Além do apoio do grupo, o indivíduo pode necessitar de uma ajuda psicoterápica, no sentido de suporte e facilitação da compreensão dos conteúdos internos que lhe causam o transtorno, o que poderá levá-lo a uma reorganização pessoal quanto a valores, projetos de vida, a aprender a conviver com perdas, frustrações e a descobrir outras fontes de gratificação na sua relação com o mundo.

Neste modo de relatar e compreender o sofrimento psíquico, fica claro que o critério de avaliação é o próprio indivíduo e seu mal-estar psicológico, isto é, ele em relação a si próprio e à sua estrutura psicológica, e não o critério de adaptação ou desadaptação social.

Esse indivíduo que sofre pode estar perfeitamente adaptado, continuar respondendo a todas as expectativas sociais e cumprir todas as suas responsabilidades. Ao mesmo tempo, pode-se encontrar um outro indivíduo, que, mesmo sendo considerado socialmente desadaptado, excêntrico, diferente, não vivencia, neste momento de sua vida, nenhum sofrimento ou mal-estar relevante. O indivíduo consegue lidar com suas aflições intensas encontrando modos de produção que canalizam este mal-estar de forma produtiva e criativa. Assim, embora o sofrimento psicológico possa levar à desadaptação social e esta possa determinar uma ordem de distúrbio psíquico, não se pode, sempre, estabelecer uma relação de causa e efeito entre ambos. Isto torna questionável a utilização exclusiva de critérios de adequação social para a avaliação psicológica do indivíduo enquanto normal ou doente.

Abordar a questão da doença mental, neste enfoque psicológico, significa considerá-la como produto da interação das condições de vida social com a trajetória específica do indivíduo (sua família, os demais grupos e as experiências significativas) e sua estrutura psíquica. As condições externas — poluição sonora e visual intensas, condições de trabalho estressantes, trânsito caótico, índices de criminalidade, excesso de apelo ao consumo, perda de um ente muito querido etc. — devem ser entendidas como determinantes ou desencadeadoras da doença mental ou propiciadoras e promotoras [pg. 347] da saúde mental, isto é, da possibilidade de realização pessoal do indivíduo em todos os aspectos de sua capacidade.

A diversidade de teorias sobre a loucura: poucas certezas

O indivíduo apresenta um sintoma ou vários: ele vê o diabo; tem um medo intenso de sair de casa ou de ir da sala para o banheiro sozinho; não consegue dormir à noite; não articula com lógica um raciocínio sobre determinado assunto; tem intermináveis monólogos com figuras ou objetos imaginários, utilizando frases desconexas; ouve vozes que o aconselham e o apavoram; ora está extremamente eufórico e, no momento seguinte, fica muito deprimido e se recusa ao contato com os outros. Esses sintomas podem ser agrupados de diferentes formas, sendo identificados em quadros clínicos que recebem um nome, por exemplo, neurose, anorexia, distúrbio obsessivo compulsivo, psicose, síndrome do pânico, psicastenia etc. Sempre foi assim? Não.

Um breve olhar sobre a história da loucura1

O filósofo francês Michel Foucault (1926-1984) deu uma valiosa contribuição para compreendermos a constituição histórica do conceito de doença mental. Sua pesquisa baseou-se em documentos (discursos) encontrados em arquivos de prisões, hospitais e hospícios. Na periodização histórica que utiliza, o autor inicia seu trabalho pelo Renascimento (século 16), período no qual o louco vivia “solto, errante, expulso das cidades, entregue aos peregrinos e navegantes”. O louco era visto como “tendo um saber esotérico sobre os homens e o mundo, um saber cósmico que revela verdades secretas”. Nessa época, a loucura significava “ignorância, ilusão, desregramento de conduta, desvio moral, pois o louco toma o erro como verdade, a mentira como realidade”. Neste último sentido, a loucura passaria a ser vista como oposição à razão, esta entendida como instância de verdade e moralidade. Na Idade Média e no Renascimento, eram raros os casos de internação de loucos em hospitais e, quando [pg. 348] isso ocorria, recebiam o mesmo tratamento dispensado aos demais doentes, com sangrias, purgações, ventosas, banhos.

Na Época Clássica (séculos 17 e 18), os critérios para definir a loucura ainda não eram médicos — a designação de louco não dependia de uma ciência médica. Esta designação era atribuída à percepção que instituições como a igreja, a justiça e a família tinham do indivíduo e os critérios referiam-se à transgressão da lei e da moralidade.

No final do século 17 (1656), foi criado, em Paris, o Hospital Geral. Neste hospital, iniciou-se “a grande internação”. A população internada era heterogênea, embora pudesse ser agrupada em quatro grandes categorias: os devassos (doentes venéreos), os feiticeiros (profanadores), os libertinos e os loucos.

O Hospital Geral não era uma instituição médica, mas assistencial. Não havia tratamento. Os loucos não eram vistos como doentes e, por isso, integravam um conjunto composto por todos os segregados da sociedade. O critério de exclusão baseava-se na inadequação do louco à vida social.
Neste período, buscava-se construir um conhecimento médico sobre a loucura, contudo, a medicina da época — que tinha como modelo a história natural e o seu método classificatório (a descrição e a taxionomia da estrutura visível das plantas e animais eram feitas com a finalidade de estabelecer semelhanças e diferenças) — não conseguia abarcar a complexidade de manifestações da loucura.

Na segunda metade do século 18, iniciaram-se reflexões médicas e filosóficas que situavam a loucura como algo que ocorria no interior do próprio homem, como perda da natureza própria do homem, como alienação. Segundo a periodização histórica proposta por Foucault, nesse período (final do século 18 e início do 19) já estaríamos na Modernidade. Criou-se, então, a primeira instituição destinada exclusivamente à reclusão dos loucos: o [pg. 349] asilo. A mentalidade da época considerava injusto para com os demais presos a convivência com os loucos. Os métodos terapêuticos utilizados no asilo eram: a religião, o medo, a culpa, o trabalho, a vigilância, o julgamento. O médico passou a assumir o papel de autoridade máxima. A ação da Psiquiatria era moral e social; isto é, sua função estava voltada para a normatização do louco, agora concebido como capaz de se recuperar. Inicia-se a medicalização. A cura da doença mental — o novo estatuto da loucura — ocorreria a partir de uma liberdade vigiada e no isolamento. Estava preparado o caminho para o surgimento da Psiquiatria.

A psiquiatria clássica

A Psiquiatria clássica considera os sintomas como sinal de um distúrbio orgânico. Isto é, doença mental é igual a doença cerebral. Sua origem é endógena, dentro do organismo, e refere-se a alguma lesão de natureza anatômica ou distúrbio fisiológico cerebral. Fala-se, mesmo, na química da loucura, e inúmeras pesquisas nesse sentido estão em andamento. Nessa abordagem, algum distúrbio ou anomalia da estrutura ou funcionamento cerebral leva a distúrbios do comportamento, da afetividade, do pensamento etc. O sintoma apóia-se e tem sua origem no orgânico. Nesse sentido, existem mapas cerebrais que localizam em cada área cerebral funções sensoriais, motoras, afetivas, de intelecção.

Nessa abordagem da doença, os quadros patológicos são exaustivamente descritos no sentido de quais distúrbios podem apresentar. Por exemplo, a psicastenia é caracterizada por esgotamento nervoso, com traços de fadiga mental, impotência diante do esforço, inserção difícil no real, cefaléias, distúrbios gastrointestinais, inquietude, tristeza. E, finalmente, se a doença mental é simplesmente uma doença orgânica, ela será tratada com medicamentos e produtos químicos. Ao lado da medicação, devemos lembrar que ainda são usados os eletrochoques, os choques insulínicos e, em casos mais graves, o internamento psiquiátrico, para uma administração controlada e intensiva de medicamentos.

A contribuição da psicanálise

Não é possível discutir a questão da normalidade e da patologia sem retomar as contribuições de Freud para a questão. Para a Psicanálise, o que distingue o normal do anormal é uma questão de [pg. 350] grau e não de natureza, isto é, nos indivíduos “normais” e nos “anormais” existem as mesmas estruturas de personalidade e de conteúdos, que, se mais, ou menos, “ativadas”, são responsáveis pelos distúrbios no indivíduo. Essas são as estruturas neuróticas e psicóticas.

Freud tomou a terminologia da Psiquiatria clássica do século 19 e definiu os quadros clínicos assim: Neurose — “os sintomas (distúrbios do comportamento, das idéias ou dos sentimentos) são a expressão simbólica de um conflito psíquico que tem suas raízes na história infantil do indivíduo”2. As neuroses podem ser subdivididas em:

  • Neurose obsessiva — esse tipo de conflito psíquico leva a comportamentos compulsivos (por exemplo, lavar a mão com freqüência não usual); ter idéias obsedantes, por exemplo, de que alguém pode estar perseguindo-o e, ao mesmo tempo, ocorre uma luta contra esses pensamentos e dúvidas quanto ao que faz ou fez.
  • Neurose fóbica ou histeria de angústia — a angústia é fixada, de modo mais ou menos estável, num objeto exterior, isto é, o sintoma central é a fobia, o medo. Medo de altura, medo de animais, medo de ficar sozinho etc.
  • Neurose histérica ou histeria de conversão — o conflito psíquico simboliza-se nos sintomas corporais de modo ocasional, isto é, como crises. Por exemplo, crise de choro com teatralidade, ou sintomas que se apresentam de modo duradouro, como a paralisia de um membro, a úlcera etc.

Todas as formas de manifestação da neurose têm sua origem na vida infantil, mesmo quando se manifestam mais tarde, desencadeadas por vivências, situações conflitivas etc. Nos dois últimos tipos apresentados, a neurose está associada a conflitos infantis de ordem sexual. [pg. 351]
A esses tipos de neurose deve-se acrescentar a neurose traumática, em que os sintomas — pensar obsessivamente no acontecimento traumatizante, ter perturbações do sono etc. — aparecem após um choque emotivo do indivíduo, ligado a uma experiência em que ele correu risco de vida. Mas, mesmo nesse caso, existiria, segundo Freud, uma predisposição, isto é, o traumatismo desencadeou uma estrutura neurótica preexistente.

Psicose — é o termo usado até meados do século 19 para se referir, de modo geral, à doença mental. Para a Psicanálise, refere-se a uma perturbação intensa do indivíduo na relação com a realidade. Na psicose, acontece uma ruptura entre o ego e a realidade, ficando o ego sob domínio do id, isto é, dos impulsos. Posteriormente, na evolução da doença, o ego reconstrói a realidade de acordo com os desejos do id.

As psicoses subdividem-se em:

  • Paranóia — é uma psicose que se caracteriza por um delírio mais ou menos sistematizado, articulado sobre um ou vários temas. Não existe deterioração da capacidade intelectual. Aqui se incluem os delírios de perseguição, de grandeza.
  • Esquizofrenia — caracteriza-se por: afastamento da realidade — o indivíduo entra num processo de centramento em si mesmo, no seu mundo interior, ficando, progressivamente, entregue às próprias fantasias. Manifesta incoerência ou desagregação do pensamento, das ações e da afetividade. Os delírios são acentuados e mal sistematizados. A característica fundamental da esquizofrenia é ser um quadro progressivo, que leva a uma deterioração intelectual e afetiva.
  • Mania e melancolia ou psicose maníaco-depressiva — caracteriza- se pela oscilação entre o estado de extrema euforia (mania) e estados depressivos (melancolia). Na depressão, o indivíduo pode negar-se ao contato com o outro, não se preocupa com cuidados pessoais (higiene, apresentação pessoal) e pode mesmo, em casos mais graves, buscar o suicídio. [pg. 352]

A Abordage psicológica

A abordagem psicológica encara os sintomas e, portanto, a doença mental, como desorganização da personalidade. A doença instala-se na personalidade e leva a uma alteração de sua estrutura ou a um desvio progressivo em seu desenvolvimento. Dessa forma, as doenças mentais definem-se a partir do grau de perturbação da personalidade, isto é, do grau de desvio do que é considerado como comportamento padrão ou como personalidade normal. Neste caso, as psicoses são consideradas como distúrbios da personalidade total, envolvendo o aspecto afetivo, de pensamento, de percepção de si e do mundo. As neuroses referem-se a distúrbios de aspectos da personalidade; por exemplo, permanecem íntegras a capacidade de pensamento, de estabelecer relações afetivas, mas a sua relação com o mundo encontra-se alterada, como no caso do indivíduo que tem um medo intenso de cachorro e não consegue nem passar a mão num bichinho de pelúcia.

Normal e patológico

Nos dois modelos explicativos anteriores — Psiquiatria clássica e abordagem psicológica — está implícita a questão dos padrões de normalidade, isto é, embora as duas teorias se diferenciem quanto à concepção de doença mental e suas causas, elas se assemelham no sentido de que ambas supõem um critério do que é normal.

Normal e patológico: uma discussão antiga e atual

Responder a isso significa dizer que determinadas áreas de conhecimento científico estabelecem padrões de comportamento ou de funcionamento do organismo sadio ou da personalidade adaptada. Esses padrões ou normas referem-se a médias estatísticas do que se deve esperar do organismo ou da personalidade, enquanto funcionamento e expressão.

Essas idéias ou critérios de avaliação constroem-se a partir do desenvolvimento científico de uma determinada área do conhecimento e, também, a partir de dados da cultura e do comportamento do próprio observador ou especialista, que nesse momento avalia este indivíduo e diagnostica que ele é doente.

E aqui surge uma complicação. O conceito de normal e patológico é extremamente relativo. Do ponto de vista cultural, o que numa sociedade é considerado normal, adequado, aceito ou mesmo valorizado, em outra sociedade ou em outro momento histórico pode ser considerado anormal, desviante ou patológico. [pg. 353]

Os antropólogos têm contribuído enormemente para esclarecer essa questão da relatividade cultural do conceito e do fenômeno. Por exemplo, o comportamento homossexual, que em uma sociedade é considerado doença, em outra pode ser um comportamento absolutamente adequado ou até mesmo valorizado. Historicamente, também se verificam mudanças. Podemos encontrar, nos arquivos de um hospital psiquiátrico de São Paulo, dados sobre mulheres que foram consideradas loucas porque, na década de 50, apresentavam comportamento sexual avançado para a época, como não preservar a virgindade até o casamento. Hoje, no final da década de 90, dificilmente uma jovem que tiver relações sexuais antes do casamento será considerada louca ou será internada em um hospital psiquiátrico. A questão da normalidade acaba por desvelar o poder que a ciência tem de, a partir do diagnóstico fornecido por um especialista, formular o destino do indivíduo rotulado. Isso pode significar não passar pela seleção de um emprego, perder o pátrio poder sobre os filhos, ser internado em um hospital psiquiátrico e, a partir disso, ter como identidade fundamental a de louco.
Esse poder atribuído à ciência e aos profissionais deve ser questionado, na medida em que se baseia num conjunto de conhecimentos bastante polêmicos e incompletos. Além do que, o médico ou o psicólogo, como cidadão e representante de uma cultura e de uma sociedade, acaba por patologizar aspectos do comportamento que se caracterizam muito mais como transgressões de condutas morais (sexuais, por exemplo) que não são considerados desvios em outros momentos históricos ou em outras sociedades: isso demonstra a relatividade do conceito de normal.

Outro aspecto conhecido e bastante alardeado pelos meios de comunicação de massa é o uso da Psiquiatria ou do rótulo de doença mental com fins políticos. O saber científico e suas técnicas surgem, então, comprometidos com grupos que querem manter determinada ordem social. Tranca-se no hospital psiquiátrico ou retira-se a legitimidade [pg. 354] do discurso do indivíduo que contesta esta ordem, transformando-o em louco.

As teorias críticas: antipsiquiatria, psiquiatria social

Em oposição a essas abordagens tradicionais da doença mental, surgem aquelas que questionam os conceitos de normalidade implícitos na teoria e, principalmente, nas formas de tratamento da loucura. Nessa linha, surge a antipsiquiatria, como uma negação radical da Psiquiatria tradicional ou clássica, afirmando que a doença mental é uma construção da sociedade, isto é, que a doença mental não existe em si, mas é uma idéia construída, uma representação para dar conta de diferenciar, isolar determinada ordem de fenômeno que questiona a universalidade da razão. Esse ponto de vista retoma e aprofunda a colocação de Michel Foucault em seu livro Doença mental e Psicologia: “a doença só tem realidade e valor de doença no interior de uma cultura que a reconhece como tal”3. A antipsiquiatria, de modo mais radical, e a Psiquiatria social denunciaram a manipulação do saber científico, a retirada da humanidade e da dignidade do louco, as condições perversas de tratamento e reclusão dele e, principalmente, a concepção da loucura como fabricada pelo próprio indivíduo e no seu interior. Com isso, levaram todos os que se dedicam a compreender e a trabalhar com os considerados loucos a buscar, fora do indivíduo, as causas ou desencadeadores do seu comportamento atual, isto é, buscar nas condições de trabalho, nas formas de lazer, no sistema educacional competitivo ou mesmo na estrutura familiar ou na insegurança da violência urbana, os fatores desencadeadores ou determinantes do sofrimento imenso do indivíduo ou de sua doença.

A Psiquiatria social ou a Psiquiatria alternativa, embora questionem as abordagens clássicas da doença mental, não negam que a doença exista. F. Basaglia afirma:

“Eu penso que a loucura, como todas as doenças, são expressões das contradições do nosso corpo, e dizendo corpo, digo corpo orgânico e social. É nesse sentido que direi que a doença, sendo uma contradição que se verifica no ambiente social, não é um produto apenas da sociedade, mas uma interação dos níveis nos quais nos compomos: biológico, sociológico, psicológico.”4 [pg. 355]

Nesta mesma obra, Basaglia afirma que explicar a doença só do ponto de vista orgânico ou exclusivamente do ponto de vista psicológico ou social significa uma “moda” científica.

Na verdade, não devemos nos esquivar do enfrentamento da questão da loucura, do sofrimento do outro, mas, talvez, possamos começar a “ver” diferentemente. O louco não é monstro, não é não-humano, e a loucura é construída ao longo da história de vida do indivíduo. Essas vivências ocorrem num determinado tempo histórico e espaço social definidos. Mais ou menos como Kalina e Kovadloff em seu livro As cerimônias da destruição analisam o suicídio: ele foi construído durante toda a vida do indivíduo, nos seus grupos de pertencimento — a família, a escola, o trabalho etc. —, embora o ato final caracterize um momento psicótico, isto é, o indivíduo percebe-se como outro e sem significado. Portanto é no indivíduo e fora dele que vamos procurar as razões dessa desrazão. E talvez seja por isso que o suicídio abale tanto as pessoas próximas do indivíduo que cometeu o ato. É como se esse ato denunciasse o fracasso do investimento social que foi feito nesse indivíduo, que nega de modo radical tudo isso e aponta o fracasso de seus grupos5.

A promoção da saúde mental

Falar em doença implica pensar na cura. A cura, no caso da doença mental, varia conforme a teoria ou o modelo explicativo usado como referencial e, desta forma, pode ser centrada no medicamento (as drogas quimioterápicas), no eletrochoque, na hospitalização, na psicoterapia.

Falar em doença implica pensar, também, em prevenção. A prevenção da doença mental significa criar estratégias para evitar o seu aparecimento. Por analogia, seria como dar a vacina anti-sarampo para que a criança não tenha a doença. A prevenção implica sempre ações localizadas no meio social, isto é, os dados de uma pesquisa podem demonstrar que determinadas condições de trabalho propiciam o aparecimento de um certo distúrbio de comportamento. Procura-se, então, interferir naquelas condições específicas de trabalho (no barulho, por exemplo), no sentido de evitar que outros indivíduos venham a apresentar o mesmo distúrbio. [pg. 356]

E falar em saúde significa pensar em promoção da saúde mental, que implica pensar o homem como totalidade, isto é, como ser biológico, psicológico e sociológico e, ao mesmo tempo, em todas as condições de vida que visam propiciar-lhe bem-estar físico, mental e social.
Nessa perspectiva, significa pensar na pobreza, que determina condições de vida pouco propícias à satisfação das necessidades básicas dos indivíduos, e, ao mesmo tempo, pensar na violência urbana e no direito à segurança; no sistema educacional, que reproduz a competitividade da nossa sociedade; na desumanização crescente das relações humanas, que levam à “coisificação” do outro e de nós próprios.

E pensar tudo isto significa pensar na superação das condições que desencadeiam ou determinam a loucura. Como cidadãos, é preciso compreender que a saúde mental é, além de uma questão psicológica, uma questão política, e que interessa a todos os que estão comprometidos com a vida.

Psicologia - Psicopatologia
Agressividade - Violência, 
7/30/2021 1:47:24 PM | Por Ana Mercês Bahia Bock
As faces da violência

O ser humano é agressivo. Essa afirmação pode causar estranheza porque sempre conhecemos alguém que é muito “bonzinho”, “incapaz de fazer mal a uma mosca”. Nesse caso, avalia-se a agressividade exclusivamente por suas manifestações: o comportamento. E a pessoa “incapaz de fazer mal a uma mosca” é considerada como não-agressiva, como não tendo nenhuma hostilidade dentro de si, nenhum impulso destrutivo na sua
relação cora as coisas e com os outros.

Para superarmos a estranheza que a afirmação inicial causa, é necessário compreender que a agressividade é impulso que pode voltar- se para fora (heteroagressão) ou para dentro do próprio indivíduo (auto-agressão). Mas ela sempre constitui a vida psíquica, enquanto fazendo parte do binômio amor/ódio, pulsão de vida/pulsão de morte (ver capítulo 4).

A agressividade sempre está relacionada com as atividades de pensamento, imaginação ou de ação verbal e não-verbal. Portanto, alguém muito “bonzinho” pode ter fantasias altamente destrutivas, ou sua agressividade pode manifestar-se pela ironia, pela omissão de ajuda, ou seja, a agressividade não se caracteriza exclusivamente pela humilhação, constrangimento ou destruição do outro, isto é, pela ação verbal ou física sobre o mundo. [pg. 330]

A educação e os mecanismos sociais da lei e da tradição buscam a subordinação e o controle dessa agressividade. Assim, desde criança o ser humano aprende a reprimir e a não expressá-la de modo descontrolado, ao mesmo tempo em que o mundo da cultura cria condições para que o indivíduo possa canalizar, levar esses impulsos para produções consideradas positivas, como a produção intelectual, a produção artística, o desempenho esportivo etc.

Nesse enfoque, cuja referência é a Psicanálise, afirma-se que a agressividade é constitutiva do ser humano e, ao mesmo tempo, afirma-se a importância da cultura, da vida social, como reguladoras dos impulsos destrutivos. Essa função controladora ocorre no processo de socialização, no qual, espera-se que, a partir de vínculos significativos que o indivíduo estabelece com os outros, ele passe a internalizar os controles. Então, deixa de ser necessário o controle externo, pois os controles já estão dentro do indivíduo. Mas, mesmo assim, em todos os grupos sociais existem mecanismos de controle e/ou punição dos comportamentos agressivos não valorizados pelo grupo. A sociedade também tem seus mecanismos, que se concretizam na ordem jurídica: as leis.

Esse modo de compreender a agressividade humana coloca em questão se a sociedade está conseguindo ou não criar condições adequadas para a canalização desses impulsos destrutivos e para a não-manifestação da violência.

A violência é o uso desejado da agressividade, com fins destrutivos. Esse desejo pode ser:

  • voluntário (intencional), racional (premeditado e com objeto “adequado” da agressividade) e consciente, ou
  • involuntário, irracional (a violência destina-se a um objeto substituto, por exemplo, por ódio ao chefe, o indivíduo bate no filho) e inconsciente.

A agressividade está na constituição da violência, mas não é o único fator que a explica. É necessário compreender como a organização social estimula, legitima e mantém diferentes modalidades de violência. O estímulo pode ocorrer tanto no incentivo à competição escolar e no mercado de trabalho, como no incentivo a que cada um dos cidadãos dê conta de sua própria segurança pessoal. A legitimação pode ocorrer na guerra, no combate ao inimigo religioso, ao inimigo político. A manutenção da violência ocorre quando se conservam milhões de cidadãos em condições subumanas de existência, o que acaba por desencadear ou determinar a prática de delitos associados à sobrevivência (roubar para comer, a prostituição precoce de crianças e jovens). [pg. 331]

A violência está presente também quando as condições de vida social são pouco propícias ao desenvolvimento e realização pessoal e levam o indivíduo a mecanismos de autodestruição, como o uso de drogas, o alcoolismo, o suicídio.

Jurandir F. Costa, em seu livro Violência e Psicanálise, afirma que podemos entender como violência aquela situação em que o indivíduo “foi submetido a uma coerção e a um desprazer absolutamente desnecessários ao crescimento, desenvolvimento e manutenção de seu bem-estar, enquanto ser psíquico”1.

Isso significa que é necessário deixar de considerar como violência exclusivamente a prática de delitos, a criminalidade. Essa é uma associação feita, por exemplo, pelos meios de comunicação de massa (rádio, televisão) e que acabamos por reproduzir. Mas existem outras formas que não reconhecemos como práticas de violência e que estão diluídas no cotidiano, às quais, muitas vezes, já nos acostumamos. A violência no interior da família, na escola, no trabalho, da polícia, das ruas, do atendimento precário à saúde etc.

A violência e suas modalidades

Nos tempos modernos, a violência “invadiu todas as áreas da vida de relação do indivíduo: relação com o mundo das coisas, com o mundo das pessoas, com seu corpo e sua mente”2. É como se o progresso tecnológico, o desenvolvimento da civilização, ao invés de propiciar o bem-estar dos indivíduos, concorressem para a deterioração das condições da vida social. A violência, também, deve ser entendida como produto e produtora dessa deterioração, como patologia ou doença social que acaba por “contaminar” toda a sociedade — mesmo naqueles grupos ou instituições considerados como mais protetores de seus membros, a família ou a escola, por exemplo. [pg. 332]

É como se vivêssemos um momento de nossa civilização em que a cultura não dá mais conta de canalizar a agressividade — que todos possuímos — em produções socialmente construtivas; é como se essa energia não encontrasse canais, formas de expressar-se dentro dos limites da lei, das regras. A violência crescente e, aparentemente, descontrolada, mobiliza em todos nós a agressividade enquanto destrutividade: a destruição do outro e de nós próprios.

Hélio Pellegrino, psicanalista brasileiro, afirma que a violência crescente só pode ser entendida a partir da constatação de que vivemos um momento histórico em que se rompeu o pacto social (o direito ao trabalho, por exemplo), e isto faz com que se rompa o pacto edípico, isto é, a autoridade, a norma, a lei internalizada. Essa ruptura retira o controle sobre os impulsos destrutivos, e estes emergem com sua força avassaladora.

Há um clima cultural no qual se observa a deterioração de valores básicos e agregadores da coletividade; a solidariedade, a justiça, a dignidade — o que Pellegrino denomina de “cimento social”. É nesse clima que se constata a banalização do mal, a tolerância com a crueldade, a impunidade, a descrença no mecanismo regulador da convivência social — o sistema de justiça — e o fracasso do Estado em garantir a segurança dos cidadãos, até porque eles próprios descobrem que o Estado também detém a violência. Portanto, se não naturalizamos a violência, podemos descobri-la em suas mais diferentes, sutis e grosseiras expressões em nosso cotidiano. [pg. 333]

A violência na família

Embora possamos observar hoje profundas transformações na estrutura e dinâmica da família (veja capítulo 17, Família), há ainda a prevalência, em nossa sociedade, de um modelo de família que se caracteriza pela autoridade paterna e, portanto, pela submissão dos filhos e da mulher a essa autoridade, e pela repressão da sexualidade, principalmente a feminina. Essa autoridade e repressão aparecem como protetoras dos membros da família. Poderíamos perguntar se essa imagem falseada que se tenta passar realmente cumpre a função de proteção, ou se encobre práticas de violência sobre o uso do corpo da mulher, bem como acaba justificando os castigos físicos na educação dos filhos, perpetrados tanto pelo homem como pela mulher — o pai ou a mãe. No interior da família, lugar mitificado em sua função de cuidado e proteção, existem muitas outras formas de violência além da física e sexual; ou seja, há o abandono, a negligência, a violência psicológica, isto é, condições que comprometem o desenvolvimento saudável da criança e do jovem. A primeira violência seria a negação do afeto para a criança, que depende disso para sua sobrevivência psíquica, assim como depende de cuidados e de alimentação para sua sobrevivência física.

A violência crescente no interior da família — tanto em relação à mulher como em relação às crianças e adolescentes — é um dado que chama, cada vez mais, a atenção de pesquisadores e autoridades na área. É grande o número de crianças seviciadas pelos pais, espancadas e mesmo assassinadas. Esse fenômeno perpassa todas as classes sociais, não está apenas circunscrito à pobreza. Muitos de nós mesmos podemos já ter sido vítimas de situações semelhantes em nossa própria casa. E dificilmente isso, em suas formas mais amenas, é entendido como violência, como se os pais tivessem por direito essas práticas. [pg. 334]

A violência na escola

A escola, para as camadas médias da população, pretende ser a continuidade do processo de socialização, iniciado na família. Nesse sentido, os valores, expectativas e práticas que envolvem o processo educativo são semelhantes.

Poderíamos dizer que a violência manifesta-se de modo mais sutil na relação das crianças e dos jovens com os conteúdos a serem aprendidos, que podem não ter significado para sua vida; na relação com professores, que se caracteriza por práticas autoritárias e sem espaço para o diálogo, para a crítica; na relação com práticas disciplinares que buscam a sujeição do educando, a submissão, a docilidade, a obediência, o conformismo. Na verdade, a maior violência exercida pela escola é quando ela usa de seu poder sobre as crianças e os jovens para impedi-los de pensar, de expressar suas capacidades e os leva a se tornarem meros reprodutores de conhecimentos.

Na escola, é importante destacar a violência exercida seletivamente sobre as crianças e os jovens das camadas populares. Estes, muitas vezes, não têm o repertório de conhecimentos esperado pela escola, e sua vivência (de trabalhador precoce, de responsável pela própria sobrevivência, de menino da rua) é desvalorizada, não é considerada no processo educativo. Essas crianças e jovens, que acabam não tendo o desempenho escolar esperado, são percebidos como incapazes, são transferidos para “classes especiais” e, na quase totalidade dos casos, levados a “se expulsarem” da escola. Essa experiência de fracasso escolar é muito importante na construção de sua identidade. A “incapacidade” que lhes é atribuída passa a ser internalizada e eles se sentem incapazes.

Existem, também, estudos sobre as cartilhas e livros didáticos que demonstram que os conteúdos veiculados estão impregnados de preconceitos ou de uma visão de mulher, de negro, que fomenta a formação de preconceitos. O preconceito leva à discriminação de grupos e à violência contra eles.

A violência na rua

A violência nas ruas é um problema que afeta, particularmente, os centros urbanos maiores. A rua, como espaço social do lúdico, do encontro, da convivência, torna-se o espaço da insegurança, do medo, da violência pelo “bandido”, pela polícia e, mesmo, pelo cidadão comum. Vemos todos os dias nos jornais problemas de trânsito que terminam em agressões; a polícia que, num tiroteio, [pg. 335] matou mais um; o trombadinha que roubou o tênis de outro menino. Começamos a ter a cara do medo e a pôr para fora a nossa própria agressividade, de modo destrutivo, no intuito de nos proteger. Certa vez, uma senhora de 60 anos disse: “Antes, se eu encontrasse uma criança na rua, passava a mão em sua cabeça. Hoje, eu tenho medo dela”. Essa mudança demonstra que o outro (a criança, o jovem, o adulto) é sempre percebido como um agressor em potencial, um agente de violência. Isso leva a um clima de insegurança que perpassa por toda a população, a qual passa a pedir mais segurança, maior proteção policial, um aparelho repressivo mais eficiente, que estabeleça, novamente, o clima de segurança entre os cidadãos. Essas solicitações acabam por ter, como conseqüência, a transformação da própria população em vítima da repressão policial.

A violência e a drogas

“Numa sociedade baseada na plenitude do homem e não no consumo; em uma sociedade amável — digna de ser amada —, em que o homem pudesse sentir-se seguro, não existiriam os angustiantes problemas da droga”3. O uso de drogas deve ser entendido como um processo de autodestruição do indivíduo: A droga vem para preencher um “vazio”, que, de outra forma, a realidade social não preenche.

A droga deve ser entendida em seu amplo espectro, desde aquelas socialmente permitidas, como o tabaco e o álcool, até aquelas não permitidas, como a maconha, a heroína, a cocaína e, [pg. 336] mesmo, os psicofármacos. Todas elas podem criar um processo de dependência física e psíquica, de acordo com a intensidade e freqüência do uso, a constituição biológica do organismo, a constituição psíquica, as condições sociais de uso (o incentivo e a valorização pelo grupo, por exemplo) e as próprias características químicas da droga.

Na análise da drogadicção (dependência de drogas), Kalina e Kovadloff apontam a importância da vida familiar e da satisfação das necessidades afetivas do indivíduo como a principal forma de se evitar o consumo de drogas. Os “buracos” afetivos, a insegurança, a não-comunicação com o mundo dos adultos são os principais responsáveis pelo engajamento do jovem nesse projeto de destruição de si próprio, com a ilusão de que está destruindo valores fundamentais da sociedade.

Para Kalina, a cura de alguém que cumpre esse script de morte implica “fazer uma mudança cultural: transformar uma cultura necrofílica, uma cultura tanática, em uma cultura vital, erótica, criativa”4.

Violência e criminalidade

Inicialmente, é importante distinguir três aspectos ou conceitos ligados a esta questão: transgressão, infração e delinqüência. Abordar esses aspectos significa trazer ou partir de questões mais próximas de todos nós e de nosso cotidiano.

O transgressor

O homem vive em grupos sociais. Em todos os grupos existem normas e regras que regulam a relação das pessoas no seu interior e, conseqüentemente, todas as pessoas, alguma vez, transgrediram essas normas. Por exemplo, chegar depois do horário estipulado, deixar de cumprir uma parte da tarefa, não aceitar determinada ordem ou orientação de conduta.

Sempre que ocorre uma transgressão, existe uma conseqüência para o transgressor: ser advertido, ser exposto a uma comunicação mais intensa do grupo, no sentido de reconhecer a importância da norma, ou, mesmo, ser expulso do grupo por ter transgredido uma norma muito importante, como, por exemplo, no caso do aluno expulso da escola por ter dito um palavrão para a professora. [pg. 337]

É sempre mais fácil o conformismo às normas quando se conhece seu significado, sua utilidade e concorda-se com elas. Em todo caso, quando o indivíduo transgride uma norma, não significa que ele se caracterize como infrator ou delinqüente.

O infrator

O infrator é aquele que transgrediu alguma norma ou alguma lei tipificada no código penal ou no sistema de leis de uma determinada sociedade. O infrator é aquele que cometeu um ato — a infração — e será punido por isso, isto é, terá uma pena também prevista em lei e aplicada pelo juiz ou seu representante. Essa pena pode assumir a forma de multa, ressarcimento de prejuízos, cassação de direitos (por exemplo, a carteira de habilitação para dirigir) ou uma pena de reclusão, dependendo da gravidade do delito cometido. Para determinar a pena, é julgado o ato e suas circunstâncias.
Muitos de nós, também, podemos já ter cometido infrações. Por exemplo, estacionar o carro em local proibido, avançar um sinal vermelho, não respeitar a lei de não fumar em ônibus ou em escolas. E nem por isso estivemos envolvidos com a polícia, com o poder judiciário, ou fomos tachados de delinqüentes. A origem social pode proteger ou não o indivíduo que comete uma infração.

Vejamos a seguinte situação: no supermercado, duas crianças da mesma idade pegam um chocolate, abrem-no e comem. Uma delas está suja e maltrapilha; a outra está bem vestida e acompanhada da mãe. A fome da primeira é maior. O vigilante do supermercado chega perto dela, coloca-a para fora aos safanões e ameaça mandá-la para a Vara da Infância e Juventude ou lhe dar uma surra, da próxima vez. A criança que está com a mãe termina de comer, e a mãe, se não esquecer, poderá pagar quando passar pelo caixa.

Nesse caso, não existe um envolvimento direto com o poder judiciário, mas vemos que mesmo as “pequenas polícias”, no caso, o vigilante do supermercado, também já internalizaram esse [pg. 338] modo de tratar e de aplicar diferentemente a norma, dependendo de quem é a criança. Para o vigilante e para a criança pobre, ficará tipificado que ela roubou, que ela é ladra. Encompridando a história, podemos imaginar que todas as pessoas que presenciaram a cena pensam que essa criança faz isso costumeiramente, que é seu “estilo de vida”, que ela é delinqüente, sinônimo de trombadinha, pivete, ladrazinha.

O delinquente

A delinqüência é uma identidade atribuída e internalizada pelo indivíduo a partir da prática de um ou vários delitos (crimes). M. Foucault, em seu livro Vigiar e punir, coloca que essa identidade começa a se formar/forjar a partir do momento em que o infrator (aquele que cometeu um ato) entra no sistema carcerário — seja de maiores ou de menores — , e a equipe de profissionais que administra a pena, isto é, que o acompanha durante todo o período de sua reclusão, começa a procurar na sua história de vida características que indicam sua propensão para a prática de delitos. A investigação de sua história de vida, baseada em técnicas científicas e, principalmente, na ciência PSI (Psicologia e Psiquiatria), deverá levar à descoberta de impulsos, tendências, sentimentos e vivências anteriores que indiquem a afinidade do indivíduo com o delito. Foucault denuncia que se acaba descobrindo o delinqüente, apesar e independente do delito cometido, isto é, descobre-se que, bem antes da prática desse delito, ele já era “delinqüente”.

A instituição na qual o indivíduo é isolado do convívio social e que tem a função social de regeneração e recuperação é aquela que, contraditoriamente, acaba por atribuir-lhe esta identidade, que passa a “funcionar” como marca, rótulo. Uma marca que irá carregar posteriormente à sua saída do cárcere e que irá dificultar sua integração social.

Atualmente, não é necessário o internamente ou a reclusão no sistema carcerário para que se inicie a construção da identidade delinqüente. Começa a ocorrer um fato grave e de conseqüências imprevisíveis. Milhões de [pg. 339] crianças e jovens, cuja condição fundamental de vida é a pobreza, passam a ser vistos não como crianças ou jovens, mas como perigosos ou potencialmente perigosos.

Essa representação social das crianças e jovens das camadas populares fundamenta-se numa visão falseada da realidade e é alimentada pelos meios de comunicação de massa, em que a pobreza é associada à criminalidade. Isto visa esconder que tanto a criminalidade como a pobreza têm origem em um modo de organização econômica e política que se caracteriza pela distribuição desigual da renda e por um processo de pauperização crescente de amplas camadas da população, mantendo alguns setores, os mais miseráveis, no limiar da sobrevivência.

Essa visão cumpre, também, a função de desviar a atenção da opinião pública de outros tipos de crimes cometidos pelas classes média e alta, dos crimes contra a economia popular e dos chamados crimes de “colarinho branco”.

Esta compreensão do fenômeno da criminalidade envolvendo crianças e adolescentes não significa negar que, infelizmente, um número crescente de jovens encontra-se envolvido com a prática de atos infracionais graves e, mesmo, reincidentes. Esse fenômeno atravessa todas as classes sociais, isto é, crianças e adolescentes de diferentes origens sociais, e não exclusivamente os pobres, acabam por se transformar em agentes da violência. Portanto, as determinações da prática de ato infracional não são exclusivamente de ordem econômica. Os jovens repetem, como agressores, as experiências de violência que os vitimaram. Eles carregam prejuízos, vivem em condições de risco pessoal e social e, além da garantia dos direitos básicos de cidadania, precisam de tratamento, porque o delito denuncia um sofrimento. O delito tem esta dupla face: fala do social e do psicológico.

O projeto de morte e o projeto de vida

Entre as várias faces que a violência demonstra, existem ainda dois aspectos importantes a serem destacados.

O primeiro refere-se à destruição planejada, irresponsável da Natureza, isto é, à poluição dos rios por produtos químicos, à devastação das grandes florestas, à poluição do ar. O homem, cuja característica fundamental é a capacidade de transformar a Natureza em seu próprio benefício, está engajado em sua transformação [pg. 340] no sentido destrutivo, o que virá a comprometer as condições de vida das futuras gerações.

O segundo aspecto refere-se à ausência de cuidados que a nossa sociedade demonstra em relação a milhões de crianças e jovens que vivem condições de não-cidadania, de não-garantia de seus direitos à educação, saúde, lazer, alimentação, enfim, às condições básicas que garantem a sobrevivência física e um desenvolvimento psicológico saudável e, conseqüentemente, a formação de cidadãos com participação social. Esta ausência de responsabilidade social reflete-se nos milhares de meninos e meninas que vivem na rua à sua própria sorte e no ingresso precoce de crianças no mercado de trabalho, como forma de garantir sua própria sobrevivência e, muitas vezes, a sobrevivência da família. A essas crianças e jovens é negado o direito à infância e à juventude. E não sabemos, hoje, qual a amplitude dos prejuízos do ponto de vista psicológico e social que irão manifestar-se nas próximas décadas.

É importante considerar que a caracterização da situação de violência em que vivemos denuncia uma tendência para a autodestruição, quer pela ação direta das forças destrutivas presentes no homem, quer pela omissão que leva amplos setores da sociedade a serem espectadores passivos desse espetáculo tanático. Romper com esse destino significa estabelecer uma nova ética de cidadão, em que os valores da vida prevaleçam sobre os da morte.

Construir essa nova ética e um projeto de vida são tarefas para a juventude de hoje, considerando os dados da História. [pg. 341]

Psicologia - Psicologia social
Temas gerais - , 
7/30/2021 12:48:19 PM | Por Ana Mercês Bahia Bock
Escolhendo uma profissão

A idéia de que o indivíduo escolhe sua ocupação ou profissão a partir das condições sociais em que vive e em função de suas habilidades, aptidões, interesses e dons (vocação) não é uma idéia que sempre existiu. É algo que teve início quando se instalou na sociedade o modelo de produção capitalista.Antes do capitalismo, o indivíduo tinha sua ocupação determinada pelos laços de sangue, sua ocupação vinha de berço. Os servos teriam seus filhos e netos sempre servos; os senhores seriam sempre senhores. No capitalismo, o indivíduo liberta-se dos laços de sangue. Agora, ele precisa vender sua força de trabalho para sobreviver. Nada mais é determinado “naturalmente”.

No capitalismo, o indivíduo “pode tudo”. O filho do operário não será obrigatoriamente operário. Pode até ser doutor, desde que se esforce, estude, trabalhe e lute. Tudo depende dele. Seu destino está nas suas mãos, como nos faz crer a ideologia do capitalismo.

E, então, é neste momento que a escolha da profissão se coloca como questão. Se tudo está nas mãos do indivíduo, o momento de sua escolha profissional torna-se de suma importância. Teorias, técnicas, idéias passam a ser desenvolvidas para facilitar esse momento decisivo.

A escolha como momento decisivo

Será mesmo a escolha profissional o momento mais importante na vida de um jovem? Será a escolha de uma profissão a escolha mais importante que um indivíduo faz em sua vida?

Sem dúvida, a maior parte de nosso tempo no dia-a-dia é ocupada com o trabalho. Isto porque, principalmente em uma sociedade capitalista dependente (subdesenvolvida) como a nossa, para acumular capital, necessitamos arregimentar nossas energias através do trabalho (que é o produtor das riquezas).

Sabemos que, depois de uma certa idade (e esta idade varia de acordo com as classes sociais), teremos de trabalhar para sobreviver, e ninguém neste mundo gostaria de passar o resto de sua vida dedicando energias a alguma tarefa que lhe desagrada. Assim, a escolha de uma ocupação ou de uma profissão torna-se muito importante para o jovem.

Além disso, nossa sociedade e sua ideologia responsabilizam o indivíduo por suas escolhas, camuflando todas as influências sociais determinantes de sua opção. Fica assim sobre os ombros do jovem [pg. 309] a responsabilidade de, considerando todas as condições, seus interesses e possibilidades, realizar sua escolha profissional.

Com isto estamos querendo dizer que, sem dúvida, o momento da escolha profissional é importante para o jovem, pois é um momento de conflito — imagine-se na frente de uma vitrina de doces, tendo que escolher apenas um deles sem experimentá-los — e é um momento de escolha de um futuro profissional, que ocupará a maior parte do tempo de sua vida.

No entanto, não podemos considerar que o futuro de uma pessoa dependa exclusiva ou principalmente de sua opção profissional e, tampouco, que a escolha de uma profissão não possa ser, a qualquer momento, alterada.

A construção de um futuro é resultado da combinação de uma série de fatores, dentre eles a escolha de uma profissão. Assim, podemos dizer que a escolha profissional — que é um momento de conflito e por isso um momento difícil — é um fator importante, mas não exclusivo, na construção de um futuro.

E ainda cabe ressaltar que a escolha de uma profissão não é algo simples, pois existem influências sociais, componentes pessoais e limites ou possibilidades entrando neste jogo. O importante é que, quanto mais o indivíduo compreende e conhece esses fatores, mais controle terá sobre sua escolha.

Os fatores que influem na escola profissional

Os fatores que influem na escolha profissional são muitos, com peso e composição diferentes na história individual dos jovens. Procuramos organizar estes fatores em quatro categorias (para efeito de uma exposição mais clara), mas gostaríamos de deixar claro, desde o início, que esses fatores estão em permanente interação e que é exatamente esta combinação entre eles que caracteriza o quadro geral da escolha profissional. Vamos lá!

Características da profissão

Quando pensamos em escolher algo, de imediato temos de considerar as características dos diversos objetos que se nos apresentam como passíveis de serem escolhidos. Nossos objetos [pg. 310] aqui são ocupações, profissões. Por isso vamos considerar: o mercado de trabalho, a importância social e a remuneração das profissões e ainda o tipo de trabalho e as habilidades necessárias ao seu desempenho.

Mercado de trabalho

Teremos ou não emprego nesta profissão? Sem dúvida, uma pergunta importante que o jovem deve fazer-se, mas de difícil resposta. Por quê

Entende-se por mercado de trabalho a venda e a compra da força de trabalho. Quando se diz que o mercado de trabalho de uma determinada profissão está saturado, está-se querendo dizer que o número de profissionais procurando vender sua força de trabalho (oferta) é maior que o número de empregos (procura).

Os fatores que determinam o mercado de trabalho (a relação entre a oferta e a procura) são fundamentalmente relacionados à política econômica de um país. Assim, num momento de recessão econômica “ocorre uma diminuição de investimentos — ou seja, a produção, ao invés de aumentar, se equilibra ou diminui — e o mercado de trabalho, em geral, se retrai. Em conseqüência, ocorre não só a expulsão de trabalhadores já empregados como também a não-absorção de novos trabalhadores”. Quando acontece essa retração do mercado, há, concomitantemente, um aumento dos requisitos necessários para a ocupação de cargos. Por exemplo, passa-se a exigir um grau de escolarização [pg. 311] superior ao que se exigia anteriormente, um número maior de anos de experiência naquele tipo de trabalho etc.

Outro fator que acompanha o aumento da oferta de mão-de-obra e a diminuição da procura é o rebaixamento salarial. 

O mercado de trabalho, portanto, não é algo estável. Assim, no momento em que o jovem se coloca esta questão, o mercado de determinada profissão pode ser promissor, mas em pouco tempo esta situação poderá ter-se invertido. Por isso, a pergunta se teremos ou não emprego é de difícil resposta.

Importância social e remuneração

Todos nós queremos trabalhar em alguma profissão que tenha importância social e que seja  bem remunerada — pelo menos uma remuneração mínima para garantir um bom padrão de vida.

E aqui se coloca uma questão importante. Quais são as profissões mais importantes socialmente? Há uma relação direta entre importância e remuneração?

Considerando essas questões do ponto de vista da sociedade como um todo, podemos dizer que todas as profissões têm importância social, pois todas elas respondem a algum tipo de necessidade social e contribuem para a manutenção da vida em sociedade. Assim, podemos perceber, por exemplo, que os lixeiros (trabalhadores tão desvalorizados em nossa sociedade) são muito importantes, pois respondem pelo recolhimento do lixo, o que garante as condições básicas de saúde da população. Em alguns lugares, quando os lixeiros fizeram greve, foi possível perceber claramente a importância de seu trabalho. Sem o recolhimento do lixo, aumenta o número de ratos, de doenças etc. [pg. 312]

No entanto, sabe-se que a sociedade atribui diferente prestígio às profissões. Na história de nossa sociedade, as profissões ligadas ao trabalho manual têm tido menos prestígio social do que as profissões ligadas ao trabalho intelectual.

Assim, em nossa sociedade, as profissões responsáveis pela produção da riqueza material são desprestigiadas e, portanto, oferecem baixa remuneração. Há, sem dúvida, nesta questão, o problema da necessidade ou não de especialização (profissões ligadas à atividade intelectual exigem maior especialização, estudo e permanente aperfeiçoamento), mas há também a necessidade social de remunerar pouco aqueles setores que precisam de mais gente trabalhando.

Esta questão de prestígio e remuneração é bastante complexa e não a exploraremos aqui. Mas queremos deixar claro que nem sempre o prestígio social significa remuneração condizente e que nem mesmo significa que esta ocupação seja mais, ou menos, importante que as outras.

Habilidades necessárias para o desempenho

Toda profissão tem seu rol de pré-requisitos necessários. Os requisitos e o tipo de trabalho que se realiza devem ser considerados, quando pensamos em escolher uma profissão. Não devemos pensar nas profissões apenas pela aparência: prestígio, remuneração ou mercado. A profissão deve ser vista por dentro — o que realmente faz um profissional daquela área?

E quando falamos em pré-requisitos, surge logo a questão de ter ou não as habilidades necessárias.

Acreditamos que todas as pessoas podem exercer qualquer tipo de profissão (excluídos os extremos: um deficiente físico ser jogador de vôlei, um surdo ser maestro etc.), desde que tenham condições para adquirir as habilidades e conhecimentos necessários para seu exercício.

A escolaridade é, sem dúvida, em nossa sociedade, um dos fatores mais valorizados e tem sido exigida como requisito mesmo de ocupações consideradas simples. E sabemos que a possibilidade de acesso e permanência na escola está diretamente relacionada à condição social e econômica do grupo familiar.

Assim, podemos concluir, sem o risco de sermos exagerados, que os fatores que determinam a escolha de uma profissão são de natureza econômica e social (e não biológica), ligados diretamente às oportunidades de escolarização do indivíduo.

Posteriormente voltaremos a analisar a questão do dom, da vocação. [pg. 313]

O caminho para se chegar à profissão

Diretamente ligada à nossa discussão anterior, aparece a questão da trajetória que o indivíduo deve percorrer para adquirir uma profissão. Aqui dois problemas são básicos: a escolarização e o vestibular e os custos da formação.

A escolarização e o vestibular

A crença de que o esforço individual é o único fator responsável pelo sucesso escolar e pelo ingresso na faculdade deve ser desmistificada. Em nossa sociedade, é sabido que o fator econômico mais que o esforço individual, dizendo, econômico propicia que o esforço individual seja ou, melhor o fator
pesa recompensado.

Assim, o aluno proveniente das classes mais altas da sociedade tem maiores chances, pois dispõe de tempo para dedicar-se aos estudos e não trabalha (ou não exerce atividades profissionais muito desgastantes); tem condições de alimentar-se bem, de descansar bem; tem dinheiro para comprar o material necessário para o estudo etc.

O que ocorre aqui é o famoso cruzamento: alunos das escolas públicas em geral ingressam nas faculdades particulares, e alunos das escolas particulares ocupam as vagas públicas.

Custos de formação

Qualquer tipo de formação é, hoje, em nosso País, quase artigo de luxo. Manter-se na escola, na faculdade ou em cursos técnicos profissionalizantes é algo bastante custoso. E de novo vamos assistir aos filhos das classes mais altas podendo completar seus cursos. Tornamos a repetir: os fatores que determinam a aquisição de uma profissão são de natureza econômica e social. [pg. 314]

O grupo social

O grupo familiar e o grupo de amigos são apontados pelo psicólogo argentino Bohoslavsky como os dois grupos de onde vêm as principais pressões e os principais elementos para que o indivíduo se referencie quando escolhe qualquer coisa, inclusive sua profissão.

O grupo de amigos fornece, em geral, uma referência positiva, isto é, o indivíduo utiliza as referências positivamente, enquanto o grupo familiar pode, eventualmente, fornecer referências que o indivíduo procura rejeitar com sua escolha.

Isto ocorre porque as relações no grupo familiar são sabidamente mais complexas. O grupo familiar não é opcional, como ocorre com o grupo de amigos.

Os valores desses grupos, as satisfações ou insatisfações que seus elementos apresentam com suas ocupações, as expectativas que apresentam em relação à escolha do jovem são fatores fundamentais.

Assim, o pai que terá seu filho como seguidor, herdeiro de seus negócios, prepara-o para isto desde cedo, e ao jovem pode nem se colocar a possibilidade de mudar de rumo. O pai que considera seu trabalho de baixo valor social procurará sempre direcionar a escolha de seu filho no caminho da superação daquela situação social, como o pai operário que sonha com o filho doutor.

Aqui entram os fatores relacionados ao sexo — a sexualização das profissões, se podemos chamar assim.

Na tradição cultural brasileira, a mulher, por exemplo, é sempre vista como ser frágil, que nasceu para ser mãe, para proteger e dar amor. Assim, existem profissões vistas como mais femininas, como as da área de humanas — por exemplo, o magistério. E as profissões femininas, por serem vistas como extensão do lar e sem necessidade de muito aperfeiçoamento, foram sempre desvalorizadas e mal remuneradas.

Esses fatores são importantes na pressão que a família exerce sobre o jovem que as escolhe. O rapaz deverá escolher uma profissão masculina, e a garota poderá ou não seguir um curso universitário, poderá ou não trabalhar fora, mas, se o desejar, deverá escolher uma carreira feminina, que não a impeça de cuidar da casa, dos filhos e do marido.

É importante esclarecer aqui que não há profissões para homens e profissões para mulheres. Essa distribuição é cultural e segue também interesses econômicos da sociedade. O que há em nossa sociedade é a exploração do trabalhador, tanto homens quanto mulheres. [pg. 315]

História pessoal

E aqui chegamos ao indivíduo que escolhe. Este ser, rico em elementos internos, procura, ao escolher uma profissão, planejar um ser para si mesmo — “O que quero ser na vida”. O processo de escolha de profissão é, pois, um momento do processo de identidade do indivíduo.

Entram assim, em sua escolha, todos os elementos que ingressaram em seu mundo psíquico. Suas expectativas em relação a si próprio, seus gostos, as habilidades que já desenvolveu até o momento, a profissão das pessoas que lhe são significativas, as imagens registradas no seu mundo interior relacionadas às profissões, a percepção que tem de suas condições materiais, seus limites e possibilidades, seus desejos, tudo aquilo que deseja negar, tudo aquilo que deseja afirmar, enfim, todo seu mundo interno é mobilizado para a escolha profissional, inclusive fatores inconscientes, que também entram neste jogo, e com muita força.

Abordaremos, em seguida, duas questões que nos parecem mais polêmicas e que têm sido apresentadas como conflitos freqüentes para os jovens que escolhem uma profissão: o conflito satisfação pessoal X  satisfação material e a questão do dom, da vocação. Em seguida, discutiremos outra questão importante, que pretende ser um fechamento para nossa discussão: o indivíduo escolhe ou não uma profissão, isto é, há realmente a possibilidade de escolha por parte do indivíduo, ou as condições sociais e econômicas é que a determinam?

Satisfação pessoal X satisfação material

No momento da escolha da profissão, esse conflito aparece com freqüência. A questão é importante e mais complicada do que uma simples dúvida de um jovem isolado, que não consegue decidir-se.

A questão central é que o indivíduo, quando vende sua força de trabalho, sabe que terá de obedecer e trabalhar da maneira como o comprador (seu patrão) estabelecer e desejar. Sabe que terá de abandonar seus projetos para executar o projeto do patrão, recebendo, assim, o salário que garantirá seu sustento.

A satisfação pessoal também é impedida pela parcelarização crescente do trabalho. As tarefas são mínimas, e o trabalhador perde a visão do todo: se sonhou trabalhar numa fábrica de automóveis, certamente irá produzir apenas uma pequena parte deste automóvel; [pg. 316] se escolheu ser professor, aplicará em sala de aula um plano que uma cúpula de técnicos planejou; se escolheu ser engenheiro numa empresa, fará parte de um projeto que não conhece em sua globalidade e assim por diante.

A parcelarização do trabalho fragmenta o próprio indivíduo, desumanizando-o; “a escolha de uma profissão na verdade se constitui na escolha de um pequeno fragmento”3.

Esses aspectos devem ser considerados, para que não se faça de um problema social um problema individual.

Vocação e dom - uma mistificação da escolha

E retomando Bock:

“a vocação do ser humano é exatamente não ter vocação nenhuma. Explicitando um pouco tal afirmação, queremos dizer que em se tratando da história do ser humano, desde o seu surgimento até agora, o que diferencia o homem de todos os outros animais é exatamente sua não-especialização (biológica) para nenhuma atividade específica.”4

Assim, as abelhas sempre construirão as colméias; as formigas, os formigueiros; as aranhas, as teias; o joão-de-barro, sua casa de barro, e o homem não: o Alexandre será analista de sistemas; a Wilma, psicóloga; o Gustavo, empresário; a Lídia, médica; o Pedro, motorista de caminhão; o Francisco, torneiro mecânico etc.

O homem tem de buscar suas formas de sobrevivência, diferentemente dos animais: E essas formas estão além de seu aparato biológico. [pg. 317]
Com isto estamos querendo dizer que o aparato biológico de um homem pode conter características que facilitem a realização de determinados trabalhos e não de outros. Há indivíduos que nascem com o chamado ouvido absoluto; assim, outros poderão apresentar características inatas que estariam relacionadas com um determinado tipo de trabalho ou profissão. Mas não são essas características biológicas do indivíduo que promovem sua realização profissional e nem tampouco que nos permitem falar em vocação, talento ou dom.

O aparato biológico do indivíduo entra em contato com um meio físico e social, e esta interação biológico-social é que será a fonte das determinações do indivíduo.

A idéia de vocação, no entanto, resiste em nossa sociedade. Os jovens procuram descobrir suas vocações, e os cientistas (principalmente psicólogos) criam técnicas para descobri-las.

A idéia persiste quando se fala da vocação ou talento dos negros para o futebol, vocação das mulheres para serem mães, e, como diz Bock, “pessoas vocacionadas para serem pobres e outras para serem ricas”5.

A idéia de vocação é usada para esconder as desigualdades sociais, ou, melhor dizendo, para justificá-las. Essas desigualdades, tão familiares a nós todos, são produzidas pela estrutura social, que, para se manter, exige que existam indivíduos trabalhando (vendendo sua força de trabalho) e outros acumulando e administrando o capital. No entanto, essas desigualdades têm sido justificadas pela concepção das diferenças individuais.

E assim, se o indivíduo é pobre e torna-se um operário (sua profissão) e o outro torna-se um médico, dizemos que um não tem capacidade, não se esforçou, não tem talento nem vocação para ser médico, por isso é um operário.

Além de todo o preconceito criado em torno destas justificativas (de que o trabalho operário é menor, de menor importância do que o de um médico), estamos escamoteando, escondendo as verdadeiras determinações sociais desses diferentes futuros.

Com a idéia de vocação, podemos dizer ainda que o indivíduo não teve sucesso porque não escolheu a profissão para a qual tinha vocação, isto é, não identificou corretamente sua vocação. [pg. 318]

É preciso sempre considerar as multideterminações que agem sobre o indivíduo — fatores biológicos, sociais, psicológicos — determinando sua escolha profissional e seu futuro.

O indivíduo escolhe e não escolhe

Muitas teorias sobre a escolha profissional consideram que não há liberdade de escolha na sociedade capitalista. O indivíduo é escolhido para uma profissão pelas influências dos fatores sociais, da estrutura de classes, dos meios de comunicação e, de certa forma, da herança social.

Consideramos que Bock está correto quando afirma que “(a teoria crítica) ao negar a existência da liberdade de escolha acaba por também negar a existência do indivíduo. Ele passa a ser entendido como reflexo da organização social, não detendo nenhum grau de autonomia frente a tais determinações. A estrutura social tem um poder avassalador sobre o indivíduo, negando assim a sua existência”6. A nosso ver, o indivíduo existe e é a síntese das influências (multideterminação do humano) sociais, biológicas e psicológicas. Há, portanto, um indivíduo que escolhe. Pense em você na frente de uma loja escolhendo um tênis. Quando você diz “quero este”, você escolheu. A decisão deu-se no nível individual. São suas capacidades cognitivas que lhe permitem relacionar todos os aspectos, seus gostos, seus desejos, seus motivos, as condições objetivas — como o preço e o dinheiro que você tem — e responder: “quero este”.

Agora, veja por que dizemos que você também não escolhe.

Ao escolher, você disse este. Você escolheu dentre aqueles que lhe eram oferecidos — a realidade impõe-lhe limites e possibilidades. Seu grupo social valorizou o “usar tênis” e por isso você o desejou; sua classe social e suas condições econômicas determinaram que fosse este e não aquele mais caro e mais bonito. A televisão propagandeou aquela marca de tênis como a mais jovem, a melhor, a que a seleção de vôlei usa. A moda de seu tempo e de seu grupo estabeleceu que é legal usar aquele tipo de tênis. Assim, sua necessidade de comprar um tênis, sua escolha do tipo, cor e marca foram determinadas pela sociedade: grupo, classe social, meios de comunicação de massa etc. Você não escolheu. [pg. 319]

Assim também ocorre com sua escolha profissional. Você diz: “Um dia vou ser isto na vida”. Você escolheu. E você não escolheu. O momento da escolha é um momento psicológico seu, pessoal. As influências externas (condições objetivas, sua classe social, a influência de pessoas significativas e dos meios de comunicação, a valorização social de algumas ocupações e a desvalorização de outras, as exigências escolares que cada profissão apresenta, as pressões de seu grupo de amigos e de sua família, enfim, todos os fatores externos) são sintetizadas no nível interno do indivíduo, analisadas, relacionadas ainda a fatores internos — tudo o que você já valoriza, já deseja e tudo o que você deseja mas não sabe que deseja (o inconsciente individual) — para, numa grande síntese, resultar na escolha.

Sabemos que, para o jovem, o momento da escolha profissional é um momento que não deve ser supervalorizado, mas que é, sem dúvida, importante. As dúvidas são muitas e, infelizmente, nossa sociedade, pela sua complexidade e pelas dificuldades que apresenta para que o trabalho profissional seja algo prazeroso, torna este momento difícil. Esperamos poder, junto com seu professor, contribuir para tornar este momento da escolha um momento de reflexão madura e que considere todos os aspectos envolvidos nesta escolha (ou pelo menos muitos deles).

Os jovens têm apresentado de diferentes maneiras seus protestos em relação às dificuldades que têm enfrentado para escolher e para ter uma atuação profissional que lhes satisfaça.

Escolhemos trechos de uma música do conjunto “Ultraje a Rigor” que demonstram esse protesto:

“A gente não sabemos escolher presidente A gente não sabemos tomar conta da gente (...)
A gente faz carro e não sabe guiar
A gente faz trilho e não tem trem para botar A gente faz filho e não consegue criar
(...)
A gente faz música e não consegue gravar
A gente escreve livro e não consegue publicar A gente escreve peça e não consegue encenar A gente joga bola e não consegue ganhar. Inútil
A gente somos inútil”7. [pg. 320]

A Escolha é difícil mesmo

Procuramos refletir com você vários aspectos da escolha profissional a fim de ajudá-lo a compreender melhor este momento. No entanto, sabemos que não é fácil enfrentá-lo, principalmente em uma sociedade como a nossa, que exerce pressões constantes sobre os jovens para que se saiam bem em suas profissões, sejam competentes, tenham sucesso... Enfim, são muitas as exigências feitas para o futuro de nossos jovens. Queremos compreenda que que você é importante tensão deste perceber que a momento está ligada às pressões sociais.

Escolher não é fácil mesmo. Imagine-se entrando em uma loja de discos e perguntando ao vendedor sobre os últimos lançamentos. Ele certamente irá lhe mostrar uma estante dedicada a eles. São muitos!

Vamos supor que antes de escolher, não lhe seja permitido colocar os CDs no aparelho de som — você também não dispõe de tempo para ouvi-los. A escolha começa a ficar mais difícil. O vendedor avisa-lhe, então, que, na promoção do mês, você só pode levar um CD. Escolher torna-se tarefa quase impossível! Mas você resolve enfrentar o desafio e, pacientemente, observa as capas, lê a relação das músicas atrás de cada CD, verifica a nacionalidade dos cantores e conjuntos, os ritmos, enfim, procura informar-se antes de tomar a sua decisão. Neste processo de escolha, você vai excluindo os tipos de música que não lhe agradam; os CDs que trazem letras conhecidas e que não lhe interessam; os CDs estrangeiros etc. Assim, você vai diminuindo suas possibilidades de escolha. Mas chegará uma hora em que você, mesmo tendo excluído muitos, terá ainda em suas mãos dois ou três. E agora? Qual comprar? Você poderá perguntar ao vendedor qual deles é o mais barato ou tem mais saída, ou qual CD não corre perigo de esgotar-se. Outra opção será perguntar à pessoa que está ao seu lado se ela conhece aquele conjunto e se o considera legal. Se preferir, poderá recorrer a outras estantes, verificar se aquele conjunto tem muitos discos e quais são. Todos esses recursos são usados por nós para escolher, no caso, um CD.

E na escolha da profissão? Também agimos assim. Você tem à sua frente um conjunto enorme de possibilidades e só [pg. 321] pode escolher uma. Então, pergunta às pessoas o que elas sabem sobre determinada profissão; tem bate-papos com profissionais das áreas de seu interesse e procura saber que trabalhos executam; e, sobretudo, procura informações em jornais e revistas. Você pode, também, buscar um serviço de orientação vocacional, pensar nas disciplinas de que você mais gosta na escola, enfim, você procura obter informações que lhe permitam escolher.

Às vezes pode-se pensar ser melhor conduta não buscar informações sobre as profissões, acreditando-se que o excesso de informações pode confundir. Isto nunca é verdade. Quanto mais informações você conseguir sobre determinada profissão, mais elementos para a escolha você terá, aumentando, assim, a probabilidade de a escolha ser a mais acertada. É isto... a escolha certa é a que foi baseada no maior número possível de informações. Compare com os procedimentos feitos para a escolha do CD e você verá que esta afirmação é correta. Evitar informações, acreditando que se ficará menos em dúvida é um raciocínio falso. E verdade que, diante de um grande volume de informações, você terá de considerar um número maior de elementos, mas é exatamente isso o que lhe garantirá uma boa escolha! A dúvida pode lhe parecer maior por serem muitos os elementos a considerar, deixando-o mais “aflito”. Contudo, você está buscando a melhor escolha.

Escolher também é perder

Outro elemento importante da escolha é que, diante da dúvida ou de um conflito, precisamos nos posicionar por um dos objetos. Devemos ter muito claro que estamos escolhendo ficar com um deles e perder todos os outros. Escolher é, assim, obter e perder algo. Quando nos damos conta disso, a escolha fica mais fácil, pois o que acabamos fazendo, na maioria das vezes, é evitar a perda, o que, em certas escolhas, torna-se impossível.

Exemplo: a escolha de um curso profissional e — precisamos escolher um deles para cursar e todos os outros para perder.

Por isso, temos dito aos jovens que escolher é um ato de coragem. No momento final da decisão, você terá que ter a coragem de escolher também o que perder. Poderíamos aqui comparar a escolha profissional com a escolha de um namorado. Conheço três garotos que me atraem e que poderão ser bons namorados. Começo, então, a levantar as características de cada um: um é romântico e eu gosto de garotos românticos; mas o outro é bonito e eu também gosto de beleza física; o terceiro é mais inteligente e as pessoas o valorizam por isso — e eu também. O primeiro dança bem; o segundo [pg. 322] é alegre; o terceiro, seguro. O primeiro é mais companheiro nas horas difíceis; o segundo, mais otimista; e o terceiro, mais racional na solução dos problemas. Ah! Como é difícil! Tenho de escolher um deles antes que eu perca os três! Preciso perder apenas dois para ficar com um.

É preciso coragem! Faço um balanço de todas as características de cada um, converso com as amigas, visito a família deles, saio com cada um, lembro dos outros namorados que já tive, dos defeitos que possuíam e me incomodavam... e por aí vou, até a hora em que resolvo, em que decido. Neste momento, escolhi o que perder e precisei de coragem para fazer esta escolha.

Escolher uma profissão também é assim. Nem mais, nem menos. Não é mais nem menos importante do que esta escolha de parceiros. É uma escolha que pode ser refeita, retomada, modificada.

A nossa vida é movimento e os critérios usados hoje podem ser diferentes dos de amanhã. Uma escolha bem feita é, com certeza, uma boa escolha para o momento atual. Poderá não ser para o amanhã. Mas, então, o que fazer? Vive-se a escolha que se fez e se constrói o projeto de amanhã considerando a escolha feita hoje, para que ela sempre faça parte de nosso cotidiano.

Muitas informações e muita coragem para ganhar e para perder são bons ingredientes para uma boa escolha profissional... ou melhor, para qualquer escolha.

Psicologia - Psicologia do Desenvolvimento
Desenvolvimento - Adolescência, 
7/29/2021 2:52:02 PM | Por Ana Mercês Bahia Bock
Adolescência - tornar-se jovem

Quando lemos um livro, particularmente um livro que fale de Psicologia, esperamos nos encontrar em suas páginas. Mas geralmente esses livros estão distantes de nossas vidas. Falam de coisas que não sentimos, usam termos que não escutamos, enfim, estão descolados de nossa realidade. Esse distanciamento entre a vida e a teoria é conseqüência do trabalho científico, que produz abstrações sobre a realidade. A ciência não reproduz a realidade, mas afasta-se dela para poder compreendê-la. Discutimos um pouco esse aspecto no primeiro capítulo deste livro, quando procuramos separar o conhecimento científico do conhecimento do senso comum.

Entretanto, em nenhum outro capítulo esta questão fica tão evidente quanto na discussão sobre a adolescência. Enquanto estamos discutindo o tema cientificamente, você, jovem, está vivenciando [pg. 290] o fenômeno. O risco aqui é o de nos distanciarmos completamente do leitor ou, com um pouco de sorte, estabelecer uma conversa franca, honesta, sem moralismo. É muito difícil estabelecer o limite entre esses dois extremos. Por um lado, fala a cabeça racional do cientista e, por outro, o desejo do educador do encontro com a juventude.

Abrimos o capítulo com uma poesia de Paulo Leminski que traduz um pouco as inquietações da juventude. Loucura e liberdade ao lado de controle e responsabilidade. Uma vontade de ser criança e adulto ao mesmo tempo. Essa parece ser a linha. Levantar as questões teóricas que mais se aproximem desse conflito e buscar na poesia, na literatura, aquele toque de vida e de emoção que falta na teoria. Venha conosco!

quando eu tiver setenta anos
então vai acabar esta adolescência
vou largar da vida louca
e terminar minha livre docência
vou fazer o que meu pai quer começar a vida com passo perfeito
vou fazer o que minha mãe deseja aproveitar as oportunidades
de virar um pilar da sociedade
e terminar meu curso de direito
então ver tudo em sã consciência quando acabar esta adolescência
Paulo Leminski

O que é a adolescência?

Um grupo de psicólogos e pesquisadores da Universidade de Roma realizou uma pesquisa com jovens italianos, originando um extenso volume chamado A condição juvenil: crítica à Psicologia do adolescente e do jovem, publicado em 1980. Nesse livro, procuram discutir a definição de adolescente e de jovem.

A primeira conclusão dos autores é a de que as palavras adolescência e juventude não têm uma definição precisa. Vários estudiosos dizem que a adolescência é a fase que vem depois da infância e antes da juventude. Chegam a afirmar que a adolescência começa por volta dos doze anos e termina por volta dos dezoito. Já no senso comum, no dia-a-dia das pessoas, o termo adolescência é pouco usado. Dá-se preferência ao termo juventude para designar tanto o menino ou a menina após a puberdade quanto o jovem adulto.

O fato é que não há um critério claro para definir a fase que vai da puberdade até a idade adulta. Essa confusão acontece porque a adolescência não é uma fase natural do desenvolvimento humano, mas um derivado da estrutura socioeconômica. Em outras palavras, nós não temos adolescência e sim adolescentes. [pg. 291]

Parece contraditório afirmar que não existe adolescência, mas que existem adolescentes. Acontece que os critérios que poderiam definir essa etapa não fazem parte da constituição do indivíduo, mas são construídos pela cultura. Não podemos falar em uma fase natural do desenvolvimento humano denominada adolescência. Mas, quando uma determinada sociedade exige de seus membros uma longa preparação para entrar no mundo adulto, como na nossa, teremos de fato o adolescente e as características psicológicas que definirão a fase, que, a título de compreensão, diremos que foi artificialmente criada.

Acompanhando ainda os pesquisadores da Universidade de Roma, podemos dizer que a evolução do indivíduo na nossa cultura dá-se através de uma série de fases: a pré-natal, a do neonato (a criança assim que nasce), a infância, a pré-adolescência, a adolescência, a adulta e, por fim, a velhice.

Os critérios que poderiam definir a adolescência são construídos pela cultura. Mas seria possível atribuir essas fases a outras civilizações? Para ficar somente com um exemplo, citaremos o estudo realizado pelo etnólogo Bronislaw Malinowski1 (1884-1942), acerca da cultura dos nativos trobriandeses, que vivem em ilhas do noroeste da Nova Guiné na Oceania:

No caso dos jovens trobriandeses, a puberdade começa antes que na nossa sociedade mas, nessa fase, as meninas e os meninos trobriandeses já iniciaram sua atividade sexual. Não há, como em outras culturas primitivas, um determinado rito de passagem para a fase adulta. Apenas, gradualmente, o rapaz vai participando cada vez mais das atividades econômicas da tribo e até o final de sua puberdade será um membro pleno da tribo, pronto para casar-se, cumprir as obrigações e desfrutar dos privilégios de um adulto.

Essa fase descrita pelo etnólogo, se é possível estabelecer um paralelo, estaria para a nossa sociedade, em termos etários, definida como pré-adolescente. Entretanto, no nosso caso, as relações sexuais vêm bem depois dessa fase. Outra diferença é que os nativos das ilhas Trobriand, devido ao tabu que representam as relações sexuais cora as irmãs, saem de casa na puberdade, para uma espécie de república organizada por um jovem mais velho não casado, ou por um jovem viúvo. Essa “república” tem o nome de bukumatula, e lá os jovens, moças e rapazes, moram sem controle dos pais. Mas, até que casem e organizem suas próprias casas, trabalham para as suas famílias. [pg. 292]

Esse exemplo mostra que a adolescência não é uma fase natural do desenvolvimento humano, deixando claro o alerta que nos fazem os autores italianos, ao afirmar:

“Para evitar qualquer equívoco é necessário esclarecer que evidentemente não se nega a existência, em qualquer cultura, da puberdade e da passagem da pré-adolescência para a idade adulta. O que se afirma é que não existe necessariamente uma fase de desenvolvimento entre a pré-adolescência e a idade adulta que tenha uma duração mais, ou menos, longa e tenha o status psicossocial diverso da pré-adolescência e da idade adulta”2.

Isto é, se pensarmos no caso dos trobriandeses, verificaremos que entre eles ocorre um salto da pré-adolescência (que é mais prolongada que a nossa) para a fase adulta. Dessa forma, não existiria adolescência entre eles. Podemos considerar, então, que a adolescência é uma fase típica do desenvolvimento do jovem de nossa sociedade. Isso porque uma sociedade evoluída tecnicamente, isto é, industrializada, exige um período para que o jovem adquira os conhecimentos necessários para dela participar.

Essa concepção parece correta, já que o adolescente precisa, para enfrentar determinadas profissões, de uma preparação muito mais avançada que a das sociedades primitivas. Mas não se pode dizer que todo adolescente de nossa sociedade passa pelo mesmo processo, já que uma boa parte das tarefas de um adulto não exige um tempo muito longo de preparação. É só pensar nos bóias-frias, nos serventes da construção civil, nos trabalhadores braçais, de maneira geral. Muitos jovens [pg. 293] não fazem curso de nível superior (só uma minoria atinge esse nível de escolaridade em nosso País). Muitos deixam a escola antes de terminar o primeiro grau e já entram para o mercado de trabalho.

Em outras palavras, isso significa dizer que, mesmo em nossa sociedade, o período de adolescência não é igual para todos os jovens.

Além de tudo isso que foi dito, uma outra questão deve ser colocada: a necessidade de uma maior preparação cultural e técnica de nossa sociedade não está ligada somente a essa fase de transição da pré-adolescência para a idade adulta. Cada vez menos podemos identificar a idade adulta como a idade do conhecimento adquirido, pois a rapidez da evolução científica e tecnológica impõe ao adulto ligado a esse setor uma formação permanente.

Por tudo isso, podemos concluir que fica difícil estabelecer um critério cronológico que defina a adolescência, ou um critério de aquisição de determinadas habilidades, como ocorre com o desenvolvimento infantil. Dá-se o nome de adolescência ou juventude à fase caracterizada pela aquisição de conhecimentos necessários para o ingresso do jovem no mundo do trabalho e de conhecimentos e valores para que ele constitua sua própria família. A flexibilidade do critério, que nos pode levar a categorizar alguém com vinte e cinco anos como adolescente e alguém com quinze como adulto, levou-nos a evitar até aqui o termo adolescência, que passaremos a usar agora cora as restrições já apontadas.

Juventude e psicologia

Apesar das dificuldades apontadas acima para definir a fase de adolescência em nossa sociedade, o fato é que existe uma fase de preparação para que se considere uma pessoa adulta. Mesmo que ela tenha uma duração diferente de um setor social para outro (e mesmo intra-setor), ela é razoavelmente longa. Esse fenômeno social cria um correspondente psicológico que marca o período.

Os jovens de classe média, por exemplo, passam por um longo período de preparação, quando escolhem uma carreira universitária. Tal preparação pode mesmo ultrapassar essa fase de juventude. O jovem da classe operária pode cursar uma escola técnica, onde aprende o necessário para tornar-se um ferramenteiro, e esse aprendizado não dura tanto tempo quanto o curso de Medicina, por exemplo. Outros jovens, ainda, abandonam a escola muito cedo e já trabalham oito horas diárias antes de completarem os catorze anos de idade — apesar de o Estatuto da Criança e [pg. 294] do Adolescente3 garantir que nenhuma criança poderá trabalhar antes dessa idade. Essa entrada prematura no mercado de trabalho ocorre porque a realidade econômica brasileira não fornece condições para que as famílias empobrecidas mantenham seus filhos na escola, obrigando essas crianças e adolescentes a contribuírem com o orçamento doméstico como forma de garantir que toda a família e, particularmente, os irmãos menores, não passem fome. Trata-se de uma injustiça social criada pela estrondosa diferença de renda, constatada em nosso País, entre a população mais rica e a mais pobre.

Para cada um desses segmentos — a classe média, a classe operária e o segmento empobrecido da população — a adolescência terá uma duração peculiar. Um garoto que precise enfrentar o mundo do trabalho muito cedo e em condições bastante adversas, terá um amadurecimento acelerado. Um adolescente da classe operária que se prepare para trabalhar depois dos 16 anos, conseguirá uma condição de vida melhor em relação a este garoto, alcançando um tipo de desenvolvimento mais próximo do padrão das classes abastadas. Um jovem de família rica poderá se dar ao luxo de começar a trabalhar aos 28 anos, após concluir a pós-graduação, atrasando, assim, o seu amadurecimento. Evidentemente, o ingresso no mundo do trabalho não é o único critério para definir o tempo de adolescência dos jovens de nossa sociedade — precisamos levar em consideração suas características individuais. O padrão, contudo, é culturalmente construído (expectativa de desempenho de papéis) e historicamente determinado. [pg. 295]

Mas isso não contradiz o que acabamos de afirmar? A resposta é sim e não. Quando vimos o exemplo da cultura trobriandesa, pudemos notar que lá existe um critério quase único para todos os jovens, e que uma estrutura social relativamente simples não exige uma grande preparação para o ingresso na fase adulta. Vimos também que a passagem ocorre através de rituais e tabus (a saída do jovem da casa dos pais e a proibição das relações sexuais com as irmãs).

No caso da nossa cultura, muito mais complexa, não é possível um ritual único de passagem para a fase adulta. O critério básico é o determinante econômico, e, assim, haverá condições diferentes de desenvolvimento do jovem para diferentes classes sociais. Mas, ao mesmo tempo, a cultura cria um critério mais geral, que atinge todos os níveis socioeconômicos. Na nossa sociedade, tais critérios geralmente estão baseados nas condições de vida das classes mais privilegiadas. Desta forma, um rapaz operário, que se tenha casado aos dezesseis anos e sustente a sua casa com seu trabalho, ouvirá muitas vezes pessoas dizerem com espanto: “Nossa, mas tão jovem e já está casado!”.

Esta expectativa social de que o jovem ainda não está preparado para as responsabilidades da vida de adulto, apesar de não corresponder à realidade de muitos jovens, acaba sendo um forte elemento de identidade do adolescente. Psicologicamente o jovem vive a angústia que representa a ambigüidade de não ser mais menino e ainda não ser adulto. Assim, o jovem que assumiu responsabilidades de adulto aos dezesseis anos irá imaginar-se como alguém que “perdeu” sua juventude.

Há um paradoxo aqui. A sociedade obriga alguns jovens a se tornarem adultos muito cedo e, ao mesmo tempo, considera esse jovem adulto como adolescente. Então não temos a adolescência como uma fase definida do desenvolvimento humano, mas como um período da vida que apresenta suas características sociais e suas implicações na personalidade e identidade do jovem. É um período de transição para a fase adulta que, na sociedade contemporânea, prolongou-se bastante se tomarmos, como parâmetro, as sociedades primitivas. Atualmente, inclusive, é possível falar-se numa espécie de “adultescência”, que seria o prolongamento da adolescência na fase adulta. Este fenômeno, observado particularmente nos países ricos, também pode ser constatado, com menor incidência, em nosso País. Muitos são os fatores psicológicos, sociais e econômicos que determinam esse processo nos países ricos, como a diminuição da oferta de emprego, uma certa garantia social que possibilita a alguns indivíduos viverem relativamente bem mesmo sem trabalhar; uma excessiva valorização da cultura jovem, o que leva o adulto a desejar permanecer eternamente jovem. Entretanto, podemos [pg. 296] dizer que esse fenômeno não leva à ampliação do tempo de passagem para a fase adulta, mas demonstra que precisamos repensar os critérios que definem o que é ser jovem e adulto numa sociedade em constante transformação, na qual o trabalho já não exerce mais o papel que exercia no início da era industrial.

Essa fase de preparação para o mundo adulto — a adolescência ou juventude — coloca o jovem num certo estado de “suspensão” em relação aos valores e normas que ele deve adquirir para entrar para o mundo adulto.

O jovem até agora avaliou o mundo através dos valores da sua família, mas, ao confrontá-los com os valores e normas dos novos grupos que passa a freqüentar, verifica que os valores familiares não são os únicos disponíveis e que, muitas vezes não se adaptam a funções que são agora exigidas. São muitos os exemplos de valores ou normas contraditórios, se compararmos um grupo de jovens colegiais e suas famílias, mas muitos também serão semelhantes. Quando temos uma norma ou valor muito forte, tanto para a família quanto para o grupo juvenil, não se correrá o risco de uma dissonância entre os dois grupos. Contudo, valores e normas importantes e consonantes para esses grupos podem levar a situações dissonantes e contraditórias.

A coragem, a luta para vencer na vida, a noção de construir-se a si mesmo, ser independente, tomar suas próprias decisões e responsabilizar-se por elas são valores presentes tanto no grupo familiar quanto nos grupos juvenis. Já o uso da droga poderá ser uma norma para determinados grupos juvenis, mas certamente será proibido pela família. Entretanto, o jovem que respeite os valores familiares de tomar suas próprias decisões e responsabilizar-se por elas (valores também do grupo juvenil), poderá optar pelo uso de droga, como prática grupal, apenas para demonstrar sua coragem e capacidade de decisão. Ele, ao mesmo tempo que atendeu a um valor familiar (coragem, decisão, independência), transgrediu uma norma do grupo familiar de não utilização de drogas.

A tendência do jovem será no sentido de evitar a dissonância, procurando adequar essas contradições, ora evitando a norma do grupo juvenil, ora questionando os valores familiares. Como isso nem sempre é possível, será submetido a um estado de angústia que representa a ambigüidade de não ser mais menino e ainda não [pg. 297] ser adulto. Ele quer tomar decisões por si mesmo e é incentivado para isso pela família, pela escola, mas, quando procura o novo, o proibido, ele é duramente criticado (e muitas vezes punido). Nesse plano, a busca de experiências significativas causa-lhe medo. E o desejo do novo e o medo do desconhecido.

A propósito, a droga e a AIDS representam dois fortes fatores de risco à saúde dos jovens. Isto ocorre exatamente pelas características sociais e psicológicas dessa fase da vida. Da iniciação sexual, que ocorre cada vez mais cedo, à opção pelo casamento, que ocorre cada vez mais tarde, há um período longo, no qual o compromisso estabelecido por uma relação duradoura (como o noivado, há algum tempo) ainda não está decididamente instalado. Como decorrência destes fatores, os jovens decidem relacionar-se sexualmente e, com mais freqüência, com diferentes parceiros, aumentando o risco de contágio pelo HIV (vírus que pode provocar a AIDS). Apesar das inúmeras campanhas públicas de prevenção à AIDS (a principal delas incentiva o uso da camisinha), sabe-se que o comportamento do jovem tende a ser negligente e que ele confia, basicamente, na sorte. Um dos fatores psicológicos que o leva a essa negligência é a fantasia de onipotência. Exemplo: “isto acontece com os outros, mas comigo não vai acontecer!” Essa fantasia é positiva em muitos momentos, mas, neste caso, torna-se, particularmente, muito perigosa.

O mesmo ocorre com o uso de drogas. O mercado das drogas profissionalizou-se. Isso significa dizer que este mercado é controlado por cartéis que vivem na clandestinidade e no mundo do crime. A comercialização das drogas transformou-se num negócio altamente rentável. A droga perdeu o ar “alternativo” que lhe foi atribuído pelo movimento de contracultura da década de 70, transformando-se numa mercadoria de consumo como outra qualquer — com o agravante de ser ilegal e altamente prejudicial à saúde. Pode-se dizer que, da mesma forma que há o marketing do cigarro, do refrigerante etc., existe o “marketing” da droga, que também utiliza as mesmas técnicas de persuasão como fatores de alienação, diferenciando-se do primeiro por ser feito na clandestinidade (veja capítulo 19, Meios de Comunicação de Massa). Assim como as drogas legalizadas passam a representar símbolos de auto-afirmação na adolescência — citamos como exemplos o cigarro e a bebida alcoólica — a droga ilegal também ocupa seu espaço nesse circuito. Bem, são muitos os símbolos de auto-afirmação na adolescência e muitos deles são legítimos (vale ressaltar aqui que outras culturas também utilizam esquemas para provar o valor do jovem).

Ocorre que, numa sociedade como a nossa, na qual impera a lei do mercado, o jovem (e também o adulto e a criança) fica à mercê dos esquemas [pg. 298] de convencimento do sistema comercial, que explora muito bem esse campo psicológico da necessidade de símbolos e, particularmente, de símbolos auto-afirmativos. Por tratar-se de comércio, ao “vendedor” interessa vender e vender cada vez mais. Assim, o mercado é abastecido não só com drogas sofisticadas e caras, como os opiácios, mas com drogas baratas, acessíveis a qualquer um, como o crack. O grande problema encontra-se, sem dúvida, no fator de alienação produzido pelo esquema comercial, que captura o jovem (e não somente ele) no seu ponto frágil — a moral. Como consumidor, ele enfrentará o inevitável problema de saúde gerado pelo uso freqüente de um produto que poderá levá-lo não só à dependência física e psicológica, mas à morte.

Antes mesmo de perceber em seu corpo as conseqüências orgânicas do consumo de drogas, o usuário entrará em um circuito no qual a dose ou quantidade anteriormente consumida já não lhe propiciará o efeito desejado, o que o levará a aumentar, cada vez mais, a quantidade e a freqüência do consumo para satisfazer-se. Essa ciranda o conduzirá a um estado de permanente letargia, impedindo-o de produzir (estudar ou trabalhar) e tornando-o anti-social (perde os amigos e os laços familiares).

É preciso mencionar aqui que não é necessário possuir um perfil psicológico específico para se tornar um narcodependente. O consumidor da droga não é alguém que está infeliz ou que precise da droga para superar problemas de qualquer ordem. A droga (incluindo o cigarro e o álcool) é um produto que fornece um prazer imediato e é esse prazer que irá garantir o consumo (além de fatores desencadeados pelo próprio grupo). Assim, não estão livres da dependência mesmo aqueles que estão absolutamente seguros de que não têm o perfil [pg. 299] do consumidor pesado (os que consomem com muita freqüência) e que só consomem drogas moderadamente. Há fatores orgânicos que podem estimular o consumo, levando o organismo a sentir “falta” do produto. Assim, quando a pessoa se der conta, não terá como abandonar o consumo. As neurociências estão avançando muito nos estudos dos neurotransmissores e, provavelmente, não vai demorar muito tempo para que seja elucidada a maneira como se dá a dependência. Tal avanço certamente nos levará na direção da superação dessa dependência. O prejuízo psicológico também é considerável e, no momento, a “vontade” de abandonar o vício tanto do álcool, quanto das substâncias narcóticas ou químicas, é o principal fator de cura.

Situação do jovem em nossa sociedade

Em termos evolutivos, as bases para a cognição, de acordo com Piaget, estão prontas por volta dos 11/12 anos de idade. Mas o jovem não será considerado preparado, pela sociedade, para assumir a posição de um adulto. No caso brasileiro, a maioridade civil é dada aos 21 anos, e a maioridade penal aos 18.

Esse padrão obedece à lógica da sociedade de classes, onde a lei geral é a da dominação. Neste caso, a dominação do adulto sobre o jovem. O adulto determina o que devemos esperar do jovem; o problema torna-se aqui uma questão política para a juventude. Frase como “Jovem, você é o futuro da nação!” tem um conteúdo verdadeiro, mas com alguma coisa como “Veja bem o que você vai fazer, estamos de olho em você”. A família, a escola, as instituições em geral, que procuram formar o jovem, buscam ao mesmo tempo controlá-lo, para que o jovem de hoje seja o adulto comportado de amanhã.

Mas o jovem é o que tem a vida pela frente. Ele tem direito ao sonho, à utopia. O compositor de música popular brasileira Raul Seixas diz em uma de suas músicas:

“um sonho que se sonha só é só um sonho que se sonha só mas um sonho que se sonha junto é a realidade”

Os jovens parecem perceber essa sua força. Em alguns momentos eles resolvem sonhar juntos, e a utopia acaba em transformação social. Em outros, sucumbem à ordem social vigente que não suporta o seu ideal transgressivo. [pg. 300] Para garantir esse ideal transgressivo, o jovem organiza-se em grupos, como as gangues, os grupos punks, os grupos de motoqueiros, os grupos de política estudantil etc., busca uma subcultura e uma identidade própria. Há aqui uma especificidade no processo de socialização, que, nesse período, combina os valores tradicionais da sociedade às expectativas (produzidas pela subcultura) de um grupo que está por acontecer.

Este fenômeno tem se acentuado em grandes cidades. Na periferia da cidade de São Paulo, por exemplo, ocorre uma interessante forma de grupalização de jovens através de um movimento músico-cultural chamado rap. Alguns grupos, como os Racionais MC, que nasceram nos bairros periféricos, são hoje conhecidos nacionalmente e têm vários CDs gravados. O movimento rap não se configura como um movimento cultural de elite ou tradicional. Ele aglutina uma enormidade de pequenos grupos que se reúnem freqüentemente e discutem uma espécie de proposta de ação, utilizada por eles como um programa mínimo. As letras dos rappers têm sempre um conteúdo de crítica à circunstância de exclusão e opressão vivida por esses jovens moradores da periferia e, com a grupalização, eles não somente irradiam essa crítica com suas músicas, como discutem formas de defesa contra a exclusão social.

Em outros momentos, a organização pode não ter esse caráter propositivo e estar capturada pelas forças reativas da própria sociedade, forças essas contaminadas de caráter conservador e discriminatório, como ocorre com as gangues do tipo skin-heads, promotoras de um ideário fascistóide.

Por força da circunstância de vida e da forma como se expressa o campo social, o adolescente acaba por apresentar uma certa labilidade. Em alguns momentos não acredita em nada a não ser nele mesmo e, em outros, torna-se presa fácil dos apelos consumistas dos meios de comunicação de massa. O jovem está no meio do caminho. Atrás de si tem toda uma infância, onde a família, a escola e os pequenos grupos de amigos deram-lhe proteção, segurança, ao mesmo tempo que lhe ofereceram um conjunto de valores, crenças e referências que formaram sua identidade. Diante de si tem um futuro como adulto, adaptado à sociedade, em que segurança e proteção são pretensamente oferecidas pelas instituições sociais — a fábrica, o escritório, a família —, da qual se espera que ele seja o ator social.

No seu período de juventude, a sociedade permite-lhe transgressões, oposições, questionamentos, criação de subculturas com seus dialetos e trajes característicos. É como se a sociedade lhe dissesse: “Aproveite agora, que depois será tarde demais, precisaremos de você para outras tarefas” (a produção da riqueza social).

Entretanto, suas condições intelectuais permitem-lhe enfrentar esta etapa com criatividade, seus afetos dão-lhe a agressividade necessária para o questionamento e a oposição, seus pares dão-lhe a certeza de que ele está certo. Mas o mundo adulto o atrai. Por se perceber no meio do caminho, tem então muitas dúvidas. Quais os seus valores e quais aqueles que lhe estão sendo impostos? Quais suas certezas? O que vai ser, afinal de contas, quando se tornar adulto?

A superação dessa crise, assim é o que a sociedade espera dele, significa o abandono de suas utopias, de seus gestos transgressivos, ou seja, a adaptação do jovem à condição adulta, sua entrada para o mundo do trabalho e a possibilidade de formar sua própria família.

Esta perspectiva parece sombria, já que não prevê a possibilidade de transformação social, mas cabe ao jovem lutar pela alteração das condições que criam esse vácuo nas nossas vidas (a fase da juventude na sua forma atual), buscando uma sociedade que saiba preparar seus jovens ao mesmo tempo que lhes garanta a participação social. E então poderíamos, como Leminski, dizer: “quando eu tiver setenta anos então vai acabar esta adolescência (...)” [pg. 302]

Psicologia - Psicologia do Desenvolvimento
Temas gerais - , 
7/29/2021 1:06:46 PM | Por Ana Mercês Bahia Bock
Os meios de comunicação em massa

Os meios de comunicação de massa ganharam uma importância formidável nos últimos tempos. Não é por acaso que alguns chamam a imprensa de “o quarto poder”. Trata-se de uma alusão à importância que a difusão da informação ganhou no mundo contemporâneo. Uma parte dos conteúdos difundidos pelos meios de comunicação de massa é estudada no campo das teorias da comunicação, da semiótica e da Psicologia. Nesse sentido, a Psicologia tem sido muito utilizada em função do seu conhecimento sobre a subjetividade humana. É disso que trata esse capítulo sobre os meios de comunicação de massa, conhecidos também como mídia (termo que advém do inglês mass media e que significa meios de massa ou meios de comunicação de massa).

A Psicologia é utilizada para a análise do material jornalístico quando, por exemplo, o jornalista avalia o conteúdo da matéria que está escrevendo e ao qual aplica noções de Psicologia; ou quando, em casos mais específicos, consulta o psicólogo especialista no assunto em pauta. Rigorosamente, poderíamos dizer que se trata do mesmo fenômeno observado no cotidiano e já comentado nos primeiros capítulos deste livro. As pessoas, em geral, possuem um certo conhecimento da Psicologia e o aplicam na solução de problemas do cotidiano. O jornalista e o publicitário apropriam-se desse conhecimento e o utilizam com uma certa competência. Poderíamos [pg. 276] mesmo afirmar que, nesses casos, a Psicologia é usada por eles com mais competência do que pelo próprio psicólogo.

Ora, pode parecer estranho afirmar que profissionais da mídia conhecem mais Psicologia que o próprio psicólogo, mas isso é fácil de entender. O psicólogo é o profissional que trabalha com a Psicologia e, nesse campo, certamente é o mais competente e indicado. Mas, no caso da mídia, o profissional que entende daquele assunto é outro. Um psicólogo não saberia fazer um bom comercial por não ser a publicidade a sua área de atuação. O publicitário, entretanto, produz um bom comercial, não só por conhecer as técnicas desenvolvidas pela propaganda, mas por conseguir “captar” a subjetividade das pessoas as quais pretende alcançar.

O psicólogo, é verdade, não saberia fazer o comercial, mas, uma vez finalizado, ele torna-se um bom analista do campo de subjetividade produzido por este comercial. A partir do momento em que os meios de comunicação de massa perceberam a importância de se trabalhar bem a questão da subjetividade, a presença do psicólogo na mídia passou a ser requisitada com mais freqüência. Exemplo: as agências de publicidade — que constituem o mercado de trabalho mais desenvolvido para o psicólogo especializado em mídia — contratam-no para analisar qualitativamente as peças publicitárias ainda em processo de produção. Mesmo não tendo as mesmas habilidades de um profissional de publicidade para produzir um comercial, o psicólogo vem se tornando o profissional que assessora o setor de criação, ocupando cada vez mais espaços na mídia.

Meios de comunicação e subjetividade - os limites éticos

Uma questão importante e freqüentemente lembrada quando se fala do uso da Psicologia nos meios de comunicação de massa e da participação de psicólogos neste trabalho refere-se à ética. Qual o limite do trabalho com a subjetividade? A Psicologia e o psicólogo têm poder de controlar as pessoas, de fazê-las comprar ou acreditar em algo que absolutamente não lhes interessa? [pg. 277]

Não é tarefa fácil responder a esta última pergunta, pois o seu enunciado é, em parte, falso e, em parte, verdadeiro. Falso porque não se pode conferir tamanho poder nem à Psicologia nem aos meios de comunicação de massa. É falso, também, afirmar que uma mentira repetida por muito tempo torna-se verdade. A história tem demonstrado de forma cabal que não se pode enganar as pessoas o tempo todo. O jornalista Carlos Eduardo Lins e Silva1 fez um estudo muito interessante sobre o Jornal Nacional, da Rede Globo, quando assistido por trabalhadores da Baixada Santista, no Estado de São Paulo. Na época em que o estudo foi realizado, construía-se o mito de que a Rede Globo, com sua audiência imbatível (a audiência do JN chegava a 70% dos televisores ligados), monopolizava a informação veiculada no Brasil. Assim, o que era noticiado no JN passava a ter o estatuto de verdade, à medida que não seria contestado por qualquer outro meio de comunicação (considere que os 30% restantes da audiência estavam voltados, geralmente, para a programação não-jornalística e que as pessoas não-sintonizadas no JN eram atingidas pelos comentários das que o assistiram). Entretanto, o estudo de Lins e Silva demonstrou que os trabalhadores, quando viam um noticiário sobre greve com conteúdo claramente a favor das posições governistas e empresariais, decodificavam a mensagem, depurando-a da opinião da emissora e analisando o conteúdo pelo que a notícia oferecia de objetivo. Os trabalhadores pesquisados faziam uma releitura da informação e a reconstruíam de acordo com a visão sindical da cultura operária. Estes sujeitos, os operários, tinham uma outra fonte de informação (no caso, a imprensa operária, o trabalho sindical e a própria vivência) para avaliar o material jornalístico veiculado pela TV.

É claro que, em outras situações, não temos a informação alternativa à nossa disposição e tendemos a acreditar na informação fornecida. Mas, de maneira geral, as pessoas sabem que, quando se trata de um tema polêmico, elas não devem acreditar piamente na informação veiculada pelo meio de comunicação de massa.

O problema torna-se maior quando as pessoas não consideram o tema polêmico e, neste caso, ficam desarmadas (com baixo nível de criticidade) e sem condições de avaliar a mensagem transmitida. As mensagens sobre saúde cabem nesta alternativa e, eventualmente, a mensagem veiculada cria conceitos que podem ser prejudiciais à população. E freqüente escutarmos alguém dizendo a outra pessoa como cuidar de determinado problema de saúde a partir do que “deu na televisão”. [pg. 278]

A propaganda e o controle da subjetividade

A publicidade também encontra-se nesse campo. Os comerciais procuram, sempre que possível, fugir de questões geradoras de conflitos
na audiência. Apresentam geralmente um mundo idílico, perfeito, sem contradições, associando o produto ou serviço a essa atmosfera radiante e perfeita. Ao mesmo tempo, cuidam de produzir alguma verossimilhança com a realidade para que as pessoas não se sintam distantes deste mundo que pode ser alcançado. É nesse momento que nossa subjetividade é capturada. Essa captura se dá de uma forma muito sutil e, geralmente, fica muito difícil opor resistência a ela. Neste caso, diríamos que a resposta à questão colocada anteriormente é verdadeira. A Psicologia é utilizada pelo publicitário (e mesmo pelo psicólogo) para alcançar um tipo de convencimento que nos leva ao limite da ética.

Porém, mesmo neste caso, podemos dizer que a resistência é difícil, mas não impossível. Os meios de comunicação de massa não têm o controle absoluto da nossa subjetividade. A máquina de propaganda mais eficiente até hoje construída, implantada com o Terceiro Reich, na Alemanha nazista, pretendia ter o controle absoluto da subjetividade do povo alemão e, apesar de ter sido muito eficiente, foi derrotada!

Persuasão

O principal mecanismo psicológico utilizado pelos publicitários e por profissionais da mídia é a persuasão. Trata-se de um mecanismo de convencimento que pode ou não ultrapassar as bases racionais da difusão de uma mensagem.

Quando se trata das bases racionais da mensagem, as quais utilizam-se apenas do campo cognitivo para garantir sua eficiência, isto é, alcançar o receptor, tal recurso visa atingir o plano da consciência do receptor da mensagem. Assim, ele pode compará-la com a informação disponível e verificar se ela lhe é ou não importante. Neste caso, utiliza-se uma informação objetiva, garantindo a veracidade do que é informado. Quando um locutor de TV diz que, de acordo com informações do satélite meteorológico, há previsão de chuvas fortes no decorrer do dia, consideramos a informação verdadeira e nos preparamos para o evento. Atualmente, essas previsões estão cada vez mais eficientes. Vários comerciais na TV ou anúncios veiculados em revistas ou jornais trabalham, fundamentalmente, com as bases racionais. Quando o publicitário afirma num comercial que a bateria do celular tem durabilidade de 8 horas, [pg. 279] ele está fornecendo uma informação de caráter objetivo e os usuários de telefone celular conhecem claramente esse parâmetro da durabilidade da carga da bateria. Esta informação pode ser fundamental na opção de compra e, como se trata de um produto caro, o consumidor geralmente irá checar a veracidade da informação. Todo o processo é bastante racional.

Persuasão e subjetividade

Entretanto, é possível e freqüente a utilização de recursos de base irracional (de fundo emotivo), que são associados ao conteúdo cognitivo da mensagem. Tal forma de convencimento tenta persuadir o receptor da mensagem mais pelo campo da subjetividade do que pelo da objetividade da informação. A publicidade tornou-se a área da comunicação que mais explora esse recurso. A técnica mais comum é a de associar um determinado valor social ao produto anunciado. Assim, um comercial de TV poderá veicular um clima de intenso glamour, com situações sofisticadas, como um casal lindíssimo em trajes de gala, cruzando as taças de champanhe a bordo de um jatinho particular. Acrescente à cena um pôr-de-sol maravilhoso, troca de gestos e olhares sedutores. A música, como não poderia deixar de ser, é extremamente romântica. No instante em que o rapaz tira o maço de cigarros da casaca, o jatinho trepida e sua companheira derruba a taça de champanhe sobre ele. Ela ri deliciosamente, levanta-se dando a impressão de que iria ajudá-lo a secar-se. Em vez disso, toma-lhe, carinhosamente, o maço de cigarros. Os dois riem. Por fim, um locutor, em off (só ouvimos a voz), diz: — Gente moderna fuma Device! Veicula- se um clima encantador e a ele associa-se a marca do cigarro. Assim, define-se o perfil psicológico do fumante daquela marca — uma pessoa que gosta de coisas glamourosas, apesar de não dispor de condições econômicas para comprá-las. Tal pessoa poderá se contentar com a marca de cigarro do anúncio para se identificar com o perfil psicológico veiculado. Evidentemente, esse processo é muito sutil e as pessoas, em geral, não se dão conta de que estão sendo capturadas por uma artimanha publicitária.

O recurso funciona porque não o percebemos claramente, mas ele é insistentemente utilizado: uma marca de bebida associa-se ao padrão de masculinidade; um perfume promete conquistas amorosas; um achocolatado oferece um mundo de diversões; um refrigerante garante que, ao bebê-lo, você fará muitos amigos. Sexo, poder, riqueza e aventura são ofertas freqüentes dos comerciais. Um mundo de prazeres que não encontramos em nosso cotidiano e que, no entanto, são apresentados como possibilidades. [pg. 280]

Como se dá o fenômeno? Nosso cotidiano é repleto de regularidades, de regras, de repetições. Vamos à escola todos os dias, jantamos com a família, assistimos à novela das oito, lemos o texto da aula de amanhã e dormimos porque, logo cedo, reiniciaremos a rotina. A aventura fica para o fim de semana ou para as próximas férias. Mesmo assim, há um temor que nos controla e, quando saímos da rotina, não fazemos algo tão diferente assim. Quando alguma coisa realmente diferente acontece em nossas vidas, ou na vida de nossos amigos, transforma-se num caso que será contado e re-contado por algum tempo.

Isto ocorre porque temos mecanismos psicológicos que nos protegem de frustrações e nos preparam para viver as restrições que a cultura nos impõe (restrições de ordem moral) e as que nos são colocadas pelo sistema econômico (as restrições da desigualdade econômica). De certo que há um padrão conformista neste processo, mas é um mecanismo de defesa eficiente. A publicidade apresenta-nos, intensa e continuamente, a oferta do paraíso e da ascensão social ao mesmo tempo em que a sociedade, através das restrições da cultura (a possibilidade de realizar o proibido), torna remotas as possibilidades de que tal paraíso seja alcançado.

Esse mecanismo de defesa, entretanto, é fustigado pelo retorno de conteúdos inconscientes, que foram recalcados por um, digamos, “acordo social”. É o caso da proibição do incesto, maneira pela qual as culturas primitivas estabeleceram um tabu que contribuiu para a diversificação genética com a celebração do casamento fora dos clãs. A monogamia também se impôs à poligamia como padrão cultural visando garantir o controle da propriedade privada. O desejo por uma mulher que não seja a esposa está recalcado há milênios e faz parte do rol de proibições de leis religiosas muito antigas. Mesmo em sociedades poligâmicas, como a muçulmana, o adultério é punido rigorosamente. Nas sociedades ocidentais, como a nossa, o adultério não chega a ser ilegal e, pode-se dizer, ocorre com certa freqüência. Há, contudo, uma punição moral que estigmatiza a pessoa adúltera e, particularmente, a pessoa traída pelo parceiro, que perde prestígio junto à sociedade. (Os mecanismos de defesa estão expostos de forma mais pormenorizada no capítulo 5, destinado à Psicanálise.)

Ao expor o apelo sexual ou conteúdos que são restringidos aos vários segmentos sociais, a propaganda oferece um objeto de desejo imaginário (uma relação inconsciente), que se concretiza no produto anunciado. O produto não é motivo de restrição e, ao mesmo tempo, faz alusão ao desejo proibido ou de difícil realização (o conteúdo que foi recalcado no inconsciente no processo de desenvolvimento de uma cultura). [pg. 281]

O circuito se fecha quando, depois de capturado por essa dinâmica inconsciente, o consumidor justifica o uso constante do produto por suas características racionais. Assim, ninguém poderá confessar que compra determinado produto por associá-lo aos recônditos desejos sexuais, ou de poder, ou de aventura (tais desejos têm peso e valor diferentes, sendo que alguns são mais confessáveis que outros). O fumante, então, atribui ao sabor e à suavidade do cigarro sua preferência por tal marca. Escolhe-se determinada bebida alcoólica pelas suas características organolépticas (ligadas ao paladar) e o dentifrício “x” pelo sabor de menta ou pelo flúor que previne contra a cárie. Nós temos plena certeza de que o sabor de certo achocolatado é melhor que o de todas as outras marcas disponíveis no mercado. Curiosamente, “testes cegos” (quando a pessoa não sabe qual o produto experimentado) têm demonstrado que as pessoas não são capazes de reconhecer o produto da sua preferência quando comparado a um similar. Neste caso, cai por terra boa parte dos argumentos racionais apresentados para a escolha de um produto. Quem já fez um teste rigoroso com várias marcas de detergente em pó para saber qual delas lava mais branco? O que temos, na realidade, é a impressão de que a marca que utilizamos é a melhor e a propaganda é que nos garante a eficiência do produto.

A linguagem da sedução

A artimanha utilizada para o convencimento não precisa ser sofisticada ou trabalhar sempre com recônditos desejos. Ela pode estar embutida de forma sutil na construção lingüística da mensagem. Um fabricante de biscoito tem anunciado seu produto com uma pergunta: “Tostines é mais fresquinho porque vende mais ou vende mais porque é fresquinho?”. Há na pergunta uma tautologia (uma forma circular) que leva o consumidor, seja qual for a resposta, a considerar tal biscoito sempre [pg. 282] “fresquinho” e, portanto, melhor que os biscoitos concorrentes. Entretanto, os consumidores sabem que as outras marcas também oferecem biscoitos “fresquinhos”. A forma como a mensagem é apresentada conduz o consumidor incauto a considerar, de forma sutil (pois ninguém se detém a fazer análises lingüísticas dos comerciais), que aquela marca faz os melhores biscoitos (ao menos os mais “fresquinhos”). Evidentemente que, no caso do biscoito — um produto relativamente barato e acessível —, a mensagem não é o único critério que influi na decisão de compra. A experimentação do biscoito escolhido e do produto da concorrência também é um critério decisivo, pois será utilizado posteriormente na decodificação da mensagem. O comercial que promete um benefício não comprovado pelo consumidor durante a experimentação do produto ou serviço certamente será alvo de forte descrédito. A história do marketing apresenta inúmeros casos de produtos que foram lançados com um apoio de mídia muito bem elaborado e sofisticado e que, devido a promessas mal-equacionadas, resultaram em estrondosos fracassos de venda.

Propaganda ideológica

Um outro campo muito próximo do que acabamos de ver é o da propaganda ideológica. Neste caso, usa-se menos a técnica de comunicação para atingir mecanismos inconscientes que propiciem o convencimento para a compra de determinado produto (e, em alguns casos, de mecanismos conscientes e, na maioria dos casos, das duas formas combinadas). A propaganda ideológica trabalha com conteúdos ideacionais, com crenças que procuram alterar o campo cognitivo das pessoas. Sabe-se que a opinião é garantida por três fatores: a ação do indivíduo em relação a sua crença, o afeto dedicado à crença e o próprio conhecimento da existência do objeto de crença.

Se alguém for impedido de agir de acordo com a sua crença, esse impedimento produzirá um quadro de dissonância, o qual levará a pessoa a tentar superar o conflito criado pela proibição. Assim, o indivíduo ou tenderá a evitar a situação de controle de seu comportamento ou mudará sua crença. É evidente que, em muitas situações, as pessoas encontram maneiras de resistir às formas de controle e esta é uma característica humana muito valorizada. Os judeus foram duramente perseguidos desde a antiguidade e, no entanto, [pg. 283] sua cultura se mantém até hoje graças à resistência desse povo ao controle que lhes tentaram impor. A proibição ao culto judaico não foi obstáculo para a realização desta celebração.

Os fatores cognitivo e afetivo são os mais utilizados pela propaganda ideológica. Ambos podem ser alterados de acordo com a informação que temos sobre o objeto da comunicação. Exemplo: os conflitos étnicos registrados atualmente na Europa geram campanhas de parte a parte, nas quais procura-se conferir ao campo inimigo um atributo (mensagem que pode ou não ser verdadeira) até então desconhecido pela população a que se dirige a mensagem. A informação de que os sérvios promoveram verdadeiros massacres entre os muçulmanos da Bósnia visando uma “limpeza étnica” abalou qualquer simpatia que a opinião pública mundial poderia alimentar pela causa sérvia. Neste caso, um dado cognitivo novo (o massacre de muçulmanos) mudou a base afetiva em relação a um objeto da comunicação (a causa sérvia).

Muitas vezes, a propaganda contra uma causa é feita sem que informações objetivas sejam veiculadas. Apresenta-se o objeto da informação com a intenção de gerar, no receptor, antipatia pelo conteúdo trabalhado. Um exemplo disso é a capa da revista Veja na qual o líder do Movimento Sem-Terra (MST), Pedro Stedelli, foi colocado sob um fundo vermelho, com o semblante irado e o rosto avermelhado. A mensagem não era desfavorável (nem favorável) ao MST, mas Stedelli foi veiculado como se fosse o próprio diabo. Neste caso, o desconforto causado pela apresentação [pg. 284] da capa pode gerar antipatia dos leitores que tenham alguma restrição ao MST ou mesmo adotem uma posição de neutralidade. A antipatia (fator afetivo) é o componente que facilitará a mudança de posição em relação ao movimento que, de positiva, passará a negativa (fator cognitivo).

A construção da linguagem cinametográfica

A técnica de veiculação da imagem, desenvolvida principalmente pela linguagem cinematográfica e muito usada na propaganda ideológica e comercial, também é fonte de manipulação ideológica. Durante e após a Segunda Guerra Mundial, o próprio cinema foi muito utilizado pelos estadunidenses com objetivos publicitários. Os alemães também usavam o mesmo recurso e Goebbels, ministro da propaganda de Hitler, foi considerado um gênio publicitário pela maneira como conseguiu convencer boa parte do povo alemão dos ideais nazistas. O nazismo, felizmente, foi derrotado e os estadunidenses, por sua vez, passaram a usar a indústria cinematográfica para convencer o mundo de que o seu modo de vida era (é) o melhor. O padrão cultural estadunidense foi se espalhando pelo mundo, principalmente através do cinema e, mais recentemente, através da TV.

A linguagem cinematográfica é a linguagem da imagem, da expressão iconográfica da qual deriva um caráter subjetivo muito forte. Alguns autores dizem que a decodificação da imagem cinematográfica pode produzir um certo fragor, o que poderíamos traduzir por um incômodo na busca da significação. Assim, quando o cineasta escolhe um determinado plano de exposição da imagem, estará também escolhendo uma reação do público. Por exemplo, se o cineasta quiser transmitir à platéia a sensação de poder de uma personagem, usará um plano denominado sub-plongé, cuja tomada se dá com a câmera colocada de baixo para cima, a partir da cintura da personagem. Este recurso foi utilizado por Orson Welles num dos maiores clássicos de todos os tempos — Cidadão Kane. A platéia entende imediatamente o significado da imagem porque acompanha desde o início do filme a forma como Kane acumula riqueza e poder. Não é necessária nenhuma explicação mais elaborada. A imagem diz tudo.

Entretanto, quando esta técnica de linguagem cinematográfica é utilizada sem uma história que a sustente, como, por exemplo, [pg. 285] para apresentar ao público um determinado político, tal procedimento gera uma dissonância que, por sua vez, produzirá o fragor — uma forma de incômodo. A maneira encontrada para aplacar este incômodo será atribuir, ao político em questão, uma condição de poder que ele pode não possuir. É a forma como freqüentemente a mídia estadunidense apresenta o líder cubano Fidel Castro. Evidentemente, todos sabemos que Cuba não possui um milésimo do poderio militar dos Estados Unidos, mas os cubanos e, particularmente, seu líder, são apresentados como uma ameaça latente ao povo estadunidense. A imagem de Fidel Castro andando tranqüilamente entre os cubanos, em Havana, cumprimentando pessoas, conversando nas ruas, jamais é transmitida. Por sua vez, a imagem com tomadas sub-plongé são veiculadas ao extremo, corroborando a imagem “tirânica” construída pelos estadunidenses. No Iraque, pode-se dizer que Saddam Hussein utiliza este mesmo procedimento para satanizar a figura dos estadunidenses e convencer a população iraquiana de que a intervenção dos Estados Unidos no Oriente Médio é ilegítima; em Cuba, os meios de comunicação estão constantemente lembrando o povo cubano do perigo yankee (como são conhecidos os estadunidenses).

O recurso de propaganda ideológica sempre é acompanhado da contrapropaganda, e as técnicas utilizadas por um lado serão rapidamente assimiladas por outro. Num sentido bem mais estrito e doméstico, é o que vemos em nossas campanhas eleitorais pela televisão. O argumento de um candidato será imediatamente neutralizado pelo do seu concorrente. Para que as mensagens — com seus recursos objetivos e subjetivos — sejam assimiladas e decodificadas pelo receptor e para que este confira-lhes credibilidade para formar uma nova opinião sabre o assunto, é preciso que ele esteja predisposto a isso. A predisposição é avaliada pelos antecedentes de caráter social, os quais determinam não só a experiência com o fenômeno — no caso, o político — mas a opinião anterior sobre tal fenômeno. Se um candidato ao governo pretende mudar a sua imagem de corrupto junto à maior parte do eleitorado, ele poderá trabalhar a idéia de que realiza mais obras e, por isso, é mais competente para governar. Ele evita falar dos seus pontos fracos e atribui [pg. 286] ao desespero dos adversários os ataques à sua honra. Entretanto, para que a mensagem deste candidato tenha algum efeito, é preciso que a maioria do eleitorado esteja, naquele momento, desconsiderando questões éticas como parâmetro para o seu voto. Ou considere que esta questão não seja superior às necessidades de obras ou de maior policiamento.

Nas campanhas eleitorais, todos os recursos disponíveis de mídia e de linguagem cinematográfica são utilizados na apresentação de propostas de governo ou de atuação parlamentar, tornando tais campanhas cada dia mais próximas da linguagem publicitária (surgem os “marqueteiros” políticos) e distanciando-as do campo ideológico. Entretanto, temos, também, em nosso País, campanhas que trabalham como um divisor de águas ideológico.

São campanhas nas quais um candidato defende posições claramente sociais (de cunho socialista) ou neoliberais (que priorizam a economia de mercado). Neste caso, trata-se de uma discussão mais aberta, em que o eleitorado poderá debater e escolher a proposta de governo em campos ideológicos distintos. Ainda aqui, uma outra questão importante deve ser levantada: a interferência, neste campo ideológico, dos meios de comunicação de massa. Como a mídia está concentrada nas mãos dos empresários (principalmente os veículos de grande circulação ou audiência), os pontos de vista destes empresários são veiculados por suas empresas de comunicação, seja em editoriais, seja como notícia, podendo influenciar o eleitorado de forma decisiva em relação a determinada concepção política. Assim, voltamos ao início deste capítulo, quando falávamos do poder dos meios de comunicação de massa. Mas esse é um assunto que tem mais que ver com a construção da cidadania do que com as bases teóricas relacionadas à mídia.

Psicologia - Psicologia social
Temas gerais - , 
7/29/2021 12:43:29 PM | Por Ana Mercês Bahia Bock
A escola

A escola apresenta-se, hoje, como uma das mais importantes instituições sociais por fazer, assim como outras, a mediação entre o indivíduo e a sociedade. Ao transmitir a cultura e, com ela, modelos sociais de comportamento e valores morais, a escola permite que a criança “humanize-se”, cultive-se, socialize-se ou, numa palavra, eduque-se. A criança, então, vai deixando de imitar os comportamentos adultos para, aos poucos, apropriar-se dos modelos e valores transmitidos pela escola, aumentando, assim, sua autonomia e seu pertencimento ao grupo social. Sem a intenção de aprofundarmos o desenvolvimento da escola em nossa sociedade, valeria a pena introduzirmos alguns elementos desta história, pois a escola não existiu sempre: ela é uma criação social do homem.

Educar já significou, e talvez signifique ainda, em algumas regiões do Terceiro Mundo, apenas viver a vida cotidiana do grupo social ao qual se pertence. Assim, acompanhava-se os adultos em suas atividades e, com o passar do tempo, aprendia-se a “fazer igual”. Plantar, caçar, localizar água, entender os sinais do tempo, escutar histórias e participar de rituais eram atividades do grupo adulto, as quais iam sendo acompanhadas pelas crianças que, aos poucos, adquiriam instrumentos de trabalho e interiorizavam valores morais e comportamentos socialmente desejados. Não havia uma instituição especializada nessas tarefas. O meio social, em seu conjunto, era o contexto educativo. Todos os adultos ensinavam a partir da experiência pessoal. Aprendia-se fazendo.

A partir da Idade Média a educação tornou-se produto da escola. Pessoas especializaram-se na tarefa de transmitir o saber, e espaços específicos passaram a ser reservados para essa atividade. Poucos iam à escola, que era destinada às elites. Serviu aos nobres e, depois, à burguesia. A cultura da aristocracia e os conhecimentos religiosos eram o material básico a ser transmitido. [pg. 261] Enfim, as atividades desempenhadas pelos grupos dominantes na sociedade passavam a ser, cuidadosamente, ensinadas e isso fez da escola ora lugar de aprendizado da guerra, ora das atividades cavalheirescas, ora do saber intelectual humanístico ou religioso. A escola desenvolvia-se como uma instituição social especializada, que atendia aos filhos das famílias de poder na sociedade.

Com as revoluções do século 19, a escola passou por transformações, sendo a principal delas a tendência à universalização, ou seja, ela deveria atender a todas as crianças da sociedade (pelo menos em tese). O que permitiu tais transformações? Por que a escola precisou mudar?

O desenvolvimento da industrialização foi, sem dúvida, o fator decisivo das grandes mudanças ocorridas nos séculos 19 e 20. A industrialização deslocou o local do trabalho da casa para a fábrica, transformando, com isso, os espaços das casas e das cidades. Na casa, os lugares tornaram-se privativos, isto é, cada um conquistou seu espaço individual, como quartos, suítes, escritórios de estudo; na cidade, a organização urbana adaptou-se à existência das fábricas e à necessidade de os trabalhadores deslocarem-se de suas residências para os locais de trabalho. Assim, construíram-se vias públicas para os transportes coletivos levarem os trabalhadores de um lugar a outro da cidade. O trabalho ingressou na esfera pública, deixando de ocupar os espaços da casa.

Outra conseqüência desta mudança ocorreu na família, que não podia mais, sozinha, preparar seus filhos para o trabalho e para a vida social. Era preciso entregar essa função a uma instituição que soubesse educar, não mais para a vida privada, do círculo familiar e do trabalho caseiro, mas para o trabalho que se encontrava no âmbito da vida pública, cujas regras, leis e rotinas iam além dos conhecimentos adquiridos pela família. A escola tornava-se, assim, esta instituição especializada.

Além disso, a Revolução Industrial sofisticou o trabalho com a implantação das máquinas, exigindo do trabalhador o aprendizado da tecnologia. Esta sofisticação do trabalho levou novas funções para a escola, como a de preparar o indivíduo para o trabalho, ensinando-lhe o manuseio de técnicas até então desconhecidas, ou a [pg. 262] de fornecer-lhe os conhecimentos básicos da língua e do cálculo. A escola ganhou importância e ampliou suas funções.

A luta pela democratização da escola empreendida pelas classes trabalhadoras, até então alijadas desta instituição, foi outro fator gerador de  mudanças. As classes trabalhadoras, conforme foram se fortalecendo e se organizando, passaram a exigir o direito de ter seus filhos na escola, isto é, o direito de acesso à cultura e ao conhecimento dominantes. A escola, pressionada, “abriu” suas portas para atender a outras camadas sociais que não somente a burguesia e a aristocracia. A escola universalizava-se.

Estes fatores contribuíram para que a escola adquirisse as características que possui hoje em nossa sociedade: uma instituição da sociedade, trabalhando a serviço desta sociedade e por ela sustentada a fim de responder a necessidades sociais e, para isso, a escola precisa exercer funções especializadas. A escola cumpre, portanto, o papel de preparar as crianças para viverem no mundo adulto. Elas aprendem a trabalhar, a assimilar as regras sociais, os conhecimentos básicos, os valores morais coletivos, os modelos de comportamento considerados adequados pela sociedade. A escola estabelece, assim, uma mediação entre a criança (ou jovem) e a sociedade que é técnica (enquanto aprendizado das técnicas de base, como a leitura, a escrita, o cálculo, as técnicas corporais e musicais etc.) e social (enquanto aprendizado de valores, de ideais e modelos de comportamento). Apreender esses elementos sempre foi necessário. A escola é a forma moderna de operar essa transmissão.

Até aqui parece que tudo está perfeito. Quais são os problemas da escola?

Problemas da escola

São muitos e vamos comentar alguns deles. Para deixar mais clara a nossa apresentação, chamamos a sua atenção para dois aspectos presentes nos problemas da escola: o aspecto teórico da educação, que se refere às concepções apresentadas nas teorias pedagógicas, e o prático, que se refere ao cotidiano da educação escolar. Os problemas da escola situam-se nestas duas esferas: nas concepções pedagógicas e na realidade cotidiana. [pg. 263]

A claurura escolar

As teorias pedagógicas, ao conceberem a escola como instituição isolada da sociedade, criaram-lhe um dos seus principais problemas. A escola, que deveria fazer a mediação entre o indivíduo e a sociedade, tornou-se uma instituição fechada, destinada a proteger a criança desta mesma sociedade — construiu-se, então, uma fortaleza da infância e da juventude. Para proteger contra o quê? Contra os perigos que advêm da sociedade, responsabilizada por todos os males e corrupções.

É interessante registrarmos aqui que a escola, criada e sustentada pela sociedade com a finalidade de preparar o indivíduo para viver na sociedade e cujos elementos são todos advindos do meio social — conhecimentos, técnicas, desafios —, passa a ser pensada, nas teorias pedagógicas, como instituição isolada deste meio, como se nele não estivesse imersa. Criou-se, então, a ilusão de ser possível preparar o indivíduo para viver o cotidiano da sociedade estando ele de fora deste cotidiano, em um desvio — o desvio escolar. Assim pensada, a escola acaba por ensinar um conhecimento distante da realidade social. Nesta concepção, chega-se, de fato, a erguer muros para que a realidade não entre na escola; criam-se regras diferentes das vigentes na sociedade, enfim, substitui-se a realidade social pela realidade escolar. Enclausuram-se as crianças e os jovens em nome da educação.

A clausura escolar é ilusória, pois a realidade social entra pela porta dos fundos, invade as salas de aula, podendo ser encontrada nos livros, nos valores ensinados e nas atividades desenvolvidas. Mas, apesar de ilusória, esta clausura determina o distanciamento da escola do cotidiano vivido pelos seus integrantes. Assim, os conteúdos são ensinados como se nada tivesse que ver com a realidade social; as regras são tomadas como absolutas e naturais; a autoridade na escola é inquestionável; a vida de cada um fica (mesmo que ilusoriamente) do lado de fora da escola. Os uniformes igualam a todos; as notas de aproveitamento são tomadas como resultantes apenas do trabalho realizado na escola e pela escola; o esforço pessoal torna-se fator decisivo do sucesso ou do fracasso escolar. Aliás, o fracasso é explicado basicamente pela falta de empenho e esforço do aluno. No máximo, chega-se a responsabilizar os pais pelo insucesso do filho. Nunca a escola!, que sai ilesa destas avaliações.

Talvez você esteja se perguntando: por que este distanciamento da escola em relação à realidade social é visto como um problema? Por dois motivos. Primeiro: porque este distanciamento não é verdadeiro. A escola reproduz os valores sociais, os modelos de comportamento, os ideais da sociedade; ensina o conteúdo que está sendo aplicado na produção da riqueza e da sobrevivência do [pg. 264] grupo social. Quando ensina estes conteúdos sem explicar que integram nossa vida cotidiana, a escola dificulta o surgimento dos questionamentos, ou seja, universaliza este saber, impedindo que outros saberes possam ser também veiculados e valorizados — é como se só existissem esses saberes. Segundo: a escola, ao escolher este distanciamento, opta também por um modelo de homem a educar — um homem passivo perante o seu meio social, pois não sabe aplicar os conhecimentos aprendidos na escola para melhor entender o seu mundo e nele atuar de forma mais eficiente.

A escola não deve ser pensada como fortaleza da infância, como instituição que enclausura seus alunos para melhor prepará-los. É preciso articular a vida escolar com a vida cotidiana; articular o conhecimento escolar com os acontecimentos do dia-a-dia da sociedade.

O saber é o instrumento básico na escola. Para quê?

Outro problema da escola é a forma como concebe e lida com o saber — seu instrumento básico no trabalho de desenvolver os indivíduos. No entanto, algo que parece tão simples — transmitir o saber acumulado — pode se tornar fonte de variados problemas. Um primeiro já pode ser levantado: como a escola entende a finalidade de sua missão social? As finalidades da escola são colocadas, nas teorias pedagógicas e no cotidiano, como sendo culturais: transmitir o conhecimento acumulado pela humanidade para que as pessoas possam se aperfeiçoar e cumprir funções sociais importantes. Assim, para as teorias pedagógicas, o lugar social que o indivíduo ocupará na sociedade depende do grau de cultura que adquirir. A escola atesta o saber através de diplomas, que se tornam passaportes para a vida social. O grau de cultura que o diploma atesta é tomado como a possibilidade de o indivíduo diplomado ocupar lugares na sociedade. Há mentiras no discurso sobre a escola e esta é uma delas. Assim, um médico e um advogado ocupam estes lugares porque, por esforço próprio, adquiriram o grau de cultura necessário para o exercício dessas funções. Contudo, não é menos evidente que o grau de cultura adquirido pelo indivíduo decorre do lugar social ocupado por sua família, ou seja, este lugar social da família define o grau de cultura que seu membro poderá obter. Assim, o garoto da favela dificilmente será advogado. Mesmo que este garoto se esforce para obter um maior grau de cultura, dificilmente alcançará seu objetivo. Ele terá de superar inúmeras dificuldades, como manter-se na escola, entendendo sua linguagem e sua dinâmica; arcar com todos os gastos que ela acarreta — condução, uniforme ou roupa adequada, material, atividades externas [pg. 265] etc. Por outro lado, o garoto da família rica ou de classe média, mesmo que decida não freqüentar a escola, dificilmente perderá seu padrão de vida e seu lugar social. Assim, se decidir ser motorista de caminhão, logo poderá se tornar um empresário do transporte.
Um outro problema também está relacionado cora a dificuldade demonstrada pela escola de lidar com o saber, pois, ou ensina as respostas aos alunos sem que eles tenham feito as perguntas, ou estimula as perguntas e menospreza a importância de se obter respostas. As escolas mais tradicionais, por exemplo, não acreditam que seus alunos possam ter assuntos interessantes para contar ou perguntas estimuladoras para fazer. Assim, colocam-nos quietos, olhando para o professor que, sobre um tablado, ensina o conhecimento necessário.

Mas, para que serve este conhecimento? Esta é a pergunta que fica. Nas escolas mais renovadas, o problema aparece de forma invertida. Diversos recursos são utilizados para estimular o aluno a fazer perguntas sobre os mais variados assuntos. O importante é perguntar. Muitas vezes, no entanto, as crianças acabam não tendo as respostas adequadas para as suas perguntas, e o ato de perguntar vai se esvaziando lentamente, até perder todo o seu sentido.

Saber é perguntar. Saber é conhecer respostas. A escola precisa articular adequadamente estas duas atividades.

A escola como meio que prepara para a vida

Nas teorias pedagógicas e no cotidiano escolar, a escola também é definida como um meio que prepara para a vida. Mas como pode fazer isso sendo um meio fechado, que volta as costas para a realidade social? A escola tem se organizado a partir, apenas e fundamentalmente, da noção de cultura. Acredita que “cultivando” o indivíduo, isto é, ensinando-lhe a cultura acumulada pela humanidade, conseguirá desenvolver o que nele há de melhor. Veja bem, a escola pressupõe que há um indivíduo a ser desenvolvido dentro de cada um de nós que, por natureza, é bom. Ou seja, trazemos uma sementinha dentro de nós que desabrochará no contato com a cultura e nos tornará bons cidadãos. Por isso as escolas para a infância se chamavam [pg. 266] “jardim-de-infância”. Prepara-se o indivíduo no que ele tem de bom para, após um certo tempo, entregá-lo à sociedade a fim de transformá-la na direção do que é naturalmente bom nos homens. E uma leitura possível, não resta dúvida. Mas é preciso cuidado com tal concepção, pois se permite pensar a escola como uma instituição que isola os indivíduos para protegê-los, permite também pensá-la de outra forma, ou seja, apropriando-se deste discurso de proteção para criar indivíduos à imagem e semelhança dos valores sociais dominantes.

Na verdade, a escola, como instituição social, estabelece um vínculo ambíguo com a sociedade. É parte dela e, por isso, trabalha para ela, formando os indivíduos necessários à sua manutenção. No entanto, é tarefa da escola zelar pelo desenvolvimento da sociedade e, para isso, precisa criar indivíduos capazes de produzir riquezas, de criar, inventar, inovar, transformar. Diante desse desafio, a escola não pode ficar presa ao passado, ao antigo, à tradição. Esta brecha abre a possibilidade para o surgimento de uma escola crítica e inovadora. E preciso ter clareza desta ambigüidade da escola no trabalho educacional, pois esta ambigüidade ao mesmo tempo nos coloca a necessidade de estarmos presos à realidade social e de sermos críticos e inovadores. Esta é a brecha da escola transformadora. A escola, como dissemos no início, faz a mediação entre o indivíduo e a sociedade. Conhecer a sociedade, seus modelos e seus valores é sua tarefa. Aprender os modelos como sociais (e não como naturais), que respondem às necessidades do momento histórico, que variam no tempo e nos grupos sociais, é tarefa da escola que se pretende crítica. A vida escolar deve estar articulada com a vida social. Outros problemas ainda existem:

  • A escola surgiu para responder a necessidades sociais de preparo do indivíduo para a vida pública. A família ficou apenas com a formação moral de seus filhos. Hoje, a escola ocupa grande parte da vida de seus alunos. Ensina técnicas, valores e ideais, ou seja, vem cada vez mais substituindo as famílias na orientação para a vida sexual, profissional, enfim, para a vida como um todo. A escola está preparada para essa tarefa? Os professores dispõem de métodos e técnicas adequadas para cumprir tal função? [pg. 267]
  • Cada vez mais aumenta a pressão para a alfabetização precoce. As crianças entram no 1º ano do ensino fundamental sabendo ler e escrever. O que exigiu essa antecipação? E as crianças que não freqüentaram as pré-escolas? Os efeitos individuais e sociais da alfabetização precoce ainda são desconhecidos. É preciso compreender melhor o fenômeno que está mudando a escola para que possamos realizar o trabalho escolar conscientes das novas tarefas que nos são colocadas.
  • Outro conjunto de problemas refere-se à concepção de aluno. Como o professor o vê e o concebe? Como as famílias e os alunos vêem e concebem o professor? A forma de significar é importante para entendermos a relação que se estabelece entre professores e alunos. — Alunos podem ser vistos como receptáculos, onde o conhecimento deve ser depositado. — Professores podem ser vistos como adultos autoritários que impõem atividades e conteúdos sem importância ou valor. Estas duas visões dificultam a relação entre professores e alunos. Confrontos, violência, abusos de autoridade, atos delinqüentes são fatos que surgem no cenário da escola, lugar designado pela sociedade como de preparo para a vida social. O vínculo professor-aluno é o sustentáculo da vida escolar. Tal vínculo deve se estabelecer de forma a viabilizar todo o trabalho de ensino-aprendizagem. Precisamos ter professores preparados, que estabeleçam uma parceria com seus alunos, a qual permita o diálogo com o conhecimento. Muitas vezes o aluno é visto como alguém que tem pouco a contribuir no processo educacional, devendo acompanhar, em silêncio e atento, o que o professor ensina. Como a geração da MTV (Music Television) e da Rádio Transamérica (cuja programação está voltada para a dance music) poderá ficar tão parada por tanto tempo? Um mundo de silêncio e imobilidade tem caracterizado a escola.
  • Nada que se refira às brincadeiras e ao lazer tem lugar na sala de aula. A seriedade deste espaço opõe-se ao brinquedo, à brincadeira, ao riso, ao lúdico. A escola vem se tornando um lugar “carrancudo”, e ela não precisa ser assim. Pode desenvolver seu trabalho, com autoridade, em um ambiente descontraído e alegre. Deve haver uma possibilidade de o aluno ser feliz na escola!
  • A realidade dos jornais não é apresentada na escola, pois pressupõe-se que tal realidade não tem nada que ver com o que se está aprendendo na sala de aula. É preciso injetar realidade na escola. [pg. 268] É preciso falar da vida cotidiana, pois o conhecimento aprendido deve ampliar o conhecimento que temos do mundo e, conseqüentemente, contribuir para torná-lo um lugar cada vez melhor para se viver.
  • As regras morais são rigidamente cobradas. Ao aluno cabe escutar, obedecer, acreditar e submeter-se. Ao professor cabe saber, ordenar, decidir, punir. Ambos predestinados a papéis rigorosamente definidos. Sanções estão previstas  para os deslizes. As regras não podem ser ensinadas como verdades absolutas. Elas precisam ser ensinadas como “acordos sociais” para melhorar nossas relações. Esta é a única função das regras sociais. Mas se elas tornam-se instrumentos de tortura e fonte de conflitos, há que se perguntar se algo não está errado.
  • A escola tem sido uma continuidade da vida das crianças das classes média e alta de nossa sociedade. Elas viajam, vão a museus, conhecem outros países, outras línguas, têm uma riqueza de informações e estimulações que pode ser trabalhada e aprofundada na escola. No entanto, para as crianças e os jovens que têm o mundo do trabalho como seu espaço cotidiano, a escola é uma quebra. As rotinas escolares, as atividades e os conteúdos apresentados estão distantes de suas vidas e não há como ver na escola qualquer utilidade para seu desenvolvimento. Apenas o discurso da sociedade e a exigência do diploma na hora de obter um emprego melhor lhes dão a certeza de que é preciso insistir. A maior parte de nossas crianças pobres são “evadidas” da escola. Uma seqüência de tensões, dificuldades, fracassos, desinteresses dos professores, desencorajamento e reprovação afastam-nas da escola — um mundo que fala de coisas estranhas, em linguagem estranha, comandado por adultos estranhos. É preciso fazer a escola para os alunos e não o inverso.
  • As crianças não chegam às escolas em pé de igualdade, pois tiveram experiências de vida muito diferentes. Os programas universais, cora o discurso da busca da igualdade, colaboram para a manutenção das desigualdades. Os programas escolares não levam em conta as diferenças sociais. Exigem os mesmos produtos, avaliam da mesma forma, ensinam da mesma maneira a crianças que têm vidas muito diferentes. Ignorar as diferenças é trabalhar para aprofundá-las. [pg. 269]

Mas se a escola é tão ruim assim, por que mantê-la? Nos anos 60, autores como Ivan Illich, Bourdieu e Passeron pregaram o fim da escola. Alegavam ser tal instituição um aparelho ideológico do Estado com a finalidade de reproduzir a mão-de-obra submissa e a ideologia dominante. Hoje, há argumentos convincentes para mantermos a credibilidade da escola e enveredarmos esforços para transformá-la.

A escola constitui um importante local de troca, de obtenção de informação e de aprendizado da investigação. É na escola que formulamos grande parte das respostas e das perguntas necessárias à compreensão de nossas vidas, de nossa sociedade e de nosso cotidiano; é o espaço no qual podemos adquirir a idéia do tempo histórico e da transformação que a humanidade produziu. Na escola podemos aprender que nem todas as pessoas pensam e agem da mesma forma e que essa diferença no modo de pensar e agir deve ser valorizada por todos nós. Muito do aprendizado para o trabalho acontece no ambiente escolar. A escola precisa ser transformada e a busca por tal transformação constitui um desafio que não pode ser confundido com a defesa do fim desta instituição.

Podemos retomar aquela ambigüidade já citada e usá-la como primeiro argumento de defesa da escola: as contradições apresentadas pela escola criam brechas para o trabalho crítico.

Valores básicos na sociedade capitalista, como liberdade individual, autonomia, criatividade e capacidade de tomar decisões, exigirão da escola uma abertura em seu conservadorismo e autoritarismo.

Segundo argumento: entendemos a escola como uma das várias instituições existentes na sociedade. Portanto, ela não pode ser considerada a única responsável pela criação da mão-de-obra submissa e pela reprodução dos valores dominantes. A escola participa deste jogo social, mas as transformações sociais ocorrem de forma mais ampla, abrangendo outras instituições sociais, como a família, os meios de comunicação de massa, o Congresso Nacional e as leis. Os educadores progressistas reivindicam para a escola o direito de participar deste jogo social e contribuir para a transformação da sociedade. Não será extinguindo a escola que tais anseios serão alcançados.

Terceiro e último argumento: necessitamos da escola que, como já dissemos, faz a mediação entre as crianças e os modelos sociais. A escola pode e deve ensiná-los de maneira crítica. Deve ensinar às crianças a historicidade dos modelos e como eles foram se modificando no tempo, conforme os homens foram transformando suas formas de vida e suas necessidades. A simples imersão da criança e do jovem no meio social não lhes garantirá um aprendizado crítico dos modelos. A escola, nesta perspectiva, torna-se fator de mudança, de movimento, de transformação. Ela pode e deve assumir este papel. [pg. 270]

Como você pôde perceber, se por um lado a escola apresenta problemas — não são poucos! —, por outro não faltam propostas para solucioná-los. Esperamos tê-lo convencido do importante papel desempenhado por esta instituição em nossa sociedade. Agora, deixamos para você e para o seu professor o desafio de encontrar um jeito mais gostoso, mais lúdico, motivador, interessante e socialmente necessário de “fazer escola”. Sabemos que não é fácil, senão teríamos colocado aqui todas as receitas. Mas também sabemos que o difícil não é impossível. Para você não dizer que lhe deixamos a parte difícil, colocamos, como estímulo para o debate, algumas considerações:

  • A escola precisa ser articulada com a vida.
  • O conhecimento acumulado pela humanidade não é intocável, ou seja, deve estar sempre se renovando e se reconstruindo. Afinal, fazemos parte da humanidade que produz conhecimento, o qual deve ser aprendido como resposta a perguntas feitas pelos homens no momento em que o produziam. Que perguntas os homens já se fizeram? A que perguntas os conhecimentos que estamos aprendendo hoje respondem?
  • Quais são as principais regras que conduzem nossos comportamentos? Que modelos nossa sociedade valoriza e nos ensina? Por que tais modelos e regras? É importante perceber as regras como formas que os homens encontraram de melhorar a convivência. Elas são necessárias, o que não nos impede de compreender a que necessidades sociais procuram atender.
  • Alunos e professores devem ser parceiros no diálogo com o conhecimento. Precisamos ver o trabalho escolar como um diálogo com o conhecimento já acumulado. Dialogar é perguntar, ousar respostas, tentar compreender por que algo é assim e não de outro modo. É preciso dialogar com o conhecimento mediado pelo professor, que deve ser visto como parceiro no processo educacional.
  • Escola para quê? É importante trabalhar esta pergunta. Não é preciso encontrar uma resposta, mas “ensaiar” encontrá-la. O mesmo procedimento deve ser adotado a cada conteúdo introduzido. Para que este conhecimento? Deve-se ressaltar aqui que nem todos os conhecimentos têm aplicação imediata. São úteis porque desenvolvem a possibilidade da reflexão e aumentam nossa compreensão sobre a realidade que nos cerca.
  • Nossa última consideração: a realidade que nos cerca, esta sim, é a finalidade da escola. Todo o trabalho desta instituição social está e deve estar voltado para a realidade, da qual buscamos melhorar nossa compreensão para transformá-la permanentemente. Os homens criaram a escola com essa finalidade, aperfeiçoaram-na para isso e sucatearam-na para impedir a compreensão e a transformação da realidade. Cabe retomar a finalidade primeira da escola. [pg. 271]
Psicologia - Psicologia Escolar e Educacional
Temas gerais - , 
7/28/2021 2:42:56 PM | Por Ana Mercês Bahia Bock
Família, o que esta acontecendo com ela

Até um tempo atrás — não faz muito tempo! — o modelo de família consistia em pai-mãe-prole. Esse modelo de estrutura familiar era considerado ideal pelo modo dominante de pensar na sociedade e, por isso, bastante usado para classificar todos os outros modos de organização familiar como desestruturados, desorganizados e problemáticos. Nesta compreensão de família há, sem dúvida, um julgamento que não é científico, mas moralista, pois utiliza um padrão como referência e considera os outros inadequados. Atualmente, é impossível não-enxergar — vários estudos antropológicos e mesmo reportagens em revistas, jornais e TV mostram — que existem muitas e inúmeras formas de estrutura familiar: a família de pais separados que realizam novas uniões das quais resulta uma convivência entre os filhos dos casamentos anteriores de ambos e os novos filhos do casal; a família chefiada por mulher (em todas as classes sociais), a nuclear, a extensa, a homossexual, enfim, observa-se uma infinidade de tipos que a cultura e os novos padrões de relações humanas vão produzindo. Isso sem considerarmos culturas bastante diferentes, como os grupos indígenas, por exemplo. [pg. 247]

Para entendermos as mudanças na concepção de família, a função social desta instituição (a família é uma instituição social) e a produção de subjetividade que ocorre em seu interior, é necessário (como sempre!) recorrer à história.

A família monogâmica é um ponto de partida histórico — sempre precisamos partir de um ponto! —, embora devamos considerá-la como produto de muitas e diversificadas formas anteriores de o homem organizar-se para dar conta da sua reprodução e da sobrevivência da espécie (desde o estado selvagem até a barbárie). Pesquisas realizadas pelo antropólogo estadunidense L. H. Morgan (1818-1881) demonstraram que, desde a origem da humanidade, houve, sucessivamente:

  • a família consangüínea — intercasamento de irmãos e irmãs carnais e colaterais no interior de um grupo;
  • a família punaluana — o casamento de várias irmãs, carnais e colaterais, com os maridos de cada uma das outras; e, os irmãos também se casavam com as esposas de cada um dos irmãos. Isto é, o grupo de homens era conjuntamente casado com o grupo de mulheres;
  • a família sindiásmica ou de casal — o casamento entre casais, mas sem obrigação de morarem juntos. O casamento existia enquanto ambos desejassem;
  • a família patriarcal — o casamento de um só homem com diversas mulheres;
  • e, finalmente, a família monogâmica, que se funda sobre o casamento de duas pessoas, com obrigação de coabitação exclusiva... a fidelidade, o controle do homem sobre a esposa e os filhos, a garantia de descendência por consangüinidade e, portanto, a garantia do direito de herança aos filhos legítimos, isto é, a garantia da propriedade privada. A idéia de propriedade — criar, possuir e regular através de direitos legais sua transmissão hereditária — introduz esta forma de organização familiar: é necessário ter certeza sobre a paternidade dos filhos e de que o patrimônio não irá sair da família, ou seja, o reino, as terras, os castelos, os escravos, a fábrica, o banco, as ações da Bolsa etc.

Vamos percebendo, então, que a família, como a conhecemos hoje, não é uma organização natural nem uma determinação divina. A organização familiar transforma-se no decorrer da história do homem. A família está inserida na base material da sociedade ou, dito de outro modo, as condições históricas e as mudanças sociais determinam a forma como a família irá se organizar para cumprir sua função social, ou seja, garantir a manutenção da propriedade e do status quo das classes superiores e a reprodução da força de trabalho — a procriação e a educação do futuro trabalhador — das classes subalternas. [pg. 248]

Por assumir papel fundamental na sociedade — é chamada de célula mater da sociedade — a família é forte transmissora de valores ideológicos1. A função social atribuída à família é transmitir os valores que constituem a cultura, as idéias dominantes em determinado momento histórico, isto é, educar as novas gerações segundo padrões dominantes e hegemônicos de valores e de condutas. Neste sentido, revela-se o caráter conservador e de manutenção social que lhe é atribuído: sua função social.

Não podemos nos esquecer de que a família — lugar reconhecido como de procriação — é responsável pela sobrevivência física e psíquica das crianças, constituindo-se no primeiro grupo de mediação do indivíduo — daquele bebê, que está ali no berço — com a sociedade. É na família que ocorrem os primeiros aprendizados dos hábitos e costumes da cultura. Exemplo: o aprendizado da língua, marca da identidade cultural e ferramenta imprescindível para que a criança se aproprie do mundo à sua volta. É na família que se concretiza, em primeira instância, o exercício dos direitos da criança e do adolescente: o direito aos cuidados essenciais para seu crescimento e desenvolvimento físico, psíquico e social.

A família, do ponto de vista do indivíduo e da cultura, é um grupo tão importante que, na sua ausência, dizemos que a criança ou o adolescente precisam de uma “família substituta” ou devem ser abrigados em uma instituição que cumpra as funções materna e paterna, isto é, as funções de cuidado e de transmissão dos valores e normas culturais — condição para a posterior participação na coletividade. Portanto, inexistindo a família de origem — consangüínea, biológica —, outro grupo deverá dar conta de sua função.

Ao mesmo tempo, observamos que estas funções são repartidas com outras agências [pg. 249] socializadoras: as instituições educacionais — creches, pré-escolas, jardins-de-infância, escolas — e os meios de comunicação de massa. Em todas as classes, as crianças estão indo cada vez mais cedo para as instituições educacionais. Os motivos são os mais diversos, sendo que um deles deve ser ressaltado: a entrada da mulher no mercado de trabalho, quer para garantir a renda familiar, quer como projeto de vida profissional.

E aí estamos de novo diante de uma mudança cultural — no caso, o papel da mulher —, um fator econômico produzindo efeitos no interior da família, na relação mãe-filho e na qualidade deste vínculo.

É interessante perceber como a família vive as interferências do mundo social, de novas realidades históricas que vão produzindo pessoas diferentes e novas subjetividades.

Outro aspecto relevante a ser observado é o importante papel que os meios de comunicação de massa (particularmente a TV) têm cumprido na educação da criança e do adolescente, os quais estão expostos, cada vez mais cedo, às influências destas agências socializadoras. Observe a criança de três anos vestida como aquela apresentadora famosa da TV, ou a que pede de presente a roupa do super-herói do momento.

Mesmo que a função socializadora, de formação das novas gerações, não seja delegada exclusivamente a estas instituições — escola, meios de comunicação de massa — constatamos que, cada vez mais, elas influenciam as novas gerações: no seu modo de ser e estar no mundo... agora e mais tarde.

Apontar estas questões em um capítulo sobre a família é necessário para que possamos estar atentos — o tempo todo — às múltiplas determinações do humano, do mais íntimo de si, desde o nascimento. Facilita, também, compreender por que o homem que nasceu em meados do século 20 e passava os primeiros anos de vida no interior da família, grudado a “barra da saia da mãe”, sem ouvir conversas de adulto, cora muitos assuntos considerados tabus (doenças, tragédias, sexo), é tão diferente do que hoje vai para o berçário com 120 dias, está exposto a uma grande variedade de estímulos visuais e auditivos desde que nasce e, precocemente, assiste às telenovelas, “participa” de todas as conversas domésticas, escolhe a roupa que vai vestir. Portanto, voltando ao tema do capítulo — saímos dele? —, há uma citação do psicanalista francês Jacques Lacan, em Os Complexos Familiares, que permite sintetizar o que foi colocado até aqui e avançar. Lacan define assim a família:

“Entre todos os grupos humanos, a família desempenha um papel primordial na transmissão de cultura. Se as tradições espirituais, a manutenção dos ritos e dos [pg. 250] costumes, a conservação das técnicas e do patrimônio são com ela disputados por outros grupos sociais, a família prevalece na primeira educação, na repressão dos instintos, na aquisição da língua acertadamente chamada de materna. Com isso, ela preside os processos fundamentais do desenvolvimento psíquico.”

Por que Lacan afirma que a família preside os processos fundamentais do desenvolvimento psíquico da criança? Se considerarmos os três pontos levantados pelo autor — a primeira educação, a repressão do desejo e a aquisição da linguagem — teremos a resposta.

A primeira educação

Mesmo antes do nascimento do filho, vemos a preocupação dos pais com a cor de sua roupa. E já podemos perguntar por que azul e não rosa para o menino? Outra preocupação refere-se à escolha do nome: do santo de devoção, daquele avô tão querido ou do artista de sucesso?

Antes de nascer, a criança vai ocupando um lugar na família, no cenário social, e o que a espera são os hábitos da cultura metabolizados pela sua família, já revelados no modo diferente de esperar a chegada do menino e da menina. Isto porque às diferenças biológicas são atribuídas representações sociais, expectativas de conduta para cada gênero.

Tudo parece tão natural que é estranho, a qualquer um de nós, imaginar uma luva de boxe como enfeite do quarto de maternidade em que se encontra uma menina, ou uma bonequinha pendurada na porta do quarto de um menino.

É com essa naturalidade que se processa a primeira educação. Tudo parece óbvio. O exemplo mais claro é o da educação em função da diferença anatômica dos sexos. As crianças encontram nos pais os modelos de como os adultos comportam-se — como atendem ao telefone e às visitas; como se portam à mesa, resolvem conflitos e lidam com a dor; o que pensam sobre os acontecimentos do mundo etc. Os pais são os primeiros modelos de como é ser homem e ser mulher: padrões de conduta que, em nossa cultura, são marcadamente diferentes. [pg. 251]

Assim, a família reproduz, em seu interior, a cultura que a criança internalizará. É importante considerar aqui o poder que a família e os adultos têm no controle da conduta da criança, pois ela depende deles para sua sobrevivência física e psíquica. Basta lembrar que uma criança de oito meses depende de alguém para obter alimentos e que uma criança de três anos depende de alguém para levá-la ao médico, A criança necessita, também, das ligações afetivas estabelecidas com seus cuidadores e as quais ela não quer (não pode!) perder. O medo de perder o amor (e os cuidados) desses adultos que lhe são tão importantes é um poderoso controlador de sua conduta e ela, pela “vigésima” vez, recita para o vizinho aquela poesia que tanto a aborrece, mas faz a alegria do pai no exercício de exibição dos dotes do seu filho.

A importância da primeira educação é tão grande na formação da pessoa que podemos compará-la ao alicerce da construção de uma casa. Depois, ao longo da sua vida, virão novas experiências que continuarão a construir a casa/indivíduo, relativizando o poder da família.

Mas essa já é outra história.

A repressão do desejo

Ao nascer, a criança encontra-se numa fase de indiferenciação com o mundo — não existe mundo externo (o outro) nem interno (o eu). O mundo, neste momento da vida, significa a mãe. Esta é a díade fundamental que cada pessoa vivencia ao nascer. A marca desta relação é a fusão, isto é, não existe, para quem acabou de nascer, o eu e o outro (o mundo). Esta diferenciação vai se estabelecendo paulatinamente, e uma experiência importante desse desenvolvimento é o tempo (cronológico) que a criança espera para a satisfação de suas necessidades. Ela começa a registrar que há um desconforto — a fome, por exemplo — e que este estado não é automaticamente superado; a criança precisa esperar que algo aconteça: o seio ou a mamadeira deve chegar... e, para isso, depende de alguém — a mãe ou sua substituta nesta função.

A diferenciação do ego — magistralmente descrita por Freud em A Psicologia de massa e a análise do ego — é um processo em que, ao princípio do prazer (que rege o funcionamento psíquico), interpola-se o princípio da realidade, isto é, surgem os limites impostos pela realidade. Assim, a satisfação, para ser obtida, deve ser postergada (esperar) e, às vezes, substituída por outro objeto de satisfação (ao invés do bico do seio, aparece uma [pg. 252] chupeta... que estranho!) ou (com freqüência) ocorrem as primeiras vivências de frustração, de não-satisfação. A frustração marca a experiência humana desde o nascimento e é algo constitutivo da humanidade de todos nós.

Ao lado desse aspecto intrínseco à constituição psíquica, existe outro que vai construindo a subjetividade da criança e é fundante da vida psíquica: a interdição — lei social que se ancora na subjetividade ao marcar a repressão do desejo, seja dos impulsos agressivos, seja dos impulsos eróticos. Em nossa cultura, o tabu do incesto é um exemplo clássico desta marca da repressão. O filho não pode ter relações sexuais com a mãe, nem a filha com o pai, embora mãe e pai sejam seus primeiros objetos de amor erótico (segundo a Psicanálise, é claro!). Este desejo é inconsciente e a repressão coloca sua marca neste inconsciente; “é como se nada houvesse existido”. No jogo da vida familiar, a criança irá incorporando outras proibições relativas à obtenção do prazer e à expressão de seus sentimentos hostis. “Tira a mão daí, é feio!” é uma frase que muitas crianças ouvem quando estão se masturbando; ou esta outra: “Não pode bater no amiguinho, tem que conversar”.

A aquisição da linguagem

A linguagem é a condição básica para que a criança “entre” no mundo, aproprie-se dele — do que significam as coisas, os objetos, as situações — e nele interfira. Isso é o que realiza a dimensão humana e social de cada pessoa. A linguagem é uma ferramenta necessária e imprescindível para a troca e comunicação com o mundo e, também, para a relação consigo mesma. Através da linguagem, a criança nomeia seus afetos e desejos, troca-os com o outro e os compreende, dando sentido ao que ocorre dentro de si.

Na fase anterior à aquisição da linguagem, os impulsos estão livres e o inconsciente prepondera. É no contato com a realidade — que se dá, principalmente, através da linguagem — e pela compreensão dos mecanismos que a regulam que a criança vai discriminando o seu desejo e o que é ou não permitido satisfazer. A linguagem é o instrumento privilegiado que possibilita a compreensão dessa realidade. A família, como primeiro grupo de pertencimento do indivíduo, é, por excelência, em nossa sociedade, o espaço em que este aprendizado ocorre, embora possa ocorrer também em qualquer grupo humano do qual participe em seus primeiros anos de vida. [pg. 253]

Outras considerações importantes sobre a família

  1. Pedro volta e meia briga feio com Francisco. Até já chegou a dar uns tapas nele. Hoje, Pedro brigou na escola com Tiago porque este tirava um “sarro” de Francisco, numa rodinha de amigos. Qual a relação de parentesco entre Pedro e Francisco? Não há dúvida... são irmãos. Uma relação de amor, rivalidade, cuidado, hostilidade. Uma relação humana rica, cheia de ambivalência, multifacetada; com desvantagens — dividir o amor dos pais, a atenção deles, o quarto, as roupas — e muitas vantagens — a possibilidade de companheirismo, de solidariedade, de cumplicidade e, principalmente (a vantagem invisível), de vivenciar, no cotidiano, a aprendizagem das relações sociais com iguais, algo extremamente facilitador como treino de participação social nos mais diferentes grupos humanos. Este vínculo significativo e a característica da ambivalência — a existência do amor e do ódio — denunciam o que é próprio de todo o vínculo em que existe proximidade, intimidade: a possibilidade de expressar o amor e, também, a raiva. Em suma, a garantia de que não perderá o amor e de que este prevalecerá sobre a raiva permite a expressão da hostilidade. Estas expressões de raiva e amor são reguladas pelos pais. Há um limite para as brigas, ofensas e agressões físicas. Neste limite, constatamos como essa relação é um modelo de conduta de cada indivíduo em outras relações entre iguais ao longo da vida.
  2. O vínculo, em seus aspectos biológico (o cordão umbilical), social (o grupo familiar e suas responsabilidades, inclusive legais) e afetivo (o acolhimento) é condição para o crescimento e desenvolvimento global da criança. Não há possibilidade de sobrevivência física e psíquica no desamor. As doenças mentais e mesmo as físicas, em crianças pequenas, denunciam a fragilidade de vínculos familiares, a dificuldade dos adultos em criar um ambiente estável e seguro — isto é, amoroso —, a negligência, os maus-tratos. Abordar a importância deste elo de ligação, o vínculo, é dizer que sempre existe ou deve existir um outro significativo que lhe assegura as condições de vida, de crescimento e desenvolvimento (senão a criança adoece, morre). Nesta perspectiva, é necessário dizer que o vínculo tem mão dupla para ser significativo, ou seja, a criança também é importante para os pais, muda suas vidas, ocupa-os. Aliás, por serem as crianças e os adolescentes importantes para os pais é que estes tornam-se importantes para eles. [pg. 254] Dois exemplos de situações bastante delicadas que demonstram esta ligação dos pais com seus filhos: no primeiro, os pais exibem o filho ou aspectos dele como se fossem seus; no segundo, projetam no filho a possibilidade de estes realizarem sonhos e projetos pessoais que não conseguiram realizar em suas próprias vidas.
  3. A família, como lugar de proteção e cuidados, é, em muitos casos, um mito. Muitas crianças e adolescentes sofrem ali suas primeiras experiências de violência: a negligência, os maus-tratos, a violência psicológica, a agressão física, o abuso sexual. As pesquisas demonstram que, no interior da família, a principal vítima da violência física é o menino e, do abuso sexual, a menina. O pai biológico constitui-se no principal agressor. O fenômeno da violência doméstica é, infelizmente, universal — atinge países ricos e pobres — e pode ser observado em todas as classes sociais — não ocorre exclusivamente nas famílias pobres. A violência doméstica não é um fenômeno atual, embora sua intensificação e divulgação pelos meios de comunicação a transformem em algo dramático e que tem chamado a atenção de muitas instituições e de autoridades da área da família, da infância e adolescência. No Brasil, um exemplo do aspecto histórico do fenômeno é o relato colhido por pesquisadores em documentos dos séculos 18 e 19 sobre a vitimação de crianças escravas. Outro dado muito importante, comprovado por pesquisas nacionais e internacionais, é que 90% dos agressores foram vítimas de algum tipo de violência na infância ou adolescência. Isto demonstra a necessidade do tratamento psicológico das crianças e dos adolescentes vítimas de violência, fazendo-se necessário também interromper este ciclo de violência que, em muitos casos, é encoberto pelo segredo familiar ao longo de várias gerações.
  4. O direito a ter uma família e a importância dela para a criança estão colocados no artigo 6 da Declaração dos Direitos da Criança (20/11/1959), da qual o Brasil é signatário. [pg. 255]

Princípio 6º
Para o desenvolvimento completo e harmonioso de sua personalidade, a criança precisa de amor e compreensão. Criar-se-á, sempre que possível, aos cuidados e sob a responsabilidade dos pais e, em qualquer hipótese, num ambiente de afeto e de segurança moral e material; salvo circunstâncias excepcionais, a criança de tenra idade não será apartada da mãe. À sociedade e às autoridades públicas caberá a obrigação de propiciar cuidados especiais às crianças sem família e àquelas que carecem de meios adequados de subsistência. É desejável a prestação de ajuda oficial e de outra natureza em prol da manutenção dos filhos de famílias numerosas.

No Brasil, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) — Lei 8.069, de 13/7/1990, que regula os direitos da criança e do adolescente — coloca, no Capítulo 3 — “Do Direito à Convivência Familiar e Comunitária” —, artigo 19: “Toda criança ou adolescente tem direito a ser criado e educado no seio de sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente livre da presença de pessoas dependentes de substâncias entorpecentes”.

Esta lei de proteção dos direitos da criança e do adolescente é considerada uma das mais avançadas do mundo. Sua importância reside em vários aspectos. No que concerne ao tema deste capítulo — família — a lei garante, por exemplo, a igualdade de direitos aos filhos próprios da relação do casamento e aos filhos adotivos (isto é, proíbe qualquer discriminação). Além disso, afirma que o “pátrio poder será exercido, em igualdade de condições, pelo pai e pela mãe...”. A novidade aí é a inclusão da mãe.

Neste sentido, esta lei acaba incorporando, na ordem jurídica, as mudanças culturais e históricas que vão se processando na sociedade e repercutem na família. Portanto, a família monogâmica apresenta-se diferente hoje. E, mais, coexiste com outros modos de organização familiar em que, como foi sinalizado no parágrafo anterior, a mãe pode ser considerada chefe da família.

Assim, o modelo de família pai-mãe-prole torna-se um entre vários modelos possíveis de estrutura e organização deste grupo humano. [pg. 256]

Uma última observação

Além dos aspectos abordados aqui, poder-se-ia levantar vários outros considerando a importância desta instituição, a complexidade e riqueza dos processos sociais e psicológicos que nela se processam e, principalmente, o fato de as famílias apresentarem muitas semelhanças e também muitas, muitas diferenças em sua dinâmica interna.

Psicologia - Psicologia social
Desenvolvimento - Sexualidade, 
7/28/2021 2:02:34 PM | Por Ana Mercês Bahia Bock
A sexualidade

Nosso desconhecimento e, portanto, nossas dúvidas sobre a nossa sexualidade são inúmeras. Apesar de ser a nossa sexualidade, ela nos aparece como algo incógnito, cheio de preconceitos, de moralismo, de dúvidas, de informações incorretas. Este paradoxo — do desconhecimento de algo tão nosso — tem feito do sexo um tabu. A inclusão da disciplina Educação Sexual nos currículos escolares tem sido sistematicamente barrada por forças reacionárias, que não a consideram assunto de escola, ou acreditam que educação sexual se restrinja às informações da fisiologia e anatomia do corpo e do mecanismo da reprodução. Mas sexo é mais do que isto. Sexo é prazer, é desejo. E é também proibição, perigo, erro e culpa.

A questão sexual da juventude parece estar sempre no limite entre o desejo e a repressão. Você já parou para pensar e discutir seriamente com seus pais, ou amigos, ou professores, o que sabe e o que não sabe sobre o sexo?

Uma pesquisa feita por Carmen Barroso e Cristina Bruschini, com jovens paulistas, em 1979, mostrava que um dos saldos positivos das sessões onde se debatia o sexo era a “conquista da palavra, a viabilização de um discurso até então interdito. Se alguma forma de comunicação — por pouco articulada, distorcida ou mal informada que fosse — ainda existia entre [pg. 229] os amigos íntimos do mesmo sexo, ela era praticamente inexistente entre jovens de sexo diferente, que podiam até ser namorados com alguma intimidade sexual, mas que permaneciam incapazes de um intercâmbio honesto, com exposição das diferenças existenciais, os receios, as dúvidas, a fantasia”1. E, assim, o sexo fica como um discurso nunca dito. Vemos na televisão, no cinema, lemos nos livros, vemos até mesmo na rua e nada dizemos, nada perguntamos. Namoramos e temos vários receios e dúvidas, mas preferimos não dizer.

O controle da reprodução, por exemplo, é de interesse de qualquer jovem que mantenha relacionamento heterossexual. Decidir o grau de intimidade que se permitirá durante o namoro é um momento difícil para o jovem, pois entram aí inúmeros fatores: desejo, fantasia, medo, falta de informação, pressão social do grupo de amigos, pressão da família etc.

Na pesquisa de Barroso e Bruschini, no capítulo sobre a reprodução, temos ainda aspectos muito interessantes de serem retomados aqui. As pesquisadoras encontraram entre os jovens de classe média e alta uma combinação de liberalismo e autoritarismo. “Liberalismo, quando se referem aos direitos de todos os indivíduos, isto é, os de sua própria classe, de controlar a sua reprodução, e de autoritarismo, quando se trata de impor aos pobres o dever de evitar filhos. Repetidamente, a educação das massas, a ‘conscientização do povo’, aparece como instrumento privilegiado para tornar indolor essa coação. Trata-se de convencê-los a ter apenas o número de filhos que lhes permite a sua condição (...) A questão que permanece é: quando também defendem a necessidade de educação do povo para decidir conscientemente sobre o número de filhos, esses jovens estão incorporando acriticamente um elemento da ideologia reacionária ou, pelo contrário, estão reconhecendo que a limitação da natalidade pode, dialeticamente, contribuir para criar condições concretas que permitam mudanças radicais na estrutura de poder e de distribuição de recursos que hoje prevalece?”2.

Além do controle da reprodução, muitas outras questões atormentam os jovens: o homossexualismo — doença, vício ou comportamento alternativo? O orgasmo — um privilégio masculino? O aborto — um crime ou uma opção? Os métodos contraceptivos, a masturbação, enfim, tudo o que diz respeito à nossa sexualidade é algo (des) conhecido e produtor de ansiedade para a maioria dos jovens. [pg. 230]

O crescimento intelectual decorrente da informação, que demonstre ao jovem a variabilidade de comportamentos e valores, que esclareça sobre a sexualidade, é essencial para a auto-aceitação sem temores e angústias.

A Psicologia e o estudo da sexualidade

A Psicologia já sabe há um bom tempo que a questão sexual, pelos aspectos morais a ela vinculados, é fonte de angústia para o jovem que se inicia nesses segredos. Mas não é somente o jovem que sofre angústia cora a sexualidade; o adulto e o velho também. Procurando o caminho para aplacar essa angústia, nossa ciência tem tentado superar o moralismo que envolve o tema (nem sempre com sucesso) e procurado descobrir as fontes e os caminhos da sexualidade.

Muitas áreas, além da Psicologia, tratam da sexualidade humana: a Biologia e a Medicina dão conta dos seus aspectos anatômicos e  fisiológicos; a Antropologia estuda sua evolução cultural; e a Sociologia e a História mostram-nos a gênese da repressão do comportamento sexual. Hoje também encontramos uma área específica de estudos da sexualidade, que procura englobar diferentes áreas do conhecimento, conhecida como Sexologia.
Como a questão sexual envolve muitas disciplinas, a Psicologia poderá responder só em parte às questões colocadas anteriormente. De acordo com a competência da Psicologia, poderemos dizer o que é o prazer, que sentimentos vêm junto com a sexualidade e, mesmo, qual a diferença entre sexo e sexualidade.

Sexo é instinto?

Quando sentimos um forte desejo sexual, tendemos a associá-lo a uma justificativa muito comum: “Isso é natural, pois temos um instinto sexual”. É como se fosse uma coisa animal e deve estar ligado à preservação da espécie.

Não é bem assim que a coisa se dá. É verdade que existe um instinto sexual entre os animais. Quando uma cadela se encontra no cio, um cão não poderá recusá-la. Ele lutará com outros pretendentes e, vencendo a luta, será o candidato escolhido. A cadela também não poderá recusar. Ela apenas espera a definição do mais [pg. 231] apto. Nenhum cachorro pensará em abandonar a luta porque a cadelinha não é muito simpática.
Com o homem ocorre um fenômeno diferente. Já vimos no capítulo 10 que o homem difere dos outros animais pela consciência. Isso significa que a escolha do parceiro sexual, no caso da nossa espécie, não é feita [apenas] instintivamente, mas tem um componente racional que avalia a escolha. Pouca coisa resta no homem de caráter instintivo, e a escolha sexual é feita mais pelo prazer que ela nos dá individualmente do que pela pressão da necessidade de reproduzir a espécie. Isto significa dizer que o prazer passa a ser o dado fundamental para a sexualidade humana.

Qual é a fonte do prazer?

Freud, um dos pioneiros nos estudos da sexualidade humana nos seus aspectos psicológicos, em sua obra Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, escrita em 1905, mostra que a sexualidade ocorre nas crianças quase desde o seu nascimento, e que a prática sexual entre os adultos pode ser bem mais livre do que supunham os teóricos moralistas do começo do século.

Estas conclusões causaram impacto na época, já que a puberdade era considerada como o marco inicial da vida sexual. Isso porque é na puberdade que aparecem os caracteres sexuais secundários, como os pêlos pubianos, a menstruação e o crescimento dos seios nas meninas, e o engrossamento da voz e crescimento de pêlos no corpo dos meninos. É também nessa fase que aparece o interesse sexual no sentido genital. Acreditava-se que o sexo, antes da puberdade, estaria inativo e que só seria ativado com o desencadeamento de hormônios sexuais, por volta dos 11 anos de idade.

Como alguém poderia dizer que uma criança de cinco, três, dois anos e até recém-nascida tem vida sexual? As objeções ao pensamento de Freud eram que o sexo sempre estaria ligado à reprodução da espécie, e que qualquer prática que não a implicasse seria considerada como desvio de conduta. A criança, mesmo Freud concordaria, não está preparada para reproduzir-se sexualmente.

Mas o psicanalista tinha outra visão da sexualidade.

A criança, assim que nasce, está preparada para lutar pela sua sobrevivência. Ela irá sugar o leite materno, auxiliada por um reflexo conhecido como reflexo de sucção. Este reflexo é acompanhado do prazer do contato da mucosa bucal com o seio materno. Parece óbvio pensar que tal função (alimentação), tão fundamental para o recém-nascido, não pode ser desagradável, ainda mais sabendo [pg. 232] que o reflexo de sucção logo desaparecerá. Em pouco tempo, a criança aprenderá que o contato do seu próprio dedo com a boca também causa prazer. Neste caso, o prazer não está mais vinculado à finalidade de sobrevivência, mas é apenas o prazer pelo prazer. Freud chama este tipo de prazer de erotismo e considera seu aparecimento como a primeira manifestação da sexualidade. Ora, essa tão singela e inocente descoberta será fundamental para que a criança percorra o caminho que a levará à busca do prazer sexual, que também está desvinculado de suas finalidades, já que a relação sexual se dá pelo prazer que ela oferece ao indivíduo, e não por um reflexo da espécie.

O desenvolvimento da sexualidade

Para Freud, a busca do prazer é a maneira que temos para dar vazão ao forte impulso sexual que chamamos de libido. Conhecemos as regras sociais que permitem e normatizam tal vazão. Sabemos que em determinado momento da vida a sentimos presente — nesse instante temos consciência da atração sexual por outra pessoa. Entretanto, esse momento não acontece de maneira mágica, mas, como todos os outros fenômenos psicológicos, depende de desenvolvimento e maturação.

Chamamos essa maturação de desenvolvimento da libido. Ela tem início desde os primeiros contatos da criança com o mundo e irá completar-se na puberdade. Assim, como ocorre com outros fatores do desenvolvimento infantil (o falar, o andar), a criança irá desenvolvendo paulatinamente a sua sexualidade. Ela precisa aprender a engatinhar ou ficar em pé antes de andar. Antes de aprender a investir libido numa outra pessoa, isto é, ver o outro como objeto erótico, ela precisa aprender o que é o prazer. 

Ao prazer oral, o primeiro momento dessa maturação, sucede-se o prazer anal da retenção e expulsão das fezes e, mais adiante ainda, o prazer fálico que torna prazerosa a manipulação dos genitais (o pênis, no menino, e o clitóris, na menina). Com o crescimento da criança, o impulso sexual vai ganhando um contorno cada vez mais nítido. Aos cinco anos de idade a criança já tem a sexualidade razoavelmente definida. Dos cinco anos até a puberdade, [pg. 233] ela passará por uma fase de adaptação chamada pela Psicanálise de fase de latência, quando realizará o abandono do objeto sexual no interior das relações parentais para, daí em diante, fazer sua escolha fora da família.

E essa história de que a gente sente atração sexual pela própria mãe? Isso já não é um exagero?

Ora, não podemos entender a atração sexual na criança como atração no sentido genital, da maneira como ela ocorre depois da puberdade. A sexualidade no adulto, salvo algumas exceções, buscará sempre que possível o contato genital. Na criança não existe a sexualidade no sentido genital, mas seria muito difícil dizer que o prazer que crianças de três anos sentem ao manipular o pênis ou o clitóris não é sexual. Esse prazer da manipulação demonstra o despertar das zonas erógenas. A criança gosta do carinho e pedirá carinho. Ocorre que a ligação afetiva mais forte e a pessoa em quem ela mais confia é a mãe, e neste caso não é estranho que a criança espere e exija seu carinho. Esta ligação carinhosa e afetiva entre mãe e filho (ou entre pai e filha) é que irá propiciar a caracterização do famoso complexo de Édipo.

Com esse percurso, demonstra-se que a sexualidade aparece no ser humano desde muito cedo, e que as suas primeiras manifestações não têm caráter genital, mas trata-se mais da organização do impulso da libido, que, mais tarde, será fundamental na busca do prazer sexual. É por isso que costumamos denominar sexualidade esse processo, para dar-lhe um conteúdo mais amplo que sexo, no sentido mais estrito do termo.

Estar amando

No decorrer de nossas vidas investimos energia sexual ou libido em diferentes objetos que nos dão prazer.

O outro, a quem amamos, é um objeto no qual investimos libido.

Por que investimos naquele objeto e não em outro? A resposta a essa pergunta não pode ser dada aqui como uma regra, pois os fatores inconscientes envolvidos nessa escolha são muitos e diferem de pessoa para pessoa. O objeto amado pode ser, para o menino, alguém que se assemelhe à figura materna e, para a menina, à figura paterna; pode ser, ainda, alguém que possua algo que se deseja e que não se possui, ou alguém que possua o que a gente possui e, assim, ama-se a si próprio no outro.

O objeto do desejo é algo tão difícil, que Jacques Lacan, famoso psicanalista francês, disse que não é todo dia que encontramos [pg. 234] aquilo que é a imagem exata de nosso desejo. Mas, quando encontramos, sabemos identificar. Assim, nós temos uma imagem formada de nosso objeto de desejo e procuramos nos objetos do mundo algo que se assemelhe a ele. Quando o identificamos, investimos libido nele — nós o amamos.

A paixão

Existe ainda um estado do estar amando que conhecemos como paixão. A paixão é o extremo do investimento libidinal no outro, ou seja, o indivíduo investe tanta libido no outro (objeto de desejo), que seu eu fica empobrecido e enfraquecido, a ponto de seguir e fazer tudo o que o outro desejar. É a entrega total ao outro.

Na paixão, ao contrário da identificação, o eu do indivíduo se empobrece e torna-se fraco, cego. É preciso que o indivíduo, num movimento de defesa de seu eu, volte a investir libido em si próprio, o que pode significar um amadurecimento do sentimento, que, de paixão (entrega total), transforma-se em amor (investimento libidinal com enriquecimento do eu).

A amizade

O amigo, este que pode estar aí ao seu lado neste instante, é um objeto em que investimos libido. Mas a amizade é um investimento de libido que foi inibida em sua finalidade genital.

Com isso, queremos dizer que toda relação afetiva, seja de amor ou amizade, é, do ponto de vista da Psicanálise, um investimento de energia sexual. Isto é relativamente simples de entender se pensarmos em termos evolutivos. O homem atual (homo sapiens) vem se desenvolvendo nos últimos 30 mil anos e, nesse período (pequeno, se considerarmos que a espécie homo tem 1,6 milhões de anos), foi também desenvolvendo formas de relações afetivas a [pg. 235] partir do que tinha em comum com o mundo animal — a atração sexual. Ao estabelecer as relações de parentesco, o homem aprendeu a desviar a forma instintiva de atração sexual aplicada no comportamento e afeto necessários à corte (tanto da parte do macho quanto da fêmea). Trabalhamos, neste capítulo, com a hipótese de que a energia libidinal aplicada ao comportamento e afeto ligados à corte vai sendo paulatinamente “dessexualizada”, ou seja, vai perdendo sua base de atração sexual, transformando-se em forma de afeto parental e fraternal (relacionados à família) e, posteriormente, na forma altruísta (amor ao próximo). Assim, expressamos afeto pelos amigos, por pessoas que não conhecemos e, de uma forma geral, pela humanidade (quando, por exemplo, ficamos condoídos com o despejo de uma família pobre da periferia de uma grande cidade, família que nunca vimos e cuja história foi matéria de jornal). Com isso, podemos dizer que existem vários tipos de amor, todos originados da forma primitiva de atração sexual, os quais estão hoje tão dissociados dela (dizemos “inibidos em sua finalidade”) que não conseguimos perceber essa ligação.

Essa forma de elaboração do amor fraterno é fundamental para o tipo de sociedade e de relação pessoal que escolhemos na constituição de nosso processo civilizatório. Denominamos de identificação essa forma de elaboração na qual investimos libido no outro de uma maneira diferente da usada no investimento amoroso (sexualizado). É através do processo de identificação que enriquecemos e formamos nossa própria personalidade. É como se “recolhêssemos parte” da pessoa e a trouxéssemos para dentro de nosso psiquismo, construindo assim nossa personalidade. Você é capaz de identificar este processo ocorrendo com você mesmo, quando admira muito alguém e passa a imitar ou a possuir características que eram do outro e que, graças à identificação, agora são suas.

O processo de identificação reflete-se em brincadeiras infantis nas quais as crianças se fantasiam do super-herói favorito, na idolatria juvenil por astros da música pop e nos modelos adultos de comportamento e ética transmitidos, por exemplo, pelos meios de comunicação de massa.

A Homossexualidade

É o processo de identificação invertido (a forma de inversão não é muito conhecida e se dá de forma inconsciente) que ocorre durante a formação do Complexo de Édipo (veja capítulo sobre a Psicanálise), portanto, por volta dos três anos. Nesse processo, o menino escolhe o pai como objeto de amor e a mãe como objeto [pg. 236] de identificação, o que explica a escolha homossexual (com a menina, ocorre o inverso: ela escolhe a mãe como objeto de amor e o pai como objeto de identificação). Assim, do ponto de vista psicológico, o homoerotismo é uma escolha realizada pela criança que não tem sentido patológico (não é considerada doença ou desvio de comportamento) e, muito menos, moral (uma escolha influenciada por maus costumes). Se, por um lado, não sabemos claramente o que determina essa “escolha” — aqui colocada entre aspas porque, rigorosamente, não a percebemos como uma escolha consciente, na qual a criança opta por alternativas previamente conhecidas —, por outro, sabemos que não se trata de nenhum desvio comportamental ou doença adquirida, ou mesmo de disfunção neurológica. A própria Organização Mundial de Saúde (organismo ligado à ONU) reconhece isso. Neste caso, podemos afirmar, categoricamente, que se trata de uma opção legítima de investimento de afeto e que, na sociedade atual, só enfrenta a intransigência e a intolerância de grupos conservadores que, por motivos morais, não conseguem aceitar uma escolha sexual diferente da considerada padrão.

As restrições à sexualidade

E por que será que o sexo é algo tão complicado, tão cheio de restrições em nossa sociedade?

Uma das respostas a esta questão foi dada pela Psicanálise. Sem entrar em muitos dos detalhes que Freud apresentou, é possível compreender isto da seguinte maneira: a energia sexual, para a Psicanálise, é a energia que utilizamos para tudo — para trabalhar, ligar-nos às outras pessoas, divertir-nos, produzir conhecimentos, enfim, a energia responsável pela criação do que conhecemos como a civilização humana. Para que este fenômeno seja possível, é preciso transferir a energia sexual para estas produções humanas. Portanto, a civilização, criada pelo homem para garantir sua sobrevivência, impõe a ele restrições na utilização de sua energia sexual, deslocando-a para outros fins que não o estritamente sexual.

A civilização consegue essa façanha impondo normas e proibições. O casamento monogâmico, a restrição na escolha dos parceiros, as restrições sexuais impostas às crianças são exemplos dos mecanismos que a civilização criou para obter energia para se manter enquanto civilização. Freud chega mesmo a dizer que o homem, em determinado momento da sua história enquanto espécie, trocou o prazer pela segurança. [pg. 237]

A este mecanismo de desvio da energia sexual para fins não-sexuais e importantes, do ponto de vista social, chamamos de sublimação. Neste momento em que você está lendo este livro, estudando para a aula de Psicologia, você está desviando sua energia sexual, está sublimando libido.
Marcuse, um teórico alemão, considera que em nossa sociedade capitalista, baseada na exploração do trabalho humano, há uma repressão da energia sexual que vai além do necessário para nossa sobrevivência. Para que o capital pudesse desenvolver-se, foi necessário desviar um quantum (quantidade) de energia sexual muito grande. A sociedade capitalista “dessexualizou” o homem, reprimiu sua libido e a utilizou para a produção de riquezas, de acordo com o interesse de um grupo dominante na sociedade: os capitalistas.

Retomando, então, diríamos que, para manter a civilização com todas as garantias de sobrevivência para os seres humanos, é preciso reprimir energia sexual. A dominação social e a exploração levaram esta repressão a um nível mais elevado do que o necessário — a este fenômeno Marcuse dá o nome de mais repressão.

Assim, nossa sociedade tem uma moral sexual repressiva. Quando, no decorrer de nossa socialização, internalizamos as normas e regras sociais, estamos tornando nossa essa moral sexual, com todos os seus tabus, necessários à manutenção da sociedade capitalista de exploração da força de trabalho humana, ou seja, exploração da sexualidade.

Internalizados os valores, o jovem rapaz será pressionado pelo grupo e pela sua própria consciência a ser forte, sensual, potente e experimentado. A garota viverá o drama da virgindade, o medo da gravidez, as conseqüências da inexperiência sexual aliadas ao fato de ter um companheiro que sabe tão pouco de sexualidade e de prazer a dois quanto ela.

Infelizes sexualmente, nossos cidadãos poderão dedicar-se, com todo vigor, ao trabalho.

A liberdade sexual

Mas não é verdade que sejamos tão reprimidos. Vemos na tevê a todo instante relações sexuais, homens e mulheres que sensualmente exibem seus corpos; vemos homossexuais, mães solteiras, relações sexuais fora e anteriores ao casamento etc.

E isto significa que estejamos vivendo uma época de maior liberdade sexual?

Não, não significa. Como diz Michel Foucault, filósofo francês, o domínio do discurso é também uma forma de poder. Domina-se a fala da sexualidade hoje em dia, mas, quanto à prática da sexualidade, esta é tão reprimida ou tão “liberada” quanto no século passado.

O que ocorre em nossa era é uma programação da utilização da libido: as casas de massagem, as ginásticas, a “curtição do corpo”, a possibilidade de mantermos relações sexuais antes ou fora do casamento não significa liberdade sexual, e sim que estamos nos comportando sexualmente exatamente da forma como a sociedade permite.

A sociedade capitalista foi capaz de ajustar também o nosso prazer. E esta é uma das armas mais poderosas para se exercer o poder. Temos, assim, uma consciência feliz, o que não significa liberdade.

A possibilidade de uma sexualidade que corresponda aos nossos desejos (mesmo considerando que, para haver civilização, deva haver um nível de controle e repressão) dependerá de uma luta que o jovem deve enfrentar por uma nova moral sexual, que supere o poder castrador e passe para uma fase do encontro entre o prazer e a responsabilidade.

Por uma nova moral sexual

À medida que introjetamos os valores sociais, não há mais necessidade de cintos de castidade, pois o policiamento é interno ao indivíduo. Se ele apenas deseja, mesmo que não realize seu desejo, já é suficiente para sentir culpa.

Culpabilidade e sexo têm caminhado juntos nesta passagem para o terceiro milênio. No final do século 20, o campo da sexualidade — que vinha quebrando tabus a partir da chamada “revolução sexual”, iniciada nos anos 60 — foi tomado por um componente perverso: o aparecimento do vírus HIV e, conseqüentemente, da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida — a AIDS (do inglês Acquired [pg. 239] Immunological Deficiency Syndrome). O HIV é contraído pelo contato de fluidos corpóreos (sangue, esperma, corrimento vaginal) que geralmente ocorre durante as relações sexuais, nas transfusões de sangue e no consumo de drogas injetáveis. A força e a letalidade desse vírus influenciaram de forma significativa o comportamento sexual do final do século 20. Nunca a sexualidade esteve tão presente nos meios de comunicação. A necessidade de divulgar formas de prevenir o contágio do HIV acabou por dinamitar o que restava do puritanismo e do moralismo em relação à sexualidade (e ao consumo de drogas, mas essa é uma outra história!). O incentivo ao uso da camisinha, como principal forma de prevenção, passou a fazer parte do nosso cotidiano. A camisinha, de produto vendido de forma “secreta”, quase clandestina, passou a ser divulgada de forma massiva, deixando de causar pudor mesmo entre as camadas mais conservadoras da sociedade. Admitiu-se o óbvio — os jovens, em geral, mantinham relações sexuais e a possibilidade de que tais relações ocorressem fora do casamento era bem maior do que se supunha (dado verificado pelo contágio de parceiros de homens e mulheres casados).

Ao mesmo tempo em que era superado o falso moralismo presente em consideráveis extratos da sociedade, alteravam-se, pelo medo do contágio, as formas mais liberais de relação sexual entre parceiros eventuais. A fidelidade entre os casais de namorados passou a ser cobrada de forma mais intensa, valorizando-se o parceiro fixo. O medo da contração do vírus, ao mesmo tempo que liberava a discussão sobre a sexualidade, também exigia um comportamento mais conservador. Neste sentido, o cartum do Glauco, exibido na página 238, apesar da boa piada, não está consoante com os novos tempos. O erro do cartum está no fato de aquela garota ter mantido relações sexuais com o namorado sem ter usado camisinha, caso contrário, não estaria preocupada com uma possível gravidez indesejada. Os pais, por sua vez, demonstram muito mais preocupação cora o fato de sua filha estar ou não mantendo relações sexuais do que com o comportamento imprudente da garota, que aumenta o risco de contágio do HIV. E claro que, nas famílias mais conservadoras, o risco do contágio será utilizado como uma forma de pressão a mais para a manutenção de um comportamento sexual também conservador (entenda-se: abstinência). O “argumento”, agora, apresenta uma objetividade muito mais convincente que os argumentos de ordem moral: a manutenção da própria saúde. Todavia, tanto os jovens quanto os pais (e todas as pessoas que mantêm relações sexuais freqüentemente ou não) devem se conscientizar de que o caminho mais razoável é o da proteção, o do sexo seguro. Deve-se falar franca e abertamente sobre sexualidade, introjetando os mecanismos [pg. 240] necessários para o sexo seguro (como o uso da camisinha) e o cuidado de nunca negligenciá-los (nas relações eventuais ou mesmo numa única relação sexual).

Estas questões podem representar fator de outros riscos para a juventude no campo da sexualidade, particularmente a contradição entre a disseminação do discurso sobre a sexualidade e a possibilidade de crescimento da visão moralista sobre o tema. A falta do diálogo franco e aberto entre jovens, pais e educadores, coloca o jovem distante das informações básicas sobre sua própria sexualidade. Em publicação recente3, a psicóloga e jornalista Rosely Sayão responde a inúmeras perguntas feitas, em sua maioria, por adolescentes.

Gravidez precoce

É impressionante como os jovens desconhecem as informações básicas sobre fecundação, prazer, sexo seguro etc. É provável que tal desinformação seja uma das causas do aumento da gravidez precoce — a gravidez da adolescente. Precisamos considerar, no entanto, que hoje em dia torna-se mais fácil identificar a gravidez precoce, pois sua ocorrência já não é tão escamoteada como em outros tempos. Aliás, não devemos recuar muito no tempo porque, se voltarmos para o início do século 20, constataremos que muitas mulheres casavam muito cedo (aos 13, 14, 15 anos) e logo engravidavam, não existindo, contudo, o conceito de gravidez precoce. Trata-se, evidentemente, de um conceito para um padrão social em que a mulher tem filho por volta dos 20 anos de idade (e cada vez mais tarde). O fato é que a gravidez precoce tem se mostrado um problema pelas suas implicações sociais e decorrências pessoais para a adolescente, para o jovem pai do futuro bebê, para os pais de ambos (o que tem chamado a atenção de médicos, psicólogos, assistentes sociais e outros profissionais da área de saúde). E a gravidez indesejada geralmente é conseqüência da falta de informação e diálogo sobre a sexualidade.

Que postura, então, assumir nessas situações de conflito, em que desejo e culpa muitas vezes se confundem, deixando uma forte angústia como resultado? A resposta ainda está por se fazer e você é parte dela. A discussão do papel da sexualidade nas nossas relações, a discussão ética do significado das regras sociais e sua justa ou injusta interdição do prazer são questões que, discutidas, ajudarão a superar a angústia da culpa, que certamente trabalha no território do não-saber. [pg. 241]

Psicologia - Psicologia do Desenvolvimento
Temas gerais - , 
7/27/2021 4:14:22 PM | Por Ana Mercês Bahia Bock
Processo grupal

A nossa vida cotidiana é demarcada pela vida em grupo. Estamos o tempo todo nos relacionando com outras pessoas. Mesmo quando ficamos sozinhos, a referência de nossos devaneios são os outros: pensamos em nossos amigos, na próxima atividade — que pode ser assistir a aula de inglês ou realizar nova tarefa no trabalho (que, provavelmente, envolverá mais de uma pessoa); pensamos no nosso namoro, em nossa família. Raramente encontraremos uma pessoa que viva completamente isolada, mesmo o mais asceta dos eremitas levará, para o exílio voluntário, suas lembranças, seu conhecimento, sua cultura. Por encontrarmos determinantes sociais em qualquer circunstância humana1, podemos afirmar que toda Psicologia é, no fundo, uma Psicologia Social.

Talvez seja por isso que nossas vidas encontram sempre uma certa regularidade, que é necessária para a vida em grupo.

As pessoas precisam combinar algumas regras para viverem juntas. Se estiver num ponto de ônibus às sete horas da manhã, eu preciso ter alguma certeza de que o transporte aguardado passará por ali mais ou menos neste horário. Alguém combinou isso com o motorista. Dependemos do outro em nosso cotidiano. Um funcionário precisou abrir o portão da escola, cujas dependências já estavam devidamente limpas; um professor nos espera; ao chegar à escola, encontro colegas que também têm aulas no mesmo horário. A esse tipo de regularidade normatizada pela vida em grupo, chamamos de institucionalização.

Dada a importância da vida dos grupos (e em grupo) e do processo de institucionalização, estes dois temas têm se destacado [pg. 214] ultimamente no campo da Psicologia Social. O primeiro é recorrente e pode-se dizer que, apesar de sua atualidade, é um tema clássico. Estamos falando da Psicologia dos Grupos, a qual preferimos chamar de Processo Grupal. O segundo tema — Psicologia Institucional — só é encontrado na literatura especializada a partir da metade do século 20. De certa maneira, estes temas estão interligados, e isso nos levou a abordá-los em um mesmo capítulo.

Para entendermos a Psicologia Institucional, precisamos, primeiro, conhecer o processo de institucionalização que ocorre em nossas sociedades. Na realidade, vivemos mergulhados em instituições e, por isso, antes de entrarmos no assunto, devemos desfazer algumas confusões muito comuns geradas pelos vários entendimentos do que seja “instituição”. O termo é utilizado, de forma corriqueira, para designar o local onde se presta um determinado tipo de serviço — geralmente público, como os serviços de saúde e social. Freqüentemente ouvimos alguém mencionar que trabalha na instituição tal, ou somos orientados a procurar determinada instituição para resolver um tipo de problema. É o caso dos hospitais e centros de saúde, ou dos locais que atendem a crianças e adolescentes. O termo instituição também pode ser empregado para determinadas organizações sociais, como a família —
 “A família é uma instituição modelar” — frase mencionada com certa freqüência. Entretanto, quando falarmos aqui no termo instituição, não estaremos nos referindo a esses sentidos mais conhecidos e utilizados no nosso dia-a-dia. Mas, antes de definirmos o termo, vamos identificar a origem do processo de institucionalização da sociedade, o que nos permitirá entender melhor a referência teórica na qual estamos nos fundamentando.

O processo de institucionalização

O processo de institucionalização, de acordo com Berger e Luckmann — autores muito usados para definir como se dá a construção social da nossa realidade — começa com o estabelecimento de regularidades comportamentais. As pessoas vão, aos poucos, descobrindo a forma mais rápida, simples e econômica de desempenhar as tarefas do cotidiano. Vamos imaginar o homem primitivo: no momento em que começou a ter consciência da realidade que o cercava, ele passou a estabelecer essas regularidades. Um grupo social que vivesse, fundamentalmente, da pesca, estabeleceria formas práticas que garantissem a maior eficiência possível na realização [pg. 215] da tarefa. Pode-se dizer que um hábito se estabelece quando uma dessas formas repete-se muitas vezes. Um hábito estabelecido por razões concretas, com o passar do tempo e das gerações, transforma-se em tradição. E o que acontece? As bases concretas, estabelecidas com o decorrer do tempo, não são mais questionadas. A tradição se impõe porque é uma herança dos antepassados. Se eles determinaram que essa é a melhor forma, é porque tinham alguma razão. Quando se passam muitas gerações e a regra estabelecida perde essa referência de origem (o grupo de antepassados), dizemos, então, que essa regra social foi institucionalizada.

A monogamia — o casamento somente entre duas pessoas — pode ser considerada uma dessas instituições. É sabido que as sociedades primitivas não a conheciam. Os casamentos eram poligâmicos. A monogamia surge, então, na Grécia antiga e no Oriente Médio com o estabelecimento da propriedade privada e a descoberta da paternidade biológica. Entre os povos primitivos, o papel de pai era atribuído ao irmão materno mais velho; as famílias eram matrilineares (baseadas na linhagem materna) e, provavelmente, imperava o matriarcado. No início do modo de produção escravagista da organização social antiga (como foi o caso da Grécia), o surgimento das cidades, da propriedade privada e a descoberta da paternidade biológica colocavam o homem da época diante de uma questão: a herança. As pessoas (no caso, os homens) que acumulavam riquezas durante sua vida não tinham para quem deixá-las. A família paterlinear e o casamento monogâmico foi a forma de organização encontrada que definia, claramente, uma maneira de perpetuar a propriedade através da herança. O filho passou a ser o herdeiro dos bens paternos. Para isso, estes homens proprietários passaram a estabelecer, como regra, que suas mulheres deveriam manter relações sexuais somente com eles próprios (em função da descoberta do funcionamento da paternidade biológica) e, assim, teriam certeza de que o filho lhes pertencia. Hoje, qualquer pessoa de nossa sociedade ocidental, se questionada sobre a monogamia, dirá que o casamento se dá desta forma porque “é natural”. Curiosamente, ainda hoje temos culturas, como a muçulmana, que não adotam a monogamia como regra e, apesar dessa evidência contrária, alguém de nossa cultura continuará considerando a monogamia natural. A este fenômeno chamamos de instituição. [pg. 216]

Instituições, organizações e grupos

A instituição é um valor ou regra social reproduzida no cotidiano com estatuto de verdade, que serve como guia básico de comportamento e de padrão ético para as pessoas, em geral. A instituição é o que mais se reproduz e o que menos se percebe nas relações sociais. Atravessa, de forma invisível, todo tipo de organização social e toda a relação de grupos sociais. Só recorremos claramente a estas regras quando, por qualquer motivo, são quebradas ou desobedecidas.

Se a instituição é o corpo de regras e valores, a base concreta da sociedade é a organização. As organizações, entendidas aqui de forma substantiva, representam o aparato que reproduz o quadro de instituições no cotidiano da sociedade. A organização pode ser um complexo organizacional — um Ministério, como, por exemplo, o Ministério da Saúde; uma Igreja, como a Católica; uma grande empresa, como a Volkswagen do Brasil; ou pode estar reduzida a um pequeno estabelecimento, como uma creche de uma entidade filantrópica. As instituições sociais serão mantidas e reproduzidas nas organizações. Portanto, a organização é o pólo prático das instituições.

O elemento que completa a dinâmica de construção social da realidade é o grupo — o lugar onde a instituição se realiza. Se a instituição constitui o campo dos valores e das regras (portanto, um campo abstrato), e se a organização é a forma de materialização destas regras através da produção social, o grupo, por sua vez, realiza as regras e promove os valores. O grupo é o sujeito que reproduz e que, em outras oportunidades, reformula tais regras. É também o sujeito responsável pela produção dentro das organizações e pela singularidade — ora controlado, submetido de forma acrítica a essas regras e valores, ora sujeito da transformação, da rebeldia, da produção do novo.

A Importância do estudo dos grupos na Psicologia

Quando falamos em grupos, estamos abordando um tema que, de certa forma, é o tema fundante da Psicologia Social. Os primeiros estudos sobre os grupos foram realizados no final do século 19 pela então denominada Psicologia das Massas ou Psicologia das Multidões. Um dos primeiros pesquisadores deste assunto foi Gustav Le Bon, autor de um conhecido tratado intitulado “Psicologia das Massas” (Psicologie des Foules, no francês). Pode-se dizer que, de uma certa maneira, os pesquisadores do final do século 19 foram [pg. 217] influenciados pela Revolução Francesa2 e, mais precisamente, pelo impacto que causou nos pensadores do século 18 (como foi o caso de Hegel). Os pesquisadores se perguntavam o que teria sido capaz de mobilizar tamanho contingente humano, como o que fora mobilizado durante essa revolução. O que se perguntava no campo da Psicologia era o que levaria uma multidão a seguir a orientação de um líder mesmo que, para isso, fosse preciso colocar em risco a própria vida. Qual psicológico possibilitaria a coesão das massas? Estas durante o processo de ascensão do governo do 3 o Reich —Adolf Hitler — na Alemanha, na década de 30. Este triste episódio, que levou o mundo à 2a Grande Guerra (de 1939 a 1945), exemplificou as possibilidades de manipulação das massas.

O caso da Alemanha nazista foi surpreendente porque demonstrou até que ponto é possível produzir uma forma de hipnotismo coletivo. Entretanto, nem sempre os episódios de mobilização popular podem ser considerados um fenômeno irracional em que as pessoas perdem momentaneamente sua capacidade de discernir a realidade, ficando à mercê de um líder carismático que, na verdade, tenciona manipulá-las em função de interesses particulares ou políticos. Hoje, sabemos que, em diversas ocasiões, as pessoas se unem e formam massas compactas muito organizadas e autônomas, com objetivos claros e racionais. Um exemplo dessa capacidade de mobilização ocorreu em nosso País, em 1984, por ocasião da campanha das Diretas Já, episódio importante para a queda da ditadura militar. Milhões de pessoas que foram às ruas e aos comícios estavam conscientes de sua participação. [pg. 218] Apesar de a Psicologia Social surgir com o estudo das massas, será com grupos menores, os quais possuem objetivos claramente definidos, que se desenvolverá a pesquisa de grupos. Esse desenvolvimento ocorre a partir de 1930, com a chegada, aos Estados Unidos, de Kurt Lewin — professor alemão refugiado do nazismo. Lewin passou a pesquisar no Massachusetts Institute of Technology (MIT) — um renomado instituto estadunidense — onde desenvolveu a primeira teoria consistente sobre grupos. Essa teoria influenciou tanto a Psicologia, que a partir dela surgiu um campo na Psicologia Social denominado Cognitivismo. O trabalho de Lewin também influenciou bastante o desenvolvimento de uma teoria organizacional psicológica que, nas empresas, é aplicada no estudo das relações humanas no trabalho.

A possibilidade de aplicação imediata desta teoria ao campo organizacional impulsionou o desenvolvimento dos estudos sobre grupos nos Estados Unidos. Tanto as indústrias quanto as Forças Armadas investiram recursos financeiros na produção de pesquisas que revelassem como os grupos funcionavam e como poderiam ser motivados para o trabalho. Na década de 30, Elton Mayo realizou uma pesquisa que se tornaria o paradigma dos estudos motivacionais na área organizacional. Aplicada na fábrica Hawthorne, da Western Electric Company (empresa estadunidense de eletricidade), tinha, como objetivo, estudar a relação de fadiga nos operários a partir de uma série de variações experimentais [pg. 219] introduzidas na relação de trabalho, como a freqüência de pausa para descanso, a quantidade de horas trabalhadas, a natureza dos incentivos salariais. No entanto, Mayo e seus colaboradores depararam-se com um outro fenômeno: o das relações interpessoais (entre os operários, entre os operários e a administração). A observação dessas relações deu novo rumo à pesquisa, que priorizou o estudo da organização social do grupo de trabalho, das relações sociais entre o supervisor e os subordinados, dos padrões informais que dirigem o comportamento dos participantes num grupo de trabalho, dos motivos e das atitudes dos operários no contexto do grupo3. Esta pesquisa praticamente inaugurou a área da Psicologia Organizacional e mudou, consideravelmente, o pensamento sobre os problemas industriais.

A Dinâmica dos grupos

Exemplos mais detalhados da teoria dos grupos elaborada por Lewin e levada adiante por seus colaboradores podem ser encontrados no compêndio escrito por Cartwright e Zander, editado pela primeira vez em 1953, nos Estados Unidos. Os dois volumes trazem uma síntese de tudo o que foi produzido sobre dinâmica de grupo a partir dos estudos iniciais de Kurt Lewin. Exemplos de temas abordados: coesão do grupo (condições necessárias para a sua manutenção); pressões e padrão do grupo (argumentos reais ou imaginários, manifestos ou velados que seus membros utilizam para garantir a fidelidade dos demais aos objetivos do grupo e ao padrão de conduta estabelecido); motivos individuais e objetivos do grupo (elementos que garantem fidelidade e que estão relacionados com a escolha que cada indivíduo faz ao decidir participar de um grupo); liderança e realização do grupo (força de convencimento — carisma — exercida por um ou mais indivíduos sobre os outros e o tipo de atividade exercida pelo grupo); e, por fim, as propriedades estruturais dos grupos (padrões de comunicação, desempenho de papéis, relações de poder etc.).

Como já foi dito anteriormente, as pessoas vivem, em nossa sociedade, em campos institucionalizados. Geralmente moram com suas famílias, vão à escola, ao emprego, à igreja, ao clube; convivem com grupos informais, como o grupo de amigos da rua, do bar, do centro acadêmico ou grêmio estudantil etc. Em alguns casos, a institucionalização nos obriga a conviver com pessoas que não escolhemos. Quando conhecemos nossa primeira classe no ensino médio ou na universidade, descobrimos que vamos conviver com um grupo de 20, 30 ou 40 pessoas com as quais — como geralmente [pg. 220] acontece — não tínhamos nenhum contato. A essa forma de convívio que independe da nossa escolha chamamos de solidariedade mecânica. A afiliação a um grupo independe da nossa vontade no que diz respeito à escolha dos seus integrantes. A solidariedade orgânica é a forma de convívio na qual nos afiliamos a um grupo porque escolhemos nossos pares. É o caso do grupo de amigos que se reúne nos finais de semana para jogar futebol ou que decide formar uma banda. A afinidade pessoal é levada em consideração para a escolha do grupo. Nos grupos em que predomina a solidariedade mecânica, geralmente formam-se subgrupos que se caracterizam pela solidariedade orgânica, como é o caso das “panelinhas” em sala de aula ou do grupo de amigos em uma fábrica ou escritório.

No campo teórico até aqui mencionado, pode-se definir o grupo como um todo dinâmico (o que significa dizer que ele é mais que a simples soma de seus membros), e que a mudança no estado de qualquer subparte modifica o estado do grupo como um todo. O grupo se caracteriza pela reunião de um número de pessoas (que pode variar bastante) com um determinado objetivo, compartilhado por todos os seus membros, que podem desempenhar diferentes papéis para a execução desse objetivo.

Quando um grupo se estabelece (uma “panelinha” na sala de aula, um grupo religioso ou uma gangue de adolescentes), os fenômenos grupais anteriormente mencionados passam a atuar sobre as pessoas individualmente e sobre o grupo, ao que chamamos de processo grupal. A coesão é a forma encontrada pelos grupos para que seus membros sigam as regras estabelecidas.
Quando alguém começa a participar de um novo grupo, terá seu comportamento avaliado para verificação do grau de adesão. Os membros mais antigos já não sofrem esse tipo de avaliação e se, eventualmente, quebram alguma regra (que não seja muito importante), não são cobrados por isso. Ocorre que, no caso dos membros mais antigos, é conhecido o grau de aderência ao grupo e sabe-se que eles não jogam contra a manutenção do grupo. Esta “certeza” da fidelidade dos membros é o que chamamos de coesão grupal. Os grupos, de acordo com suas características, apresentam maior ou menor coesão grupal. [pg. 221] Uma torcida organizada de futebol, como as do Flamengo, Corinthians, Atlético Mineiro ou Grêmio (para citar algumas), exigirá de seus membros um grau de fidelidade bem forte porque necessita de um grau de coesão alto para manter o grupo. Já um grupo de jovens que participam de reuniões religiosas nos finais de semana numa igreja católica, precisaria de alguma coesão para manter o grupo, mas não em alto grau. Grupos com baixo grau de coesão tendem a se dissolver, como geralmente acontece com associações de pais em colégios. Além de reunirem-se eventualmente, poucos membros participam das reuniões (por isso, carinhosamente chamamos o grupo de “grupo dos que vêm”).

É possível notar que, de certa forma, os outros elementos, como pressões e padrão do grupo, motivos individuais e objetivos do grupo, já estão presentes na definição da coesão. A fidelidade ao grupo dependerá do tipo de pressão exercida pelo grupo em relação aos novatos e aos outros membros visando manter a concepção central, ou seja, os objetivos que levaram à sua fundação. Os motivos individuais são importantes para a adesão ao grupo. Alguém que pretenda ingressar num grupo jovem de góticos (jovens que costumam andar cora roupas escuras, visitar cemitérios, ouvir música do gênero gótico etc.) está se dispondo, individualmente, a mudar o seu modo de ser. Outro aspecto que envolve a individualidade é a resposta que o grupo dá às diferenças individuais. Elas serão admitidas desde que não interfiram nos objetivos centrais do grupo, na sua idéia central ou nas suas características básicas. O participante de uma torcida organizada não pode querer mudar de time (virar a casaca) e argumentar que se trata de uma questão individual. Seria, evidentemente, excluído do grupo. Mas poderia ir ao jogo sem a camisa do clube, argumentando não ter tido tempo de passar em casa e se preparar. Os objetivos do grupo irão sempre prevalecer aos motivos individuais, mas dependendo desse objetivo, as diferenças individuais poderão ser admitidas. Quanto mais o grupo precisar garantir sua coesão, mais ele impedirá manifestações individuais que não estejam claramente de acordo com seus objetivos.

A questão da liderança pode representar um capítulo à parte na discussão sobre a teoria dos grupos. Foi entre 1935 e 1946 que Kurt Lewin desenvolveu uma teoria consistente, que avaliava o clima grupal e a influência das lideranças na produção da atmosfera dos grupos. Lewin argumentava que o clima democrático, autoritário ou o laissez-faire dependiam da vocação do grupo e do estabelecimento de lideranças que os viabilizassem. Assim, um grupo com vocação autoritária (entenda-se: um grupo cujos membros acreditassem nesta [pg. 222] forma de organização na sua relação grupal) necessitaria de um líder autoritário. Um grupo democrático exigiria uma liderança democrática e um grupo sem preocupações com sua organização, ou não teria liderança, ou teria um líder que não lhe daria direção (seria um estilo anárquico, no sentido mais geral do termo). O importante desta classificação feita por Lewin foi a descoberta de que os grupos democráticos são, a longo prazo, os mais eficientes. Já os autoritários têm uma eficiência imediata, na medida em que são muito centralizados e dependem praticamente de seu líder. Mas são pouco produtivos, pois funcionam a partir da demanda do líder, e seus membros são, geralmente, cumpridores de tarefas. Os grupos democráticos exigem maior participação de todos os membros, que dividem a responsabilidade da realização da tarefa cora sua liderança. Este tipo de grupo pode tornar-se mais competente ainda quando sua liderança for emergente, isto é, quando se desenvolver de acordo com o objetivo ou tarefa proposta pelo grupo.

Muitos foram os autores que sucederam Lewin na discussão da estrutura e do funcionamento dos grupos. Neste livro, você tomou conhecimento das diversas formas que podemos definir a Psicologia. O mesmo ocorre com a definição de grupo, do qual teremos uma visão de acordo com a teoria em pauta. Seria muito extenso e cansativo relatar aqui toda a história das definições de grupo no campo da Psicologia. Mas algumas são muito importantes para quem quiser se aprofundar nesse assunto, como a de Jacob Moreno (Psicodrama), a de Didier Anzieu (vale conferir sua discussão sobre grupos), e a de W. Bion (visão psicanalítica).

Grupos operativos

A abordagem de trabalho em grupo (a qual denominou “Grupos Operativos”) baseado tanto na tradição legada por Lewin quanto nos conhecimentos psicanalíticos. De acordo com o psicólogo Saidon, estudioso da obra de Pichon-Rivière,

“o grupo operativo se caracteriza por estar centrado, de forma explícita, em uma tarefa que pode ser o aprendizado, a cura (no caso da psicoterapia), o diagnóstico de dificuldades etc. Sob essa tarefa, existe outra implícita subjacente à primeira, que aponta para a ruptura das estereotipias que dificultam o aprendizado e a comunicação.4“ [pg. 223]

Na verdade, o grupo operativo configura-se como um modo de intervenção, organização e resolução de problemas grupais, baseado em uma teoria consistente, desenvolvida por Pichon-Rivière e conhecida como Teoria do Vínculo. Tal abordagem transformou-se num poderoso instrumento de intervenção em situações organizacionais e é muito usada hoje em dia. Através de sua aplicação, é possível acompanhar determinado grupo durante a realização de tarefas concretas e avaliar o campo de fantasias e simbolismos encobertos nas relações pessoais e organizacionais dos seus diferentes membros.

O processo grupal

O desenvolvimento de uma Psicologia Social Crítica, a partir de 1970, levou tanto Silvia Lane quanto Martin-Baró5, cada um a seu modo, a desenvolver uma consistente crítica aos modelos teóricos existentes. Tal crítica procura resguardar aspectos funcionais da dinâmica dos grupos — no que concordam com Lewin. No entanto, Lane e Baró questionam os autores cognitivistas (os seguidores de Lewin) pela maneira estática como enquadram o grupo. Da mesma forma, consideram positivo o enquadramento psicanalítico, o qual leva em conta a dinâmica interna dos grupos, criticando, contudo, a visão anistórica destes teóricos. A teoria de Pichon-Rivière também sofrerá algumas críticas. O fundamental nesta visão é considerar que não existe grupo abstrato mas, sim, um processo grupal que se reconfigura a cada momento. Silvia Lane detecta categorias de produção grupal, que define como:

  1. Categoria de produção — a produção das satisfações de necessidades do grupo está diretamente relacionada com a produção das relações grupais. O processo grupal caracteriza-se como atividade produtiva de caráter histórico.
  2. Categoria de dominação — os grupos tendem a reproduzir as formas sociais de dominação. Mesmo um grupo de características democráticas tende a reproduzir certas hierarquias comuns ao modo de produção dominante (no nosso caso, o modo de produção capitalista).
  3. Categoria grupo-sujeito (de acordo com Lourau) — trata-se do nível de resistência à mudança apresentada pelo grupo. Grupos [pg. 224] com menor resistência à autocrítica e, portanto, com capacidade de crescimento através da mudança, são considerados grupos-sujeitos. Os grupos que se submetem cegamente às normas institucionais e apresentam muita dificuldade para a mudança são os grupos-sujeitados.

A categoria de produção pode ser entendida como a influência subjetiva da dinâmica do grupo no seu produto final, na realização de seus objetivos. Mas é também o resultado da influência das relações concretas possíveis numa determinada sociedade. Um grupo que se organiza para formar um conjunto de rap estará, necessariamente, submetido às condições históricas do momento de sua organização. Por exemplo, o grupo certamente terá, como objetivo, algum ganho financeiro, já que é um imperativo do tipo de sociedade em que vivemos (a sociedade capitalista) a comercialização da produção social. Este fator interfere na dinâmica do grupo, que terá de discutir a forma de cobrir as suas despesas e a divisão do lucro. Quem compõe a música, ou quem tem maior prestígio entre os fãs, deve ganhar mais que os outros ou esse lucro será dividido igualmente entre todos? Conforme a decisão, poderá surgir um tipo de hierarquia no grupo. A base da produção da hierarquia não precisa ser pecuniária, podendo advir do prestígio de alguns membros do grupo. O vocalista pode exigir algumas regalias, como ter sua foto em destaque, e isso também será fator de hierarquização. Com isso, queremos dizer que a construção das lideranças e do clima democrático ou autoritário depende da condição histórica e concreta do tipo de produção do grupo e de como ela se insere no contexto social. Um grupo de rap terá algumas opções, mas o grupo formado no escritório de uma empresa multinacional terá uma ordem de organização determinada pelos objetivos ligados à produção daquela empresa. E aqui já entramos na segunda categoria descrita por Lane: a dominação. A hierarquização dos grupos de forma mais verticalizada ou horizontalizada dependerá de como estão inseridos no sistema produtivo.

De acordo com a maneira como a sociedade define seu sistema produtivo, ela estabelece valores sociais que, de uma maneira geral, serão reproduzidos pelos grupos, estejam eles mais ou menos diretamente ligados ao sistema produtivo. Assim, quando se trata do trabalho numa fábrica, o grupo tenderá a ser bastante verticalizado (diretor, gerente, chefe, encarregado e operários) e esta verticalização poderá ser transferida, como valor, para o grupo familiar do operário (o pai, a mãe, o filho mais velho e os mais novos). [pg. 225]

Entretanto, existe a possibilidade de o grupo (ou alguns de seus membros) exercer a negação deste processo de imposição social (na realidade, é isso que cria uma dinâmica social mais rica e variada). Chegamos à terceira categoria: grupo-sujeito. O grupo-sujeito é aquele que critica as formas autoritárias de organização e procura estabelecer uma contranorma. Isto somente é possível quando o grupo consegue esclarecer a base de dominação social, historicamente determinada, e encontra formas de organização alternativas (como é o caso das formas autogestionárias de organização grupal).

Psicologia - Psicologia social
Personalidade - Identidade, 
7/27/2021 2:00:37 PM | Por Ana Mercês Bahia Bock
A identidade

Vemos uma pessoa desconhecida em uma festa, no pátio da escola ou no ponto de ônibus. Não sabemos nada a seu respeito. É um enigma a ser desvendado. Será? Nem tanto... A partir do momento que a olhamos, já começamos a conhecê-la: discriminamos seu sexo (homem ou mulher), sua faixa etária (criança, jovem, adulto), sua etnia. E, se prestamos mais atenção, podemos perceber alguns “detalhes” que fornecem outros indicadores sobre este desconhecido, ou seja, o modo de se vestir e os piercings o situam em determinado grupo; o broche na roupa — uma estrela vermelha — “fala” de sua opção por determinado partido político...

Aí, nos aproximamos da pessoa e vem a “famosa” pergunta: — Qual o seu nome? Depois dessa primeira pergunta, podemos fazer muitas outras... mais ou menos como aquelas da ficha para procurar emprego, do formulário para fazer crediário ou das entrevistas iniciais com o psicólogo — onde mora e estuda, a idade, a religião, se trabalha ou não, o que gosta e o que não gosta de fazer, enfim, um roteiro que pode ser interminável e se referir ao presente, ao passado e ao futuro desse desconhecido que começa a deixar de sê-lo.

Conhecer o outro é querer saber quem ele é.

— Quem é você? Quem sou eu?

Perguntas não tão simples de serem respondidas e que acompanham a história da humanidade.

Na Grécia Antiga, na cidade de Delfos, havia o oráculo do deus Apolo, em cujo frontispício havia o lema: “Conhece-te a ti [pg. 202] mesmo”. Na famosa tragédia de Sófocles (Édipo rei), em dúvida quanto à sua origem, Édipo procura este oráculo para saber quem ele é — sua identidade — e a resposta é aterradora: Édipo é aquele que dormiria com a própria mãe e mataria o pai.

Muitos séculos depois, Shakespeare escreveria uma peça — Hamlet — cujo mote se vulgarizou: “ser ou não ser... eis a questão”. No início deste século, Machado de Assis escreve um romance — Dom Casmurro — que é um primor enquanto desafio para a compreensão de quem é a personagem principal, Capitu.

Portanto, saber quem é o outro é uma questão aparentemente simples e se constitui desafio em cada novo encontro e, mesmo nos antigos, porque as pessoas mudam, embora continuem elas mesmas.

Para compreender esse processo de produção do sujeito, que lhe permite apresentar-se ao mundo e reconhecer-se como alguém único, a Psicologia construiu o conceito de identidade.

Este conceito, como muitos outros em Psicologia, tem várias compreensões e utiliza contribuições de outras áreas do conhecimento. Vamos elencar as principais.

Carlos R. Brandão, antropólogo e educador1, diz que a identidade explica o sentimento pessoal e a consciência da posse de um eu, de uma realidade individual que torna cada um de nós um sujeito único diante de outros eus; e é, ao mesmo tempo, o reconhecimento individual dessa exclusividade: a consciência de minha continuidade em mim mesmo. A referência do autor ao eu em oposição aos outros eus, leva-nos a considerar algo bastante importante: é em relação a um outro — diferente de nós — que nos constituimos e nos reconhecemos como sujeito único. Este aspecto será abordado quando falarmos de identificação e identidade: dois conceitos que, no senso comum, muitas vezes são usados como sinônimos, mas se referem a processos bastante diferentes.

Segundo o psicanalista André Green, o conceito de identidade agrupa várias idéias, como a noção de permanência, de manutenção de pontos de referência que não mudam com o passar do tempo, como o nome de uma pessoa, suas relações de parentesco, sua nacionalidade. São aspectos que, geralmente, as pessoas carregam a vida toda. Assim, o termo identidade aplica-se à delimitação que permite a distinção de uma unidade. Por fim, a identidade permite uma relação com os outros, propiciando o reconhecimento de si. [pg. 203]

Entretanto, tais propriedades — constância, unidade e reconhecimento — descrevem um determinado momento da identidade de alguém, mas não são capazes de acompanhar o processo de sua produção e de sua transformação.

Várias correntes da Psicologia (e a Psicanálise, inclusive) nos ensinam que o reconhecimento do eu se dá no momento em que aprendemos a nos diferenciar do outro. Eu passo a ser alguém quando descubro o outro e a falta de tal reconhecimento não me permitiria saber quem sou, pois não teria elementos de comparação que permitissem ao meu eu destacar-se dos outros eus. Dessa forma, podemos dizer que a identidade, o igual a si mesmo, depende da sua diferenciação em relação ao outro. O primeiro “outro” importante é a mãe (sempre ela!), de quem o bebê vai se diferenciando, aprendendo que não é uma extensão dela.

São duas pessoas e, ao mesmo tempo, é  o olhar da mãe sobre o bebê que vai dando a ele o seu valor como pessoa. Por isso, as primeiras relações são tão importantes na vida de todas as pessoas. Neste processo de diferenciação, a criança começa a escolher outras pessoas como objeto de identificação, isto é, pessoas significativas que funcionam como modelo em relação ao qual o sujeito vai se apropriando de algumas características, através do processo de identificação, e vai formando sua identidade: o que sou e quero ser, sendo que o que quero ser (o futuro!) já constitui o que sou (o presente). É importante, aqui, esclarecer que o conjunto de experiências, ao longo da vida, permite a cada um “montar” o seu próprio modelo do que pretende ser como homem ou mulher, como profissional, como cidadão etc. Isto porque, o que quero ser como mulher, por exemplo, tem como referência várias mulheres que foram importantes para mim, ao longo de minha vida: é um amálgama de características de minha mãe, daquela professora tão especial, da heroína de um romance e da mãe de uma amiga minha. Este é um modelo com o qual me identifico e vou procurando construir minha identidade.

Como continuo vivendo e tendo experiências com novas pessoas, posso alterar este modelo e, neste momento, podemos perguntar: alguém é sempre igual a si mesmo? Há a possibilidade de mudança de identidade? Se a resposta for afirmativa, estará ocorrendo perda de identidade? [pg. 204]

Estas perguntas são importantes porque introduzem a idéia fundamental de que a identidade é algo mutável, em permanente transformação. Assim, chegamos a um ponto bastante interessante!

Como é possível alguém mudar e continuar sendo igual a si mesmo? E é exatamente isso o que acontece. Pense em si até onde sua memória alcança e repare que você e as pessoas nunca duvidaram que você seja você mas, ao mesmo tempo, quantas mudanças ocorreram! Você deixou de ser filho único, não é mais o primeiro aluno da classe; você descobriu que pensa diferente de seus pais em muitas coisas e se deu conta que seu corpo mudou muito — você, que sempre sonhou em ser aeromoça ou bailarina, agora está pensando seriamente em se profissionalizar na área de enfermagem... e quantas mudanças ainda ocorrerão!

Para compreender esse processo do ponto de vista teórico, o professor da PUC-SP, Antonio da Costa Ciampa, desenvolveu uma concepção psicossocial da identidade em que esta aparece em sua dimensão de processo. Para este autor, a identidade tem o caráter de metamorfose, ou seja, está em constante mudança. Entretanto, ela se apresenta — a cada momento — como em uma fotografia, como “estática”, como não-metamorfose, escamoteando sua dinâmica real de permanente transformação. Estas transformações referem-se tanto àquelas que são inexoráveis: a passagem da infância para a adolescência e, posteriormente, idade adulta, como àquelas que dependem das oportunidades sociais e do acesso aos bens culturais: a possibilidade de estudar, de cursar uma faculdade, de viajar e de ter acesso a outras experiências culturais, por exemplo.

Para esclarecer melhor este aspecto, o autor utiliza o belíssimo poema de João Cabral de Melo Neto, Morte e Vida Severina. Ao dar nome a alguém, torno esse alguém determinado, substantivo. No poema, o retirante se apresenta ao leitor dizendo assim:

O meu nome é Severino, não tenho outro de pia. Como há muitos Severinos, que é santo de romaria, deram então de me chamar

 Severino de Maria; como há muitos Severinos com mães chamadas Maria, fiquei sendo o da Maria do finado Zacarias... [pg. 205]

Para não ser confundido com outros tantos Severinos, o retirante procura definir, de uma forma substantiva, quem ele é — um determinado Severino. Mas, ao falar de sua identidade, ele também está falando de uma realidade social. A realidade social em que está inserido, as condições de vida no sertão do Nordeste brasileiro. Ele fala de como a família se estrutura fragilmente (a falta de sobrenome — não tem outro nome de pia, isto é, de batismo), fala da religiosidade do nordestino (o nome do santo de romaria, a quem se pede e se homenageia dando seu nome aos filhos), da morte prematura das pessoas nessa região (o Severino da Maria do finado Zacarias).

Ao falar do contexto social, ele percebe que, cada vez mais, é semelhante a tantos outros Severinos e que não tem como se apresentar. A sua substantivação não é suficiente para definir sua identidade. Ele só consegue expressar a sua particularidade quando, no final desse trecho, nos diz:

Mas, para que me conheçam melhor Vossas Senhorias
e melhor possam seguir
a história de minha vida, passo a ser o Severino que em vossa presença emigra.
Assim, ficamos sabendo exatamente quem é esse Severino, não
na sua definição, na sua substantivação, mas na sua ação, na sua predicação.

É a atividade que constrói a identidade. A predicação é a predicação de uma atividade anterior, que “presentifica” o ser. Entretanto, pelo fato de estarmos inseridos nas organizações, a ação é fragmentada. Eu sou o que faço naquele momento, e não é possível repor o tempo todo minhas outras facetas, minha ação em outros grupos. Na escola, sou reconhecido como um bom estudante ou um bom jogador de basquete; no meu emprego sou um bom arquivista e, junto aos amigos, sou um bom conselheiro. O bom conselheiro não inclui o arquivista, embora ambos se refiram a mim.

A atividade “coisifica-se” sob a forma de personagem. A forma como apresentamos o exemplo já denuncia isso. Sou arquivista porque arquivo e um bom conselheiro porque dou conselhos. Se desistir de arquivar, não serei mais arquivista.

Entretanto, a construção da personagem congela a atividade, e perco a dinâmica de minha própria transformação. A identidade, então, que é metamorfose, apresenta-se como não-metamorfose.

A identidade é sempre pressuposta mas, ao mesmo tempo, tal pressuposição é negada pela atividade, já que, ao fazer, eu me transformo, [pg. 206] o que faz da identidade um processo em permanente movimento. Como a personagem que eu represento é congelada pela pressuposição, eu procuro repor a minha identidade pressuposta durante a atividade. O processo de reposição cria a ilusão de que “o mesmo” está produzindo esta nova ação. Isso gera a identidade-mito (personagem congelada, independente da ação), em que a atividade aparece padronizada previamente, e passo a ter uma certa ilusão de substancialidade. A personagem subsiste mesmo que já não exista mais a atividade, como é o caso de Severino, que, chegando à cidade, é visto como lavrador — um lavrador que já não lavra, que agora lava carros, trabalha como peão na construção civil ou recolhe sucata nas ruas.

Identidade e crise

É importante que tenha ficado claro que a identidade é um processo de construção permanente, em contínua transformação — desde antes de nascer até a morte! — e, neste processo de mudança, o novo — quem sou, agora — amalgama-se com o velho — quem fui ontem, quando era adolescente, criança! E isto que dá o fio da história de cada um, mesmo que, pela aparência, seja difícil discernir, por trás do presidente neoliberal, o sociólogo marxista perseguido pela ditadura ou, por trás do apresentador de TV milionário, o antigo camelô das ruas de São Paulo. Um olhar atento, para além das aparências e dos preconceitos, perceberá que o antigo está no novo.

Contudo, há situações em que esse processo de mudança contínuo ocorre de modo intenso, confuso e, muitas vezes, angustiante e doloroso. Falamos, então, em crise de identidade.

São momentos, períodos importantíssimos da vida de uma pessoa em que ela procura, com maior ou menor grau de consciência dessa crise, redefinir ou ratificar seu modo de ser e estar no mundo... sua identidade: para si e para os outros.

Um caso exemplar de crise de identidade, em função inclusive de seu caráter inexorável, e que pode ser vivida com mais ou menos sofrimento, é a adolescência. Este período de vida marca a passagem da infância para a juventude quando, independentemente da vontade do indivíduo, grandes mudanças ocorrem em todos os níveis: o corpo transforma-se, o funcionamento bioquímico altera-se, a capacidade intelectual realiza-se com maior flexibilidade — a capacidade [pg. 207] de operar com abstrações, de pensar sobre o pensamento — os interesses mudam; o mundo não se restringe ao universo familiar e escolar, e os grupos de pertencimento passam a ter outras expectativas de conduta sobre o adolescente, como a autonomia, o saber cuidar de si, enfim, ocorre uma revolução! E como dar conta de tudo isso que ocorre dentro e fora de mim?! Não sou mais criança, não quero ser e, ao mesmo tempo, gosto de deitar no colo da minha mãe. Posso ou não posso? Não quero desagradar meu pai e tenho uma curiosidade enorme de fumar maconha, no que sou incentivado pelos meus amigos. Como dou conta disso? Sou a única garota da minha turma que ainda não transou, tenho medo da AIDS, meu namorado vive me pressionando para dormirmos juntos e eu também morro de tesão e... de medo! Fui preparado, mesmo antes de nascer, para ser a sétima geração de advogados da minha família, que já teve até um ministro da justiça e, neste momento, o que mais quero é estudar música, ser músico. Como enfrentar a família inteira com o meu desejo?

Quantos conflitos! Quantas dúvidas! “Ser ou não ser, eis a questão!”

Embora marcada por intensa “turbulência interna”, essa crise pode significar — e, na maioria das vezes, o é — um período de “confusão” criadora, em que há o luto da perda do corpo infantil e a estranheza quanto àquele corpo adulto (ele mesmo!) que o adolescente desconhece e deseja, e que vai se constituindo, inexoravelmente. Às mudanças do corpo correspondem mudanças em sua subjetividade. “O novo corpo é habitado por uma nova mente” (José Outeiral, Adolescer — estudos sobre adolescência, ed. Artes Médicas, Porto Alegre, 1994). Novas influências amalgamadas: o grupo de pares; personagens do mundo intelectual, artístico, esportivo, político; aquele professor fantástico; os pais que, sem dúvida, continuam sendo importantes figuras de identificação.

E, de tudo isso produz-se alguém novo, com rupturas mais ou menos intensas com a sua história pregressa mas que, sem dúvida, estará inscrita na sua biografia e, portanto, será constitutivo de sua identidade tudo o que já viveu. A crise de identidade na adolescência é algo inevitável, contudo, existem outras crises que são construídas e produzidas pelo próprio indivíduo e/ou por circunstâncias sociais e biográficas.

Uma situação dessa é descrita por Maria Lúcia V. Violante no livro O Dilema do Decente Malandro, quando estuda a situação dilemática vivida por jovens autores de ato infracional abrigados em uma instituição de privação de liberdade, em São Paulo: ser “malandro”, isto é, permanecer na criminalidade, ou “decente”, isto é, romper com a trajetória da criminalidade e escolher um projeto de vida de inserção na coletividade. A situação de conflito é concretizada [pg. 208] pelas duas referências de identificação que se tornam igualmente importantes: o discurso dos educadores e o discurso dos colegas do seu grupo de referência. Não é fácil decidir: do ponto de vista deste jovem, há perdas e ganhos em qualquer uma das opções.

Estigma

Uma introdução ao estudo da identidade não seria completa se não abordássemos o estigma. O que é isso? O estigma refere-se as marcas — atributos sociais que um indivíduo, grupo ou povo carregam e cujo valor pode ser negativo ou pejorativo. Imagine o que significa para um indivíduo, em termos pessoais e sociais, ser egresso da prisão ou de instituição psiquiátrica; ser homossexual, prostituta ou portador do vírus HIV? Imagine o que significou, para o indivíduo, ser judeu na Alemanha nazista, ou negro na África do Sul durante o Apartheid?

Estes são atributos facilmente reconhecíveis como carregados de um valor negativo para a maioria das pessoas e determinam, para o indivíduo, um destino de exclusão ou a perspectiva de reivindicação social pelo direito de ser bem tratado e ter oportunidades iguais. O estigma revela que a sociedade tem dificuldade de lidar com o diferente. Esta dificuldade é “perpetuada”, ao longo das gerações, pela educação familiar, pela escola, pelos meios de comunicação de massa, por cada um de nós em nosso cotidiano, o que leva à construção de uma carreira moral para o indivíduo estigmatizado, isto é, sua identidade vai incorporar este atributo ao qual corresponde um valor social negativo. Um exemplo chocante e ilustrativo dessa incorporação ocorreu na década de 90, quando uma menina de seis anos foi proibida de freqüentar uma pré-escola e, expulsa de outra, por ser portadora do HIV. Existem inúmeros exemplos como esse, cujo modo de a sociedade lidar vai demonstrando que há um percurso, um destino que estas pessoas devem assumir.

Um aspecto bastante importante desse processo, que pode envolver um indivíduo, um grupo ou um povo inteiro e acompanhar o indivíduo desde o seu nascimento (uma característica física, por exemplo) ou ser adquirido ao longo da vida (assumir a própria homossexualidade) é o atributo negativo pode ser internalizado pelo indivíduo e constituir aspecto importante de sua auto-imagem e auto-estima. [pg. 209]

Nesse sentido, é importante prestar atenção a situações semelhantes ao processo de estigmatização que pode permear a vida cotidiana. Exemplo: na escola, a professora que reiteradas vezes afirma que determinado aluno “tem dificuldades”, “é burro”, “cabeça-dura”, “difícil de aprender”, sem dúvida poderá ser uma experiência marcante para ele, que, se internalizar tais comentários, passará a ver a si próprio da forma como a professora o vê e diz ser, e este aluno, que não tem dificuldades, poderá realizar a profecia de fracasso pregada por ela.

PARA FINALIZAR... Agora que você conhece os vários fatores e processos envolvidos na construção da identidade, imagine um encontro casual com uma pessoa desconhecida. Ao vê-la, você saberá responder às perguntas: Quem é ela? Qual a sua identidade? — Não. Mas, você já sabe algumas “coisas” importantes. E, uma delas, é que a aparência (que inclui o comportamento observável) é um ponto de partida para conhecer esta pessoa.

Os atributos visíveis da identidade são sinais importantes para iniciar a longa trajetória de descoberta do outro. Mas, não são suficientes. Lembre-se: as aparências podem enganar ou... as pessoas estão em contínuo processo de mudança...

Psicologia - Psicologia social
Personalidade - Subjetividade, Vida afetiva
7/27/2021 1:32:32 PM | Por Ana Mercês Bahia Bock
Vida afetiva

“O coração tem razões que a própria razão desconhece.” Quais são essas razões? São nossos afetos que dão o colorido especial à conduta de cada um e às nossas vidas. Eles se expressam nos desejos, sonhos, fantasias, expectativas, nas palavras, nos gestos, no que fazemos e pensamos. É o que nos faz viver.

Para falarmos de afetos, seria preferível dar a palavra aos poetas. Estes sim, expressam-nos de uma maneira tão clara, tão precisa, que traduzem com perfeição estados internos que não cabem na racionalidade científica:

Quanto mais desejo

Um beijo seu 

Muito mais eu vejo

Gosto em viver.1 [pg. 189]

Por que os psicólogos precisam falar da vida afetiva?

Porque ela é parte integrante de nossa subjetividade. Nossas expressões não podem ser compreendidas, se não considerarmos os afetos que as acompanham. E, mesmo os pensamentos, as fantasias — aquilo que fica contido em nós — só têm sentido se sabemos o afeto que os acompanham. Por exemplo, aquela idéia de que o melhor amigo irá se sair mal em uma competição, só adquire sentido quando descobrimos que sua origem está na inveja que se tem dele. O Psicólogo, em seu trabalho, não pode deixar de lado esse aspecto constitutivo da subjetividade — a vida afetiva — e estudar apenas a vida cognitiva e racional dos indivíduos. Agindo assim, certamente não irá compreendê- los em sua totalidade.

Por tanto amor
Por tanta emoção
A vida me fez assim Doce ou atroz
Manso ou feroz
Eu, caçador de mim.2

Pense em quantas vezes você já programou uma forma de agir e, na hora “H”, comportou-se completamente diferente. Por exemplo, uma jovem soube algo de seu namorado que a aborreceu, mas ela racionalmente resolveu não criar caso e pensou: “Quando ele chegar, vou ser carinhosa e não vou deixar transparecer que me aborreci” e, de repente, quando o tem à sua frente, ela se vê esbravejando, agredindo, enciumada. Seus afetos a traíram. Foi difícil ou, no caso, impossível contê-los. Tanto nesse exemplo, como em muitas situações de vida, não há a mediação do pensamento — são os afetos que determinam nosso comportamento. É nesta circunstância que se ouve aquela frase tão corriqueira: “Como ele é impulsivo!”. Por isso, os afetos são importantes para os psicólogos.

Marx afirmou “que o homem se define no mundo objetivo não somente em pensamento, senão com todos os sentidos (...). Sentidos que se afirmam, como forças essenciais humanas (...). Não só os cinco sentidos, mas os sentidos espirituais (amor, vontade...)”3. [pg. 190]

O estudo da vida afetiva

O estudo da razão tem sido privilegiado no interesse dos homens, principalmente na ciência, pois os afetos têm sido vistos como deformadores do conhecimento objetivo. Mesmo na Psicologia, não são todas as teorias que consideram a importância da vida afetiva, tendo, muitas delas, priorizado apenas o estudo da cognição, das funções intelectivas.

Consideramos que estudar apenas alguns aspectos do homem é considerá-lo como um ser fragmentado, correndo-se o risco de deixar de analisar aspectos importantes.

Como diz Bader Sawaya:

“O homem se afirma no mundo objetivo, não só no ato do pensar, mas com todos os sentidos, até com os sentidos mentais (vontade, amor e emoção)”4.

Minha mãe achava estudo
A coisa mais fina do mundo,
Não é.
A coisa mais fina do mundo é o sentimento. Aquele dia de noite, o pai fazendo serão, Ela falou comigo: “Coitado, até essa hora no serviço pesado”. Arrumou pão e café, deixou tacho no fogo com Água quente.
Não me falou em amor,
Essa palavra de luxo.5

A vida afetiva, ou os afetos, abarca muitos estados pertencentes à gama prazer-desprazer, como, por exemplo, a angústia em seus diferentes aspectos — a dor, o luto, a gratidão, a despersonalização — os afetos que sustentam o temor do aniquilamento e a afânise, isto é, o desaparecimento do desejo sexual.

Ao procurarmos compreender a vida afetiva, é importante adotarmos a terminologia adequada por tratar-se de uma área de estudo repleta de nuances. Portanto, se até o século 19 usavam-se, indiscriminadamente, termos como emoção e sentimento, hoje, no estudo da vida afetiva, já fazemos uma distinção mais precisa entre esses termos:

  • a emoção: estado agudo e transitório. Exemplo: a ira.
  • o sentimento: estado mais atenuado e durável. Exemplo: a gratidão, a lealdade. [pg. 191]

Os afetos

Os afetos podem ser produzidos fora do indivíduo, isto é, a partir de um estímulo externo — do meio físico ou social — ao qual se atribui um significado com tonalidade afetiva: agradável ou desagradável, por exemplo. A origem dos afetos pode também nascer, surgir do interior do indivíduo.

O universo dos afetos é comunicável na medida que as representações de coisa e palavra formam, com os afetos, um complexo psíquico inteligível. É importante lembrar aqui que, para a Psicanálise, não há afeto sem representação, isto é, sem idéia. Se assim fosse, poderíamos ter a impressão que existe afeto solto dentro de nós — uma sensação de mal-estar, por exemplo —, isso porque a idéia à qual o afeto se refere pode estar inconsciente.

O prazer e a dor são as matrizes psíquicas dos afetos, ou se constituem em afetos originários. Entre estes dois extremos encontram- se inúmeras tonalidades, intensidades de afetos, que podem ser vagos, difíceis de nomear ou discriminados.

Com açúcar, com afeto

Fiz seu doce predileto

Pra você parar em casa.6 

Existem dois afetos que constituem a vida afetiva: o amor e o ódio. Estão sempre presentes na vida psíquica — de modo mais ou menos integrado —, associados aos pensamentos, às fantasias, aos sonhos e se expressam de diferentes modos na conduta de cada um.

Freud, quando postulou a teoria do Complexo de Édipo, concebeu-o como conflito desses afetos básicos (ambivalência de sentimentos), pois uma das suas principais dimensões é a oposição entre “um amor fundamentado e um ódio não menos justificado, ambos dirigidos à mesma pessoa”7.

As aparências enganam 

Aos que odeiam e aos que amam

Porque o amor e o ódio

Se irmanam na fogueira das paixões8. [pg. 192]

Os afetos ajudam-nos a avaliar as situações, servem de critério de valoração positiva ou negativa para as situações de nossa vida; eles preparam nossas ações, ou seja, participam ativamente da percepção que temos das situações vividas e do planejamento de nossas reações ao meio. Essa função é caracterizada como função adaptativa.

Quando olhaste bem
Nos olhos meus
E o teu olhar era de adeus Juro que não acreditei Eu te estranhei
Me debrucei sobre o teu corpo E duvidei
E me arrastei.9

Os afetos também têm uma outra característica — eles estão ligados à consciência, o que nos permite dizer ao outro o que sentimos, expressando, através da linguagem, nossas emoções. E é isso o que fazem, incessantemente, os poetas, até mesmo quando não querem falar:

Não quero falar, Pois sinto.
Não tenho de amar, Pois amo.10

Contudo, muitas vezes os afetos são enigmáticos para quem os sente. Exemplos: quando temos muitos motivos para não gostar de alguém de quem gostamos; ou quando deveríamos ser gratos a alguém de quem temos raiva. Há motivos dos afetos que estão fora do campo da consciência; nem mesmo quem os vivência consegue explicar — só sente a estranheza daquele sentimento que parece “fora do lugar”.

Eu queria ficar triste
Mas não consigo parar de rir...11 [pg. 193]

Os afetos também podem ser enigmáticos para aqueles que os supõem em nós a partir de alguma expressão, isso porque, muitas vezes, nossa reação não condiz com o que sentimos (com que o outro esperava), ou seja, nem sempre o comportamento está em conformidade com os nossos afetos, os quais não queremos (ou não podemos) demonstrar.

Nada ficou no lugar
Eu quero quebrar essas xícaras Eu vou enganar o diabo
Eu quero acordar sua família Eu vou escrever no seu muro
E violentar o seu gosto
Eu quero roubar no seu jogo
Eu já arranhei os seus discos.

Que é pra ver se você volta Que é para ver se você vem
Que é pra ver se você olha pra mim12.

As emoções

As emoções são expressões afetivas acompanhadas de reações intensas e breves do organismo, em resposta a um acontecimento inesperado ou, às vezes, a um acontecimento muito aguardado (fantasiado) e que, quando acontece...

Nas emoções é possível observar uma relação entre os afetos e a organização corporal, ou seja, as reações orgânicas, as modificações que ocorrem no organismo, como distúrbios gastrointestinais, cardiorrespiratórios, sudorese, tremor. Um exemplo comum é a alteração do batimento cardíaco.

Meu coração
Não sei por quê
Bate feliz
Quando te vê.13 [pg. 194]

Durante muito tempo, acreditou-se no coração como o lugar da emoção, talvez pelo fato de, ao manifestar-se, vir freqüentemente acompanhada de fortes batimentos cardíacos. Por isso, até hoje desenhamos corações para dizer que estamos apaixonados.

Amigo é coisa pra se guardar Debaixo de sete chaves Dentro do coração.14

Outras reações orgânicas acompanham as emoções e revelam vivências ou estados emocionais do indivíduo: tremor, riso, choro, lágrimas, expressões faciais etc. As reações orgânicas fogem ao nosso controle. Podemos “segurar o choro”, mas não conseguimos deixar de “chorar por dentro”, sentindo aquele nó na garganta e, às vezes, tentamos, mas não conseguimos segurar duas ou três lágrimas que escorrem, traindo-nos, demonstrando nossa emoção. Assim como o riso e a aceleração dos batimentos cardíacos, o choro — cantado e recantado pelos poetas como expressão de amor, saudade e desejo — é uma das reações mais freqüentes e comuns em nossa cultura.

Você partiu Saudades me deixou Eu chorei15.

Quem parte leva saudades De alguém que fica16.

Todas essas reações de que vimos falando são importantes descargas de tensão do organismo emocionado, pois as emoções [pg. 195] são momentos de tensão em um organismo, e as reações orgânicas são descargas emocionais.

Se eu chorasse

Talvez desabafasse

O que sinto no peito

E não posso dizer

Só porque não sei chorar

Eu vivo triste a sofrer17.

Infelizmente, nossa cultura estimula algumas reações emocionais e reprime outras. Os homens sabem bem disso. “Homem não chora” é uma das frases mais comuns na educação de nossos jovens. Infelizmente, o senso comum não foi sensível para aprender com os poetas que se chora, sim, e que choro é expressão de vida afetiva, de amor e de ódio; de força de um organismo que se adapta a uma situação de tensão — nunca sinal de fraqueza!

Por outro lado, as reações emocionais orgânicas são, até certo ponto, aprendidas, ou seja, nosso organismo pode responder de diversas maneiras a uma situação, mas a cultura “escolhe” algumas formas como sendo mais adequadas a determinadas situações ou tipo de pessoas (por exemplo, de acordo com a idade, o sexo ou a posição social). Durante nossa socialização, aprendemos essas formas de expressão das emoções aceitas pelo grupo a que pertencemos.

Assim, passamos a associar reações do organismo às emoções, as quais podemos distinguir. Por exemplo, distinguimos o choro de tristeza do choro de alegria; o riso de alegria do riso de nervoso.

As emoções são muitas: surpresa, raiva, nojo, medo, vergonha, tristeza, desprezo, alegria, paixão, atração física — ora são mais difusas, ora mais conscientes; às vezes encobertas, às vezes não.

As emoções, por estarem ligadas diretamente à vida afetiva — aos afetos básicos de amor e ódio — estão ligadas também à sexualidade (amor). [pg. 196]

Quando transmites o calor

De tua mão para o meu corpo

Que te espera

Me deixas louca

E quando sinto que teus braços

Se cruzaram em minhas costas

Desaparecem as palavras

Outros sons enchem o espaço

Você me abraça

A noite passa

Me deixas louca.18

Não temos por que esconder nossas emoções. Elas são nossa própria vida, uma espécie de linguagem na qual expressamos percepções internas; são sensações que ocorrem em resposta a fatores geralmente externos. São fortes, passageiras; intensas, mas não imutáveis. Isto quer dizer que o que hoje nos emociona, poderá amanhã não nos emocionar mais.

Essa força e mutabilidade foi expressa neste poema de Vinícius de Moraes:

De tudo, ao meu amor serei atento

Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto

Que mesmo em face do maior encanto

Dele se encante mais meu pensamento

Quero vivê-lo em cada vão momento

E em seu louvor hei de espalhar meu canto

E rir meu riso e derramar meu pranto

Ao seu pesar ou seu contentamento

E assim, quando mais tarde me procure

Quem sabe a morte, angústia de quem vive

Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa me dizer do amor (que tive):

Que não seja imortal, posto que é chama

Mas que seja infinito enquanto dure.19 [pg. 197]

Os sentimentos

Os afetos básicos (amor e ódio), além de manifestarem-se como emoções, podem expressar-se como sentimentos.

Os sentimentos diferem das emoções por serem mais duradouros, menos “explosivos” e por não virem acompanhados de reações orgânicas intensas.

Assim, consideramos a paixão uma emoção, e o enamoramento, a ternura, a amizade, consideramos sentimentos, isto é, manifestações do mesmo afeto básico — o amor.

O importante é compreender que a vida afetiva — emoções e sentimentos — compõe o homem e constitui um aspecto de fundamental importância na vida psíquica. As emoções e os sentimentos são como alimentos de nosso psiquismo e estão presentes em todas as manifestações de nossa vida. Necessitamos deles porque dão cor e sabor à nossa vida, orientam-nos e nos ajudam nas decisões. Enfim, são elementos importantes para nós, que não podemos nos compreender sem os sentimentos e as emoções.

Socorro, não estou sentindo nada.

Nem medo, nem calor, nem fogo.

Não vai dar mais pra chorar.

Nem pra rir.

Socorro, alguma alma, mesmo que penada, me empreste suas penas.

Já não sinto amor nem dor,

Já não sinto nada.

Socorro, alguém me dê um coração,

Que esse já não bate nem apanha.

Por favor, uma emoção pequena,

Qualquer coisa.

Qualquer coisa que se sinta,

Tem tantos sentimentos,

Deve ter algum que sirva.

Socorro, alguma rua que me dê sentido,

Em qualquer cruzamento,

Acostamento,

Encruzilhada.

Socorro, eu já não sinto nada.20 [pg. 198]

Saber e compreender o mundo que nos rodeia é fundamental para que possamos estar nele. A apreensão do real é feita de modo sensível e reflexivo e, portanto, realizada pelo pensar, sentir, sonhar, imaginar.

Para finalizar este capítulo — o poeta não poderia estar ausente! — escolhemos o trecho de uma poesia cujos versos destacam a importância da vida afetiva:

O que pode o sentimento não pode o saber
nem o mais claro proceder
nem o mais amplo pensamento. (...)
Só o amor com sua ciência nos torna tão inocentes.21

Psicologia - Neuropsicologia
Personalidade - Cognição, Inteligência
7/26/2021 1:57:38 PM | Por Ana Mercês Bahia Bock
O estudo da inteligência

Somos seres pensantes. Pensamos sobre as coisas passadas, projetamos nosso futuro, resolvemos problemas, criamos, sonhamos, fantasiamos, somos até capazes de pensar sobre nós mesmos, isto é, somos capazes de nos tornar objetos da nossa própria investigação. Fazemos ciência, poesia, música, construímos máquinas incríveis, transformamos o mundo em símbolos e códigos, criando a linguagem que nos permite a comunicação e o pensamento. Não há dúvida de que somos uma incrível espécie de seres1

Essa capacidade de pensar, da qual somos dotados, sempre foi objeto de curiosidade dos filósofos, dos cientistas e, dentre eles, dos psicólogos.
Como pensamos? Como resolvemos os problemas que se nos colocam?

Foi a partir de questões assim que se iniciaram investigações científicas para a compreensão da gênese do pensamento humano, ou seja, de como se elabora, como se estrutura esta capacidade.

Um dos mais pesquisados aspectos do pensamento foi a inteligência. [pg. 179]

Concepções de inteligência

“... uma decisão inteligente.” Provavelmente você conhece um comercial de cigarros que utiliza esse slogan. Neste comercial podemos identificar uma das concepções que o senso comum apresenta sobre a inteligência: qualidade que as pessoas possuem para resolver corretamente um problema. O comercial coloca como problema o excesso de nicotina e de alcatrão que os cigarros possuem, o qual seria inteligentemente resolvido pela mudança de marca de cigarro, pois a anunciada possui (assim eles dizem) menos alcatrão e menos nicotina, “sem tirar o prazer de fumar”.

Outras concepções de inteligência incluem a qualidade de adaptar-se a situações novas e aprender com facilidade. As concepções científicas da inteligência não são muito diferentes destas do senso comum. Gohara Yehia conta no livro Avaliação da inteligência que, em um

“simpósio sobre inteligência realizado em 1921, grande número de psicólogos expôs suas opiniões a respeito da natureza da inteligência. Alguns consideravam um indivíduo inteligente na medida em que fosse capaz de um pensamento abstrato; para outros, a inteligência era a capacidade de se adaptar ao ambiente ou a capacidade de se adaptar a situações relativamente novas ou, ainda, a capacidade de aquisição de novos conhecimentos. Houve várias teorias sobre inteligência: as que postulavam a existência de uma inteligência geral, as que postulavam a existência de várias faculdades diferenciadas e as que defendiam a existência de múltiplas aptidões independentes”2.

Grosso modo podemos dizer que os psicólogos dividiram-se em dois grandes blocos, quanto à compreensão desse aspecto do pensamento (cognição) humano: a abordagem da Psicologia diferencial e a abordagem dinâmica. [pg. 180]

A abordagem da Psicologia diferencial

A Psicologia diferencial, baseando-se na tradição positivista, acredita que a tarefa da ciência é estudar aquilo que é observável (positivo) e mensurável. Portanto, a inteligência, para ser estudada, deve-se tornar observável. Esta capacidade humana foi, então, decomposta em inúmeros aspectos e manifestações. Nós não observamos diretamente a inteligência, mas podemos medi-la através dos comportamentos humanos, que são expressões da capacidade cognitiva.

Assim, “vemos” e medimos a inteligência das pessoas através de sua capacidade de verbalizar idéias, compreender instruções, perceber a organização espacial de um desenho, resolver problemas, adaptar-se a situações novas, comportar-se criativamente frente a uma situação. A inteligência, nesta abordagem, seria um composto de habilidades e poderia ser medida por meio dos conhecidos testes psicológicos de inteligência.

Os testes de inteligência

Em 1904, na França, Alfred Binet (1857-1911) criou os primeiros testes de inteligência, que tinham como objetivo verificar os progressos de crianças deficientes do ponto de vista intelectual. Programas especiais eram realizados para o progresso dessas crianças, e os testes tornaram-se necessários para que se pudesse avaliar a eficiência desses programas, isto é, o progresso obtido.

Binet partiu daquilo que as crianças poderiam realizar em cada idade. Vários itens ou problemas eram colocados para as crianças, e, se a maioria delas, numa certa idade, conseguisse realizá-los e a maioria das crianças de uma faixa de idade inferior não conseguisse, esses itens eram considerados como discriminatórios, isto é, estava caracterizada a realização normal de crianças daquela idade.

Ao se examinar uma criança, tornava-se possível avaliar se seu desenvolvimento intelectual acompanhava ou não o das crianças de sua idade.
Os resultados de quase todos os testes de inteligência são apresentados pelo que se denominou Quociente Intelectual (Q.I.). Este quociente é obtido relacionando a idade da criança com o seu desempenho no teste, ou seja, verifica-se se ela está no nível de desenvolvimento intelectual considerado normal para sua idade.

Sabemos que uma das curiosidades mais comuns entre os leigos é saber se o quociente intelectual modifica-se ou não no decorrer de nossas vidas. Moreira Leite responde a esta curiosidade afirmando que

“nada existe, teoricamente, que impeça a modificação do Q.l. para mais ou para menos. Para entender esse processo, podemos pensar [pg. 181] no que ocorre com o desenvolvimento do corpo: uma criança pode nascer com muita saúde e ter possibilidades de bom desenvolvimento físico; no entanto, se for subalimentada durante vários anos, é provável que apresente um desenvolvimento físico pior do que uma criança que nasceu mais fraca, mas teve melhores condições de alimentação e higiene. Está claro que, nos casos extremos, essas diferenças de ambiente não chegam a eliminar as diferenças de constituição. Por exemplo, se uma criança nasce com graves defeitos físicos, pode continuar deficiente, apesar de condições muito favoráveis para seu desenvolvimento. Não existe razão para que o mesmo não ocorra com o desenvolvimento da inteligência (...) Concluindo, pode-se dizer que o Q.l. tende a ser estável quando as condições de desenvolvimento da criança também o são: se tais condições se modificarem para melhor ou pior, o mesmo acontecerá com o Q.l.”3.

Problemas dos testes de inteligência

Com a utilização dos testes de inteligência, alguns questionamentos foram surgindo:

  1. O termo inteligência era compreendido de diferentes maneiras pelos psicólogos construtores dos testes e os testes refletiam essas diferenças. E, apesar de diferentes testes serem considerados como avaliadores da inteligência, o que se viu na prática é que estavam medindo fatores parecidos ou completamente diferentes. Alguns testes avaliavam, fundamentalmente, o aspecto ou fator verbal, enquanto outros, o fator percepção espacial. Assim, um mesmo indivíduo poderia ter um alto quociente intelectual aqui e um baixo ali.
  2. A utilização freqüente dos testes levantou um outro questionamento — a rotulação ou classificação das crianças. Avaliadas pelos testes de inteligência e classificadas como deficientes, normais ou superdotadas, as crianças eram fechadas dentro destas classificações, os pais e professores passavam a agir em função das expectativas que as classificações geravam, e a criança era induzida a corresponder às expectativas, comportando-se de acordo com o novo papel imposto.
  3. Os testes sofreram também sérios questionamentos pela tendenciosidade que apresentavam, pois eram construídos em função de fatores valorizados pela sociedade, ou seja, fatores que os grupos dominantes apresentavam e que eram considerados como desejáveis. Falar bem, resolver problemas com facilidade, apresentar facilidade para aprender. [pg. 182]

A abordagem dinâmica

A abordagem clínica da personalidade, que questionou fundamentalmente a decomposição da totalidade humana em diversos aspectos ou fatores, introduziu, na Psicologia, uma nova forma de interpretar os dados obtidos por meio dos testes psicológicos.

“Os dados obtidos nos testes deixaram de ser considerados como medidas da inteligência. Passaram a ser vistos como medidas apenas de eficiência do sujeito e as alterações dessa eficiência encaradas como sintomas de perturbações globais e não como indicadores de potencial intelectual deficiente”4.

Assim, nesta abordagem, o termo inteligência é questionado, porque supõe uma existência distinta do organismo na sua totalidade. A inteligência existiria como algo, ou algum fator no indivíduo, que poderia ser medido e avaliado. Nesta abordagem dinâmica, a inteligência passa a ser um adjetivo — inteligente — que qualifica a produção cognitiva e intelectual do homem. Por isso, nesta abordagem, os dados obtidos nos testes não são medidas da inteligência, mas medidas da eficiência intelectual do indivíduo.

Cabe ressaltar ainda que os níveis baixos nos testes não implicam pouca inteligência, pois nesta abordagem o indivíduo é visto na sua globalidade. A criança que apresenta dificuldades de verbalizar, de resolver problemas, ou de aprender o que lhe é ensinado deve ser compreendida, não como uma criança deficiente intelectual ou pouco [pg. 183] inteligente, mas como uma criança que, provavelmente, vive, naquele momento, dificuldades psicológicas, conflitos relacionados ao seu desenvolvimento, sendo um de seus sintomas um rebaixamento da produção intelectual. Esta criança deve ser recuperada em todas as suas capacidades, na sua globalidade.

Os testes passam a ser instrumentos auxiliares na identificação de dificuldades, as quais são encaradas como sintomas de conflitos; tornam-se instrumentos para iniciar um trabalho de recuperação, e não instrumentos para finalizar um trabalho de classificação. Além disso, nesta abordagem, os testes tornam-se muitas vezes dispensáveis.

O estudo do comportamento intelectual ou cognitivo do indivíduo, ou outro qualquer, é feito em função de sua personalidade e de seu contexto social. O indivíduo faz parte de um meio, no qual age, manipula, transforma, desenvolvendo concomitantemente suas estruturas psíquicas.

A inteligência deixa de ser estudada como uma capacidade isolada, para ser pensada como capacidade cognitiva e intelectual que integra a globalidade humana. Assim, quando é enfocada uma produção intelectual do homem, esta é analisada nos seus componentes cognitivos, afetivos e sociais.

A inteligência nesta abordagem não tem lugar de destaque. A noção de unidade do organismo e totalidade de reações enfatizou a impossibilidade de se decompor a personalidade em funções isoladas.

A inteligência, compreendida como capacidade cognitiva ou intelectual, não pode ser estudada, analisada, nem compreendida, isolada da totalidade de aspectos, aptidões, capacidades do ser humano.

Todas as expressões do homem são carregadas de elementos psíquicos, decorrentes de sua capacidade cognitiva, afetiva, corporal. E os atos, que são adjetivados como inteligentes, não estão isentos de componentes afetivos, além dos cognitivos.

Nesta abordagem dinâmica, supõe-se que o indivíduo, quando está bem do ponto de vista da vida psíquica, conseguindo lidar adequadamente com seus conflitos, tem todas as condições para enfrentar o mundo, realizando atos “inteligentes”, ou seja, resolvendo adequadamente problemas que se apresentam, sendo criativo, verbalizando bem suas idéias etc.

E aqui é fácil dar um exemplo: quando você tem alguma preocupação ou algum conflito que toma grande parte de seu pensamento, você apresenta maior dificuldade para aprender um conteúdo novo ou resolver problemas ou, mesmo, para expressar seus pensamentos. [pg. 184]

“O homem não tem natureza, o homem tem história"

Com a afirmação acima, de Ortega y Gasset5, gostaríamos de enfatizar o aspecto histórico na determinação das capacidades intelectuais do homem. Foi o trabalho, a atividade, a ação do homem sobre o mundo real que possibilitou o surgimento da espécie humana como seres pensantes, como vimos no capítulo anterior; e foi também a ação sobre o mundo que possibilitou a gênese do pensamento em cada um de nós, no decorrer de nosso desenvolvimento. E, sem dúvida, o inverso também se deu. Ao transformar-se em ser pensante, o homem modificou sua forma de agir no mundo. Sua ação passou a ser uma ação consciente, seu trabalho proposital e não mais instintivo, como nos animais. Marx comparou, assim, o trabalho humano ao trabalho animal:

“Uma aranha desempenha operações que se parecem com a de um tecelão, e a abelha envergonha muito arquiteto na construção de seu cortiço. Mas o que distingue o pior dos arquitetos da melhor das abelhas é que o arquiteto figura na mente sua construção antes de transformá-la em realidade. No fim do processo de trabalho aparece um resultado que já existia antes idealmente na imaginação do trabalhador. Ele não transforma apenas o material sobre o qual opera; ele imprime ao material o projeto que tinha conscientemente em mira”6. [pg. 185]

Em cada indivíduo, o aspecto histórico deve estar sempre presente. Para compreendermos a expressão de um ser, seus comportamentos e dificuldades, devemos sempre inseri-lo em sua história pessoal, em sua história social.

Citamos então M. Mannoni: “Tanto o nível do Q.l. como a gravidade dos transtornos da atenção, as dificuldades no campo da abstração ou um transtorno escolar têm sentido somente no seio de uma história”7.

Psicologia - Neuropsicologia
Temas gerais - Temas gerais, 
7/26/2021 1:54:41 PM | Por Ana Mercês Bahia Bock
A Multideterminação do Humano: Uma visão em Psicologia

“Pau que nasce torto, não tem jeito, morre torto!” Eis aqui um provérbio popular que expressa por inteiro o que pretendemos questionar e discutir neste texto. E não é só na crença popular que está presente a idéia de que o ser humano nasce já dotado das qualidades que, no decorrer de sua vida, irão ou não se manifestar. Na Filosofia encontraremos, em diversas correntes, idéias semelhantes a esta. Bleger, em seu livro Psicologia da conduta, sistematiza pelo menos três mitos filosóficos, que influenciaram as ciências humanas em geral e a Psicologia em particular, e que apresentam a idéia de que o homem nasce pronto.

- O mito do homem natural: concebe o homem como possuidor de uma essência original que o caracteriza como bom, possuindo qualidades que, por influência da organização social, se manifestariam, perderiam ou modificariam, isto é, o homem nasce bom, mas a sociedade o corrompe.

- O mito do homem isolado: supõe o homem como, originária e primitivamente, um ser isolado, não-social, que desenvolve gradualmente a necessidade de relacionar-se com os outros indivíduos.

Alguns teóricos consideram necessário, para esse relacionamento, um instinto especial, que Le Bon, um dos pioneiros da Psicologia social, denominou instinto gregário. Sem esse instinto, o homem não conseguiria relacionar-se com seus semelhantes, e seria impossível a
formação da sociedade.

- O mito do homem abstrato: nessa concepção, o homem surge como um ser cujas características independem das situações de vida. O ser está isolado das situações históricas e presentes em que transcorre sua vida. O homem é estudado como o “homem em geral”, e seus atributos ou propriedades passam a ser apresentados como universais, independentes do momento histórico e tipo de sociedade em que se insere e das relações que vive. Neste caso, uma pessoa que viveu na época do Brasil Colônia não diferiria de uma pessoa do Brasil atual, como se o desenvolvimento econômico e tecnológico não interferisse na formação do indivíduo.

Sob o nosso ponto de vista, o homem não pode ser concebido como ser natural, porque ele é um produto histórico, nem pode ser estudado como ser isolado, porque ele se torna humano em função de ser social, nem ser concebido como ser abstrato, porque o homem é o conjunto de suas relações sociais. E é disto que iremos tratar neste texto.

QUEM É O HOMEM?

Essa pergunta tem instigado poetas, filósofos, cientistas e homens de todos os tempos, e mais uma vez nos deparamos com ela.

O poeta Carlos Drummond de Andrade, também preocupado com o homem, pergunta em sua poesia:
 
Mas que coisa é homem, que há sob o nome: uma geografia? um ser metafísico? uma fábula sem signo que a desmonte?
Como pode o homem sentir-se a si mesmo, quando o mundo some?
Como vai o homem junto de outro homem, sem perder o nome?
E não perde o nome e o sal que ele come nada lhe acrescenta nem lhe subtrai da doação do pai?
Como se faz um homem?
Apenas deitar, copular, à espera de que do abdômen brote a flor do homem?
Como se fazer a si mesmo, antes de fazer o homem?
Fabricar o pai e o pai e outro pai e um pai mais remoto
que o primeiro homem?
(...)
 

Então, quem é o homem?

Várias respostas podem ser dadas a esta pergunta, expressando diferentes pontos de vista ou diferentes visões de homem. Nós escolhemos uma delas para apresentar aqui, e que é, na verdade, a concepção de homem que fundamenta este texto:

O HOMEM É UM SER SÓCIO-HISTÓRICO

Mas, para que essa concepção fique mais clara, é necessário desenvolvê-la melhor.

A primeira coisa que podemos dizer sobre o homem é que ele pertence a uma espécie animal — Homo sapiens. Todos nós dependemos dos genes que recebemos de nossos ancestrais para formar nosso corpo, obedecendo às características de nossa espécie.
 
No entanto, a Biologia já nos ensinou que os genes se manifestam sob determinadas condições ambientais (físicas e sociais). Experiências demonstram que peixes com determinado gene para cor de olho, quando nascidos em um meio experimental distinto de seu meio natural, apresentam olhos de outra cor. É por isso que se diz que todos os traços, físicos ou mentais, normais ou não, são ao mesmo tempo genéticos e ambientais.

Temos, portanto, um conjunto de traços herdados que, em contato com um ambiente determinado, têm como resultado um ser específico, individual e particular.

O que a natureza (o biológico) dá ao homem quando ele nasce não basta, porém, para garantir sua vida em sociedade. Ele precisa adquirir várias aptidões, aprender as formas de satisfazer as necessidades, apropriar-se, enfim, do que a sociedade humana criou no decurso de seu desenvolvimento histórico.

Se você pensar nas coisas que sabe fazer — escovar os dentes, comer com talheres, beber água no copo, jogar futebol e video game, escrever, ler este texto, discuti-lo —, compreenderá que nossas aptidões, nosso saber-fazer, não são transmitidos por hereditariedade biológica, mas adquiridos no decorrer da vida, por um processo de apropriação da cultura criado pelas gerações precedentes.

O HOMEM APRENDE A SER HOMEM

Não queremos dizer com isso que o homem esteja subtraído do campo de ação das leis biológicas, mas que as modificações biológicas hereditárias não determinam o desenvolvimento sócio-histórico do homem e da humanidade: dão-lhe sustentação. As condições biológicas permitem ao homem apropriar-se da cultura e formar as capacidades e funções psíquicas.

A única aptidão inata no homem é a aptidão para a formação de outras aptidões.

Essas aptidões se formarão a partir do contato com o mundo dos objetos e com fenômenos da realidade objetiva, resultado da experiência sócio-histórica da humanidade. E o mundo da ciência, da arte, dos instrumentos, da tecnologia, dos conceitos e idéias. Para se apropriar desse mundo, o homem desenvolve atividades que reproduzem os traços essenciais da atividade acumulada e cristalizada nesses produtos da cultura. São exemplos esclarecedores a aprendizagem do manuseio de instrumentos e a da linguagem.

Os instrumentos humanos levam em si os traços característicos da criação humana. Estão neles fixadas as operações de trabalho historicamente elaboradas. Pense numa enxada ou em um lápis. A mão humana, que produziu esses objetos, subordina-se a eles, reorganizando os movimentos naturais do homem e formando capacidades motoras novas, capacidades que ficaram incorporadas nesses instrumentos.

Também o domínio da linguagem não é outra coisa senão o processo de apropriação das significações e das operações fonéticas fixadas na língua.
Assim, a assimilação pelo homem de sua cultura é um processo de reprodução no indivíduo das propriedades e aptidões historicamente formadas pela espécie humana. A criança, colocada diante do mundo dos objetos humanos, deve agir adequadamente nesse mundo para se apropriar da cultura, isto é, deve aprender a utilizar os objetos. Torna-se, então, condição fundamental para que isso ocorra, que as relações do indivíduo com o mundo dos objetos sejam mediadas pelas relações com os outros indivíduos. A criança é introduzida no mundo da cultura por outros indivíduos, que a guiam nesse mundo.

H. Piéron resume esse pensamento em uma frase bastante interessante:

“A criança, no momento do nascimento, não passa de um candidato à humanidade, mas não a pode alcançar no isolamento: deve aprender a ser um homem na relação com os outros homens”.

Duas imagens são interessantes aqui: ainda que coloquemos os objetos da cultura humana na gaiola de um animal, isso não torna possível a manifestação das propriedades específicas que estes objetos têm para o homem. O animal não se apropria desses objetos e das aptidões cristalizadas neles. Pode manuseá-los, mas eles não passarão de elementos do meio natural. O homem, ao contrário, aprenderá com os outros indivíduos a utilizá-los, extraindo do objeto aptidões motoras.

Outra imagem é a de uma catástrofe no planeta que eliminasse todos os adultos e preservasse as crianças pequenas. A história seria interrompida, como afirma Leontiev.

“Os tesouros da cultura continuariam a existir fisicamente, mas não existiria ninguém capaz de revelar às novas gerações o seu uso. As máquinas deixariam de funcionar, os livros ficariam sem leitores, as obras de arte perderiam a sua função estética. A história da humanidade teria de recomeçar”.

Se retomarmos agora a formação biológica de cada indivíduo, com cargas genéticas diferentes, poderemos postular aqui que as disposições inatas que individualizam cada homem, deixando marcas no seu desenvolvimento, não interferem no conteúdo ou na qualidade das possibilidades de desenvolvimento, mas apenas em alguns traços particulares da sua atividade. Assim, a partir do aprendizado ou da apropriação de uma língua tonal, os indivíduos, independentemente de suas cargas hereditárias, formarão o ouvido tonal (capaz de discernir a
altura de um complexo sonoro e distinguir as relações tonais). No entanto, nessa população, alguém poderá ter herdado de seus pais ouvido absoluto, o que lhe dará uma acuidade auditiva diferenciada, possibilitando-lhe tornar-se um músico brilhante.

Essas diferenças entre os indivíduos existem, mas não são elas que justificam as grandes diferenças que temos em nossa sociedade.

Pois, repetindo, essas diferenças biológicas geram apenas alguns traços particulares na atividade dos indivíduos. Ou seja, todos aprendem a fazer, só que colorem seu fazer com alguns traços particulares, singulares, individuais. As nossas diferenças sociais são muito maiores — temos crianças que sabem fazer e outras que não aprenderam e, portanto, não desenvolveram certas aptidões. Essas diferenças estão fundadas no acesso à cultura, que em nossa sociedade se dá de forma desigual. Existem crianças que não têm brinquedos sofisticados, e até aquelas que não têm os mais comuns; crianças que não manuseiam talheres ou lápis; crianças que não andam de bicicleta, ou que nunca viajaram. Temos até muitos adultos que não aprenderam a ler e escrever e, portanto, nunca leram um livro; que nunca saíram do local onde nasceram e não sabem que o homem já vai à Lua; nunca viram um avião, nem imaginam o que seja um computador. Esses são alguns exemplos. Não precisamos nos alongar, porque você, com certeza, já percebeu essas diferenças. Ora, se desenvolvemos nossa humanidade a partir da apropriação das realizações do progresso histórico, é claro que, numa sociedade onde essa igualdade não ocorre, fica excluída a possibilidade de igualdade entre os indivíduos.

“É por isso que a questão das perspectivas de desenvolvimento psíquico do homem e da humanidade põe antes de mais nada o problema de uma organização equitativa e sensata da vida da sociedade humana — de uma organização que dê a cada um a possibilidade prática de se apropriar das realizações do progresso histórico e participar enquanto criador no crescimento destas realizações“, podendo cada um desenvolver seu potencial para que se se expressem suas particularidades.

O QUE CARACTERIZA O HUMANO?

Quando nos colocamos essa questão, estamos querendo explicitar as propriedades ou características que fazem do animal homem um ser humano. O que nos distingue dos outros seres? Quais são nossas particularidades enquanto seres humanos?

O HOMEM TRABALHA E UTILIZA INSTRUMENTOS

Inicialmente, salientamos como característica humana o trabalho e o uso de instrumentos. Alguns animais, talvez a maioria deles, executam atividades que se assemelham ao trabalho humano: a aranha que tece a teia, a abelha que fabrica a colméia e as formigas que incessantemente carregam folhas e restos de animais para sua “cidadela”. E poderíamos dizer que as operações desses animais se assemelham às de trabalhadores humanos — tecelões, arquitetos e operários. Mas o mais inábil trabalhador humano difere do mais “habilidoso” animal, pois, antes de iniciar seu trabalho, já o planejou em sua cabeça. No término do processo de trabalho, o homem obtém como resultado algo que já existia em sua mente. O trabalho humano está subordinado à vontade e ao pensamento conceitual.

O uso de instrumentos também não é exatamente uma novidade no mundo animal. O castor, o macaco, algumas espécies de aves também fazem uso de instrumentos. Mas esse uso está marcado pelo fato de o animal não ter consciência disso. Se um macaco vê à sua frente um pedaço de pau, poderá com ele tentar apanhar uma fruta em local pouco acessível, mas, se não há nenhum instrumento à vista, ele fica sem a fruta. O macaco não tem condições de raciocinar: “Poxa, e aquele pauzinho que eu usei ontem, onde será que eu deixei?”.

O macaco tem a imagem do instrumento, mas não tem o conceito de instrumento. Ele aprende a utilizá-lo, mas não pode dizer ou pensar para que serve.

Uma breve história de um experimento poderá ajudar a entendermos esta afirmação de que o macaco aprende mas não conceitua.
Numa oportunidade, exatamente para testar este ponto, alguns psicólogos treinaram um macaco de laboratório para apagar fogo — um macaco bombeiro. Primeiro, sabendo que o macaco gostava muito de maçã, eles o treinaram para apanhar uma maçã em uma plataforma um pouco distante de sua gaiola. Sempre que tocava um sinal, o macaco corria em direção à maçã. O próximo passo, sabendo do verdadeiro pavor que os macacos têm do fogo, foi colocar em volta da maçã um pequeno círculo de fogo. Naturalmente, o macaco desistiu da maçã.

Em seguida, por meio de condicionamento, ensinaram o pequeno animal a usar um balde com água para apagar o fogo. Depois de bem treinado, veio o passo final. Colocaram a plataforma com a maçã e o círculo de fogo no meio de um tanque com água com altura suficiente para o macaco atravessá-lo. Resultado: o macaco foi até o lugar onde estava a maçã, viu o fogo, saiu do tanque e foi apanhar o balde com água para apagá-lo.
Veja só, o macaco aprendeu a usar o conteúdo do balde para apagar o fogo, mas não foi capaz de conceitualizá-lo, já que não percebeu que o conteúdo do balde era o mesmo do tanque. Entretanto, se estivesse com sede, ele beberia indistintamente tanto o conteúdo do tanque como o do balde.

Então, para que o instrumento seja considerado um instrumento de trabalho, é necessário que a sua representação na mente seja conceitualizada e, desta maneira, transforme-se em um primeiro dado de consciência.

O HOMEM CRIA E UTILIZA A LINGUAGEM

Para o psicólogo Alexis Leontiev, a linguagem é o elemento concreto que permite ao homem ter consciência das coisas. Mas, para chegar até a linguagem, houve alguns antecedentes. Se raciocinarmos em termos evolutivos (teoria evolucionista de Darwin), o homem teve sua origem a partir de um antropóide.

As condições para que o homem chegasse até a linguagem foram as seguintes:
 
1. esse antropóide aprendeu a andar sem usar as mãos, ficou ereto e com as mãos livres;
2. esse antropóide vivia em grupo (como ocorreu com muitas espécies de macacos);
3. esse grupo de antropóides tinha dedo opositor, o que permitia a utilização de instrumentos (por exemplo, um pedaço de pau para apanhar alimentos);
4. o sistema nervoso dispunha de suporte mínimo para o desenvolvimento da linguagem.
 
No decorrer da evolução do homem atual (são cerca de 5 milhões de anos desde o aparecimento do australopithecus aferensis, primeiro antropóide ou macaco com características humanóides, até o homo neanderthalensi e o homo sapiens primitivos — nossos antepassados diretos, que provavelmente surgiram há 30 mil anos), aprendemos a transformar o instrumento em instrumento de trabalho (instrumento com objetivo determinado), a registrá-lo simbolicamente em nosso sistema nervoso central (aparecimento da consciência) e a denominá-lo (aparecimento da linguagem).

Este desenvolvimento foi, evidentemente, muito lento (5 milhões de anos representam muito, mas muito tempo mesmo...). Cada avanço representou uma enorme conquista para o desenvolvimento da humanidade. A descoberta de que a vocalização (transformação de um grunhido em som com significado) poderia ser usada na comunicação equivale, nos tempos atuais, à descoberta dos chips eletrônicos.

O fato é que o instrumento de trabalho induz o aparecimento da consciência (isso ocorre de forma concomitante) e cria as condições para o surgimento da linguagem — três condições que impulsionam o desenvolvimento humano.

O HOMEM COMPREENDE O MUNDO AO SEU REDOR

Todos nós já observamos o comportamento de uma pequena aranha na sua teia. A teia é tecida para garantir sua alimentação e, quando um desavisado inseto bate nessa teia, fica preso a ela. Pronto, o almoço está garantido! O inseto, que também luta pela sobrevivência, debate-se tentando escapar da armadilha. Esta vibração é uma espécie de aviso para a aranha, que dispara em direção a ela e envolve o inseto, aplicando-lhe seu veneno. Se nós pegarmos um diapasão e vibrarmos esse instrumento junto à teia da aranha, estaremos simulando uma situação parecida com a vibração causada pelo inseto. O resultado é que a aranha irá ao encontro do ponto de vibração e envolverá com seu fio aquele ponto vibrante sem nenhum inseto. Esta simples experiência demonstra que o comportamento da aranha é predeterminado, geneticamente marcado

Psicologia - Psicologia do indivíduo
Temas gerais - , 
7/26/2021 1:52:48 PM | Por Ana Mercês Bahia Bock
A Psicologia como profissão

A Psicologia, no Brasil, é uma profissão reconhecida por lei, ou seja, a Lei 4.119, de 1962, reconhece a existência da Psicologia como profissão. São psicólogos, habilitados ao exercício profissional, aqueles que completam o curso de graduação em Psicologia e se registram no órgão profissional competente. O exercício da profissão, na forma como se apresenta na Lei 4.119, está relacionado ao uso (que é privativo dos psicólogos) de métodos e técnicas da Psicologia para fins de diagnóstico psicológico, orientação e seleção profissional, orientação psicopedagógica e solução de problemas de ajustamento. Mas essas são “formalidades da profissão” que você não precisa saber em profundidade. Aqui, nosso papo pode ser outro. Podemos refletir, a partir de questões formuladas por jovens que estão escolhendo seu futuro profissional, ou por estudantes que fazem a disciplina em cursos de 2o ou 3o graus, ou, ainda, pelos próprios alunos dos cursos de Psicologia. Então, vamos às questões: [pg. 150]

  • O psicólogo adivinha o que os outros pensam?
  • Quando fazemos um curso de Psicologia, passamos a nos conhecer melhor?
  • Que diferença há entre a ajuda prestada por um psicólogo e um bom amigo?
  • O que diferencia o trabalho do psiquiatra do trabalho do psicólogo? Qual a finalidade do trabalho do psicólogo?
  • Quais as áreas e os locais em que o psicólogo atua?
  • Há usos e também abusos da Psicologia. Certo?

Claro que não pretendemos esgotar todas as dúvidas sobre Psicologia existentes entre os estudantes. Mas acreditamos serem essas as mais freqüentes. Esperamos que as suas estejam dentre essas, pois gostaríamos muito de ajudá-lo a esclarecê-las. Então, vamos ao desafio das respostas.

Antes, porém, gostaríamos de alertá-lo de que as nossas respostas expressam posições pessoais dos autores. Por isso, sempre que você encontrar um psicólogo, não se acanhe e volte a levantar suas dúvidas.

O Psicólogo não adivinha nada

Psicólogo não tem bola de cristal nem é bruxo da sociedade contemporânea. Ele dispõe, apenas, de um conjunto de técnicas e de conhecimentos que lhe possibilitam compreender o que o outro diz, compreender as expressões e gestos que o outro faz, integrando tudo isso em um quadro de análise que busca descobrir as razões dos atos, dos pensamentos, dos desejos, das emoções. O psicólogo possui instrumentos teóricos para desvendar o que está implícito, encoberto, não-aparente e, nesse sentido, a pessoa, grupo ou instituição tem um papel fundamental, pois o psicólogo não pode ver nada na bola de cristal ou nas cartas. Para poder trabalhar, ele precisa que as pessoas falem de si, contem sua história, dialoguem, exponham suas reflexões. O psicólogo pode, junto com o paciente, desvendar razões e compreender dificuldades, caracterizando-se, assim, sua intervenção.

Poderíamos dizer, de uma forma talvez um pouco exagerada, que as pessoas sabem muito sobre si mesmas; no entanto, o psicólogo possui instrumentos adequados para auxiliar o indivíduo a compreender, organizar e aplicar esse saber, permitindo a sua transformação e a mudança da sua ação sobre o meio. [pg. 151]

A Psicologia ajuda as pessoas a se conhecerem melhor

A Psicologia, como ciência humana, permitiu-nos ter um conhecimento abrangente sobre o homem. Sabemos mais sobre suas emoções, seus sentimentos, seus comportamentos; sabemos sobre seu desenvolvimento e suas formas de aprender; conhecemos suas inquietações, vivências, angústias, alegrias. Apesar do grande desenvolvimento alcançado pela Psicologia, ainda há muito o que pesquisar sobre o psiquismo humano e, tentar conhecê-lo melhor, é sempre uma forma de tentar conhecer-se melhor. Mas é importante fazermos aqui alguns esclarecimentos sobre isso...
Os conhecimentos científicos, construídos pelo homem, estão todos voltados para ele. Mesmo aqueles que lhe parecem mais distantes foram construídos para permitir ao homem uma compreensão maior sobre o mundo que o cerca, e isso significa saber mais sobre si mesmo.

O que estamos querendo dividir com você é a idéia de que o aprendizado dos conhecimentos científicos possibilita sempre um melhor conhecimento sobre a vida humana. A Biologia, por exemplo, permite-nos um tipo de conhecimento sobre o homem: seu corpo, sua constituição e sua origem. A História possibilita-nos compreender o homem enquanto parte da humanidade, isto é, o homem que, no decorrer do tempo, foi construindo formas de vida e, portanto, formas de ser. A Economia abrange outro conhecimento sobre o homem, na medida em que nos ajuda a compreender as formas de construção da sobrevivência. Não há dúvida: todos os conhecimentos permitem um saber sobre o mundo e, portanto, aumentam seu conhecimento sobre você mesmo.

O Psicólogo é diferente de um bom amigo

O apoio de qualquer pessoa pode, sem dúvida alguma, ter uma função de ajuda para a superação de dificuldades — assim como fazer ginástica, ouvir música, dançar, tomar uma cervejinha no bar com os amigos. [pg. 152] No entanto, o psicólogo, em seu trabalho, utiliza o conhecimento científico na intervenção técnica. A Psicologia dispõe de técnicas e de instrumentos apropriados e cientificamente elaborados, que lhe possibilitam diagnosticar os problemas; possui, também, um modelo de interpretação e de intervenção.

A intervenção do psicólogo é intencional, planejada e feita com a utilização de conhecimentos específicos do campo da Ciência. Portanto, difere do amigo que não planeja sua intervenção, não usa conhecimentos específicos nem pretende diagnosticar ou intervir em algum aspecto percebido como crucial.

Mesmo quando os psicólogos não atuam para curar, mas para promover a saúde já existente, eles o fazem a partir de um planejamento e da perspectiva da Ciência.

Fazer ginástica pode ser algo muito prazeroso e pode também ajudá-lo a aliviar tensões e preocupações do seu dia-a-dia. Mas não é uma atividade psicoterapêutica porque não está sendo feita a partir de um planejamento terapêutico nem foi iniciada com um psicodiagnóstico. Claro que, se o psicólogo utilizar a ginástica como instrumento de intervenção psicoterapêutica, aí sim, a ginástica passa a fazer parte de uma atividade com essa finalidade.

Vale aqui lembrar que, se a ginástica for utilizada com outra finalidade terapêutica que não a de intervenção no processo psicológico do sujeito, ela deixa de ser psicoterapêutica e passa a ser, de acordo com a nova finalidade, fisioterapêutica, por exemplo.

No entanto, podemos não ser tão rigorosos e dizer que os homens construíram, ao longo de sua história, formas de ajudarem uns aos outros na busca de uma vida melhor e mais feliz. Amigos são, sem dúvida, uma “invenção” muito boa (já dizia o poema: “Amigo é coisa pra se guardar, do lado esquerdo do peito...”). As religiões e as ciências também são tentativas humanas de melhorar a vida. Não devemos, contudo, confundir estas tentativas com a atuação especializada do psicólogo.

O psicólogo é um profissional que desenvolve uma intervenção no processo psicológico do homem, uma intervenção que tem a finalidade de torná-lo saudável, isto é, capaz de enfrentar as dificuldades do cotidiano; e faz isso a partir de conhecimentos acumulados pelas pesquisas científicas na área da Psicologia. A Psicologia, em seu desenvolvimento histórico como ciência, criou teorias explicativas da realidade psicológica (por exemplo, a Psicanálise), ou descritivas do comportamento (por exemplo, o Behaviorismo), bem como métodos e técnicas próprias de investigação da vida psicológica e do comportamento humano. [pg. 153]

Hoje, a Psicologia possui instrumentos próprios para obter dados sobre a vida psíquica, como os testes psicológicos (de personalidade, de atenção, de inteligência, de interesses etc.); as técnicas de entrevista (individual ou grupal); as técnicas aprimoradas de observação e registro de dados do comportamento humano.

Os dados coletados por meio de testes, entrevistas ou observações devem ser compreendidos a partir de modelos psicológicos, isto é, cada teoria em Psicologia tem ou se constitui em um modelo de análise dos dados coletados. Por exemplo, numa abordagem psicanalítica, a análise dos sonhos poderá ser feita a partir da associação livre do paciente cora cada um dos elementos presentes no sonho que relata, e estes dados analisados a partir da teoria do aparelho psíquico postulada por Freud.

Com a coleta e análise dos dados, o psicólogo pensará sua intervenção, que pode ser uma terapia (existem inúmeras: a rogeriana, a psicanalítica, a comportamental, o psicodrama etc.), um treinamento, um trabalho de orientação de grupo ou qualquer outro tipo de intervenção individual, grupal ou institucional, no sentido da promoção da saúde.

Psicólogos e psiquiatras aproximam-se em suas práticas

A Psicologia e a Psiquiatria são áreas do saber fundadas em campos de preocupações diferentes. Desde Wundt, a Psicologia tem seu objeto de estudo marcado pela busca da compreensão do funcionamento da consciência, enquanto a Psiquiatria tem trabalhado para construir e catalogar um saber sobre a loucura, sobre a doença mental. Os conhecimentos alcançados pela Psicologia permitiram realçar a existência de uma “normalidade”, bem como compreender os processos e o funcionamento psicológicos, não assumindo compromisso com o patológico. A Psiquiatria, por sua vez, desenvolveu uma sistematização do conhecimento e, mais precisamente, dos aspectos e do funcionamento psicológicos que se desviavam de uma normalidade, sendo entendidos e significados socialmente como patológicos, como doenças. De certa forma, poderíamos dizer, correndo o risco de um certo exagero ou reducionismo, que, enquanto a Psiquiatria se constitui como um saber da doença mental ou psicológica, a Psicologia tornou-se um saber sobre o funcionamento mental ou psicológico.

O médico Sigmund Freud, com suas teorizações, foi responsável pela aproximação entre essas duas áreas por ter dado continuidade ao funcionamento normal e patológico. Freud postulou que o patológico [pg. 154] não era mais do que uma exacerbação do funcionamento normal, ou seja, uma exacerbação entre o que era normal e doentio no mundo psíquico, ocorrendo apenas uma diferença de grau. Com isso, as duas áreas estavam articuladas e as respectivas práticas se assemelharam e se aproximaram muito, a ponto de estarmos aqui ocupando este espaço para esclarecermos a você as diferenças entre elas.

Mas se Freud aproximou esses saberes em suas preocupações, a década de 50, no século 20, traria o desenvolvimento da psicofarmacologia, o qual foi responsável por uma retomada das bases biológicas e orgânicas da Psiquiatria, tributária dos métodos e das técnicas da Medicina. Assim, ocorreu um novo distanciamento entre a Psicologia e a Psiquiatria, sobretudo em relação aos métodos e técnicas de intervenção utilizados por estas duas especialidades profissionais. A Psicologia deu continuidade à expansão de seus conhecimentos por outros campos, sempre marcada pela busca da compreensão dos processos de funcionamento do mundo psicológico, dedicando-se a processos, como o da aprendizagem, o dos condicionamentos, o da relação entre os comportamentos e as relações sociais, ou entre os comportamentos e o meio ambiente, o do mundo afetivo, o das diversas possibilidades humanas; enfim, centrou-se nos variados aspectos que foram sendo apontados como constitutivos do mundo subjetivo, do mundo psicológico do homem.

As fronteiras entre a Psicologia e a Psiquiatria, excetuando-se as práticas profissionais farmacológicas, tendem a diminuir no campo profissional no que diz respeito às intervenções nos processos patológicos da subjetividade humana. Os afazeres desses profissionais realmente se aproximam muito. Os psiquiatras têm buscado muitos conhecimentos e técnicas na Psicologia, e os psicólogos têm se dedicado mais à compreensão das patologias para qualificar seus afazeres profissionais. Quando se toma, especificamente, a patologia, a loucura, a doença mental ou os distúrbios psicológicos como temas ou objetos de trabalho, os pontos de contato dessas áreas são muitos e o desenvolvimento de um trabalho interdisciplinar tem sido a meta de ambos os profissionais. Mas, se sairmos desse campo e entrarmos no campo da “normalidade”, da saúde, do desenvolvimento, os psicólogos aparecerão acompanhados de outros profissionais, como os assistentes sociais, os pedagogos, os administradores, os sociólogos, os antropólogos e outros mais. Neste campo, as possibilidades teóricas e técnicas da Psicologia são outras: intervenções nas relações sociais e nas relações institucionais; desenvolvimento de trabalhos em Educação e de programas de intervenção no trânsito, nos esportes, nas questões jurídicas, em projetos de urbanização, nas artes; enfim, a Psicologia pretende contribuir com a promoção da saúde. [pg. 155]

A finalidade do trabalho do Psicólogo

Uma das concepções que vêm ganhando espaço é a do psicólogo como profissional de saúde. Um profissional que, ao lado de muitos outros, aplica conhecimentos e técnicas da Psicologia para promover a saúde.

Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), saúde é o “estado de bem-estar físico, mental e social”. Ampliando um pouco essa concepção, ao falarmos de saúde, estamos fazendo referência a um conjunto de condições, criadas coletivamente, que permitem a continuidade da própria sociedade. Estamos falando, portanto, das condições (de alimentação, de educação, de lazer, de participação na vida social etc.) que permitem a um conjunto social produzir e reproduzir- se de modo saudável.

Nessa perspectiva, o psicólogo, como profissional de saúde, deve empregar seus conhecimentos de Psicologia na promoção de condições satisfatórias de vida, na sociedade em que vive e trabalha, isto é, em que está comprometido como cidadão e como profissional.

Assim, o psicólogo tem seu trabalho relacionado às condições gerais de vida de uma sociedade, embora atue enfocando a subjetividade dos indivíduos e/ou suas manifestações comportamentais. Pensar a saúde dos indivíduos significa pensar as condições objetivas e subjetivas de vida, de modo indissociado.

Reafirmamos que a profissão do psicólogo deve-se caracterizar pela aplicação dos conhecimentos e técnicas da Psicologia na promoção da saúde. Este trabalho pode estar sendo realizado nos mais diversos locais: consultórios, escolas, hospitais, creches e orfanatos, empresas e sindicatos de trabalhadores, bairros, presídios, instituições de reabilitação de deficientes físicos e mentais, ambulatórios, postos e centros de saúde e outros. [pg. 156]

Neste ponto, é importante lembrar que o compromisso do psicólogo com a promoção da saúde não o impedirá de intervir quando se defrontar com a doença e a necessidade da cura. Isto é, deparando-se com indivíduos que apresentem certa ordem de distúrbios e sofrimentos psíquicos, que necessitem de uma intervenção curativa, poderá buscar a cura através de terapias verbais ou corporais (o psicólogo não pode valer-se de medicamentos, pois esta é uma prática restrita aos médicos — no caso, os psiquiatras).

Assim, a prática do psicólogo como profissional de saúde irá caracterizar-se pela aplicação dos conhecimentos psicológicos no sentido de uma intervenção específica junto a indivíduos, grupos e instituições, com o objetivo de autoconhecimento, desenvolvimento pessoal, grupal e institucional, numa postura de promoção da saúde.

Mas o que significa trabalhar para a promoção da saúde?

Mantendo o parâmetro colocado no trecho anterior, de que pensar a saúde dos indivíduos significa pensar as condições objetivas e subjetivas de vida, de modo indissociado, podemos especificar um pouco mais essa questão, quando nos referimos ao psicólogo ou à Psicologia.

A Psicologia tem, como objeto de estudo, o fenômeno psicológico, como já vimos no capítulo 1. Esse fenômeno se refere a processos internos ao indivíduo. E a subjetividade, o seu mundo interior, que é, como não podemos deixar de lembrar, construído no decorrer da vida, a partir das relações sociais com toda sua riqueza, com todas as suas possibilidades e limitações. Aqui vamos falar de saúde mental dos indivíduos, significando a possibilidade de o indivíduo pensar-se como ser histórico, perceber a construção da sua subjetividade ao longo de uma vida. Perceber a si próprio é, aqui, sinônimo de compreender-se como síntese de muitas determinações. [pg. 157] Ter e manter uma condição saudável do psiquismo é conseguir pensar-se como um indivíduo inserido em uma sociedade, numa teia de relações sociais, que é o espaço onde ele torna-se homem.

Assim, a saúde mental do indivíduo está diretamente ligada às condições materiais de vida, pois a miséria material caracterizada por fome, falta de habitação, desemprego, analfabetismo, altas taxas de mortalidade infantil torna-se, nessa visão, a condição que prejudica o desenvolvimento do indivíduo. Poderíamos usar a seguinte imagem para tornar mais claro nosso pensamento: como construir um mundo psíquico, se não há matéria-prima adequada? As construções serão frágeis. Retomando e sintetizando, o psicólogo trabalha para promover saúde, isto é, trabalha para que as pessoas desenvolvam uma compreensão cada vez maior de sua inserção nas relações sociais e de sua constituição histórica e social enquanto ser humano. Quanto mais clareza se tiver sobre isso, maiores serão as possibilidades de o indivíduo lidar com a situação cotidiana que o envolve, decidindo o que fazer, projetando intervenções para alterar a realidade, compreendendo as relações que vive e, portanto, compreendendo a si mesmo e aos outros.

As áreas de atuação do psicólogo

Colocada a finalidade do trabalho do psicólogo, podemos agora falar das áreas e locais nos quais ele trabalha.

Nos consultórios, nas clínicas psicológicas, hospitais, ambulatórios e centros de saúde, para citar apenas algumas instituições de saúde, os psicólogos estarão atuando para promover saúde. Nesses locais, a doença poderá estar presente, merecendo intervenções terapêuticas. Aí o psicólogo precisará do conhecimento da Psicologia para fazer um diagnóstico, intervir e avaliar. A atuação do psicólogo nesse campo é
muito conhecida; conhecemos muitas de suas técnicas, como testes, entrevistas e terapias. Esse tipo de atuação aparece nas novelas, nos filmes e nos livros. As pessoas comumente se referem a esse psicólogo como “o terapeuta”.

Na escola ou nas instituições educacionais (creches, orfanatos etc.), o processo pedagógico vai se colocar como realidade principal. Todo o trabalho do psicólogo estará em função deste processo e para ele direcionado. E isso irá obrigá-lo a escolher técnicas em Psicologia que se adaptem aos limites que sua intervenção terá, dada a realidade educacional. Estará sendo psicólogo porque estará utilizando o conhecimento da ciência psicológica para compreender e intervir, só que, neste caso, com o objetivo de promover saúde num espaço que é educacional. [pg. 158]
Na empresa ou indústria, as relações de trabalho e o processo produtivo vão ser colocados como realidade principal do psicólogo. Portanto, os conhecimentos, as técnicas que utilizará estarão em função da realidade e das exigências que elas colocam para o profissional. A promoção da saúde naquele espaço de trabalho é seu objetivo maior.

Sempre que falamos nessa área, citamos as empresas e indústrias, isto porque são as organizações mais conhecidas do trabalho dos psicólogos. Mas, na verdade, sempre que estivermos pensando em promover saúde a partir da intervenção nas relações de trabalho, estaremos dentro desse campo. Hoje já existem psicólogos que fazem trabalhos junto a sindicatos, centrais sindicais, centros de referência dos trabalhadores, núcleos de pesquisa do trabalho etc. São psicólogos que têm como realidade principal de intervenção o processo de trabalho ou as relações de trabalho. Se pensarmos assim, esse profissional poderá estar atuando num hospital ou numa escola, desde que sua intervenção se dê no processo de trabalho, e não no processo de tratamento da saúde ou no processo educacional.

Estamos querendo dizer, com isso, que não há uma Psicologia Clínica, outra Escolar, e ainda outra Organizacional, mas há a Psicologia, como corpo de conhecimento científico, que é aplicada a processos individuais ou a relações entre pessoas, nas escolas, nas indústrias e nas clínicas, assim como em hospitais, presídios, orfanatos, ambulatórios, centros de saúde etc. Claro que não podemos negar que, na medida em que os psicólogos iniciam suas atuações nesses campos, passam a desenvolver discussões e reflexões que especificam uma intervenção. Isso pode levar, tem levado e é desejável que leve à construção de conhecimentos específicos de cada campo: sua clientela, seus processos, sua problemática, criando assim, como áreas de conhecimento dentro da Psicologia, a Psicologia Educacional, com todos os seus ramos: aprendizagem, alfabetização, relação professor-aluno, análise institucional do espaço escolar, fracasso escolar, educação de deficientes etc. a Psicologia Clínica, cora todo seu conhecimento sobre populações específicas, como a Psicologia da gravidez e do puerpério, a Psicologia da terceira idade etc. seus conhecimentos sobre os estados psíquicos alterados, sobre a angústia, a ansiedade, o luto, suicídio etc. E a Psicologia do Trabalho, também com seus conhecimentos: o stress, conseqüências psíquicas do trabalho, a saúde do trabalhador, as técnicas de seleção, treinamento, avaliação de desempenho etc. [pg. 159]

Há, ainda, a possibilidade de o psicólogo se dedicar ao magistério de ensino superior e à pesquisa. Esses profissionais estão mais ligados à Ciência Psicológica enquanto corpo de conhecimentos, produzindo-os ou transmitindo-os. Essas são consideradas atuações de base na profissão, pois, para atuar, os psicólogos dependem da produção do conhecimento e da formação de profissionais. E também ao magistério do ensino profissional (antigo ensino técnico), como pode ser o caso de seu professor. Esse profissional trabalha no sentido de contribuir com a formação dos jovens, dando-lhes mais uma possibilidade de enriquecer a leitura e compreensão que têm do mundo.

Devido aos conhecimentos que possui sobre o psiquismo humano, o psicólogo tem sido requisitado também para o trabalho nas áreas de publicidade — na produção de imagens (de políticos, por exemplo); Marketing, pesquisas de mercado etc. Ele está conquistando espaços na área esportiva, junto à Justiça, nos presídios e nas instituições chamadas de reeducação ou reabilitação. Pode-se citar, também, uma área menos acessível para o psicólogo, mas na qual sua contribuição tem sido prestimosa, que é a de planejamento urbano.

Fica claro, portanto, que a Psicologia possui um conhecimento importante para a compreensão da realidade e por isso é utilizada, pelos psicólogos ou por outros profissionais, em vários locais de trabalho, em vários campos. Mas os psicólogos também precisam dos conhecimentos de outras áreas da ciência para construir uma visão mais globalizante do fenômeno estudado. Na Educação, por exemplo, o psicólogo tem necessidade dos conhecimentos da Pedagogia, da Sociologia e da Filosofia.

Na maioria dos locais de trabalho, os psicólogos não estão sozinhos. Nesses locais, o profissional necessita compor-se em equipes multidisciplinares, onde cada um, com seu conhecimento específico, procura integrar suas análises e ter, assim, uma compreensão globalizante do fenômeno estudado e uma prática integrada.

Usos e abusos da Psicologia

A Psicologia, além de usada pelos psicólogos, tem sido também “abusada” por eles. O sentido do abuso, ou melhor, o critério do abuso da Psicologia pode ser dado pelo fato de não estar sendo usado o conhecimento para a promoção da saúde da coletividade. Não gostaríamos aqui de apontar locais ou processos onde esse fato estaria ocorrendo, pois ele poderá acontecer em qualquer prática de qualquer psicólogo — na clínica, na escola, no hospital psiquiátrico ou na empresa. No entanto, um deles não deve deixar [pg. 160] de ser citado: a utilização da Psicologia para práticas repressivas, que podem existir nas escolas, presídios, instituições educacionais e/ou de reabilitação, hospitais psiquiátricos etc.

Isto se torna possível porque o conhecimento da Psicologia, ao permitir que saibamos promover a saúde mental, permite também que saibamos promover a loucura, o medo, a insegurança, com o objetivo de coagir o indivíduo.

Psicologia - História da Psicologia
Temas gerais - Temas gerais, 
7/16/2021 5:02:48 PM | Por Ana Mercês Bahia Bock
A velha e a nova Psicologia social

Psicologia social é a área da Psicologia que procura estudar a interação social. E assim que Aroldo Rodrigues, psicólogo brasileiro, define essa área. Diz ele que a Psicologia social é o estudo das “manifestações comportamentais suscitadas pela interação de uma pessoa com outras pessoas, ou pela mera expectativa de tal interação”1. A interação social, a interdependência entre os indivíduos, o encontro social são os objetos investigados por essa área da Psicologia. Assim, vamos falar dos principais conceitos da Psicologia social a partir do ponto de vista do encontro social.

Dessa perspectiva, os principais conceitos são: a percepção social; a comunicação; as atitudes; a mudança de atitudes; o processo de socialização; os grupos sociais e os papéis sociais.

Percepção social

Nós, autores deste livro, encontramo-nos com você. Essa é nossa suposição e nosso ponto de partida. O primeiro processo desencadeado é o da percepção social. Percebemo-nos um ao outro. E percebemos não só a presença do outro, mas o conjunto de características que apresenta, o que nos possibilita “ter uma impressão” dele. [pg. 135] Essa impressão é possível porque, a partir de nossos contatos com o mundo, vamos organizando estas informações em nossa cognição (organização do conhecimento no nível da consciência), e é esta organização que nos permitirá compreender ou categorizar um novo fato. Assim, se você estiver vestido de calça jeans, camiseta, tênis e com cadernos e livros nas mãos, a sua aparência nos permitirá percebê-lo como um estudante. E nós, com o dobro de sua idade e um estilo semelhante de vestir, seremos categorizados como professores.

A percepção é, pois, um processo que vai desde a recepção do estímulo pelos órgãos dos sentidos até a atribuição de significado ao estímulo.

Comunicação

Quando percebemos (condição para o encontro), podemos dizer envolve codificação (formação de um sistema de códigos) e decodificação (a forma de procurar entender a codificação) de mensagens. Essas mensagens permitem a troca de informações entre os indivíduos.

— Muito prazer, dizemos nós a você. Esta é a mensagem que lhe enviamos. Para isso utilizamos o código que é comum entre nós. Você recebe esta mensagem, decodifica-a e então tem condições de nos responder: — Eu também tenho prazer em conhecê-los (nova mensagem, no mesmo código, e que, por sua vez, será decodificada por nós).

A percepção do outro é uma forma de comunicação que depende da atribuição de significado à situação vivida. A comunicação não é constituída apenas de código verbal.

Também utilizamos para a comunicação expressões de rosto, gestos, movimentos, desenhos e sinais.

A partir deste esquema básico da comunicação: transmissor (aquele que codifica), mensagem (transmitida utilizando um código), receptor (aquele que decodifica), a Psicologia social estudou o processo de interdependência e de influência entre as pessoas que se comunicam, respondendo a questões do tipo: como se dá a influência, quais as características da mensagem, como aumentar nosso poder de persuasão através da comunicação e quais os processos psicológicos envolvidos na comunicação? [pg. 136]

Atitudes

A partir da percepção do meio social e dos outros, o indivíduo vai organizando estas informações, relacionando-as com afetos (positivos ou negativos) e desenvolvendo uma predisposição para agir (favorável ou desfavoravelmente) em relação às pessoas e aos objetos presentes no meio social. A essas informações com forte carga afetiva, que predispõem o indivíduo para uma determinada ação (comportamento), damos o nome de atitudes.

Portanto, para a Psicologia social, diferentemente do senso comum, nós não tomamos atitudes (comportamento, ação), nós desenvolvemos atitudes (crenças, valores, opiniões) em relação aos objetos do meio social.

As atitudes possibilitam-nos uma certa regularidade na relação com o meio. Temos atitudes positivas em relação a determinados objetos ou pessoas, o que nos predispõe a uma ação favorável em relação a eles. Isto porque os componentes da atitude — informações, afeto e predisposição para a ação — tendem a ser congruentes. 

Assim, se você se apresenta como estudante e traz em suas mãos este livro escrito por nós, a possibilidade de desenvolvermos uma atitude positiva em relação a você é muito grande, pois já temos anteriormente informações e afetos positivos em relação a estudantes, principalmente
aos que estão lendo nosso livro. Dessa forma, é de se esperar que nosso comportamento em relação a você seja “favorável”: iremos cumprimentá- lo, convidá-lo para tomar um café na cantina etc.

As atitudes são, assim, bons preditores de comportamentos.

No entanto, não é com tanta facilidade que conseguimos prever o comportamento de alguém a partir do conhecimento de sua atitude, pois nosso comportamento é resultante também da situação dada e de várias atitudes mobilizadas em determinada situação. Então, por exemplo, se estamos atrasados para um compromisso no momento em que encontramos você, é possível que nossa previsão de comportamento favorável não se concretize, pois a situação dada apresenta outros elementos que modificam o comportamento esperado.

Mudança de atitudes

Nossas atitudes podem ser modificadas a partir de novas informações, novos afetos ou novos comportamentos ou situações.

Assim, podemos mudar nossa atitude em relação a um determinado objeto porque descobrimos que ele faz bem à saúde ou nos [pg. 137] ajuda de alguma forma. Por exemplo, se você desenvolveu uma atitude negativa em relação ao nosso livro porque não gostou da capa, esperamos que após sua leitura você possa modificá-la pela constatação de que ele o ajuda, de alguma forma, a compreender melhor o mundo.

Podemos ainda mudar uma atitude quando somos obrigados a nos comportar em desacordo com ela. Exemplo: você não gosta dos rapazes que moram no seu prédio (atitude negativa), mas será obrigado a conviver com eles, porque passaram a estudar na mesma classe. Para evitar uma tensão constante, que o levaria a um conflito, você tentará descobrir aspectos positivos neles (como o fato de serem bons alunos ou muito requisitados pelas garotas), que permitam uma aproximação e a mudança de atitude (atitude positiva).

Existe uma forte tendência a manter os componentes das atitudes em consonância. Informações positivas sobre os rapazes, por exemplo, levarão a afeto positivo. Informação positiva e afeto positivo levam a um comportamento favorável na direção do objeto.

Processo de socialização

Nesse nosso encontro, vimos que nossas atitudes são importantes, pois, em certo sentido, são elas que norteiam nosso comportamento. Ainda há a influência dos motivos, interesses e necessidades com que nos apresentamos na situação. Este conjunto de aspectos psicológicos permite-nos compreender, atribuir significado e responder ao outro.

E você deve estar então se perguntando: “De onde vem este conjunto de aspectos tão importantes?”.

A formação do conjunto de nossas crenças, valores e significações dá-se no processo que a Psicologia social denominou socialização. Nesse processo, o indivíduo torna-se membro de um determinado conjunto social, aprendendo seus códigos, suas normas e regras básicas de relacionamento, apropriando-se do conjunto de conhecimentos já sistematizados e acumulados por esse conjunto.

Grupos sociais

Claro que existem as organizações ou elementos que servem de intermediários entre o conjunto social mais amplo e o indivíduo. Essa intermediação é feita pelos grupos sociais. [pg. 138]

Assim, quando se dá esse nosso encontro, poderíamos dizer que estão-se encontrando representantes de diferentes grupos sociais: você, representando sua família, seus grupos de amigos, seu grupo racial, seu grupo religioso etc, e, de outro lado, nós, representando nossos grupos de pertencimento ou de referência, que são aqueles a que pertencemos ou em que nos referenciamos para saber como nos comportar, o que dizer, como perceber o outro, do que gostar ou não gostar.

Os grupos sociais são pequenas organizações de indivíduos que, possuindo objetivos comuns, desenvolvem ações na direção desses objetivos. Para garantir essa organização, possuem normas; formas de pressionar seus integrantes para que se conformem às normas; um funcionamento determinado, com tarefas e funções distribuídas entre seus membros; formas de cooperação e de competição; apresentam aspectos que atraem os indivíduos, impedindo que abandonem o grupo.

A Psicologia social dedicou grande parte de seus estudos à compreensão desses processos grupais, como veremos no capítulo 15.

Papéis sociais

E para terminarmos esse nosso encontro social precisamos falar um pouco ainda dos papéis sociais.

Entendida a sociedade como um conjunto de posições sociais (como a posição de médico, de professor, de aluno, de filho, de pai), todas as expectativas de comportamento estabelecidas pelo conjunto social para os ocupantes das diferentes posições sociais determinam o chamado papel prescrito. Assim, sabemos o que esperar de alguém que ocupa uma determinada posição.

Portanto, no nosso encontro, ao sabermos que você é um estudante, saberemos também alguns comportamentos que deveremos esperar de você, e, por sua vez, você saberá o que esperar de nós, professores.

Todos os comportamentos que manifestamos no nosso encontro são chamados, na Psicologia social, de papel desempenhado. Tais
comportamentos, por sua vez, podem ou não estar de acordo com a prescrição social, isto é, as normas prescritas socialmente para o desempenho de um determinado papel. [pg. 139]

Os papéis sociais permitem-nos compreender a situação social, pois são referências para a nossa percepção do outro, ao mesmo tempo que são referências para o nosso próprio comportamento. Se no encontro social nos apresentamos como ocupantes da posição de professores ou autores de um livro, sabemos como nos comportar, porque aprendemos, no decorrer de nossa socialização, o que está prescrito para os ocupantes dessas posições. Se formos convidados a proferir uma palestra na sua escola, não iremos vestidos como se estivéssemos indo para o clube.

E aqui vale a pena ressaltar que, quando aprendemos um papel social, aprendemos também o papel complementar, isto é, quando aprendemos a nos comportar como alunos, desde o início de nossa vida escolar, estamos também aprendendo o papel do outro com quem interagimos — o papel do professor.

Os diferentes papéis sociais e a nossa enorme plasticidade como seres humanos permitem que nos adaptemos às diferentes situações sociais e que sejamos capazes de nos comportar diferentemente em cada uma delas. Aprender os nossos papéis sociais é, na realidade, aprender o conjunto de rituais que nossa sociedade criou.

Para finalizar, gostaríamos de deixar registrado que cada encontro social, cada momento de comunicação e interação entre as pessoas são sempre momentos de nosso processo de socialização, que é ininterrupto no decorrer de nossas vidas.

E assim nos despedimos: — Foi um prazer conhecê-lo e esperamos nos encontrar novamente. Obrigado pela atenção.

Críticas à Psicologia social

Aqui um novo encontro se inicia, pois temos algumas coisas a dizer sobre o nosso encontro passado. A teoria da Psicologia social, que orientou o nosso encontro anterior, tem recebido, hoje em dia, inúmeras críticas. Apontamos agora as principais:

  1. É uma Psicologia social baseada em um método descritivo, ou seja, um método que se propõe a descrever aquilo que é observável, fatual. É uma psicologia que organiza e dá nome aos processos observáveis dos encontros sociais.
  2. É uma Psicologia social que tem seu desenvolvimento comprometido com os objetivos da sociedade norte-americana do pós-guerra, que precisava de conhecimentos e de instrumentos que possibilitassem a intervenção na realidade, de forma a obter resultados [pg. 140] imediatos, com a intenção de recuperar uma nação, garantindo o aumento da produtividade econômica. Não é para menos que os temas mais desenvolvidos foram a comunicação persuasiva, a mudança de atitudes, a dinâmica grupal etc., voltados sempre para a procura de “fórmulas de ajustamento e adequação de comportamentos individuais ao contexto social”2.
  3. É uma Psicologia social que parte de uma noção estreita do social, Este é considerado apenas como a relação entre pessoas — a interação social —, e não como um conjunto de produções humanas capazes de, ao mesmo tempo em que vão construindo a realidade social, construir também o indivíduo. Esta concepção será a referência para a construção de uma nova Psicologia social.

Uma nova Psicologia social

Com uma posição mais crítica em relação à realidade social e à contribuição da ciência para a transformação da sociedade, vem sendo desenvolvida uma nova Psicologia social, buscando a superação das limitações apontadas anteriormente.

A Psicologia social mantém-se aqui como uma área de conhecimento da Psicologia, que procura aprofundar o conhecimento da natureza social do fenômeno psíquico. O que quer dizer isso?

A subjetividade humana surge do contato entre os homens e dos homens com a Natureza, isto é, esse mundo interno que possuímos e suas expressões são construídas nas relações sociais.

Assim, a Psicologia social como área de conhecimento, passa a estudar o psiquismo humano, objeto da Psicologia, buscando compreender como se dá a construção desse mundo interno a partir das relações sociais vividas pelo homem. O mundo objetivo passa a ser visto não como fator de influência para o desenvolvimento da subjetividade, mas como fator constitutivo. [pg. 141]

Numa concepção como essa, o comportamento deixa de ser “o objeto de estudo”, para ser uma das expressões do mundo psíquico e fonte importante de dados para a compreensão da subjetividade, pois ele se encontra no nível do empírico e pode ser observado; no entanto, essa nova Psicologia social pretende ir além do que é observável, ou seja, além do comportamento, buscando compreender o mundo invisível do homem.

Além disso, essa Psicologia social abandona por completo a diferença entre comportamento em situação de interação ou não-interação. O homem é um ser social por natureza. Entende-se aqui que cada indivíduo aprende a ser um homem nas relações com os outros homens, quando se apropria da realidade criada pelas gerações anteriores, apropriação que se dá pelo manuseio dos instrumentos e pelo aprendizado da cultura humana. O homem como um ser social, como um ser de relações sociais, está em permanente movimento. Estamos sempre nos transformando, apesar de aparentemente nos mantermos iguais. Isso porque nosso mundo interno se alimenta dos conteúdos que vêm do mundo externo e, como nossa relação com esse mundo externo não cessa, estamos sempre como que fazendo a “digestão” desses alimentos e, portanto, sempre em movimento, em processo de transformação.

Ora, se estamos em permanente movimento, não podemos ter um conjunto teórico onde os conceitos paralisam nosso objeto de estudo. Se nos limitarmos a falar das atitudes, da percepção, dos papéis sociais e acreditarmos que com isso compreendemos o homem, não estaremos percebendo que, ao desempenhar esse papel, ao perceber o outro e ao desenvolver ou falar sobre sua atitude, o homem estará em movimento.

Por isso, nossa metodologia e nosso corpo teórico devem ser capazes de captar esse homem em movimento.

É, superando esse conceitual da antiga Psicologia social, a nova irá propor, como conceitos básicos de análise, a atividade, a consciência e a identidade, que são as propriedades ou características essenciais do homem e expressam o movimento humano. Esses conceitos e concepções foram e vêm sendo desenvolvidos por vários autores. Citamos, entre eles: Vigotski, Alexis Leontiev e Luria, autores soviéticos que produziram até a década de 60; Silvia Lane e Antônio Ciampa, que são brasileiros e trabalham ativamente na PUC-SP.

Atividade

É a unidade básica fundamental da vida do sujeito material. É através da atividade que o homem se apropria do mundo, ou seja, é a atividade que propicia a transição daquilo que está fora do homem [pg. 142] para dentro dele. Pense na criança, onde isso tudo fica mais evidente. Ela se apropria do mundo engatinhando, andando ou percorrendo com os olhos o mundo circundante. Ela manuseia os objetos, desmonta-os (infelizmente, nós compreendemos isso, às vezes, como destruição), monta-os, balança, lambe, ouve, vê, enfim, do ponto de vista da Psicologia social, coloca-os para dentro de si, transforma-os em imagens e em idéias que passam a habitar seu mundo interno.

A prática humana, ou, como estamos chamando aqui, a atividade humana, é a base do conhecimento e do pensamento do homem. Estamos considerando que os indivíduos apresentam uma necessidade de manter uma relação ativa com o mundo externo. Para existirmos, precisamos atuar sobre o mundo, transformando-o de acordo com nossas necessidades. Ao fazer isso, estamos construindo a nós mesmos.

Esperamos que você tenha notado que o homem constrói o seu mundo interno na medida em que atua e transforma o mundo externo. Mundos externo e interno são, portanto, imbricados, pois são construídos num mesmo processo, e a existência de um depende da do outro.

Atuar no mundo é uma propriedade do homem, isto é, a atividade é uma das suas determinações.

Consciência

A consciência humana expressa a forma como o homem se relaciona com o mundo objetivo. As aranhas constroem suas teias e reagem à vibração nelas produzida por insetos que ali ficam presos.

Essa é a forma como as aranhas reagem ao mundo externo. As abelhas, os pássaros, os peixes e todos os animais apresentam uma maneira específica de relação com o mundo. O homem também apresenta o seu modo de reagir ao mundo objetivo: ele o compreende, isto é, transforma-o em idéias e imagens e estabelece relações entre essas informações, de modo a compreender o que se produz na realidade ambiente. A consciência é, assim, um certo saber. Nós reagimos ao mundo compreendendo-o, “sabendo-o”. [pg. 143]

A consciência não se limita apenas ao saber lógico. Ela inclui o saber das emoções e sentimentos do homem, o saber dos desejos, o saber do inconsciente.

Como maneira de reagir ao mundo, a consciência está em permanente movimento.

E como será que ela surge?

A consciência não é manifestação de alguma capacidade mística no cérebro humano. A consciência do homem é produto das relações sociais que os homens estabelecem. Sem dúvida, foi necessário um aperfeiçoamento do cérebro humano para que se tornasse capaz de pensar o mundo através de imagens, símbolos e de estabelecer relações entre os objetos desse mundo, tornando-se mesmo capaz de antecipar a realidade. Mas acredita-se que somente o aperfeiçoamento do cérebro não seria suficiente para propiciar o surgimento da consciência humana, ou melhor, que esse aperfeiçoamento não teria lugar, se não houvesse condições externas ao homem que o estimulassem.

Essas condições externas estão hoje pensadas como o trabalho, a vida social e a linguagem.

A consciência, como produto subjetivo, como apropriação pelo homem do mundo objetivo, produz-se em um processo ativo, que tem como base a atividade sobre o mundo, a linguagem e as relações sociais.

O homem encontra um mundo de objetos e significados já construídos pelos outros homens. Nas relações sociais, ele se apropria desse mundo cultural e desenvolve o “sentido pessoal”. Produz, assim, uma compreensão sobre o mundo, sobre si mesmo e os outros, compreensão construída no processo de produção da existência, compreensão que tem sua matéria-prima na realidade objetiva e na realidade social, mas que é própria do indivíduo, pois é resultado de um trabalho seu.

E você agora deve estar perguntando: e como eu posso estudar a consciência dos indivíduos, se ela é invisível, dado que é mundo interno e não tem uma forma corpórea, física?

Estuda-se a consciência através de suas mediações. No mundo observável, vamos encontrar, por exemplo, as representações sociais, veiculadas pela linguagem, que são expressões da consciência. Quando alguém discursa ou simplesmente fala sobre algum assunto, está se referindo ao mundo real e expressa sua consciência através das representações sociais. A representação social é a denominação dada ao conjunto de idéias que articula os significados sociais, isto é, o sentido construído coletivamente para o objeto, [pg. 144] com o sentido pessoal. Envolve crenças, valores e imagens que os indivíduos constroem, no decorrer de suas vidas, a partir da vivência na sociedade.

Identidade

Outro conceito importante nessa nova Psicologia social é o de identidade (veja capítulo 14).

Se a consciência está em movimento, se o homem, conseqüentemente, está em movimento, a consciência que desenvolve sobre o “eu mesmo” não poderia estar parada. Ela também está em movimento.

O indivíduo, nessa concepção, é um eterno transformar-se, mesmo que aparentemente continue com os mesmos olhos, cabelos e até consiga manter seu peso. Isso é só aparência. Estamos nos transformando a cada momento, a cada nova relação com o mundo social e sabemos disso. A consciência que desenvolvemos sobre “quem sou eu” acompanha esse movimento do real, às vezes com mais facilidade, às vezes com menos, mas acompanha.

Identidade é a denominação dada às representações e sentimentos que o indivíduo desenvolve a respeito de si próprio, a partir do conjunto de suas vivências. A identidade é a síntese pessoal sobre o si-mesmo, incluindo dados pessoais (cor, sexo, idade), biografia (trajetória pessoal), atributos que os outros lhe conferem, permitindo uma representação a respeito de si.

Este conceito supera a compreensão do homem enquanto conjunto de papéis, de valores, de habilidades, de atitudes etc., pois compreende todos estes aspectos integrados — o homem como totalidade — e busca captar a singularidade do indivíduo, produzida no confronto com o outro. A mudança nas situações sociais, a mudança na história de vida e nas relações sociais determinam um processar contínuo na definição de si mesmo.

Neste sentido, a identidade do indivíduo deixa de ser algo estático e acabado, para ser um processo contínuo de representações de seu “estar sendo” no mundo. [pg. 145]

Uma última questão

Que diferença há entre essa nova Psicologia social e aquela do início do capítulo?

Há muitas diferenças. A do início do capítulo é uma Psicologia descritiva. Procura organizar e dar nome aos processos observáveis que ocorrem nas interações sociais. A nova proposta busca ser explicativa ou compreensiva. Deseja-se explicar/compreender a relação que o indivíduo mantém com a sociedade e os processos subjetivos que vão ocorrendo nessa relação. Outro aspecto bastante significativo, que merece destaque nessa diferenciação, é a maneira de conceber o homem. A Psicologia social tradicional pensa o homem como um ser que reage às estimulações externas, atribui-lhes significado e se comporta. O homem é um ser no espaço social. A nova Psicologia social o concebe como um ser de natureza social. O homem é um ser social, que constrói a si próprio, ao mesmo tempo que constrói, com os outros homens, a sociedade e sua história. A nova Psicologia social desvincula-se da tradição norte-americana de ciência pragmática, com intenções de prever o comportamento e manipulá-lo, optando por uma ciência que, ao melhorar a compreensão que se tem da realidade social e humana, permita ao homem transformá-la. Assim, é um conhecimento que se busca produzir para ser divulgado, distribuído, discutido por um número maior de pessoas, extrapolando os muros das universidades. Esses aspectos são muito importantes, porque abrem a possibilidade para uma ciência comprometida com a transformação, abandonando de vez os modelos de ciência que servem para justificar a desumanidade existente em nossa sociedade, por considerar naturais todas as desigualdades e formas de exploração.

Essa nova Psicologia social permite que se compreenda o que acontece conosco na sociedade brasileira, pois ela parte desta realidade para compreender os elementos do mundo interno que estão sendo construídos: como estamos representando a juventude ou a infância? como estamos representando a nossa sexualidade? nosso trabalho? quem somos nós, os brasileiros? Para responder a questões como essas, a Psicologia social vai recorrer aos conceitos de atividade, consciência e identidade, promovendo um estudo sobre o fazer, o pensar e o agir dos homens em nossa sociedade, e será a articulação entre esses elementos que permitirá a resposta à questão. [pg. 146]

Psicologia - Psicologia social
Educação - Aprendizagem, 
7/16/2021 2:27:05 PM | Por Ana Mercês Bahia Bock
Psicologia da aprendizagem

Qualquer um de nós é capaz de responder sem pestanejar a perguntas do tipo: O que você aprendeu hoje na escola? e sabemos também justificar nossas habilidades, por exemplo, de escrever e ler, consertar alguma coisa ou dançar, dizendo que aprendemos. Usamos o termo aprender sem dificuldades, pois sabemos que, se somos capazes de fazer algo que antes não fazíamos, é porque aprendemos. No entanto, para a Psicologia, o conceito de aprendizagem não é tão simples assim. Há diversas possibilidades de aprendizagem, ou seja, há diversos fatores que nos levam a apresentar um comportamento que anteriormente não apresentávamos, como o crescimento físico, descobertas, tentativas e erros, ensino etc. Nós mesmos temos uma amiga que sabe uma poesia inteira em francês, porque copiou 10 vezes como castigo, há 20 anos, e tem apenas uma vaga idéia do que está dizendo quando a declama. Podemos dizer que ela aprendeu a poesia? Essas diferentes situações e processos não podem ser englobados num só conceito.

E, assim, a Psicologia transforma a aprendizagem em um processo a ser investigado. São muitas as questões consideradas importantes pelos teóricos da aprendizagem: Qual o limite da aprendizagem? Qual a participação do aprendiz no processo? Qual a natureza da aprendizagem? Há ou não motivação subjacente ao processo? As respostas a essas questões têm originado controvérsias entre os estudiosos. [pg. 114]

Teorias da aprendizagem

Encontramos um número bastante grande de teorias da aprendizagem. Essas teorias poderiam ser genericamente reunidas em duas categorias: as teorias do condicionamento e as teorias cognitivistas.

No primeiro grupo, estão as teorias que definem a aprendizagem pelas suas conseqüências comportamentais e enfatizam as condições ambientais como forças propulsoras da aprendizagem.

Aprendizagem é a conexão entre o estímulo e a resposta. Completada a aprendizagem, estímulo e resposta estão de tal modo unidos, que o aparecimento do estímulo evoca a resposta1.

No segundo grupo estão as teorias que definem a aprendizagem como um processo de relação do sujeito com o mundo externo e que tem conseqüências no plano da organização interna do conhecimento (organização cognitiva). A concepção de Ausubel, apresentada no livro Aprendizagem significativa — a teoria de David Ausubel, de Moreira e Masini, que se enquadra neste grupo, diz que a aprendizagem é um elemento que provém de uma comunicação com o mundo e se acumula sob a forma de uma riqueza de conteúdos cognitivos. É o processo de organização de informações e integração do material pela estrutura cognitiva.

O indivíduo adquire, assim, um número crescente de novas ações como forma de inserção em seu meio.

Controvérsias básicas entre estas concepções

De maneira geral, poderíamos apontar três controvérsias. A primeira refere-se à questão do que é aprendido e como.

Para os teóricos do condicionamento, aprendemos hábitos, isto é, aprendemos a associação entre um estímulo e uma resposta [pg. 115] e aprendemos praticando; para os cognitivistas, aprendemos a relação entre idéias (conceitos) e aprendemos abstraindo de nossa experiência.
A segunda controvérsia refere-se à questão do que mantém o comportamento que foi aprendido.

Para os teóricos do condicionamento, o comportamento é mantido pelo seqüenciamento de respostas. Explicando melhor: uma resposta é, na realidade, um conjunto de respostas. Quando falamos no comportamento de abrir uma porta, é fácil perceber que ele é composto de diversas respostas intermediárias: pegar a chave na posição certa para que entre na fechadura, encaixá-la na fechadura, virar corretamente e abaixar então a maçaneta. São essas diversas respostas que, reforçadas (bem-sucedidas), preparam a etapa seguinte e mantêm a cadeia de respostas até que o objetivo do comportamento seja atingido.

Para os cognitivistas, o que mantém um comportamento são os processos cerebrais centrais, tais como a atenção e a memória, que são integradores dos comportamentos.

A terceira controvérsia refere-se à maneira como solucionamos uma nova situação-problema (transferência da aprendizagem).

Para os teóricos do condicionamento, evocamos hábitos passados apropriados para o novo problema e respondemos, quer de acordo com os elementos que o problema novo tem em comum com outros já aprendidos, quer de acordo com aspectos da nova situação, que são semelhantes à situação já encontrada. Por exemplo, quando a criança aprende a dar laço nos sapatos, saberá dar laço em presentes, no vestido ou na fita do cabelo.

Os cognitivistas acreditam que, mesmo no caso de haver toda a experiência possível com as diversas partes do problema, como saber todas as etapas para dar um laço, isso não garante que a solução do problema seja alcançada. Seremos capazes de solucionar um problema, se este for apresentado de uma forma, mas não de outra, mesmo que ambas as formas requeiram as mesmas experiências passadas para serem solucionadas. De acordo com os cognitivistas, o método de apresentação do problema permite uma estrutura perceptual que leva ao insight, isto é, à compreensão interna das relações essenciais do caso em questão. Por exemplo, quando montamos um quebra-cabeça e “sacamos” o lugar de uma peça sem termos feito tentativas anteriormente. [pg. 116]

A Teoria cognitivista da aprendizagem

Desenvolveremos alguns conceitos básicos dessa abordagem através da teoria de David Ausubel.

Cognição

Inicialmente, vale a pena esclarecer o conceito de cognição. Cognição é o “processo através do qual o mundo de significados tem origem. A medida que o ser se situa no mundo, estabelece relações de significação, isto é, atribui significados à realidade em que se encontra. Esses significados não são entidades estáticas, mas pontos de partida para a atribuição de outros significados. Tem origem, então, a estrutura cognitiva (os primeiros significados), constituindo-se nos ‘pontos básicos de ancoragem’ dos quais derivam outros significados”2.

Por exemplo, quando precisamos ensinar à criança a noção de sociedade, podemos levá-la a dar uma volta no quarteirão e observar com ela tudo o que lá existe. A criança atribuirá significados aos elementos dessa experiência e poderá, posteriormente, compreender a sociedade.

O cognitivismo está, pois, preocupado com o processo de compreensão, transformação, armazenamento e utilização das informações, no plano da cognição.

Aprendizagem

O processo de organização das informações e de integração do material à estrutura cognitiva é o que os cognitivistas denominam aprendizagem.
A abordagem cognitivista diferencia a aprendizagem mecânica da aprendizagem significativa.

  1. Aprendizagem mecânica — refere-se à aprendizagem de novas informações com pouca ou nenhuma associação com conceitos já existentes na estrutura cognitiva. Você se lembra da nossa amiga que decorou a poesia em francês? É um exemplo deste tipo de aprendizagem, pois o conteúdo não se relacionava com nada que ela já possuísse em sua estrutura cognitiva (por isso ela não entendia o que dizia, apenas sabia a poesia de cor). O conhecimento assim adquirido fica arbitrariamente distribuído na estrutura cognitiva, sem se ligar a conceitos específicos. [pg. 117]
  2. Aprendizagem significativa — processa-se quando um novo conteúdo (idéias ou informações) relaciona-se com conceitos relevantes, claros e disponíveis na estrutura cognitiva, sendo assim assimilado por ela. Estes conceitos disponíveis são os pontos de ancoragem para a aprendizagem. Por exemplo, nós estamos aqui apresentando a você um novo conceito — o de aprendizagem significativa. Para que este conceito seja assimilado por sua estrutura cognitiva, é necessário que a noção de aprendizagem apresentada pelos cognitivistas já esteja lá, como ponto de ancoragem. E esta nova noção de aprendizagem significativa, sendo assimilada, servirá de ponto de ancoragem para o conteúdo que se seguirá.

Os pontos de ancoragem

Os pontos de ancoragem são formados com a incorporação, à estrutura cognitiva, de elementos (informações ou idéias) relevantes para a aquisição de novos conhecimentos e com a organização destes, de forma a, progressivamente, generalizarem-se, formando conceitos. Por exemplo, crianças pequenas podem, inicialmente, ter contato com sementinhas, que, plantadas num canteiro, surgem como folhinhas; ter contato com animais, que geram novos animais; e ainda ter contato com as pedras e a areia da rua.

Estes contatos podem ser explorados até que as crianças tenham condições cognitivas de perceber as diferenças entre os seres e, assim, adquirir as noções de seres vivos — vegetais e animais — e seres inanimados. A partir da aquisição destas noções básicas, as crianças estarão aptas a aprender outros conteúdos e a diferenciar e categorizar os diferentes seres. Podemos, então, dizer que as noções de seres vivos e não-vivos são pontos de ancoragem para outros conhecimentos.

O exemplo acima poderá dar a impressão de que falamos de pontos de ancoragem apenas na aprendizagem realizada por crianças. Não, falamos de aprendizagem significativa e de pontos de ancoragem sempre que algum conteúdo novo deva ser aprendido. Assim, na disciplina de Física, com certeza seu professor trabalha inicialmente a noção de energia e/ou eletricidade, para desenvolver os outros conteúdos que supõem compreensão desses conceitos. [pg. 118]

E, indo um pouco mais além, podemos dizer que não estamos falando apenas da aprendizagem que se dá na escola. Pense em alguém que nunca tenha visto, nem ouvido falar do jogo de futebol, isto é, não tenha pontos de ancoragem para as informações que lhe chegam através da televisão na transmissão de uma partida. Com certeza, não entenderá nada ou, aos poucos, com base em informações que possua de outros jogos, começará a organizar as informações recebidas, vindo mesmo a entender o que se passa.

Uma teoria de Ensino: Bruner

A partir de concepções, como esta de Ausubel, sobre o processo de aprendizagem, alguns pesquisadores desenvolveram teorias sobre o ensino, procurando discutir e sistematizar o processo de organização das condições para a aprendizagem.

Entre esses teóricos, ressaltaremos a contribuição de Jerome Bruner.

Bruner concebeu o processo de aprendizagem como “captar as relações entre os fatos”, adquirindo novas informações, transformando-as e transferindo-as para novas situações. Partindo daí, ele formulou uma teoria de ensino.

O ensino, para Bruner, envolve a organização da matéria de maneira eficiente e significativa para o aprendiz. Assim, o professor deve
 preocupar-se não só com a extensão da matéria, mas, principalmente, com sua estrutura.

A estrutura da matéria

A aprendizagem, que deve ser sempre capaz de nos levar adiante, está na dependência de como se domina a estrutura da matéria estudada, isto é, a natureza geral do fenômeno; as idéias mais gerais, elementares e essenciais da matéria. Para se garantir este “ir adiante”, é necessário ainda o desenvolvimento de uma atitude de investigação.

Para se dar conta do primeiro aspecto (estrutura da matéria), Bruner propõe que os especialistas nas disciplinas auxiliem a estruturar o conteúdo de ensino a partir dos conceitos mais gerais e essenciais da matéria e, a partir daí, desenvolvam-no como uma espiral — sempre dos conceitos mais gerais para os particulares, aumentando gradativamente a complexidade das informações. Por exemplo, em Física é necessário começarmos pela noção de energia, em Psicologia pela noção da vida psíquica e em História pelas noções de Homem, Natureza e Cultura. [pg. 119]

Quanto à atitude de investigação, Bruner sugere que se utilize o método da descoberta como método básico do trabalho educacional. O aprendiz tem plenas condições de percorrer o caminho da descoberta científica, investigando, fazendo perguntas, experimentando e descobrindo.

O ensino, para Bruner, deve estar voltado para a compreensão. Compreensão das relações entre os fatos e entre as idéias, única forma de se garantir a transferência do conteúdo aprendido para novas situações. Este princípio geral norteia a proposta de Bruner até no que diz respeito ao trabalho com o erro do aprendiz. O erro deve ser instrutivo, diz Bruner. O professor deverá reconstituir com o aprendiz o caminho de seu raciocínio, para encontrar o momento do erro e, a partir daí, reconduzi-lo ao raciocínio correto.

Bruner ainda postula que “qualquer assunto pode ser ensinado com eficiência, de alguma forma intelectualmente honesta, a qualquer criança, em qualquer estágio de desenvolvimento”3. Para que isto seja possível, é necessário que o professor apresente a matéria à criança em termos da visualização que ela tem das coisas. Isto é, a criança poderá aprender qualquer coisa, se a linguagem do professor lhe for acessível e se seus conhecimentos anteriores lhe possibilitarem a compreensão do novo conteúdo. O trabalho do professor é um verdadeiro trabalho de tradução: da linguagem da ciência para a linguagem da criança. Para isto, Bruner propõe que o professor se utilize da teoria de Piaget, onde as possibilidades e limites da criança em cada fase do desenvolvimento estão claramente definidos. Bruner e Piaget podem auxiliar muito o professor na organização de seu ensino, mas será sempre necessário que o professor conheça a realidade de vida de seu aluno — sua classe social, suas experiências de vida, suas dificuldades, a realidade de sua família etc. — para que o programa possa ter algum significado e importância para ele; isto é, não basta conhecer teoricamente o educando, é preciso conhecê-lo concretamente.

Motivação

A motivação continua sendo um complexo tema para a Psicologia e, particularmente, para as teorias de aprendizagem e ensino.

Atribuímos à motivação tanto a facilidade quanto a dificuldade para aprender. Atribuímos às condições motivadoras o sucesso ou o fracasso dos professores ao tentar ensinar algo a seus alunos. E, [pg. 120] apesar de dificilmente detectarmos o motivo que subjaz a algum tipo de comportamento, sabemos que sempre há algum.

O estudo da motivação considera três tipos de variáveis:

  1. o ambiente;
  2. as forças internas ao indivíduo, como necessidade, desejo, vontade, interesse, impulso, instinto;
  3. o objeto que atrai o indivíduo por ser fonte de satisfação da força interna que o mobiliza.

A motivação é, portanto, o processo que mobiliza o organismo para a ação, a partir de uma relação estabelecida entre o ambiente, a necessidade e o objeto de satisfação. Isso significa que, na base da motivação, está sempre um organismo que apresenta uma necessidade, um desejo, uma intenção, um interesse, uma vontade ou uma predisposição para agir. Na motivação está também incluído o ambiente que estimula o organismo e que oferece o objeto de satisfação. E, por fim, na motivação está incluído o objeto que aparece como a possibilidade de satisfação da necessidade.

A gíria possui um termo bastante apropriado para a significação de motivação: “estar a fim”. Quando dizemos “estamos a fim de”, estamos expressando nossa motivação. E vejamos num exemplo: “Estou a fim de ler este livro todo” (esperamos que não seja um exemplo absurdo!) — o livro aparece como o elemento do ambiente que satisfará minha necessidade ou desejo de conhecer um pouco de Psicologia. O próprio ambiente, de alguma forma, gerou em mim este interesse, ou porque li outros livros que falavam do assunto, ou porque meu colega citou a Psicologia como uma ciência interessante, ou porque vi um psicólogo em um filme e me interessei. Ambiente — organismo — interesse ou necessidade — objeto de satisfação. Está montada a cadeia da motivação.

Retomando, podemos dizer que a motivação é um processo que relaciona necessidade, ambiente e objeto, e que predispõe o organismo para a ação em busca da satisfação da necessidade. E, quando esse objeto não é encontrado, falamos em frustração.

Motivação e o processo ensino-aprendizagem

A motivação está presente como processo em todas as esferas de nossa vida — no trabalho, no lazer, na escola.

A preocupação do ensino tem sido a de criar condições tais, que o aluno “fique a fim” de aprender. Sem dúvida, não é fácil, pois acabamos de dizer que precisa haver uma necessidade ou desejo, e o objeto precisa surgir como solução para a necessidade. [pg. 121] Duplo desafio: criar a necessidade e apresentar um objeto adequado para sua satisfação.

Resolver este problema é, sem dúvida, a tarefa mais difícil que o professor enfrenta. Consideraremos abaixo alguns pontos:

  1. uma possibilidade é que o trabalho educacional parta sempre das necessidades que o aluno já traz, introduzindo ou associando a elas outros conteúdos ou motivos;
  2. outra possibilidade, não excludente, é criar outros interesses no aluno.

E como podemos pensar em criar interesses?

  1. Propiciando a descoberta. Bruner é defensor desta proposta. O aluno deve ser desafiado, para que deseje saber, e uma forma de criar este interesse é dar a ele a possibilidade de descobrir.
  2. Desenvolver nos alunos uma atitude de investigação, uma atitude que garanta o desejo mais duradouro de saber, de querer saber sempre. Desejar saber deve passar a ser um estilo de vida. Essa atitude pode ser desenvolvida com atividades muito simples, que começam pelo incentivo à observação da realidade próxima ao aluno — sua vida cotidiana —, os objetos que fazem parte de seu mundo físico e social. Essas observações sistematizadas vão gerar dúvidas (por que as coisas são como são?) e aí é preciso investigar, descobrir.
  3. Falar ao aluno sempre numa linguagem acessível, de fácil compreensão.
  4. Os exercícios e tarefas deverão ter um grau adequado de complexidade. Tarefas muito difíceis, que geram fracasso, e tarefas fáceis, que não desafiam, levam à perda do interesse. O aluno não “fica a fim”.
  5. Compreender a utilidade do que se está aprendendo é também fundamental. Não é difícil para o professor estar sempre retomando em suas aulas a importância e utilidade que o conhecimento tem e poderá ter para o aluno. Somos sempre “a fim” de aprender coisas que são úteis e têm sentido para nossa vida. [pg. 122]

Teorias atuais

As teorias de Vigotski e Piaget (que embasaram a produção de Emília Ferreiro) são, hoje, referência na questão da aprendizagem e, o mais interessante, é que essas duas teorias são muito antigas na Psicologia.

Vigostki

Este autor produziu toda a sua obra no início do nosso século, pois morreu cedo, deixando aos colegas de trabalho a tarefa de completar sua teoria. Hoje, 60 anos depois de sua morte, o autor volta à tona com o merecido reconhecimento pela sua contribuição à Educação e a Psicologia.
Na década de 20 e início dos anos 30, Vigotski dedicou-se à construção da crítica à noção de que se poderia construir conhecimento sobre as funções psicológicas superiores humanas a partir de experiências com animais. Ele criticou, também, as concepções que afirmavam serem as propriedades intelectuais dos homens resultado da maturação do organismo, como se o desenvolvimento estivesse predeterminado e, o seu afloramento, vinculado apenas a uma questão de tempo. Vigotski buscou as origens sociais destas capacidades humanas. Além disso, via o pensamento marxista como uma fonte científica de grande valor para a solução dos paradoxos científicos fundamentais que incomodavam a Psicologia no início do século.

 Alguns pontos da concepção de Vigotski valem a pena ser sistematizados aqui (para complementar, faça a leitura do capítulo 7):

  • Os fenômenos devem ser estudados em movimento e compreendidos como em permanente transformação. Na Psicologia, isso significa estudar o fenômeno psicológico em sua origem e no curso de seu desenvolvimento.
  • A história dos fenômenos é caracterizada por mudanças qualitativas e quantitativas. Assim, o fenômeno psicológico transforma-se no decorrer da história da humanidade, e processos elementares tornam-se complexos.
  • As mudanças na “natureza do homem” são produzidas por mudanças na vida material e na sociedade.
  • O sistema de signos (a linguagem, a escrita, o sistema de números) é pensado como um sistema de instrumentos, os quais foram criados pela sociedade, ao longo de sua história. Esse sistema muda a forma social e o nível de desenvolvimento cultural da [pg. 123] humanidade. A internalização desses signos provoca mudanças no homem. Seguindo a tradição marxista, Vigotski considera que as mudanças que ocorrem em cada um de nós têm sua raiz na sociedade e na cultura.

Vigotski tem parte de sua obra dedicada às questões escolares e é por isso que, neste capítulo, vamos reunir algumas considerações importantes feitas por ele e que podem contribuir para olharmos os chamados “problemas de aprendizagem” sob uma nova perspectiva: a das relações sociais que caracterizam o processo de ensino- aprendizagem.

Para Vigotski, a aprendizagem sempre inclui relações entre as pessoas. A relação do indivíduo com o mundo está sempre mediada pelo outro. Não há como aprender e apreender o mundo se não tivermos o outro, aquele que nos fornece os significados que permitem pensar o mundo a nossa volta. Veja bem, Vigotski defende a idéia de que não há um desenvolvimento pronto e previsto dentro de nós que vai se atualizando conforme o tempo passa ou recebemos influência externa. O desenvolvimento não é pensado como algo natural nem mesmo como produto exclusivo da maturação do organismo, mas como um processo em que estão presentes a maturação do organismo, o contato com a cultura produzida pela humanidade e as relações sociais que permitem a aprendizagem. E aí aparece o “outro” como alguém fundamental, pois este outro é quem nos orienta no processo de apropriação da cultura.

Para Vigotski, o desenvolvimento é um processo que se dá de fora para dentro. É no processo de ensino-aprendizagem que ocorre a apropriação da cultura e o conseqüente desenvolvimento do indivíduo.

A aprendizagem da criança inicia-se muito antes de sua entrada na escola, isto porque desde o primeiro dia de vida, ela já está exposta aos elementos da cultura e à presença do outro, que se torna o mediador entre ela e a cultura. A criança vai aprendendo a falar e a gesticular, a nomear objetos, a adquirir informações a respeito do mundo que a rodeia, a manusear objetos da cultura; ela vai se comportando de acordo com as necessidades e as possibilidades. Em todas essas atividades está o “outro”. Parceiro de todas as horas, é ele que lhe diz o nome das coisas, a forma certa de se comportar; é ele que lhe explica o mundo, que lhe responde aos “porquês”, enfim, é o seu grande intérprete do mundo. São esses elementos apropriados do mundo exterior que possibilitam o desenvolvimento do organismo e a aquisição das capacidades superiores que caracterizam o psiquismo humano.

A escola surgirá, então, como lugar privilegiado para este desenvolvimento, pois é o espaço em que o contato com a cultura é [pg. 124] feito de forma sistemática, intencional e planejada. O desenvolvimento — que só ocorre quando situações de aprendizagem o provocam — tem seu ritmo acelerado no ambiente escolar. O professor e os colegas formam um conjunto de mediadores da cultura que possibilita um grande avanço no desenvolvimento da criança.

A criança não possui instrumentos endógenos para o seu desenvolvimento. Os mecanismos de desenvolvimento são dependentes dos processos de aprendizagem, estes, sim, responsáveis pela emergência de características psicológicas tipicamente humanas, que transcendem à programação biológica da espécie. O contato e o aprendizado da escrita e das operações matemáticas fornecem a base para o desenvolvimento de processos internos altamente complexos no pensamento da criança. O aprendizado, quando adequadamente organizado, resulta em desenvolvimento mental, pondo em movimento processos que seriam impossíveis de acontecer. Esses princípios diferenciam-se de visões que pensam o desenvolvimento como um processo que antecede à aprendizagem, ou como um processo já completo, que a viabiliza.

A partir destas concepções, Vigotski construiu o conceito de zona de desenvolvimento proximal, referindo-se às potencialidades da criança que podem ser desenvolvidas a partir do ensino sistemático. A zona de desenvolvimento proximal é a distância entre o nível de desenvolvimento real, que se costuma determinar através da solução independente de problemas pela criança, e o nível de desenvolvimento potencial, determinado pela solução de problemas sob a orientação de um adulto ou em colaboração com companheiros. Este conceito é importante porque nos possibilita delinear o futuro imediato da criança e seu estado dinâmico de desenvolvimento. Além disso, permite ao professor olhar seu educando de outra perspectiva, bem como o trabalho conjunto entre colegas. Aliás, Vigotski acreditava que a noção de zona de desenvolvimento proximal já estava presente no bom senso do professor, quando este planejava seu trabalho.

Assim, Vigotski insistia na importância de a Educação pensar o desenvolvimento da criança de forma prospectiva, e não retrospectiva, como era feito. Sua crítica foi contundente. Segundo Vigotski, a escola pensa a criança e planeja o ensino de forma retrospectiva por considerar, como condição para a aprendizagem, o nível de desenvolvimento já conquistado pela criança. No seu entender, a escola deveria inverter esse raciocínio e pensar o ensino das possibilidades que o aprendizado já obtido traz. O bom ensino é aquele que se volta para as funções psicológicas emergentes, potenciais, e pode ser facilmente estimulado pelo contato com os colegas que já aprenderam determinado conteúdo. [pg. 125]

A aprendizagem é, portanto, um processo essencialmente social, que ocorre na interação com os adultos e os colegas. O desenvolvimento é resultado desse processo, e a escola, o lugar privilegiado para essa estimulação. A Educação passa, então, a ser vista como processo social sistemático de construção da humanidade.

Sintetizando, poderíamos dizer que, para Vigotski, as relações entre aprendizagem e desenvolvimento são indissociáveis. O indivíduo, imerso em um contexto cultural, tem seu desenvolvimento movido por mecanismos de aprendizagem acionados externamente. A matéria-prima deste desenvolvimento encontra-se, fundamentalmente, no mundo externo, nos instrumentos culturais construídos pela humanidade. Assim, o homem, ao buscar respostas para as necessidades de seu tempo histórico, cria, junto com outros homens, instrumentos que consolidam o desenvolvimento psicológico e fisiológico obtido até então. Os homens de outra geração, ao manusearem estes instrumentos, apropriam-se do desenvolvimento ali consolidado. Eles aprendem e se desenvolvem ao mesmo tempo, adquirindo possibilidades de responder a novas necessidades com a construção de novos instrumentos. E assim caminha a humanidade...

A partir destas concepções de Vigotski, a escola torna-se um novo lugar — um espaço que deve privilegiar o contato social entre seus membros e torná-los mediadores da cultura. Alunos e professores devem ser considerados parceiros nesta tarefa social. O aluno jamais poderá ser visto como alguém que não aprende, possuidor de algo interno que lhe dificulta a aprendizagem. O desafio está colocado. Todos são responsáveis no processo. Não há aprendizagem que não gere desenvolvimento; não há desenvolvimento que prescinda da aprendizagem. Aprender é estar com o outro, que é mediador da cultura.

Qualquer dificuldade neste processo deverá ser analisada como uma responsabilidade de todos os envolvidos. O professor torna-se figura fundamental; o colega de classe, um parceiro importante; o planejamento das atividades torna-se tarefa essencial e a escola, o lugar de construção humana.

Jean Piaget

Produziu uma extensa obra entre 1918 e 1980. Procurou explicar o aparecimento de inovações, mudanças e transformações no percurso do desenvolvimento intelectual, assim como dos mecanismos responsáveis por estas transformações. Por tais [pg. 126] atributos, sua teoria é classificada como construtivista. Este caráter da obra de Piaget torna-se marcante a partir da década de 70, quando passa a trabalhar, exclusivamente, com investigações sobre os mecanismos de transição que explicam a evolução do desenvolvimento cognitivo. Para Piaget, a formação das operações cognitivas no homem está subordinada a um processo geral de equilibração para o qual tende o desenvolvimento cognitivo, como um todo.

É preciso lembrar que, naquela época, as teorias associacionistas e empiristas enfatizavam o papel da experiência com os estímulos do ambiente. Sem deixar de reconhecer este papel, Piaget assentou, em sua obra, a existência de uma organização própria dos sujeitos da experiência sensível, organização que submete os estímulos do meio à atividade interna do sujeito.

O homem, dotado de estruturas biológicas, herda uma forma de funcionamento intelectual, ou seja, uma maneira de interagir com o ambiente que o leva à construção de um conjunto de significados. A interação deste sujeito com o ambiente permitirá a organização desses significados em estruturas cognitivas. Durante a vida, serão vários os modos de organização dos significados, marcando, assim, diferentes estágios de desenvolvimento. A cada estágio corresponderá um tipo de estrutura cognitiva que permitirá formas diferentes de interação com o meio. São as diferentes estruturas cognitivas que permitem prever o que se pode conhecer naquele momento da evolução.

Piaget utilizou, para a construção de suas idéias, o modelo biológico: o homem é guiado pela busca do equilíbrio entre as necessidades biológicas fundamentais de sobrevivência e as agressões ou restrições colocadas pelo meio para a satisfação destas necessidades. Nesta relação, a organização — enquanto capacidade do indivíduo de condutas seletivas — é o mecanismo que permite ao homem ter condutas eficientes para atender às suas necessidades, isto é, à sua demanda de adaptação.

A adaptação — que envolve a assimilação e a acomodação numa relação indissociável — é o mecanismo que permite ao homem não só transformar os elementos assimilados, tornando-os parte da estrutura do organismo, como possibilitar o ajuste e a acomodação deste organismo aos elementos incorporados.

Neste sentido, a inteligência é uma adaptação — é assimilação, pois incorpora dados da experiência do indivíduo e, ao mesmo tempo, acomodação, uma vez que o sujeito modifica suas estruturas mentais para incorporar os novos elementos da experiência. [pg. 127]

O desenvolvimento intelectual resulta da construção de um equilíbrio progressivo entre assimilação e acomodação, o que propicia o aparecimento de novas estruturas mentais. Isso é um processo em evolução.

No decorrer de sua evolução, a inteligência apresenta formas diversas (estágios) e essas formas vão caracterizando as possibilidades de relação com seu meio ambiente. Assim, o homem aprende o mundo de maneira diversa a cada momento de seu desenvolvimento.

Piaget não desenvolveu uma teoria do processo de ensino-aprendizagem, mas formulou referências claras que, na década de 80, seriam utilizadas por Emília Ferreiro na elaboração da sua teoria sobre a aprendizagem da escrita. Piaget, na verdade, foi e é referência para muitos teóricos na Psicologia, mas dada a importância atual do trabalho de Ferreiro, vamos destacá-lo aqui.

Emília Ferreiro

Esta autora tem suas idéias publicadas a partir dos anos 80. Argentina de nascimento, psicopedagoga de formação, doutorou-se em Genebra, orientada por Jean Piaget. Na década de 80, estabeleceu-se na cidade do México, onde vem trabalhando até hoje. Seus trabalhos de pesquisa demonstram uma preocupação em integrar os objetivos científicos a um compromisso com a realidade social e cultural da América Latina. Suas análises sobre o fracasso escolar das populações marginalizadas — atribuído a um problema social — demonstram este compromisso. Ferreiro contribuiu significativamente para a compreensão do processo de aprendizagem, demonstrando a existência de mecanismos no sujeito que aprende, mecanismos estes que surgem da interação com a linguagem escrita, e que emergem de uma forma muito particular em cada um dos sujeitos. Assim, as crianças interpretam o ensino que recebem, transformando a escrita convencional e produzindo escritas estranhas ao adulto. São, na verdade, do ponto de vista de Ferreiro, aplicações de esquemas de assimilação ao objeto de aprendizagem; são formas de interpretar e compreender o mundo das coisas. [pg. 128]

Para Ferreiro, existe um sujeito que conhece e que, para conhecer, emprega mecanismos de aprendizagem. Há, na sua concepção, um papel ativo do sujeito na interação com os objetos da realidade. Dessa forma, o que a criança aprende não corresponde ao que lhe é ensinado, pois existe um espaço aberto de elaboração do sujeito. O educador deve estar atento a esses processos para promover, adequadamente, a aprendizagem.

Além disso, Ferreiro entende que a aprendizagem da escrita tem um caráter evolutivo, no qual é relativamente tardia a descoberta de que a escrita representa a fala, não sendo necessário que se estabeleça, de início, a associação entre letras e sons. Outro aspecto importante nesta evolução refere-se ao aspecto conceitual da escrita. Para que as crianças possam descobrir o caráter simbólico da escrita, é preciso oferecer-lhes situações em que a escrita se torne objeto de seu pensamento. Este aprendizado é considerado fundamental, ao lado de outras habilidades que as concepções tradicionais já foram capazes de apontar, como as relacionadas à percepção e à motricidade.

Ferreiro valoriza, assim, as histórias ouvidas e contadas pelas crianças (que devem ser escritas pelo professor), bem como as tentativas de escrever seus nomes ou bilhetes. Essas atividades assumem grande importância no processo, pois são geradoras de espaço para a descoberta dos usos sociais da linguagem — que se escreve. É importante colocar a criança em situações de aprendizagem, em que possa utilizar suas próprias elaborações sobre a linguagem, sem que se exija dela ainda o domínio das técnicas e convenções da norma culta. O objetivo de Ferreiro é integrar o conhecimento espontâneo da criança ao ensino, dando-lhe maior significado.

A noção do caráter evolutivo da escrita também pode ser bem aproveitada para eliminar o caráter patológico de algumas expressões infantis. Saber, por exemplo, que os primeiros registros da sílaba são feitos com apenas uma letra, à qual se agregarão outras, posteriormente, levou Ferreiro à interpretação de que estes são fatos naturais do percurso, ou seja, são erros naturais e necessários à construção da aprendizagem.
Emília Ferreiro trouxe, assim, grande contribuição ao processo de alfabetização, indicando a necessidade de conhecer o processo de aprendizagem em todas as suas formas evolutivas. “Despatologizou” os erros comuns entre as crianças; valorizou a participação delas no processo de ensino-aprendizagem; apropriou-se das atividades infantis como formas de ensino; enfim, Emília Ferreiro revolucionou a forma de se conceber e trabalhar na alfabetização de crianças. [pg. 129]

Psicologia - Psicologia Escolar e Educacional
Temas gerais - Temas gerais, 
7/15/2021 5:29:35 PM | Por Ana Mercês Bahia Bock
O Desenvolvimento Humano

Esta área de conhecimento da Psicologia estuda o desenvolvimento do ser humano em todos os seus aspectos: físico-motor, intelectual, afetivo-emocional e social — desde o nascimento até a idade adulta, isto é, a idade em que todos estes aspectos atingem o seu mais completo grau de maturidade e estabilidade. Existem várias teorias do desenvolvimento humano em Psicologia. Elas foram construídas a partir de observações, pesquisas com grupos de indivíduos em diferentes faixas etárias ou em diferentes culturas, estudos de casos clínicos, acompanhamento de indivíduos desde o nascimento até a idade adulta. Dentre essas teorias, destaca-se a do psicólogo e biólogo suíço Jean Piaget (1896-1980), pela sua produção contínua de pesquisas, pelo rigor científico de sua produção teórica e pelas implicações práticas de sua teoria, principalmente no campo da Educação.

O desenvolvimento humano

O desenvolvimento humano refere-se ao desenvolvimento mental e ao crescimento orgânico. O desenvolvimento mental é uma construção contínua, que se caracteriza pelo aparecimento gradativo de estruturas mentais. Estas são formas de organização da atividade mental que se vão aperfeiçoando e solidificando até o momento em que todas elas, estando plenamente desenvolvidas, caracterizarão um estado de equilíbrio superior quanto aos aspectos da inteligência, vida afetiva e relações sociais.

Algumas dessas estruturas mentais permanecem ao longo de toda a vida. Por exemplo, a motivação está sempre presente como desencadeadora da ação, seja por necessidades fisiológicas, seja por necessidades afetivas ou intelectuais. Essas estruturas mentais que permanecem garantem a continuidade do desenvolvimento. Outras estruturas são substituídas a cada nova fase da vida do indivíduo. Por exemplo, a moral da obediência da criança pequena é substituída pela autonomia moral do adolescente ou, outro exemplo, a noção de que o objeto existe só quando a criança o vê (antes dos 2 anos) é substituída, posteriormente, pela capacidade de atribuir ao objeto sua conservação, mesmo quando ele não está presente no seu campo visual.

A Importância do estudo do desenvolvimento humano

A criança não é um adulto em miniatura. Ao contrário, apresenta características próprias de sua idade. Compreender isso é compreender a importância do estudo do desenvolvimento humano. Estudos e pesquisas de Piaget demonstraram que existem formas de perceber, compreender e se comportar diante do mundo, próprias de cada faixa etária, isto é, existe uma assimilação progressiva do meio ambiente, que implica uma acomodação das estruturas mentais a este novo dado do mundo exterior.

Estudar o desenvolvimento humano significa conhecer as características comuns de uma faixa etária, permitindo-nos reconhecer as individualidades, o que nos torna mais aptos para a observação e interpretação dos comportamentos.

Todos esses aspectos levantados têm importância para a Educação. Planejar o que e como ensinar implica saber quem é o educando. Por exemplo, a linguagem que usamos com a criança de 4 anos não é a mesma que usamos com um jovem de 14 anos.

E, finalmente, estudar o desenvolvimento humano significa descobrir que ele é determinado pela interação de vários fatores.

Os fatores que influenciam o desenvolvimento humano

Vários fatores indissociados e em permanente interação afetam todos os aspectos do desenvolvimento. São eles

Hereditariedade — a carga genética estabelece o potencial do indivíduo, que pode ou não desenvolver-se. Existem pesquisas que comprovam os aspectos genéticos da inteligência. No entanto, a inteligência pode desenvolver-se aquém ou além do seu potencial, dependendo das condições do meio que encontra.

Crescimento orgânico — refere-se ao aspecto físico. O aumento de altura e a estabilização do esqueleto permitem ao indivíduo comportamentos e um domínio do mundo que antes não existiam. Pense nas possibilidades de descobertas de uma criança, quando começa a engatinhar e depois a andar, em relação a quando esta criança estava no berço com alguns dias de vida.

Maturação neurofisiológica — é o que torna possível determinado padrão de comportamento. A alfabetização das crianças, por exemplo, depende dessa maturação. Para segurar o lápis e manejá-lo como nós, é necessário um desenvolvimento neurológico que a criança de 2, 3 anos não tem. Observe como ela segura o lápis. 

Meio — o conjunto de influências e estimulações ambientais altera os padrões de comportamento do indivíduo. Por exemplo, se a estimulação verbal for muito intensa, uma criança de 3 anos pode ter um repertório verbal muito maior do que a média das crianças de sua idade, mas, ao mesmo tempo, pode não subir e descer com facilidade uma escada, porque esta situação pode não ter feito parte de sua experiência de vida.

Aspectos do desenvolvimento humano

O desenvolvimento humano deve ser entendido como uma globalidade, mas, para efeito de estudo, tem sido abordado a partir de quatro aspectos básicos:

Aspecto físico-motor — refere-se ao crescimento orgânico, à maturação neurofisiológica, à capacidade de manipulação de objetos e de exercício do próprio corpo. Exemplo: a criança leva a Chupeta à boca ou consegue tomar a mamadeira sozinha, por volta dos 7 meses, porque já coordena os movimentos das mãos

Aspecto intelectual — é a capacidade de pensamento, raciocínio. Por exemplo, a criança de 2 anos que usa um cabo de vassoura para puxar um brinquedo que está embaixo de um móvel ou o jovem que planeja seus gastos a partir de sua mesada ou salário.

Aspecto afetivo-emocional — é o modo particular de o indivíduo integrar as suas experiências. É o sentir. A sexualidade faz parte desse aspecto. Exemplos: a vergonha que sentimos em algumas situações, o medo em outras, a alegria de rever um amigo querido.

Aspecto social — é a maneira como o indivíduo reage diante das situações que envolvem outras pessoas. Por exemplo, em um grupo de crianças, no parque, é possível observar algumas que espontaneamente buscam outras para brincar, e algumas que permanecem sozinhas.

Se analisarmos melhor cada um desses exemplos, vamos descobrir que todos os outros aspectos estão presentes em cada um dos casos. E é sempre assim. Não é possível encontrar um exemplo “puro”, porque todos estes aspectos relacionam-se permanentemente. Por exemplo, uma criança tem dificuldades de aprendizagem, repete o ano, vai-se tornando cada vez mais “tímida” ou “agressiva”, com poucos amigos e, um dia, descobre-se que as dificuldades tinham origem em uma deficiência auditiva. Quando isso é corrigido, todo o quadro reverte-se. A história pode, também, não ter um final feliz, se os danos forem graves.

Todas as teorias do desenvolvimento humano partem do pressuposto de que esses quatro aspectos são indissociados, mas elas podem enfatizar aspectos diferentes, isto é, estudar o desenvolvimento global a partir da ênfase em um dos aspectos. A Psicanálise, por exemplo, estuda o desenvolvimento a partir do aspecto afetivo-emocional, isto é, do desenvolvimento da sexualidade. Jean Piaget enfatiza o desenvolvimento intelectual.

A teoria do desenvolvimento humano de Jean Piaget

Este autor divide os períodos do desenvolvimento humano de acordo com o aparecimento de novas qualidades do pensamento, o que, por sua vez, interfere no desenvolvimento global.

1°  período:  Sensório-motor (0 a 2 anos);

2°  período:  Pré-operatório (2 a 7 anos);

3°  período: Operações concretas (7 a 11 ou 12 anos);

4°  período: Operações formais (11 ou 12 anos em diante)

Segundo Piaget, cada período é caracterizado por aquilo que de melhor o indivíduo consegue fazer nessas faixas etárias. Todos os indivíduos passam por todas essas fases ou períodos, nessa seqüência, porém o início e o término de cada uma delas dependem das características biológicas do indivíduo e de fatores educacionais, sociais. Portanto, a divisão nessas faixas etárias é uma referência, e não uma norma rígida.

Período sensório-motor

(o recém-nascido e o lactente — 0 a 2 anos)

Neste período, a criança conquista, através da percepção e dos movimentos, todo o universo que a cerca.

No recém-nascido, a vida mental reduz-se ao exercício dos aparelhos reflexos, de fundo hereditário, como a sucção. Esses reflexos melhoram com o treino. Por exemplo, o bebê mama melhor no 10° dia de vida do que no 2° dia. Por volta dos cinco meses, a criança consegue coordenar os movimentos das mãos e olhos e pegar objetos, aumentando sua capacidade de adquirir hábitos novos.

No final do período, a criança é capaz de usar um instrumento como meio para atingir um objeto. Por exemplo, descobre que, se puxar a toalha, a lata de bolacha ficará mais perto dela. Neste caso, ela utiliza a inteligência prática ou sensório-motora, que envolve as percepções e os movimentos.

Neste período, fica evidente que o desenvolvimento físico-acelerado é o suporte para o aparecimento de novas habilidades. Isto é, o desenvolvimento ósseo, muscular e neurológico permite a emergência de novos comportamentos, como sentar-se, andar, o que propiciará um domínio maior do ambiente.

Ao longo deste período, irá ocorrer na criança uma diferenciação progressiva entre o seu eu e o mundo exterior. Se no início o mundo era uma continuação do próprio corpo, os progressos da inteligência levam-na a situar-se como um elemento entre outros no mundo. Isso permite que a criança, por volta de 1 ano, admita que um objeto continue a existir mesmo quando ela não o percebe, isto é, o objeto não está presente no seu campo visual, mas ela continua a procurar ou a pedir o brinquedo que perdeu, porque sabe que ele continua a existir.

Esta diferenciação também ocorre no aspecto afetivo, pois o bebê passa das emoções primárias (os primeiros medos, quando, por exemplo, ele se enrijece ao ouvir um barulho muito forte) para uma escolha afetiva de objetos (no final do período), quando já manifesta preferências por brinquedos, objetos, pessoas etc.

No curto espaço de tempo deste período, por volta de 2 anos, a criança evolui de uma atitude passiva em relação ao ambiente e pessoas de seu mundo para uma atitude ativa e participativa. Sua integração no ambiente dá-se, também, pela imitação das regras. E, embora compreenda algumas palavras, mesmo no final do período só é capaz de fala imitativa.

Período pré-operatório

(a 1a infância — 2 a 7 anos)

Neste período, o que de mais importante acontece é o aparecimento da linguagem, que irá acarretar modificações nos aspectos intelectual, afetivo e social da criança.

A interação e a comunicação entre os indivíduos são, sem dúvida, as conseqüências mais evidentes da linguagem. Com a palavra, há possibilidade de exteriorização da vida interior e, portanto, a possibilidade de corrigir ações futuras. A criança já antecipa o que vai fazer.

Como decorrência do aparecimento da linguagem, o desenvolvimento do pensamento se acelera. No início do período, ele exclui toda a objetividade, a criança transforma o real em função dos seus desejos e fantasias (jogo simbólico); posteriormente, utiliza-o como referencial para explicar o mundo real, a sua própria atividade, seu eu e suas leis morais; e, no final do período, passa a procurar a razão causal e finalista de tudo (é a fase dos famosos “porquês”). E um pensamento mais adaptado ao outro e ao real.

Como várias novas capacidades surgem, muitas vezes ocorre a superestimação da capacidade da criança neste período. É importante ter claro que grande parte do seu repertório verbal é usada de forma imitativa, sem que ela domine o significado das palavras; ela tem dificuldades de reconhecer a ordem em que mais de dois ou três eventos ocorrem e não possui o conceito de número. Por ainda estar centrada em si mesma, ocorre uma primazia do próprio ponto de vista, o que torna impossível o trabalho em grupo. Esta dificuldade mantém-se ao longo do período, na medida em que a criança não consegue colocar-se do ponto de vista do outro.

No aspecto afetivo, surgem os sentimentos interindividuais, sendo que um dos mais relevantes é o respeito que a criança nutre pelos indivíduos que julga superiores a ela. Por exemplo, em relação aos pais, aos professores. É um misto de amor e temor. Seus sentimentos morais refletem esta relação com os adultos significativos — a moral da obediência —, em que o critério de bem e mal é a vontade dos adultos. Com relação às regras, mesmo nas brincadeiras, concebe-as como imutáveis e determinadas externamente. Mais tarde, adquire uma noção mais elaborada da regra, concebendo-a como necessária para organizar o brinquedo, porém não a discute.

Com o domínio ampliado do mundo, seu interesse pelas diferentes atividades e objetos se multiplica, diferencia e regulariza, isto é, torna-se estável, sendo que, a partir desse interesse, surge uma escala de valores própria da criança. E a criança passa a avaliar suas próprias ações a partir dessa escala.

É importante, ainda, considerar que, neste período, a maturação neurofisiológica completa-se, permitindo o desenvolvimento de novas habilidades, como a coordenação motora fina — pegar pequenos objetos com as pontas dos dedos, segurar o lápis corretamente e conseguir fazer os delicados movimentos exigidos pela escrita.

Período das operações concretas

(a infância propriamente dita — 7 a 11 ou 12 anos)

O desenvolvimento mental caracterizado no anterior pelo egocentrismo intelectual e social é superado neste período pelo início da construção lógica, isto é, a capacidade da criança de estabelecer relações que permitam a coordenação de pontos de vista diferentes. Estes pontos de vista podem referir-se a pessoas diferentes ou à própria criança, que “vê” um objeto ou situação com aspectos diferentes e, mesmo, conflitantes. Ela consegue coordenar estes pontos de vista e integrá-los de modo lógico e coerente. No plano afetivo, isto significa que ela será capaz de cooperar com os outros, de trabalhar em grupo e, ao mesmo tempo, de ter autonomia pessoal.

O que possibilitará isto, no plano intelectual, é o surgimento de uma nova capacidade mental da criança: as operações, isto é, ela consegue realizar uma ação física ou mental dirigida para um fim (objetivo) e revertê-la para o seu início. Num jogo de quebra-cabeça, próprio para a idade, ela consegue, na metade do jogo, descobrir um erro, desmanchar uma parte e recomeçar de onde corrigiu, terminando-o. As operações sempre se referem a objetos concretos presentes ou já experienciados.

Outra característica deste período é que a criança consegue exercer suas habilidades e capacidades a partir de objetos reais, concretos. Portanto, mesmo a capacidade de reflexão que se inicia, isto é, pensar antes de agir, considerar os vários pontos de vista simultaneamente, recuperar o passado e antecipar o futuro, se exerce a partir de situações presentes ou passadas, vivenciadas pela criança.

Em nível de pensamento, a criança consegue:

  • estabelecer corretamente as relações de causa e efeito e de meio e fim;
  • seqüenciar idéias ou eventos;
  • trabalhar com idéias sob dois pontos de vista, simultaneamente;
  • formar o conceito de número (no início do período, sua noção de número está vinculada a uma correspondência com o objeto concreto).

A noção de conservação da substância do objeto (comprimento e quantidade) surge no início do período; por volta dos 9 anos, surge a noção de conservação de peso; e, ao final do período, a noção de conservação do volume.

No aspecto afetivo, ocorre o aparecimento da vontade como qualidade superior e que atua quando há conflitos de tendências ou intenções (entre o dever e o prazer, por exemplo). A criança adquire uma autonomia crescente em relação ao adulto, passando a organizar seus próprios valores morais. Os novos sentimentos morais, característicos deste período, são: o respeito mútuo, a honestidade, o companheirismo e a justiça, que considera a intenção na ação. Por exemplo, se a criança quebra o vaso da mãe, ela acha que não deve ser punida se isto ocorreu acidentalmente. O grupo de colegas satisfaz, progressivamente, as necessidades de segurança e afeto.

Nesse sentido, o sentimento de pertencer ao grupo de colegas torna-se cada vez mais forte. As crianças escolhem seus amigos, indistintamente, entre meninos e meninas, sendo que, no final do período, a grupalização com o sexo oposto diminui.

Este fortalecimento do grupo traz a seguinte implicação: a criança, que no início do período ainda considerava bastante as opiniões e idéias dos adultos, no final passa a “enfrentá-los”.

A cooperação é uma capacidade que vai-se desenvolvendo ao longo deste período e será um facilitador do trabalho em grupo, que se torna cada vez mais absorvente para a criança. Elas passam a elaborar formas próprias de organização grupal, em que as regras e normas são concebidas como válidas e verdadeiras, desde que todos as adotem e sejam a expressão de uma vontade de todos. Portanto, novas regras podem surgir, a partir da necessidade e de um “contrato” entre as crianças. 

Período das operações formais

(a adolescência — 11 ou 12 anos em diante)

Neste período, ocorre a passagem do pensamento concreto para o pensamento formal, abstrato, isto é, o adolescente realiza as operações no plano das idéias, sem necessitar de manipulação ou referências concretas, como no período anterior. É capaz de lidar cora conceitos como liberdade, justiça etc. O adolescente domina, progressivamente, a capacidade de abstrair e generalizar, cria teorias sobre o mundo, principalmente sobre aspectos que gostaria de reformular. Isso é possível graças à capacidade de reflexão espontânea que, cada vez mais descolada do real, é capaz de tirar conclusões de puras hipóteses.

O livre exercício da reflexão permite ao adolescente, inicialmente, “submeter” o mundo real aos sistemas e teorias que o seu pensamento é capaz de criar. Isto vai-se atenuando de forma crescente, através da reconciliação do pensamento com a realidade, até ficar claro que a função da reflexão não é contradizer, mas se adiantar e interpretar a experiência.

Do ponto de vista de suas relações sociais, também ocorre o processo de caracterizar-se, inicialmente, por uma fase de interiorização, em que, aparentemente, é anti-social. Ele se afasta da família, não aceita conselhos dos adultos; mas, na realidade, o alvo de sua reflexão é a sociedade, sempre analisada como passível de ser reformada e transformada. Posteriormente, atinge o equilíbrio entre pensamento e realidade, quando compreende a importância da reflexão para a sua ação sobre o mundo real. Por exemplo, no início do período, o adolescente que tem dificuldades na disciplina de Matemática pode propor sua retirada do currículo e, posteriormente, pode propor soluções mais viáveis e adequadas, que considerem as exigências sociais.

No aspecto afetivo, o adolescente vive conflitos. Deseja libertar-se do adulto, mas ainda depende dele. Deseja ser aceito pelos amigos e pelos adultos. O grupo de amigos é um importante referencial para o jovem, determinando o vocabulário, as vestimentas e outros aspectos de seu comportamento. Começa a estabelecer sua moral individual, que é referenciada à moral do grupo.

Os interesses do adolescente são diversos e mutáveis, sendo que a estabilidade chega com a proximidade da idade adulta.

Juventude: projeto de vida

Conforme Piaget, a personalidade começa a se formar no final da infância, entre 8 e 12 anos, com a organização autônoma das regras, dos valores, a afirmação da vontade. Esses aspectos subordinam-se num sistema único e pessoal e vão-se exteriorizar na construção de um projeto de vida. Esse projeto é que vai nortear o indivíduo em sua adaptação ativa à realidade, que ocorre através de sua inserção no mundo do trabalho ou na preparação para ele, quando ocorre um equilíbrio entre o real e os ideais do indivíduo, isto é, de revolucionário no plano das idéias, ele se torna transformador, no plano da ação.

É importante lembrar que na nossa cultura, em determinadas classes sociais que “protegem” a infância e a juventude, a prorrogação do período da adolescência é cada vez maior, caracterizando-se por uma dependência em relação aos pais e uma postergação do período em que o indivíduo vai se tornar socialmente produtivo e, portanto, entrará na idade adulta.

Na idade adulta não surge nenhuma nova estrutura mental, e o indivíduo caminha então para um aumento gradual do desenvolvimento cognitivo, em profundidade, e uma maior compreensão dos problemas e das realidades significativas que o atingem. Isto influencia os conteúdos afetivo-emocionais e sua forma de estar no mundo.

O enfoque interacionista do desenvolvimento humano: Vigotski

Ao falarmos de desenvolvimento humano, hoje, não podemos deixar de citar o autor soviético Vigotski. Lev Semenovich Vigotski nasceu em 1896, na Belarus, e faleceu prematuramente aos 37 anos de idade. Vigotski foi um dos teóricos que buscou uma alternativa dentro do materialismo dialético para o conflito entre as concepções idealista e mecanicista na Psicologia. Ao lado de Luria e Leontiev, construiu propostas teóricas inovadoras sobre temas como relação pensamento e linguagem, natureza do processo de desenvolvimento da criança e o papel da instrução no desenvolvimento.

Vigotski foi ignorado no Ocidente, e mesmo na ex-União Soviética a publicação de suas obras foi suspensa entre 1936 e 1956. Atualmente,  no entanto, seu trabalho vem sendo estudado e valorizado no mundo todo.

Um pressuposto básico da obra de Vigotski é que as origens das formas superiores de comportamento consciente — pensamento, memória, atenção voluntária etc. —, formas essas que diferenciam o homem dos outros animais, devem ser achadas nas relações sociais que o homem mantém. Mas Vigotski não via o homem como um ser passivo, conseqüência dessas relações. Entendia o homem como ser ativo, que age sobre o mundo, sempre em relações sociais, e transforma essas ações para que constituam o funcionamento de um plano interno.

A visão do desenvolvimento infantil

O desenvolvimento infantil é visto a partir de três aspectos: instrumental, cultural e histórico. E é Luria que nos ajuda a compreendê- los

  • O aspecto instrumental refere-se à natureza basicamente mediadora das funções psicológicas complexas. Não apenas respondemos aos estímulos apresentados no ambiente, mas os alteramos e usamos suas modificações como um instrumento de nosso comportamento. Exemplo disso é o costume popular de amarrar um barbante no dedo para lembrar algo. O estímulo — o laço no dedo — objetivamente significa apenas que o dedo está amarrado. Ele adquire sentido, por sua função mediadora, fazendo-nos lembrar algo importante.
  • O aspecto cultural da teoria envolve os meios socialmente estruturados pelos quais a sociedade organiza os tipos de tarefa que a criança em crescimento enfrenta, e os tipos de instrumento, tanto mentais como físicos, de que a criança pequena dispõe para dominar aquelas tarefas. Um dos instrumentos básicos criados pela humanidade é a linguagem. Por isso, Vigotski deu ênfase, em toda sua obra, à linguagem e sua relação com o pensamento.
  • O aspecto histórico, como afirma Luria, funde-se com o cultural, poisos instrumentos que o homem usa, para dominar seu ambiente e seu próprio comportamento, foram criados e modificados ao longo da história social da civilização. Os instrumentos culturais expandiram os poderes do homem e estruturaram seu pensamento, de maneira que, se não tivéssemos desenvolvido a linguagem escrita e a aritmética, por exemplo, não possuiríamos hoje a organização dos processos superiores que possuímos.

Assim, para Vigotski, a história da sociedade e o desenvolvimento do homem caminham juntos e, mais do que isso, estão de tal forma intrincados, que um não seria o que é sem o outro. Com essa perspectiva, é que Vigotski estudou o desenvolvimento infantil.

As crianças, desde o nascimento, estão em constante interação com os adultos, que ativamente procuram incorporá-las a suas relações e a sua cultura. No início, as respostas das crianças são dominadas por processos naturais, especialmente aqueles proporcionados pela herança biológica. É através da mediação dos adultos que os processos psicológicos mais complexos tomam forma. Inicialmente, esses processos são interpsíquicos (partilhados entre pessoas), isto é, só podem funcionar durante a interação das crianças com os adultos. À medida que a criança cresce, os processos acabam por ser executados dentro das próprias crianças — intrapsíquicos.

É através desta interiorização dos meios de operação das informações, meios estes historicamente determinados e culturalmente organizados, que a natureza social das pessoas tornou-se igualmente sua natureza psicológica.

No estudo feito por Vigotski, sobre o desenvolvimento da fala, sua visão fica bastante clara: inicialmente, os aspectos motores e verbais do comportamento estão misturados. A fala envolve os elementos referenciais, a conversação orientada pelo objeto, as expressões emocionais e outros tipos de fala social. Como a criança está cercada por adultos na família, a fala começa a adquirir traços demonstrativos, e ela começa a indicar o que está fazendo e de que está precisando. Após algum tempo, a criança, fazendo distinções para os outros com o auxílio da fala, começa a fazer distinções para si mesma. E a fala vai deixando de ser um meio para dirigir o comportamento dos outros e vai adquirindo a função de autodireção.

Fala e ação, que se desenvolvem independentes uma da outra, em determinado momento do desenvolvimento convergem, e esse é o momento de maior significado no curso do desenvolvimento intelectual, que dá origem às formas puramente humanas de inteligência. Forma-se, então, um amálgama entre fala e ação; inicialmente a fala acompanha as ações e, posteriormente, dirige, determina e domina o curso da ação, com sua função planejadora.

O desenvolvimento está, pois, alicerçado sobre o plano das interações. O sujeito faz sua uma ação que tem, inicialmente, um significado partilhado. Assim, a criança que deseja um objeto inacessível apresenta movimentos de alcançá-lo, e esses movimentos são interpretados pelo adulto como “desejo de obtê-lo”, e então lhe dá o objeto. Os movimentos da criança afetam o adulto e não o objeto diretamente; e a interpretação do movimento pelo adulto permite que a criança transforme o movimento de agarrar em gesto de apontar. O gesto é criado na interação, e a criança passa a ter controle de uma forma de sinal, a partir das relações sociais.

Todos os movimentos e expressões verbais da criança, no início de sua vida, são importantes, pois afetam o adulto, que os interpreta e os devolve à criança com ação e/ou com fala. A fala egocêntrica, por exemplo, foi vista por Vigotski como uma forma de transição entre a fala exterior e a interior. A fala inicial da criança tem, portanto, um papel fundamental no desenvolvimento de suas funções psicológicas.

Para Vigotski, as funções psicológicas emergem e se consolidam no plano da ação entre pessoas e tornam-se internalizadas, isto é, transformam-se para constituir o funcionamento interno. O plano interno não é a reprodução do plano externo, pois ocorrem transformações ao longo do processo de internalização. Do plano interpsíquico, as ações passam para o plano intrapsíquico. 

Considera, portanto, as relações sociais como constitutivas das funções psicológicas do homem. Essa visão de Vigotski deu o caráter interacionista à sua teoria.

Vigotski deu ênfase ao processo de internalização como mecanismo que intervém no desenvolvimento das funções psicológicas complexas. Esta é reconstrução interna de uma operação externa e tem como base a linguagem. O plano interno, para Vigotski, não preexiste, mas é constituído pelo processo de internalização, fundado nas ações, nas interações sociais e na linguagem

Vigotski e Piaget

Se compararmos os dois maiores teóricos do desenvolvimento humano, podemos dizer, correndo algum risco de sermos simplistas, que Piaget apresenta uma tendência hiperconstrutivista em sua teoria, com ênfase no papel estruturante do sujeito. Maturação, experiências físicas, transmissões sociais e culturais e equilibração são fatores desenvolvidos na teoria de Piaget. Vigotski, por outro lado, enfatiza o aspecto interacionista, pois considera que é no plano intersubjetivo, isto é, na troca entre as pessoas, que têm origem as funções mentais superiores.

A teoria de Piaget apresenta também a dimensão interacionista, mas sua ênfase é colocada na interação do sujeito com o objeto físico; e, além disso, não está clara em sua teoria a função da interação social no processo de conhecimento.

A teoria de Vigotski, por outro lado, também apresenta um aspecto construtivista, na medida em que busca explicar o aparecimento de inovações e mudanças no desenvolvimento a partir do mecanismo de internalização. No entanto, temos na teoria sócio-interacionista apenas um quadro esboçado, que apresenta sugestões e caminhos, mas necessita de estudos e pesquisas que explicitem os mecanismos característicos dos processos de desenvolvimento. [pg. 110]

Se tivéssemos agora que apontar um desacordo entre essas teorias, resgataríamos as palavras de Lúria:

Quando a obra de Piaget, A linguagem e o pensamento da criança, chegou a nosso conhecimento, nós a estudamos cuidadosamente. Um desacordo fundamental da interpretação da relação entre a linguagem e o pensamento distinguia nosso trabalho da obra desse grande psicólogo suíço... discordamos fundamentalmente da idéia de que a fala inicial da criança não apresenta um papel importante no pensamento1

Psicologia - Psicologia do Desenvolvimento
Temas gerais - , 
7/14/2021 4:09:57 PM | Por Ana Mercês Bahia Bock
A Psicologia sócio-histórica

As tendências teóricas apresentadas nos capítulos 3, 4 e 5 — Behaviorismo, Gestalt e Psicanálise, respectivamente — constituíram-se em matrizes do desenvolvimento da ciência psicológica, propiciando o surgimento de inúmeras abordagens da Psicologia contemporânea. Do Behaviorismo, por exemplo, surgiram as abordagens do Behaviorismo Radical (B. F. Skinner) e do Behaviorismo Cognitivista (A. Bandura e, atualmente, K. Hawton e A. Beck). A Gestalt (do ponto de vista de uma teoria com bases psicofisiológicas) praticamente desapareceu. No entanto, a tradição filosófica que a fundamenta — a Fenomenologia — avançou por um caminho diferente, buscando a compreensão do ser no mundo e, de certa maneira, associou-se ao campo da Psicologia Existencialista. Hoje, essa vertente da Psicologia discute as bases da consciência através dos ensinamentos de Jean Paul Sartre. Outra vertente da Fenomenologia faz essa discussão através do Existencialismo de Martin Heiddeger, desenvolvendo uma profícua corrente denominada Dasein Análise, que tem no psiquiatra suíço Medard Boss, uma das figuras mais destacadas. Outra corrente derivada da Gestalt e que segue um caminho diferente do traçado pela Fenomenologia, é a da Gestalt Terapia. Fundada por Pearls, esta corrente trabalha [pg. 85] os níveis da conscientização humana com a consciência corporal, nossa consciência do “aqui e agora” etc.

Da Psicanálise originaram-se inúmeras abordagens, como a Psicologia Analítica (Carl G. Jung) e a Reichiana (W. Reich) — dissidências que construíram corpos próprios de conhecimento; ou a Psicanálise Kleiniana (Melanie Klein) e a Lacaniana (J. Lacan), que deram continuidade à teoria freudiana.

Como você pôde perceber, a Psicologia não ficou estagnada no tempo. Pelo contrário: desenvolveu-se e, ao desenvolver-se, construiu abordagens que deram prosseguimento às já existentes, retomando conhecimentos antigos e superando-os. Enfim, a Psicologia é uma ciência em constante processo de construção.

Neste capítulo, abordaremos uma vertente teórica que surgiu no início do século 20 e ficou restrita ao Leste europeu até os anos 60, quando explodiria na Europa e nos Estados Unidos como uma nova possibilidade teórica. Estamos falando da Psicologia Sócio-Histórica, que chegou ao Brasil nos anos 80 através da Psicologia Social e da Psicologia da Educação, ganhando rapidamente importância e espaço no meio acadêmico.

VIgotski e a Psicologia Sócio-Histórica

A Psicologia, como você já deve ter percebido, está em permanente movimento, isto é, novas abordagens vão se constituindo, gerando uma permanente transformação teórica.

Escolhemos apresentar-lhe uma vertente teórica que nasceu na ex-União Soviética, embalada pela Revolução de 1917 e pela teoria marxista. No Ocidente, a teoria Sócio-Histórica ganharia importância nos anos 70, tornando-se referência para a Psicologia do Desenvolvimento, a Psicologia Social e para a Educação.

Tendo como referência esta nova abordagem teórica formulada por Vigotski, buscava-se construir uma Psicologia que superasse as tradições positivistas e estudasse o homem e seu mundo psíquico como uma construção histórica e social da humanidade. Para Vigotski, o mundo psíquico que temos hoje não foi nem será sempre assim, pois sua caracterização está diretamente ligada ao mundo material e às formas de vida que os homens vão construindo no decorrer da história da humanidade. [pg. 86]

Princípios da teoria

Vigotski morreu muito cedo e não pôde completar sua obra, mas deixou alguns princípios aos seus seguidores:

  • A compreensão das funções superiores do homem não pode ser alcançada pela psicologia animal, pois os animais não têm vida social e cultural.
  • As funções superiores do homem não podem ser vistas apenas como resultado da maturação de um organismo que já possui, em potencial, tais capacidades.
  • A linguagem e o pensamento humano têm origem social. A cultura faz parte do desenvolvimento humano e deve ser integrada ao estudo e à explicação das funções superiores.
  • A consciência e o comportamento são aspectos integrados de uma unidade, não podendo ser isolados pela Psicologia.

Vigotski desenvolveu, também, uma estrutura teórica marxista para a Psicologia:

  • Todos os fenômenos devem ser estudados como processos em permanente movimento e transformação.
  • O homem constitui-se e se transforma ao atuar sobre a natureza com sua atividade e seus instrumentos.
  • Não se pode construir qualquer conhecimento a partir do aparente, pois não se captam as determinações que são constitutivas do objeto. Ao contrário, é preciso rastrear a evolução dos fenômenos, pois estão em sua gênese e em seu movimento as explicações para sua aparência atual.
  • A mudança individual tem sua raiz nas condições sociais de vida. Assim, não é a consciência do homem que determina as formas de vida, mas é a vida que se tem que determina a consciência.

O desafio de Vigotski foi assumido por outros teóricos, entre eles Luria e Leontiev, seus parceiros de trabalho. Sua obra ficou, por muitos anos, restrita à ex-União Soviética. Hoje, na Europa, nos Estados Unidos e em países do Terceiro Mundo, como o Brasil, Vigotski vem sendo estudado e utilizado, principalmente, nas áreas de Psicologia da Educação e Psicologia Social. No Brasil, essas duas áreas foram influenciadas pela obra de Vigotski na década de 80 — na Educação, através das teorias construtivistas da aprendizagem, principalmente a partir da influência de Emília Ferreiro; na Psicologia Social, pela atuação da professora Silvia Lane, que contribuiu significativamente para a construção de uma Psicologia Social crítica, permitindo que, ao se pensar o psiquismo humano, se falasse das condições sociais que são constitutivas deste mundo psicológico. [pg. 87]

Hoje, Vigotski é um autor conhecido e seu pensamento é fundamento da corrente denominada Psicologia Sócio-Histórica ou Psicologia de Orientação Sócio-Cultural.

As noções básicas da Psicologia Sócio-Histórica no Brasil 

A Psicologia Sócio-Histórica, no Brasil, tem se constituído, fundamentalmente, pela crítica à visão liberal de homem, na qual encontramos idéias como:

  • O homem visto como ser autônomo, responsável pelo seu próprio processo de individuação.
  • Uma relação de antagonismo entre o homem e a sociedade, em que esta faz eterna oposição aos anseios que seriam naturais do homem. • Uma visão de fenômeno psicológico, na qual este é tomado como uma entidade abstrata que tem, por natureza, características positivas que só não se manifestam se sofrerem impedimentos do mundo material e social. O fenômeno psicológico, visto como enclausurado no homem, é concebido como um verdadeiro eu.

A Psicologia Sócio-Histórica entende que essas concepções liberais construíram uma ciência na qual o mundo psicológico foi completamente deslocado do campo social e material. Esse mundo psicológico passou, então, a ser definido de maneira abstrata, como algo que já estivesse dentro do homem, pronto para se desenvolver — semelhante à semente que germina. Esta visão liberal naturalizou o mundo psicológico, abolindo, da Psicologia, as reflexões sobre o mundo social.

No Brasil, os teóricos da Psicologia Sócio-Histórica buscam construir uma concepção alternativa à liberal. Retomaremos um pouco essas reflexões a partir de algumas idéias fundamentais.

Não existe natureza humana.

Não existe uma essência eterna e universal do homem, que no decorrer de sua vida se atualiza, gerando suas pontencialidades e faculdades. Tal idéia de natureza humana tem sido utilizada como fundamento da maioria das correntes psicológicas e faz, na verdade, um trabalho de ocultamente das condições sociais, que são determinantes das individualidades. [pg. 88] Esta idéia está ligada à visão de indivíduo autônomo, que também não é aceita na Psicologia Sócio-Histórica. O indivíduo é construído ao longo de sua vida a partir de sua intervenção no meio (sua atividade instrumental) e da relação com os outros homens. Somos únicos, mas não autônomos no sentido de termos um desenvolvimento independente ou já previsto pela semente de homem que carregamos.

Existe a condição humana.

A concepção de homem da Psicologia Sócio-Histórica pode ser assim sintetizada: o homem é um ser ativo, social e histórico. É essa sua condição humana. O homem constrói sua existência a partir de uma ação sobre a realidade, que tem, por objetivo, satisfazer suas necessidades. Mas essa ação e essas necessidades têm uma característica fundamental: são sociais e produzidas historicamente em sociedade. As necessidades básicas do homem não são apenas biológicas; elas, ao surgirem, são imediatamente socializadas. Por exemplo, os hábitos alimentares e o comportamento sexual do homem são formas sociais e não naturais de satisfazer necessidades biológicas.

Através da atividade, o homem produz o necessário para satisfazer essas necessidades. A atividade de cada indivíduo, ou seja, sua ação particular, é determinada e definida pela forma como a sociedade se organiza para o trabalho. Entendido como a transformação da natureza para a produção da existência humana, o trabalho só é possível em sociedade. E um processo pelo qual o homem estabelece, ao mesmo tempo, relação com a natureza e com os outros homens; essas relações determinam-se reciprocamente. Portanto, o [pg. 89] trabalho só pode ser entendido dentro de relações sociais determinadas. São essas relações que definem o lugar de cada indivíduo e a sua atividade. Por isso, quando se diz que o homem é um ser ativo, diz-se, ao mesmo tempo, que ele é um ser social.

A ação do homem sobre a realidade que, obrigatoriamente, ocorre em sociedade, é um processo histórico. E uma ação de transformação da natureza que leva à transformação do próprio homem. Quando produz os bens necessários à satisfação de suas necessidades, o homem estabelece novos parâmetros na sua relação com a natureza, o que gera novas necessidades, que também, por sua vez, deverão ser satisfeitas. As relações sociais, nas quais ocorre esse processo, modificam-se à medida que se desenvolvem as necessidades humanas e a produção que visa satisfazê-las. É um processo de transformação constante das necessidades e da atividade dos homens e das relações que estes estabelecem entre si para a produção de sua existência. Esse movimento tem por base a contradição: o desenvolvimento das necessidades humanas e das formas de satisfazê-las, ao mesmo tempo em que só são possíveis diante de determinadas relações sociais, provocam a necessidade transformação mesmas de dessas relações e condicionam o aparecimento de novas relações sociais. Esse processo histórico é construído pelo homem e é esse processo histórico que constrói o homem. Assim, o homem é um ser ativo, social e histórico.

O homem é criado pelo homem. Não há uma natureza humana pronta, nem mesmo aptidões prontas. A “aptidão” do homem está, justamente, no fato de poder desenvolver várias aptidões. Esse desenvolvimento se dá na relação com os outros homens através do contato com a cultura já constituída e das atividades que realiza neste meio.

Os objetos produzidos pelos homens materializam a história e cristalizam as “aptidões” desenvolvidas pelas gerações anteriores. Quando os manuseia e deles se apropria, o homem desenvolve atividades que reproduzem os traços essenciais das atividades acumuladas e cristalizadas nos objetos. A criança que aprende a manusear um lápis, está de alguma forma submetida à forma, à consistência, [pg. 90] às possibilidades e aos limites do lápis. Isso envolve não apenas uma questão “física”, material, mas, necessariamente, uma condição social e histórica do uso e significado do lápis. As habilidades humanas, que utilizam o lápis como seu instrumento, estão cristalizadas na forma, na consistência e nas possibilidades do lápis, bem como nos seus limites e significados. Nas relações com os outros homens ocorre a “descristalização” destas possibilidades — a “mágica” acontece — e, do lápis, o pequeno homem retira suas habilidades de rabiscar, escrever e desenhar, colocando-se, assim, no “patamar” da história, tornando-se capaz de recuperá-la e transformá-la. Portanto, é do instrumento e das relações sociais, nas quais esse instrumento é utilizado, que o homem retira suas possibilidades humanas.

Esse processo acontece com todas as suas aptidões. O homem, ao nascer, é candidato à humanidade e a adquire no processo de apropriação do mundo. Nesse processo, converte o mundo externo em um mundo interno e desenvolve, de forma singular, sua individualidade. Assim, através da mediação das relações sociais e das atividades que desenvolve, o homem se individualiza, torna-se homem, desenvolve suas possibilidades e significa seu mundo.

A linguagem é instrumento fundamental nesse processo e, como instrumento, também é produzida social e historicamente, e dela também o homem deve se apropriar.

A linguagem materializa e dá forma a uma das aptidões humanas: a capacidade de representar a realidade. Juntamente com a atividade, o homem desenvolve o pensamento. Através da linguagem, o pensamento objetiva-se, permitindo a comunicação das significações e o seu desenvolvimento.

Mas o pensamento humano, historicamente transforma-se em algo mais complexo, justamente por representar, cada vez melhor, a complexidade da vida humana em sociedade. Transforma-se em consciência. A linguagem é instrumento essencial na construção da consciência, na construção de um mundo interno, psicológico. Permite a representação não só da realidade imediata, mas das mediações que ocorrem na relação do homem com essa realidade. Assim, a linguagem apreende e materializa o mundo de significações, que é construído no processo social e histórico.

Quando se apropria da linguagem enquanto instrumento, o indivíduo tem acesso a um mundo de significações historicamente produzido. Além disso, a linguagem também é instrumento de mediação na apropriação de outros instrumentos. Por isso, quando se torna indivíduo — o que só ocorre socialmente — o homem apropria-se de todos os significados sociais. Mas, por ser ativo, também atribui significados, ou seja, apropria-se da história, apreende o [pg. 91] mundo, atribuindo-lhe um sentido pessoal construído a partir de sua atividade, de suas relações e dos significados aprendidos. Esse processo de apropriação do mundo social permite o desenvolvimento da consciência no homem.

O homem concreto é objeto de estudo da Psicologia.

A Psicologia deve buscar compreender o indivíduo como ser determinado histórica e socialmente. Esse indivíduo jamais poderá ser compreendido senão por suas relações e vínculos sociais, pela sua inserção em uma determinada sociedade, em um momento histórico específico.

O homem existe, age e pensa de certa maneira porque existe em um dado momento e local, vivendo determinadas relações.

A consciência humana revela as determinações sociais e históricas do homem — não diretamente, de maneira imediata, porque não é assim, mecanicamente, que se processa a consciência. As mediações devem ser desvendadas, pois passam pelas formas de atividade e relações sociais, pelos significados atribuídos nesse processo a toda realidade na qual vivem os homens. É necessário conhecer além da aparência, buscando a essência deste processo, que revela o movimento de transformação constante a partir da contradição, entendida como princípio fundamental do movimento da realidade.

Assim, para conhecer o homem é preciso situá-lo em um momento histórico, identificar as determinações e desvendá-las. Para entender o movimento contraditório da totalidade na qual se encontram os indivíduos, deve-se partir do geral para o particular — para o processo individual de relação entre atividade e consciência. É necessário perceber o singular e seu movimento como parte do movimento geral e, ao revelar essas mediações, compreender não só o geral, mas o particular. É dessa forma que o indivíduo deve ser entendido pela Psicologia fundamentada no materialismo histórico e dialético.

Subjetividade social e subjetividade individual.

Nesta teoria, os fenômenos sociais não são externos aos indivíduos nem são fenômenos que acontecem na sociedade e pouco têm que ver com cada um de nós. Os fenômenos sociais estão, de forma simultânea, dentro e fora dos indivíduos, isto é, estão na subjetividade individual e na subjetividade social.

A subjetividade deve ser compreendida como “um sistema integrador do interno e do externo, tanto em sua dimensão social, como individual, que por sua gênese é também social... A subjetividade não é interna nem externa: ela supõe outra representação teórica na qual o interno e o externo deixam de ser dimensões excludentes [pg. 92] e se convertem em dimensões constitutivas de uma nova qualidade do ser: o subjetivo. Como dimensões da subjetividade ambos (o interno e o externo) se integram e desintegram de múltiplas formas no curso de seu desenvolvimento, no processo dentro do qual o que era interno pode converter-se em externo e vice-versa”.

A subjetividade individual representa a constituição da história de relações sociais do sujeito concreto dentro de um sistema individual. O indivíduo, ao viver relações sociais determinadas e experiências determinadas em uma cultura que tem idéias e valores próprios, vai se constituindo, ou seja, vai construindo sentido para as experiências que vivencia. Este espaço pessoal dos sentidos que atribuímos ao mundo se configura como a subjetividade individual. A subjetividade social é exatamente a aresta subjetiva da constituição da sociedade. Refere-se “ao sistema integral de configurações subjetivas (grupais ou individuais), que se articulam nos distintos níveis da vida social...” Assim, para a Psicologia Sócio-Histórica, não há como se saber de um indivíduo sem que se conheça seu mundo. Para compreender o que cada um de nós sente e pensa, e como cada um de nós age, é preciso conhecer o mundo social no qual estamos imersos e do qual somos construtores; é preciso investigar os valores sociais, as formas de relação e de produção da sobrevivência de nosso mundo, e as formas de ser de nosso tempo.

Para facilitar a compreensão dessas noções básicas da Psicologia Sócio-Histórica, sugerimos-lhe que reflita sobre o que sente, pensa e como age, identificando em seu mundo social os espaços nos quais estas formas se configuram, pois, com certeza, é nelas que você busca a matéria-prima para construir sua forma particular de ser. Mesmo sem perceber, você as reforça ou reconstrói diariamente, atuando para que elas se mantenham. Há um movimento constante que vai de você para o mundo social e que lhe vem deste mesmo mundo. O instrumento básico para esta relação é a linguagem. Para a teoria Sócio-Histórica, os fenômenos do mundo psíquico não são naturais do mundo psíquico, mas fenômenos que vão se constituindo conforme o homem atua no mundo e se relaciona com os outros homens. O mundo social deixa de ser visto como um espaço de oposição a nossas vontades e impulsos, passando a ser visto como o lugar no qual nosso mundo psicológico se constitui. [pg. 93]

Psicologia - Psicologia social
Epistemologia - Teorias de base, Psicodinâmica
7/13/2021 4:51:23 PM | Por Ana Mercês Bahia Bock
A Psicanálise

SIGMUND FREUD - As teorias científicas surgem influenciadas pelas condições da vida social, nos seus aspectos econômicos, políticos, culturais etc. São produtos históricos criados por homens concretos, que vivem o seu tempo e contribuem ou alteram, radicalmente, o desenvolvimento do conhecimento. - Sigmund Freud (1856-1939) foi um médico vienense que alterou, radicalmente, o modo de pensar a vida psíquica. Sua contribuição é comparável à de Karl Marx na compreensão dos processos históricos e sociais. Freud ousou colocar os “processos misteriosos” do psiquismo, suas “regiões obscuras”, isto é, as fantasias, os sonhos, os esquecimentos, a interioridade do homem, como problemas científicos. A investigação sistemática desses problemas levou Freud à criação da Psicanálise1.

O termo psicanálise é usado para se referir a uma teoria, a um método de investigação e a uma prática profissional. Enquanto teoria caracteriza-se por um conjunto de conhecimentos sistematizados sobre o funcionamento da vida psíquica. Freud publicou uma extensa obra, durante toda a sua vida, relatando suas descobertas e formulando leis gerais sobre a estrutura e o funcionamento da psique humana. A Psicanálise, enquanto método de investigação, caracteriza-se pelo método interpretativo, que busca o significado oculto daquilo que é manifesto por meio de ações e palavras ou pelas produções imaginárias, como os sonhos, os delírios, as associações livres, os atos falhos. A prática profissional refere-se à forma de tratamento — a Análise — que busca o autoconhecimento ou a [pg. 70] cura, que ocorre através desse autoconhecimento. Atualmente, o exercício da Psicanálise ocorre de muitas outras formas. Ou seja, é usada como base para psicoterapias, aconselhamento, orientação; é aplicada no trabalho com grupos, instituições. A Psicanálise também é um instrumento importante para a análise e compreensão de fenômenos sociais relevantes: as novas formas de sofrimento psíquico, o excesso de individualismo no mundo contemporâneo, a exacerbação da violência etc.

Compreender a Psicanálise significa percorrer novamente o trajeto pessoal de Freud, desde a origem dessa ciência e durante grande parte de seu desenvolvimento. A relação entre autor e obra torna-se mais significativa quando descobrimos que grande parte de sua produção foi baseada em experiências pessoais, transcritas com rigor em várias de suas obras, como A interpretação dos sonhos e A psicopatologia da vida cotidiana, dentre outras.

Compreender a Psicanálise significa, também, percorrer, no nível pessoal, a experiência inaugural de Freud e buscar “descobrir” as regiões obscuras da vida psíquica, vencendo as resistências interiores, pois se ela foi realizada por Freud, “não é uma aquisição definitiva da humanidade, mas tem que ser realizada de novo por cada paciente e por cada psicanalista”2.

A Gestação da Psicanálise

Freud formou-se em Medicina na Universidade de Viena, em 1881, e especializou-se em Psiquiatria. Trabalhou algum tempo em um laboratório de Fisiologia e deu aulas de Neuropatologia no instituto onde trabalhava. Por dificuldades financeiras, não pôde dedicar-se integralmente à vida acadêmica e de pesquisador. Começou, então, a clinicar, atendendo pessoas acometidas de “problemas nervosos”. Obteve, ao final da residência médica, uma bolsa de estudo para Paris, onde trabalhou com Jean Charcot, psiquiatra francês que tratava as histerias com hipnose. Em 1886, retornou a [pg. 71] Viena e voltou a clinicar, e seu principal instrumento de trabalho na eliminação dos sintomas dos distúrbios nervosos passou a ser a sugestão hipnótica3.

Em Viena, o contato de Freud com Josef Breuer, médico e cientista, também foi importante para a continuidade das investigações. Nesse sentido, o caso de uma paciente de Breuer foi significativo. Ana O. apresentava um conjunto de sintomas que a fazia sofrer: paralisia com contratura muscular, inibições e dificuldades de pensamento. Esses sintomas tiveram origem na época em que ela cuidara do pai enfermo. No período em que cumprira essa tarefa, ela havia tido pensamentos e afetos que se referiam a um desejo de que o pai morresse. Estas idéias e sentimentos foram reprimidos e substituídos pelos sintomas.

Em seu estado de vigília, Ana O. não era capaz de indicar a origem de seus sintomas, mas, sob o efeito da hipnose, relatava a origem de cada um deles, que estavam ligados a vivências anteriores da paciente, relacionadas com o episódio da doença do pai. Com a rememoração destas cenas e vivências, os sintomas desapareciam. Este desaparecimento não ocorria de forma “mágica”, mas devido à liberação das reações emotivas associadas ao evento traumático — a doença do pai, o desejo inconsciente da morte do pai enfermo.

Breuer denominou método catártico o tratamento que possibilita a liberação de afetos e emoções ligadas a acontecimentos traumáticos que não puderam ser expressos na ocasião da vivência desagradável ou dolorosa. Esta liberação de afetos leva à eliminação dos sintomas.

Freud, em sua Autobiografia, afirma que desde o início de sua prática médica usara a hipnose, não só com objetivos de sugestão, mas também para obter a história da origem dos sintomas. Posteriormente, passou a utilizar o método catártico e, “aos poucos, foi modificando a técnica de Breuer: abandonou a hipnose, porque nem todos os pacientes se prestavam a ser hipnotizados; desenvolveu a técnica de ‘concentração’, na qual a rememoração sistemática era feita por meio da conversação normal; e por fim, acatando a sugestão (de uma jovem) anônima, abandonou as perguntas ‘— e com elas a direção da sessão — para se confiar por completo à fala desordenada do paciente”4. [pg. 72]

A descoberta do inconsciente

“Qual poderia ser a causa de os pacientes esquecerem tantos fatos de sua vida interior e exterior...?”5, perguntava-se Freud.

O esquecido era sempre algo penoso para o indivíduo, e era exatamente por isso que havia sido esquecido e o penoso não significava, necessariamente, sempre algo ruim, mas podia se referir a algo bom que se perdera ou que fora intensamente desejado. Quando Freud abandonou as perguntas no trabalho terapêutico com os pacientes e os deixou dar livre curso às suas idéias, observou que, muitas vezes, eles ficavam embaraçados, envergonhados com algumas idéias ou imagens que lhes ocorriam. A esta força psíquica que se opunha a tornar consciente, a revelar um pensamento, Freud denominou resistência. E chamou de repressão o processo psíquico que visa encobrir, fazer desaparecer da consciência, uma idéia ou representação insuportável e dolorosa que está na origem do sintoma. Estes conteúdos psíquicos “localizam-se” no inconsciente.

Tais descobertas 

“(...) constituíram a base principal da compreensão das neuroses e impuseram uma modificação do trabalho terapêutico. Seu objetivo (...) era descobrir as repressões e suprimi-las através de um juízo que aceitasse ou condenasse definitivamente o excluído pela repressão. Considerando este novo estado de coisas, dei ao método de investigação e cura resultante o nome de psicanálise em substituição ao de catártico”6.

A primeira teoria sobre a estrutura do aparelho psíquico

Em 1900, no livro A interpretação dos sonhos, Freud apresenta a primeira concepção sobre a estrutura e o funcionamento da personalidade. Essa teoria refere-se à existência de três sistemas ou instâncias psíquicas: inconsciente, pré-consciente e consciente.

  • O inconsciente exprime o “conjunto dos conteúdos não presentes no campo atual da consciência”7. É constituído por conteúdos reprimidos, que não têm acesso aos sistemas pré-consciente/consciente, pela ação de censuras internas. Estes conteúdos [pg. 73] podem ter sido conscientes, em algum momento, e ter sido reprimidos, isto é, “foram” para o inconsciente, ou podem ser genuinamente inconscientes. O inconsciente é um sistema do aparelho psíquico regido por leis próprias de funcionamento. Por exemplo, é atemporal, não existem as noções de passado e presente;
  • O pré-consciente refere-se ao sistema onde permanecem aqueles conteúdos acessíveis à consciência. É aquilo que não está na consciência, neste momento, e no momento seguinte pode estar;
  • O consciente é o sistema do aparelho psíquico que recebe ao mesmo tempo as informações do mundo exterior e as do mundo interior. Na consciência, destaca-se o fenômeno da percepção, principalmente a percepção do mundo exterior, a atenção, o raciocínio.

A descoberta da sexualidade infantil

Freud, em suas investigações na prática clínica sobre as causas e o funcionamento das neuroses, descobriu que a maioria de pensamentos e desejos reprimidos referiam-se a conflitos de ordem sexual, localizados nos primeiros anos de vida dos indivíduos, isto é, que na vida infantil estavam as experiências de caráter traumático, reprimidas, que se configuravam como origem dos sintomas atuais, e confirmava-se, desta forma, que as ocorrências deste período da vida deixam marcas profundas na estruturação da pessoa. As descobertas colocam a sexualidade no centro da vida psíquica, e é postulada a existência da sexualidade infantil. Estas afirmações tiveram profundas repercussões na sociedade puritana da época, pela concepção vigente da infância como “inocente”.

Os principais aspectos destas descobertas são:

  • A função sexual existe desde o princípio da vida, logo após o nascimento, e não só a partir da puberdade como afirmavam as idéias dominantes;
  • O período de desenvolvimento da sexualidade é longo e complexo até chegar à sexualidade adulta, onde as funções de reprodução e de obtenção do prazer podem estar associadas, tanto no homem como na mulher. Esta afirmação contrariava as idéias predominantes de que o sexo estava associado, exclusivamente, à reprodução;
  • A libido, nas palavras de Freud, é “a energia dos instintos sexuais e só deles”8. [pg. 74]

No processo de desenvolvimento psicossexual, o indivíduo, nos primeiros tempos de vida, tem a função sexual ligada à sobrevivência, e, portanto, o prazer é encontrado no próprio corpo. O corpo é erotizado, isto é, as excitações sexuais estão localizadas em partes do corpo, e há um desenvolvimento progressivo que levou Freud a postular as fases do desenvolvimento sexual em: fase oral (a zona de erotização é a boca), fase anal (a zona de erotização é o ânus), fase fálica (a zona de erotização é o órgão sexual); em seguida vem um período de latência, que se prolonga até a puberdade e se caracteriza por uma diminuição das atividades sexuais, isto é, há um “intervalo” na evolução da sexualidade. E, finalmente, na puberdade é atingida a última fase, isto é, a fase genital, quando o objeto de erotização ou de desejo não está mais no próprio corpo, mas era um objeto externo ao indivíduo — o outro. Alguns autores denominam este período exclusivamente como genital, incluindo o período fálico nas organizações pré-genitais, enquanto outros autores denominam o período fálico de organização genital infantil.

No decorrer dessas fases, vários processos e ocorrências sucedem-se. Desses eventos, destaca-se o complexo de Édipo, pois é em torno dele que ocorre a estruturação da personalidade do indivíduo. Acontece entre 3 e 5 anos, durante a fase fálica. No complexo de Édipo, a mãe é o objeto de desejo do menino, e o pai é o rival que impede seu acesso ao objeto desejado. Ele procura então ser o pai para “ter” a mãe, escolhendo-o como modelo de comportamento, passando a internalizar as regras e as normas sociais representadas e impostas pela autoridade paterna. Posteriormente, por medo da perda do amor do pai, “desiste” da mãe, isto é, a mãe é “trocada” [pg. 75] pela riqueza do mundo social e cultural, e o garoto pode, então, participar do mundo social, pois tem suas regras básicas internalizadas através da identificação com o pai. Este processo também ocorre com as meninas, sendo invertidas as figuras de desejo e de identificação. Freud fala em Édipo feminino.

Explicando alguns conceitos

Antes de prosseguirmos um pouco mais acerca das descobertas fundamentais de Freud, é necessário esclarecer alguns conceitos que permitem compreender os dados e informações colocados até aqui, de um modo dinâmico e sem considerá-los processos mecânicos e compartimentados. Além disso, estes aspectos também são postulações de Freud, e seu conhecimento é fundamental para se compreender a continuidade do desenvolvimento de sua teoria.

  1. No processo terapêutico e de postulação teórica, Freud, inicialmente, entendia que todas as cenas relatadas pelos pacientes tinham de fato ocorrido. Posteriormente, descobriu que poderiam ter sido imaginadas, mas com a mesma força e conseqüências de uma situação real. Aquilo que, para o indivíduo, assume valor de realidade é a realidade psíquica. E é isso o que importa, mesmo que não corresponda à realidade objetiva.
  2. O funcionamento psíquico é concebido a partir de três pontos de vista:
    • o econômico (existe uma quantidade de energia que “alimenta” os processos psíquicos),
    • o tópico (o aparelho psíquico é constituído de um número de sistemas que são diferenciados quanto a sua natureza e modo de funcionamento, o que permite considerá-lo como “lugar” psíquico) e
    • o dinâmico (no interior do psiquismo existem forças que entram em conflito e estão, permanentemente, ativas. A origem dessas forças é a pulsão). Compreender os processos e fenômenos psíquicos é considerar os três pontos de vista simultaneamente 
  3. A pulsão refere-se a um estado de tensão que busca, através de um objeto, a supressão deste estado. Eros é a pulsão de vida e abrange as pulsões sexuais e as de autoconservação. Tanatos é a pulsão de morte, pode ser autodestrutiva ou estar dirigida para fora e se manifestar como pulsão agressiva ou destrutiva.
  4. Sintoma, na teoria psicanalítica, é uma produção — quer seja um comportamento, quer seja um pensamento — resultante de um conflito psíquico entre o desejo e os mecanismos de defesa. O sintoma, ao mesmo tempo que sinaliza, busca encobrir um conflito, substituir a satisfação do desejo. Ele é ou pode ser o ponto de partida da investigação psicanalítica na tentativa de descobrir os processos [pg. 76] psíquicos encobertos que determinam sua formação. Os sintomas de Ana O. eram a paralisia e os distúrbios do pensamento; hoje, o sintoma da colega da sala de aula é recusar-se a comer.

A segunda teoria do aparelho psíquico

Entre 1920 e 1923, Freud remodela a teoria do aparelho psíquico e introduz os conceitos de id, ego e superego para referir-se aos três sistemas da personalidade.

O id constitui o reservatório da energia psíquica, é onde se “localizam” as pulsões: a de vida e a de morte. As características atribuídas ao sistema inconsciente, na primeira teoria, são, nesta teoria, atribuídas ao id. É regido pelo princípio do prazer.

O ego é o sistema que estabelece o equilíbrio entre as exigências do id, as exigências da realidade e as “ordens” do superego. Procura “dar conta” dos interesses da pessoa. É regido pelo princípio da realidade, que, com o princípio do prazer, rege o funcionamento psíquico. É um regulador, na medida em que altera o princípio do prazer para buscar a satisfação considerando as condições objetivas da realidade. Neste sentido, a busca do prazer pode ser substituída pelo evitamento do desprazer. As funções básicas do ego são: percepção, memória, sentimentos, pensamento.

O superego origina-se com o complexo de Édipo, a partir da internalização das proibições, dos limites e da autoridade. A moral, os ideais são funções do superego. O conteúdo do superego refere-se a exigências sociais e culturais.

Para compreender a constituição desta instância — o superego — é necessário introduzir a idéia de sentimento de culpa. Neste estado, o indivíduo sente-se culpado por alguma coisa errada que fez — o que parece óbvio — ou que não fez e desejou ter feito, alguma coisa considerada má pelo ego mas não, necessariamente, perigosa ou prejudicial; pode, pelo contrário, ter sido muito desejada. Por que, então, é considerada má? Porque alguém importante para ele, como o pai, por exemplo, pode puni-lo por isso. E a principal punição é a perda do amor e do cuidado desta figura de autoridade.

Portanto, por medo dessa perda, deve-se evitar fazer ou desejar fazer a coisa má; mas, o desejo continua e, por isso, existe a culpa.

Uma mudança importante acontece quando esta autoridade externa é internalizada pelo indivíduo. Ninguém mais precisa lhe dizer “não”. É como se ele “ouvisse” esta proibição dentro de si. Agora, não importa mais a ação para sentir-se culpado: o pensamento, o desejo de fazer algo mau se encarregam disso. E não há [pg. 77] como esconder de si mesmo esse desejo pelo proibido. Com isso, o mal-estar instala-se definitivamente no interior do indivíduo. A função de autoridade sobre o indivíduo será realizada permanentemente pelo superego. É importante lembrar aqui que, para a Psicanálise, o sentimento de culpa origina-se na passagem pelo Complexo de Édipo.

O ego e, posteriormente, o superego são diferenciações do id, o que demonstra uma interdependência entre esses três sistemas, retirando a idéia de sistemas separados. O id refere-se ao inconsciente, mas o ego e o superego têm, também, aspectos ou “partes” inconscientes.

É importante considerar que estes sistemas não existem enquanto uma estrutura vazia, mas são sempre habitados pelo conjunto de experiências pessoais e particulares de cada um, que se constitui como sujeito em sua relação com o outro e em determinadas circunstâncias sociais. Isto significa que, para compreender alguém, é necessário resgatar sua história pessoal, que está ligada à história de seus grupos e da sociedade em que vive.

Os mecanismos de defesa, ou a realiadade como ela não é

A percepção de um acontecimento, do mundo externo ou do mundo interno, pode ser algo muito constrangedor, doloroso, desorganizador. Para evitar este desprazer, a pessoa “deforma” ou suprime a realidade — deixa de registrar percepções externas, afasta determinados conteúdos psíquicos, interfere no pensamento.

São vários os mecanismos que o indivíduo pode usar para realizar esta deformação da realidade, chamados de mecanismos de defesa. São processos realizados pelo ego e são inconscientes, isto é, ocorrem independentemente da vontade do indivíduo.

Para Freud, defesa é a operação pela qual o ego exclui da consciência os conteúdos indesejáveis, protegendo, desta forma, o aparelho psíquico. O ego — uma instância a serviço da realidade externa e sede dos processos defensivos — mobiliza estes mecanismos, que suprimem ou dissimulam a percepção do perigo interno, em função de perigos reais ou imaginários localizados no mundo exterior.

Estes mecanismos são:

  • Recalque: o indivíduo “não vê”, “não ouve” o que ocorre. Existe a supressão de uma parte da realidade. Este aspecto que não é percebido pelo indivíduo faz parte de um todo e, ao ficar invisível, altera, deforma o sentido do todo. É como se, ao ler esta página, [pg. 78] uma palavra ou uma das linhas não estivesse impressa, e isto impedisse a compreensão da frase ou desse outro sentido ao que está escrito. Um exemplo é quando entendemos uma proibição como permissão porque não “ouvimos” o “não”. O recalque, ao suprimir a percepção do que está acontecendo, é o mais radical dos mecanismos de defesa. Os demais referem-se a deformações da realidade.
  • Formação reativa: o ego procura afastar o desejo que vai em determinada direção, e, para isto, o indivíduo adota uma atitude oposta a este desejo. Um bom exemplo são as atitudes exageradas — ternura excessiva, superproteção — que escondem o seu oposto, no caso, um desejo agressivo intenso. Aquilo que aparece (a atitude) visa esconder do próprio indivíduo suas verdadeiras motivações (o desejo), para preservá-lo de uma descoberta acerca de si mesmo que poderia ser bastante dolorosa. É o caso da mãe que superprotege o filho, do qual tem muita raiva porque atribui a ele muitas de suas dificuldades pessoais. Para muitas destas mães, pode ser aterrador admitir essa agressividade em relação ao filho;
  • Regressão: o indivíduo retorna a etapas anteriores de seu desenvolvimento; é uma passagem para modos de expressão mais primitivos. Um exemplo é o da pessoa que enfrenta situações difíceis com bastante ponderação e, ao ver uma barata, sobe na mesa, aos berros. Com certeza, não é só a barata que ela vê na barata.
  • Projeção: é uma confluência de distorções do mundo externo e interno. O indivíduo localiza (projeta) algo de si no mundo externo e não percebe aquilo que foi projetado como algo seu que considera indesejável. É um mecanismo de uso freqüente e observável na vida cotidiana. Um exemplo é o jovem que critica os colegas por serem extremamente competitivos e não se dá conta de que também o é, às vezes até mais que os colegas.
  • Racionalização: o indivíduo constrói uma argumentação intelectualmente convincente e aceitável, que justifica os estados “deformados” da consciência. Isto é, uma defesa que justifica as outras. Portanto, na racionalização, o ego coloca a razão a serviço do irracional e utiliza para isto o material [pg. 79] fornecido pela cultura, ou mesmo pelo saber científico. Dois exemplos: o pudor excessivo (formação reativa), justificado com argumentos morais; e as justificativas ideológicas para os impulsos destrutivos que eclodem na guerra, no preconceito e na defesa da pena de morte.

Além destes mecanismos de defesa do ego, existem outros: denegação, identificação, isolamento, anulação retroativa, inversão e retorno sobre si mesmo. Todos nós os utilizamos em nossa vida cotidiana, isto é, deformamos a realidade para nos defender de perigos internos ou externos, reais ou imaginários. O uso destes mecanismos não é, em si, patológico, contudo distorce a realidade, e só o seu desvendamento pode nos fazer superar essa falsa consciência, ou melhor, ver a realidade como ela é.

Psicanálise: aplicações e contribuições sociais

A característica essencial do trabalho psicanalítico é o deciframento do inconsciente e a integração de seus conteúdos na consciência. Isto porque são estes conteúdos desconhecidos e inconscientes que determinam, em grande parte, a conduta dos homens e dos grupos — as dificuldades para viver, o mal-estar, o sofrimento.

A finalidade deste trabalho investigativo é o autoconhecimento, que possibilita lidar com o sofrimento, criar mecanismos de superação das dificuldades, dos conflitos e dos submetimentos em direção a uma produção humana mais autônoma, criativa e gratificante de cada indivíduo, dos grupos, das instituições.

Nesta tarefa, muitas vezes bastante desejada pelo paciente, é necessário que o psicanalista ajude a desmontar, pacientemente, as resistências inconscientes que obstaculizam a passagem dos conteúdos inconscientes para a consciência.

A representação social (a idéia) da Psicanálise ainda é bastante estereotipada em nosso meio. Associamos a Psicanálise com o divã, com o trabalho de consultório excessivamente longo e só possível para as pessoas de alto poder aquisitivo. Esta idéia correspondeu, durante muito tempo, à prática nesta área que se restringia, exclusivamente, ao consultório.

Contudo, há várias décadas é possível constatar a contribuição da Psicanálise e dos psicanalistas em várias áreas da saúde mental. Historicamente, é importante lembrar a contribuição do [pg. 80] psiquiatra e psicanalista D. W. Winnicott, cujos programas radiofônicos transmitidos na Europa, durante a Segunda Guerra Mundial, orientavam os pais na criação dos filhos, ou a contribuição de Ana Freud para a Educação e, mais recentemente, as contribuições de Françoise Dolto e Maud Mannoni para o trabalho com crianças e adolescentes em instituições — hospitais, creches, abrigos.

Psicologia - Psicanálise
Epistemologia - Teorias de base, Psicologia da Gestalt
7/13/2021 1:25:56 PM | Por Ana Mercês Bahia Bock
Gestalt, a psicologia da forma

A Psicologia da Gestalt é uma das tendências teóricas mais coerentes e coesas da história da Psicologia. Seus articuladores preocuparam-se em construir não só uma teoria consistente, mas também uma base metodológica forte, que garantisse a consistência teórica. Gestalt é um termo alemão de difícil tradução. O termo mais próximo em português seria forma ou configuração, que não é utilizado, por não corresponder exatamente ao seu real significado em Psicologia. No final do século passado muitos estudiosos procuravam compreender o fenômeno psicológico em seus aspectos naturais (principalmente no sentido da mensurabilidade). A Psicofísica estava em voga.

Ernst Mach (1838-1916), físico, e Christian von Ehrenfels (1859-1932), filósofo e psicólogo, desenvolviam uma psicofísica com estudos sobre as sensações (o dado psicológico) de espaço-forma e tempo-forma (o dado físico) e podem ser considerados como os mais diretos antecessores da Psicologia da Gestalt.

Max Wertheimer (1880-1943), Wolfgang Köhler (1887-1967) e Kurt Koffka (1886-1941), baseados nos estudos psicofísicos que relacionaram a forma e sua percepção, construíram a base de uma teoria eminentemente psicológica.

Eles iniciaram seus estudos pela percepção e sensação do movimento. Os gestaltistas estavam preocupados em compreender quais os processos psicológicos envolvidos na ilusão de ótica, quando o estímulo físico é percebido pelo sujeito como uma forma diferente da que ele tem na realidade. [pg. 59]

É o caso do cinema. Quem já viu uma fita cinematográfica sabe que ela é composta de fotogramas estáticos. O movimento que vemos na tela é uma ilusão de ótica causada pela pós-imagem retiniana (a imagem demora um pouco para se “apagar” em nossa retina). Como as imagens vão-se sobrepondo em nossa retina, temos a sensação de movimento. Mas o que de fato está na tela é uma fotografia estática.

A Percepção

A percepção é o ponto de partida e também um dos temas centrais dessa teoria. Os experimentos com a percepção levaram os teóricos da Gestalt ao questionamento de um princípio implícito na teoria behaviorista — que há relação de causa e efeito entre o estímulo e a resposta — porque, para os gestaltistas, entre o estímulo que o meio fornece e a resposta do indivíduo, encontra-se o processo de percepção. O que o indivíduo percebe e como percebe são dados importantes para a compreensão do comportamento humano.

O confronto Gestalt/Behaviorismo pode ser resumido na posição que cada uma das teorias assume diante do objeto da Psicologia — o comportamento, pois tanto a Gestalt quanto o Behaviorismo definem a Psicologia como a ciência que estuda o comportamento.

O Behaviorismo, dentro de sua preocupação cora a objetividade, estuda o comportamento através da relação estímulo-resposta, procurando isolar o estímulo que corresponderia à resposta esperada e desprezando os conteúdos de “consciência”, pela impossibilidade de controlar cientificamente essas variáveis.

A Gestalt irá criticar essa abordagem, por considerar que o comportamento, quando estudado de maneira isolada de um contexto mais amplo, pode perder seu significado (o seu entendimento) para o psicólogo.

Na visão dos gestaltistas, o comportamento deveria ser estudado nos seus aspectos mais globais, levando em consideração as condições que alteram a percepção do estímulo. Para justificar essa postura, eles se baseavam na teoria do isomorfismo, que supunha uma unidade no universo, onde a parte está sempre relacionada ao todo.

Quando eu vejo uma parte de um objeto, ocorre uma tendência à restauração do equilíbrio da forma, garantindo o entendimento do que estou percebendo.

Esse fenômeno da percepção é norteado pela busca de fechamento, simetria e regularidade dos pontos que compõem uma figura (objeto).

Rudolf Arnheim dá um bom exemplo da tendência à restauração do equilíbrio na relação parte-todo: “De que modo o sentido [pg. 60] da visão se apodera da forma? Nenhuma pessoa dotada de um sistema nervoso perfeito apreende a forma alinhavando os retalhos da cópia de suas partes (...) o sentido normal da visão (...) apreende um padrão global1”.

Nós percebemos a figura 1 como um quadrado, e não como uma figura inclinada ou um perfil (figura 2), apesar de essas últimas também conterem os quatro pontos. Se forem acrescentados mais quatro pontos à figura 1, o padrão mudará, e perceberemos um círculo (figura 3). Na figura 4 é possível ver círculos brancos ou quadrados no centro das cruzes, mesmo não havendo vestígio dos seus contornos.

A Boa-forma

A Gestalt encontra nesses fenômenos da percepção as condições para a compreensão do comportamento humano. A maneira como percebemos um determinado estímulo irá desencadear nosso comportamento. [pg. 61]

Muitas vezes, os nossos comportamentos guardam relação estreita com os estímulos físicos, e outras, eles são completamente diferentes do esperado porque “entendemos” o ambiente de uma maneira diferente da sua realidade. Quantas vezes já nos aconteceu de cumprimentarmos a distância uma pessoa conhecida e, ao chegarmos mais perto, depararmos com um atônito desconhecido. Um “erro” de percepção nos levou ao comportamento de cumprimentar o desconhecido. Ora, ocorre que, no momento em que confundimos a pessoa, estávamos “de fato” cumprimentando nosso amigo. Esta pequena confusão demonstra que a nossa percepção do estímulo (a pessoa desconhecida) naquelas condições ambientais dadas é mediatizada pela forma como interpretamos o conteúdo percebido.

Se nos elementos percebidos não há equilíbrio, simetria, estabilidade e simplicidade, não alcançaremos a boa-forma.

O elemento que objetivamos compreender deve ser apresentado em aspectos básicos, que permitam a sua decodificação, ou seja, a percepção da boa-forma.

O exemplo da figura 5 ilustra a noção de boa-forma. Geralmente percebemos o segmento de reta a maior que o segmento de reta b, mas, na realidade, isso é uma ilusão de ótica, já que ambos são idênticos.

A maneira como se distribuem os elementos que compõem as duas figuras não apresenta equilíbrio, simetria, estabilidade ensimplicidade suficientes para garantir a boa-forma, isto é, para superar a ilusão de ótica.

A tendência da nossa percepção em buscar a boa-forma permitirá a relação figura-fundo. Quanto mais clara estiver a forma (boa-forma), mais clara será a separação entre a figura e o fundo. Quando isso não ocorre, torna-se difícil distinguir o que é figura e o que é fundo. , como é o caso da figura 6. Nessa figura ambígua, fundo e figura substituem-se, dependendo da percepção de quem os olha. Faça o teste: é possível ver a taça e os perfis ao mesmo tempo? [pg. 62]

Meio geográfico e meio comportamental

O comportamento é determinado pela percepção do estímulo e, portanto, estará submetido à lei da boa-forma. O conjunto de estímulos determinantes do comportamento (lembre-se da visão global dos gestaltistas) é denominado meio ou meio ambiental. São conhecidos dois tipos de meio: o geográfico e o comportamental.

O meio geográfico é o meio enquanto tal, o meio físico em termos objetivos. O meio comportamental é o meio resultante da interação do indivíduo com o meio físico e implica a interpretação desse meio através das forças que regem a percepção (equilíbrio, simetria, estabilidade e simplicidade). No exemplo, a pessoa que cumprimentamos era um desconhecido — esse deveria ser o dado percebido, se só tivéssemos acesso ao meio geográfico. Ocorre que, no momento em que vimos a pessoa, a situação (encontro casual no trânsito em movimento, por exemplo) levou-nos a uma interpretação diferente da realidade, e acabamos por confundi-la com uma pessoa conhecida. Esta particular interpretação do meio, onde o que percebemos agora é uma “realidade” subjetiva, particular, criada pela nossa mente, é o meio comportamental. Naturalmente, o comportamento é desencadeado pela percepção do meio comportamental.

Certamente, a semelhança entre as duas pessoas do exemplo (a que vimos e a que conhecemos) foi a causa do engano. Nesse caso, houve uma tendência a estabelecer a unidade das semelhanças entre as duas pessoas, mais que as suas diferenças. Essa tendência a “juntar” os elementos é o que a Gestalt denomina de força do campo psicológico.

O campo psicológico é entendido como um campo de força que nos leva a procurar a boa-forma. Funciona figurativamente como um campo eletromagnético criado por um ímã (a força de atração e repulsão). Esse campo de força psicológico tem uma tendência que garante a busca da melhor forma possível em situações que não estão muito estruturadas. [pg. 63]

Esse processo ocorre de acordo com os seguintes princípios:

  • Proximidade — os elementos mais próximos tendem a ser agrupados.

  • Semelhança — os elementos semelhantes são agrupados.

  • Fechamento — ocorre uma tendência de completar os elementos faltantes da figura para garantir sua compreensão.

Insight

A Psicologia da Gestalt, diferentemente do associacionismo, vê a aprendizagem como a relação entre o todo e a parte, onde o todo tem papel fundamental na compreensão do objeto percebido, enquanto as teorias de S-R (Associacionismo, Behaviorismo) acreditam que aprendemos estabelecendo relações — dos objetos mais simples para os mais complexos.

Exemplificando, é possível a uma criança de 3 anos, que não sabe ler, distinguir a logomarca de um refrigerante e nomeá-lo corretamente. Ela separou a palavra na sua totalidade, distinguindo a figura (palavra) e o fundo. No caso, a criança não aprendeu [pg. 64] a ler a palavra juntando as letras, como nos ensinaram, mas dando significação ao todo.

Nem sempre as situações vividas por nós apresentam-se de forma tão clara que permita sua percepção imediata. Essas situações dificultam o processo de aprendizagem, porque não permitem uma clara definição da figura-fundo, impedindo a relação parte/todo.

Acontece, às vezes, de estarmos olhando para uma figura que não tem sentido para nós e, de repente, sem que tenhamos feito nenhum esforço especial para isso, a relação figura-fundo elucida-se.

A esse fenômeno a Gestalt dá o nome de insight. O termo designa uma compreensão imediata, enquanto uma espécie de “entendimento interno”.

A Teoria de Campo de Kurt Lewin

Kurt Lewin (1890-1947) trabalhou durante 10 anos com Wertheimer, Koffka e Köhler na Universidade de Berlim, e dessa colaboração cora os pioneiros da Gestalt nasceu a sua Teoria de Campo. Entretanto não podemos considerar Lewin como um gestaltista, já que ele acaba seguindo um outro rumo. Lewin parte da teoria da Gestalt para construir um conhecimento novo e genuíno. Ele abandona a preocupação psicofisiológica (limiares de percepção) da Gestalt, para buscar na Física as bases metodológicas de sua psicologia.

O principal conceito de Lewin é o do espaço vital, que ele define como a totalidade dos fatos que determinam o comportamento do indivíduo num certo momento2. O que Lewin concebeu como campo psicológico foi o espaço de vida considerado dinamicamente, onde se levam em conta não somente o indivíduo e o meio, mas também a totalidade dos fatos coexistentes e mutuamente interdependentes.

Segundo Garcia-Roza, o “campo não deve, porém, ser compreendido como uma realidade física, mas sim fenomênica. Não são apenas os fatos físicos que produzem efeitos sobre o comportamento. O campo deve ser representado tal como ele existe para o indivíduo em questão, em um determinado momento, e não como ele é em si. Para a constituição desse campo, as amizades, os objetivos conscientes e inconscientes, os sonhos e os medos são tão essenciais como qualquer ambiente físico”3. [pg. 65]

A realidade fenomênica em Lewin pode ser compreendida como o meio comportamental da Gestalt, ou seja, a maneira particular como o indivíduo interpreta uma determinada situação. Entretanto, para Lewin, esse conceito não está se referindo apenas à percepção (enquanto fenômeno psicofisiológico), mas também a características de personalidade do indivíduo, a componentes emocionais ligados ao grupo e à própria situação vivida, assim como a situações passadas e que estejam ligadas ao acontecimento, na forma em que são representadas no espaço de vida atual do indivíduo.

Como exemplo de campo psicológico e espaço vital, contaremos um breve encontro:

Um rapaz, ao chegar a sua casa, surpreende os pais num final de conversa e escuta o seguinte: “Ele chegou, é melhor não falarmos disso agora”. Ele entende que os pais conversavam sobre um problema muito sério, de que ele não deveria tomar conhecimento. Resolve não fazer nenhum comentário sobre o assunto. Dias depois, chegando novamente em casa, encontra seus pais na sala com dois homens em ternos escuros. Imediatamente, associa esses homens ao final da conversa escutada e entende que eles, de alguma forma, estariam relacionados às preocupações dos pais.

Ocorre que a conversa referia-se a uma surpresa que os pais preparavam para o seu aniversário, e os dois homens eram antigos colegas de faculdade de seu pai, que aproveitavam a passagem pela cidade para fazer uma visita ao colega que há tanto tempo não viam.

Nessa história, o campo psicológico é representado pelas “linhas de força” (como no campo da eletromagnética), que “atraem” a percepção e lhe dão significado. O rapaz interpretou a situação pelo seu aspecto fenomênico e não pelo que ocorria de fato. A sua interpretação ganhou consistência com a visita de duas pessoas que ele não conhecia e, nesse sentido, as linhas de força estavam fazendo um corte no tempo. Isso foi possível porque o rapaz havia memorizado a situação anterior e a ela associado a seguinte. A partir da experiência anterior, a nova ganhou significado. O espaço vital esteve representado pela situação mais imediata, que determinou o comportamento. Foi o caso do rapaz quando surpreendeu os pais conversando e procurou fingir que nada havia escutado ou a surpresa ao encontrar aqueles homens na sua casa.

O entendimento desse espaço vital depende diretamente do campo psicológico.

Como Lewin considerava que o comportamento deve ser visto em sua totalidade, não demorou muito para chegar ao conceito de grupo. Praticamente todos os momentos de nossas vidas se dão no interior de grupos. Segundo Lewin, a característica essencialmente definidora do grupo é a interdependência de seus membros. [pg. 66] Isto significa que o grupo, para ele, não é a soma das características de seus membros, mas algo novo, resultante dos processos que ali ocorrem. Assim, a mudança de um membro no grupo pode alterar completamente a dinâmica deste. Lewin deu muita ênfase ao pequeno grupo, por considerar que a Psicologia ainda não possui instrumental suficiente para o estudo de grandes massas.

Transportando a noção de campo psicológico para a Psicologia social, Lewin criou o conceito de campo social, formado pelo grupo e seu ambiente. Outra característica do grupo é o clima social, onde uma liderança autocrática, democrática ou laissez-faire irá determinar o desempenho do grupo. Através de um minucioso trabalho experimental, Lewin pesquisou a dinâmica grupal e foi, sem dúvida alguma, um dos psicólogos que mais contribuições trouxeram para a área da Psicologia, contribuições que estão presentes até hoje, embasando as teorias e as técnicas de trabalho com os grupos.

Psicologia - Gestalt
Epistemologia - Teorias de base, Behaviorismo científico
7/12/2021 3:45:53 PM | Por Ana Mercês Bahia Bock
O Behaviorismo

O termo Behaviorismo foi inaugurado pelo americano John B. Watson, em artigo publicado em 1913, que apresentava o título “Psicologia: como os behavioristas a vêem”. O termo inglês behavior significa “comportamento”; por isso, para denominar essa tendência teórica, usamos Behaviorismo — e, também, Comportamentalismo, Teoria Comportamental, Análise Experimental do Comportamento, Análise do Comportamento.

Watson, postulando o comportamento como objeto da Psicologia, dava a esta ciência a consistência que os psicólogos da época vinham buscando — um objeto observável, mensurável, cujos experimentos poderiam ser reproduzidos em diferentes condições e sujeitos. Essas características foram importantes para que a Psicologia alcançasse o status de ciência, rompendo definitivamente com a sua tradição filosófica. Watson também defendia uma perspectiva funcionalista para a Psicologia, isto é, o comportamento deveria ser estudado como função de certas variáveis do meio. Certos estímulos levam o organismo a dar determinadas respostas e isso ocorre porque os organismos se ajustam aos seus ambientes por meio de equipamentos hereditários e pela formação de hábitos. Watson buscava a construção de uma Psicologia sem alma e sem mente, livre de conceitos mentalistas e de métodos subjetivos, e que tivesse a capacidade de prever e controlar.

Apesar de colocar o “comportamento” como objeto da Psicologia, o Behaviorismo foi, desde Watson, modificando o sentido desse termo. Hoje, não se entende comportamento como uma [pg. 45] ação isolada de um sujeito, mas, sim, como uma interação entre aquilo que o sujeito faz e o ambiente onde o seu “fazer” acontece. Portanto, o Behaviorismo dedica-se ao estudo das interações entre o indivíduo e o ambiente, entre as ações do indivíduo (suas respostas) e o ambiente (as estimulações).

Os psicólogos desta abordagem chegaram aos termos “resposta” e “estímulo” para se referirem àquilo que o organismo faz e às variáveis ambientais que interagem com o sujeito. Para explicar a adoção desses termos, duas razões podem ser apontadas: uma metodológica e outra histórica.

A razão metodológica deve-se ao fato de que os analistas experimentais do comportamento tomaram, como modo preferencial de investigação, um método experimental e analítico.

Com isso, os experimentadores sentiram a necessidade de dividir o objeto para efeito de investigação, chegando a unidades de análise.

A razão histórica refere-se aos termos escolhidos e popularizados, que foram mantidos posteriormente por outros estudiosos do comportamento, devido ao seu uso generalizado.

Comportamento, entendido como interação indivíduo-ambiente, é a unidade básica de descrição e o ponto de partida para uma ciência do comportamento. O homem começa a ser estudado a partir de sua interação com o ambiente, sendo tomado como produto e produtor dessas interações.

A análise experimental do comportamento

O mais importante dos behavioristas que sucedem Watson é B. F. Skinner (1904-1990).

O Behaviorismo de Skinner tem influenciado muitos psicólogos estadunidenses e de vários países onde a Psicologia estadunidense tem grande penetração, como o Brasil. Esta linha de estudo ficou conhecida por Behaviorismo radical, termo cunhado pelo próprio Skinner, em 1945, para designar uma filosofia da Ciência do Comportamento (que ele se propôs defender) por meio da análise experimental do comportamento.

A base da corrente skinneriana está na formulação do comportamento operante. Para desenvolver este conceito, retrocederemos um pouco na história do Behaviorismo, introduzindo as noções de comportamento reflexo ou respondente, para então chegarmos ao comportamento operante. Vamos lá. [pg. 46]

O comportamento respondente

O comportamento reflexo ou respondente é o que usualmente chamamos de “não-voluntário” e inclui as respostas que são eliciadas (“produzidas”) por estímulos antecedentes do ambiente. Como exemplo, podemos citar a contração das pupilas quando uma luz forte incide sobre os olhos, a salivação provocada por uma gota de limão colocada na ponta da língua, o arrepio da pele quando um ar frio nos atinge, as famosas “lágrimas de cebola” etc.

Esses comportamentos reflexos ou respondentes são interações estímulo-resposta (ambiente-sujeito) incondicionadas, nas quais certos eventos ambientais confiavelmente eliciam certas respostas do organismo que independem de “aprendizagem”. Mas interações desse tipo também podem ser provocadas por estímulos que, originalmente, não eliciavam respostas em determinado organismo. Quando tais estímulos são temporalmente pareados com estímulos eliciadores podem, em certas condições, eliciar respostas semelhantes às destes. A essas novas interações chamamos também de reflexos, que agora são condicionados devido a uma história de pareamento, o qual levou o organismo a responder a estímulos que antes não respondia. Para deixar isso mais claro, vamos a um exemplo: suponha que, numa sala aquecida, sua mão direita seja mergulhada numa vasilha de água gelada. A temperatura da mão cairá rapidamente devido ao encolhimento ou constrição dos vasos sangüíneos, caracterizando o comportamento como respondente. Esse comportamento será acompanhado de uma modificação semelhante, e mais facilmente mensurável, na mão esquerda, onde a constrição vascular também será induzida. Suponha, agora, que a sua mão direita seja mergulhada na água gelada um certo número de vezes, em intervalos de três ou quatro minutos, e que você ouça uma campainha pouco antes de cada imersão. Lá pelo vigésimo pareamento do som da campainha com a água fria, a mudança de temperatura nas mãos poderá ser eliciada apenas pelo som, isto é, sem necessidade de imergir uma das mãos.

Neste exemplo de condicionamento respondente, a queda da temperatura da mão, eliciada pela água fria, é uma resposta incondicionada, enquanto a queda da temperatura, eliciada pelo som, é uma resposta condicionada (aprendida): a água é um estímulo incondicionado, e o som, um estímulo condicionado. [pg. 47]

No início dos anos 30, na Universidade de Harvard (Estados Unidos), Skinner começou o estudo do comportamento justamente pelo comportamento respondente, que se tornara a unidade básica de análise, ou seja, o fundamento para a descrição das interações indivíduo-ambiente. O desenvolvimento de seu trabalho levou-o a teorizar sobre um outro tipo de relação do indivíduo com seu ambiente, a qual viria a ser nova unidade de análise de sua ciência: o comportamento operante. Esse tipo de comportamento caracteriza a maioria de nossas interações com o ambiente.

O comportamento operante

O comportamento operante abrange um leque amplo da atividade humana — dos comportamentos do bebê de balbuciar, de agarrar objetos e de olhar os enfeites do berço aos mais sofisticados, apresentados pelo adulto. Como nos diz Keller, o comportamento operante “inclui todos os movimentos de um organismo dos quais se possa dizer que, em algum momento, têm efeito sobre ou fazem algo ao mundo em redor. O comportamento operante opera sobre o mundo, por assim dizer, quer direta, quer indiretamente”.

A leitura que você está fazendo deste texto é um exemplo de comportamento operante, assim como escrever uma carta, chamar o táxi com um gesto de mão, tocar um instrumento etc.

Para exemplificarmos melhor os conceitos apresentados até aqui, vamos relembrar um conhecido experimento feito com ratos de laboratório. Vale informar que animais como ratos, pombos e macacos — para citar alguns — foram utilizados pelos analistas experimentais do comportamento (inclusive Skinner) para verificar como as variações no ambiente interferiam nos comportamentos. Tais experimentos permitiram-lhes fazer afirmações sobre o que chamaram de leis comportamentais.

Um ratinho, ao sentir sede em seu habitat, certamente manifesta algum comportamento que lhe permita satisfazer a sua necessidade orgânica. Esse comportamento foi aprendido por ele e se mantém pelo efeito proporcionado: saciar a sede. Assim, se deixarmos [pg. 48] um ratinho privado de água durante 24 horas, ele certamente apresentará o comportamento de beber água no momento em que tiver sede. Sabendo disso, os pesquisadores da época decidiram simular esta situação em laboratório sob condições especiais de controle, o que os levou à formulação de uma lei comportamental.

Um ratinho foi colocado na “caixa de Skinner” — um recipiente fechado no qual encontrava apenas uma barra. Esta barra, ao ser pressionada por ele, acionava um mecanismo (camuflado) que lhe permitia obter uma gotinha de água, que chegava à caixa por meio de uma pequena haste.

Que resposta esperava-se do ratinho? — Que pressionasse a barra. Como isso ocorreu pela primeira vez? — Por acaso. Durante a exploração da caixa, o ratinho pressionou a barra acidentalmente, o que lhe trouxe, pela primeira vez, uma gotinha de água, que, devido à sede, fora rapidamente consumida. Por ter obtido água ao encostar na barra quando sentia sede, constatou-se a alta probabilidade de que, estando em situação semelhante, o ratinho a pressionasse novamente.

Neste caso de comportamento operante, o que propicia a aprendizagem dos comportamentos é a ação do organismo sobre o meio e o efeito dela resultante — a satisfação de alguma necessidade, ou seja, a aprendizagem está na relação entre uma ação e seu efeito.

Este comportamento operante pode ser representado da seguinte maneira: R —► S, em que R é a resposta (pressionar a barra) e S (do inglês stimuli) o estímulo reforçador (a água), que tanto interessa ao organismo; a flecha significa “levar a”.

Esse estímulo reforçador é chamado de reforço. O termo “estímulo” foi mantido da relação R-S do comportamento respondente para designar-lhe a responsabilidade pela ação, apesar de ela ocorrer após a manifestação do comportamento. O comportamento operante refere-se à interação sujeito-ambiente. Nessa interação, chama-se de relação fundamental à relação entre a ação do indivíduo (a emissão da resposta) e as conseqüências. É considerada fundamental porque o organismo se comporta (emitindo esta ou [pg. 49] aquela resposta), sua ação produz uma alteração ambiental (uma conseqüência) que, por sua vez, retroage sobre o sujeito, alterando a probabilidade futura de ocorrência. Assim, agimos ou operamos sobre o mundo em função das conseqüências criadas pela nossa ação. As conseqüências da resposta são as variáveis de controle mais relevantes.

Pense no aprendizado de um instrumento: nós o tocamos para ouvir seu som harmonioso. Há outros exemplos: podemos dançar para estar próximo do corpo do outro, mexer com uma garota para receber seu olhar, abrir uma janela para entrar a luz etc.

Reforçamento

Chamamos de reforço a toda conseqüência que, seguindo uma resposta, altera a probabilidade futura de ocorrência dessa resposta.

O reforço pode ser positivo ou negativo.

O reforço positivo é todo evento que aumenta a probabilidade futura da resposta que o produz.

O reforço negativo é todo evento que aumenta a probabilidade futura da resposta que o remove ou atenua.

Assim, poderíamos voltar à nossa “caixa de Skinner” que, no experimento anterior, oferecia uma gota de água ao ratinho sempre que encostasse na barra. Agora, ao ser colocado na caixa, ele recebe choques do assoalho. Após várias tentativas de evitar os choques, o ratinho chega à barra e, ao pressioná-la acidentalmente, os choques cessam. Com isso, as respostas de pressão à barra tenderão a aumentar de freqüência. Chama-se de reforçamento negativo ao processo de fortalecimento dessa classe de respostas (pressão à barra), isto é, a remoção de um estímulo aversivo controla a emissão da resposta. É condicionamento por se tratar de aprendizagem, e também reforçamento, porque um comportamento é apresentado e aumentado em sua freqüência ao alcançar o efeito desejado.

O reforçamento positivo oferece alguma coisa ao organismo (gotas de água com a pressão da barra, por exemplo); o negativo permite a retirada de algo indesejável (os choques do último exemplo).

Não se pode, a priori, definir um evento como reforçador. A função reforçadora de um evento ambiental qualquer só é definida por sua função sobre o comportamento do indivíduo. [pg. 50]

Entretanto, alguns eventos tendem a ser reforçadores para toda uma espécie, como, por exemplo, água, alimento e afeto. Esses são denominados reforços primários. Os reforços secundários, ao contrário, são aqueles que adquiriram a função quando pareados temporalmente com os primários. Alguns destes reforçadores secundários, quando emparelhados com muitos outros, tornam-se reforçadores generalizados, como o dinheiro e a aprovação social.

No reforçamento negativo, dois processos importantes merecem destaque: a esquiva e a fuga.

A esquiva é um processo no qual os estímulos aversivos condicionados e incondicionados estão separados por um intervalo de tempo apreciável, permitindo que o indivíduo execute um comportamento que previna a ocorrência ou reduza a magnitude do segundo estímulo. Você, com certeza, sabe que o raio (primeiro estímulo) precede à trovoada (segundo estímulo), que o chiado precede ao estouro dos rojões, que o som do “motorzinho” usado pelo dentista precede à dor no dente. Estes estímulos são aversivos, mas os primeiros nos possibilitam evitar ou reduzir a magnitude dos seguintes, ou seja, tapamos os ouvidos para evitar o estouro dos trovões ou desviamos o rosto da broca usada pelo dentista. Por que isso acontece?

Quando os estímulos ocorrem nessa ordem, o primeiro torna-se um reforçador negativo condicionado (aprendido) e a ação que o reduz é reforçada pelo condicionamento operante. As ocorrências passadas de reforçadores negativos condicionados são responsáveis pela probabilidade da resposta de esquiva.

No processo de esquiva, após o estímulo condicionado, o indivíduo apresenta um comportamento que é reforçado pela necessidade de reduzir ou evitar o segundo estímulo, que também é aversivo, ou seja, após a visão do raio, o indivíduo manifesta um comportamento (tapar os ouvidos), que é reforçado pela necessidade de reduzir o segundo estímulo (o barulho do trovão) — igualmente aversivo. [pg. 51]

Outro processo semelhante é o de fuga. Neste caso, o comportamento reforçado é aquele que termina com um estímulo aversivo já em andamento.

A diferença é sutil. Se posso colocar as mãos nos ouvidos para não escutar o estrondo do rojão, este comportamento é de esquiva, pois estou evitando o segundo estímulo antes que ele aconteça. Mas, se os rojões começam a pipocar e só depois apresento um comportamento para evitar o barulho que incomoda, seja fechando a porta, seja indo embora ou mesmo tapando os ouvidos, pode-se falar em fuga. Ambos reduzem ou evitam os estímulos aversivos, mas em processos diferentes. No caso da esquiva, há um estímulo condicionado que antecede o estímulo incondicionado e me possibilita a emissão do comportamento de esquiva. Uma esquiva bem-sucedida impede a ocorrência do estímulo incondicionado. No caso da fuga, só há um estímulo aversivo incondicionado que, quando apresentado, será evitado pelo comportamento de fuga. Neste segundo caso, não se evita o estímulo aversivo, mas se foge dele depois de iniciado.

Extinção

Outros processos foram sendo formulados pela Análise Experimental do Comportamento. Um deles é o da extinção.

A extinção é um procedimento no qual uma resposta deixa abruptamente de ser reforçada. Como conseqüência, a resposta diminuirá de freqüência e até mesmo poderá deixar de ser emitida. O tempo necessário para que a resposta deixe de ser emitida dependerá da história e do valor do reforço envolvido.

Assim, quando uma menina, que estávamos paquerando, deixa de nos olhar e passa a nos ignorar, nossas “investidas” tenderão a desaparecer.

Punição

A punição é outro procedimento importante que envolve a conseqüenciação de uma resposta quando há apresentação de um estímulo aversivo ou remoção de um reforçador positivo presente.

Os dados de pesquisas mostram que a supressão do comportamento punido só é definitiva se a punição for extremamente intensa, isto porque as razões que levaram à ação — que se pune — não são alteradas cora a punição.

Punir ações leva à supressão temporária da resposta sem, contudo, alterar a motivação. [pg. 52]

Por causa de resultados como estes, os behavioristas têm debatido a validade do procedimento da punição como forma de reduzir a freqüência de certas respostas. As práticas punitivas correntes na Educação foram questionadas pelo Behaviorismo — obrigava-se o aluno a ajoelhar-se no milho, a fazer inúmeras cópias de um mesmo texto, a receber “reguadas”, a ficar isolado etc. Os behavioristas, respaldados por crítica feita por Skinner e outros autores, propuseram a substituição definitiva das práticas punitivas por procedimentos de instalação de comportamentos desejáveis. Esse princípio pode ser aplicado no cotidiano e em todos os espaços em que se trabalhe para instalar comportamentos desejados. O trânsito é um excelente exemplo. Apesar das punições aplicadas a motoristas e pedestres na maior parte das infrações cometidas no trânsito, tais punições não os têm motivado a adotar um comportamento considerado adequado para o trânsito. Em vez de adotarem novos comportamentos, tornaram-se especialistas na esquiva e na fuga.

Controle de estímulos

Tem sido polêmica a discussão sobre a natureza ou a extensão do controle que o ambiente exerce sobre nós, mas não há como negar que há algum controle. Assumir a existência desse controle e estudá-la permite maior entendimento dos meios pelos quais os estímulos agem.

Assim, quando a freqüência ou a forma da resposta é diferente sob estímulos diferentes, diz-se que o comportamento está sob o controle de estímulos. Se o motorista pára ou acelera o ônibus no cruzamento de ruas onde há semáforo que ora está verde, ora vermelho, sabemos que o comportamento de dirigir está sob o controle de estímulos.

Dois importantes processos devem ser apresentados: discriminação e generalização. [pg. 53]

Discriminação

Diz-se que se desenvolveu uma discriminação de estímulos quando uma resposta se mantém na presença de um estímulo, mas sofre certo grau de extinção na presença de outro. Isto é, um estímulo adquire a possibilidade de ser conhecido como discriminativo da situação reforçadora. Sempre que ele for apresentado e a resposta emitida, haverá reforço. Assim, nosso motorista de ônibus vai parar o veículo quando o semáforo estiver vermelho, ou melhor, esperamos que, para ele, o semáforo vermelho tenha se tornado um estímulo discriminativo para a emissão do comportamento de parar.

Poderíamos refletir, também, sobre o aprendizado social. Por exemplo: existem normas e regras de conduta para festas — cumprimentar os presentes, ser gentil, procurar manter diálogo com as pessoas, agradecer e elogiar a dona da casa etc. No entanto, as festas podem ser diferentes: informais ou pomposas, dependendo de onde, de como e de quem as organiza. Somos, então, capazes de discriminar esses diferentes estímulos e de nos comportarmos de maneira diferente em cada situação.

Generalização

Na generalização de estímulos, um estímulo adquire controle sobre uma resposta devido ao reforço na presença de um estímulo similar, mas diferente. Freqüentemente, a generalização depende de elementos comuns a dois ou mais estímulos. Poderíamos aqui brincar com as cores do semáforo: se fossem rosa e vermelho, correríamos o risco dos motoristas acelerarem seus veículos no semáforo vermelho, pois poderiam generalizar os estímulos. Mas isso não acontece com o verde e com o vermelho, que são cores muito distintas e, além disso, estão situadas em extremidades opostas do semáforo — o vermelho, na superior, e o verde, na inferior, permitindo a discriminação dos estímulos.

Na generalização, portanto, respondemos de forma semelhante a um conjunto de estímulos percebidos como semelhantes.

Esse princípio da generalização é fundamental quando pensamos na aprendizagem escolar. Nós aprendemos na escola alguns conceitos básicos, como fazer contas e escrever. Graças à generalização, podemos transferir esses aprendizados para diferentes situações, como dar ou receber troco, escrever uma carta para a namorada distante, aplicar conceitos da Física para consertar aparelhos eletrodomésticos etc.

Na vida cotidiana, também aprendemos a nos comportar em diferentes situações sociais, dada a nossa capacidade de generalização no aprendizado de regras e normas sociais. [pg. 54]

Behaviorismo: sua aplicação

Uma área de aplicação dos conceitos apresentados tem sido a Educação. São conhecidos os métodos de ensino programado, o controle e a organização das situações de aprendizagem, bem como a elaboração de uma tecnologia de ensino.

Entretanto, outras áreas também têm recebido a contribuição das técnicas e conceitos desenvolvidos pelo Behaviorismo, como a de treinamento de empresas, a clínica psicológica, o trabalho educativo de crianças excepcionais, a publicidade e outras mais. No Brasil, talvez a área clínica seja, hoje, a que mais utiliza os conhecimentos do Behaviorismo.

Na verdade, a Análise Experimental do Comportamento pode nos auxiliar a descrever nossos comportamentos em qualquer situação, ajudando-nos a modificá-los.

Psicologia - História da Psicologia
Temas gerais - , 
7/12/2021 1:02:52 PM | Por Ana Mercês Bahia Bock
A evolução da ciência psicológica

Toda e qualquer produção humana — uma cadeira, uma religião, um computador, uma obra de arte, uma teoria científica — tem por trás de si a contribuição de inúmeros homens, que, em um tempo anterior ao presente, fizeram indagações, realizaram descobertas, inventaram técnicas e desenvolveram idéias, isto é, por trás de qualquer produção material ou espiritual, existe a História.

Compreender, em profundidade, algo que compõe o nosso mundo significa recuperar sua história. O passado e o futuro sempre estão no presente, enquanto base constitutiva e enquanto projeto. Por exemplo, todos nós temos uma história pessoal e nos tornamos pouco compreensíveis se não recorremos a ela e à nossa perspectiva de futuro para entendermos quem somos e por que somos de uma determinada forma.

Esta história pode ser mais ou menos longa para os diferentes aspectos da produção humana. No caso da Psicologia, a história tem por volta de dois milênios. Esse tempo refere-se à Psicologia no Ocidente, que começa entre os gregos, no período anterior à era cristã.

Para compreender a diversidade com que a Psicologia se apresenta hoje, é indispensável recuperar sua história. A história de sua construção está ligada, em cada momento histórico, às exigências de conhecimento da humanidade, às demais áreas do conhecimento humano e aos novos desafios colocados pela realidade econômica e social e pela insaciável necessidade do homem de compreender a si mesmo. [pg. 31]

A Psicologia entre os gregos: os primórdios

A história do pensamento humano tem um momento áureo na Antiguidade, entre os gregos, particularmente no período de 700 a.e.c. até a dominação romana, às vésperas da era cristã.

Os gregos foram o povo mais evoluído nessa época. Uma produção minimamente planejada e bem-sucedida permitiu a construção das primeiras cidades-estados (pólis). A manutenção dessas cidades implicava a necessidade de mais riquezas, as quais alimentavam, também, o poderio dos cidadãos (membros da classe dominante na Grécia Antiga). Assim, iniciaram a conquista de novos territórios (Mediterrâneo, Ásia Menor, chegando quase até a China), que geraram riquezas na forma de escravos para trabalhar nas cidades e na forma de tributos pagos pelos territórios conquistados.

As riquezas geraram crescimento, e este crescimento exigia soluções práticas para a arquitetura, para a agricultura e para a organização social. Isso explica os avanços na Física, na Geometria, na teoria política (inclusive com a criação do conceito de democracia).

Tais avanços permitiram que o cidadão se ocupasse das coisas do espírito, como a Filosofia e a arte. Alguns homens, como Platão e Aristóteles, dedicaram-se a compreender esse espírito empreendedor do conquistador grego, ou seja, a Filosofia começou a especular em torno do homem e da sua interioridade.

É entre os filósofos gregos que surge a primeira tentativa de sistematizar uma Psicologia. O próprio termo psicologia vem do grego psyché, que significa alma, e de logos, que significa razão. Portanto, [pg. 32] etimologicamente, psicologia significa “estudo da alma”. A alma ou espírito era concebida como a parte imaterial do ser humano e abarcaria o pensamento, os sentimentos de amor e ódio, a irracionalidade, o desejo, a sensação e a percepção.

Os filósofos pré-socráticos (assim chamados por antecederem Sócrates, filósofo grego) preocupavam-se em definir a relação do homem com o mundo através da percepção. Discutiam se o mundo existe porque o homem o vê ou se o homem vê um mundo que já existe. Havia uma oposição entre os idealistas (a idéia forma o mundo) e os materialistas (a matéria que forma o mundo já é dada para a percepção).

Mas é com Sócrates (469-399 a.e.c.) que a Psicologia na Antiguidade ganha consistência. Sua principal preocupação era com o limite que separa o homem dos animais. Desta forma, postulava que a principal característica humana era a razão. A razão permitia ao homem sobrepor-se aos instintos, que seriam a base da irracionalidade. Ao definir a razão como peculiaridade do homem ou como essência humana, Sócrates abre um caminho que seria muito explorado pela Psicologia. As teorias da consciência são, de certa forma, frutos dessa primeira sistematização na Filosofia.

O passo seguinte é dado por Platão (427-347 a.e.c.), discípulo de Sócrates. Esse filósofo procurou definir um “lugar” para a razão no nosso próprio corpo.

Definiu esse lugar como sendo a cabeça, onde se encontra a alma do homem. A medula seria, portanto, o elemento de ligação da alma com o corpo. Este elemento de ligação era necessário porque Platão concebia a alma separada do corpo. Quando alguém morria, a matéria (o corpo) desaparecia, mas a alma ficava livre para ocupar outro corpo. Aristóteles (384-322 a.e.c), discípulo de Platão, foi um dos mais importantes pensadores da história da Filosofia. Sua contribuição foi inovadora ao postular que alma e corpo não podem ser dissociados. Para Aristóteles, a psyché seria o princípio ativo da vida.

Tudo aquilo que cresce, se reproduz e se alimenta possui a sua psyché ou alma. Desta forma, os vegetais, os animais e o homem teriam alma. Os vegetais teriam a alma vegetativa, que se define pela função de alimentação e reprodução. Os animais teriam essa alma e a alma sensitiva, que tem a função de percepção e movimento. E o homem teria os dois níveis anteriores e a alma racional, que tem a função pensante.

Esse filósofo chegou a estudar as diferenças entre a razão, a percepção e as sensações. Esse estudo está sistematizado no Da anima, que pode ser considerado o primeiro tratado em Psicologia. [pg 33] Portanto, 2 300 anos antes do advento da Psicologia científica, os gregos já haviam formulado duas “teorias”: a platônica, que postulava a imortalidade da alma e a concebia separada do corpo, e a aristotélica, que afirmava a mortalidade da alma e a sua relação de pertencimento ao corpo.

A Psicologia no Império romano e na Idade média 

Às vésperas da era cristã, surge um novo império que iria dominar a Grécia, parte da Europa e do Oriente Médio: o Império Romano. Uma das principais características desse período é o aparecimento e desenvolvimento do cristianismo — uma força religiosa que passa a força política dominante. Mesmo com as invasões bárbaras, por volta de 400 e.c., que levam à desorganização econômica e ao esfacelamento dos territórios, o cristianismo sobrevive e até se fortalece, tornando-se a religião principal da Idade Média, período que então se inicia. [pg. 34]

E falar de Psicologia nesse período é relacioná-la ao conhecimento religioso, já que, ao lado do poder econômico e político, a Igreja Católica também monopolizava o saber e, conseqüentemente, o estudo do psiquismo.

Nesse sentido, dois grandes filósofos representam esse período: Santo Agostinho (354-430) e São Tomás de Aquino (1225-1274). Santo Agostinho, inspirado em Platão, também fazia uma cisão entre alma e corpo.

Entretanto, para ele, a alma não era somente a sede da razão, mas a prova de uma manifestação divina no homem. A alma era imortal por ser o elemento que liga o homem a Deus. E, sendo a alma também a sede do pensamento, a Igreja passa a se preocupar também com sua compreensão.

São Tomás de Aquino viveu em um período que prenunciava a ruptura da Igreja Católica, o aparecimento do protestantismo — uma época que preparava a transição para o capitalismo, com a revolução francesa e a revolução industrial na Inglaterra. Essa crise econômica e social leva ao questionamento da Igreja e dos conhecimentos produzidos por ela.

Dessa forma, foi preciso encontrar novas justificativas para a relação entre Deus e o homem. São Tomás de Aquino foi buscar em Aristóteles a distinção entre essência e existência. Como o filósofo grego, considera que o homem, na sua essência, busca a perfeição através de sua existência. Porém, introduzindo o ponto de vista religioso, ao contrário de Aristóteles, afirma que somente Deus seria capaz de reunir a essência e a existência, em termos de igualdade. Portanto, a busca de perfeição pelo homem seria a busca de Deus. São Tomás de Aquino encontra argumentos racionais para justificar os dogmas da Igreja e continua garantindo para ela o monopólio do estudo do psiquismo.

A Psicologia no renascimento

Pouco mais de 200 anos após a morte de São Tomás de Aquino, tem início uma época de transformações radicais no mundo europeu. É o Renascimento ou Renascença. O mercantilismo leva à descoberta de novas terras (a América, o caminho para as Índias, a rota [pg. 35] do Pacífico), e isto propicia a acumulação de riquezas pelas nações em formação, como França, Itália, Espanha, Inglaterra. Na transição para o capitalismo, começa a emergir uma nova forma de organização econômica e social. Dá-se, também, um processo de valorização do homem.

As transformações ocorrem em todos os setores da produção humana. Por volta de 1300, Dante escreve A Divina Comédia; entre 1475 e 1478, Leonardo da Vinci pinta o quadro Anunciação; em 1484, Boticelli pinta o Nascimento de Vênus; em 1501, Michelangelo esculpe o Davi; e, em 1513, Maquiavel escreve O Príncipe, obra clássica da política.

As ciências também conhecem um grande avanço. Em 1543, Copérnico causa uma revolução no conhecimento humano mostrando que o nosso planeta não é o centro do universo. Em 1610, Galileu estuda a queda dos corpos, realizando as primeiras experiências da Física moderna. Esse avanço na produção de conhecimentos propicia o início da sistematização do conhecimento científico — começam a se estabelecer métodos e regras básicas para a construção do conhecimento científico.

Neste período, René Descartes (1596-1659), um dos filósofos que mais contribuiu para o avanço da ciência, postula a separação entre mente (alma, espírito) e corpo, afirmando que o homem possui uma substância material e uma substância pensante, e que o corpo, desprovido do espírito, é apenas uma máquina. Esse dualismo mente-corpo torna possível o estudo do corpo humano morto, o que era impensável nos séculos anteriores (o corpo era considerado sagrado pela Igreja, por ser a sede da alma), e dessa forma possibilita o avanço da Anatomia e da Fisiologia, que iria contribuir em muito para o progresso da própria Psicologia. [pg. 36]

A Origem da Psicologia científica

No século 19, destaca-se o papel da ciência, e seu avanço tornasse necessário. O crescimento da nova ordem econômica — o capitalismo — traz consigo o processo de industrialização, para o qual a ciência deveria dar respostas e soluções práticas no campo da técnica. Há, então, um impulso muito grande para o desenvolvimento da ciência, enquanto um sustentáculo da nova ordem econômica e social, e dos problemas colocados por ela.

Para uma melhor compreensão, retomemos algumas características da sociedade feudal e capitalista emergente, sendo esta responsável por mudanças que marcariam a história da humanidade.

Na sociedade feudal, com modo de produção voltado para a subsistência, a terra era a principal fonte de produção. A relação do senhor e do servo era típica de uma economia fechada, na qual uma hierarquia rígida estava estabelecida, não havendo mobilidade social.

Era uma sociedade estável, em que predominava uma visão de um universo estático — um mundo natural organizado e hierárquico, em que a verdade era sempre decorrente de revelações. Nesse mundo vivia um homem que tinha seu lugar social definido a partir do nascimento. A razão estava submetida à fé como garantia de centralização do poder. A autoridade era o critério de verdade. Esse mundo fechado e esse universo finito refletiam e justificavam a hierarquia social inquestionável do feudo.

O capitalismo pôs esse mundo em movimento, com a necessidade de abastecer mercados e produzir cada vez mais: buscou novas matérias-primas na Natureza; criou necessidades; contratou o trabalho de muitos que, por sua vez, tornavam-se consumidores das mercadorias produzidas; questionou as hierarquias para derrubar a nobreza e o clero de seus lugares há tantos séculos estabilizados.

O universo também foi posto em movimento. O Sol tornou-se o centro do universo, que passou a ser visto sem hierarquizações. O homem, por sua vez, deixou de ser o centro do universo (antropocentrismo), passando a ser concebido como um ser livre, capaz de construir seu futuro. O servo, liberto de seu vínculo com a terra, pôde escolher seu trabalho e seu lugar social. Com isso, o capitalismo tornou todos os homens consumidores, em potencial, das mercadorias produzidas.

O conhecimento tornou-se independente da fé. Os dogmas da Igreja foram questionados. O mundo se moveu. A racionalidade do homem apareceu, então, como a grande possibilidade de construção do conhecimento. [pg. 37]

A burguesia, que disputava o poder e surgia como nova classe social e econômica, defendia a emancipação do homem para emancipares também. Era preciso quebrar a idéia de universo estável para poder transformá-lo. Era preciso questionar a Natureza como algo dado para viabilizar a sua exploração em busca de matérias-primas.

Estavam dadas as condições materiais para o desenvolvimento da ciência moderna. As idéias dominantes fermentaram essa construção: o conhecimento como fruto da razão; a possibilidade de desvendar a Natureza e suas leis pela observação rigorosa e objetiva. A busca de um método rigoroso, que possibilitasse a observação para a descoberta dessas leis, apontava a necessidade de os homens construírem novas formas de produzir conhecimento — que não era mais estabelecido pelos dogmas religiosos e/ou pela autoridade eclesial. Sentiu-se necessidade da ciência.

Nesse período, surgem homens como Hegel, que demonstra a importância da História para a compreensão do homem, e Darwin, que enterra o antropocentrismo com sua tese evolucionista. A ciência avança tanto, que se torna um referencial para a visão de mundo. A partir dessa época, a noção de verdade passa, necessariamente, a contar com o aval da ciência. A própria Filosofia adapta-se aos novos tempos, com o surgimento do Positivismo de Augusto Comte, que postulava a necessidade de maior rigor científico na construção dos conhecimentos nas ciências humanas. Desta forma, propunha o método da ciência natural, a Física, como modelo de construção de conhecimento. [pg. 38] É em meados do século 19 que os problemas e temas da Psicologia, até então estudados exclusivamente pelos filósofos, passam a ser, também, investigados pela Fisiologia e pela Neurofisiologia em particular. Os avanços que atingiram também essa área levaram à formulação de teorias sobre o sistema nervoso central, demonstrando que o pensamento, as percepções e os sentimentos humanos eram produtos desse sistema.

É preciso lembrar que esse mundo capitalista trouxe consigo a máquina. Ah! A máquina! Que criação fantástica do homem! E foi tão fantástica que passou a determinar a forma de ver o mundo. O mundo como uma máquina; o mundo como um relógio. Todo o universo passou a ser pensado como uma máquina, isto é, podemos conhecer o seu funcionamento, a sua regularidade, o que nos possibilita o conhecimento de suas leis. Esta forma de pensar atingiu também as ciências do homem.

Para se conhecer o psiquismo humano passa a ser necessário compreender os mecanismos e o funcionamento da máquina de pensar do homem — seu cérebro. Assim, a Psicologia começa a trilhar os caminhos da Fisiologia, Neuroanatomia e Neurofisiologia.

Algumas descobertas são extremamente relevantes para a Psicologia. Por exemplo, por volta de 1846, a Neurologia descobre que a doença mental é fruto da ação direta ou indireta de diversos fatores sobre as células cerebrais.

A Neuroanatomia descobre que a atividade motora nem sempre está ligada à consciência, por não estar necessariamente na dependência dos centros cerebrais superiores. Por exemplo, quando alguém queima a mão em uma chapa quente, primeiro tira-a da chapa para depois perceber o que aconteceu. Esse fenômeno chama-se reflexo, e o estímulo que chega à medula espinhal, antes de chegar aos centros cerebrais superiores, recebe uma ordem para a resposta, que é tirar a mão.

O caminho natural que os fisiologistas da época seguiam, quando passavam a se interessar pelo fenômeno psicológico enquanto estudo científico, era a Psicofísica. Estudavam, por exemplo, a fisiologia do olho e a percepção das cores. As cores eram estudadas como fenômeno da Física, e a percepção, como fenômeno da Psicologia.

Por volta de 1860, temos a formulação de uma importante lei no campo da Psicofísica. É a Lei de Fechner-Weber, que estabelece a relação entre estímulo e sensação, permitindo a sua mensuração. Segundo Fechner e Weber, a diferença que sentimos ao aumentarmos a intensidade de iluminação de uma lâmpada de 100 para 110 [pg. 39] watts será a mesma sentida quando aumentamos a intensidade de iluminação de 1000 para 1100 watts, isto é, a percepção aumenta em progressão aritmética, enquanto o estímulo varia em progressão geométrica.

Essa lei teve muita importância na história da Psicologia porque instaurou a possibilidade de medida do fenômeno psicológico, o que até então era considerado impossível. Dessa forma, os fenômenos psicológicos vão adquirindo status de científicos, porque, para a concepção de ciência da época, o que não era mensurável não era passível de estudo científico.

Outra contribuição muito importante nesses primórdios da Psicologia científica é a de Wilhelm Wundt (1832-1926). Wundt cria na Universidade de Leipzig, na Alemanha, o primeiro laboratório para realizar experimentos na área de Psicofisiologia. Por esse fato e por sua extensa produção teórica na área, ele é considerado o pai da Psicologia moderna ou científica.

Wundt desenvolve a concepção do paralelismo psicofísico, segundo a qual aos fenômenos mentais correspondem fenômenos orgânicos. Por exemplo, uma estimulação física, como uma picada de agulha na pele de um indivíduo, teria uma correspondência na mente deste indivíduo. Para explorar a mente ou consciência do indivíduo, Wundt cria um método que denomina introspeccionismo. Nesse método, o experimentador pergunta ao sujeito, especialmente treinado para a auto-observação, os caminhos percorridos no seu interior por uma estimulação sensorial (a picada da agulha, por exemplo).

A Psicologia científica

O berço da Psicologia moderna foi a Alemanha do final do século 19. Wundt, Weber e Fechner trabalharam juntos na Universidade de Leipzig. Seguiram para aquele país muitos estudiosos dessa nova ciência, como o inglês Edward B. Titchner e o estadunidense William James.

Seu status de ciência é obtido à medida que se “liberta” da Filosofia, que marcou sua história até aqui, e atrai novos estudiosos e pesquisadores, que, sob os novos padrões de produção de conhecimento, passam a: [pg. 40]

• definir seu objeto de estudo (o comportamento, a vida psíquica, a consciência);

• delimitar seu campo de estudo, diferenciando-o de outras áreas de conhecimento, como a Filosofia e a Fisiologia;

• formular métodos de estudo desse objeto;

• formular teorias enquanto um corpo consistente de conhecimentos na área.

Essas teorias devem obedecer aos critérios básicos da metodologia científica, isto é, deve-se buscar a neutralidade do conhecimento científico, os dados devem ser passíveis de comprovação, e o conhecimento deve ser cumulativo e servir de ponto de partida para outros experimentos e pesquisas na área.

Os pioneiros da Psicologia procuraram, dentro das possibilidades, atingir tais critérios e formular teorias. Entretanto os conhecimentos produzidos inicialmente caracterizaram-se, muito mais, como postura metodológica que norteava a pesquisa e a construção teórica.

Embora a Psicologia científica tenha nascido na Alemanha, é nos Estados Unidos que ela encontra campo para um rápido crescimento, resultado do grande avanço econômico que colocou os Estados Unidos na vanguarda do sistema capitalista. É ali que surgem as primeiras abordagens ou escolas em Psicologia, as quais deram origem às inúmeras teorias que existem atualmente.

Essas abordagens são: o Funcionalismo, de William James (1842-1910), o Estruturalismo, de Edward Titchner (1867-1927) e o Associacionismo, de Edward L. Thorndike (1874-1949).

O Funcionalismo

O Funcionalismo é considerado como a primeira sistematização genuinamente estadunidense de conhecimentos em Psicologia. Uma sociedade que exigia o pragmatismo para seu desenvolvimento econômico acaba por exigir dos cientistas estadunidenses o mesmo espírito.

Desse modo, para a escola funcionalista de W. James, importa responder “o que fazem os homens” e “por que o fazem”. Para responder a isto, W. James elege a consciência como o centro de suas preocupações e busca a compreensão de seu funcionamento, na medida em que o homem a usa para adaptar-se ao meio. [pg. 41]

O Estruturalismo

O Estruturalismo está preocupado com a compreensão do mesmo fenômeno que o Funcionalismo: a consciência. Mas, diferentemente de W. James, Titchner irá estudá-la em seus aspectos estruturais, isto é, os estados elementares da consciência como estruturas do sistema nervoso central. Esta escola foi inaugurada por Wundt, mas foi Titchner, seguidor de Wundt, quem usou o termo estruturalismo pela primeira vez, no sentido de diferenciá-la do Funcionalismo. O método de observação de Titchner, assim como o de Wundt, é o introspeccionismo, e os conhecimentos psicológicos produzidos são eminentemente experimentais, isto é, produzidos a partir do laboratório.

O Associacionismo

O principal representante do Associacionismo é Edward L. Thorndike, e sua importância está em ter sido o formulador de uma primeira teoria de aprendizagem na Psicologia. Sua produção de conhecimentos pautava-se por uma visão de utilidade deste conhecimento, muito mais do que por questões filosóficas que perpassam a Psicologia.

O termo associacionismo origina-se da concepção de que a aprendizagem se dá por um processo de associação das idéias — das mais simples às mais complexas. Assim, para aprender um conteúdo complexo, a pessoa precisaria primeiro aprender as idéias mais simples, que estariam associadas àquele conteúdo.

Thorndike formulou a Lei do Efeito, que seria de grande utilidade para a Psicologia Comportamentalista. De acordo com essa lei, todo comportamento de um organismo vivo (um homem, um pombo, um rato etc.) tende a se repetir, se nós recompensarmos (efeito) o organismo assim que este emitir o comportamento. Por outro lado, o comportamento tenderá a não acontecer, se o organismo for castigado (efeito) após sua ocorrência. E, pela Lei do Efeito, o organismo irá associar essas situações com outras semelhantes. Por exemplo, se, ao apertarmos um dos botões do rádio, formos “premiados” com música, em outras oportunidades apertaremos o mesmo botão, bem como generalizaremos essa aprendizagem para outros aparelhos, como toca-discos, gravadores etc. [pg. 42]

As principais teorias da Psicologia no século XX

A Psicologia enquanto um ramo da Filosofia estudava a alma. A Psicologia científica nasce quando, de acordo com os padrões de ciência do século 19, Wundt preconiza a Psicologia “sem alma”. O conhecimento tido como científico passa então a ser aquele produzido em laboratórios, com o uso de instrumentos de observação e medição. Se antes a Psicologia estava subordinada à Filosofia, a partir daquele século ela passa a ligar-se a especialidades da Medicina, que assumira, antes da Psicologia, o método de investigação das ciências naturais como critério rigoroso de construção do conhecimento.

Essa Psicologia científica, que se constituiu de três escolas — Associacionismo, Estruturalismo e Funcionalismo —, foi substituída, no século 20, por novas teorias.

As três mais importantes tendências teóricas da Psicologia neste século são consideradas por inúmeros autores como sendo o Behaviorismo ou Teoria (S-R) (do inglês Stimuli-Respond — Estímulo- Resposta), a Gestalt e a Psicanálise.

  • O Behaviorismo, que nasce com Watson e tem um desenvolvimento grande nos Estados Unidos, em função de suas aplicações práticas, tornou-se importante por ter definido o fato psicológico, de modo concreto, a partir da noção de comportamento (behavior);
  • A Gestalt, que tem seu berço na Europa, surge como uma negação da fragmentação das ações e processos humanos, realizada pelas tendências da Psicologia científica do século 19, postulando a necessidade de se compreender o homem como uma totalidade. A Gestalt é a tendência teórica mais ligada à Filosofia.
  • A Psicanálise, que nasce com Freud, na Áustria, a partir da prática médica, recupera para a Psicologia a importância da afetividade e postula o inconsciente como objeto de estudo, quebrando a tradição da Psicologia como ciência da consciência e da razão.

Nos próximos três capítulos, desenvolveremos cada uma dessas principais tendências teóricas, a partir da apresentação de alguns de seus conceitos básicos. Em um quarto capítulo, apresentaremos a Psicologia Sócio-Histórica como uma das vertentes teóricas em construção na Psicologia atual. [pg. 43]

Psicologia - História da Psicologia
Temas gerais - Temas gerais, 
7/11/2021 9:11:35 PM | Por Ana Mercês Bahia Bock
A Psicologia ou as Psicologias

Quantas vezes, no nosso dia-a-dia, ouvimos o termo psicologia? Qualquer um entende um pouco dela. Poderíamos até mesmo dizer que “de psicólogo e de louco todo mundo tem um pouco”. O dito popular não é bem este (“de médico e de louco todo mundo tem um pouco”), mas parece servir aqui perfeitamente. As pessoas em geral têm a “sua psicologia”.

Usamos o termo psicologia, no nosso cotidiano, com vários sentidos. Por exemplo, quando falamos do poder de persuasão do vendedor, dizemos que ele usa de “psicologia” para vender seu produto; quando nos referimos à jovem estudante que usa seu poder de sedução para atrair o rapaz, falamos que ela usa de “psicologia”; e quando procuramos aquele amigo, que está sempre disposto a ouvir nossos problemas, dizemos que ele tem “psicologia” para entender as pessoas.

Será essa a psicologia dos psicólogos? Certamente não. Essa psicologia, usada no cotidiano pelas pessoas em geral, é denominada de psicologia do senso comum. Mas nem por isso deixa de ser uma psicologia. O que estamos querendo dizer é que as pessoas,

normalmente, têm um domínio, mesmo que pequeno e superficial, do conhecimento acumulado pela Psicologia científica, o que lhes permite explicar ou compreender seus problemas cotidianos de um ponto de vist psicológico.

É a Psicologia científica que pretendemos apresentar a você. Mas, antes de iniciarmos o seu estudo, faremos uma exposição da relação ciência/senso comum; depois falaremos mais detalhadamente sobre ciência e, assim, esperamos que você compreenda melhor a Psicologia científica.

O senso comum: conhecimento da realidade

Existe um domínio da vida que pode ser entendido como vida por excelência: é a vida do cotidiano. É no cotidiano que tudo flui, que as coisas acontecem, que nos sentimos vivos, que sentimos a realidade. Neste instante estou lendo um livro de Psicologia, logo mais estarei numa sala de aula fazendo uma prova e depois irei ao cinema. Enquanto isso, tenho sede e tomo um refrigerante na cantina da escola; sinto um sono irresistível e preciso de muita força de vontade para não dormir em plena aula; lembro-me de que havia prometido chegar cedo para o almoço. Todos esses acontecimentos denunciam que estamos vivos. Já a ciência é uma atividade eminentemente reflexiva. Ela procura compreender, elucidar e alterar esse cotidiano, a partir de seu estudo sistemático.

Quando fazemos ciência, baseamo-nos na realidade cotidiana e pensamos sobre ela. Afastamo-nos dela para refletir e conhecer além de suas aparências. O cotidiano e o conhecimento científico que temos da realidade aproximam-se e se afastam: aproximam-se porque a ciência se refere ao real; afastam-se porque a ciência abstrai a realidade para compreendê-la melhor, ou seja, a ciência afasta-se da realidade, transformando-a em objeto de investigação — o que permite a construção do conhecimento científico sobre o real.

Para compreender isso melhor, pense na abstração (no distanciamento e trabalho mental) que Newton teve de fazer para, partindo da fruta que caía da árvore (fato do cotidiano), formular a lei da gravidade (fato científico).

Ocorre que, mesmo o mais especializado dos cientistas, quando sai de seu laboratório, está submetido à dinâmica do cotidiano, que cria suas próprias “teorias” a partir das teorias científicas, seja como forma de “simplificá- las” para o uso no dia-a-dia,

Mesmo não dispondo de instrumentos, sabemos avaliar a distância e a velocidade de um veículo quando atravessamos a rua. ou como sua maneira peculiar de interpretar fatos, a despeito das considerações feitas pela ciência. Todos nós — estudantes, psicólogos, físicos, artistas, operários, teólogos — vivemos a maior parte do tempo esse cotidiano e as suas teorias, isto é, aceitamos as regras do seu jogo.

O fato é que a dona de casa, quando usa a garrafa térmica para manter o café quente, sabe por quanto tempo ele permanecerá razoavelmente quente, sem fazer nenhum cálculo complicado e, muitas vezes, desconhecendo completamente as leis da termodinâmica. Quando alguém em casa reclama de dores no fígado, ela faz um chá de boldo, que é uma planta medicinal já usada pelos avós de nossos avós, sem, no entanto, conhecer o princípio ativo de suas folhas nas doenças hepáticas e sem nenhum estudo farmacológico. E nós mesmos, quando precisamos atravessar uma avenida movimentada, com o tráfego de veículos em alta velocidade, sabemos perfeitamente medir a distância e a velocidade do automóvel que vem em nossa direção. Até hoje não conhecemos ninguém que usasse máquina de calcular ou fita métrica para essa tarefa. Esse tipo de conhecimento que vamos acumulando no nosso cotidiano é chamado de senso comum. Sem esse conhecimento intuitivo, espontâneo, de tentativas e erros, a nossa vida no dia-a-dia seria muito complicada.

A necessidade de acumularmos esse tipo de conhecimento espontâneo parece-nos óbvia. Imagine termos de descobrir diariamente que as coisas tendem a cair, graças ao efeito da gravidade; termos de descobrir diariamente que algo atirado pela janela tende a cair e não a subir; que um automóvel em velocidade vai se aproximar rapidamente de nós e que, para fazer um aparelho eletrodoméstico funcionar, precisamos de eletricidade.

O senso comum, na produção desse tipo de conhecimento, percorre um caminho que vai do hábito à tradição, a qual, quando estabelecida, passa de geração para geração. Assim, aprendemos com nossos pais a atravessar uma rua, a fazer o liqüidificador funcionar, a plantar alimentos na época e de maneira correta, a conquistar a pessoa que desejamos e assim por diante.

E é nessa tentativa de facilitar o dia-a-dia que o senso comum produz suas próprias “teorias”; na realidade, um conhecimento que, numa interpretação livre, poderíamos chamar de teorias médicas, físicas, psicológicas etc.

Senso comum: uma visão de mundo

Esse conhecimento do senso comum, além de sua produção característica, acaba por se apropriar, de uma maneira muito singular, de conhecimentos produzidos pelos outros setores da produção do saber humano. O senso comum mistura e recicla esses outros saberes, muito mais especializados, e os reduz a um tipo de teoria simplificada, produzindo uma determinada visão-de-mundo.

O que estamos querendo mostrar a você é que o senso comum integra, de um modo precário (mas é esse o seu modo), o conhecimento humano. E claro que isto não ocorre muito rapidamente. Leva um certo tempo para que o conhecimento mais sofisticado e especializado seja absorvido pelo senso comum, e nunca o é totalmente. Quando utilizamos termos como “rapaz complexado”, “menina histérica”, “ficar neurótico”, estamos usando termos definidos pela Psicologia científica. Não nos preocupamos em definir as palavras usadas e nem por isso deixamos de ser entendidos pelo outro. Podemos até estar muito próximos do conceito científico mas, na maioria das vezes, nem o sabemos. Esses são exemplos da apropriação que o senso comum faz da ciência.

Áreas do conhecimento

Somente esse tipo de conhecimento, porém, não seria suficiente para as exigências de desenvolvimento da humanidade. O homem, desde os tempos primitivos, foi ocupando cada vez mais espaço neste planeta, e somente esse conhecimento intuitivo seria muito pouco para que ele dominasse a Natureza em seu próprio proveito. Os gregos, por volta do século 4 a.C, já dominavam complicados cálculos matemáticos, que ainda hoje são considerados difíceis por qualquer jovem colegial. Os gregos precisavam entender esses cálculos para resolver seus problemas agrícolas, arquitetônicos, navais etc. Era uma questão de sobrevivência. Com o tempo, esse tipo de conhecimento foi-se especializando cada vez mais, até atingir o nível de sofisticação que permitiu ao homem atingir a Lua. A este tipo de conhecimento, que definiremos com mais cuidado logo adiante, chamamos de ciência.

Mas o senso comum e a ciência não são as únicas formas de conhecimento que o homem possui para descobrir e interpretar a realidade.

Povos antigos, e entre eles cabe Registro de crenças e tradições para as futuras gerações, sempre mencionar os gregos, preocuparam-se com a origem e com o significado da existência humana. As especulações em torno desse tema formaram um corpo de conhecimentos denominado filosofia. A formulação de um conjunto de pensamentos sobre a origem do homem, seus mistérios, princípios morais, forma um outro corpo de conhecimento humano, conhecido como religião. No Ocidente, um livro muito conhecido traz as crenças e tradições de nossos antepassados e é para muitos um modelo de conduta: a Bíblia. Esse livro é o registro do conhecimento religioso judaico-cristão. Um outro livro semelhante é o livro sagrado dos hindus: Livro dos Vedas. Veda, em sânscrito (antiga língua clássica da Índia), significa conhecimento.

Por fim, o homem, já desde a sua pré-história, deixou marcas de sua sensibilidade nas paredes das cavernas, quando desenhou a sua própria figura e a figura da caça, criando uma expressão do conhecimento que traduz a emoção e a sensibilidade. Denominamos arte a esse tipo de conhecimento.

Arte, religião, filosofia, ciência e senso comum são domínios do conhecimento humano.

A Psicologia científica

Apesar de reconhecermos a existência de uma psicologia do senso comum e, de certo modo, estarmos preocupados em defini-la, é com a outra psicologia que este livro deverá ocupar-se — a Psicologia científica. Foi preciso definir o senso comum, para que o leitor pudesse demarcar o campo de atuação de cada uma, sem confundi-las.

Entretanto a tarefa de definir a Psicologia como ciência é bem mais árdua e complicada. Comecemos por definir o que entendemos por ciência (que também não é simples), para depois explicarmos por que a Psicologia é hoje considerada uma de suas áreas.

O que é ciência

A ciência compõe-se de um conjunto de conhecimentos sobre fatos ou aspectos da realidade (objeto de estudo), expresso por meio de uma linguagem precisa e rigorosa. Esses conhecimentos devem ser obtidos de maneira programada, sistemática e controlada, para que se permita a verificação de sua validade. Assim, podemos apontar o objeto dos diversos ramos da ciência e saber exatamente como determinado conteúdo foi construído, possibilitando a reprodução da experiência. Dessa forma, o saber pode ser transmitido, verificado, utilizado e desenvolvido.

Essa característica da produção científica possibilita sua continuidade: um novo conhecimento é produzido sempre a partir de algo anteriormente desenvolvido. Negam-se, reafirmam-se, descobrem-se novos aspectos, e assim a ciência avança. Nesse sentido, a ciência caracteriza-se como um processo.

Pense no desenvolvimento do motor movido a álcool hidratado. Ele nasceu de uma necessidade concreta (crise do petróleo) e foi planejado a partir do motor a gasolina, com a alteração de poucos componentes deste. No entanto, os primeiros automóveis movidos a álcool apresentaram muitos problemas, como o seu mau funcionamento nos dias frios. Apesar disso, esse tipo de motor foi-se aprimorando.

A ciência tem ainda uma característica fundamental: ela aspira à objetividade. Suas conclusões devem ser passíveis de verificação e isentas de emoção, para, assim, tornarem-se válidas para todos.

Objeto específico, linguagem rigorosa, métodos e técnicas específicas, processo cumulativo do conhecimento, objetividade fazem da ciência uma forma de conhecimento que supera em muito o conhecimento espontâneo do senso comum. Esse conjunto de características é o que permite que denominemos científico a um conjunto de conhecimentos.

Objeto de estudo da psicologia

Observatório Nacional — Rio de Janeiro. Estudar o fenômeno físico é pensar sobre algo externo ao homem. Estudar o homem é pensar sobre si mesmo. Dissemos um para ser considerado científico, requer um objeto específico de estudo. O objeto da Astronomia são os astros, e o objeto da Biologia são os seres vivos. Essa classificação bem geral demonstra que é possível tratar o objeto dessas ciências com uma certa distância, ou seja, é possível isolar o objeto de estudo. No caso da Astronomia, o cientista-observador está, por exemplo, num observatório, e o astro observado, a anos-luz de distância de seu telescópio. Esse cientista não corre o mínimo risco de confundir-se com o fenômeno que está estudando.

O mesmo não ocorre com a Psicologia, que, como a Antropologia, a Economia, a Sociologia e todas as ciências humanas, estuda o homem.

Certamente, esta divisão é ampla demais e apenas coloca a Psicologia entre as ciências humanas. Qual é, então, o objeto específico de estudo da Psicologia?

Se dermos a palavra a um psicólogo comportamentalista, ele dirá: “O objeto de estudo da Psicologia é o comportamento humano”. Se a palavra for dada a um psicólogo psicanalista, ele dirá: “O objeto de estudo da Psicologia é o inconsciente”. Outros dirão que é a consciência humana, e outros, ainda, a personalidade.

Diversidade de objetos da psicologia

A diversidade de objetos da Psicologia é explicada pelo fato de este campo do conhecimento ter-se constituído como área do conhecimento científico só muito recentemente (final do século 19), a despeito de existir há muito tempo na Filosofia enquanto preocupação humana. Esse fato é importante, já que a ciência se caracteriza pela exatidão de sua construção teórica, e, quando uma ciência é muito nova, ela não teve tempo ainda de apresentar teorias acabadas e definitivas, que permitam determinar com maior precisão seu objeto de estudo.

Um outro motivo que contribui para dificultar uma clara definição de objeto da Psicologia é o fato de o cientista — o pesquisador — confundir-se com o objeto a ser pesquisado. No sentido mais amplo, o objeto de estudo da Psicologia é o homem, e neste caso o pesquisador está inserido na categoria a ser estudada. Assim, a concepção de homem que o pesquisador traz consigo “contamina” inevitavelmente a sua pesquisa em Psicologia. Isso ocorre porque há diferentes concepções de homem entre os cientistas (na medida em que estudos filosóficos e teológicos e mesmo doutrinas políticas acabam definindo o homem à sua maneira, e o cientista acaba necessariamente se vinculando a uma destas crenças). É o caso da concepção de homem natural, formulada pelo filósofo francês Rousseau, que imagina que o homem era puro e foi corrompido pela sociedade, e que cabe então ao filósofo reencontrar essa pureza perdida. Outros vêem o homem como ser abstrato, com características definidas e que não mudam, a despeito das condições sociais a que esteja submetido. Nós, autores deste livro, vemos esse homem como ser datado, determinado pelas condições históricas e sociais que o cercam.

Na realidade, este é um “problema” enfrentado por todas as ciências humanas, muito discutido pelos cientistas de cada área e até agora sem perspectiva de solução. Conforme a definição de homem adotada, teremos uma concepção de objeto que combine com ela.

Como, neste momento, há uma riqueza de valores sociais que permitem várias concepções de homem, diríamos simplificada-mente que, no caso da Psicologia, esta ciência estuda os “diversos homens” concebidos pelo conjunto social. Assim, a Psicologia hoje se caracteriza por uma diversidade de objetos de estudo.

Por outro lado, essa diversidade de objetos justifica-se porque os fenômenos psicológicos são tão diversos, que não podem ser acessíveis ao mesmo nível de observação e, portanto, não podem ser sujeitos aos mesmos padrões de descrição, medida, controle e interpretação. O objeto da Psicologia deveria ser aquele que reunisse condições de aglutinar uma ampla variedade de fenômenos psicológicos. Ao estabelecer o padrão de descrição, medida, controle e interpretação, o psicólogo está também estabelecendo um determinado critério de seleção dos fenômenos psicológicos e assim definindo um objeto.

Esta situação leva-nos a questionar a caracterização da Psicologia como ciência e a postular que no momento não existe uma psicologia, mas Ciências psicológicas embrionárias e em desenvolvimento.

A Subjetividade como objeto da psicologia

Considerando toda essa dificuldade na conceituação única do objeto de estudo da Psicologia, optamos por apresentar uma definição que lhe sirva como referência para os próximos capítulos, uma vez que você irá se deparar com diversos enfoques que trazem definições específicas desse objeto, (o comportamento, o inconsciente, a consciência etc.).

A identidade da Psicologia é o que a diferencia dos demais ramos das ciências humanas, e pode ser obtida considerando-se que cada um desses ramos enfoca o homem de maneira particular. Assim, cada especialidade — a Economia, a Política, a História etc. — trabalha essa matéria-prima de maneira particular, construindo conhecimentos distintos e específicos a respeito dela. A Psicologia colabora com o estudo da subjetividade: é essa a sua forma particular, específica de contribuição para a compreensão da totalidade da vida humana.

Nossa matéria-prima, portanto, é o homem em todas as suas expressões, as visíveis (nosso comportamento) e as invisíveis (nossos sentimentos), as singulares (porque somos o que somos) e as genéricas (porque somos todos assim) — é o homem-corpo, homem-pensamento, homem-afeto, homem-ação e tudo isso está sintetizado no termo subjetividade.

A subjetividade é a síntese singular e individual que cada um de nós vai constituindo conforme vamos nos desenvolvendo e vivenciando as experiências da vida social e cultural; é uma síntese que nos identifica, de um lado, por ser única, e nos iguala, de outro lado, na medida em que os elementos que a constituem são experienciados no campo comum da objetividade social. Esta síntese — a subjetividade — é o mundo de idéias, significados e emoções construído internamente pelo sujeito a partir de suas relações sociais, de suas vivências e de sua constituição biológica; é, também, fonte de suas manifestações afetivas e comportamentais.

O mundo social e cultural, conforme vai sendo experienciado por nós, possibilita-nos a construção de um mundo interior. São diversos fatores que se combinam e nos levam a uma vivência muito particular. Nós atribuímos sentido a essas experiências e vamos nos constituindo a cada dia.

A subjetividade é a maneira de sentir, pensar, fantasiar, sonhar, amar e fazer de cada um. É o que constitui o nosso modo de ser: sou filho de japoneses e militante de um grupo ecológico, detesto Matemática, adoro samba e black music, pratico ioga, tenho vontade mas não consigo ter uma namorada. Meu melhor amigo é filho de descendentes de italianos, primeiro aluno da classe em Matemática, trabalha e estuda, é vascaíno fanático, adora comer sushi e navegar pela Internet. Ou seja, cada qual é o que é: sua singularidade. Entretanto, a síntese que a subjetividade representa não é inata ao indivíduo. Ele a constrói aos poucos, apropriando-se do material do mundo social e cultural, e faz isso ao mesmo tempo em que atua sobre este mundo, ou seja, é ativo na sua construção. Criando e transformando o mundo (externo), o homem constrói e transforma a si próprio.

Um mundo objetivo, em movimento, porque seres humanos o movimentam permanentemente com suas intervenções; um mundo subjetivo em movimento porque os indivíduos estão permanentemente se apropriando de novas matérias-primas para constituírem suas subjetividades.

De um certo modo, podemos dizer que a subjetividade não só é fabricada, produzida, moldada, mas também é automoldável, ou seja, o homem pode promover novas formas de subjetividade, recusando-se ao assujeitamento e à perda de memória imposta pela fugacidade da informação; recusando a massificação que exclui e estigmatiza o diferente, a aceitação social condicionada ao consumo, a medicalização do sofrimento. Nesse sentido, retomamos a utopia que cada homem pode participar na construção do seu destino e de sua coletividade.

Por fim, podemos dizer que estudar a subjetividade, nos tempos atuais, é tentar compreender a produção de novos modos de ser, isto é, as subjetividades emergentes, cuja fabricação é social e histórica. O estudo dessas novas subjetividades vai desvendando as relações do cultural, do político, do econômico e do histórico na produção do mais íntimo e do mais observável no homem — aquilo que o submissão da subjetividade (como dizia o filósofo francês Michel Foucault).

O movimento e a transformação são os elementos básicos de toda essa história. E aproveitamos para citar Guimarães Rosa, que em Grande Sertão: Veredas, consegue expressar, de modo muito adequado e rico, o que aqui vale a pena registrar:

“O importante e bonito do mundo é isso: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas, mas que elas vão sempre mudando. Afinam e desafinam”.

Convidamos você a refletir um pouco sobre esse pensamento de Guimarães Rosa. As pessoas não estão sempre iguais. Ainda não foram terminadas. Na verdade, as pessoas nunca serão terminadas, pois estarão sempre se modificando. Mas por quê? Como? Simplesmente porque a subjetividade — este mundo interno construído pelo homem como síntese de suas determinações — não cessará de se modificar, pois as experiências sempre trarão novos elementos para renová-la.

Talvez você esteja pensando: mas eu acho que sou o que sempre fui — eu não me modifico! Por acompanhar de perto suas próprias transformações (não poderia ser diferente!), você pode não percebê-las e ter a impressão de ser como sempre foi. Você é o construtor da sua transformação e, por isso, ela pode passar despercebida, fazendo-o pensar que não se transformou. Mas você cresceu, mudou de corpo, de vontades, de gostos, de amigos, de atividades, afinou e desafinou, enfim, tudo em sua vida muda e, com ela, suas vivências subjetivas, seu conteúdo psicológico, sua subjetividade. Isso acontece com todos nós.

Bem, esperamos que você já tenha uma noção do que seja subjetividade e possamos, então, voltar a nossa discussão sobre o objeto da Psicologia.

A Psicologia, como já dissemos anteriormente, é um ramo das Ciências Humanas e a sua identidade, isto é, aquilo que a diferencia, pode ser obtida considerando-se que cada um desses ramos enfoca de maneira particular o objeto homem, construindo conhecimentos distintos e específicos a respeito dele. Assim, com o estudo da subjetividade, a Psicologia contribui para a compreensão da totalidade da vida humana.

É claro que a forma de se abordar a subjetividade, e mesmo a forma de concebê-la, dependerá da concepção de homem adotada pelas diferentes escolas psicológicas. No momento, pelo pouco desenvolvimento da Psicologia, essas escolas acabam formulando um conhecimento fragmentário de uma única e mesma totalidade — o ser humano: o seu mundo interno e as suas manifestações. A superação do atual impasse levará a uma Psicologia que enquadre esse homem como ser concreto e multideterminado. Esse é o papel de uma ciência crítica, da compreensão, da comunicação e do encontro do homem com o mundo em que vive, já que o homem que compreende a História (o mundo externo) também compreende a si mesmo (sua subjetividade), e o homem que compreende a si mesmo pode compreender o engendramento do mundo e criar novas rotas e utopias.

Algumas correntes da Psicologia consideram-na pertencente ao campo das Ciências do Comportamento e, outras, das Ciências Sociais. Acreditamos que o campo das Ciências Humanas é mais abrangente e condizente com a nossa proposta, que vincula a Psicologia à História, à Antropologia, à Economia etc.

A Psicologia e o misticismo

A Psicologia, como área da Ciência, vem se desenvolvendo na história desde 1875, quando Wilhelm Wundt (1832-1926) criou o primeiro Laboratório de Experimentos em Psicofisiologia, em Leipzig, na Alemanha. Esse marco histórico significou o desligamento das idéias psicológicas de idéias abstratas e espiritualistas, que defendiam a existência de uma alma nos homens, a qual seria a sede da vida psíquica. A partir daí, a história da Psicologia é de fortalecimento de seu vínculo com os princípios e métodos científicos. A idéia de um homem autônomo, capaz de se responsabilizar pelo seu próprio desenvolvimento e pela sua vida, também vai se fortalecendo a partir desse momento.

Hoje,  a  Psicologia  ainda  não  consegue  explicar  muitas  coisas sobre  o  homem,  pois  é  uma  área  da  Ciência  relativamente  nova  (com pouco  mais  de  cem  anos).  Além  disso,  sabe-se  que  a Ciência  não esgotará   o   que   há   para   se   conhecer,   pois   a   realidade   está   em permanente movimento e novas perguntas surgem a cada dia, o homem está  em  movimento  e  em  transformação,  colocando  também  novas perguntas   para   a   Psicologia.   A   invenção   dos   computadores,   por exemplo,  trouxe  e  trará  mudanças  em  nossas  formas  de  pensamento, em   nossa   inteligência,   e   a   Psicologia   precisará   absorver   essas transformações em seu quadro teórico. Alguns   dos   “desconhecimentos”   da   Psicologia   têm   levado   os psicólogos  a  buscarem  respostas  em  outros  campos  do  saber  humano. Com  isso,  algumas  práticas  não-psicológicas  têm  sido  associadas  às práticas psicológicas. O tarô, a astrologia, a quiromancia, a numerologia, entre  outras  práticas  adivinhatórias  e/ou  místicas,  têm  sido  associadas ao fazer e ao saber psicológico.

Estas não são práticas da Psicologia. São outras formas de saber —  de  saber  sobre  o  humano  —  que  não  podem  ser  confundidas  com  a Psicologia, pois: •  não  são  construídas  no  campo  da  Ciência,  a  partir  do  método  e  dos princípios científicos; •  estão  em  oposição  aos  princípios  da  Psicologia,  que  vê  não  só  o homem  como  ser  autônomo,  que  se  desenvolve  e  se  constitui  a  partir de  sua  relação  com  o  mundo  social  e  cultural,  mas  também  o  homem sem destino pronto, que constrói seu futuro ao agir sobre o mundo. As práticas místicas têm pressupostos opostos, pois nelas há a concepção de  destino,  da  existência  de  forças  que  não  estão  no  campo  do humano e do mundo material. A Psicologia, ao relacionar-se com esses saberes, deve ser capaz  de  enfrentá-los  sem  preconceitos,  reconhecendo  que o  homem construiu  muitos  “saberes”  em  busca  de  sua  felicidade.  

Mas  é  preciso demarcar  nossos  campos.  Esses  saberes  não  estão  no campo  da Psicologia, mas podem se tornar seu objeto de estudo. É possível estudar as práticas adivinhatórias e descobrir o que elas têm  de  eficiente,  de  acordo  com  os  critérios  científicos,  e  aprimorar  tais aspectos  para  um  uso  eficiente  e  racional.  Nem  sempre  esses  critérios científicos têm sido observados e alguns psicólogos acabam por usar tais práticas sem o devido cuidado e observação. Esses casos, seja daquele que usa a prática mística como acompanhamento psicológico, seja o do psicólogo  que  usa  desse  expediente  sem  critério  científico  comprovado, são  previstos  pelo  código  de  ética  dos  psicólogos  e,  por  isso,  passíveis de  punição.  

No  primeiro  caso,  como  prática  de  charlatanismo  e,  no segundo, como desempenho inadequado da profissão. Entretanto,  é  preciso  ponderar  que  esse  campo  fronteiriço  entre  a Psicologia  científica  e  a  especulação  mística  deve ser  tratado  com  o devido  cuidado.  Quando  se  trata  de  pessoa,  psicóloga  ou  não,  que decididamente  usa  do  expediente  das  práticas  místicas  como  forma  de tirar   proveito   pecuniário   ou   de   qualquer   outra   ordem,   prejudicando terceiros,  temos  um  caso  de  polícia  e  a  punição  é  salutar.  Mas  muitas vezes  não  é  possível  caracterizar  a  atuação  daqueles  que  se  utilizam dessas  práticas  de  forma  tão  clara.  Nestes  casos,  não  podemos  tornar absoluto    o    conhecimento    científico    como    o    “conhecimento    por excelência” e dogmatizá-lo a ponto de correr o risco de criar um tribunal semelhante  ao  da  Santa  Inquisição.  E  preciso  reconhecer  que  pessoas que  acreditam  em  práticas  adivinhatórias  ou  místicas  têm  o  direito  de consultar  e  de  serem  consultadas,  e  também  temos  de  reconhecer,  nós cientistas,  que  não  sabemos  muita  coisa  sobre  o  psiquismo  humano  e que,  muitas  vezes,  novas  descobertas  seguem  estranhos  e  insondáveis caminhos.

O verdadeiro cientista deve ter os olhos abertos para o novo. Enfim, nosso alerta aqui vai em dois sentidos: •  Não  se  deve  misturar  a  Psicologia  com  práticas  adivinhatórias  ou  místicas  que  estão  baseadas  em  pressupostos  diversos  e  opostos  ao da Psicologia. •  “Mente  é  como  pára-quedas:  melhor  aberta.”  É  preciso  estar  aberto para o novo, atento a novos conhecimentos que, tendo sido estudados no  âmbito  da  Ciência,  podem  trazer  novos  saberes,  ou  seja,  novas respostas para perguntas ainda não respondidas. A  Ciência,  como  uma  das  formas  de  saber  do  homem,  tem  seu campo de atuação com métodos e princípios próprios, mas, como forma de saber, não está pronta e nunca estará. A Ciência é, na verdade, um  processo  permanente  de  conhecimento  do  mundo,  um  exercício de diálogo entre o pensamento humano e a realidade, em todos os seus aspectos.  Nesse  sentido,  tudo  o  que  ocorre  com  o  homem  é  motivo  de interesse  para  a  Ciência,  que  deve  aplicar  seus  princípios  e  métodos para construir respostas.

Psicologia - Psicologia do Desenvolvimento
Temas gerais - , 
7/10/2021 1:42:54 PM | Por Christian Jacq
A rainha Isis

O túmulo do faraó Tutmósis III, no Vale dos Reis, é de difícil acesso,- primeiro temos de subir uma escada de metal instalada pelo Serviço das Antiguidades e depois entrar num estreito túnel que penetra rocha adentro. Os claustrófobos vêem-se obrigados a desistir; mas o esforço é recompensado porque, no fim da descida, descobrimos duas salas: uma de teto baixo, com paredes decoradas com figuras de divindades, e outra mais vasta, a Câmara da Ressurreição. Em suas paredes, os textos e as cenas do Amâuat, "O Livro da Câmara Oculta", revelam as etapas da ressurreição do Sol nos espaços noturnos e a transmutação da alma real no Além.

Num dos pilares, uma cena surpreendente: uma deusa, saída de uma árvore, amamenta Tutmósis III. Amamentado desse modo para a eternidade, o faraó é regenerado para sempre. O texto hieroglífico indica-nos a identidade dessa deusa de inexaurível generosidade: ísis. Mas ísis é também o nome da mãe terrena desse rei, uma mãe cujo rosto foi preservado numa estátua descoberta no famoso esconderijo do templo de Karnak:1 de faces cheias, tranqüila e elegante, a mãe real ísis exibe longas tranças e um vestido de alças. Está sentada, com a mão direita sobre a coxa, e tem na mão esquerda um cetro floral. Apenas sabemos que o filho a venerava, e que ela tinha o nome da mais célebre das deusas do Antigo Egito.

A paixão e a demanda de ísis

ísis, a Grande, reinara nas Duas Terras, o Alto e o Baixo Egito, muito antes do nascimento das dinastias. Em companhia do seu esposo Osíris, governava com sabedoria e conhecia uma felicidade perfeita. Até que Seth, irmão de Osíris, o convidou para um banquete. Tratava-se de uma cilada, pois Seth estava decidido a assassinar o rei para ocupar o seu lugar. Utilizando uma técnica original, o assassino pediu ao irmão que se deitasse num caixão para ver se era do seu tamanho. Imprudente, Osíris aceitou. Seth e seus acólitos pregaram a tampa e lançaram o sarcófago ao Nilo.

Os pormenores dessa tragédia são conhecidos graças a um texto de Plutarco, iniciado nos mistérios de ísis e Osíris,- as fontes mais antigas mencionam apenas a morte trágica de Osíris, cujas desgraças prosseguiram, pois o seu cadáver foi retalhado. Seth convenceu-se de que aniquilara o irmão para sempre.

Ísis, a viúva, recusou a morte.

Mas o que podia ela fazer, além de chorar o marido martirizado? Um projeto insano nasceu em seu coração: encontrar todos os pedaços do cadáver, reconstituí-lo e, graças à magia sagrada cujas fórmulas conhecia, restituir-lhe a vida.

Assim começou a busca de ísis, paciente e obstinada. E quase conseguiu! Todas as partes do corpo foram reunidas, menos uma: o sexo de Osíris, engolido por um peixe. Desta vez ísis tinha de desistir.

Mas não desistiu: convocou a irmã Néftis, cujo nome significa "a senhora do templo", e organizou uma vigília fúnebre.2 Eu sou a tua irmã bem- amada, disse ela ao reconstituído cadáver de Osíris, não te afastes de mim, clamo por ti! Não ouves a minha voz? Venho ao encontro, e nada me separará de ti! Durante horas, Isis e Néftis, de corpo purificado, inteiramente depiladas, com perucas encaracoladas, a boca purificada com natrão (carbonato de sódio), pronunciaram encantamentos numa câmara funerária obscura e perfumada com incenso, ísis invocou todos os templos e todas as cidades do país para que se juntassem à sua dor e fizessem a alma de Osíris regressar do Além. A viuva tomou o cadáver nos braços, seu coração bateu de amor por ele, e murmurou-lhe ao ouvido: Tu, que amas a vida, não caminhes nas trevas.

O cadáver, desgraçadamente, permaneceu inerte.

Isis transformou-se então num falcão fêmea, bateu as asas para restituir o sopro da vida ao defunto e pousou no lugar do sexo desaparecido de Osíris, que ela fez reaparecer por magia. Desempenhei o papel de homem, afirma ela, embora seja mulher. As portas da morte abriram-se diante de Isis, que conheceu o segredo fundamental, a ressurreição, agindo como nenhuma deusa o fizera antes: ela, a quem chamavam "a Venerável, nascida da Luz, saída da pupila de Aton (o princípio criador)", conseguiu fazer regressar aquele que parecia ter partido para sempre e ser fecundada por ele.

Assim foi concebido o seu filho Hórus, nascido da impossível união da vida e da morte. Um acontecimento importante, porque este Hórus, filho do mistério supremo, foi chamado a ocupar o trono do pai, doravante monarca do Além e do mundo subterrâneo.

Seth não se deu por vencido. Só havia uma solução: matar Hórus. Ciente do perigo, ísis guardou o filho entre os papiros do Delta. Não faltaram perigos -— a enfermidade, as serpentes, os escorpiões, o assassino que ronda... Mas Isis, a Maga, conseguiu preservar seu filho Hórus de todas as desgraças.

Seth não admitiu o fracasso e contestou a legitimidade de Hórus, que era no entanto sobrenatural, convocando então o tribunal das divindades para conseguir a condenação do herdeiro de Osíris. Como o tribunal se reuniu numa ilha, Seth usou o seu engenho para que uma decisão iníqua fosse adotada: o barqueiro devia impedir as mulheres de entrarem em sua barcaça, e assim Isis não poderia defender a sua causa.

Mas iria a viúva desistir, ao cabo de tantas provações? Por conseguinte, ela convenceu o barqueiro, oferecendo-lhe um anel de ouro,- apresentou-se diante do tribunal, venceu a má fé e os argumentos infundados, e fez aclamar Hórus como faraó legítimo.

Esposa perfeita, mãe exemplar, Isis tomou-se também a responsável pela transmissão do poder régio — aliás, o seu nome significa "o trono". Percebe-se que, segundo o pensamento simbólico egípcio, é o trono ou, por outras palavras, a Grande Mãe, a rainha ísis, que gera o faraó.

Isis, maga e sábia

Isis é a mulher-serpente3 que se transforma em uraeus, a naja fêmea que se ergue na fronte do rei para destruir os inimigos da Luz,- uma desastrosa evolução e o desconhecimento do símbolo primitivo tomaram a boa deusa-serpente no réptil tentador do Gênesis que causa a perdição do primeiro casal. ísis e Osíris, pelo contrário, afirmam a vivência de um conhecimento luminoso graças ao amor e ao que está para além da morte.

Sob a forma da estrela Sótis, ísis anuncia e desencadeia as cheias do Nilo; debruçada em choro sobre o corpo de Osíris, faz subir as águas benfazejas que depositam o limo nas margens e asseguram a prosperidade do país — aliás, a cabeleira de ísis não forma os tufos de papiros emergindo do rio?

Essa magia cósmica de ísis nasce da sua capacidade para conhecer os mistérios do universo e, entre eles, o nome secreto de Rá, encarnação da Luz divina. É certo que o coração de Isis era mais hábil do que o dos bem-aventurados e que era conhecida dos céus e da Terra, ignorando apenas o famoso nome secreto de Rá, que este não confiara a ninguém, nem mesmo às outras divindades. Isis lançou-se ao assalto do bastião: recolheu um escarro de Rá, amassou-o com terra e formou uma serpente. Escondeu o réptil sagrado num arbusto que ficava no caminho do deus e, quando este passou, o réptil o mordeu. O coração de Rá ardeu e, depois de tremer, os seus membros arrefeceram. Embora fora do alcance da morte, o veneno causou-lhe grande sofrimento, e ninguém conseguiu curá-lo.

ísis decidiu intervir e restituir-lhe a saúde, contanto que Rá lhe confiasse o seu nome secreto. O divino Sol tentou enganá-la, confiando-lhe vários nomes, mas nunca mencionando o nome correto. Intuitiva, ísis não se deixou enganar, e Rá, exausto, foi obrigado a revelar-lhe o seu verdadeiro nome. ísis curou-o... e guardou o segredo para sempre.

Os lugares de ísis

Cada parte do corpo de Osíris deu origem a uma província, e assim todo o Egito foi assimilado ao seu ressuscitado esposo, animando a totalidade do país. ísis sentia-se, pois, em toda parte como na sua própria casa.

Por isso, quando percorremos o Egito, descobrimos três lugares particularmente ligados a ísis, de norte para sul: Behbeit el-Hagar, Dendera e Filae.

Behbeit el-Hagar, no Delta, é um local desconhecido dos turistas. Uma vez saídos de um labirinto de ruelas, sofremos uma viva decepção quando chegamos lá. O que resta do grande templo de ísis, além de um monte de enormes blocos de granito ornados de cenas rituais? ísis foi venerada ali, mas o seu templo foi destruído e utilizado como pedreira, sem nenhum respeito pelo seu caráter sagrado. É impossível deixar de pensar na época em que ali se erguia um santuário colossal dedicado à senhora dos céus.

O nascimento de ísis é situado simbolicamente em Dendera, no Alto Egito. O santuário da deusa Hathor está parcialmente conservado, mas o templo coberto e o mammisi (templo do nascimento de Hórus) existem ainda, bem como um pequeno santuário, onde, segundo os textos, a bela ísis veio ao mundo com uma pele rosada e uma cabeleira negra. Foi a deusa dos céus que lhe deu vida, enquanto Amon, o princípio oculto, e Chu, o ar luminoso, lhe concediam o sopro vital.

Na fronteira meridional do Antigo Egito reina Filae, a ilha-templo de ísis,- ali viveu a derradeira comunidade iniciática egípcia, aniquilada por cristãos fanáticos. Ameaçados de destruição pela inundação do "alto dique" — a grande barragem de Assuã—, os templos de Filae foram desmontados pedra por pedra e reconstruídos numa pequena ilha vizinha. A "pérola do Egito" foi salva das águas. A visão daquele lugar constitui uma experiência inesquecível. De acordo com a vontade dos egípcios, os ritos continuam a ser celebrados graças aos hieróglifos gravados na pedra,- a presença de Isis é inteiramente palpável, e ouvem-se as palavras pronunciadas nas cerimônias pelas sacerdotisas da grande deusa: Isis, criadora do universo, soberana do céu e das estrelas, senhora da vida, regente das divindades, maga de excelentes conselhos, Sol feminino que tudo marca com o seu selo; os homens vivem às tuas ordens, sem o teu acordo nada se faz4.

A eternidade de Isis

Vitoriosa sobre a morte, isis sobreviveu à extinção da civilização egípcia, desempenhando um importante papel no mundo helenístico até o século V seu culto espalhou-se por todos os países da bacia mediterrânica e mais além.

Tornou-se a protetora de numerosas confrarias iniciáticas, mais ou menos hostis ao cristianismo, que a consideravam o símbolo da onisciência, detentora do segredo da vida e da morte, e capaz de assegurar a salvação dos seus fiéis5.

Mas Isis não exigia apenas uma simples devoção, - para a conhecerem, seus adeptos deviam sujeitar-se a uma ascese, não se contentando com a crença, mas subindo na escala do conhecimento e transpondo os diversos graus dos mistérios.

Sendo o passado, o presente e o futuro, a mãe celestial de infinito amor, Isis foi durante muito tempo uma temível concorrente do cristianismo. Mas nem mesmo o dogma triunfante conseguiu aniquilar a antiga deusa; no hermetismo, tão presente na Idade Média, ela continuou sendo "a pupila do olho do mundo", o olhar sem o qual a verdadeira realidade da vida não poderia ser apercebida. Aliás, não se dissimulou ísis sob as vestes da Virgem Maria, tomando o nome de "Nossa Senhora" à qual tantas catedrais e igrejas foram dedicadas?

Isis, modelo da mulher egípcia

Uma civilização molda-se de acordo com um mito ou conjunto de mitos. Todavia, no mundo judaico-cristão, Eva é pelo menos suspeita, e daí o inegável e dramático déficit espiritual das mulheres modernas que se regem por esse tipo de crença. Isso não acontecia no universo egípcio, pois a mulher não era fonte de nenhum mal ou deturpação do conhecimento. Muito pelo contrário,- era ela que, através da grandiosa figura de Isis, enfrentava as piores provações, tendo descoberto o segredo da ressurreição.

Modelo das rainhas, Isis foi também o modelo das esposas, das mães e das mulheres mais humildes. Aliava à fidelidade uma indestrutível coragem perante a adversidade, uma intuição fora do comum e uma capacidade fantástica para penetrar nos mistérios. Por conseguinte, a sua busca servia de exemplo a todas quantas procuravam viver a eternidade.


 

História - Civilização Egípcia
Temas gerais - , 
7/4/2021 4:09:16 PM | Por André Bonnard
Heródoto explora o velho continente

Heródoto é chamado o pai da história. Não menos justamente lhe chama­ríamos o pai da geografia. Apresentou aos seus contemporâneos dos meados do século V todo o mundo bárbaro — "bárbaro" tomado no simples sentido de entrangeiro, no sentido em que os Gregos diziam que a andorinha "fala bárbaro". Apresentou aos seus leitores todo o velho continente desconhecido, desconhecido e por vezes imaginário, os três velhos continentes que ele não conpreende porque os enumeram assim, uma vez que a terra, diz ele, é una. Escreve: "Não posso aliás compreender porque à terra, sendo una, lhe deram três nomes diferentes." Estes três nomes são Europa, Ásia e Líbia, o que quer dizer África. A observação é justa antes de 1492.

A terra é una, ao mesmo tempo una e diversa, povoada de raças e de nações que são governadas pelas mesmas necessidades elementares, mas que as satisfazem na variedade infinita de costumes diferentes. O projecto essencial de Heródoto era em primeiro lugar contar as grandes proezas das guerras persas. Estas guerras situam-se aproximadamente na época do seu nascimento (nasceu por alturas de 480) e ocupam quase exactamente a primeira metade do século V. Para a jovem Grécia, foram uma provação decisiva: não foram somente os Medas e os Persas, foi a massa enorme dos povos de toda a Ásia Anterior, da índia ocidental ao mar Egeu, povos nessa época submetidos aos reis da Pérsia, sem esquecer o Egipto súbdito da Pérsia também, que esses reis — o Grande Rei, como diziam os Gregos — lançaram contra a Grécia. Esta provação foi dominada pelos Gregos. Combateram o invasor como se se batessem contra a maré. Muitas vezes um contra dez, salvando assim esse [327] bravio amor da independência que, segundo Heródoto, distingue os Gregos entre todos os povos da Terra, faz deles, não súbditos dos soberanos da Ásia e do Egipto, mas cidadãos livres. Heródoto, ao distinguir, por esta característica, os Gregos do mundo "bárbaro", não se engana.

Os Gregos quiseram continuar livres, e foi por isso, em condições difíceis, não só de inferioridade numérica assustadora, mas de divisões internas crónicas que opunham cada uma das cidades às outras e, em cada cidade, os aristocratas aos democratas, que eles alcançaram a vitória. Esta vitória foi-lhes dada pelo seu arraigado amor da liberdade. Heródoto sabe-o e di-lo claramente: é por causa disso que ama o seu povo.

Mas se Heródoto ama o seu povo grego, nem por isso é menos curioso de conhecer e dar a conhecer a todos os gregos os outros povos, muito mais poderosos e, alguns deles, de civilização mais antiga que a dos Gregos. É, por outro lado, curioso da diversidade e da singularidade dos costumes do mundo estrangeiro. E é por essa razão que faz preceder a sua história das guerras persas de um vasto inquérito sobre as nações que atacaram a Grécia, e que os Gregos, nessa época, conheciam ainda muito mal. Isto leva-o, gradualmente, a alargar mais o seu inquérito e a informar os seus leitores sobre o mundo inteiro conhecido no tempo.

O título da sua obra é precisamente Inquéritos, em grego Historiai. palavra que na época não tem outro sentido. Antes de Heródoto, a história — a investigação histórica — não existe. Ao dar o título de Inquéritos à sua obra. ao mesmo tempo de história e de geografia, Heródoto assenta estas duas ciências sobre a investigação científica. Não é menos verdade que o temperamento de Heródoto o leva em primeiro lugar e ao longo de toda a obra para a investigação geográfica ou etnográfica, antes de o incitar à busca da verdade histórica.

De que é curioso Heródoto? Pode-se responder em bloco e sem receio de engano: de tudo. As crenças, os costumes, os monumentos, isso a que nós chamamos "os grandes trabalhos", a natureza do solo, o clima, a fauna e a flora (sobretudo a fauna), a extensão dos desertos, as viagens de descoberta, as extremidades da Terra, os grandes rios de fontes desconhecidas — e por toda a parte e sobretudo a actividade do homem, as suas condições de existência, a sua compleição física, os seus prazeres, os seus deuses, o seu passado mile­nário ou, pelo contrário, o carácter primitivo do seu geênero de vida. O homem e a sua obra, o homem e a sua aventura, o homem situado no seu meio natural, estudado na estranheza dos seus costumes: eis o centro de interesse dos [328] Inquéritos de Heródoto. Pela sua inclinação à pintura do homem de todos os países, de todos os povos, Heródoto é uma das figuras mais sedutoras do humanismo antigo.

Empreguei a palavra curiosidade, que, no fim de contas, é insuficiente para definir a nossa personagem. Voltarei ao assunto adiante para a explicar de modo mais preciso. Mas tendo usado de passagem a expressão verdade histó­rica, quero explicar-me primeiro sobre uma palavra que a Heródoto se aplica, a meu ver com demasiada facilidade: Heródoto, diz-se, é crédulo. É certo que, com a sua boa vontade de inquiridor consciencioso, é ainda duma ingenuidade de criança. A sua credulidade parece primeiro tão infinita como a curiosidade, e não se fala de uma sem a outra. De todas as coisas retomadas e verificadas pela ciência mais moderna, devemos dizer que, pelo menos nas que viu com os seus próprios olhos, é muito raro que se engane. Em compensação, relata sem discernimento, sem espírito crítico a maior parte das vezes as inumeráveis histórias que lhe contam. Deixa-se iludir pelos sacerdotes muitas vezes igno­rantes que, em diversos países que visitou, lhe serviam de cicerone. Frequente­mente, mesmo, pelo primeiro que aparecia. Ama ainda demasiadamente o maravilhoso, de que estão cheias as narrativas que lhe fazem, para saber repeli-lo com decisão. Quanto mais maravilhosa é uma história, mais ela o encanta — e apressa-se a contá-la, por mais inverosímil que a considere. Aliás, se a não contasse, julgaria faltar ao seu ofício de inquiridor. Paga-se dando a entender que não caiu no logro. Veja-se a reserva com que conclui a brilhante história egípcia do rei e dos dois ladrões: "Se estas palavras parecem críveis a alguém, que creia nelas; por mim, não tenho outro fim em toda esta obra (a reserva vale. pois. para o conjunto da sua obra) que escrever o que ouço dizer a uns e a outros."

A história de Heródoto constitui pois uma mistura singular de probidade científica e de credulidade. Procura a verdade honestamente, tem um trabalho imenso para a perseguir até ao fim do mundo. Mas ao mesmo tempo conservou o gosto dos povos ainda jovens pelo maravilhoso.

Quereria, paradoxalmente, que a verdade que procura tivesse, se assim se pode dizer, um carácter maravilhoso, quereria que os seus inquéritos lhe rendessem maravilhoso em profusão. Para o pai da história, o cúmulo do histórico seria, em suma, o maravilhoso garantido por testemunhas dignas de crédito. Parece desejar que a história seja uma espécie de conto de fadas, que se pudesse provar terrealmente acontecido. [329] Das duas paixões de Heródoto — o gosto das belas histórias, dos povos estranhos, e, por outro lado, o gosto do verdadeiro — , é por de mais evidente que uma prejudica a outra. Daí, nos seus Inquéritos, tantas narrativas extra­vagantes (e aliás divertidas) recebidas de informadores que facilmente abusaram duma curiosidade tão cândida.

Uma única espécie de erro não se encontra nunca no nosso autor: o erro voluntário. Heródoto nunca mente. Engana-se, compreende mal, atrapalha-se nas suas notas, sobretudo deixa-se enganar com uma facilidade desconcertante, desde que o divirtam. Mas apesar de todos os trabalhos eruditos que o submeteram a uma crítica severa, e mesmo desconfiada, Heródoto nunca foi apanhado em flagrante delito de mentira. É um homem honesto, muito imaginativo também, mas perfeitamente verídico.

Virtude meritória. Porque aos seus leitores, que ignoravam praticamente tudo dos países donde regressou, era fácil contar, quisesse-o ele, fosse o que fosse. "Quem vem de longe, mente facilmente!" diz-se. Heródoto não cedeu a esta tentação em que caem tantos viajantes.

Heródoto viajou muito. Os testemunhos que nos traz, foi buscá-los muito longe. Conquistou a Terra com os seus olhos e os seus pés; muitas vezes, sem dúvida, de burro e a cavalo: muitas vezes, também, de barco. Pôde-se fixar o itinerário da sua viagem pelo Egipto, toda ela feita durante o período da inundação do Nilo. Subiu o vale do Nilo até Elefantina (Assuão), que é o limite extremo do Egipto antigo, próximo da primeira catarata. E isto representa um milhar de quilômetros. Do lado leste foi pelo menos até Babilônia — o que dá, a partir do mar Egeu, uns dois mil quilômetros, e talvez mais longe, até Susa. mas disso não há a certeza. No norte, visitou as colônias gregas construídas na orla da actual Ucrânia, no litoral do mar Negro. É provável que tenha subido o curso inferior de um dos grandes rios da estepe ucraniana, o Dniepre ou Borístenes, até à região de Kiev.

Enfim, no ocidente participou na fundação duma colônia grega na Itália do Sul. Visitou também a Cirenaica e sem dúvida a Tripolitânia actuais.
E pois um inquérito pessoal, um inquérito nos locais, que o nosso geógrafo empreende. Através da sua narrativa, incessantemente o ouvimos fazer pergun­tas, olhar coisas novas. Assim, no Egipto, entra na loja de um embalsamador e informa-se em pormenor sobre os processos do ofício e sobre o preço das operações. Nos templos, pede que lhe traduzam as incrições, interroga os sacerdotes sobre a história dos faraós. Assiste às festas religiosas do país [330] bebendo com os olhos a cor dos trajes e a forma dos penteados. Ao longo das pirâmides, mede a base a passo e, para as medidas que assim tira, não se engana. Mas quando tem de apreciar a altura a olho, engana-se em muito. E assim por aí fora, em todos os países aonde vai e naqueles aonde não vai, confiando nas narrativas dos viajantes gregos ou bárbaros que tenha podido encontrar em tal ou tal estalagem...

*

Mas basta de reflexões gerais. Heródoto é demasiado concreto para que eu possa comprazer-me nelas por mais tempo. Tentemos indicar os centros de interesse em que convirá deter a nossa preferência. Poderia ser, naturalmente, o Egipto, a respeito do qual é inesgotável. Mas estas histórias egípcias são demasiado conhecidas e eu prefiro levar mais longe o meu leitor. Distinguirei, pois, sem deixar completamente de lado o Egipto (a ele voltarei rapidamente no fim), três centros de interesse do nosso autor, o que não me impedirá de divagar um pouco, à sua maneira, para além deles; esses três países vêm a ser as principais terras cerealíferas da Antiguidade. Esta convergência, mesmo que tenha escapado a Heródoto, assinala claramente de que necessidades dos homens nasceu a ciência geográfica. Nasceu da fome, a atroz fome do mundo antigo, a fome que atirava para fora da sua terra ingrata, e sobretudo mal cultivada e mal distribuída, um dos mais miseráveis e dos mais activos dos
povos de então, o povo grego.

Estas três terras de cereal são o país dos Citas (a Ucrânia), a Mesopotâmia e a África do Norte. É com a ajuda destes três exemplos, e distinguindo nas explicações de Heródoto a parte de exactidão e a parte de erro (e a origem do erro), que vou tentar caracterizar o gênio próprio de Heródoto.

Porque se a geografia nasceu das necessidades do povo grego, nasceu também, como quase sempre, parece-me, no aparecimento de um novo gênero literário ou de uma ciência nova, de um gênio que parece caído do céu. Com isto não quero dizer que este nascimento do gênio seja inexplicável ou "miraculoso", mas apenas que, mesmo produzidas as condições que o permitem, esse nascimento não é de modo algum necessário: poderia não se produzir, e muitas vezes não se produz. Com o que sofrem a literatura e a ciência. [331]

*

Mas tomo à minha volta ao mundo e começo por Babilónia. Heródoto viu a grande cidade de Babilónia. A muralha, diz, é de forma quadrada. Indica a dimensão de um dos lados do quadrado, e esse número daria oitenta e cinco quilómetros para o perímetro, o que é muito exagerado. O perímetro de Babilónia mal atingia vinte quilómetros. Heródoto tem pelos grandes números um gosto de criança ou de meridional. Aliás, declara que no seu tempo essa muralha tinha sido arrasada por Dario. Mas havia restos ainda. Quer saber como era ela feita. Explicaram-lhe que fora construída de tijolos e que, em cada trinta camadas de tijolos, se pusera no betume que servia de ligação um leito de caniços entrelaçados. Ora, o sinal destes caniços, imprimidos no betume, é ainda visível nas ruínas actuais da muralha.

Heródoto descreve Babilónia como uma grande cidade. Era a maior que ele viu e a mais vasta, nessa época, do mundo antigo. Mostra-nos as grandes ruas direitas, que se cortam em ângulo recto. Admira as casas de três ou quatro andares, desconhecidas no seu país. Conhece a existência das duas muralhas paralelas construídas por Nabucodonosor. A espessura total deste duplo cinto era de uns trinta metros. Heródoto, desta vez aquém da realidade, fala em cerca de vinte e cinco metros. Dá cem portas à cidade: engana-se, é nas epopeias que as cidades têm cem portas. De resto, numa muralha parcialmente arrasada, como ele próprio indica, não as pôde contar.

Descreve também, com bastante exactidão, no santuário de Baal ou Bei, a alta torre que nele se eleva, com os seus oito andares sucessivos e a escada que sobe em espiral. Esta torre de Bei, que revive na nossa torre de Babel, conhecemo-la nós pelas escavações e pelos documentos babilónicos. A propó­sito da sala do último andar, Heródoto tem esta reflexão: "Os sacerdotes acrescentam que o deus vem em pessoa a esta capela. Mas não me parece de acreditar".

Heródoto tenta em seguida enumerar alguns dos reis e rainhas que reinaram em Babilónia. Fala de Semíramis, princesa babilónica que viveu nos séculos IX e VIII, atestada por uma inscrição, e que não é a lendária esposa de Nino, a Semíramis dos jardins suspensos, heroína de tragédias e óperas. Fala também duma outra rainha a quem chama Nitócris e que fez sobre o Eufrates, a montante de Babilónia, trabalhos de fortificação para proteger a cidade contra [332] a crescente ameaça dos Medas. Esta rainha Nitócris não é outra que o nosso rei Nabucodonosor. A forma persa do nome deste rei, que tem uma terminação feminina para o ouvido de um grego, induziu Heródoto em erro. Mas é exacto que esta Nitócris-Nabucodonosor construiu a norte de Babilônia, contra os Medas, diversas obras defensivas, entre as quais a bacia de Sipara, que tanto servia para a irrigação da região como para a defesa da capital.

Em contrapartida, segundo um documento cuneiforme, parece não ter havido cerco da Babilônia por Ciro, como o conta Heródoto numa narrativa que todos conhecem. À aproximação dos exércitos persas, rebentou na cidade uma revolução, e Ciro pôde fazer uma entrada triunfal. Mas Heródoto recolheu sem dúvida no local uma versão da queda de Babilônia mais favorável ao orgulho da grande cidade.

O nosso historiador tentou também informar-se sobre os vencedores e os novos senhores de Babilônia, os Persas. Certamente não foi nunca à Pérsia propriamente dita. isto é, a região de Persépolis e as montanhas do Irão. Também não pretende tê-lo feito. Mas nas estradas do império e nas estalagens de Babilônia (ou de Susa, se chegou até lá) não pôde deixar de encontrar e interrogar numerosos persas, e parece ter tentado comparar as informações de uns com as de outros. As informações que dá sobre a educação e a religião são, com diferenças de pormenor, consideradas exactas pelos historiadores modernos. Por mais sumário que seja o quadro que nos dá dos costumes dos Persas, Heródoto parecer ter entrevisto — não sem surpresa — o ambiente moral da civilização persa.

Sobre a educação, tem esta frase célebre e duma rigorosa exactidão: "Os Persas começam a educação dos seus filhos a partir dos cinco anos, e desta idade até aos vinte anos só lhes ensinam três coisas: montar a cavalo, disparar o arco e dizer a verdade". A religão dos Persas ensinava, com efeito, o amor da verdade, Nada podia impressionar mais um Grego que admirava as "irre­preensíveis mentiras" de Ulisses. Heródoto está igualmente informado sobre a religão de Ormuzd e de Ariman. Sabe que é proibido aos sacerdotes dos Persas matar os animais úteis como o cão, e outros que ele esquece, todos aqueles de que Ormuzd é o criador, ao passo que é acto meritório matar formigas e serpentes, criaturas de Anman.

Vê-se, por estes diversos exemplos, e se nos lembrarmos da recente invasão dos Medas e dos Persas na Grécia, que o termo "curiosidade", que [333] primeiro empreguei para caracterizar Heródoto, começa a tornar-se insuficiente. Esta curiosidade tornou-se espanto, admiração, quer se trate da velha cidade babilónica ou do ambiente moral da civilização persa, tão afastado do que era então o da Grécia. O mesmo som nos é dado pelo longo estudo de Heródoto sobre o Egipto e as suas maravilhas.

*

Antes de passar a outros povos, desejaria indicar a maneira como Heródoto representa a Terra. Vota ao ridículo os autores de Viagens à Volta do Mundo como Hecateu de Mileto, que davam à Terra a forma de um disco chato "perfeitamente circular, como se fosse feita ao torno, e envolvida pelo curso do rio Oceano". Contudo, Heródoto, nesta e noutras passagens, só protesta contra a existência de um rio chamado Oceano e contra a regularidade de um círculo perfeito que seria a forma da Terra. Mas também vê a Terra como um disco e não como uma esfera. A imagem que dela faz, senão perfeitamente circular, parece inclinar-se para a simetria do círculo.

A Ásia, habitada até à índia e prolongada por alguns desertos, é amputada da Indochina e da China: a África é cortada da sua parte meridional. O périplo dos Fenícios, no século VI, e o de Cílax, que é de 509, permitem-lhe decidir que a Ásia do Sul e a África do Sul são rodeadas de água. Ao norte destes dois continentes meridionais alonga-se até à Sibéria, "estendendo-se no sentido do comprimento pelo mesmo espaço que as duas outras partes da Terra", a Europa. Mas Heródoto não pode decidir se ao norte, ao noroeste e a leste esta Europa está rodeada de água.

Eis a passagem que se refere ao primeiro dos périplos que mencionei. Foi Necau II (a quem Heródoto chama Neco), faraó do século VI, que o ordenou: "Os Fenícios", escreve, "tendo embarcado no mar Eritreu (trata-se do golfo Arábico), navegaram pelo mar Austral (o oceano Índico). Quando vinha o Outono, abordavam à região da Líbia (a África) onde se encontravam e semeavam trigo. Esperavam depois o tempo da colheita; e, após as ceifas, voltavam ao mar. Tendo viajado durante dois anos, passaram no terceiro ano as colunas de Hércules e chegaram ao Egipto.

Contaram, no seu regresso, que [334] contornando a Líbia tinham visto o Sol à direita. Este facto não me parece crível; mas talvez outros acreditem." Heródoto, desta vez, faz mal em mostrar-se céptico. Com efeito, dobrando o cabo da Boa Esperança, os marinheiros viram, ao meio-dia, o Sol ao norte, à mão direita: isto porque se encontravam no hemisfério austral. Heródoto não sabe bastante de cosmografia para o compreender. Mas esta circunstância, que não podia ter sido inventada e que se recusa a admitir, garante-nos a autenticidade do périplo da África.

Vem depois, na sua narrativa, o périplo de Cílax, que permite decidir que a Ásia do Sul, como a África, é rodeada de água: "Embarcaram", escreve Heródoto, "em Castapira (cidade do Pendjab, situada sobre um afluente do médio Indo). Desceram o rio, na direcção do levante, até ao mar. (Este rio é o Indo. Será preciso dizer que não corre para leste e que Heródoto ou o confunde com o Ganges ou simplesmente erra?) Dali", continua, "navegando para poente, chegaram enfim, no trigésimo mês após a partida, ao mesmo porto onde os Fenícios de que já falei tinham em tempos embarcado, por ordem do rei do Egipto, para darem a volta à Líbia."

*

Falemos agora dos citas. Instalados desde os finais do século VIII nas estepes da Ucrânia, dos Cárpatos à curva do Dom (o Tánais de Heródoto), os Citas eram ainda, no século V, quase ignorados dos Gregos. O nosso viajante consagrou à descrição da terra e dos costumes uma parte importante da sua obra. Para fazer o seu inquérito, Heródoto dirigiu-se às cidades gregas das margens do mar Negro; fixou-se em Ólbia, a mais importante dessas praças de comércio, construída à entrada da região cita, no curso inferior do Dniepre. Não é impossível, como já disse, que, subindo com algum comboio o curso do rio, ele tenha atingido a região onde se encontravam, não longe de Kiev, as sepulturas dos reis citas que descreve com grande rigor.

Em todo o caso, a sua informação sobre os Citas parece segura. A pintura dos costumes só raramente apresenta traços lendários. As escavações das sepulturas (kurganes) da região — a exploração, entre outros, do sítio de Kul Oba, perto de Kertch — confirmaram o seu testemunho, no local exacto onde [335] podia ser confirmado. Quanto aos ritos e às crenças estranhas que anota com deleite, ainda recentemente foram encontrados em aglomerados do mesmo nível de civilização que tinham os Citas do tempo.

O que Heródoto salienta em primeiro lugar é o engenho dos Citas no domínio da resistência à invasão. Este engenho consiste em recuar diante do agressor, em não se deixarem alcançar por ele senão quando o querem, em arrastá-lo assim pelas vastas planuras até ao momento em que estiverem em condições de o combater. Nisto são ajudados não só pela natureza da região, que é uma vasta planície herbosa, mas também pelos grandes rios que a atravessam e que constituem excelentes linhas de resistência. Heródoto enumera estes rios e alguns dos seus afluentes, do Danúbio ao Dom. Há mesmo na sua enumeração um nome a mais.

Eis — porque é preciso escolher em matéria tão abundante — alguns pormenores sobre a adivinhação entre os Citas: "Quando o rei dos Citas adoece, manda chamar três dos mais célebres adivinhos que exercem a sua arte da maneira como contámos. Respondem, geralmente, que este ou aquele, de quem dizem o nome, jurou falso ao jurar pela morada real. Com efeito, os Citas juram pela morada real quando querem fazer o maior de todos os juramentos.

"Imediatamente deitam mão do acusado e o levam perante o rei. Aí os adivinhos declaram que ele havia feito um juramento falso jurando pela morada real, e que, assim, é ele a causa da doença do rei. O acusado nega o crime e indigna-se de que lhe atribuam. O rei manda então buscar duas vezes outros tantos adivinhos. Se estes acusam também o acusado de perjúrio pelas regras da adivinhação, cortam-lhe a cabeça imediatamente e os seus bens são con­fiscados em proveito dos primeiros adivinhos. Se os adivinhos que o rei convocou em segundo lugar o declaram inocente, mandam-se vir outros, e outros ainda; e se ele é ilibado da acusação pelo maior número a sentença que o absolve é também a sentença de morte para os primeiros adivinhos."

Vê-se que a questão da verdade da adivinhação é decidida por maioria de votantes. Heródoto prossegue:

"Eis como os fazem morrer. Enche-se de lenha miúda um carro a que se atrelam bois; metem-se os adivinhos no meio das achas, de pés atados, as mãos ligadas atrás das costas, e uma mordaça na boca. Deita-se fogo à lenha e espanta-se os bois. Alguns destes animais são quei­mados com os adivinhos; outros salvam-se meio queimados, quando as laba­redas consumiram o timão. É assim que se queimam os adivinhos, não só por [336] este crime, mas ainda por outras causas; e chamam-lhes falsos adivinhos. O rei manda matar os filhos machos de todos aqueles a quem pune de morte; mas não faz nenhum mal às raparigas."

O que mais impresiona em tais narrativas é a calma imperturbável com que Heródoto conta as piores crueldades.

Eis agora o que o nosso historiador nos conta dos túmulos dos reis citas:

"Os túmulos dos reis estão no cantão dos Gerrhenses (na região de Kiev, ao que parece), no local onde o Borístenes começa a ser navegável. Quando o rei morre, fazem nesse lugar uma grande fossa quadrada. Acabada a fossa, untam o corpo de cera; o ventre, previamente aberto e esvaziado das entranhas, é cheio de junça cortada, de perfumes, de sementes de aipo e de anis, e outra vez cosido. Transporta-se em seguida o corpo num carro para outra província, cujos habitantes, como os precedentes, cortam um pouco a orelha, raspam os cabelos à volta da cabeça, fazem incisões nos braços, arranham a testa e o nariz, e espetam flechas através da mão esquerda. Dali leva-se o corpo do rei no seu carro para outra província dos Estados, e os habitantes daquela aonde fora primeiramente levado seguem o cortejo. Quando assim o fizeram percorrer todos os aglomerados submetidos à sua obediência, chega ao país dos Gerrhenses, na extremidade da Cítia, e colocam-no no lugar da sepultura, sobre um leito de verdura. Espetam-se, em seguida, lanças de um lado e do outro do corpo e sobre elas traves de madeira, que se cobrem de canas entralaçadas. Na câmara funerária assim preparada, colocam-se, depois de terem sido estrangulados, uma das concubinas do rei, o seu copeiro, um cozinheiro, um escudeiro, um servo, um correio, cavalos, numa palavra, algumas amostras de tudo quanto ele usava, finalmente taças de ouro (nenhuma prata e nenhum cobre). Feito isto, enchem a fossa de terra, e todos trabalham, à porfia, para erguer, no lugar da sepultura, um cômoro muito alto."

Nos numerosos kurganes explorados na Rússia meridional, encontraram muitos esqueletos humanos, ossadas de cavalos e uma profusão de objectos de ouro. No ano de 920, um árabe, chamado Ibn Foszlan. diz-nos que os ritos funerários descritos por Heródoto estavam ainda em uso pelos chefes dos aglomerados ucranianos. Este viajante árabe viu queimar, ao mesmo tempo que o senhor, uma das suas concubinas, previamente estrangulada.

Depois, passado um ano, recomeça-se a cerimônia, mas estrangulando, desta vez. cinquenta dos servidores mais preciosos do rei, assim como um número igual de cavalos. Estes cinquenta servidores são empalados, sobre os cinquenta cavalos igualmente empalados, em círculo em volta do túmulo. Uma [337] vez que eram colocados fora dos túmulos, não foram nunca encontrados estes troféus. O evidente prazer que Heródoto mostra ao contar sem vacilação tais histórias, é um dos traços distintivos da civilização grega. Não é apenas pelos aspectos nobres da sua natureza que os Gregos se sentem próximos dos outros homens, é por todos os aspectos ao mesmo tempo. Os mais cruéis não são os menos importantes. O seu humanismo não é de sentido único — o sentido do idealismo.

*

Após os Citas, Heródoto enumera as nações que ao sul, ao norte, a leste e a oeste ladeiam o domínio cita. Da maior parte delas, salvo talvez dos Getas. na embocadura do Danúbio, ou dos Tauros, na actual Crimeia. só fala por outiva. A maior parte da sua informação vem-lhe dos traficantes gregos que do Danúbio ao Volga percorriam a terra ucraniana, comprando os cereais, as peles, os escravos, vendendo, nos seus belos vasos pintados, o azeite e o vinho, e por vezes a bugiaria dos bazares egípcios. A narrativa de Heródoto, nesta parte dos seus Inquéritos, apresenta reservas, mas dá por vezes uma informação sugestiva.

Eis os Neuros: "Estes Neuros dão todo o ar de serem bruxos. A acreditar nos Citas, ou nos gregos instalados na Cítia, cada neuro transforma-se uma vez por ano em lobo e assim fica por alguns dias, retomando depois a sua primeira forma. Por mais que os Citas me digam, não me farão acreditar em tais histórias; mas eles não querem ceder e afirmam-no sob juramento."

Eis o caso — mais esclarecido — dos Andrófagos: "Não há homens de costumes mais selvagens que os Andrófagos. Não conhecem nem leis nem justiça; são nómadas; os seus trajos parecem-se com os dos Citas; têm uma língua própria. De todos os povos de que acabo de falar, são os únicos que comem carne humana." A indicação a respeito da língua permite supor que este povo andrófago era de raça finesa. E a verdade é que se sabe que os Finlandeses praticaram o canibalismo até à Idade Média.

Para além dos Citas, dos Neuros, dos Andrófagos e de muitos outros, sempre mais para leste e sempre mais para norte, Heródoto sabe que a Terra
[338] continua a ser povoada e que, em vez do mar esperado, se erguem na planície altas montanhas, que nos é permitido identificar com o Ural. A informação do nosso cronista rarifica-se, ou antes, à medida que aumenta a distância, juntam-se a ela traços fabulosos. Contudo, Heródoto opera a sua escolha à maneira costumada, relatando tudo, mas assinalando ao leitor o limite que a sua credudidade se recusa decididamente a atravessar.

"No sopé destas montanhas", escreve ele, "habitam povos de quem se diz serem todos calvos de nascença; diz-se também que têm o nariz achatado e o queixo proeminente." A descrição destes homens ditos "calvos" (com o que Heródoto quer dizer de pouco cabelo) faz pensar nos Calmucos. Mais adiante: "Vivem do fruto duma espécie de árvore que é pouco mais ou menos do tamanho da figueira e que dá um fruto de caroço, da grossura da fava. Quando este fruto está maduro, esmagam-no num bocado de pano e espremem dele, assim, um sumo negro e espesso a que chamam "aschy". Bebem-no misturado com leite." Aschy é o nome da bebida nacional dos Tártaros de Kazan. Os Calmucos utilizam ainda a cereja selvagem da maneira descrita por Heródoto. É provável que a árvore de que se trata seja a cerejeira, desconhecida na Europa nessa data.

"Conhece-se pois todo este país até ao dos homens calvos, mas nada se pode dizer de certo da região que se encontra mais ao norte." É montanhosa, segundo Heródoto, que ouviu dizer que estas montanhas eram habitadas por homens com pés de cabra (maneira de designar homens hábeis a trepar). Heródoto acrescenta: "Mas isto não me parece merecer nenhuma espécie de crença. Dizem também que se formos mais longe ainda, encontramos outros povos que dormem seis meses no ano. Por mim, não posso acreditar. E contudo há aqui sem dúvida um conhecimento confuso da longa noite polar.

Um dos caracteres de todos os países enumerados a partir dos Citas é, para Heródoto, o frio, que segundo ele começa no Bósforo cimério (o estreito entre o mar de Azov e o mar Negro). Escreve ele: "Nestes países, o Inverno é tão rude e o frio tão insuportável durante oito meses inteiros, que deitando água no chão ela não faz lama: só acendendo lume se obtém lama. O próprio mar gela neste terrível clima, assim como o Bósforo cimério; e os Citas do Quersoneso (a Crimeia) passam exércitos sobre o gelo e por ele conduzem os seus carros até ao país dos Sindos (o Kuban). O Inverno continua assim por oito meses completos; nos outros quatro meses também faz frio. (Erro: os Verões são ardentes na Rússia.) O Inverno, nestas regiões, é muito diferente [339] do dos outros países. Chove tão pouco nesta estação, que nem vale a pena falar; e no Verão a chuva não pára de cair. Não troveja no tempo em que noutros lados troveja; mas no Verão é muito frequente o trovão. Se se ouve no Inverno, olham-no como um prodígio." Na Grécia, é na Primavera e no Outono, por vezes no Inverno, que rebentam as tempestades, nunca no Verão. Daí o reparo de Heródoto.

Mais adiante, uma reflexão de bom senso:

"Quanto às penas, de que os Citas dizem que o ar está de tal maneira cheio que nada se pode distinguir nem se pode penetrar no continente mais para diante, eis a minha opinião. Neva constantemente nas regiões situadas acima da Cítia; mas verosimilmente menos no Verão que no Inverno. Quem quer que tenha visto de perto a neve cair em grossos flocos, compreende facilmente o que eu quero dizer. Ela parece-se. realmente, com penas. Penso pois que esta parte do continente, que está ao norte, é inabitável por causa dos grandes frios, e que quando os Citas e os seus vizinhos falam de penas fazem-no por comparação com a neve."

*

Entretanto, deixando o Norte, Heródoto leva-nos consigo até às extremidades meridionais da Ásia. Estas regiões do extremo sul dos continentes, segundo o nosso autor, são as dos mais preciosos recursos da natureza. As índias são a terra do ouro, a Arábia o país dos perfumes. Aqui, mais ainda que pelos costumes dos habitantes, Heródoto interessa-se pela colheita dos mais brilhantes sinais da riqueza que do Oriente fabuloso chegaram até à Grécia. Bens tão raros como o ouro e os perfumes só podem ser recolhidos de maneira maravi­lhosa. Formigas gigantes, aves de lenda, serpentes aladas, toda uma história natural que nasce, ainda fantástica, empresta ao autor o seu perigoso concurso. Não falarei, aliás, senão numa das maneiras de recolher o ouro, deixando de lado as outras, assim como a colheita igualmente fabulosa dos perfumes.

"Há", escreve Heródoto, "a leste da Índia, sítios que as areias tornam inabitáveis. Encontram-se nesses desertos formigas mais pequenas que um cão, mas maiores que uma raposa." Estas formigas parecem ter sido marmotas. Os Indianos chamaram "formigas" às marmotas porque elas escavavam o solo. [340] O Mahabharata dá ao ouro em pó o nome de ouro de formiga. E também acontece, diz-se, encontrar-se pó de ouro nos formigueiros da região. Estes factos, misturados e mal compreendidos, deram lugar à história que Heródoto vai contar e que, depois dele, se repete e se enriquece de novos pormenores até ao fim da Idade Média.

"Estas formigas preparam, debaixo da terra, um alojamento, e, para o fazer, empurram para cima a terra, da mesma maneira que as nossas formigas comuns, com que aliás se assemelham exactamente; e a areia que elas levantam está cheia de ouro. Vão os Indianos recolher esta areia nos desertos. Atrelam juntos três camelos: põem um macho de cada lado, preso por meio de um loro, e, entre os dois, uma fêmea, montada pelos condutores. Mas têm o cuidado de só se servirem daquelas que estão amamentando: tiram-nas aos filhos quando ainda os estão aleitando...
"Não farei aqui a descrição do camelo: os Gregos conhecem-no. Direi apenas isto, que eles ignoram: as patas posteriores do camelo têm cada uma duas coxas e dois joelhos." Singular anatomia! Os amigos de Heródoto e do camelo consideram-na, no entanto, desculpável. O metatarso, dizem, é tão longo no camelo que o calcanhar parece um segundo joelho, o que leva a supor duas coxas. Além disso, quando o camelo se ajoelha, dobra sob ele um tal comprimento de perna que é fácil perdermo-nos.

"Tendo assim atrelado os camelos, os Indianos, mal chegam aos lugares onde se encontra o ouro, enchem de areia os pequenos sacos que levaram e retiram-se com toda a diligência. Porque, a acreditar nos Persas, as formigas, advertidas pelo olfacto, perseguem-nos imediatamente. Não há, dizem eles, animal tão rápido na carreira; e se os Indianos não ganhassem avanço enquanto elas se reúnem, não escaparia um só. É também por isso que quando os camelos machos, que não correm tão depressa como as fêmeas, começam a cansar-se, eles os desatrelam, primeiro um, depois o outro, e não ambos ao mesmo tempo." Entenda-se que os camelos machos foram levados apenas para retardar a perseguição das formigas; são largados, em dois tempos, no momento de serem alcançados. As formigas param para os devorar. O texto de Heródoto, que apenas sugere esta explicação, apresenta talvez aqui uma lacuna.

Eis, nas páginas sobre a Arábia, curiosas reflexões sobre a fecundidade relativa das espécies animais. "Os Árabes dizem também que a terra inteira estaria cheia de serpentes se lhes não acontecesse a mesma coisa que eu sabia acontecer às víboras. Foi a providência divina, cuja sabedoria quis, como é de [341] crer, que todos os animais tímidos e votados a ser comidos fossem muito fecundos, não fosse o grande consumo destruir a espécie, e que, pelo contrário, todos os animais nocivos e ferozes fossem muito menos fecundos." Esta argumentação pode basear-se no papel que Anaxágoras ou antes dele Xenófanes atribuíam à Inteligência no governo do universo. Mas Heródoto é o primeiro a desenvolver esta curiosa visão finalista do mundo vivo. O historiador continua: "A lebre encontra inimigos por toda a parte: os animais, as aves, os homens fazem-lhe guerra. Por isso este animal é extremamente fecundo. A sua fêmea é, de todos os animais, a única que concebe, embora já prenhe, e que traz, ao mesmo tempo, filhos já cobertos de pêlo, outros que o não têm ainda e outros que se estão formando, e tudo isto enquanto concebe."

Aristóteles não deixa de reproduzir a história da tripla superfetação da coelha brava e de acrescentar novos pormenores. Mas eis agora o nascimento do leão: "A leoa, pelo contrário, esse animal tão forte e tão feroz, só produz uma vez na vida e apenas um filho: porque ela lança a matriz ao mesmo tempo que o fruto. Eis a explicação deste facto: logo que o leãozinho começa a mexer-se no ventre da mãe, como tem as garras mais agudas que qualquer outro animal, rasga-lhe a matriz: e quanto mais cresce, mais profundamente a lacera. Por fim, quando a leoa está prestes a parir, nada resta de são." Heródoto esquece-se de nos explicar como a divina providência se arranjou, neste sistema, para perpetuar a espécie dos leões. A aritmética o impediria.

Mais adiante: "Se pois as víboras e as serpentes voadoras da Arábia nascessem da maneira que a natureza prescreve às outras serpentes (isto é, muito simplesmente, de um ovo) a vida na Terra não seria possível para o homem. Mas, quando se juntam, a fêmea, no momento da emissão, fila o macho pela garganta, agarra-se-lhe com força, e não o larga enquanto o não acaba de devorar. Assim perece o macho. Mas a fêmea recebe o castigo. Os filhos, quando estão prestes a sair, roem-lhe a matriz e o ventre, abrem passagem, e desta maneira vingam a morte do pai." Clitemnestra — essa víbora, diz Esquilo — assassina Agamémnon. Com a morte da mãe. Orestes vinga a morte do pai. Heródoto leu ou viu a Oréstia. Parece escrever a Oréstia das víboras.

Vê-se que as maravilhas se multiplicam nos confins do mundo. Mas estas narrativas lendárias seriam fatigantes. Prefiro relatar alguns traços da pintura que Heródoto faz de um dos povos da África do Norte. [342]

*

Heródoto não percorreu a África do Norte. Da muito grega cidade de Cirene, fez algumas incursões pelo deserto da Líbia e pela Tripolitânia. Inter­rogando em Cirene e mesmo no Egipto muita gente acerca destas regiões desconhecidas, tentou alargar o seu conhecimento do mundo a essas vastas extensões que, do Egipto a Gibraltar, dos Sirtes ao lago Chade, de Cartago ao Senegal, são frequentadas por nómadas, povoadas de feras, alongadas em desertos, salpicadas de miraculosos oásis. Heródoto parece ter também consul­tado diários de bordo de navegadores de Samos, de Rodes e da Fócia, que tinham percorrido o litoral africano e descrito as populações costeiras. Conseguiu traçar da África do Norte um quadro que, embora feito de pormenores muitas vezes extravagantes, é mais amplo e mais exacto do que se esperaria.

Heródoto conhece um grande número de povos da região costeira da África. Descreve os seus costumes, ora os das tribos berberes, ora os dos Tuaregues. Relatarei apenas o que ele diz dos Nasamons.

"Mais a ocidente encontram-se os Nasamons (que habitavam a leste e ao sul da Grande Sirte), povo numeroso. No Verão, os Nasamons deixam os rebanhos na costa e dirigem-se a um certo cantão chamado Augila, para aí colherem tâmaras. (O oásis de Augila, hoje Audjila, é um grande centro da colheita de tâmaras, na rota das caravanas que vão da Cirenaica ao Fezzan.) As palmeiras crescem ali em abundância, são belas, e todas frutificam. Os Nasamons vão à caça dos gafanhotos, fazem-nos secar ao sol; e, tendo-os reduzido a pó, misturam-no ao leite, que depois bebem. (Os Tuaregues comem gafanhotos secos e reduzidos a pó.) Costumam ter cada um deles várias mulheres e gozam delas em família. Espetam simplesmente um pau diante deles e unem-se a elas. Quando um nasamon se casa pela primeira vez, a noiva, na noite de núpcias, concede os seus favores a todos os convivas e cada um lhe faz um presente que trouxe de suas casas."

A poliandria (ligada aqui à poligamia) foi praticada "em família" por muitos povos da Antiguidade, em Esparta, entre outros.

Investigando em Cirene a respeito das fontes do Nilo, Heródoto conta dos Nasamons esta história durante muito tempo tida por suspeita: "Eis o que eu soube de alguns cirenaicos que, tendo ido consultar, ao que me disseram, o oráculo de Zeus Ámon, tiveram uma conversa com Etearco, rei dos Amónios. [343]

Insensivelmente a conversa foi cair nas fontes do Nilo e alguém pretendeu que elas eram desconhecidas. Etearco contou-lhes então que um dia alguns nasimons chegaram à sua corte. Tendo-lhes perguntado se tinham alguma infor­mação inédita a dar-lhe sobre os desertos da Líbia, responderam que, entre famílias mais poderosas da sua terra, alguns jovens chegados à idade viril e cheios de arrebatamento, imaginaram tirar à sorte cinco deles para irem reconhecer os desertos da Líbia e tentar penetrar mais adiante do que até então se fizera. Esses jovens, enviados pelos seus camaradas com boas provisões de água e víveres, percorreram primeiro países habitados; em seguida, chegaram a um país cheio de animais ferozes; dali, continuando para ocidente a sua rota. através dos desertos, viram, após terem percorrido durante muito tempo vastas extensões de areia, uma planície onde havia árvores. Aproximando-se puseram-se a colher os frutos dessas árvores. Enquanto os colhiam, caíram sobre eles homenzinhos de tamanho muito abaixo da média e levaram-nos à força. Os Nasamons não percebiam a língua deles, e estes homenzinhos não compreendiam, nada dos Nasamons. Levaram-nos através de grandes pântanos, à saída dos quais chegaram a uma cidade cujos habitantes eram negros e do mesmo tamanho daqueles que ali os tinham conduzido. Um grande rio, no qual havia crocodilos, corria junto da cidade, de oeste para leste." Esta narrativa por muito tempo considerada como testemunho da credulidade de Heródoto, sobre­tudo por causa dos "homenzinhos", que eram relegados para o país das fábulas, tornou-se plausível pelos exploradores da África equatorial, na segunda metade do século XIX. Sabe-se com efeito agora que existem nessas regiões povos anões, os Negrilhos. Não é impossível que indígenas da Tripolitânia tenham atravessado o deserto, do oásis de Fezzan à grande curva do Níger Heródoto, aqui, tomou o Níger pelo Nilo superior.

*

De todos os países que Heródoto percorreu, o Egipto é certamente aquele que realizava melhor a existência duma história e duma geografia que ele queria, ao mesmo tempo, verdadeiras e maravilhosas. Não há ali nada que não exceda a sua expectativa, que não responda ao apelo mais extravagante da sua imaginação. E contudo é um Egipto que ele vê e toca. E assim voltamos ao Egipto. [344]

Uma história algumas vezes milenária, rica de uma floração de contos inauditos e que ele ainda enfeita porque compreende mal as narrativas dos seus intérpretes mentirosos. Testemunhos esplendorosos dessa história: estátuas colossais, monumentos de uma altura que bate de longe todos os recordes do seu jovem povo grego. The greatest in the world é a forma mais natural da admiração de Heródoto.

E, depois, um rio que é um prodígio: para um grego que não conhece mais que ribeiras engrossadas pelas tempestades primaveris, torrentes meio esgotadas durante os meses de Verão, o Nilo, com o enigma das suas cheias regulares e fertilizantes, com o mistério das suas fontes desconhecidas e muito mais longínquas do que Heródoto pode sequer conceber, não só prende singu­larmente o historiador, como lança um desafio à sua avidez de compreender. Heródoto aceita o desafio. Obstina-se em desvendar o duplo enigma das fontes e das cheias do Nilo.

Empenha-se no problema da formação geológica do vale do Nilo. É certo que dispõe de factos insuficientes para conduzir um raciocínio que se desejaria rigoroso. Tem o ar, criticando as hipóteses dos seus predeces­sores, de raciocinar por vezes como uma criança. Mas como é inteligente esta criança! Pouco importa que, no resultado do seu inquérito, acerte ou não: a sua tenacidade em interrogar o mistério, em decifrar o enigma, é a mais bela das promessas.

Há também do Egipto uma multidão de animais estranhos e sagrados que estimulam a curiosidade de Heródoto. Adora erguer bestiários. O que o inte­ressa nesta fauna exótica é, em parte, a estranheza da sua aparência e do seu comportamento, é, mais ainda, a natureza da sociedade que o homem ligou com o animal. Sociedade muito mais íntima no Egipto que na Grécia, e que impõe ao homem singulares obrigações. Heródoto interroga o pacto concluído pelo Egípcio com o gato, o íbis ou o crocodilo, e o seu inquérito abre-lhe, não sobre o animal, mas sobre o homem, claridades surpreendentes. O seu bestiário egípcio não é pois apenas uma página de história natural antecipada — em parte recopiada, incluindo os erros, por Aristóteles. É, acima de tudo, uma pagina de etnografia, uma página de geografia humana do povo egípcio.

Uma última categoria de factos impressionou e deteve o viajante. Sabe-se que Heródoto a nada ama mais que a singularidade dos costumes. Com prazer extremo, recolhe uma multidão de ritos singulares. Nada, de resto, o choca ou [345] o indigna neste transbordamento do insólito. O inverso de um uso grego seduz ainda mais este espírito sempre disponível. Por um momento, compraz-se em compor uma imagem do Egipto, a imagem de um país "ao contrário", como em certos contos populares se encontra ou no Erewhon de Samuel Butler.

O seu quadro do Egipto, tão barroco, e por mais incompleto que seja, e contudo confirmado, na maior parte dos pormenores, pelos historiadores modernos, ou pelo menos considerado por eles como verosímil.

Alguns exemplos? Retomando uma frase de um outro viajante do Egipto (Hecateu de Mileto), Heródoto declara:

"Todo o homem judicioso que se dirija ao Egipto por mar notará que o país que aborda é um presente do Nilo. Fará o mesmo juízo a respeito da região que se estende a montante do lago Moeris, até três dias de navegação, ainda que os meus informadores nada me tenham dito de semelhante: é um outro presente do rio. A natureza do Egipto é tal, que se para lá fordes por mar, estando ainda a um dia das suas costas, e se lançardes a sonda ao mar, dele recolhereis lodo e havereis apenas onze braças de profundidade: isto prova manifestamente que o rio transportou terra ate àquela distância."

Mais adiante, Heródoto precisa o seu pensamento:

"Há na Arábia, não longe do Egipto, um golfo comprido e estreito que parte do mar Eritreu (o mar Vermelho). Do fundo deste golfo ao mar largo, são precisos quarenta dias de navegação para uma nave a remos. Na sua maior largura, não tem mais que meio dia de navegação. Todos os dias há nele fluxo e refluxo. Pois eu penso que o Egipto era um outro golfo mais ou menos parecido com este: que este golfo partia do mar do Norte (o Mediterrâneo) e se estendia para a Etiópia, enquanto que o golfo Arábico ia do mar do Sul para a Síria; e que sendo estes dois golfos apenas separados por um pequeno espaço, pouco faltaria para que eles se juntassem, depois de nele abrir um canal. Se o Nilo viesse a mudar de curso e fosse lançar-se no golfo Arábico, quem impediria que em vinte mil anos viesse a enchê-lo com o lodo que constantemente carreia? Por mim, creio que o conseguiria em menos de dez mil anos. Bem poderia pois o golfo egípcio de que falo, ou outro ainda maior, no espaço de tempo que precedeu o meu nascimento, ser preenchido pela acção de um rio tão grande e tão capaz de operar tais transformações."

E continua:

"Não me custa pois a crer o que me disseram do Egipto (isto é, que o vale do Nilo é um golfo atulhado); e eu próprio penso que as coisas são certamente assim, vendo que o rio avança pelo mar em relação às terras [346] adjacentes; que se encontram conchas nas montanhas; que dele sai um vapor salgado que corrói até as pirâmides, e que a montanha que se alonga acima de Mênfis é o único sítio deste país onde há areia. Acrescente-se que o Egipto em nada se parece nem com a Arábia que lhe é contígua, nem com a Líbia, nem mesmo com a Síria... O solo do Egipto é de terra negra e friável, como tendo sido formado pelo lodo que o Nilo trouxe da Etiópia e que ali acumulou nas suas inundações, ao passo que a terra da Líbia é mais avermelhada e arenosa, e que a Arábia e a Síria são feitas duma argila sob a qual se encontra a rocha."

Esta hipótese de Heródoto sobre a formação geológica do Egipto é exacta — salvo no que respeita ao número de anos de que o Nilo precisou para a operar. As observações de Heródoto sobre o litoral, as conchas, as eflorescências salinas são igualmente exactas. A areia é contudo muito mais abundante do que ele diz.

Outro exemplo: a famosa descrição do crocodilo.

"Passemos ao crocodilo e às particularidades da sua natureza. Não come durante os quatro meses mais ásperos do Inverno. É um animal de quatro patas, e vive tão bem sobre a terra firme como nas águas tranquilas. É sobre o solo que põe os ovos e os faz eclodir. Passa em seco a maior parte do dia, mas no rio a noite inteira; porque a água é então mais quente que o ar e o orvalho. De todos os animais que conhecemos, nenhum se toma tão grande depois de ter sido tão pequeno. Os seus ovos, com efeito, não são maiores que os dos gansos, e o animal que deles sai é proporcional ao ovo; mas insensivelmente cresce e chega a dezassete côvados, e mesmo mais. Tem olhos de porco, dentes salientes, e de compri­mento proporcionado ao seu tamanho. É o único animal que não tem língua; não move a mandíbula inferior e é também o único que aproxima a mandíbula superior da inferior. Tem garras muito fortes; e a sua pele é de tal maneira escamosa que forma sobre o dorso uma carapaça impenetrável. O crocodilo, dentro de água, não vê, mas ao ar livre tem a mais aguda vista que se conhece. Como vive na água, tem o interior da goela cheio de sanguessugas. Todos os outros quadrúpedes e todos os pássaros fogem dele: só vive em paz com o troquilo, por causa dos serviços que dele recebe. Quando o crocodilo repousa em terra ao sair da água, tem o costume de se voltar quase sempre para o lado donde sopra o zéfiro e de manter a goela aberta: o troquilo, entrando então na goela dele, come as sanguessugas; e o crocodilo experimenta tanto prazer em sentir-se aliviado, que não lhe faz mal." [347]

Há, nesta descrição, dois erros principais, sem falar do número de dezassete côvados, que é exagerado, embora existam ainda hoje, mais ao sul que no Egipto, espécies que atingem seis metros. Mas dezassete côvados fazem oito metros: um crocodilo deste tamanho é um monstro improvável. Quanto aos dois erros, são os seguintes. O crocodilo não é privado de língua; é verdade que a língua é muito pequena e tão aderente que o crocodilo não pode mostrá-la. Outro erro: é a mandíbula inferior, e não a superior, que é articulada. Heródoto enganou-se porque o animal, deixando a mandíbula inferior descansar no solo e levantando a cabeça para abocar, parece, com efeito, fazer mexer a mandíbula superior. Nem quanto à língua nem quanto à mandíbula achou Heródoto necessário verificar de perto! No que respeita ao troquilo, é uma espécie de tarambola. Segundo testemunhas oculares, esta ave desembaraça o crocodilo, senão das sanguessugas, pelo menos dos pequenos animais que se lhe introduziram na goela.

Outro exemplo animal: "Há no Egipto uma ave sagrada, a que chama-se fénix. Só a vi em pintura; raramente é vista; e, a acreditar nos Heliopolitanos, só aparece na região todos os quinhentos anos, quando lhe morre o pai. Se se assemelha ao seu retrato..."

Admire-se aqui a prudência e a honestidade de Heródoto! Só "em pintura viu a fénix... Ao descrever esta ave fabulosa, não o apanham em flagrante delito de mentira.

Ultima história egípcia: um conto popular sobre um rei lendário:

"Con­taram-me os padres que depois da morte de Sesóstris seu filho Féron subiu ao trono. Este príncipe não fez nenhuma expedição militar; mas cegou nas seguintes cicunstâncias. O Nilo nesse tempo enchera muito; a cheia era de dezoito côvados, submergindo todos os campos. Além disso, levantou-se um vente impetuoso que agitou as ondas com violência. Então Féron, com louca temeri­dade, tomou um dardo e atirou-o ao meio do turbilhão das águas. Logo os seus olhos foram feridos de um mal súbito, e ele ficou cego. Esteve dez anos neste estado. No décimo primeiro ano, trouxeram-lhe a resposta do oráculo de Buto. que lhe anunciava que o tempo prescrito para o seu castigo tinha expirado e que ele recobraria a vista lavando os olhos com a urina de uma mulher que não tivesse nunca conhecido outro homem que não fosse o marido. Féron tentou primeiro com a urina da sua própria mulher; mas como não via mais do que via antes, serviu-se sucessivamente da urina de muitas outras mulheres. Tendo enfim recobrado a vista, fez reunir numa cidade que hoje se chama Eritrébolos [348] todas as mulheres assim postas à prova, excepto aquela cuja urina lhe tinha restituído a vista, e tendo-as feito queimar todas com a própria cidade, casou com aquela que contribuirá para a sua cura."

Larcher, o excelente tradutor de Heródoto — a quem fui buscar todas as citações deste capítulo, com raros retoques, e cuja língua arcaica dá excelen­temente o velho jónio de Heródoto — anota assim esta passagem: "Pode-se concluir (desta história) que a corrupção dos costumes tinha sido levada a um alto grau no Egipto. Já não custa a compreender a sábia precaução que tomou Abraão ao entrar neste país, e o excesso de impudência com que se comportou a mulher de Putifar em relação a José." A sábia precaução de Abraão, a que Larcher alude, foi fazer passar sua mulher por irmã. Assegurava assim a sua honra de marido: e a bela Sara podia passar para os braços do faraó, tirando daí o "irmão" importantes vantagens. De Heródoto e do seu tradutor, qual é o mais ingénuo?, e qual é o mais moral?

*

Quereria terminar citando uma página de Heródoto que me parece poder servir de conclusão a tantos exemplos — uma página sobre o tema da diversi­dade dos costumes. Este tema é familiar ao historiador. Justifica o seu longo inquérito. O conhecimento da diversidade dos costumes enche o espírito de espanto: sedu-lo e diverte-o. Mas faz também muito mais. Enquanto que sobre o pensamento de cada povo, preso ao uso que pratica, o costume pesa como um jugo, o conhecimento do conjunto dos costumes, na sua variedade infinita e contraditória, é, nas mãos do historiador, um instrumento de libertação do espírito. Eis as reflexões de Heródoto:

"Se fosse proposto a todos os homens fazer uma escolha entre as melhores leis que se observam nos diversos países, é manifesto que, após um exame meditado, cada um se determinaria pela da sua pátria; de tal maneira é verdade que cada homem está persuadido de que não há outra mais bela. É claro, pois, que só um insensato fará disto assunto de gracejos."

Que todos os homens se encontrem nestes sentimentos que tocam aos seus próprios usos, é uma verdade que se pode confirmar por alguns exemplos, [349] e entre outros por este. Um dia, Dario, dirgindo-se aos gregos da sua roda, perguntou-lhes por que soma poderiam eles decidir-se a comer os próprios pais, uma vez mortos. Todos responderam que nunca o fariam, fosse qual fosse o dinheiro que lhes dessem. Mandou ele então vir esses indianos a quem chamam Calatios, que têm o costume de comer os parentes: e perguntou-lhes, na presença dos gregos, a quem um intérprete explicava tudo o que se dizia de um lado e outro, que soma de dinheiro poderia levá-los a queimar os pais, apos a morte destes. Os indianos, soltando exclamações perante esta pergunta, rogaram-lhe que não lhes falasse linguagem tão odiosa. Tal é a força do costume.

"Por isso nada me parece mais verdadeiro que esta frase que se encontra nos poemas de Píndaro: "O costume é o rei do mundo."

Ao ler estas reflexões, não julgaríamos estar lendo uma página de Montaigne. [350]

História - Civilização Grega
Sociedade - Artes, Literatura
6/26/2021 5:11:03 PM | Por André Bonnard
Píndaro, príncipe dos poetas e poeta dos príncipes

Não tarda muito, receio-o bem, que Píndaro apenas seja acessível a poucos helenistas especializados. Este "cantor dos cocheiros e dos combates de murro", como dizia Voltaire, injuriosamente e inexactamente, escolhendo para qualificar este poeta de gênio as palavras mais baixas que pensava poderem ser-lhe aplicadas, este grande lírico a quem as vitórias desportivas impelem, não seria hoje capaz de levantar o entusiasmo das multidões, mesmo quando as mãos e a virtude dos pés reconquistaram o lugar que tinham há muito lempo perdido no favor dos povos.

Teria podido, nesta obra onde tudo procede da escolha — aventurosa ou calculada —, "esquecer" Píndaro, como esqueci, como esquecerei muitos outros espíritos de envergadura igual à sua. Várias razões me detiveram. Não quis limitar quase inteiramente esta obra a alguns aspectos da civilização jônia ou ateniense. Quis também tocar nesses altos valores poéticos que o resto da Grécia produziu, nomeadamente as regiões que permaneceram fiéis ao regime aristocrático. Quis prestar justiça à Grécia dória, de que Espárta e Tebas são cabeça. Por outro lado, não consenti em recusar aos meus leitores o extremo prazer de amar, à maneira entusiasta de Ronsard, a cintilante poesia de Píndaro. Este poeta deslumbrante é, com Ésquilo e Aristófanes, um dos três mestres, um dos príncipes do verbo poético grego (intraduzível, naturalmente). Finalmente, este poeta, cujo estranho ofício consiste em celebrar por meio de coros as vitórias desportivas, foi colocado, por esse ofício mesmo, em relação com grandes personagens da sua época, Híeron, tirano de Siracusa, Téron, [305] tirano de Agrigento, Arcesilau, rei de Cirene. Viveu na corte deles, foi conselheiro e amigo. Conselheiro de uma rara independência, mesmo quando elogia, amigo capaz de dizer a verdade ao príncipe a quem celebra: espectáculo cheio de grandeza!

Como entrar na obra de um tal poeta? Não há outro meio de o compreender senão apanhá-lo ao nível do ofício que exerce, em algumas odes determinadas, vê-lo misturar numa "bela desordem" aparente, que não é mais que uma ordem paradoxal mas construída, os temas míticos da epopeia, que trata à sua maneira própria, os temas que vai buscar à didáctica hesiodiana ou à dos outros velhos poetas, os temas que extrai da efusão lírica em que nos fala de si mesmo e da sua poesia. Compreendê-lo, é, enfim, aproximar-nos dele. tanto quanto é possível num comentário noutra língua, numa expressão verbal estranha, ao mesmo tempo muito indirecta e a mais directa que existe, no estilo prodigiosa­mente mas naturalmente metafórico que é o seu.

Eis pois algumas dessas odes. Vêr-se-á que são compostas e, se assim se pode dizer, deduzidas de algumas proposições simples, rigorosamente mas subtilmente encadeadas.

*

A primeira ode triunfal que escreveu, a décima pítica, não sendo uma das suas obras-primas, deve ser fixada, porque nela vemos já todo o Píndaro. Os principais traços do seu pensamento, a sua fé religiosa inabalável, a sua devoção a Apolo, a sua admiração por Esparta e pelos governos aristocráticos, o seu elogio da virtude que se herda, o primado que concede à boa fortuna dos atletas, enfim, a desordem concertada da composição, a densidade fulgurante do estilo: eis o essencial da ode e eis já anunciado Píndaro inteiro.

O poeta está em Tebas e tem vinte anos. Estamos em 498. Recebe, sem dúvida graças às relações da sua nobre família — velha família de sacerdotes de Apolo e de colonizadores —, a encomenda de um epinício que deverá celebrar um dos amigos dos Aleuades, príncipes da Tessália. O vencedor chama-se Hipócleas. É um adolescente que alcançou em Delfos — nesse estádio ainda intacto, onde é tão bom caminhar ao ar livre e fresco — o preêmio da dupla corrida da categoria dos juniores. Píndaro fez a viagem à Tessália, recebeu a hospitalidade do príncipe, dirigiu a execução do seu coro. [306]

A ode abre com uma palavra que poderia servir de epígrafe a toda uma parte da obra de Píndaro: "Feliz Lacedemônia!" O poeta insiste, nesta abertura da ode, no parentesco de Esparta e da Tessália, ambas governadas por descen­dentes de Hércules — esse grande tebano a quem celebra incessantemente como modelo da virtude heróica. Depois passa ao elogio do jovem corredor. Desenvolve, a propósito dele, um tema que lhe é caro: nas famlílias nobres, "o natural dos filhos segue as pisadas dos pais", isto é, as proezas físicas, tanto como a virtude moral, são parte da herança dos antepassados. Vem o tema da boa fortuna dos atletas. Aquele que vence no jogo, aquele que vê seu filho vencedor, "se não atinge o céu de bronze, atinge pelo menos o último termo das felicidades, reservadas aos mortais". Bruscamente o mito surge, ocupando toda a parte central da ode. Bastou o termo "felicidade" para o desencadear. Esse mito é o da felicidade dos Hiperbóreos. É a velha crença popular de que existe, para além das montanhas do Norte, donde vem o Bóreas, um povo de bem-aventurados, os Hiperbóreos. No Inverno, é lá que mora Apolo, caro a Píndaro. É de lá que ele vem na Primavera, viajando sobre o seu tripé alado.

O mito, sem que o poeta o conte, é simplesmente sugerido por vivas imagens e alusões fugazes e percucientes. Parece um sonho inacabado, mas todo aberto à imaginação, no qual braçadas de visões arrebatam em todos os sentidos o impulso do sonhador. Assim, vemos de súbito Perseu apresentar-se num dos banquetes dos Hiperbóreos. Encontra-os sacrificando a Apolo prodi­giosas hecatombes de burros. Apolo compraz-se, diz o poeta, no sacrifício destes animais lúbricos. No seu estilo abrupto, Píndaro escreve: "Apolo ri ao ver erigir-se a lubricidade dos animais que eles imolam." (Na verdade, este traço do sacrifício de burros em cio é um traço exótico: os Gregos nunca imolaram burros aos deuses.)

Mas logo o poeta acrescenta que dos enormes festins deste povo feliz "a Musa não está ausente... Raparigas cantam em coro no alarido das liras e das flautas".

Outros traços fazem contraste. Este Perseu, que surge entre os Hiperbóreos, é o herói que em tempos matou a Górgona: tem ainda nas mãos "a cabeça eriçada de serpentes que recentemente dava aos habitantes de uma ilha a morte de pedra" (o que significa, no estilo ousado de Píndaro, "a morte que muda em pedra"). Mas, acrescenta o poeta, "quando os deuses são os autores, nenhum acontecimento me parece incrível". [307]

Aqui detém o mito, com uma frase em que define a sua arte de compor "Como belos flocos de lã, os meus hinos adejam de assunto em assunto, com: fazem as abelhas."

Uma última frase sobre Hipócleas: "O Poeta fará com que sonhem com ele as raparigas."

*

Eis outra obra da juventude (Píndaro tem trinta anos) — uma ode que não contém qualquer mito, uma simples oração a convidados muito próximos do coração do poeta. É a décima quarta olímpica, na qual celebra igualmente a vitória de um adolescente no estádio dos rapazes.

A ode desvenda aos nossos olhos, na sua brevidade, a fonte profunda da inspiração do poeta, e essa fonte é o amor das Graças. Píndaro começa por evocar os três tipos de homens em que vê irradiarem "todas as doçuras e todas as delícias para os mortais: o poeta inspirado, o homem adornado de beleza, o homem cintilante de glória". Ora estes três bens — gênio, beleza, glória— outra coisa não são que dons das Graças. Estas dirigem tudo no mundo: "Os próprios deuses, sem as Graças preciosas, não poderiam saborear as danças nem os festins... Sobre tronos instaladas, junto de Apolo Pítio... honram a majestade do senhor do Olimpo, seu pai."

O poeta nomeia estas três Graças: "Ó tu, Aglaia (Aglaia dispensa a Glória), e tu, Eufrósina, que a harmonia encanta (Eufrósina quer dizer Sabedoria, mas para Píndaro toda a sabedoria está na poesia), e também tu, Tália. enamorada de canções... (Tália é a Graça que dá a Beleza, a Juventude e a Alegria), vê, Tália, como avança na alegria do triunfo esse cortejo em passo ligeiro... E Asôpicos que eu venho cantar, pois que, por teu amor, ele triunfa em Olímpia..." O jovem atleta é órfão. O poeta invoca a ninfa Eco, dizendo: "E agora. Eco, desce ao palácio das escuras paredes de Perséfone, leva a seu pai uma ilustre mensagem... Fala-lhe de seu filho, diz-lhe que Tália, nos vales gloriosos de Pisa, o coroou das asas dos famosos triunfos."

Assim, tudo é dado, no acontecimento celebrado, como obra das Graças. O reino de Píndaro não é o da volúpia e do prazer, não é o reino de Afrodite [308]

Nunca ele concedeu a mais tênue homenagem àquele a quem os Gregos chamam o épaphroditon, isto é. o homem "sedutor". Ele celebra o gracioso, o épichari. O seu reino é o da Graça.]

*

Entretanto, no termo da sua juventude, abre-se na vida de Píndaro uma uma crise grave, a mesma crise que o seu povo atravessa, a partir de 490. depois em 480 e 479, a crise das guerras persas.

Há que dizê-lo claramente. Píndaro não compreendeu, ou só depois compreendeu, e dificilmente, o sentido das guerras persas na história do seu povo.

Tinha perto de trinta anos no ano da Maratona, perto de quarenta quando de Salamina e de Plateias. Da primeira das guerras persas não há nenhum eco na sua obra conservada, aliás importante. Não é que o nome de Maratona dela esteja ausente. Esse nome aí aparece várias vezes, mas sempre ligado à menção de qualquer vitória desportiva, alcançada por tal ou tal atleta que o poeta celebra. Maratona não é para ele o nome de uma vitória da liberdade, mas o de um lugar de desporto! (Como para muitos parisienses, sem dúvida, os nomes de batalhas, e mesmo de poetas franceses, não são mais que estações de metropolitano!)

O que é preciso compreender, se quisermos apreender a poesia de Píndaro, é que uma vitória desportiva tem, a seus olhos, um valor pelo menos igual a uma vitória militar, sobretudo à de Maratona, onde o "povo" ateniense salvou uma liberdade democrática de bem medíocre valor para ele. A liberdade do homem, a sua dignidade, estão, antes de mais, na possessão do seu corpo. Os "belos membros da Juventude" são para ele uma das conquistas essenciais da vida humana, conquista alcançada à custa de vontade contínua, de ascese moral e física sem desfalecimento.

Vem o ano de Salamina. Píndaro aproxima-se dos quarenta anos. Sabemos que partido escolheu Tebas: ao serviço do ocupante. Os historiadores gregos, de Heródoto a Políbio, são unânimes: Tebas trai a Grécia.

Políbio escreve que "os Tebanos recusaram-se a entrar em guerra pela causa dos Gregos e abraçaram o partido dos Persas" e que "não há razão para [309] louvar o poeta Píndaro, que deu a conhecer num poema que partilhava a opinião de que era preciso manter a paz".

Assim, no momento em que outras cidades gregas exigiam da população os mais duros sacrifícios, a evacuação do território entregue à devastação e ao incêndio, e a guerra longe dos seus, Píndaro pregava aos seus compatriotas a não-resistência ao invasor. Os termos que emprega em dois dos versos conser­vados deste poema parecem indicar que se dirigia às classes populares, que queriam bater-se, para as levar a aceitar a paz dos aristocratas, o acolhimento solícito que o governo oligárquico fazia aos Persas.

Na verdade, há qualquer coisa de estranho em ver Píndaro. cantor de atletas e cantor dos heróis do passado, ficar insensível, na catástrofe da Grécia, ao drama da liberdade que se joga diante dos seus olhos. Uma vitória no pugilato ou no pancrácio comove-o mais do que Salamina?

É certo que, mais tarde, houve arrependimentos em Píndaro. Mas sempre, ao falar de Salamina, com o tom do constrangimento. A oitava ístmica, que dirige, alguns anos após a vitória, a um dos seus amigos eginetas, conserva ainda esse tom embaraçado. O poeta fala aí com insistência da "provação" da Grécia. Pede para si o direito de invocar outra vez a Musa, e diz: "Libertos da grande angústia, não deixemos as nossas frontes sem coroas... Poeta, não cultives o teu luto." Agora o perigo está passado: "A pedra suspensa sobre as nossas cabeças, rochedo de Tântalo, um deus a desviou de nós. Provação demasiadamente forte para a audácia dos Gregos... Tudo se cura para os mortais, pelo menos se têm a liberdade." A passagem, no seu conjunto, está muito longe de constituir um elogio dos vencedores de Salamina. Não se trata de vitória nem de glória, mas de provação e luto. Só para o fim o poeta entra na linguagem daqueles que salvaram a Grécia: reconhece, implicitamente aliás, não explicitamente — que a liberdade que conserva a deve àqueles que por ela se bateram. A provação, diz ele à maneira de desculpa, excedia a coragem dos Gregos. O que é verdade da coragem dos Tebanos, não da dos Atenienses. Na verdade, Píndaro dá graças a Deus, e só a Deus, do feliz desenlace do acontecimento. Heródoto, que não era menos piedoso que Píndaro, põe as coisas no seu justo lugar, quando declara: "Não nos afastaremos da verdade declarando que os Atenienses foram os libertadores da Grécia: foram eles, pelo menos depois dos deuses, que repeliram o Grande Rei."

Deixemos de lado outros arrependimentos. Píndaro, que fez o elogio da bravura egineta em Salamina, sempre desdenhou fazer o elogio do eminente [310] papel pan-helénico que Atenas desempenhou nesses anos decisivos da formação do gênio grego. Nada na sua educação, nada no seu próprio génio o preparava para compreender a cidade que já no seu tempo se tornava a cidade da investigação científica, a cidade da "filosofia".

O ambiente de Atenas, a partir desta primeira metade do século V, é, em relação a Tebas, um ambiente de "sageza", um ambiente onde a religião não teme as vizinhanças da razão. Isto sempre Píndaro detestou. Os problemas que se apresentam aos sábios jônios e atenienses parecem-lhe a coisa mais vã do mundo: são pessoas que. na sua opinião, "colhem o fruto mal maduro da Sabedoria." Píndaro — e é isto que explica a sua falta de amizade por Atenas — é um homem que, em pleno século V, não foi tocado pela filosofia. Os problemas que os sábios jônios tentam resolver (de que matéria é o mundo feito?, que é que produz os eclipses do Sol?) estavam para ele resolvidos há muito tempo por um poeta da sua terra, Hesíodo, e pela religião apolínea. Os fenômenos que o sábio interroga são para ele milagres dos deuses. Não há, em relação a eles, qualquer questão a pôr.

*

Tomemos agora algumas das odes principais do nosso poeta, a sexta olímpica, por exemplo. Esta ode foi escrita para um siracusano, Agésias, que é uma importante personagem, um dos principais oficiais de Híeron.

A família deste Agésias é a dos lâmidas: pretende descender de Apolo e de uma ninfa peloponésia, Evadne, por sua vez filha de Posídon e de uma ninfa dos Eurotas, Pítane. Os lâmidas descendem pois de dois grandes deuses. Exercem um sacerdócio em Olímpia. Agésias viera tentar a sua sorte em Siracusa. Fizera junto de Híeron uma brilhante carreira. O epinício de Píndaro celebra a sua vitória na corrida de carros atrelados a mulas, em Olímpia. A ode foi representada primeiro não longe de Olímpia, em Estinfalo, na Arcádia, donde Agésias era originário por sua mãe, depois uma segunda vez em Siracusa.

A obra divide-se em três partes desiguais. A primeira é consagrada ao elogio do vencedor. Este elogio apoia-se numa imagem esplêndida que serve de abertura a todo o poema. Vemos erguer-se um palácio de magnificência. O pórtico é majestoso: é um deslumbramento de colunas de ouro que cintilam até ao horizonte. O palácio é a própria ode; a colunata singular é a glória de [311] Agésias, ao mesmo tempo adivinho e campeão olímpico. Todo este começo e semeado de alusões resplandecentes, entre elas a de um outro vidente, outro guerreiro, um herói honrado pelo raio salvador de Zeus, que abriu para ele os abismos da Terra, onde o devorou com os seus cavalos, herói popular tebano. e depois pan-helénico. Todo este princípio é como um emaranhado de imagens, que os raios solares iluminam.

Para alcançar a segunda parte do hino — a mais importante do mito — Píndaro pede ao condutor do carro de Agésias que atrele "o vigor das suas mulas e o conduza pela estrada inundada de sol à fonte da raça de Agésias.. Que diante delas se abram de par em par as portas dos nossos cantos".

Vamos ouvir da boca do poeta crente a bela história duma dupla sedução divina. Nas margens do Eurotas vivia em tempos uma rapariga, a ninfa Pítane. "Unida a Posídon deitou ao mundo uma criança de tranças violetas. Sob as pregas do vestido, escondeu a sua maternidade virginal..." Depois mandou o fruto concebido do deus para as margens de um outro rio, o Alfeu, e foi lá que Evadne cresceu e que, "por Apolo, provou pela primeira vez a doce Afrodite. O pai consultou o oráculo sobre a intolerável e esplêndida aventura. "Ora. Evadne, entretanto, soltara o seu cinto de púrpura e depusera a sua urna de prata, e, na mata azul, dera à luz uma criança adornada de profecias. Junto dela, o deus dos cabelos de ouro instalara Ilítia cheia de benevolência e as Parcas. E dos flancos dela, num parto suave, tirou íamos, que a luz logo acolheu. Desolada, a mãe abandonou o filho no chão. Mas, por vontade dos deuses, duas serpentes de olhos glaucos tomaram conta dele e o alimentaram do veneno inocente das abelhas."

Notemos de passagem as expressões paradoxais que dão ao estilo de Píndaro a sua cor própria. Assim: a "maternidade virginal" e o "veneno inocente das abelhas". O poeta continua:

"A criança viveu assim cinco dias. Escondida entre os juncos e os silvados impenetráveis, as flores de ouro e de púrpura inundavam com os seus raios o seu tenro corpo. Foi esta circunstância que fez que a mãe desse ao filho o nome imortal de íamos." (Estas flores de raios de ouro e de púrpura eram amores-perfeitos silvestres, que na língua grega se chamam ion, palavra que designa também a violeta.)

Entretanto, de Delfos, Apolo reivindica o filho. A última cena do mito mostra-nos aquilo a que chamaríamos o baptismo ou a consagração do adolescente. [312]

"Quando recebeu o fruto da encantadora Juventa de coroa de ouro, desceu ao leito do Alfeu e invocou a vasta violência de Posídon, seu antepassado, assim como o Arqueiro que, em Delos construída pelos deuses, faz a guarda. Ali estava, sob a abóbada nocturna, reivindicando para a sua cabeça a honra de qualquer realeza protectora de um povo. Claramente, a voz de seu pai lhe respondeu: - Levanta-te, meu filho, e caminha. Vai para as terras que são bem conhecidas de todos. Segue o rasto da minha voz." Foram até ao abrupto cume do alto monte de Crono, e ali o deus lhe outorgou um duplo tesouro de profecia..."

Vemos aqui o soberano brilho duma tal poesia. Também ela, na sua :aminhada insólita, nos inunda como as flores que o poeta invoca, de raios de ouro e de púrpura. Brilha com uma luz solar, resplende como um arco-íris.

A última parte da ode regressa à actualidade, ao elogio do vencedor, e é também um elogio da poesia de Píndaro. O poeta, retomando um sarcasmo grosseiro dos Atenienses sobre a incultura dos Beócios, sarcasmo que deve feri-lo vivamente, declara que saberá "desmentir o velho opróbrio que se lança aos porcos da Beócia". O seu poema ali está para responder à injúria. Declara que é o poeta inspirado, dizendo na sua linguagem enigmática e carregada de sentidos secretos: "Tenho sobre a língua uma pedra de amolar cantante, que me faz invadir pelo hálito das fontes." Depois, dirigindo-se ao mestre do coro que acompanha Agésias na sua nova pátria e aí dirigirá a execução da sua ode, diz-lhe: "Tu és um recto mensageiro, a secreta palavra das Musas encerradas, um vaso de doçura cheio de cantos resplandecentes."

O último verso da ode é um voto por ele próprio feito ao senhor do mar: "Desabrocha a flor encantadora dos meus hinos".

É inútil comentar, explicar a ligação das três partes do poema: elogio do vencedor, mito, votos pelo vencedor ou pelo poeta. Tudo isto, fundado em razões históricas, é manifesto, mas exterior à poesia. É uma ligação, não já feita de transições ou de circunstâncias, mas interna à poesia da obra. Sugeri-o de passagem.

As colunas de ouro diante do pórtico do hino, as mulas que se lançam pela estrada cheia de sol, depois o fluxo das imagens centrais, a mulher prenhe do fruto de um deus e cingida de púrpura, a carne da criança banhada da luz das flores dos campos, a abóbada nocturna que domina a cena do baptismo no Alfeu e, para terminar, a pedra de amolar cantante da língua do poeta, a [313] secreta palavra das Musas encerradas — tudo isto constitui um único poema, uma espécie de visão meio delirante, de uma poesia próxima e celeste ao mesmo tempo, feita de imagens estranhas é como que de figuras de sonho, que dá à obra, no jorro do estilo que alimenta tudo da sua seiva, a sua indescritível continuidade. Um estilo que, do primeiro ao último verso, desabrocha como uma flor rara e maravilhosa.

*

Píndaro fez mais que uma vez a viagem da Sicília. Viveu na intimidade dos príncipes Téron, de Agrigento, e Híeron, de Siracusa. Foi seu panegirista. rivalizando com o grande Simônides e com Baquílides. Mais do que isso, foi conselheiro e amigo. E neste papel difícil de conselheiro e de louvador. desenvolveu as exortações morais mais firmes, apoiando-se na sua própria fé religiosa que o armava de todas as coragens.

Importantes encomendas lhe fugiram para irem parar a Baquílides, mais acomodatício.

A terceira pítica mostra-nos a intimidade das relações de Híeron e de Píndaro. Na verdade, não é um epinício, é uma epístola pessoal que o poeta escreve, não por ocasião de uma vitória desportiva, mas durante uma crise de areias de que Híeron sofria. É a carta de um amigo, um carta de consolação a um doente.

O poeta começa por lamentar que o centauro Quíron — pai da medicina, segundo a mais antiga tradição poética —, mestre de Esculápio, não esteja ainda vivo. Depois conta ao príncipe doente o nascimento do deus da medicina. Asclépio (Esculápio). É a história dos amores de Apolo e da ninfa Corónis. Corónis era romanesca, "sempre apaixonada pelo desconhecido, como tantas outras: entre as criaturas humanas, é a espécie mais vã, sonhadores que desprezam o que está diante deles e deixam as suas esperanças irrealizáveis correr atrás de fantasmas". Presa oferecida à circunstância mais ocasional. Esta ninfa, que "trazia no seu seio a pura semente do deus", não teve a paciência de esperar as núpcias que Apolo prometia, segundo o uso, preparar-lhe: "Um estrangeiro veio da Arcádia" — um simples passante; o primeiro que apareceu — "ela partilhou com ele o leito." [314]

"O deus soube da traição, sem consultar outro confidente que o mais recto de todos, o seu espírito, que sabe todas as coisas... Nem deus nem mortal o engana, nem em acto nem em pensamento." Fez castigar a infiel por sua irmã Artemis, que a trespassou com as suas flechas.

Os despojos de Corônis repousavam já sobre a fogueira, no meio dos seus parentes, a labareda viva de Hefesto já a envolvia toda, quando o deus, de súbito, lembrando-se do fruto que ela trazia: "Não", disse, "a minha alma não sofrerá que pereça um filho do meu sangue numa morte lamentável..." Dá um passo; as labaredas abrem-se diante dele. Alcança a criança, arranca-a ao corpo da mãe. Confia-o ao centauro Quíron, que irá fazer dele um médico. Tal é a narrativa do nascimento de Asclépio.

Além do laço natural entre este mito, que liga o deus da medicina e o doente a quem a história é contada, há na personagem de Corônis um ensinamento discreto mas preciso em intenção de Híeron. Caracterizando a jovem mãe, o poeta insiste no perigo do espírito de quimera, o erro que há em perseguir fantasmas. É neste sentido que irão desenvolver-se, no final de ode, as exortações ao doente.

Píndaro prossegue a sua narração com um magnífico quadro da carreira de Asclépio. Mostra o cortejo dos feridos e dos doentes — atingidos por úlceras internas, com a carne aberta pela lança e pela funda, corpos devastados pelas epidemias, pelo ardor do Verão, pelos rigores do Inverno — todos restabele­cidos, "repostos a prumo" por operações e remédios.

Asclépio, porém, deixou-se também tentar pelo irrealizável: quis forçar a natureza, arrancou à morte um homem que ela tomara já. O raio de Zeus, sem hesitar, fez entrar juntos, na morte que o destino quisera, o doente e o médico.

Somos reconduzidos ao pendor das reflexões que o retrato de Corônis inspirava. Não procurar o impossível, mas olhar "o que está aos nossos pés". Ora, que está diante dos nossos pés? "A condição mortal."

É aqui que o poeta lança uma frase corajosa e esplêndida: "Ó minha alma, não aspires à vida imortal mas esgota o campo de acção que te é dado." Eis o conselho que ele tem a coragem de dar a um doente. Asclépio, sem dúvida, operou numerosas curas. Contudo, lembra-te de que tens de morrer, e entretanto age. Mas esta lição não a dá Píndaro em tom de lição. Não diz a Híeron: "Faze isto, não esperes aquilo." É a si próprio que o diz. "Ó minha alma, não aspires..." Este rodeio é ditado pelo tacto, tanto quanto pela amizade. [315]

É depois de ter estabelecido entre o príncipe e ele este tom de confiante intimidade que o poeta retoma e conclui a sua exortação. Ousa falar ao grande Híeron de resignação. Tiveste, diz-lhe, o favor dos deuses, és príncipe e condutor do teu povo. Decerto a vida não foi sempre para ti sem nuvens. Mas não estás sozinho: pensa nos heróis do passado. O que traz esta máxima de conduta geral: "O homem que conhece o caminho da verdade (e verdade significa muitas vezes, em Píndaro, realidade), o homem que segue o caminho da realidade sabe gozar da felicidade que os deuses lhe enviam. Mas os ventos que sopram nas alturas do Céu mudam constantemente."

Esta linguagem é muito bem aplicada a Híeron, que era homem de espírito muito realista, muito positivo: ele não ignora a lei da vicissitude.

Ao terminar, como se receasse ter sido demasiado directo e demasiado sermoneador, Píndaro volta outra vez a si mesmo. "Humilde na humilde fortuna, quero ser grande na grande." Orgulhosamente, declara que também conhece a grandeza. É poeta: são os seus cantos que dão a glória. Dá a entender que se um grande poderio como o de Híeron é raro, um grande poeta como ele não é menos raro. Por um momento julgamos ouvir um eco antecipado do poeta francês: "...Direz, chantant mes vers, en vous esmerveillant, Ronsard me celebroit du temps que / estois belle".

Mas o sentimento não é exactamente o mesmo. Há em Píndaro, ao mesmo tempo, uma humildade e um orgulho mais profundos: uma e outro lhe são dados pelo conhecimento da lei prescrita aos homens pelos deuses.

*

Antes de precisarmos melhor as relações de Píndaro e do príncipe, conce­damo-nos o prazer de ler, pela sua simples beleza, o mito da décima nemeia. Pela sua simples beleza? Não. Toda a obra de Píndaro está cheia de ensina­mentos. A beleza é para o poeta a expressão mais perfeita que ele sabe dar — que os deuses lhe concedem que dê— à justeza do pensamento.

A décima nemeia foi escrita para um argiano, vencedor na luta. Na primeira tríade, Píndaro esboça a grandes pinceladas uma tela de fundo mítico [316] uma evocação rápida dos grandes mitos de Argos. É um emaranhado de deuses, de heróis, de belezas célebres de Argos. Alcmena e Dánae recebem Zeus no seu leito; Perseu transporta a cabeça da Medusa; Hipermnestra, a única das Danaides que, na noite de núpcias poupou o esposo, mete o punhal na bainha; vemos as mãos de Épafo fundarem no Egipto inúmeras cidades; normalmente, o mais ilustre dos filhos de uma argiana, Hércules, aparece de pé no Olimpo, ao lado de sua esposa, a mais jovem das imortais, Hebe.

No canto desta tela de fundo, a segunda tríade apresenta o vencedor, o argiano Teaios. Está ali, colocado no primeiro plano, mas ocupando um lugar afastado: traz as coroas que ganhou em jogos diversos. Vemos mesmo a grande fora, com a sua provisão de azeite que ele trouxe de Atenas, uma das ânforas chamadas "panatenaicas" que conhecemos bem pela arqueologia.

Depois disto, sobre este pano de fundo pintado vaporosamente e com estas poucas personagens contemporâneas tratadas em resumo, o poeta, em plena luz. e com uma incrível firmeza de desenho, desenvolve o seu mito. É a história de dois deuses atletas e padroeiros dos atletas, Castor e Pólux. História muito bela, plasticamente e pelo vigor dos sentimentos.

Os dois irmãos geêmeos viviam em Esparta, no vale onde haviam nascido, tinham dois inimigos, também irmãos, Idas e Linceu. Um dia que Castor repousava no côncavo de um carvalho, Linceu, o homem dos olhos de lince, tinha a sua vista aguda, descobriu-o do alto do Taígeto. Chama Idas: os dois malfeitores surpreendem Castor adormecido. Idas fere-o de morte com a lança. Entretanto, Pólux, que, dos dois heróis, é só ele filho de Zeus e só ele é imortal, lança-se à procura dos assassinos. Encontra-os num cemitério. Fazem-no frente e, para se defenderem, arrancam uma esteia funerária, que é a do próprio pai. Atingem Pólux em cheio no peito. Mas o herói não vacila: espeta a lança de bronze no flanco de Linceu, enquanto Zeus, glorificando seu filho, lança contra Idas o seu raio fumegante. "Os dois cadáveres ali ficam a arder, na solidão."

Pólux corre para seu irmão. Castor respira ainda, mas já o seu corpo é sacudido pelo estertor. Pólux rebenta em soluços. Seu pai é omnipotente. Não poderia ele salvar o irmão bem-amado, o caro companheiro de labor? Suplica sem este irmão, não quer mais viver. Zeus então aparece a seu filho. O pai e o filho estão frente a frente. O deus omnipotente nada mais faz que oferecer a uma escolha difícil: "Tu és meu filho", lhe diz, com uma doçura [317] surpreendente na sua boca. "Dou-te, em inteira liberdade, esta escolha. Se queres escapar à morte e à velhice odiosa, habita o Olimpo comigo, em companhia de Atena e de Ares da sombria lança: tens direito a esta parte. Se preferes salvar a vida de teu irmão mortal, pões em comum as vossas duas sortes contrárias: metade da tua vida debaixo da terra, com ele; contigo, e metade da sua vida no palácio de ouro do Céu." Pólux não hesita o instante ce um pensamento: vai abrir os olhos fechados de Castor, ouve a sua voz reanimar-se.

A beleza deste mito, em menos de quarenta versos, não tem par: as cores vivas e o desenho duma perfeita justeza salientam-se com poderoso reflexo sobre o fundo de contornos voluntariamente confusos da ode.

A beleza está nos sentimentos como está nas atitudes. Estas duas ordens de beleza têm um atributo comum, que é nobreza. Todas as atitudes — como o confronto do pai e do filho —, todos os sentimentos, a prece de Pólux e dominando tudo, a escolha severa oferecida por Zeus a seu filho, finalmente ia resposta de Pólux reduzida a um gesto de amor fraterno: abrir os olhos fechados de Castor — tudo isto respira a grandeza.

Mas esta beleza nada tem de convencional. A cada momento, pelo contrário, um pormenor imprevisto produz um efeito de surpresa. Esse rapaz que repousa no côncavo duma árvore, essa estranha batalha num cemitério — todo o velho mito ganha um sabor de frescura e de novidade.

Entre as odes mais irradiantes que Píndaro escreveu em louvor de um príncipe, deve-se incluir a segunda olímpica, para Téron de Agrigento, vencedor nas quadrigas. Píndaro conhecia há muito tempo, quando compôs esse epinício, a família dos Emênidas, a que se ligava Téron, soberano de Agrigento. Conhecia os seus triunfos, a sua grandeza, conhecia as provações de que Téron e os seus sempre tinham até aí acabado por triunfar. A família dos Emênidai castigada e glorificada, podia, como a de Laio e de Édipo, servir de ilustração ao tema da vicissitude, fiel companheira do destino humano. Píndaro não tem o sentido trágico. Tende sempre a tranquilizar, a consolar, a falar da bondade, da [318] santidade dos deuses.

Toda uma corrente da sua obra o arrasta para a esperança da vida imortal da alma humana. Platão, que bem o conhece, a ele irá buscar imagens e argumentos neste sentido.

A segunda olímpica, simultâneamente, acentua a grandeza de Téron, mesmo nas provações, e dá-lhe a esperança suprema de que sempre o coração do homem se encanta.

A ode é de 476. O fim da grande aventura de Téron aproxima-se. Quinze anos de ditadura gloriosa, graças a um golpe de sorte, Agrigento cingida de uma coroa de templos que ainda hoje causa a nossa admiração. O fim da vida aproxima-se também. Para o poeta atento e amigo, é a altura de falar ao príncipe do poder da Fortuna sobre as nossas vidas. Fala-lhe da condição humana e da morte. Não será de mais dizer que lhe leva as consolações da religião.

O começo da ode, em breves fórmulas cintilantes, recorda o alto esplendor, sempre ameaçado, de Téron e dos seus antepassados: "Muralha de Agrigento, ele é a flor da recta cidade... Seus pais, por seus trabalhos, valentemente, foram a menina dos olhos da Sicília. A duração do destino vela sobre eles... O desgosto morre, domado, na sua sempre renascente amargura, pela abun­dância da alegria. O destino, vindo de Deus, ergue bem alto a nossa felicidade sem limites... Mas, movediças correntes nos arrastam: elas fizeram tanto a felicidade como as provações."

O poeta dá exemplos do glorioso triunfo da felicidade: "Tal como as altivas filhas de Cadmo, sofreram provações indizíveis. Mas o peso do sofrimento desmorona-se pela acção da felicidade que as invade. Sêmele das longas tranças pereceu no fragor do raio: revive entre os Olímpios, é amada de Palas para todo o sempre, é amada de Zeus, querida de seu filho, o deus que leva a hera."

Mais adiante, começa o elogio das virtudes de Téron, a principal das quais é a energia: "Para quem tenta a luta, o êxito corta cerce o desgosto." Téron é rico: "A riqueza ornada de virtudes abre à sorte numerosas ocasiões: põe à espreita da felicidade o mais fundo do nosso pensamento."
No ponto mais alto deste desenvolvimento, onde frequentemente se vê o triunfo do homem fazer frente à "necessidade", coloca-se a promessa suprema, a do castelo de Crono, que espera os justos depois da morte.

"Mas eis que os justos, iguais as noites, iguais os dias, contemplam o Sol e recebem em partilha uma vida menos laboriosa que a nossa. Nem a terra [319] nem a água do mar reclamam o esforço dos seus braços, ao longo de vidas inconsistentes. Junto dos favoritos dos deuses, daqueles que amaram a boa fé, os eleitos vivem uma eternidade que não conhece as lágrimas. Quanto aos maus, esses sofrem uma provação que o olhar não pode suportar."

"Todos aqueles que tiveram a coragem, numa tripla estada num e noutro mundo, de conservar a sua alma inteiramente pura de injustiça, seguem até ao seu termo o caminho de Zeus que os leva ao castelo de Crono. Lá, a ilha dos Bem-Aventurados é banhada ao redor pela frescura das brisas oceânicas: La resplandecem flores de ouro, umas subindo da terra, nos ramos das árvores gloriosas, outras que as águas alimentam. Entrelaçam grinaldas, entrançar: coroas, pela recta vontade de Radamanto, o assessor que está às ordens de poderoso antepassado dos deuses, o esposo dessa Reia que tem assento no mais alto dos tronos."

Depois Píndaro enumera dois ou três desses eleitos do castelo de Crono Entre eles, Aquiles. As vitórias de Aquiles parecem incitá-lo de súbito a travar combate contra aqueles que lhe disputam o favor de Téron. Ei-lo invadido por um rancor que o faz ameaçar: "Tenho sob o cotovelo, no meu carcás, nume­rosos dardos de voz clara. Eles sabem penetrar o espírito das pessoas de senso. Quanto a atingirem a massa, precisariam de um intérprete. O inspirado é aquele que recebe da natureza o seu grande saber. Mas aqueles que, por estudo, e intermináveis tagarelices, o imitam, semelhantes a corvos, esses não fazer mais que crocitar em vão contra a ave divina de Zeus! Vamos, meu coração, que o teu arco vise o alvo!"

Interpretemos. O inspirado, e também a ave divina de Zeus, é Píndaro. Os rivais que crocitam contra ele, são Simônides e Baquílides, corvos inesgotáveis

Como que restituindo a si mesmo por este acesso de cólera, Píndaro volta-se para Téron e declara-lhe, terminando, que se a inveja, na sua suficiência, quisera assaltar a glória do príncipe, será posta em debandada pela excelên­cia da sua acção, desde que ele à acção se entregue completamente. Pontinha de ênfase no elogio, nos últimos versos: "Como a areia escapa ao cálculo, assim as alegrias que este homem terá distribuído pelos outros, quem as poderá enumerar?"

Passagens como a do "castelo de Crono" não são raras na obra conservada de Píndaro. Disse acima que Platão usara uma delas. Ei-la:

"Quanto àqueles que Prosérpina lavou das antigas máculas, ao cabo de oito anos, envia ela as suas almas ao sol do alto. Destas almas nascem heróis [320] ilustres, homens invencíveis pelo seu vigor ou excelentes pela sua sabedoria. Após a morte, são honrados pelos vivos como heróis."

Ou ainda estes versos em que o poeta descreve a felicidade dos justos: Para eles, durante a noite terrestre, brilha nas profundezas a força solar; campos de rosas púrpuras se estendem aos pés dos muros da cidade; a árvore do incenso oferece a sua sombra e os seus ramos carregados de frutos de ouro."

Estas crenças não são contudo as únicas que encontramos em Píndaro no que toca à outra vida. Não se deteve nelas à maneira dogmática, que não é a maneira antiga de crer. Os Gregos mais crentes são sempre muito reservados nas suas afirmações sobre o além. Aliás, em Píndaro, a sobrevivência do homem reveste-se de formas mais modestas. Ele diz: "Eterna é a duração do homem. Aquele cuja raça não se afunda no esquecimento por falta de filhos, esse vive, e doravante ignora as penas." O que significa: os filhos vivem, e ele repousa no eterno sono. Eis a imortalidade ligada à duração da descendência.

Noutras passagens, ainda mais numerosas, é a memória do vivente que assegura a imortalidade, é o canto do poeta que proporciona a duração mais longa. Viver longamente na memória dos seus, dos amigos, porque bem se agiu, porque em consciência se fez o seu ofício de homem, eis os pensamentos que permitem a Píndaro, nos dias em que se desvanecem as esperanças do castelo de Crono, aceitar a sua condição de homem mortal: "Possa eu, ó Zeus... permanecer sempre fiel aos caminhos da franqueza, para que, morto, não deixe a meus filhos uma má reputação... Por mim, quereria entregar o corpo à terra sem ter deixado de agradar aos meus concidadãos, de louvar o que merece ser louvado, de censurar os celerados!"

E vão perguntar qual destes dois homens é o verdadeiro Píndaro — o que crê na vida imortal, ou aquele que esquece a morte ("O homem que faz o que convém, esquece a morte") ou que exclama: "Ó minha alma, não aspires à vida imortal!"

Não há dois Píndaros. Há um poeta que crê e que espera, e que esquece, a quem a sua sabedoria e a sua boa consciência bastam — um homem, enfim, cheio de contradições, não um teólogo.

Um crente, porém, porque mesmo nos dias em que ele não espera nada, em que não sabe, crê que há deuses: eles, pelo menos, sabem. [321] 

A altivez de Píndaro, em todas as palavras de modéstia ou mesmo de humildade que pronuncia, é sempre incomparável. Píndaro sabe que os poetas são iguais aos príncipes e que a glória dos príncipes só existe graças aos poetas. Perante o príncipe, Píndaro nunca é humilde. Só é humilde diante de Deus, tal como o príncipe o deve ser também.

Píndaro pôde, pois, com toda a independência, louvar os príncipes. Louvou os príncipes que o mereciam ser. Híeron e Téron eram homens de grande envergadura — animados de grandeza pela cidade como por eles próprios. Desta grandeza não está excluída a elevação moral.

Píndaro louvou muito, mas também exigiu muito. Pode-se pensar que, louvando, se dedica a fortalecer no príncipe o sentimento do seu valor. Encoraja-o dizendo que a protecção divina se estende sobre ele. Mas ao mesmo tempo recorda-lhe que os seus talentos e os seus êxitos não são mais que dons de Deus: "Não esqueças", diz a Arcesilau, rei de Cirene, "de referir a Deus tudo o que te cabe." Na verdade, a felicidade dos príncipes só perdura se fundada no temor de Deus e na prática da Justiça. Agir "com Deus", eis o grande princípio de governo.

O poeta é inspirado. É porque é "profeta" que pode exigir muito do príncipe. O que ele exige são as virtudes do velho código aristocrático: justiça, rectidão, liberalidade, e também o respeito do povo, a mansidão para com aqueles a quem governa e que são não súbditos mas "concidadãos". O que exige, sobretudo, é a coragem de suportar a desgraça e a firmeza, não menos difícil, de suportar a felicidade.

Píndaro não pensa que o governo do príncipe seja a melhor forma de governo que existe. Ele o diz. Prefere o governo aristocrático, o governo daqueles a quem chama "sages". No entanto, não repele o regime do bom príncipe, do príncipe que seja o melhor e o mais sábio, do príncipe que se comporte com nobreza. Pensa-se já em Platão, não obstante a diferença dos tempos e dos temperamentos.

Que tentou Píndaro junto dos príncipes da Sicília? Não terá sido exacta­mente a mesma tentativa que Platão fez junto de outros soberanos sicilianos? Tentou desenvolver no príncipe o sentido da sua responsabilidade. Tentou, ele, aristocrata de nascimento e de alma, ao dirigir-se a estes "homens novos" fazer deles verdadeiros nobres. [324]

Podia fazê-lo, não porque fosse poeta a soldo, mas porque, fiel à missão que recebe dos deuses, revela às almas animadas de grandeza o sentido da vida humana, que é o de realizar "belas acções". Apresenta ao príncipe os heróis, convida o príncipe a escolher a vida heróica. Vejam-se, na quarta pítica, dirigida a Arcesilau, os jovens príncipes que se juntam em volta de Jasão:

Nenhum deles-, diz o poeta, "queria deixar a sua juventude murchar sem perigo"; queriam, "mesmo à custa da morte, descobrir o encanto explêndido da sua própria nobreza". Escolhem a vida nobre, a vida difícil. Vejamos ainda Pélops, na primeira olímpica, dirigida a Híeron, escolher a vida heróica. Pélops roga: "Um grande risco nada quer de um combatente sem coração. Uma vez que temos de morrer, para que sentar-nos à sombra a digerir na impotência uma velhice obscura, afastados de todas as proezas?"

A vida heróica, a vida nobre, eis os exemplos propostos ao príncipe.

O preêmio é a glória, que é a mais segura imortalidade. E é o poeta quem a dá. Píndaro proclama: "A virtude, graças aos cantos do poeta, instala-se no tempo."

E ainda isto: "A voz dos belos poemas ressoa imortal: graças a ela, pelos espaços da terra fértil e através dos mares, irradia, inextinguível, a glória das belas acções."

Finalmente, este verso admirável: "Sem os cantos do poeta, toda a virtude morre no silêncio."

Porquê este entusiasmo e esta certeza? Porque o serviço do poeta e o serviço do príncipe são, um e outro, serviços divinos. [325]

História - Civilização Grega
Sociedade - Economia, 
6/26/2021 1:19:42 PM | Por Federico A. Arborio Mella
Economia e sociedade na suméria

Sabemos agora, graças à onomástica, que os Semitas estão estabelecidos na Babilônia e na Suméria desde as origens da história. De resto, um texto de Abu Salabih esta escrito em língua Acadiana. Há, pois, que considerar a sociedade mesopotâmica, no III milênio, como uma sociedade bilíngüe, mesmo admitindo que o elemento cultural sumério seja nela o mais forte. Através das fontes, textos oficiais, contratos de cessão de bens imobiliários, textos administrativos e econômicos, transparece a imagens de um sistema socioeconômico dominado pelo confronto entre duas concepções antinômicas das relações sociais de produção. Em resumo, assiste-se, ao longo do segundo terço do III milênio - e provavelmente já há muito tempo -, ao abandono progressivo de uma economia domestica de auto-subsistência, em que a circulação dos bens, encerrados num tecido de laços muito complexos e socialmente valorizados, seguia os esquemas da dádiva, da prestação e da redistribuição, e cujo grupo social de base era a comunidade domestica não igualitária, coletivamente gestionária da terra, geralmente dividido em classes de idades; em seu lugar, a Mesopotâmia opta por um sistema de economia complementar que considera os bens como mercadorias e em que a terra é objeto de uma apropriação individual. A hierarquia social reflete a desigualdade da repartição do acréscimo de produção, estando a sociedade dividida, para nós ficarmos por uma apreciação, muito geral, entre ricos e pobres.

A historia da Mesopotâmia é dominada, ao longo da época, pelas interferências entre estas duas concepções. Daí resultam tensões difusas e locais, por vezes breves incidentes de percurso. A sociedade já não esta em condições de impor as suas normas; as celebres "reformas" de Uru'inimgina são um testemunho precioso, embora muito obscuro, desse estado de coisas. O fato mais importante é de caráter irreversível e o progressivo desaparecimento dos grandes patrimônios, geridos coletivamente, e o açambarcamento da terra por indivíduos que se tornam seus proprietários. Ignoramos tudo acerca de um pequeno campesinato independente cuja existência não podemos avaliar e que está condenado, de fato, a uma agricultura de subsistência. Nesta época, a estrutura econômica dominante é a grande exploração agrícola, quer se trate do palácio real, do templo ou do domínio privado. É principalmente o arquivo do domínio da rainha, em Girsu, que nos esclarece quanto ao seu funcionamento e a sua organização.

Os bens fundiários estão repartidos em três lotes principais: domínio do "senhor", destinado às necessidades do culto, as terras de subsistência, destinadas ao sustento do pessoal, e as terras de lavoura, dadas em arrendamento. Para a manutenção das suas terras e o funcionamento das suas oficinas e armazéns, o mesmo domínio emprega cerca de 1200 pessoas que pertencem a todos os ofícios necessários ao bom andamento de uma célula econômica autônoma: agricultores, jardineiros, pastores, ferreiros, tecelões, operários da construção. A administração destes bens está confiada a um intendente, ficando a direção nas mãos, de um sanga.

Os rendimentos das explorações agrícolas e os dos arrendamentos constituem a principal fonte de riqueza do domínio. O comercio longínquo proporciona metais e pedras preciosas que se vão procurar até ao Egito ou nas regiões do Indo. Os gastos não são descuráveis: necessidades do culto, pagamento dos produtos importados, remuneração do pessoal que é feita em gêneros.

Só para a cidade de Lagash são conhecidos uns vinte templos. Todos eles prestam contas a uma instância central: o ê.gal. É impossível saber Se se trata do palácio do ensi ou do templo principal, já que ê.gal significa "grande casa" e tanto pode designar um como o outro.

O palácio, residência do rei, apresenta-se como um vasto complexo de mesmo tipo que o do templo, com a particularidade de o elemento militar desempenhar nele um papel essencial. Tal é, pelo menos, o caso em Shuruppak onde as tabuinhas fazem menção de listas de tropas e de reparação de carro. Os efetivos são, geralmente, pouco elevados, entre 500 e 700 homens; as inscrições reais tem uma forte propensão para aumentá-los exageradamente.

A vida de uma cidade está admiravelmente resumida em alguns traços, pelos dois painéis do celebre "estandarte de Ur", que figura respectivamente os trabalhos da guerra e da paz. O "estandarte", descoberto nos túmulos de Ur, é de fato um cofrezinho de madeira revestido com um mosaico de conchas. As cenas representadas estão dispostas em registros. Do lado da guerra, carros e homens de armas pisam os cadáveres de inimigos vencidos. Armados de lanças e de machados, os soldados usam capacete e capa cravejada. Prisioneiros nus e amarrados de pés e mãos são arrastados perante o rei que se mantém no meio do registro superior. Do lado da paz homens conduzem onagros ou levam fardos, outros tocam animais destinados ao sacrifício ou ao banquete que, acompanhado por uma orquestra, se desenrola no registro superior na presença do rei.

História - Civilização Suméria
Sociedade - Artes, Literatura
6/20/2021 6:28:17 PM | Por André Bonnard
Sófocles e Édipo, responder ao destino

Regressemos a esse outro método de investigação, de decifração da vida humana e do mundo — a tragédia grega. Tanto quanto a ciência e a filosofia, a tragédia apresenta-se como um modo de explicação e de conhecimento do mundo. E de facto o é, nessa idade ainda religiosa do pensamento grego que é a segunda metade do século V. Nessa época são ainda raros os pensadores e os poetas que para resolver os problemas da vida humana os não apresentem à luz cintilante do céu, não os entreguem à vontade imperiosa dos seus habitantes. Sófocles, entre todos, é crente — crente contra ventos e marés, crente contra as evidências da moral e a ambiguidade do destino. Um mito parece ter acompanhado a longa e vigorosa velhice do poeta: o mito de Édipo, terrível mais que nenhum outro, que fere o senso humano da justiça como parece ferir a fé. Sófocles, a quinze anos de distância, trava duas vezes luta com este mito. Em 420 escreve Rei Édipo: tem setenta e cinco anos. Em 405, aos noventa anos, retoma, sob uma forma nova, quase o mesmo assunto, como se hesitasse ainda sobre o desenlace que lhe dera: escreve Édipo em Colono. Quer ir até ao fim do seu pensamento, quer saber, no fim de contas, se sim ou não os deuses podem castigar um inocente... Saber o que será do homem num mundo que tais deuses governam.

Conhece-se o tema do mito. Um homem assassina seu pai, sem saber que ele é seu pai; casa com a mãe por acidente. Os deuses punem-no destes crimes, para que o tinham destinado antes mesmo que ele tivesse nascido. Édipo acusa-se destas faltas, de que nós o não consideramos responsável, proclama a sabedoria da divindade... Estranha religião, moral chocante, situações [375] inverosímeis, psicologia arbitrária. Pois bem: Sófocles quer explicar ao seu povo esta história extravagante, este mito escandaloso. Quer, sem os despojar do seu carácter inelutável, inserir neles uma resposta do homem, que. de alto a baixo, lhes modifique o sentido.

I

"Vê, espectador, com a corda dada até ao fim, de tal modo que a mola se desenrola com lentidão ao longo de toda uma vida humana, uma das mais perfeitas máquinas construídas pelos deuses infernais para o aniquilamento matemático de um mortal."

Com estas palavras se ergue, em Cocteau, o pano deste Édipo moderno que o autor tão rigorosamente intitulou A Máquina Infernal. O título valeria também para a obra antiga. Pelo menos exprimiria ao mesmo tempo o seu sentido mais aparente e a sua progressão.

Sófocles, com efeito, constrói a acção do seu drama como se monta uma máquina. O êxito da montagem do autor rivaliza com a habilidade de Aquele que dispôs a armadilha. A perfeição técnica do drama sugere, na sua marcha rigorosa, a progressão mecânica desta catástrofe tão bem composta por Não-Se-Sabe-Quem. Máquina infernal, ou divina, feita para dissociar até à explo­são a estrutura interna de uma felicidade humana — é um prazer ver todas as peças da acção, todas as molas da psicologia ordenarem-se umas às outras de maneira a produzirem o resultado necessário. Todas as personagens, e Édipo em primeiro lugar, contribuem, sem o saber, para a marcha inflexível do acontecimento. Elas próprias são peças da máquina, correias e rodas da acção que não poderia avançar sem a sua ajuda. Ignoram tudo da função que Alguém lhes destinou, ignoram o fim para, que avança o mecanismo em que estão empenhados. Sentem-se seres humanos autónomos, sem relação com esse engenho cuja aproximação distinguem vagamente ao longe. São homens ocupa­dos nos seus assuntos pessoais, na sua felicidade corajosamente ganha por uma honesta prática do ofício de homem — pelo exercício da virtude... E de repente descobrem a poucos metros essa espécie de enorme tanque que puseram em movimento sem saber, que é a sua própria vida que marcha sobre eles para os esmagar. [276]

A primeira cena do drama apresenta-nos a imagem de um homem no ornáculo da grandeza humana. O rei Édipo está nos degraus do seu palácio. De joeIhos, o seu povo dirige-lhe uma súplica pela voz de um sacerdote. Uma desgraça caiu sobre Tebas, uma epidemia destrói os germes da vida. Noutro tempo Édipo libertara a cidade da esfinge. Cabe-lhe salvar outra vez a terra, que é, aos olhos dos seus súbditos, "o primeiro, o melhor dos homens". Arrasta atrás de si o cortejo magnífico das suas acções passadas, das suas proezas, dos seus benefícios. Sófocles não fez deste grande rei um princípe orgulhoso, uma senhor duro. embriagado pela fortuna. Apenas lhe atribui sentimentos de bondade, gestos de atenção para o seu povo. Antes mesmo que viessem implorar, ele reflectira e agira. Édipo enviara a Delfos Creonte, seu cunhado, a consultar o oráculo, marcando assim o seu habitual espírito de decisão. Agora, ao apelo dos seus, comove-se e declara que sofre mais do que nenhum dos tebanos, pois é por Tebas inteira que sofre. Sabemos que diz a verdade. Sente-se responsável pela pátria que dirige e que ama. A sua figura encarna, desde o começo do drama, as mais altas virtude do homem e do chefe. Para o ferirem, os deuses não podem alegar orgulho ou insolência. Tudo e autêntico neste homem; nesta alta fortuna, tudo é merecido. Primeira imagem que se grava em nós. No mesmo lugar, no alto da escadaria, aparecerá, na última cena, o proscrito de olhos sangrentos — imagem de um cúmulo de miséria que sucede a um cúmulo de grandeza.

Esperamos esta reviravolta: conhecemos o desenlace deste destino. Desde o princípio da peça que certos toques de ironia — essa "ironia trágica" que dá o seu tom ao poema — se pousam sobre as palavras das personagens, sem que elas o saibam, e nos advertem. Estas, com efeito, ignorantes do drama antigo em que tiveram a sua parte, drama já cumprido e que não tem de trazer à luz do dia o seu horror, pronunciam tal ou tal palavra que para elas tem um sentido banal e tranquilizador, um sentido em que as vemos apoiar-se confiantemente. Ora, esta mesma palavra, para o espectador que sabe tudo, passado e futuro, tem um sentido inteiramente diferente, um sentido ameaçador. O poeta toca o duplo registo da ignorância da personagem e do conhecimento do espectador. Os dois sentidos ouvidos ao mesmo tempo são como duas notas confundidas numa horrível dissonância. Não se trata, aliás, de um simples processo de estilo. Sentimos essas palavras irônicas como se elas se formassem nos lábios ias personagens, sem que estas o saibam, pela acção da potência misteriosa escondida atrás do acontecimento. Um deus troça da falsa segurança dos homens... [277]

A construção da sequência do drama é uma sucessão de quatro "episódios em que, de cada vez, o destino desfere em Édipo um novo golpe. O último derruba-o.

Esta composição é tão clara que o espectador logo de entrada vê a direcção e o fim dela. Vê esses quatro passos que o destino dá ao encontro do herói trágico. Não pode imaginar de que maneira o deus vai ferir o homem, uma vez que o poeta inventará de cada vez uma situação que a lenda não conhecia. Mas compreende de golpe a ligação dos episódios entre si, a coerência das quatro cenas sucessivas pelas quais a acção progride à maneira de um movimento de relojoaria. Para Édipo, pelo contrário, tudo o que, aos olhos do espectador, é sequência lógica, execução metódica de um plano concertado pelo deus, apresenta-se como uma série de incidentes, de acasos cujo encadeamento ele não pode distinguir e que, a seus olhos, apenas inter­rompem ou desviam a marcha rectilínea que ele deve seguir na sua busca do assassino de Laio. Édipo é ao mesmo tempo conduzido por uma mão de ferro, e em linha recta com efeito, para um fim que não distingue, para um culpado que é ele próprio, e contudo perdido em todos os sentidos em pistas divergentes. Cada incidente lança-o numa direcção nova. Cada golpe o aturde, por vezes de alegria. Nada o adverte. Há pois, na marcha da acção, dois movimentos distintos que nós seguimos simultaneamente: por um lado o avanço implacável de um raio luminoso no coração das trevas, por outro lado a marcha às apalpadelas, a marcha rodopiante de um ser que esbarra na escuridão com obstáculos invisíveis, progressivamente atraído, sem que o sonhe, para o foco luminoso. De súbito as duas linhas cortam-se: o insecto encontrou a chama. Num instante tudo acabou. (Ou parece ter acabado... Será ainda desse foco desconhecido que vem agora a luz, ou do homem fulminado?...)

O primeiro instrumento de que o destino se serve para ferir é o adivinho Tirésias. Édipo mandou vir o velho cego para ajudar a esclarecer o assassínio de Laio. Apolo determina, para salvação de Tebas, a expulsão do assassino. Tirésias sabe tudo: o cego é o vidente. Ele sabe quem é o autor do assassínio de Laio, sabe mesmo que é Édipo e que este é filho de Laio. Mas como o dira ele? Quem acreditará? Tirésias recua diante da tempestade que a verdade levantaria. Recusa-se a responder, e esta recusa é natural. É igualmente natural que esta recusa irrite Édipo. Tem diante de si um homem que só tem uma [278] palavra a dizer para salvar Tebas, e esse homem cala-se. Que pode haver de mais escandaloso para o bom cidadão que é Édipo? Que pode haver de mais suspeito? Uma só explicação se apresenta: Tirésias foi cúmplice do culpado a quem procura cobrir com o seu silêncio. Ora, a quem aproveitaria este silên­cio? A Creonte, herdeiro de Laio. Conclusão: Creonte é o assassino procurado. Édipo julga subitamente o seu inquérito próximo do fim, e encoleriza-se contra Tirésias cujo silêncio lhe barra o caminho, e que lhe recusa, porque sem duvida esteve metido na conspiração, os indícios de que precisa.

Esta acusação levantada pelo rei contra o sacerdote engendra, por sua vez, com igual necessidade, uma situação nova. O jogo psicológico, conduzido com rigor, faz avançar a máquina infernal. Tirésias, ultrajado, não pode fazer outra coisa senão proclamar a verdade: "O assassino que procuras, és tu mesmo..." Eis o primeiro golpe desferido, eis Édipo posto em presença dessa verdade que e!e persegue e que não pode compreender. Na sequência da cena, que sobe com o fluxo da cólera, o adivinho vai mais longe: entremostra um abismo de verdade ainda mais terrível: "O assassino de Laio é tebano. Matou seu próprio pai. mancha o leito de sua mãe." Mas Édipo não pode apreender esta verdade que Tirésias lhe oferece. Ele bem sabe que não matou Laio, que é filho de um rei de Corinto, que nunca teve nada com a terra tebana antes do dia em que, adolescente, a salvou da esfinge. Entra em casa aturdido, mas não abalado. Vai lançar-se com o seu costumado ardor na nova pista que o destino lhe aponta — a conspiração imaginária de Creonte.

Jocasta é o instrumento escolhido pela divindade para dar em Édipo o segundo golpe. A rainha intervém na disputa que rebenta entre o marido e o irmão. Quer acalmar o rei, tranquilizá-lo sobre as declarações de Tirésias. Pensa consegui-lo ao dar-lhe uma prova evidente da inanidade dos oráculos. Em tempos, um adivinho predissera a Laio que ele pereceria pela mão de um filho. Ora este rei foi assassinado por bandidos, numa encruzilhada, durante ama viagem que ele fazia pelo estrangeiro — e o único filho que ele jamais tivera fora exposto na montanha para aí morrer, três dias após o nascimento. Eis o crédito que se pode dar aos adivinhos.

Estas palavras de Jocasta, destinadas a sossegar Édipo, são aquelas que, precisamente, pela primeira vez, vão morder a certeza que ele tem da sua inocência. Na máquina infernal havia uma pequena mola que podia transformar a firmeza em dúvida, a segurança em angústia. Sem o saber, Jocasta tocou nessa mola. Deu sobre a morte de Laio um desses pormenores insignificantes [279] que se metem numa narrativa sem pensar: disse, de pasagem, que Laio fora assassinado "numa encruzilhada". Este pormenor mergulhou no subconsciente de Édipo, removeu toda uma massa esquecida de lembranças. O rei revê subitamente essa encruzilhada de uma antiga viagem, essa disputa que tivera com o condutor de uma atrelagem, esse velho que lhe batera com um chicote, a sua brusca cólera de homem vigoroso e o golpe que desferira... Terá Tirésias dito a verdade? Não que Édipo tenha ainda a menor suspeita da rede de acontecimentos que o levaram àquela encruzilhada. Na narração de Jocasta, uma vez ouvidas as palavras a respeito da "encruzilhada de três caminhos Édipo, todo entregue às suas recordações, deixou passar a frase, aquela que falava da criança exposta, que poderia obrigar o seu pensamento a meter por um caminho muito mais temeroso. É-lhe pois impossível supor que tenha podido matar seu pai, mas é obrigado a admitir que pode ter matado Laio. Édipo persegue Jocasta com perguntas. Espera encontrar no assassínio que ela lhe conta uma circunstância que não concorde com o assassínio que ele se lembra agora de ter cometido. "Onde era essa encruzilhada?" O lugar concorda "Em que época foi esse crime?" O tempo concorda. "Como era esse rei? Que idade tinha?" Jocasta responde: "Era alto. A cabeça começava a embranquecer. Depois, como se o notasse pela primeira vez: "Parecia-se um pouco contigo. Compreende-se aqui o poder da ironia trágica e qual o sentido, ignorado de Jocasta, que o espectador dá a esta semelhança... Um pormenor, contudo, não acerta. O único servo escapado ao extermínio da encruzilhada declarara (adivinhamos que ele mentiu para se desculpar) que o seu senhor e os seus companheiros tinham sido mortos por um grupo de bandidos. Édipo sabe que estivera sozinho. Manda chamar o servo. Agarra-se a este pormenor falso, ao passo que o espectador espera precisamente deste encontro a catástrofe.

Terceira ofensiva do destino: o mensageiro de Corinto. No decurso da cena anterior, Édipo falara a Jocasta de um oráculo que lhe fora dado na juventude: ele devia matar o pai e casar com a mãe. Por causa disso deixara Corinto e tomara o caminho de Tebas. Eis que um mensageiro lhe vem anunciar a morte do rei Políbio, esse pai que ele devia assassinar. Jocasta triunfa: "Mais um oráculo mentiroso!" Édipo partilha da sua alegria. Recusa-se contudo a regressar a Corinto, com medo de se expor à segunda ameaça do deus. O mensageiro procura tranquilizá-lo. Como Jocasta ainda há pouco, vai. com as melhores intenções, pôr a funcionar uma peça da máquina e precipitar a catástrofe. "Porque hás-de recear o leito de Mérope?", diz. "Ela não é tua [280] mãe." Mais adiante: "Políbio era tanto teu pai como eu." Nova pista divergente oferecida à curiosidade de Édipo. Precipita-se por ela. Agora está a cem léguas do assassínio de Laio. Só pensa — com uma alegre excitação — em desvendar o segredo do seu nascimento. Aperta o mensageiro com perguntas. O homem diz-lhe que ele próprio o entregara, criancinha ainda, ao rei de Corinto. Recebera-o de um pastor do Citerão, servo de Laio.

De golpe, Jocasta compreendeu. Num relâmpago, junta os dois oráculos falsos numa só profecia verídica. Ela é a mãe da criança exposta: nunca esquecera a sorte do pequeno infeliz. Eis porque, ao ouvir esta outra história de criança exposta — a mesma história —, é a primeira a compreender. Édipo, pelo contrário, deu pouca atenção à sorte do filho de Laio, se é que ouviu o pouco que Jocasta lhe havia dito. Por outro lado, só o enigma do seu nascimento o preocupa naquele momento e o desvia de todo o resto. Em vão Jocasta lhe suplica que não force este segredo. Leva o pedido à conta da vaidade feminina: a rainha teme certamente ter de vir a corar do nascimento obscuro do marido.

Obscuridade de que ele se glorifica.

"Filho afortunado do destino, o meu nascimento não me desonra. A boa estrela é minha mãe e o decurso dos anos me fez grande, de ínfimo que era." E isto é verdade: ele foi grande. Mas esta grandeza que é sua obra de homem, o destino a que ele a liga só lha concedeu para lha tirar — e troçar dele.

O destino dá o seu primeiro golpe. Basta a confrontação, presidida por Édipo, do mensageiro de Corinto e do pastor de Citerão que lhe entregara a criança desconhecida. Por um hábil arranjo do poeta, este pastor é o servo salvo do drama da encruzilhada. A preocupação da economia que marca aqui Sófocles concorda com o estilo sóbrio da composição. Um drama em que os golpes se sucedem com tanta precisão e rapidez nada pode tolerar de supérfluo.

Por outro lado, o poeta quiz que Édipo soubesse ao mesmo tempo e com uma so palavra toda a verdade. Não em primeiro lugar que era o assassino de Laio e só depois que Laio era seu pai. Uma catástrofe em dois tempos não teria a intensidade dramática do desenlace que — pelo facto de que uma só perso­nagem detém toda a verdade — vai rebentar, num único e terrível som de trovão, sobre a cabeça de Édipo. Quando o rei sabe pelo servo do pai que é o filho de Laio, nem sequer precisa de perguntar quem matou Laio. A verdade torna-se de súbito cegante. E ele corre a cegar-se a si próprio.

Então — enforcada Jocasta — oferece-se a nós a imagem nova daquele que foi "o primeiro dos homens": a Face de olhos mortos. Que tem ela para nos dizer? [281]

Toda a última parte do drama — após o terrível relato dos ganchos furando as pupilas em golpes repetidos — é o lento final de um poema cujo andamento fora até aqui cada vez mais precipitado. O destino satisfeito suspende a sua carreira e restitui-nos a respiração. O movimento vertiginoso da acção imobiliza-se de súbito em longos lamentos líricos, em adeuses, em pesares, em retornos sobre si mesmo. Não pensemos que por isto a acção se detém ou apenas se interioriza, nesta conclusão do drama, no próprio coração do herói. O lirismo é aqui acção: é activa meditação de Édipo sobre o sentido da sua vida, e o reajustamento da sua pessoa à presença do universo que o evento lhe descobre. Se a "máquina infernal" executou magnificamente a operação do "aniquila­mento matemático" de uma criatura humana, eis que neste ser aniquilado através do nosso horror, a acção vai retomar a sua marcha, seguir a lenta via das lágrimas e, contrariamente à nossa expectativa, desabrochar em piedade fraternal, florir em coragem.

Para os modernos, toda a tragédia acaba em catástrofe. Rei Édipo parece-lhes a obra-prima do género trágico, porque o seu herói parece afundar-se no horror. Mas esta interpretação é falsa: esquece todo esse fim lírico em que se situará a resposta de Édipo. Enquanto não for validamente explicada ests conclusão de Rei Édipo, magnífica em cena, outra coisa se não terá feito sem alterar o setido deste grande poema: na verdade Rei Édipo não terá sido compreendido.

Mas olhemos esse ser que avança tacteando e cambaleando. Está ele realmente aniquilado? Iremos nós comprazer-nos em contemplar nele o horror de um destino sem nome? "Povo mortal, o mundo pertence ao Destino, resigna-te!" Não, nenhuma tragédia grega — e nem sequer Édipo — convido, jamais um público ateniense a esta resignação, bandeira branca da derrota consentida. Para além do que parece gritos de desespero, protesto de aban­dono, encontraremos essa "força de alma" que é o duro núcleo de resistência inquebrável desse velho (Sófocles-Édipo) e do seu povo. Sentimos já que nesse ser votado ao aniquilamento, a vida bate ainda: ela reaprenderá a sua marcha. Édipo vai erguer como novas armas essas pedras com que o Destino o lapidou, revive para se bater de novo, mas numa perspectiva mais justa da sua condição de homem. É esta perspectiva nova que ele descobre na última parte de Rei Édipo.

A tragédia Rei Édipo abre-nos pois na quarta e última parte do seu percurso horizontes que não tínhamos sequer suspeitado ao princípio. Todo [282] drama, desde o primeiro instante, nos tinha falaciosamente tendido para a angústia do minuto em que Édipo conheceria o sentido da sua vida passada: parecia todo ele concebido e dirigido para produzir esse sábio crime concertado pelos deuses, que é o verdadeiro crime da peça — o assassínio de um inocente.

"Parecia..." Mas, não. O poeta revela-nos nesta conclusão do drama, pela ampla beleza desse fuste lírico com que coroa a sua obra, que o termo, o fim dessa obra não era a simples destruição de Édipo. Tomamos lentamente consciência de que a acção, por mais severa que tenha sido sobre nós a sua dominação, não nos conduzia à ruína do herói, mas antes nos fizera esperar, ao longo da peça e no mais profundo de nós próprios, uma coisa desconhecida, ao mesmo tempo temida e esperada, essa resposta que Édipo derrubado pelos deuses teria a dar a esses deuses. — Resposta que temos agora de descobrir.

II

Chorar as lágrimas trágicas, é reflectir... Nenhuma obra de grande poeta é escrita para nos fazer pensar. Uma tragédia propõe-se comover-nos e agradar-nos. É perigoso interrogarmo-nos sobre o sentido de uma obra poética e formular esse sentido em termos intelectuais. Contudo — se o nosso espírito não tem compartimentos estanques — toda a obra que nos comove ressoa na nossa inteligência e toma posse de nós. E foi também com todo o seu ser que o poeta a compôs. Atinge o nosso pensamento pelo caminho do estranho prazer do sofrimento partilhado com as criaturas nascidas da sua alma. É o terror, é a piedade, é a admiração e o amor pelo herói trágico que nos obrigam a perguntar a nós próprios: "Que acontece a este homem? Qual é o sentido deste destino?" O poeta impõe-nos pois a procura do sentido da sua obra como uma reacção natural do nosso entendimento ao estado de emotividade em que nos lança.

Parece-me distinguir em nós, a propósito de Édipo, três reacções deste gênero, três sentidos que o nosso pensamento atribui a esta tragédia, à medida que ela caminha e progride em nós, três etapas do nosso espírito para a sua plena significação.

A primeira etapa é a revolta. [283] Um homem está diante de nós, apanhado numa armadilha diabólica. Este homem é um homem de bem. Essa armadilha é montada por deuses que ele respeita, por um deus que lhe impôs esse crime que lhe imputa. Onde está o culpado? Onde está o inocente? Nós gritamos a resposta: Édipo está inocente. O deus é criminoso.

Édipo está inocente porque, em nossa opinião primeira, não existe falta fora duma vontade livre que tenha escolhido o mal.

Ésquilo, tratando o mesmo assunto, dava ao oráculo o sentido de uma proibição feita a Laio de ter um filho. A procriação dessa criança era desde logo um acto de desobediência aos deuses. Édipo pagava a falta do pai, não sem ter-lhe acrescentado, aliás, no curso da sua vida, uma falta sua. O deus de Ésquilo feria com justiça.

Mas esta interpretação do mito não é de modo algum a de Sófocles. O oráculo de Apolo a Laio é apresentado pelo poeta de Rei Édipo como uma predição pura e simples do que acontecerá. Nenhuma falta, nenhuma impru­dência dos mortais justifica a ira dos deuses. Laio e Jocasta fazem tudo quanto lhes é possível para deter o crime em marcha: expõem o filho único. Do mesmo modo procede Édipo quando recebe o segundo oráculo, abandona os pais. No decorrer do drama, nem a boa vontade de Édipo nem a sua fé claudicam, seja qual for a circunstância.

Ele só tem um desejo, salvar Tebas. Para o conseguir conta com o apolo dos deuses. Se toda a acção deve ser julgada segundo a sua intenção, Édipo está inocente de um parricídio e de um incesto que ele não quis nem conheceu.

Quem é pois o culpado? O deus. Só ele desencadeou, sem sombra de razão, toda a sequência dos acontecimentos que levam ao crime. O papel do deus é tanto mais revoltante quanto é certo ele só intervir em pessoa nas circunstâncias em que o homem, à força de boa vontade, pareceria ir fugir ao destino. Assim, ao dar a Édipo o segundo oráculo, o deus sabe que esse oráculo será erradamente interpretado.

Especulando com a afeição filial e a piedade da sua vítima, revela do futuro exactamente quanto baste para que ele se realize com o concurso da virtude. A sua revelação faz que funcionem os elementos livres da alma humana, precisamente no sentido do mecanismo do destino. Estes pequenos empurrões da divindade são revoltantes.

Mas divertem o deus. As palavras de ironia trágica são o eco do seu riso nos bastidores.

Menos ainda que todo o resto, é este escárnio que nós não podemos [284] perdoar à divindade. Se os deuses mofam de Édipo inocente, ou por culpa deles culpado, como não sentiremos a sorte do herói como um ultrage à nossa humanidade? A partir daí, no sentimento da nossa dignidade ferida, apossamo-nos da tragédia para fazer dela um acto de acusação contra a divindade, um documento da injustiça que nos é feita.

Esta reacção é sã. Sófocles sentiu esta revolta legítima. A dura estrutura da acção que ele construiu no-la inspira. Contudo, Sófocles não se detém neste movimento de cólera, contra os nossos senhores inimigos. Ao longo de toda a peça, há sinais que nos advertem, obstáculos que entravam em nós a revolta, que nos impedem de nos instalarmos nela, que nos convidam a ultrapassar este sentido primeiro do drama e a interrogar novamente a obra.

Primeira barreira à nossa rebelião: o coro.

Sabemos a importância do lirismo coral em toda a tragédia antiga. Ligado à acção, como a forma à matéria, o lirismo elucida o sentido do drama. Em Édipo, após cada um dos episódios que aumentam a nossa indignação contra os deuses, os cantos do coro são surpreendentes profissões de fé na divindade. Inalterável é a dedicação do coro ao seu rei, inalterável a sua fidelidade e o seu amor pelo benfeitor da cidade, mas também inalterável é a confiança do coro na sabedoria da divindade. Nunca o coro opõe Édipo e os deuses. Onde nós procuramos um inocente e um culpado, uma vítima e o seu carrasco, o coro une o rei e o deus num mesmo sentimento de veneração e de amor. No centro deste drama em que vemos afundar-se no nada o homem, a sua obra e a sua fortuna, o coro assenta firmemente a certeza de que existem coisas que duram, afirma a presença, para lá das aparências, de uma realidade esplêndida e desconhecida que solicita de nós mais do que uma negação revoltada.

Todavia, no exacto momento em que o coro afirma assim a sua fé, sentem-se passar frémitos de dúvida que tomam essa fé mais autêntica.

Como se resolverá esta oposição que parece por momentos dividir Édipo e os deuses, nem o coro, nem o próprio Sófocles o sabem ainda plenamente. Para dissolver estas aparentes e fugidias contrariedades, estas antinomias no seio da verdade, serão precisos quinze anos. será preciso que Sófocles escreva Édipo em Colono.

Uma outra personagem, de maneira inversa, nos desvia da revolta: Jocasta. A figura desta mulher é estranha. Jocasta é ela própria uma negação. Nega os oráculos, nega o que não compreende e o que teme. Julga-se mulher de experiência, é uma alma limitada e céptica. Pensa não ter medo de nada: para se tranquilizar, declara que não há nada no fundo do ser senão o acaso. "Para [285] que serve ao homem amedrontar-se?", diz ela. "Para ele, o acaso é o senhor soberano. O melhor é que se lhe abandone. Deixa de temer o leito de tua mãe. Muitos homens, em sonhos, partilharam o leito maternal. Quem despreza esses terrores suporta facilmente a vida." Esta maneira de atribuir tudo ao acaso para tirar aos nossos actos o seu sentido, esta explicação rasamente racionalista (ou freudiana) do oráculo que aterroriza Édipo — tudo isto é de uma sabedoria medíocre que nos afasta de Jocasta e nos impede de seguir uma via em que a nossa inquietação em relação aos deuses se apaziguaria na recusa de dar atenção à sua linguagem obscura. Sentimos na argumentação desta mulher uma baixeza de olhar que nos afasta subitamente de julgar levianamente os deuses e o mistério que eles habitam. A falsa sabedoria da rainha obriga-nos a tocar com o dedo a nossa própria ignorância.

Quando a verdade surge, Jocasta enforca-se. O seu suicídio enche-nos de horror. Mas não temos lágrimas para esta alma réproba.

Finalmente, eis, no momento da catástrofe do drama, um último e impre­visto obstáculo que nos proíbe de condenar os deuses. Édipo não os condena Nós acusamo-los de terem ferido um inocente e o inocente proclama-se culpado, Todo o fim da tragédia — essa vasta cena em que, agora que a acção explode feriu Édipo no rosto, contemplamos com o herói o seu destino como um mar de sofrimento imóvel — , todo este final do drama é, indiquei-o já, essencial à sua significação.

Édipo sabe agora donde veio o golpe que o derruba. Grita: "Apoio, sim. Apolo, meus amigos, é que é o único autor das minhas desgraças!" Sabe que é "odiado pelos deuses": di-lo e repete-o. Contudo, não tem, em relação a eles, o mais pequeno movimento de ódio.

A sua maior dor é estar despojado deles. Sente-se separado deles: "Agora, estou privado de deus." Como alcançar a divindade, ele, o culpado, o criminoso? Nenhuma acusação, nenhuma blasfémia na sua boca. O seu inteiro respeito pela acção dos deuses para com ele, a sua submissão à autoridade na provação em que se lançaram, advertem-nos de que entreviu o sentido do seu destino e convidam-nos a procurá-lo com ele.

Com que direito nos revoltaríamos, se Édipo não se revolta? Com ele queremos conhecer a ordem dos deuses — essa ordem que, mesmo para lá da justiça, se impõe aos homens. [286]

Conhecimento tal é a segunda etapa da nossa reflexão sobre esta tragédia. Toda a tragédia nos abre uma perspectiva sobre a condição humana, e esta mais do que qualquer outra.

A tragédia de Édipo é a tragédia do homem. Não a de um homem particular, com o seu carácter distinto e o seu debate interior próprio.

Nenhuma tragédia antiga é menos psicológica que esta, nenhuma é mais "filosófica". Aqui é a tragédia do homem na plena posse de todo o poder humano e esbarrando com aquilo que no universo recusa o homem.

Édipo é apresentado pelo poeta como a perfeição do homem. Ele possui toda a clarividência humana — sagacidade, juízo, poder de escolher em cada caso o melhor partido. Possui também toda a "acção" humana (traduzo uma palavra grega) — espírito de decisão, energia, poder de inserir o seu pensa­mento no acto. E, como diziam os Gregos, senhor do logos e do ergon, do pensamento e da acção. É aquele que reflecte, explica, e aquele que age.

Além disso, Édipo pôs sempre esta acção reflectida ao serviço da comu­nidade. E esse é um aspecto essencial da perfeição do homem. Édipo tem uma vocação de cidadão e de chefe. Não a realiza como "tirano" (apesar do falso título, em grego, da peça), mas em lúcida submissão ao bem da comunidade. O seu "erro" nada tem que ver com um mau emprego dos seus dons, com uma vontade má que procuraria fazer prevalecer o interesse particular sobre o bem geral. Édipo está pronto, a todo o momento, a dedicar-se inteiramente à cidade. Quando Tirésias lhe diz, pensando que o amedronta: "A tua grandeza perdeu-te", ele responde: "Que importa perecer, se salvo a minha terra?"

Acção reflectida é acção votada à comunidade, tal é a perfeição do homem antigo... Por onde pode o destino agarrar um homem assim? Simplesmente e precisamente no facto de ele ser um homem — e por a sua acção de homem estar submetida às leis do universo que regem a nossa condição. Não devemos situar o erro de Édipo na sua vontade. O universo não se ocupa destas coisas, não cuida de serem boas ou más as nossas intenções, da moral que construímos ao nosso nível de homem. O universo ocupa-se apenas do acto em si mesmo, para o impedir de perturbar a ordem que é a sua, ordem na qual se insere a nossa vida mas que se mantém estranha a nós.

A realidade é um todo. Cada acto do homem ressoa nesse todo. Sófocles sente intensamente a lei de solidariedade que liga, queira-o ele ou não, o homem ao mundo. Quem age liberta de si um ser novo — o seu acto — que, separado do seu autor, continua a agir no mundo, de maneira inteiramente [287] imprevisível para aquele que o desencadeou. Este primeiro autor do evento nem por isso é menos responsável — não de direito, mas de facto — pelas suas últimas repercussões. De direito, esta responsabilidade só deveria ligar-se a ele se ele conhecesse todas as consequências do seu acto. Não as conhece. O homem não é omnisciente — e tem de agir. Essa é a tragédia. Todo o acto nos expõe. Édipo, homem no mais alto grau, está supremamente exposto

Assim se aponta uma ideia singularmente dura e, de certo ponto de vista, muito moderna, da responsabilidade. Um homem não é somente responsável pelo que quis, é-o também pelo que se verifica ter feito à luz do acontecimento que os seus actos engendram, sem que tenha disposto de qualquer meio de calcular e, com mais forte razão, de impedir esse resultado.

Sermos tratados pelo universo como se fôssemos omniscientes, surda ameaça de todo o destino, se o nosso saber é misto de ignorância, se o mundo em que somos forçados a agir para subsistir, nos é, no seu funcionamento secreto, ainda quase inteiramente obscuro. Sófocles adverte-nos. O homem não conhece o conjunto das forças cujo equilíbrio constitui a vida do mundo. A boa vontade do homem, prisioneira da sua natural cegueira, é pois ineficaz para o preservar da desgraça.

Tal é o conhecimento que o poeta nos revela na sua tragédia. Disse-o já duro conhecimento. Mas responde tão exactamente a toda uma parte da nossa experiência que ficamos deslumbrados pela sua verdade. O prazer do verda­deiro livra-nos da revolta. O destino de Édipo — mesmo se o seu caso não é mais que um caso-limite — parece-nos de súbito exemplar de todo o destino humano.

E isto mais ainda do que se ele pagasse um erro no sentido corrente da palavra. Se ele se comportasse como senhor iníquo e brutal, como o tirano de Antígona, por exemplo, tocar-nos-ia sem dúvida na sua queda, mas de maneira menos aguda, porque nós pensaríamos poder evitar a sua sorte. Pode-se evitar ser um homem mau. Como evitar ser um homem? Édipo é homem apenas — homem que triunfou como nenhum outro na sua carreira. A sua vida é toda construída de boas obras. E esta vida acabada manifesta de súbito a sua impotência, faz explodir a vaidade das obras perante o tribunal do universo.

Não é que o seu exemplo nos desanime de agir. Uma poderosa vitalidade se desprende da sua pessoa, mesmo no fundo do abismo donde nos fala. Mas nós sabemos agora, graças a ele — sim, nós sabemos: pelo menos isto se ganhou — , o preço que poderemos ter de pagar pela acção, e que o fim dessa [288] acção, por vezes, não nos pertence. O mundo que nos aparecia falsamente claro, quando pensávamos poder construir nele, à força de sabedoria e de virtude, uma felicidade inteiramente preservada dos golpes que ele nos destina. A realidade que nós imaginávamos maleável, revelam-se subitamente opacos, resistentes, cheios de coisas, de presenças, de leis que não nos amam, que existem não para nosso uso e serviço, mas no seu ser desconhecido. Sabemos que é assim, que a nossa vida paira numa vida mais vasta, que talvez nos condene. Sabemos que quando olhávamos tudo com olhos claros era então que estávamos cegos. Sabemos que o nosso saber é pouca coisa, ou antes, que das intenções do universo a nosso respeito uma só é certa: a condenação dada contra nós pelas leis da biologia.

Sófocles fez da cegueira de Édipo um admirável símbolo, prenhe de sugestões múltiplas. Ao cegar-se, Édipo torna visível a ignorância do homem. Faz mais ainda. Não apresenta apenas o nada do saber humano, alcança na noite uma outra luz, acede a um outro saber, que é o conhecimento da presença em redor de nós de um mundo obscuro. Este conhecimento do obscuro não é já cegueira, é olhar,

O mesmo tema se anunciava no diálogo de Tirésias e do rei, o cego via pelo olhar do Invisível, ao passo que o vidente se mantinha mergulhado nas trevas. No final do drama, ao rebentar os seus olhos de homem, Édipo não manifesta apenas que só o deus é vidente, entra na posse duma luz que lhe é própria, que lhe permite sustentar a visão do universo tal como ele é, e, contra toda a expectativa, aí afirmar ainda a sua liberdade de homem.

O gesto dos olhos rebentados permite-nos atingir, com efeito, na sua espantosa realização, a significação mais alta da tragédia.

Porque passa em nós, espectadores, uma espécie de frémito de alegria, quando a visão da face sangrenta se apresenta sobre a cena em vez de simplesmente nos encher de horror?

Porquê? Porque finalmente nós temos nesses olhos rebentados a resposta de Édipo ao destino. Édipo cegou-se a si mesmo. Ele o proclama com veemência:

"Apolo votou-me à desgraça. Mas eu, com as minhas próprias mãos, me ceguei."

Assim ele reivindica, escolhe o castigo que o destino lhe reservava. Dele faz o seu primeiro gesto de homem livre que os deuses não repelirão. Édipo, não passivamente, mas com toda a profundeza do seu querer, adere com violência ao mundo que lhe é preparado. A sua energia é, neste acto, singular, e [289] assustadora, tão cruel, em verdade, como a hostilidade do mundo em relação a ele.

Mas que significa este impulso poderoso que, subindo das raízes do seu ser como uma seiva, o leva a exceder a sua desgraça, senão que, nesta derradeira provação da rivalidade que o opõe ao mundo, Édipo toma agora o comando da corrida, e que, resolvido a alcançar o seu destino, o alcança, ultrapassa, o deixa enfim atrás de si, ei-lo livre.

O último sentido do drama é. ao mesmo tempo, adesão e libertação. Adesão. Édipo quer o que o deus quis. Não que a sua alma se junte misticamente na alegria do Ser divino. O trágico grego não desagua senão muito raramente no misticismo, se alguma vez chega a desaguar nele. Funda-se antes na verificação objectiva de que existem no mundo forças ainda ignoradas do homem, que regem a sua acção. Essa região desconhecida do Ser, esse mistério divino, esse mundo que está separado do dos homens por um profundo abismo todo esse divino é sentido por Édipo como um outro mundo, um mundo estrangeiro. Um mundo que talvez um dia seja conquistado, que se explicará em linguagem de homem. Mas por agora (o agora de Sófocles) um mundo fundamentalmente estrangeiro, quase um corpo estranho que é preciso expulsar da consciência humana. Não, como acontece com o místico, um mundo que a alma deve desposar. Na realidade, um mundo a humanizar.

Para ganhar a sua liberdade em relação a esse mundo, Édipo lançou-se no abismo que o separa do nosso. Por um acto de coragem inaudita, foi procurar no mundo dos deuses um acto deles, preparado para o punir nesse acto que lhe devia ser desferido como uma ferida, a si mesmo o aplicou "com as suas próprias mãos", dele fez um acto do mundo humano, quer dizer, um acto livre. Obrigado o homem a admitir que esse estrangeiro é capaz de lhe tomar a direcção da sua própria vida, acontece que o herói trágico não pode dar-lhe um lugar no seu pensamento, não pode aceitar determinar a sua conduta sobre a experiência que daí tira, se não estiver persuadido de que, no seu ser des­conhecido, esse Senhor é de alguma maneira digno de ser amado. Édipo, ao escolher a cegueira, adapta a sua vida ao conhecimento que a sua desgraça lhe deu da acção divina no mundo. É nesse sentido que ele quer o que o deus quis. Mas esta adesão ao divino, que é acima de tudo um acto de coragem meditada, ser-lhe-ia impossível se não implicasse uma parte de amor. Amor que procede de um duplo movimento da natureza do homem: em primeiro lugar, o respeite do real e das condições que ele impõe a quem quer viver plenamente, e em [290] segundo lugar muito simplesmente o impulso que lança para a vida toda a criatura viva.

Para aceitar o preço de uma ofensa que cometeu sem saber como, é preciso que Édipo admita a existência de uma realidade cujo equilíbrio per­turbou, é preciso que distinga, ainda que confusamente, no mistério em que esbarra, uma ordem, uma harmonia, uma plenitude de existência a que o impele a associar-se o amor ardente que sempre dedicou à vida, à acção, e que traz em si, agora, na plena consciência das ameaças que elas reservam a quem quer viver com grandeza.

Édipo faz um acto de adesão ao mundo que o despedaçou porque esse mundo é, seja o que for que ele empreenda em relação ao nosso, o receptáculo do Deus vivo. Acto religioso que exige, além da coragem lúcida, um inteiro desprendimento, pois essa ordem que ele pressente para além das aparências, não é uma ordem que o seu espírito de homem possa apreender claramente, uma ordem que lhe diga respeito, um plano da divindade que tenha o homem como fim, uma providência que o julgue e vise ao seu bem segundo as leis humanas da moral.

Que é então essa ordem universal? Como apreender essas leis inapreensíveis? Existe no fundo do universo, diz o poeta, "uma adorável santidade". Ela conserva-se a si própria. Não tem necessidade alguma do homem para se manter. Se acontece perturbá-la, por engano, qualquer imprudente, o universo restabelece, à custa do culpado, a ordem sagrada. Aplica a lei: o falso corrige-se a si mesmo, como que automaticamente. Se o herói do drama de Sófocles nos parece triturado por uma máquina, é porque o mundo, perturbado na sua harmonia pelo parricídio e pelo incesto, espontaneamente, mecanica­mente, restabeleceu o seu equilíbrio esmagando Édipo. O castigo do culpado não tem outro sentido: é uma "correcção", no sentido de rectificação de um erro. Mas, na passagem da catástrofe que devasta a sua vida, Édipo reconhece que a vida do universo manifestou a sua presença. Ama essa pura fonte do Ser, e esse amor distante que dedica ao Estrangeiro, de maneira imprevista, alimenta e regenera a sua própria vida, desde o momento que aceitou que seja restaurada, pelo seu castigo, a santidade inviolável do mundo que o esmaga.

O deus que fere Édipo é um deus duro. Não é amor. Um deus-amor teria certamente parecido a Sófocles subjectivo, feito à imagem do homem e das suas ilusões, maculado de antropomorfismo e de antropocentrismo ao mesmo tempo. Nada na experiência de Édipo sugere um tal deus. O divino é mistério e [291] ordem. Tem a sua própria lei. É omnisciente e todo-poderoso. Não há mais nada a dizer dele... Contudo, se é difícil supor que nos ame, pelo menos ainda é possível ao homem concluir, com dignidade, um pacto com a sua sabedoria desconhecida.

Deus reina — incognoscível. Os oráculos, os pressentimentos, os sonhos — vaga linguagem que ele nos dirige — são como bolhas que do fundo do seu abismo sobem para as regiões humanas. Sinais da sua presença, mas que não permitem compreendê-lo e julgá-lo, se têm algo de sentido de uma predesti­ nação, são muito mais, para o homem, a ocasião de entrever a omnisciência de Deus, de contemplar o necessário, a lei. Esta visão colhida pelo homem dirige doravante o seu comportamento de criatura sem dúvida débil, mas decidida a viver de harmonia com as leis severas do Cosmos. Desde que. através da sua linguagem confusa, ouve o apelo que o Universo lhe dirige. Édipo lança-se para o seu destino com um impulso semelhante ao do amor. Amor fati, diziam os antigos (ou Nietzsche, condensando o seu pensamento) para exprimir esta forma nobre do sentimento religioso, esse esquecimento das ofensas, esse perdão do homem ao mundo. Ou ainda essa reconciliação no coração dividido do homem, do seu destino, que é o de ser esmagado pelo mundo, e da sua vocação, que é de amar e de concluir o mundo.

Adesão no amor que é criação. Ao mesmo tempo: Libertação. Édipo parece subitamente aprumar-se. Ele declara:

"Tão grandes são os meus males, que ninguém entre os homens poderia suportar-lhes o peso — a não ser eu."

É que o círculo do fatal está quebrado e ultrapassado, no momento que Édipo colabora na sua própria desgraça e a leva ao cúmulo, no momento que ele remata, com um acto deliberado, essa imagem absoluta da desgraça que os deuses se comprouveram a modelar na sua pessoa. Édipo passou para o outro lado do muro, está fora do alcance do deus, desde o instante em que, tendo-o conhecido e admitido como um facto, não rigorosamente definível, mas certo, tendo-o experimentado no desastre da sua vida, o substitui na sua função de justiceiro, a ele se substitui e de algum modo o demite.

Não rivaliza Édipo com ele até na sua função de criador, se essa obra-prima da Desgraça que o artista divino concebera é o gancho levantado pela mão de Édipo que vai procurá-la no fundo das suas pupilas para a apresentar à luz do dia?

E agora a grandeza de Édipo, a alta estatura do homem, ergue-se novamente diante de nós. [292]

Oferece-se aos nossos olhos invertida. Não já no sentido que imaginá­vamos no começo do drama, que a grandeza de Édipo tombaria no chão aniquilada, mas no sentido de que ela se transforma numa grandeza inversa.

Era uma grandeza de fortuna, grandeza de ocasião e como que emprestada, medível pelos bens exteriores, à altura desse trono conquistado, por esse amontoado de proezas, feita de tudo o que o homem pode arrancar à sorte de surpresa. E agora uma grandeza de infortúnio e de provação, não de catástrofes que ficaram alheias, mas de sofrimentos assumidos, recebidos na intimidade da carne e do pensamento, sem outra medida, de futuro, que a desgraça infinita do homem, essa desgraça que Édipo fez sua. Participando da imensidade da nossa miséria nativa, essa grandeza iguala enfim aquele que aceita reparar pelo preço do seu sofrimento o mal que não quisera com Aquele que o havia inventado para consumar a sua perda.

A grandeza que os deuses lhe recusavam à claridade do sol, restaura-a Édipo na paz não nocturna mas constelada da alma. Pura doravante dos seus dons, da sua graça, do seu serviço, alimentada da sua maldição, dos seus golpes, das suas feridas, feita de lucidez, de resolução, de possessão de si.

Assim o homem responde ao destino. Da violência da sua servidão, faz ele o instrumento da sua libertação.

III

Rei Édipo mostrava que em todas as circunstâncias e até no rigor da ofensiva dirigida contra ele pelo Destino, o homem está em condições de manter a sua grandeza e o seu prestígio.

A ameaça trágica pode tudo contra a sua vida, nada pode contra a sua alma, contra a sua força de alma.

Esta firmeza de alma, vamos nós reencontrá-la intacta no herói de Édipo em Colono, afirmada por ele próprio logo nos primeiros versos como a virtude suprema que o mantém de pé na terrível provação que defronta pelas estradas, há anos.

Quando Sófocles escreve Édipo em Colono, ultrapassou os limites ordi­nários da vida humana: reflectiu muito sobre Édipo, viveu muito com Édipo. A [293] resposta que na última parte de Rei Édipo o herói dava ao destino, não lhe parece, agora que ele próprio se aproxima da morte, absolutamente satisfatória. Continua válida, decerto, para o momento da vida de Édipo em que foi dada mas a vida de Édipo continuou... Não retomaram os deuses o diálogo? Retomaram a ofensiva? Édipo em Colono é uma continuação do debate entre Édipo e os deuses, continuação feita à luz íntima da experiência que Sófocles tem da velhice extrema. É como se Sófocles, próximo da morte, tentasse lançar, nesta tragédia, uma ponte, uma simples passagem entre a condição humana e a condição divina. Édipo em Colono é a única tragédia grega que franqueia o abismo que separa o homem da divindade — a Vida da Morte. É a história da morte de Édipo, uma morte que o não é, a passagem de um homem. eleito pelos deuses (porquê? ninguém o sabe) à condição de herói.

Os heróis são na religião antiga seres poderosos, por vezes intratavelmente benevolentes, por vezes claramente malévolos. O herói Édipo era o patrono da aldeia de Colono, onde nasceu e cresceu Sófocles. A criança, o adolescente prosperou sob o olhar desse demónio caprichoso que habitava nas profundezas da terra da sua aldeia.

Em Édipo em Colono, Sófocles procura preencher a distância que, para os Gregos, para o seu público ateniense e para si mesmo, existia entre o velho rei criminoso expulso de Tebas, o fora-da-lei condenado a rondar pelas estradas da Terra e esse ser benéfico que leva uma estranha sobrevivência no solo da Ática, esse deus à sombra do qual o jovem génio de Sófocles ganhou forças.

Esta tragédia tem pois por tema a morte de Édipo. mais exactamente a passagem da condição humana à condição divina. Mas por causa da referência implícita à juventude de Sófocles — essa juventude campestre cheia de oliveiras e de loureiros silvestres, de rouxinóis, de barcas e de cavalos — e dessa outra referência à velhice do poeta — carregada de conflitos, de desgostos cruéis e finalmente esplendente de serenidade — , por causa desta dupla referência, esta tragédia única contém, transporta num maravilhoso poema, tudo quanto podemos entrever das esperanças que Sófocles, na extrema margem da vida, põe na morte e nos deuses.

Édipo ganha a sua morte em três etapas. Conquista-a em três combates: contra os velhos camponeses de Colono, contra Creonte, contra seu filho Polinices. Em cada um destes combates contra pessoas que lhe querem tirar a sua morte, Édipo mostra uma energia singular num velho, manifesta uma [294] paixão, prova uma violência que, da última vez, na luta contra o filho, atinge um grau de intensidade quase intolerável.

Contudo, estas cenas de combate que nos conduzem à morte como a um bem a conquistar são tomadas numa corrente inversa de alegria, de ternura, de amizade, de confiante espera da morte. As cenas de luta são pois ligadas entre si e preparadas por cenas em que o velho reúne as suas forças no meio daqueles a quem ama, Antígona. Ismene, Teseu o rei de Atenas, em que saboreia na paz da natureza as últimas alegrias da vida, ao mesmo tempo que se prepara para essa morte que ele deseja e espera: faz passar na memória as dores da sua vida, essas dores que dentro em pouco lhe não farão mais mal. Toda esta corrente de emoções tranquilas nos leva para a serenidade da morte prometida a Édipo. Essa morte remata magnificamente o drama.

A morte de Édipo está pois situada no termo de duas correntes alternadas de paz e de luta: é o preço de um combate, é o cumprimento de uma espera.

Caminhamos, se assim posso dizer, para uma espécie de conhecimento da morte se estas palavras pudessem ter sentido. Graças à arte de Sófocles. tudo se passa como se o tivessem.

A primeira cena da tragédia é de uma poesia familiar e de uma beleza patética. O velho cego e a rapariga descalça avançam pelo caminho pedregoso. Há quantos anos andam assim pelas estradas, não o sabemos. O velho vem cansado, quer sentar-se. Pergunta onde está. Quantas vezes esta cena se repetiu? Antígona vê pelo velho, descreve-lhe a paisagem. Vê também por nós, espectadores. Sem dúvida havia um cenário com árvores pintadas numa tela. Sófocles inventou e empregou o cenário pintado. Mas o verdadeiro cenário é a poesia que brota dos lábios de Antígona que no-lo dá. A rapariga descreve o bosque sagrado com os seus loureiros e as suas oliveiras bravas, com a sua vinha; dá-nos a ouvir o canto dos rouxinóis: vemos o banco de pedra à beira da estrada e, ao longe, as altas muralhas da cidadela de Atenas.

O velho senta-se, ou antes Antígona senta-o na pedra. Retoma fôlego. O texto indica todo este pormenor com uma precisão pungente. Três coisas, diz Édipo a sua filha, bastaram para o preservar na sua provação: a paciência, o que ele chama, com uma palavra que significa igualmente "amar", a resignação, essa resignação que se confunde com o amor dos seres e das coisas. Final­mente, a terceira coisa e a mais eficaz, "a firmeza de alma", uma nobreza, ama generosidade da sua natureza que a desgraça não pôde alterar. [295]

Passa um caminheiro na estrada, interrogam-no. "Aqui", diz ele, "é o bosque sagrado das temíveis e benévolas filhas da Terra e da Escuridão, as Euménides."

O velho estremece; nestas palavras reconhece o lugar da sua morte, prometido por um oráculo. Com veemência — toda a energia do antigo Édipo — afirma que o não arrancarão daquele lugar. Reclama a sua morte, que lhe dará enfim o repouso. O caminheiro afasta-se para ir avisar Teseu. Édipo, sozinho com Antígona, roga às "deusas dos olhos terríveis" que tenha piedade dele, que lhe concedam a paz do último sono. Já o seu corpo não eéais que uma maceração: vai deixar este invólucro emurchecido, vai morrer.

Ouvem-se passos na estrada. É um grupo de camponeses de Colono, avisados de que entraram estrangeiros no bosque sagrado: indignam-se com o sacrilégio. O primeiro movimento de Édipo é penetrar no bosque, não deixar que lhe tirem a sua morte. Os camponeses espreitam-no da orla das árvores De súbito surge Édipo, que não é homem para se esconder muito tempo. Vem defender a sua morte. Apertado com perguntas indiscretas, declina a sua horrível identidade, sacudindo os camponeses de um arrepio de horror. Esque­cendo a promessa feita de que não usariam de violência, o coro grita: "Fora daqui, fora desta terra." Édipo é um ser contaminado: eles o expulsarão.

A partir deste primeiro combate, Édipo, ao contrário do que fazia em Rei Édipo, proclama e advoga a sua inocência. Parece ter sido através dos seus longos sofrimentos que ele tomou consciência dessa inocência — no lento e doloroso caminhar da estrada. Não que este novo sentimento o faça insurgir-se contra os deuses que o feriram. Simplesmente, sabe ao mesmo tempo estas duas doisas: os deuses são os deuses e ele está inocente. Além disso, porque os deuses o tocaram e cada dia mais ainda, porque o acabrunham de miséria, dai lhe vem um carácter sagrado. Édipo sente e exprime confusamente que um ser atingido pelos deuses está fora do alcance das mãos humanas — essas mãos ameaçadoras dos camponeses que se estendem para o agarrar. O seu corpo sagrado deve ficar, depois da sua morte, neste bosque das Euménides. Carregado de maldições divinas, sujo de máculas recebidas contra vontade, este corpo ao mesmo tempo impuro e sagrado (é a mesma coisa para os povos primitivos) dispõe doravante de um novo poder. É como uma relíquia, fonte permanente de bênçãos para aqueles que a conservem. Édipo anuncia-o orgu­lhosamente aos camponeses do coro trazendo o seu corpo aos habitantes da Ática, oferece um benefício a toda a região, à cidade de Atenas, cuja grandeza ele assegurará. [296]

Os camponeses recuam. Édipo ganhou o seu primeiro combate. ... O drama prossegue em muitas peripécias.

A cena mais desgarradora e a mais decisiva é a da súplica de Polinices e da intratável recusa do pai a ouvi-lo.

O filho está diante do pai — o filho que expulsou o pai, que o votou à miséria e ao exílio. Polinices está perante a sua obra: diante dela se mostra aniquilado. Este velho que se arrasta pelos caminhos com os olhos mortos, a cara cavada de fome, os cabelos mal tratados, tendo sobre ele um manto sujo cuja imundície se pega à do seu velho corpo — esse refugo de humanidade, é seu pai. Aquele a quem se propunha implorar, talvez levá-lo à força, para que o salve dos seus inimigos e lhe devolva o trono... Já nada pode pedir. Apenas pode confessar o seu erro e pedir perdão. Fá-lo com uma simplicidade que afasta qualquer suspeita de hipocrisia. Tudo é autêntico nas suas palavras. Édipo escuta-o. Não responde. Odeia este filho. Polinices esbarra com um bloco de ódio. Pergunta a Antígona que há-de fazer. Esta diz apenas: Recomeça e continua. Ele toma ao princípio, fala da questão que o opõe a Etéocles. Não fala somente por si, mas por suas irmãs, por seu pai mesmo, a quem se propõe instalar no palácio.

Esbarra sempre com o mesmo muro de rancor implacável. Édipo mantém-se imóvel e selvagem.

Finalmente, uma palavra do corifeu lhe roga que responda, por deferência para com Teseu que lhe enviou Polinices. O selvagem odiento é um homem cortês. Responde, pois, mas somente por consideração para com o seu hospe­deiro. E para explodir em horríveis imprecações. Este velho tão perto da morte e que deseja a paz do último sono, este velho não desarma, neste momento em que vê o filho pela última vez — o filho pródigo e arrependido — o pai não desarma o seu ódio inexpiável.

Em numerosas cenas deste amplo drama pudemos ver um Édipo apazi­guado, um Édipo tranquilo, conversando na alegria da amizade com Teseu, na doçura da afeição com Ismene ou Antígona reencontradas. Este abrandamento da cólera era sempre devido no velho à longa aprendizagem do sofrimento que lhe impôs a sua condição de miserável: aprendeu ao longo das estradas a suportar a sorte, vergou-se à sua vida de pobre diabo. Mas o perdão, o esquecimento das injúrias, não os aprendeu ele. Não sabe perdoar aos inimigos. Seus filhos trataram-no como inimigo: responde aos golpes com golpes. Maldiz os filhos. As maldições de um pai são terríveis entre todas as maldições. [297]

"Não, não, nunca derrubarás a cidade de Tebas. Tu serás o primeiro a cair, manchado de um assassínio, tu, e teu irmão contigo! Eis as imprecações que lancei contra vós..."

Repete as fórmulas consagradas, a fim de que as maldições invocadas ajam por si mesmas.

"Que, de mão de irmão, tu mates e sucumbas por tua vez, vítima de quem te baniu!... Invoco também a sombra terrível do Tártaro para que ela te colha em seu seio, invoco as deusas deste lugar, e Ares que vos pôs no coração, a ambos, essa execração mortal. Vai-te! Tais são os dons que Édipo neste dia reparte entre seus filhos."

Depois de assim amaldiçoar o filho, o velho cala-se bruscamente, fecha-se de novo no seu silêncio de pedra — enquanto Antígona e Polinices choram longamente. Por fim, o rapaz retoma o caminho para o seu destino.

Nunca, no decurso do drama, foi Édipo tão terrível. Nunca esteve talvez tão longe de nós. Acaba de liquidar ferozmente as suas contas com a vida.

E agora os deuses vão glorificar este homem inexpiável.

Ressoa o trovão. Édipo reconhece a voz de Zeus que o chama. Pede que mandem chamar Teseu, que deverá, sozinho, assistir à sua morte, e receber um segredo que transmitirá aos descendentes.

Édipo está livre de todo o temor. À medida que o momento solene se aproxima, sentimo-lo como que libertado do peso do seu corpo mortal e miserável. A cegueira já não é um obstáculo à sua marcha.

"Daqui a pouco", diz a Teseu, "sem nenhuma mão que me guie. conduzir-te-ei ao lugar onde devo morrer."

Sente nos membros uma "luz obscura" que o toca. É conduzido por essa luz invisível que penetra no bosque sagrado, seguido de suas filhas e de Teseu. O coro canta o eterno sono.

Um mensageiro chega. "Morreu?", pergunta o coro. E o homem não sabe que responder. Relata as últimas palavras de Édipo, os adeuses às filhas. Depois o velho meteu-se pelo bosque, apenas acompanhado de Teseu. Uma voz então ressoou no Céu, chamando Édipo pelo nome. O trovão ribomba outra vez.

Os outros tinham-se afastado. Quando se voltaram, "Édipo já ali não estava; não havia mais ninguém. Só o rei conservava a mão diante dos olhos, como se qualquer prodígio lhe tivesse aparecido, insuportável à vista. Depois prosternou-se, adorando a Terra e os deuses" [298]

Como morreu Édipo? Ninguém o sabe. Terá morrido? E que é a morte? Haverá uma relação entre a vida de Édipo e esta morte maravilhosa? Qual? Não podemos responder a estas perguntas, mas temos o sentimento de que, por esta morte estranha em que o herói desaparece no deslumbramento duma luz demasiado viva, os deuses quebraram para Édipo o curso da lei natural. A morte de Édipo parece (a Nietzsche, por exemplo) fundar um mundo novo, um mundo onde deixaria de haver Destino.

A interpretação de Édipo em Colono é delicada. Antes de mais, falemos uma vez ainda da diferença importante que separa esta tragédia da do Rei Édipo. No mais antigo dos dois dramas, Édipo confessava o seu erro e tomava sobre si a responsabilidade dele. No segundo, ao longo da tragédia e diante da maior parte das personagens, protesta a sua inocência. Apresenta o seu caso como legítima defesa, que, com efeito, diante de um tribunal ateniense, lhe valeria uma sentença de absolvição.

Contudo, esta contradição entre os dois dramas — além de que pode justificar-se pelo tempo que, na vida de Édipo, separa as duas acções — é apenas aparente. Por várias razões. A mais importante é que o Édipo do segundo drama não defende a sua inocência senão do ponto de vista da lógica humana e do direito humano. Fala a homens que vão estatuir sobre a sua sorte, quer obter deles protecção e justiça. Afirma que os homens justos não têm o direito de o condenar, que está humanamente inocente.

A sua inocência é pois encarada relativamente às leis da sociedade humana. Édipo está "inocente segundo a lei". Não é afirmada de maneira absoluta. Se o fosse, a consciência nova que Édipo daí tiraria marcar-se-ia por uma reviravolta da sua atitude para com os deuses. O respeito da acção deles na vida, o misto de terror e de adoração que ele sente em Rei Édipo por ter sido escolhido para ilustrar a omnipotência divina, daria lugar a um sentimento de revolta por ter sido atingido apesar da sua inocência. Nada disto se indica no nosso segundo drama.

Exactamente como em Rei Édipo, proclama a intervenção dos deuses na sua vida e fá-lo com simplicidade, mesmo nas próprias passagens que apoiam a sua inocência humana. ("Assim o quiseram os deuses", ou "Os deuses tudo conduziram.") Nenhuma acrimónia em Édipo, tanto numa como noutra peça.

Em Édipo em Colono como em Rei Édipo, verifica, como o mesmo espírito de objectividade, o mesmo desprendimento de si:

"Cheguei aonde cheguei, sem nada saber. Eles, que sabiam, me perderam." [299]

A sua perda prova, pois (inocente ou culpado: palavras demasiadamente humanas), a sua ignorância e a omnisciência dos deuses.

Contudo, no final de Rei Édipo como ao longo de Édipo em Colono, é dos deuses e só deles — nunca dos seus próprios méritos — que o rei derrubado espera a libertação. A sua salvação depende de uma livre decisão dos deuses.

A concepção da salvação que se manifesta no nosso drama confirma pois e verifica inteiramente a concepção do erro e do castigo tal como ela se manifestava na primeira tragédia. Édipo não merece a salvação, tal como não quis a sua falta nem mereceu o seu castigo.

É evidente que a apoteose que remata o drama de Édipo e coroa o seu destino não poderá, de modo algum, ser interpretada como recompensa de uma atitude moral.

Por isso não é a inocência do rei, o seu arrependimento, o seu perdão aos filhos que determinam a intervenção benévola dos deuses. Uma só e única circunstância parece decidi-los: a extensão das suas desgraças.

Podemos agora tentar precisar o sentido religioso de Édipo em Colono sem esquecer o de Rei Édipo.

Em Rei Édipo, Édipo era castigado não por uma falta pessoal mas como homem ignorante e actuante, pela lei da vida com que esbarra todo o ser actuante. A sua única falta residia na sua existência, na necessidade em que o homem está posto de agir num mundo cujas leis ignora. A condenação que o atingia, despojada de todo o carácter de punição, não atingia na sua pessoa senão o homem actuante.

Édipo em Colono faz aparecer no universo uma outra lei de que os deuses são guardiões, uma lei complementar da precedente, a lei que salva o homem sofredor. A ascensão de Édipo ao nível do herói não é concedida a Édipo pessoalmente, como recompensa dos seus méritos e da sua virtude. É concedida, como graça, ao homem sofredor. Tal como Édipo fora no primeiro drama a perfeição da acção, assim o vemos, em Colono, na ponta extrema do sofrimento humano. Não tenho que enumerar os males de Édipo, estabelecer o inventário pormenorizado deste sofrimento.

Um só verso da primeira cena basta para recordar o abismo de miséria em que caiu este homem feito para agir e para reinar. Édipo, esgotado, diz a Antígona:

"Senta-me e olha pelo cego." [300]

É total o contraste desta imagem do velho, mais fraco que uma criança, com a imagem do rei protector e salvador do seu povo que nos é oferecida no princípio de Rei Édipo.

Ora, é a este velho acabrunhado pela sorte, a este homem sofredor que os deuses vão salvar, que eles escolheram para glorificar, não tanto por causa da maneira como suportou os seus males, mas para manifestar o seu resplandecente poder de deuses. Não só Édipo será salvo, como se tornará ele próprio salvador. O seu corpo maculado vai revestir-se de uma virtude singular: dará a vitória ao povo e a prosperidade à terra.

Porque foi Édipo escolhido? Não o sabemos exactamente. Senão porque sofria. Os deuses são deuses uma vez mais: a sua graça é livre.
Quando muito, entrevemos que existe para Sófocles como que uma lei de compensação no mistério do universo. Se os deuses atingem Édipo sem razão, se o levantam sem razão, a verdade é que é o mesmo homem que sucessivamente e ferido e levantado. Quando Édipo se espanta ao saber por Ismene o oráculo que confere ao seu corpo esse poder salutar, Ismene responde.

"Os deuses te levantam depois de te terem derrubado."

Ismene não formula esta verificação como uma lei. Mas parece que Sófocles quer fazer-nos entrever que no coração do universo não há apenas a dura indiferença dos deuses, há também uma clemência, e o homem — o mesmo homem — pode, no curso da vida, encontrar uma e outra.

De Édipo, diz-nos ele "que levado por um deus ou recolhido no seio benévolo da Terra, está ao abrigo de todo o sofrimento".

A morte de Édipo não é nem a purificação de um culpado nem a justificação de um inocente. Não é outra coisa que a paz após os combates da
vida, que o repouso aonde um qualquer deus nos conduz.

Sófocles sabe, sem que isso o perturbe, que a morte é o único cumprimento possível duma vida humana. O homem nasceu para o sofrimento. (Édipo o diz. "Nasci sofredor.") Viver é arriscar o sofrimento. Mas esta mesma natureza temporal que nos expõe ao sofrimento é também a que cumpre a nossa libertação. Édipo reza às deusas do bosque sagrado:

"Concedei-me agora este termo da minha vida. Concedei à minha existência este desenlace, se dele vos não pareço indigno, eu que, durante a minha vida inteira, mais do que nenhum outro, fui sujeito à desgraça."

Édipo fala como um bom servidor que cumpriu bem a sua tarefa de ser sofredor. Reclama o seu salário: a paz da morte. [301]

Sófocles nada mais parece pedir à morte que esta paz, que é a fonte escondida da vida. Nenhuma imortalidade pessoal lhe parece necessária. Sim­plesmente, não fala dela. O sentido que dá à morte de Édipo parece-lhe suficiente, uma vez que os deuses querem que seja assim. Uma vez mais, somos reconduzidos ao rochedo da fé de Sófocles: admitir o que é.

No entanto, aqui somos voltados pelo poeta para uma outra face do Ser Se os deuses são assaz pérfidos, ou assaz indiferentes à vida, à felicidade humana, para deixarem que um deles monte a armadilha abominável que constitui a vida de Édipo, a sua volúvel indiferença compreende também, nas suas inumeráveis opções, a bondade. Mudaram de humor como uma mulher muda de vestido. Após o vestido cor de sangue e incêndio, o vestido cor do tempo.

Menos trágica talvez, esta cor é mais humana: e depois, nós somos homens, o que faz que o drama inteiro nos prenda e nos retenha por uma fibra mais terna. O céu mudou. Ganhou — por uma vez — rosto humano. Daí que no drama surjam tantos momentos tranquilos, calmas conversas, presenças amigas, atenta serenidade. E a viva beleza dos cavalos e das árvores. E as aves que cantam e que voam. E os pombos torcazes que arrulham. E essa longa, longa vida de Édipo (e de Sófocles) que, apesar de tudo, fluiu dia após dia, respirou como se bebe quando se tem sede.

Em Rei Édipo toda a mostra de amizade, toda a intenção de tranquilizar, carregadas de ironia, tinham um sentido mortal. Em Édipo em Colono, a lenta preparação da morte de Édipo é, por momentos, tão cheia de amigável bondade que, juntando-se por acaso à bondade divina, estas atenções humanas dão finalmente ao conjunto do drama, que é o drama da morte de Édipo, um sentido de vida.

Este sentido de vida está presente ao longo da tragédia. Corre por ela sem cessar, como esse fio vermelho tecido na brancura das velas da marinha inglesa, que, em caso de naufrágio, permitia descobrir a origem dos destroços. Assim todo este drama de morte tem constante e precioso valor de vida. Mas esse sentido culmina na última cena pelo dom insigne que os deuses concedem aos despojos de Édipo.

Édipo foi escolhido pelos deuses para tomar-se após a sua morte uma imagem exemplar da vida humana, infeliz e corajosa, uma força de vida que defenderá o solo da Ática para sempre. Tal como foi, assim ficará. Era vingativo, até ao ponto de cuspir, raivoso, a maldição sobre o filho.

Mas este traço convém à sua nova natureza de herói. Um sábio diz dos heróis: "Estes [302] seres superiores são eminentemente potências maléficas: quando ajudam, também prejudicam, e se nos acodem com o seu socorro, fazem-no com a condição de nos trazerem prejuízo."

A imortalidade do herói Édipo não é, de modo algum, a imortalidade da pessoa de Édipo num além longínquo; é, pelo contrário, no próprio lugar onde acabou a sua vida. a duração de um poder excepcional concedido pelos deuses a sua forma mortal, ao seu corpo sepultado, à sua cólera contra os adversários da comunidade ateniense. Édipo já não existe: concluiu a sua existência pessoal e histórica. Contudo, o sangue quente dos seus inimigos, correndo sobre a terra de Colono, virá um dia reaquecer de paixão o seu cadáver gelado. Ele o deseja, o declara no próprio coração do drama. O seu destino pessoal está doravante terminado. O seu túmulo fica em lugares onde se manifesta, sobre o solo do povo ateniense, o poder activo dos deuses.

Se ainda tem existência humana, essa existência é muito menos pessoal que colectiva. Existirá na medida em que Teseu, o seu povo, os seus descen­dentes, se lembrarem e se servirem dele. A sua existência está, de futuro, estreitamente ligada à da comunidade de que os deuses o fizeram protector.

Este sentido público da morte de Édipo ressalta claramente das últimas instruções que o velho dá às filhas. Insiste para que não assistam à sua morte: apenas Teseu, o chefe do Estado, estará presente e transmitirá aos sucessores o segredo cuja guarda Édipo lhe confiará.

Assim já a morte de Édipo lhe não pertence, nem àquelas a quem amou mais do que ninguém no mundo poderá amar. A sua morte não é uma questão privada: pertence a Atenas e ao seu rei. Esta morte tem, finalmente, um sentido de vida, de vida pública ateniense. Não é o fim da história de Édipo, é um penhor de duração para o povo que o venerará.

Édipo junta-se ao grupo dos heróis que protegem e defendem Atenas e a Grécia.

Heróis consagrados pelo gênio, Homero, Hesíodo, Arquíloco, Safo, Ésquilo. Não tarda que Sófocles tome lugar nesta constelação de presenças que velam pelo povo ateniense.

Os homens conseguem forçar o destino e instalar-se no céu heróico pelo gênio ou pela desgraça. Édipo e Sófocles têm igualmente esse direito.
Tal é a resposta última do grande poeta ateniense a essa pergunta que a lenda de Édipo tinha feito à sua infância e que ele só resolveu no termo adiantado da sua vida — frente às portas da morte, abertas para o acolherem. [303]

 

História - Civilização Grega
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6/13/2021 3:25:08 PM | Por Fabillane Cabral
A importância das Musas em Hesíodo e Homero

Aparentemente a Teogonia parece-nos apenas um mero catalogo de nomeações divinas, mas em uma analise mais profunda de seu conteúdo podemos perceber que todo o relato hesiódico vai muito além de nomeações olímpicas, Hesíodo ao compor a Teogonia expôs genealogicamente as gerações divinas e os mitos cosmogônicos, é importante ressaltar que esta ordenação genealógica, não deve ser entendida como uma  ordem cronológica pois no tempo mítico não é presente essa relação de "antes e depois" o mito em si não é cronológico ele é contínuo, o tempo e a temporalidade se subordinam ao exercício dos poderes divinos e a ação e presença  das potestades divinas, estabelecer uma relação de anterioridade e posterioridade seria impor um pensamento moderno sobre uma maneira arcaica de ver e entender o mundo.

Podemos dizer que a poesia em Hesíodo é de um todo didático-religioso, numa época anterior a aquisição da escrita, o aedo é o principal detentor do conhecimento e o transmite aos demais pelo canto, mas este conhecimento passado pelo aedo, não o pertence, porém lhe é revelado pelas musas filhas de Memória com Zeus, estas não são apenas divindades que revelam fatos passados, presentes e futuros  distantes ao poeta, porém são a própria palavra cantada, o poeta, portanto, tem na essência da palavra o poder de ultrapassar e superar todos os bloqueios e distâncias espaciais e temporais, um poder que só lhe é conferido pela Memória através das palavras cantadas (Musas)  ao nomeá-las o aedo não está apenas a descrever atributos, mas está evocando a sua presença para que lhe seja revelado os acontecimentos sem que nada o venha passar despercebido, e para que o seu canto seja agradável para os seus ouvintes, Hesíodo cataloga as musas em nove sendo elas: Clio(Glória), Euterpe (História), Thalia(Festa), Melpomene(Jubilo), Terpsichore(Coreografia), Erato(Amável), Polimenia(Muitos Hinos), Urania(Celeste), Calliope(Bela Voz) os nomes das musas exprimem qualidades próprias relacionadas a poesia oral, assim a poesia em Hesíodo tem uma característica  religiosa não apenas por transmitir conceitos míticos de formação e ordenação do cosmos mas por estar totalmente estruturada, sobre a  concepção de  uma forma de pensar arcaica que acredita não ser a voz nem a habilidade humana do cantor que imprimirá sentido e força, direção e presença ao canto, mas é a própria força e presença das Musas que gera e dirige o canto do aedo, a partir do instante em que Hesíodo evoca as musas, seu canto passa a ter um caráter sagrado pois sem elas, ele nada poderia saber como é citado abaixo:

"Pelas Musas heliconíades comecemos a cantar"(Teogonia,p.103).

Assim a teogonia não apresenta-se somente como um hino enaltecendo e glorificando Zeus, mas também como uma canção que enaltece e personifica a importância da poesia oral e a maneira como esta era concebida pelos gregos tendo sua personificação no mito das musas.

Se em Hesíodo temos uma poesia didático-religiosa, em Homero encontramos uma poesia heróica, trata-se, com efeito, de uma poesia burguesa, destinada a reis e heróis, a homens voltados para as armas e para o mar, os poemas homéricos influenciaram a cultura grega que por sua vez passou essa influência à latina e culminou em todas as culturas ocidentais que derivam da cultura greco-romana. Diferentemente da Teogonia as epopéias Ìliada e Odisséia que são atribuídas a Homero, apresentam-se em um formato in medias res, podemos comparar traços marcantes nas narrativas de Homero e Hesíodo, os poemas atribuídos a estes, aparecem em primeira e segunda pessoa, em Hesíodo observamos uma narrativa mais marcada em primeira pessoa, tanto na Teogonia quanto em sua segunda obra O Trabalho e os Dias onde Hesíodo mostra como se criou e organizou o mundo dos mortais e a condição humana, Hesíodo faz-se presente em sua narração revelando-se de maneira pessoal como podemos ver nos versos abaixo:

"Elas um dia a Hesíodo ensinaram belo canto quando pastoreava ovelhas ao pé do Hélicon divino esta palavra primeiro disseram-me as Deusas Musas olimpíades, virgens de Zeus porta-égide" (Teogonia, p.103);

"Ouve, vê, compreende e com justiça endireita sentenças. Tu! Eu a Perses verdades quero contar."( Os Trabalhos e os dias,v. 10).

Em Homero estas características narrativas podem ser observadas no proêmio da Odisséia  e na invocação das musas no catálogo das naus na Ìliada:

"O guerreiro diz-me, musa, ardiloso, que muitíssimo vagou, desde que, de Tróia, a sagrada cidadela pilhou, e de muitos homens viu as cidades e o espírito  conheceu e muitas dores ele, no mar, sofreu em seu ânimo, lutando por sua vida e pelo retorno dos companheiros mas nem assim os companheiros salvou como queira, pois eles, pela própria insensatez, pereceram tolos, que os bois do filho de Hipérion, o Sol comeram: logo este lhes tirou o dia do retorno." (Odisséia,I,1-9)

As Musas descendem da união de Zeus com Memória o que coloca a natureza das Musas como decorrência das atribuições de seus genitores; sendo assim as Musas não são apenas memória mas são força e poder provindos de Zeus, Homero por sua vez descreve as Musas  apenas como filhas de Zeus porta égide ocultando a origem maternal dessas divindades essa ocultação materna pode ocorrer porque neste momento do relato em que se deseja eternizar os nomes dos combatentes em Tróia o poeta volta-se para as filhas do Deus que detêm o poder e que são o resultado da ação do poder sobre a memória, mas também podemos interpretar esta passagem da seguinte maneira, em uma sociedade patriarcal o papel da mulher não se faz de forma direta principalmente no que diz respeito aos filhos já que estes recebiam apenas o direito a paternidade, visão paterna que é bastante presente nos epítetos atribuídos aos guerreiros como podemos perceber no epíteto do guerreiro  Aquiles Pelida, Pelida por ser filho de Peleu; nessa interpretação o mito atribuído somente a paternidade das musas reflete a cultura de uma sociedade patriarcal, as Musas são expressadas de uma forma bastante única tanto nos poemas homéricos quanto nos hinos hesiódicos. Nas obras de Hesíodo este se coloca submisso as Musas isso se confirma na passagem em que Hesíodo afirma que as Musas lhe ordenaram a cantar, nos poemas homéricos não são as Musas que se dirigem ao poeta, mas o poeta que dirigi-se a Musa isso demonstra em Homero uma maior autonomia por parte do aedo, já que este define o objeto a ser cantado e por onde irá iniciar o seu canto, mas mesmo com essa relação de autonomia nos seus poemas Homero reivindica uma origem divina e deixa claro que sem a permissão das Musas o aedo nada poderia saber pois delas provinham os dons do canto e da palavra a chegada de Demódoco ao festim de  Alcínoo exemplifica bem isto.

"O arauto reapareceu, conduzindo o bravo aedo a quem a Musa amante havia dado sua parte de bens e de males, pois, privado de vista, dela havia recebido o canto melodioso".(Odisséia, VIII, 62 - 64)

Tanto em Hesíodo quanto  Homero podemos perceber que o poeta assume a função de interprete dos Deuses: estes lhe dão o divino dom da palavra e o canto,

Essa relação do aedo com as filhas de Zeus, atribui ao aedo um caráter divino como nos mostra Homero:

"Não há homem sobre a terra que aos aedos não devam estima e respeito; pois eles aprendem da Musa as suas obras, da Musa que estima a raça dos aedos".     (Odisséia, VIII, 479 - 481)

As obras homéricas e os hinos hesiódicos são um conjunto de Teofanias a presença e interferência dos Deuses faz-se presente em todos os momentos, retratando assim um aspecto da cultura grega onde cada manifestação da natureza, ou cada acontecimento rotineiro tinha sua devida atribuição divina, o que não poderia ser diferente nas narrativas da época, o sendo assim podemos perceber que o grande mito das Musas nada mais é, que uma forma criada pelo homem grego arcaico para explicar sua imensa capacidade de criar, e expressar os seus sentimentos ver e entender o mundo,as obras homéricas e os hinos hesiódicos são um conjunto de teofanias que representam e apresentam o pensamento de uma sociedade que buscava uma explicação não apenas para sua existência, mas para as razões de existirem.

Mitologia - Mitologia Grega
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6/13/2021 3:09:47 PM | Por José Roberto V. Costa
Ilhas de Estrelas

Talvez pela grandeza e pelos seus muitos mistérios, freqüentemente comparamos o mar com o céu estrelado. No primeiro já navegamos por todos os lados e em muitas profundidades, embora ainda haja muito para aprender. Mas é o mar de estrelas da noite o supremo mistério. Estamos aprendendo a arte e técnica de sua navegação, que chamamos Astronáutica, e ainda que consideremos tudo o que fizemos, nem sequer ensaiamos nosso primeiro mergulho nesse oceano cósmico. Ao comparar o firmamento com o mar, o Sol (e seus planetas) são apenas um grãozinho de areia numa imensa ilha que chamamos Via Láctea – a nossa galáxia. A Via Láctea é uma densa coleção de estrelas agrupadas principalmente ao longo de uma imensa espiral. Vista da Terra, a galáxia parece um cinturão envolvendo o céu, ou uma espinha dorsal que sustenta a noite.

Galáxias são como gigantescas ilhas de estrelas. Centenas de bilhões delas, mantidas juntas graças a força gravitacional entre cada estrela, cada nebulosa de gás e poeira. E existem bilhões de ilhas de estrelas como a Via Láctea; muitas se aglomerando em arquipélagos celestiais.

Outra bela galáxia das proximidades é Andrômeda. Via Láctea e Andrômeda são duas das maiores ilhas de estrelas num grande arquipélago que chamamos Grupo Local, que contem de 35 a 50 galáxias – ainda não sabemos o número exato. Galáxias também se adensam em superaglomerados, verdadeiros continentes de estrelas.

Porém, muito mais que os ¾ de mares que recobrem a Terra, o predomínio do mar celestial é absoluto. Só que ao contrário dos oceanos de água salgada, cheios de vida, o espaço em si é um grande vazio, um meio e também um obstáculo para chegarmos onde realmente interessa – às estrelas e seus mundos.

Gravidade
Os planetas giram ao redor de estrelas, as estrelas se agrupam em galáxias e as galáxias em aglomerados – tudo por causa da força da gravidade. A gravidade depende da massa dos corpos que estão interagindo (quanto mais massa, maior a força) e da distância entre eles (quanto mais longe, menor a força).

Foi Isaac Newton quem descobriu que não é a maça que cai da árvore, é a maça e a Terra que se atraem. É claro que sendo o planeta muito mais massivo que a fruta, o deslocamento mais significativo ficará por conta da maça. Mas no caso da Terra e da Lua o puxão mútuo é considerável.

Para evitar que todo o universo se transforme numa massa compacta – com todos caindo sobre todos – existe o movimento orbital. Enquanto a Terra se move a 30 quilômetros por segundo em volta do Sol, por exemplo, não há perigo de colisão.

Mas se o movimento de translação diminuir muito, Terra e Lua serão aos poucos atraídos pelo astro-rei, numa lenta espiral da morte. E se, ao contrário, a velocidade aumentar, nos afastaremos do Sol até cair nas invisíveis garras gravitacionais de um planeta mais massivo, ou de outra estrela.

Canibalismo
Galáxia é simplesmente o nome grego para Via Láctea. O termo vem de galakt, que significa leite. Via Láctea é “caminho de leite”. Parece estranho; mas se você tiver a oportunidade de olhar o céu noturno num local afastado das luzes da cidade, vai ter a impressão que uma parte do céu realmente contém uma estrada esbranquiçada.

Desde os primeiros estudos, as galáxias vem sendo classificadas de acordo com sua forma. As mais famosas são as espirais. A Via Láctea é espiral. A princípio foi difícil percebermos que estávamos dentro de uma galáxia, e mais difícil ainda – mas não impossível – identificarmos sua forma.

A distância média entre as galáxias em um aglomerado é da ordem de seu próprio diâmetro. Assim, tão próximas, o movimento orbital não é suficiente para mantê-las separadas e por isso as colisões são freqüentes.

Duas galáxias que interagem podem atravessar uma a outra sem haver nenhuma colisão de estrelas. É como o encontro de dois cardumes gigantes.

A forma original de cada galáxia, no entanto, pode se desfazer completamente. E se uma delas for muito maior que a outra, a menor praticamente desaparece. É o chamado canibalismo galáctico.

Agora mesmo a Via Láctea está canibalizando duas pequenas galáxias próximas, mostrando como o oceano cósmico também pode ser revolto. Porém, como a nossa civilização ainda nem saiu da beira da praia, nós nem percebemos direito. Mas navegar é preciso!

Astronomia - Universo
Personalidade - Dinâmica da personalidade, Desenvolvimento
6/12/2021 5:44:16 PM | Por Gregory J. Feist, Jess Feist, Tomi-Ann Roberts
A pessoa do futuro

O interesse demonstrado por Rogers pelo indivíduo psi­cologicamente sadio rivaliza somente com o de Maslow. Enquanto Maslow era, sobretudo, um pes­quisador, Rogers era, antes de tudo, um psicoterapeuta, cuja preocupação com as pessoas psicologicamente sadias se desenvolveu a partir de sua teoria geral da terapia. Em 1951, Rogers apresentou pela primeira vez suas “carac­terísticas da personalidade alterada”; então, ele ampliou o conceito de pessoa em funcionamento pleno em um trabalho publicado (Rogers, 1953). Em 1959, sua teoria da personalidade sadia foi exposta na série de Koch, e ele voltou a esse tópico com frequência durante o início da década de 1960 (Rogers, 1961, 1962, 1963). Um pouco mais tarde, ele descreveu o mundo do futuro e a pessoa do futuro (Rogers, 1980).

Se as três condições terapêuticas necessárias e sufi­cientes de congruência, consideração positiva incondi­cional e empatia forem ideais, então que tipo de pessoa emergiria? Rogers (1961,1962,1980) listou várias carac­terísticas possíveis.

Primeiro, as pessoas psicologicamente sadias seriam mais adaptáveis. Assim, de um ponto de vista evolutivo, elas teriam maior probabilidade de sobreviverem - daí o título “pessoas do futuro". Elas não apenas se adaptariam a um ambiente estático, mas se dariam conta de que a confor­midade e a adaptação a uma condição fixa possuem pouco valor para a sobrevivência a longo prazo.

Segundo, as pessoas do futuro seriam abertas às suas experiências, simbolizando-as de modo preciso na cons­ciência ( awareness ), em vez de negá-las ou distorcê-las. Essa simples declaração está repleta de significado. Para as pessoas que estão abertas à experiência, todos os estímu­los, sejam eles provenientes do interior do organismo ou do ambiente externo, são livremente recebidos pelo self. As pessoas do futuro ouviriam a si mesmas e considera­riam sua alegria, sua raiva, seu desânimo, seu medo e sua ternura.

Uma característica relacionada às pessoas do futuro é a confiança em seus selves organísmicos. Essas pessoas em funcionamento pleno não dependeriam dos outros para orien­tação, porque perceberiam que suas próprias experiências são os melhores critérios para fazer escolhas; elas fariam o que parece certo para si porque confiariam em seus sentimentos internos mais do que nos conselhos dos pais ou nas regras rígidas da sociedade. Contudo, elas também perceberiam claramente os direitos e os sentimentos das outras pessoas, os quais levariam em consideração quando tomassem decisões.

A terceira característica das pessoas do futuro seria uma tendência a viver plenamente o momento. Como essas pessoas estariam abertas a suas experiências, elas expe­rimentariam um estado constante de fluidez e mudança. O que elas experimentam em cada momento seria novo e único, algo nunca antes experimentado por seu desenvolvimento. Elas veriam cada experiência como uma novidade e a apreciariam plenamente no momento pre­ sente. Rogers (1961) se referiu a essa tendência a viver o momento como viver existencial. As pessoas do futuro não teriam necessidade de se iludir e nenhuma razão para impressionar os outros. Elas seriam jovens de mente e es­pírito, sem idéias preconcebidas sobre como o mundo de­ veria ser. Elas descobririam o que significa uma experiência para elas vivendo aquela experiência sem o preconceito de expectativas anteriores.

Quarto, as pessoas do futuro permaneceriam con­fiantes em sua capacidade de experimentar relações har­moniosas com os outros. Elas não sentiriam necessidade de ser estimadas ou amadas por todos porque saberiam que são prezadas e aceitas incondicionalmente por alguém. Elas buscariam intimidade com outra pessoa que é prova­velmente sadia assim como elas e tal relação contribuiria para o crescimento contínuo de cada parceiro. As pessoas do futuro seriam autênticas em suas relações com os ou­tros. Elas seriam o que parecem ser, sem dissimulação ou fraude, sem defesas e fachadas, sem hipocrisia e farsa. Elas se importariam com os outros, mas sem julgamentos. Elas procurariam significado além de si mesmas e ansiariam pela paz espiritual e interna.

Quinto, as pessoas do futuro seriam mais integradas, mais plenas, sem fronteiras artificiais entre os processos conscientes e os inconscientes. Como teriam a capacidade de simbolizar com acurácia todas as suas experiências na consciência ( awareness ), elas veriam de modo claro a di­ferença entre o que é e o que deveria ser; como usariam seus sentimentos organísmicos como critérios para a avaliação de suas experiências, elas diminuiriam a distân­cia existente entre seu selfreal e seu ideal; teriam necessidade de defender sua importância pessoal, elas não apresentariam fachadas para as outras pessoas; e como teriam confiança em quem são, elas poderiam ex­pressar abertamente quaisquer sentimentos que estives­sem experimentando.

Sexto, as pessoas do futuro teriam uma confiança bási­ca na natureza humana. Elas não magoariam os outros meramente para ganho pessoal; elas se importariam com os outros e estariam prontas para ajudar quando necessário; elas experimentariam raiva, mas seria possível confiar que não atacariam os outros sem razão; elas sentiriam agressi­vidade, mas a canalizariam em direções apropriadas.

Por fim, como as pessoas do futuro são abertas a todas as suas experiências, elas desfrutariam de uma maior ri­queza na vida do que outras pessoas. Elas não distorceriam os estímulos internos, nem abafariam suas emoções. Por conseguinte, elas sentiriam mais profundamente do que os outros. Elas viveriam no presente e, assim, participariam de modo mais intenso do momento em curso. [204]

Psicologia - Teoria centrada na pessoa
Administração - Administração pública, 
6/12/2021 2:15:49 PM | Por Paul Veyne
Os deveres da vida pública na Roma imperial

Pela mesma indistinção do público e do privado, quando se queria designar alguém caracterizava-se sua pessoa pelo lugar que ocupava no espaço cívico, pelos títulos e dignidades políticas ou municipais, caso as tivesse; isso fazia parte de sua identidade, como entre nós a patente junto ao nome de um oficial ou os títulos de nobreza. Ao introduzir um personagem, um historiador ou romancista especificava se era escravo, plebeu, liberto, cavaleiro, senador. Neste último caso podia ser pretoriano ou consular, segundo a dignidade mais elevada à qual fora designado na escala das honras fosse o consulado ou apenas o pretório. Tratando-se de um militar de vocação, que preferia o comando de um regimento numa província ou nas fronteiras e adiava a preocupação de investir-se em Roma de uma dessas dignidades anuais, recebia o título de "o jovem Fulano" (adulescens), mesmo que fosse quadragenário embaixo da couraça: ainda não havia ingressado na verdadeira carreira. Isso com relação à nobreza senatorial; quanto aos notáveis de cada cidade, Censorino assim caracteriza para uso dos leitores o protetor (amicus) ao qual tudo deve e dedica seu livro: "Cumpriste até o fim a carreira municipal, recebeste a honra de ser sacerdote dos imperadores entre os homens principais de tua cidade e te elevas além do nível provincial por tua dignidade de cavaleiro romano". Pois a vida municipal também tinha sua hierarquia. Quem não era plebeu e pertencia ao Conselho local (curia), como verdadeiro notável, era um curial; até mesmo um "homem principal", se tivesse desempenhado na ordem todas as funções anuais até as mais elevadas, que eram também as mais custosas. 

Pois "levar vida política" — ou "exercer funções públicas" — não constituía uma atividade especializada: era a realização de um homem plenamente digno desse nome, de um membro da classe governante — que se considerava apenas humana —, de uma pessoa privada ideal; não ter acesso aos cargos públicos, à vida política da cidade, equivalia a ser mutilado, homem de baixa condição. Para que o leitor sorria com um paradoxo divertido, os poetas eróticos gabavam-se de desprezar a carreira política e só querer militar na carreira do amor (militia amoris); para a maioria dos filósofos, conselheiros com segundas intenções, a vida política (bios politikos) só podia ser sacrificada, sendo preciso sacrificá-la, à vida filosófica, na qual cada um se consagra por inteiro ao estudo da sabedoria. Na prática, os cargos públicos municipais e, com maior razão, os senatoriais eram acessíveis apenas às famílias ricas; porém esse privilégio também constituía um ideal e quase um dever. O conformismo estóico identificará a vida política à vida harmonizada com a Razão. Não adiantava nada um romano ser rico se não estava entre os "primeiros de nossa cidade", se não se projetara na cena pública — supondo que as outras famílias ricas lhe deixassem possibilidade de permanecer à margem e que a população da cidade não tivesse ido tirá-lo da solidão de suas terras para, com suave violência, impeli-lo para as funções municipais a fim de que lhe desse os caros prazeres públicos ligados ao exercício de cada uma dessas dignidades, que duravam um ano e conferiam uma posição vitalícia. 

Pois cada uma dessas dignidades custava muito caro ao indivíduo assim honrado pela vida: a indistinção dos fundos públicos e dos patrimônios privados não funcionava em mão nua. E a curiosa instituição que se chama "evergetismo". Quem recebia a nomeação de pretor ou cônsul devia desembolsar alguns milhões para dar ao povo de Roma espetáculos públicos, representações teatrais, corridas de carros no circo, até dispendiosos combates de gladiadores na arena do Coliseu; depois o novo pretor ou cônsul ia ressarcir-se dos gastos no governo de uma província. Tal era o destino de uma família de nobreza senatorial, ou seja, uma família em 10 mil ou 20 mil. Mas é entre os notáveis municipais — ou uma família em vinte, talvez — que o evergetismo assume sua verdadeira dimensão, sem encontrar compensações para os sacrifícios financeiros que lhes impunha. 

Evergetismo

Na menor cidade do Império, quer a população fale latim ou grego, quer fale mesmo celta ou siríaco, talvez a maioria dos edifícios públicos que os arqueólogos vasculham e os turistas visitam foi construída pelos notáveis locais com dinheiro do próprio bolso. Além disso, tais notáveis financiavam os espetáculos públicos que anualmente alegravam a cidade, desde que tivessem o suficiente, pois quem alcançava uma dignidade municipal devia pagar. Tal dignitário doava uma soma ao Tesouro da cidade, financiava os espetáculos do ano em que estava no cargo ou ainda empreendia a construção de um edifício. Caso estivesse em dificuldades financeiras, formulava por escrito a promessa pública de fazer isso um dia, pessoalmente ou por intermédio de seus herdeiros. E havia mais: independentemente de qualquer função pública, os notáveis ofereciam a seus concidadãos, de livre e espontânea vontade, edifícios, combates de gladiadores, banquetes ou festas; essa espécie de mecenato era ainda mais frequente que nos Estados Unidos de hoje, com a diferença de que seus objetos se referiam quase exclusivamente à ornamentação da cidade e a seus prazeres públicos. A grande maioria dos anfiteatros, essas enormes riquezas petrificadas, foi oferecida livremente por mecenas, que, assim, imprimiam à cidade sua marca definitiva. 

Tais liberalidades deviam-se à generosidade privada? A uma obrigação pública? A ambas. A dose variava de indivíduo para indivíduo e só havia casos particulares. Pois as cidades pouco a pouco transformaram em dever a tendência dos ricos a generosidade ostentatória; obrigavam-nos a fazer sempre o que a preocupação com a posição os levava a fazer algumas vezes. Mostrando-se liberais, os notáveis confirmavam que pertenciam à classe governante, e os poetas satíricos caçoavam da pretensão dos novos-ricos, que se apressavam a oferecer espetáculos a seus concidadãos. As cidades adquiriram o hábito de um luxo público que passaram a exigir como um direito. A nomeação dos dignitários anuais fornecia a oportunidade; todo ano, em cada cidade desenrolavam-se pequenas comédias: era preciso encontrar novas fontes de financiamento. Cada membro do conselho declarava-se mais pobre que seus pares e dizia que em compensação Fulano de Tal era um homem feliz, próspero e tão magnânimo que seguramente aceitaria naquele ano uma dignidade que acarretava o dever de garantir à própria custa a água quente dos banhos públicos. O interessado protestava que já passara por isso. O mais teimoso ganhava. Se não se via saída, o governador da província interferia; ou a plebe da cidade, zelosa de sua água quente, intervinha pacificamente: aclamava a vítima designada, levava às nuvens sua generosidade espontânea e elegia-a dignitário erguendo as mãos ou por aclamações unânimes. A menos que, espontaneamente, pois também havia espontaneidade, um mecenas imprevisto se levantasse para declarar que desejava beneficiar a cidade; ela lhe agradecia fazendo o Conselho nomeá-lo alto dignitário local e conceder-lhe um título de honra excepcional, como "patrono da cidade", "pai da cidade" ou "benfeitor magnânimo e espontâneo", que ele inscreveria em sua lápide; ou então votando-lhe uma estátua, pela execução da qual ele espontaneamente pagava. 

Por isso foi que os dignitários locais pouco a pouco deixaram de ser eleitos pelos cidadãos para ser designados pela oligarquia do Conselho, que os escolhia em seu próprio meio: o problema era mais a falta que o excesso de candidatos; consistindo a função mais em pagar do que em governar, deixava-se ao Conselho a decisão de imolar um de seus membros, e o melhor candidato era aquele que aceitasse pagar. A classe dos notáveis tinha, assim, a equívoca satisfação de dizer que a cidade lhe pertencia, pois era ela quem pagava; em troca podia repartir os impostos do Império em seu proveito, fazendo-os recair o máximo possível sobre o campesinato pobre. Cada cidade se dividia em dois campos: os notáveis que davam e a plebe que recebia; além das obrigações inerentes às dignidades anuais, só se podia ser uma estrela local promovendo, uma vez na vida, a construção de um edifício ou a realização de um banquete público. Assim se formou uma oligarquia dirigente. Será preciso dizer hereditária? É menos simples: as dignidades do pai criavam um dever moral para o filho, vítima designada das próximas prodigalidades, pois era o herdeiro. Entre os ricos do lugar, pensava-se primeiro em depenar aqueles cujo pai já alcançara as dignidades (patrobouloi), esperando que o filho quisesse imitar a generosidade paterna; na falta de candidatos bastante ricos entre os filhos de dignitários, o Conselho se conformava em aceitar em seu seio o representante de uma família de comerciantes para impeli-lo às custosas dignidades. 

Os notáveis tinham interesse em se sujeitar a tal sistema apenas porque o costume o impunha; pois se rebelavam tão frequentemente quanto se prestavam a ele de bom grado. O poder central também hesitava. Ora, para mostrar-se popular, impunha aos notáveis uma obrigação formal de dar ao povo prazeres que "o distraíssem da tristeza"; ora fazia a política dos notáveis e tentava refrear as exigências da plebe; ora, por fim, fazia sua própria política e tentava proteger os ricos contra sua tendência às suntuosidades ostentatórias: não seria melhor oferecer à cidade um cais de porto em lugar de uma festa? Pois o povo recebia prazeres que o divertiam ou edifícios que lisonjeavam a vaidade do mecenas; somente nos anos de penúria a plebe pensava em pedir a seus dirigentes que lhe vendessem a preços módicos o trigo armazenado em seus celeiros. Ofereciam-se prazeres aos concidadãos por civismo e edifícios à cidade por ostentação; essas são as duas raízes do evergetismo, que confundem, elas também, o homem público e o homem privado. 

Civismo nobiliário

Quem diz ostentação diz espontaneidade; quem diz civismo diz dever. Um dever paradoxal, esse de dar à cidade mais do que lhe é devido. Os cidadãos de um Estado moderno, que são administrados, limitam-se a pagar seus impostos e nem um centavo a mais; porém as cidades gregas (e, a seu exemplo, as romanas) tinham um princípio, ou pelo menos um ideal, mais exigente: quando podiam, tratavam os cidadãos como um partido moderno trata os militantes; estes últimos não devem medir seu zelo de acordo com uma cota, e sim fazer pela causa tudo que estiver a seu alcance. As cidades esperavam a mesma dedicação de seus cidadãos ricos. Demoraríamos muito para explicar que tal dedicação se aplicava principalmente a despesas com amenidades (a despesa que um dignitário menos podia recusar era aquela que a devoção também lhe exigia: quando, em nome de seu cargo, celebrava uma festa ou um espetáculo em honra aos deuses da cidade, não deixava de acrescentar alguma coisa de sua bolsa aos créditos públicos). Ao que se soma a ostentação nobiliária. Os ricos sempre se sentiram figuras públicas; convidavam os concidadãos às bodas de sua filha; na morte de seu pai, toda a cidade era chamada ao banquete funerário e aos combates fúnebres de gladiadores. Logo se fez disso uma obrigação. Em todo o Império, um notável que se casava de novo ou cujo filho adolescente tomava as vestes de homem devia alegrar a cidade ou doar-lhe uma soma em dinheiro; caso se recusasse, precisaria se refugiar numa de suas terras para celebrar as próprias bodas. Mas isso significava privar-se da existência pública e cair no esquecimento; ora, o orgulho nobiliário quer perdurar. Assim, em vez de um prazer fugaz, ele oferece à cidade um edifício sólido, no qual é gravado seu nome. Pode também criar uma fundação perpétua, segundo outra moda da época: em seu aniversário a cidade se banqueteará em sua memória com os rendimentos de um capital que ele deixou com tal intenção ou celebrará uma festa que levará seu nome.

Tudo isso são meios de confirmar, vivo ou morto e honrado, uma condição de estrela social. Ora, uma estrela não é mais uma pessoa privada, o público a devora. Ademais, a relação de um benfeitor de cidade com seu público era física, face a face, como fora a dos políticos da República romana que tomavam decisões diante dos olhos do povo, em pé na frente do palanque, visíveis como os generais de outrora no campo de batalha. Encerrados em seus palácios, os imperadores desejarão dar a impressão de que continuam esse republicanismo tomando a precedência pessoalmente no circo ou no anfiteatro de Roma, onde a plebe vigiava sua atitude e os queria atentos e complacentes aos desejos do público, o único juiz verdadeiro. 

Os notáveis municipais têm a mesma sorte. Numa cidadezinha da Tunísia encontrou-se um mosaico no qual um grande homem chamado Magério celebra a própria generosidade; o mosaico decorava sua antecâmara. Vê-se o combate de quatro bestiários contra quatro leopardos; o nome de cada combatente está inscrito ao lado de sua imagem, bem como o de cada animal: o mosaico não está ali como ornamento, mas como a descrição rigorosa de um espetáculo que Magério ofereceu com seus denários. Ao longo do mosaico leem-se as aclamações e reclamações do público, que sanciona o zelo benfeitor escandindo slogans em sua homenagem: "Magério! Magério! Que teu exemplo se torne instrutivo para o futuro! Que os benfeitores precedentes entendam a lição! Onde e como se fez tanto bem? Tu dás um espetáculo digno de Roma, a capital! Tu o dás a tua custa! Este dia é teu grande dia! Magério é o doador! Essa é a verdadeira riqueza! Sim, essa mesma! Já que terminou, despede os bestiários com uma paga suplementar!". Magério concordou com esta última vontade, e veem-se no mosaico os quatro sacos de moedas de prata (com a cifra inscrita sobre cada um) que entregou aos bestiários na arena. 

Aos aplausos do povo sucediam-se normalmente títulos honoríficos, distinções de honra concedidas pelo Conselho para a vida toda; a cidade agradece, mas é ela quem julga; o notável só se distingue entre seus pares prestando-lhe homenagem. Compreendemos que os títulos honoríficos de um benfeitor, assim como as dignidades públicas que ele carrega, tiveram uma importância tão considerável como os títulos de nobreza no Ancien Regime e suscitaram paixões igualmente intensas. O Império Romano apresenta o seguinte paradoxo: um civismo nobiliário. Tal civismo ostentatório deve confirmar sua presunção hereditária com uma proeza de liberalidade que o distinga, mas no interior do quadro cívico: superior à plebe de seu vilarejo, o notável é grande em sua cidade porque mereceu aos olhos desta e no benefício desta; ela é beneficiária e juiz da dedicação de seu filho. A plebe percebia tão bem esse equívoco que saía do espetáculo sem saber se o benfeitor a havia honrado ou humilhado; uma frase que Petrônio empresta a um espectador expressa tal ressentimento: "Ele me ofereceu um espetáculo, mas eu o aplaudi: estamos quites, uma mão lava a outra". 

Ao mesmo tempo dedicação patriótica e busca de glória pessoal (ambitus). Já na República romana os membros da classe senatorial procuravam tornar-se populares oferecendo espetáculos e banquetes públicos, e era mais para agradar à plebe do que para corromper os eleitores; continuaram assim depois da supressão da eleição às dignidades. Como diz Georges Ville, por trás da ambição materialmente interessada pode esconder-se uma ambição por assim dizer desinteressada, que procura o favor da multidão por si mesmo e com ele se contenta". 

O Evergetismo não se parece com nada

Deixemos de falar de "burguesia" romana: como a clientela, o evergetismo não se explica pelo interesse de classe, mas por um espírito nobiliário que inutilmente ergue edifícios públicos e estátuas honoríficas que cantam a glória de uma dinastia e resultam de um imaginário nobre; é uma arte do brasão. Falar de maquiavelismo, redistribuição, despolitização, cálculo interessado na colocação de simbólicas barreiras de classe equivale a achatar e racionalizar um fenômeno cujos custo e desenvolvimento simbólico ultrapassam em muito o que era socialmente necessário. O que nos engana é que essa nobreza, com sua simbologia aparentemente cívica, seus edifícios "públicos" e seus títulos de magistratura não se parece com a nobreza de sangue e títulos do Ancien Regime: é uma formação histórica original que canta a própria glória no velho vocabulário da cidade antiga, em vez de louvar a grandeza de sua raça. 

Os curiais não eram a mesma coisa que a classe proprietária apenas porque o número de cadeiras no Conselho municipal em geral se limitava a cem. Assim como no Ancien Regime não bastava enriquecer para obter um título de nobreza, e o título de acadêmico na França limita-se a quarenta pessoas, célebres ou menos célebres. O Conselho municipal era um clube nobre onde nem todos os homens de posses entravam: as leis imperiais insistiam em que em caso de necessidade financeira fossem admitidos de favor vulgares comerciantes ricos. O clube dos ricos nobres preferia pressionar um de seus membros para que se arruinasse pela cidade. E às vezes os nobres se conformavam em fugir às suaves violências de seus pares: refugiavam-se em suas terras, na casa de seus lavradores (coloni praediorum), diz o último livro da Digesta; pois o poder público afundava ao tentar sair das cidades e penetrar no campo, onde cristãos como são Cipriano se abrigariam das perseguições. 

Classe nobiliária também, pela antiguidade dessas famílias. Dinastias de novos-ricos são admitidas, é um fato comprovado, porém um fato não menos comprovado é a existência secular dessas famílias, seus intercasamentos, sua endogamia. Os intercasamentos entre as grandes famílias de uma cidade foram trazidos à luz por Philippe Moreau a partir do Pro Cluentio de Cícero; na Grécia, a abundante epigrafía imperial permite seguir muita família nobre ao longo de dois ou três séculos, particularmente em Esparta, na Beócia, em outros lugares ainda: foi possível estabelecer árvores genealógicas que ocupam páginas in-fólio em nossas coletâneas de inscrições gregas do período imperial. O Império é uma época de estabilidade nobiliária.

O evergetismo foi um ponto de honra nobiliário em que o orgulho de casta acionou todas as motivações cívicas e liberais sobre as quais os historiadores se estenderam habilmente, mas também com demasiada exclusividade: civismo, prazer de dar, desejo de se destacar... Essas árvores sentimentais e cívicas esconderam-lhes a floresta do orgulho nobre e a existência de uma nobreza patrimonial, hereditária de fato. Cada nobre quer ser superior aos outros e gosta de poder dizer que foi "o primeiro" ou "o único" a gastar com tal liberalidade inédita: os dignitários precedentes gratuitamente distribuíram óleo para o banho do povo, mas eis que um novo paladino distribui óleo perfumado... "Quero ganhar dinheiro", declara um herói de Petrônio, "e ter uma morte tão bela que meus funerais se tornarão proverbiais"; sem dúvida prescreverá aos herdeiros que ofereçam um banquete à cidade por ocasião de seu enterro. Pão e circo, ou melhor, edifícios e espetáculos: a autoridade ainda era mais a projeção de um indivíduo do que uma capacidade pública ou privada de obrigar; era monumentalização e teatralização. O evergetismo não era tão virtuoso como creem seus últimos Comentaristas nem tão maquiavélico como dizem os comentaristas precedentes, imbuídos de vago marxismo. A nobreza residia, ao pé da letra, num "jogo de competição", tão irracional, política e economicamente, quanto o esbanjamento por mera ostentação. Isso ia muito mais longe que a necessidade de "preservar a posição" ou marcar as barreiras de classe, e não há como conciliar o fenômeno fundamental da competição de esbanjamento com explicações sociais ao gosto dos modernos; tampouco se pode atribuí-lo às explicações dos antigos — patriotismo, festa e banquete, generosidade etc. É um fenômeno tão curioso como esse potlatch que intriga os etnógrafos que o encontram entre tantos povos "primitivos"; uma paixão tão devoradora como aquelas que, entre os povos "civilizados", só se desencadeiam pelo poder "político" e pela riqueza "econômica". Pelo menos para quem nisso acredita.

História - Civilização Romana
Sociedade - Ciências, Filosofia
4/25/2021 2:45:59 PM | Por André Bonnard
O mundo explica-se. O surgimento da ciência na Grécia antiga

Há momentos, na história da humanidade, em que novas formas de ação ou de pensamento aparecem de maneira tão brusca que dir-se-ia uma espécie de explosão. Assim foi o aparecimento da ciência — do conhecimento científico racional — na Grécia da Ásia, na Jônia, no final do século VII antes da nossa era, com Tales de Mileto e a sua escola. Espetacular, se quisermos, mas de modo algum surpreendente nem miraculoso este nascimento da ciência, esta aparição dos primeiros sábios e "filósofos", como dizem os nossos livros. (A palavra filósofo só aparece em grego, ao que se julga, na época dos sofistas e só se espalhou mais tarde ainda, no século IV, por intermédio de Platão.)

A atitude científica em relação à natureza foi familiar aos gregos mais primitivos, digamos mesmo aos homens mais nus das origens. Ulisses é típico desta atitude interrogadora, que aliás se combina na sua pessoa com os sentimentos religiosos mais autênticos, ao mesmo tempo que mais utilizáveis. Ulisses, "fabricante de máquinas", diz o poeta.

Na verdade, seria errado opor como contrários que se excluíssem a ciência racional e o "mito". Como se um e outro não estivessem desde longa data estreitamente unidos! Como se um e outro não procurassem igualmente, por caminhos diferentes, ultrapassar os obstáculos, as dificuldades que o cosmos e as suas leis desconhecidas apresentam ao homem!

Todo o pensamento foi primeiramente imagem e narrativa, e sabe-se que Platão, nos finais da idade grega clássica, se serve ainda frequentemente do mito para expor o seu pensamento. Interpreta à sua maneira antigos mitos, inventa-os por sua conta. [251]

A ciência grega nascente, assemelha-se aliás, muito mais do que parece a primeira vista, à nossa. Por ingénua que seja, sabe que o homem é o produto da evolução natural, toma a palavra e o pensamento como frutos da vida em sociedade, considera-se como uma parte da técnica: é a ciência que permite ao homem dominar o seu meio natural.

Uma tal concepção da ciência — de extrema ousadia — surge com toda a clareza nos gregos dos anos 600, na época de Tales.

Em dois séculos, desenvolve-se com uma amplidão de vistas e uma busca de coesão que nos espantam ainda hoje.

No entanto, é muito mais para trás, muito para lá do que sabemos do povo grego primitivo, que devemos recuar para encontrar entre as mãos da espécie humana as primeiras ferramentas que ela inventou para se defender do meio ambiente ou para o utilizar. O arco constitui a primeira "máquina", muito anterior a Ulisses, o "fabricante de máquinas". A sua invenção data dos anos 6000, no final da época paleolítica. O arco utiliza uma reserva de energia, neste sentido, é realmente uma máquina.

Neste mundo exterior, tão hostil, tão estranho e, como vimos, tão "trágico o homem inventa sem cessar novos meios de salvar a vida. Inventa contra o destino uma moral, uma maneira sua de viver e de morrer. Inventa contra a fome novas maneiras de se alimentar.

Para que a civilização nascesse, era preciso que o homem tivesse previa­mente dominado um certo número de técnicas que permitissem fazer de um ser que recolhia o seu alimento um homem capaz de o produzir em grande parte. Um excedente permanente de alimento é a condição necessária do nascimento de qualquer civilização.
Estas técnicas desenvolveram-se — no vale do Nilo, do Eufrates e do Indo — entre 6000 e 4000 a.e.c. Estes dois mil anos são de uma importância vital. Esta vasta revolução técnica constitui a base material da civilização antiga. Até à revolução industrial do século XVIII, até à descoberta da fissão do átomo, a descoberta da energia nuclear, não houve revolução mais importante.

O homem inventa pois a agricultura. Esta invenção manifesta uma inteli­gência das leis da germinação das plantas, uma observação, constante e aguçada pela necessidade, dos métodos da natureza, observação acompanhada de tenta­tivas de imitação, de experiências sem dúvida durante muito tempo infrutíferas, finalmente coroadas de êxito. Em todo o caso, chegou um momento em que [252] observação e experimentação engendram um conhecimento assaz claro para convidar os primitivos a sacrificar deliberadamente algum bom alimento na esperança de recolher maior quantidade no ano seguinte. Mesmo se muita magia se liga às sementeiras e se festas religiosas acompanham a colheita, o conjunto da operação, que vai da reserva das sementes nos silos à maturação do grão novo, alegremente cortado à foice, constitui um conhecimento das leis naturais postas pelo homem ao seu serviço. Boa e por agora suficiente definição da ciência.

Na tribo primitiva são as mulheres que velam pela recolha dos grãos, pela sua conservação, pelas reservas do lar. É provável que a agricultura tenha sido uma invenção das mulheres. Durante muito tempo, até à invenção da enxada, foi um trabalho de mulher.

A descoberta dos metais fez-se através de dificuldades muito grandes. A agricultura acabou por beneficiar dela, tanto quanto a guerra de pilhagem. Ao princípio, os metais tinham excitado principalmente a curiosidade do homem: eram procurados por causa da sua raridade. O bronze e o ferro satisfizeram durante muito tempo apenas as necessidades de luxo — como na época de Micenas o ouro e a prata — , muito antes de com eles se fabricarem armas e ferramentas. Foram encontrados, em colares, fragmentos de minério de cobre. A malaquite, que é o mais facilmente redutível desses minérios, foi objeto de um comércio importante no Egito, onde o utilizavam na fabricação das pinturas de rosto desde a época pré-dinástica.

Os minérios de cobre e de estanho, aliados no bronze, encontravam-se, na região mediterrânica, em lugares muito afastados dos países gregos: quanto ao estanho, a Cólquida, na costa oriental do mar Negro, e a Etrúria, que é a atual Toscana. Esta circunstância teve muito peso no progresso da fabricação dos barcos e da técnica da navegação. A orientação do marinheiro segundo as estrelas ou a posição do Sol exigia a formação de uma carta celeste.

Poderiam dar-se. assim, muito antes do nascimento da ciência propria­mente dita — da astronomia e da geometria na época de Tales e dos seus sucessores — muitos outros exemplos de uma atitude científica do homem, da sua aplicação em observar, da sua paciência em tentar imitar e utilizar as leis naturais. Desta atitude resultaram, a partir da idade neolítica, algumas das mais notáveis invenções da nossa espécie. Houve não apenas a invenção da agri­cultura e a descoberta dos metais, mas também a domesticação dos animais, primeiro simples reserva de carne, depois empregados no tiro. Houve a invenção [253] do carro e da roda, que substituiu o fragmento do tronco de árvore, as invenções mais tardias do calendário lunar e do calendário solar. Todas estas invenções fazem parte da história da ciência, se, pelo menos. temos de definir a ciência como o conjunto dos conhecimentos e dos meios que permitem ao homem aumentar o seu domínio sobre a natureza. Mas todas as invenções enumeradas até aqui são muito anteriores ao aparecimento do povo grego na história. Contudo, o povo grego conserva-as na memória como um tesouro acumulado pelas gerações precedentes. Quase sempre, atribui-as a deuses benéficos.

As ciências nasceram pois das necessidades mais elementares dos homens e das técnicas, por exemplo, a lavra e a navegação, que satisfaziam essas necessidades. (Nasceram igualmente das necessidades de luxo da classe domi­nante). Os homens têm necessidade de comer e de se vestir. É preciso que aperfeiçoem os seus instrumentos de trabalho. É preciso que fabriquem barcos e que saibam como fabricá-los, é preciso que estejam em condições de os dirigirem no mar e que, para tal, conheçam o movimento dos astros. O conhe­cimento da marcha dos astros é igualmente necessário para regular as lavras e as sementeiras em datas exatas que são indicadas ao camponês pelo levantar no céu de tal ou tal estrela.

Mas que se passou na Jónia nos séculos VII e VI? Uma população de sangue misto (sangue cariano, grego e fenício) está empenhada numa longa e dura luta de classes. Qual, quais destes três sangues correm nas veias de Tales? Em que dosagem? Ignoramo-lo. Um sangue muito ativo. Um sangue muito político. Um sangue inventor. (Sangue político. Tales propõe, dizem-nos, a esta população movediça e dividida da Jónia, constituir uma nova forma de Estado, um Estado federativo, governado por um conselho federal. Proposta muito judiciosa, e nova no mundo grego. Não foi escutado).

Esta luta de classes que ensanguenta as cidades da Jônia — a mesma que a da Ática no tempo de Sólon — é, aliás, também, e por muito tempo, o motor de todas as invenções deste país de invenções.

Proprietários de vinhas ou de terras cerealíferas; artesãos que trabalham o ferro, fiam a lã, tecem os tapetes, tingem os estofos, fabricam as armas de luxo; mercadores, armadores e marinheiros — estas três classes que lutam uma contra as outras pela posse dos direitos políticos são arrastadas pelo movimente ascendente que leva o seu conflito a produzir invenções constantemente [254] renovadas. Mas são os comerciantes, apoiados pelos marinheiros, que cedo tomam o comando da corrida. São eles que. alargando as suas relações do mar do Norte ao Egito e. para ocidente, até à Itália meridional, apanham no velho mundo os conhecimentos acumulados ao acaso pelos séculos e vão fazer com eles uma construção ordenada.

A Jónia inventou pois, inventa ainda no século VII, no domínio das artes, no da economia, da política, e finalmente da ciência, invenções múltiplas que só a um olhar distraído parecem díspares.

Recordemos os poemas homéricos, que ganham a figura que deles conhe­cemos na época do nascimento da classe "burguesa". Nem a Ilíada, nem a Odisseia são escritas por nobres, nem mesmo ao serviço ou intenção da classe dos senhores. Sinais evidentes nos advertem de que estes poemas são compostos e redigidos pela classe ascendente dos "homens novos", que, para consolidar conquistas políticas, começa por se apropriar da cultura da classe que está em vias de desapossar. As virtudes dos heróis são doravante celebradas pelo povo, postas à disposição do entusiasmo criador do povo livre das cidades.

Com Arquíloco, bastardo de um nobre, filho de uma escrava, a vitória da classe desprezada é mais aberta e proclama-se. Arquíloco inventa a poesia lírica — militar, amorosa e sobretudo satírica —, inventa-a com as aventuras da sua própria vida, como uma arma de combate, espada e escudo da sua condição de soldado-cidadão, empenhado no serviço da cidade que seu pai funda e que ele defende.

A sua volta, o lirismo floresce de súbito, com abundância, revestindo-se das formas mais inesperadas, mas sempre frescas na sua singularidade. Calino de Éfeso lança à juventude apática da sua cidade ameaçada o apelo dos seus versos enérgicos:

"Até quando dormireis? Quando, mancebos, tereis um coração valente? Não corais de vos deixardes assim abandonar? Julgais-vos bem firmes na paz, e já a guerra está em todo o país... Que cada um, ao morrer, lance o seu último dardo! É glorioso marchar como um valente contra os inimigos, combatendo pela pátria, pelos filhos, pela esposa legítima... O homem que foge do combate e do estrondo das lanças verá a morte em sua casa. O povo não tem por ele nem afeição nem recordação, mas o valente é chorado por pequenos e grandes... Ele é, aos olhos dos homens, como uma fortaleza."

O herói não é já um Heitor de lenda, é o cidadão mobilizado, ou antes, é o voluntário que se alista para a defesa do território.

Contudo, mesmo ao lado, em Cólofon, Mimnermo canta os prazeres da [255] juventude e do amor: as suas elegias falam com melancolia da fuga dos dias e da triste aproximação da velhice, prefiguração carnal da morte:

"Que vida, que prazeres sem a loura Afrodite? Ah!, que eu morra quando estas coisas não me tocarem mais: secretos amores, presentes de mel, leito amoroso, únicas e deslumbrantes flores da juventude... Quando, dolorosa, vem a velhice, confun­dindo fealdade e beleza, não restam ao homem mais que penosos cuidados, que lhe roem o coração. Aos raios do Sol, ele não tem mais alegria. É odioso às crianças, desdenhado pelas mulheres. Ah!, quão miserável Deus fez a velhice."

Lirismo elegíaco, no sentido moderno da palavra... E outros poetas mais.

Foi da Jónia igualmente que vieram para a Acrópole de Atenas essas fascinantes raparigas coloridas que encontrámos mais acima, cujo sorriso é ao mesmo tempo sedução e pudor.

E é na Jônia que a severa macicez do templo dórico, com as suas colunas atarracadas que parecem capazes de suportar o céu, com os seus capitéis às arestas cortantes como lâminas, com essa solidez de tronco de árvore inchado de seiva que parece um desafio lançado pela pedra inerte à carne viva e homem — toda essa altiva macicez dórica de súbito se torna elegância, graça, acolhimento e sorriso. A delgadeza alongada da coluna jônica parece um corpo de adolescente que cresce.

Ergue o seu capitel como uma flor delicada cujas pétalas são as volutas duas vezes enroladas sobre si mesmas em espirais, ao mesmo tempo suaves e firmes, vivas como mãos humanas.

Dito o que, não esqueçamos, entre as invenções jônias, nem o dinheiro, nem a banca, nem as letras de câmbio.

Tudo isto invenções ou criações rejuvenescidas pelo emprego novo que lhes dava este povo sempre em mudança, ávido de descobrir e de possuir a vida na sua cintilante complexidade. A profusão do génio jônio atordoa-nos. Finalmente, de todas estas invenções, a mais prodigiosa, a mais fecunda e a mais duradora — duradora até nós, até aos nossos mais longínquos descendentes, a invenção da ciência.

À primeira vista, parece haver pouca relação entre a poesia de Arquíloco, as Corai jónias, e o pensamento de homens como Tales e os seus discípulos. No entanto, estas invenções são todas elas produto de uma mesma atmosfera social, atmosfera de liberdade intelectual,conquistada à custa de uma dura luta. Liberdade que não é apenas uma liberdade de pensar, mas uma liberdade de agir. As cidades da Jônia ganharam-na e defendem-na todos os dias pela ação. Liberdade de recusar o mundo, liberdade de o percorrer, de explicá-lo [256] sobretudo, de modificá-lo. Aplicadas a domínios diferentes, a ação de Arquiloco e a de Tales não são de natureza diferente. Um e outro descobrem a sua liberdade numa ação prática. Um e outro pretendem arrancar à duração da existência bens positivos. O espírito da sua classe social e da sua investigação é materialista. Eles não negam os deuses. (Talvez Deus não seja outra coisa que esta matéria eterna que os cinje por todos os lados). Mas não se referem constantemente aos deuses, porque não os satisfaz explicar o desconhecido por outro desconhecido. Querem conhecer o mundo e o lugar do homem no mundo. "Aprende a conhecer o ritmo da vida humana", diz o velho Arquíloco, antecipando a linguagem que será da ciência e da filosofia.

Tales ocupava-se de coisas muito simples. Propõe-se um objetivo prático. Os seus concidadãos chamaram-lhe sábio, um dos Sete Sábios. Mas de que modesta e ousada sabedoria? Entre as fórmulas lapidares que se lhe atribuem em propriedade exclusiva, a mais característica do seu génio é, sem dúvida: "Ignorância, pesado carrego." Desejoso de conhecer o mundo em que vivemos, ocupa-se primeiramente do que se passa entre o céu e a terra, aquilo a que os Gregos chamam meteoros (fenómenos aéreos). É que Tales vive numa cidade de comerciantes gregos. Obedece na sua investigação a razões de utilidade: quer que os navios tragam ao porto a sua carga e para tanto quer saber porque cai a chuva, o que são os ventos, quais são os astros que servirão de guia, quais são os mais móveis e quais os mais fixos.
Assim, é a prática a origem da ciência, e não outra. O seu objetivo é, como foi dito, "que funcione". A ciência nasce do contato com as coisas, depende do testemunho dos sentidos. Mesmo que lhe aconteça afastar-se da evidência sensível, a ela tem de voltar. Essa é a condição primeira do seu desenvolvimento. Requer a lógica e a elaboração dE uma teoria, mas a sua lógica mais estrita e a sua teoria muitas vezes audaciosa devem ser postas à prova pela prática. A ciência prática é o fundamento necessário da ciência especulativa.

Tales tem iniciativa. Nos séculos precedentes, por duas vezes Mileto se lançou nos caminhos do mar à procura dos metais e das terras de trigo. Fundou noventa colônias e feitorias. Tales é grande viajante. Percorreu o Egito, a Ásia Anterior, a Caldeia, recolhendo nesses países os vestígios de velhos conhecimentos, nomeadamente numerosos fatos respeitantes ao céu e à terra, e propôs-se reuni-los segundo um modo original. [257]

Durante o tempo das suas viagens, foi engenheiro militar ao serviço de Creso, resolveu problemas práticos. Mas é igualmente um espírito ousada­mente especulativo.
Tales deve muitos fatos quer à observação dos Egípcios e dos Caldeus, quer à prática do seu ofício. Desta coleção de fatos fará qualquer coisa de novo.

Na Jônia, essa Babel da Grécia, encontram-se muitas correntes de pensa­mento, muitas buscas de interesses. Tales vive neste ponto de múltiplas convergências. Os seus concidadãos e ele repõem o problema de viver em um mundo desconhecido, que é preciso conhecer para nele viver. Formulam novas questões. Tales põe estas questões segundo um método que lhe é próprio e numa linguagem ainda não habitual nestas matérias. Na mesma linguagem com que os mercadores tratam dos seus negócios. Tales é comerciante e engenheiro. Se se ocupa de meteoros, não é, em todo o caso, para contar a si mesmo estórias, mas para dar aos fenómenos razões — compreender como as coisas se passam com os elementos que conhece, com o ar, a terra, a água e o fogo.

A ciência racional que está em vias de nascer e a direção demonstrativa que vai tornar toda a ciência helênica parecem o resultado de uma multidão de atos e de gestos que estes marinheiros observadores fizeram para dirigir os seus barcos, notando, a cada movimento dos braços, que este movimento era seguido de um efeito e procurando estabelecer a ligação rigorosa da causa com o efeito produzido, sem deixar ao acaso a sua parte.

É certo que os resultados que Tales obtém nas suas investigações são medíocres, problemáticos e muitas vezes errôneos. Mas a maneira de observar o mundo, a maneira de refletir de Tales são as de um verdadeiro sábio. Não talvez no sentido moderno da palavra sábio, em que o sábio pratica uma ciência estreitamente ligada à experiência. Mas no sentido mais simples em que ele pratica uma ciência toda de observação, e dá conta do que observa sem usar de mitos e com a maior exatidão possível. Sobre estas observações, constrói hipóteses que lhe parecem plausíveis. Constrói uma teoria que, com o tempo, será submetida à experiência.

Em vez de considerar os astros como deuses — que o eram antes dele, que o continuarão a ser muito depois dele, para Platão e outros — Tales é o primeiro a considerá-los como objetos naturais. São, para ele, objetos de natureza terrosa ou inflamada. Tales foi o primeiro a dizer que o Sol se eclipsa quando a Lua, que é de natureza terrosa, se coloca em linha reta entre a Terra [258] e ele. Terá ele verdadeiramente predito um eclipse do Sol, o de 610, ou de 585, ou outro, como o certifica a tradição grega? Talvez tenha indicado o ano de um eclipse provável, fundando-se nos cálculos dos Babilônios. O seu conhecimento da astronomia não lhe permitia ser mais exato.

Muito mais importante que os resultados, é o método da sua investigação. Nem quando se ocupa dos astros, nem quando se ocupa da água, Tales — repetimos — faz intervir deuses ou mitos. Fala deles como de coisas puramente físicas e materiais. Quando o químico moderno põe a questão: De onde vem a água?, responde: De uma combinação de hidrogénio e de oxigénio. A resposta de Tales não pode ser idêntica. A ignorância pesa sobre ele como um "pesado carrego": tem disso consciência e afirmou-o. No entanto, quando põe a questão da origem da água, não responde por um mito. mas de maneira objetiva, isto é, procurando formular uma lei da natureza, que responde à realidade da natureza e que possa um dia ser verificada pela experiência.

Este pensamento, de uma forma tão nova, é por vezes muito audacioso nos seus empreendimentos: pode parecer ingênuo à força de audácia. Tales e os primeiros sábios jônios procuram descobrir de que matéria é feito o mundo. Parece-lhe que deve haver nele um elemento — um elemento material — de que os outros se engendram por um processo, não mítico, como nas velhas cosmogonias, mas físico. Para Tales, é a água que é primitiva, e a partir desta água primordial nasceram a terra que é como que o resíduo dela, e também o ar e o fogo que são vapores, exalações da água. Tudo nasce da água e tudo volta à água.

É provável que as técnicas do fogo tenham sugerido a estes sábios a ideia de uma transformação de um elemento em outro, que toma uma outra aparência permanecendo idêntico. Observaram os efeitos diversos produzidos pela ação do fogo. O fogo muda a água em vapor. Transforma tal ou tal matéria em cinza. Liquidifica na técnica da fundição. Separa e purifica na metalurgia. Inversamente, une na liga e na soldadura. Assim o homem, observando as suas próprias técnicas, chega à noção de uma transformação dos elementos ou da sua aparência. Mas esta observação não decorre sem sofrimento. O fogo não é apenas um grande educador, é também um déspota sem piedade, que exige sangue, suor e lágrimas. "Eu vi o ferreiro a trabalhar na bocarra da fornalha", escreve um poeta satírico egípcio; "os seus dedos são como a pele do crocodilo; cheira mal como a leituga do peixe." Uma tal observação, implicando a sua parte de infortúnio, implica também, na formação da teoria, a sua parte de erro. [259]

Simples fatos naturais, aliás, puderam também sugerir a Tales a sua ideia da água origem dos outros elementos. O fato de que a água depõe nateiro (nas inundações do Nilo e na formação do delta, por exemplo) ou ainda a formação das brumas que nascem do mar ou talvez o aparecimento dos fogos-fátuos que flutuam sobre os pântanos — tudo isto desperta a atenção do sábio. A coisa importante está em ter-se posto o sábio a observar a natureza ou as técnicas humanas, libertando-se de qualquer explicação sobrenatural. Nesta observação e na verificação das suas observações, por exemplo, na técnica tão importante da fundição das estátuas de bronze, o sábio dá os primeiros passos naquilo que merecerá, muito mais tarde, o nome de método experimental. Por enquanto ainda não é mais que um balbuciamento, mas é também o início de uma nova linguagem.

Por essa mesma altura, os mesmos sábios da Jônia e nomeadamente o mesmo Tales fizeram a descoberta de um outro método científico, que os homens dominaram desde o princípio melhor que nenhum outro. É o método matemático, sob a sua forma geométrica.

Os vasos de Dípilo (século VIII) manifestam já a paixão dos Gregos pelo estilo desnudado da geometria. As personagens — homens e cavalos — que se introduzem nesta decoração linear são eles próprios geometria: ângulos e segmentos de círculos reunidos!

Mas os Gregos, com a imaginção já toda invadida de figuras geométricas, inventam, como sempre, esta ciência a partir de técnicas precisas. Os Orientais. Assírios e Egípcios, tinham constituído um primeiro estado do que devia ser a ciência matemática.

Os Egípcios, por exemplo, para encontrarem as dimensões dos seus campos após a inundação do Nilo, que lhes apagava os limites sob uma camada de lodo, conheciam certos processos de agrimensura que podiam iniciar a descoberta de tais ou tais teoremas de geometria. Assim, eles sabiam que, para um triângulo retângulo cujos lados do ângulo reto se medem por 3 e 4 e cuja hipotenusa se mede por 5, os quadrados que se constroem sobre os lados 3 e 4 do ângulo reto têm juntos a mesma superfície que o quadrado contruído sobre a hipotenusa. Sabiam-no, mediam-no no solo, porque sabiam que 3x3, ou seja 9, mais 4x4, ou seja 16, é a mesma coisa que 5x5, ou seja 25. Mas não sabiam que esta proposição é verdadeira para não importa que triângulo retângulo, e eram incapazes de o demonstrar. A sua geometria não era ainda uma ciência propriamente dita. [260]

Durante séculos, aquilo que viria a ser método matemático, não foi mais que uma coleção de regras. Estas regras eram já muito complicadas por vezes e permitiam, por exemplo, em certos casos, predizer a posição dos astros. Contudo, este conjunto de regras não constituía uma ciência. Não estavam ligadas entre si, não valiam senão para casos particulares e ninguém procurava demonstrar que elas derivavam de alguns princípios simples que se impunham ao espírito pela experiência. Por exemplo: "A linha reta é o mais curto caminho de um ponto a outro." Ninguém demonstrava que estas regras são leis da natureza e são necessariamente o que são.

Os Gregos tiveram necessidade de desenvolver a sua geometria por duas razões principais: a navegação (e sem dúvida a construção dos barcos, que tinham deixado de ser, nessa época, pirogas ou barcas primitivas) e a cons­trução dos templos.

Tales, diz-se, fez um dia uma descoberta geométrica que parece justa­mente estar em relação com a construção dos tambores das colunas dos templos. Fez ver não apenas que um ângulo inscrito num semicírculo é um ângulo reto, mas também que, necessariamente assim tem de ser, quer dizer, que se se unirem as extremidades de uma semicircunferência a um qualquer dos seus pontos, essas duas linhas fazem sempre um ângulo reto.

Do mesmo modo, Pitágoras (ou a sua escola, ou um outro, mas em uma data antiga) mostra que o quadrado construído sobre a hipotenusa do triângulo retângulo, quaisquer que sejam as dimensões do triângulo, é forçosamente igual à soma dos quadrados construídos sobre os outros lados. Assim, os casos particulares dos Orientais tornavam-se propriedades universais das figuras geométricas. Os Gregos criaram, pois. uma ciência geométrica que é a nossa, na qual as propriedades das retas, dos círculos e de algumas outras curvas podiam ser demonstradas pelo raciocínio e verificadas pelas aplicações da técnica. (E eu penso sobretudo na arquitetura, que eles levaram, por essa via, a um raro grau de solidez e de beleza.)

Os Gregos edificavam desta maneira uma ciência geométrica em ligação com a arte da construção e com a navegação. Toda a tradição relativa a Tales lhe atribui o conhecimento concreto da distância, a partir de um ponto alto na margem, de um navio em pleno mar. A mesma tradição lhe atribui os conhe­cimentos geométricos, desta vez abstractos e racionais, das propriedades das figuras cuja construção permite medir essa distância. [261]

Esta ciência é obra de uma classe de mercadores que querem barcos para navegar longe e templos para ilustrar a glória da sua cidade, ao mesmo tempo e tanto como aos deuses.

A ciência que assenta nestas condições é nitidamente um humanismo. Os homens podem, graças a ela, ler na desordem aparente da natureza leis rigorosas que nesta estão presentes. Podem-no e querem-no, a fim de utilizar essas leis. A ciência que nasce é pois, no seu princípio e na sua intenção, utilitária. Os homens apoderam-se dela como de uma ferramenta.

A grandeza de Tales não consiste essencialmente em ter sido o primeiro dos "filósofos". (Sim, se assim se quiser, mas o limite entre a ciência e a filosofia é ainda muito flutuante nessa época!) É antes de mais um "físico", por de mais ligado à natureza à "physis", para acrescentar seja o que for à natureza, para nada procurar além dela — para ser metafísico. Pensa em termos de matéria: é um materialista. É certo que os pensadores gregos não distinguiram ou separaram ainda a matéria e o espírito. Mas a matéria é tão preciosa para Tales e para a sua escola que a confundem com a vida. Para eles, toda a matéria é viva. Digamos pois que estes sábios não são "materialistas" no sentido moderno da palavra, uma vez que a diferença entre o material e o não-material não existia para eles. Mas é significativo que Aristóteles, um idealista, os tenha apresentado como materialistas. Foram realmente materia­listas primitivos. Mais tarde, os Gregos chamavam a estes velhos jônios hilozoístas, isto é, aqueles-que-pensam-que-a-matéria-é-viva, ou aqueles que pensam que a vida — a alma — veio da matéria ao mundo, é inerente à matéria, é o próprio comportamento da matéria.

Estes pensadores falam pois do universo e esquecem os deuses. Muito perto deles — no tempo e no espaço — explicava-se a criação do mundo pela união do Urano (o Céu) e de Geya (a Terra). Tudo quanto se seguira, gerações dos deuses e dos homens, era mitos e mitologia, era "demasiado humano". Para Tales, o céu é esse espaço a três dimensões no qual faz avançar os barcos e ergue as colunas dos templos da cidade. A terra é esse barro primitivo que a água depõe, que a água sustém, que retorna à água...

Esta explicação terrosa e líquida (a terra separada das águas) parece ter sido retirada de qualquer coneo sumério: parece uma história de criação ou de dilúvio. Todos os países eram mares, dizem as cosmologias babilônias. Marduk, o Criador, pousou sobre as águas um tapete de juncos, que cobriu de lama. Também Tales declarou que na origem tudo tinha sido água, mas eles [262] pensavam que a terra e todos os seres se tinham formado a partir da água, por um processo natural. Talvez, com efeito, Tales deva a sua hipótese a uma primitiva mitologia oriental, aquela que se reflete também no Génese. Mas o mito decantou-se ao tornar-se grego. Que aconteceu ao Espírito de Deus que flutuava sobre as águas no mundo incriado do primeiro capítulo da Bíblia? Que aconteceu a Marduk? Que aconteceu ao Criador? Que aconteceu à voz de Deus que falava a Noé na narração do dilúvio? Tudo isto se dissipou como um sonho metafísico. O Criador perdeu-se no caminho.

O caráter racional e também o caráter universal das proposições de Tales fazem dele o segundo fundador da ciência, se desta vez entendermos por ciência um conjunto de proposições ligadas entre si por laços lógicos e que constituem leis válidas em todo o tempo. Aristóteles dirá mais tarde: "Não há ciência senão do geral." Definição mais limitada que a mencionada antes, mas que permite situar melhor Tales na história dos conhecimentos humanos.

Com Tales interrompe-se por um tempo a cadeia dos mitos. Uma história nova começa: a história dos homens que inventam a ciência, que inventam a ciência concebida na sua universalidade, sob o seu aspecto rigoroso e racional.

Indicaremos, finalmente, a opinião que certos modernos atribuem a Tales, segundo a qual a natureza seria ao mesmo tempo inteligente e inconsciente. Vê-se o partido que a medicina hipocrática, no século seguinte, iria tirar de uma tal reflexão. Observando a ligação, a estreita analogia do organismo humano e da natureza tomada no seu conjunto, a medicina verifica com efeito que o organismo humano deve necessariamente melhor fazer as coisas sem as ter aprendido e permanecendo inconsciente delas. É o que a medicina observa na cicatrização das feridas, na formação do calo ósseo, nos fenômenos de reação salutar que não provêm da arte, mas da obra automática da natureza.

Assim a ciência médica, por seu turno, poderia derivar em parte de Tales.

A investigação de Tales não era uma pesquisa isolada. A ciência só progride pela colaboração dos pesquisadores. A estes pesquisadores, a quem Tales dá o impulso, chamam-lhes, como a ele, físicos. Observam a natureza com um espírito positivo e prático. Prontamente as suas observações recorrem à experiência. Citemos, sem maior demora, alguns nomes.

Anaximandro. de uma geração um pouco mais jovem que Tales, é, por certa faceta do seu espírito, um técnico minucioso: traça as primeiras cartas geográficas: é o primeiro a utilizar o gnómon, inventado pelos Babilônios, para [263] dele fazer um quadrante solar. Sabe-se que o gnómon é uma haste de ferro que, plantada verticalmente no chão num local liso, pode indicar, pelas varia­ções da sombra, o meio-dia exato, os solstícios e os equinócios, assim como as horas e as datas intermédias. Anaximandro fez dele um polos, que foi o primeiro relógio.

Xenófanes, exilado da Jônia quando da conquista deste país pelos Persas, instalou-se na Itália. É um poeta ambulante que, nas praças públicas, declama o seu poema intitulado Da Natureza, no qual critica a mitologia tradicional e troça da concepção antropomórfica do divino. Escreve esta frase extraordinária: "Se os bois, os cavalos e os leões tivessem mãos e pudessem pintar quadros e esculpir estátuas, representariam os deuses sob a forma de bois, de cavalos e de leões, à maneira dos homens que os representam à sua própria imagem." Este Xenófanes era um sábio de curiosidade aberta aos horizontes mais diversos, ela levou-o a descobertas de grande alcance, como reconhecer a presença de conchas nas montanhas, a marca de peixes sobre pedras em Malta, em Paros, nas pedreiras de Siracusa.

No século V, sábios como Anaxágoras e Empédocles parecem ter ido mais longe ainda neste caminho. O primeiro interessou-se por toda a espécie de fenômenos de astronomia e de biologia, notou a existência de parélios — esses estranhos fenômenos luminosos — no mar Negro e tentou explicar o fato: ocupou-se da causa das cheias do Nilo. O segundo foi recentemente chamado um "verdadeiro precursor de Bacon": imaginou experiências originais para dar conta, por analogia, de vários fenômenos naturais, ou que julgavam assim. Estas tentativas, que revelam muito engenho, manifestam o nascimento da experimentação científica.

Todos estes esforços dos sucessores de Tales, aliás mal conhecidos por nós, por falta de textos suficientes, ajudaram, no domínio físico, às duas grandes descobertas do século V. Uma é o conhecimento preciso do movimento anual do Sol sobre a esfera celeste, segundo um plano que é oblíquo em relação àquele em que o Sol cumpre, ou parece cumprir, o seu movimento em um dia. A segunda é a determinação do valor matemático dos intervalos musicais, que era já familiar a um sábio do final do século V.

Eis, muito sumariamente indicado, o balanço científico dos sucessores imediatos de Tales. [264]

É este genial Tales que a tradição popular entrega aos sarcasmos dos transeuntes e das servas quando, ocupado todas as noites a decifrar os astros, lhe acontece, por pouca sorte, cair num poço. Esta maliciosa narrativa encontra-se em Esopo, encontra-se em Platão. Montaigne declara: "Grato fico a essa moça de Mileto que, vendo o filósofo Tales distrair-se continuamente na contemplação da abóbada celeste... lhe pôs no caminho qualquer coisa onde ele tropeçou, para o advertir de que seria tempo de distrair o pensamento nas coisas que estavam nas nuvens quando tivesse provido àquelas que estavam a seus pés."

La Fontaine, por sua vez, adverte-o:

Pauvre bête,
Tandis qu à peine à tes pieds tu peux voir, Penses-tu lire au-dessus de ta tête?
Pobre e glorioso Tales! Que homem mais do que tu teve os pés na terra?
A ciência, difícil conquista dos homens: desafio ao bom senso, objeto de irrisão do bom senso.

*

O pensamento jônio e a escola de Tales tinham-se orientado para uma concepção dinâmica do mundo, centrada sobre elementos materiais em contínua e mútua transformação.

Este materialismo dos Jônios procede de uma intuição justa mas ingênua da natureza concebida como uma massa de matéria eterna infinita, em perpétuo movimento e mudança.

Esta intuição (e na época só de intuição se pode tratar e não de conheci­mento científico demonstrado) é retomada e precisada, sempre intuitivamente, por Demócrito, no século V antes da nossa era. O materialismo de Demócrito ganha uma força maior, irresistível na história, em ter sido, no século que o separa de Tales, contestado pela escola de Parménides, para quem nada existe fora da estabilidade e da ausência do movimento, e por Heraclito, para quem tudo muda e se escoa. É ao responder a Parménides e a Heraclito, é ao [265] ultrapassar ao mesmo tempo a estabilidade e a mudança, que Demócrito encontra a resposta e desenvolve o seu sistema da natureza. Deixemos os pormenores destes debates e tentemos expor este sistema de Demócrito.

Difícil, aliás, muito difícil. Os textos de Demócrito são incrivelmente raros. A obra de Demócrito era extremamente vasta e alargava-se a todos os domínios do saber humano. Dele não nos resta hoje uma só obra completa, ao passo que da obra de Platão, não menos vasta mas também não mais, tudo conservámos sem que uma obra falte à chamada, e mesmo um pouco mais que tudo, pois algumas obras bastardas se misturaram ao grupo das obras autênticas.

É difícil ver um simples acaso nesta diferença de tratamento feita pela tradição às obras de Demócrito e às de Platão. Não vamos crer cegamente no que os antigos nos contam a este respeito. Mexericam eles que Platão não escondia o seu desejo de lançar ao fogo toda a obra de Demócrito, se pudesse. Digamos que aqueles que assim falam atribuem a Platão uma intenção que não passou de um voto secreto, e não nos adiantemos a ler nos corações. Espantoso é que este voto, exprimido ou não, foi realizado pelos séculos. Desde o século III da nossa era, os rastos da obra de Demócrito tornam-se para nós difíceis de distinguir. Mais tarde, pode-se supor que as perseguições de que os manuscritos antigos são objeto por parte da igreja cristã — perseguições que duraram três séculos: VI, VII e VIII — foram particularmente rigorosas para com um escritor já denunciado como o pai do materialismo. As mesmas perseguições da Igreja terão sido, pelo contrário, muito indulgentes para com o fundador da escola idealista a que esta Igreja ia buscar toda uma parte da sua teologia.

O resultado está à vista. De Demócrito apenas temos citações insignificantes, por vezes obscuras, e que, em certos casos, podemos mesmo considerar falsificadas. Só pelos seus adversários ouvimos falar deste grande filósofo, e, por sorte, por Aristóteles e Teofrasto, sem dúvida mais inclinados, na sua qualidade de naturalistas, a dar atenção ao mundo da matéria.

Demócrito nasceu por alturas de 460 em Abdera, colónia grega na costa da Trácia, o que permite a Cícero a graça de declarar que o que Demócrito diz dos deuses é mais digno da sua pátria (Abdera é, para os antigos, a capital do reino da Estupidez) que dele próprio.

Foi em Abdera que ele seguiu o ensino de Leucipo, o pai quase desconhe­cido (e desta vez, praticamente despojado de qualquer texto) do materialismo sensualista que Demócrito desenvolveu. [266]

Como todos os grandes pensadores gregos, Demócrito foi um grande viajante. Não encolhamos os ombros se nos contarem que ele conversou nas índias com os gimnosofistas: estes testemunhos extravagantes da sabedoria oriental sempre intrigaram muito os Gregos. No Egito com os sacerdotes, e que ainda por cima visitou a Etiópia. Platão não fez menos. A sabedoria grega — exceptuando Sócrates, que disso se gaba — sempre correu muito o mundo e muito tirou dessas vagabundagens. O saber enciclopédico de Demócrito recolheu no Egito receitas empíricas de química, conhecimentos verdadeiros ou falsos mas abundantes de história natural e, dos Caldeus, ou ainda dos Egípcios, uma massa de noções elementares de matemática e de astronomia.

As informações que nos dão sobre estas viagens podem ser falsas. Mas é impossível tocar na maior parte dos fragmentos conservados do filósofo sem ser impressionado pela extrema abertura das suas opiniões sobre o mundo e o futuro da humanidade. Um ar vivo e picante — esse ar que sopra nas alturas, ao amanhecer, gelado na pele, exaltante no coração — atravessa a obra de Demócrito como a dos outros pensadores malditos, Epicuro e Lucrécio. Em verdade, estes materialistas trespassam-nos a alma da maneira mais acerada. A sua ferida é fecunda.

Demócrito, como dizem os antigos, tinha "escrito sobre tudo". Se não temos as suas obras, temos uma lista dos títulos das suas obras: ela confirma esta asserção. Demócrito tinha escrito sobre as matemáticas (tratados notáveis, segundo o testemunho de Arquimedes, que dá exemplos das descobertas mate­máticas de Demócrito). Tinha escrito sobre a biologia, de que falava como sábio que praticara a dissecação, fato por assim dizer único na época. Tinha escrito sobre a física e sobre a moral, sobre a filologia, a história literária e a música. Tinha sobretudo formulado o seu sistema da natureza.

Chegou a uma idade muito avançada, ultrapassou os noventa anos, atingiu mesmo, segundo os amadores de recordes, a centena. Estes números fazem-no viver até ao segundo quartel do século IV.

Demócrito lançou no mundo a grande palavra átomo. Lança-a a título de hipótese. Mas porque esta hipótese respondia melhor que nenhuma outra aos problemas levantados pelos seus predecessores e pela sua época, a palavra que ele lança está destinada a atravessar os séculos. A ciência moderna retomou-a e se a emprega num sentido menos estrito, se está em condições de revelar a estrutura interna do átomo, nem por isso deriva menos dessa intuição espontânea de Demócrito: a existência dos átomos.

Um sábio moderno, o físico J. C. Feinberg, mostra o paralelismo impres­sionante entre as previsões atômicas, se assim se pode falar, de Demócrito e as de Einstein. Escreve ele a este respeito:

"Einstein, em 1905, apenas com papel, um lápis e o seu cérebro, muitos anos antes que alguém conseguisse desintegrar um átomo e destruir a matéria, predizia que a matéria podia ser destruída e que, quando o fosse, libertaria terríveis quantidades de energia. Demócrito, no século V antes da nossa era, apenas com uma tabuinha de cera, um estilete e o seu cérebro, muito antes que a ciência tivesse aprendido a explorar o interior de uma substância, predizia que toda a substância era feita de átomos."

Demócrito não admite no seu sistema senão duas realidades primordiais, os átomos, por um lado, o vazio, por outro lado. Notemos, a propósito do vazio, que esta hipótese de existência do vazio na natureza está hoje inteira­mente demonstrada. Durante muito tempo os filósofos, como os sábios, decla­raram de maneira peremptória: "A natureza tem horror ao vazio." Na verdade, eles atribuíam à natureza um horror que lhes era próprio. Hoje admite-se e demonstra-se que o vazio existe no interior do átomo, como existe entre os átomos. O professor Joliot-Curie escreve: "Há grandes espaços vazios na matéria. Em relação às dimensões das partículas que constituem a matéria, estes vazios são comparáveis aos espaços interplanetários."

Os átomos são definidos por Demócrito: corpúsculos sólidos, indivisíveis (o seu nome significa insecáveis: Demócrito contestava a possibilidade da fissão do átomo), indissolúveis. São em número infinito e eternos. Movem-se no vazio. Este movimento não é exterior a eles. O movimento coexiste com a matéria: com ela, é primordial.

Os átomos não têm outras qualidades que uma certa forma, diferente de um para outro, e um peso ligado à sua dimensão.

As qualidades que nós percebemos nas coisas por meio dos sentidos são puramente subjetivas para Demócrito e não existem nos átomos. Demócrito teve o mérito de tentar fundar uma ciência da natureza a partir da noção de quantidade, para daqui deduzir em seguida as qualidades sensíveis.

Os átomos são pois como pontos, não matemáticos mas materiais, de pequenez extrema, que escapam completamente à nossa percepção sensível. Ainda hoje a ela escapam, na sua estrutura, contudo decomposta e utilizada pelos sábios. [268]

Estes átomos agitam-se, "chocam-se em todos os sentidos", sem que haja no universo nem alto, nem baixo, nem meio, nem fim. Há nesta afirmação de Demócrito um dos indícios mais nítidos da justeza da sua intuição espontânea. A natureza, para ele, é um "salpicamento de átomos em todos os sentidos". As trajectórias destes não podem deixar de "se cruzarem", de modo que se produzem "afloramentos, sacudidelas, ressaltos, golpes e entrechoques e também entrelaçamentos". Finalmente, "formações de amontoados".

Tal é o ponto de partida do "sistema da natureza" de Demócrito, um materialismo ao mesmo tempo ingénuo e decidido, uma doutrina com a qual o autor faz um imenso esforço para explicar o mundo da maneira mais objetiva, sem nenhuma intervenção divina. A doutrina de Demócrito é, na verdade, na sequência dos velhos materialistas jônios, a primeira verdadeiramente ateia da antiguidade grega.

Assim se constituiu o mundo em que vivemos. Um grande número de átomos formou uma massa esférica na qual os átomos mais pesados ocupam o centro da esfera, ao passo que os mais sutis são repelidos para as alturas desta. Os átomos mais pesados formaram a massa terrosa, mas nesta massa terrosa átomos menos pesados constituíram as águas que permanecem alojadas nos côncavos da superfície terrestre. Outros átomos mais leves ainda formaram a atmosfera que respiramos.

Acrescentemos que o mundo em que vivemos, a Terra, não é senão um dos mundos que, segundo Demócrito, se formou na extensão sem limites dos espaços. Existem outros mundos em número infinito, que podem ter o seu sol, os seus planetas e as suas estrelas, que podem estar em formação ou em vias de desaparecimento.

Uma tal explicação do mundo não implica nenhuma ideia de criação, nenhuma intervenção sobrenatural no nascimento e na conservação do mundo. Apenas existem matéria e movimento.

Também não estamos, com Demócrito, em uma doutrina mecanicista, embora certos modernos o afirmem. É levianamente que lhe atribuem concepções mecanicistas próximas das dos filósofos dos séculos XVII e XVIII. Em primeiro lugar, acontece a Demócrito utilizar explicações que de modo algum são mecanicistas, como o princípio da ingênua atração do semelhante pelo seme­lhante. Em segundo lugar, os conhecimentos mecânicos estão, no seu tempo, em estado embrionário e não podem fornecer à sua concepção do mundo um fundamento científico. O materialismo de Demócrito é um materialismo de [269] intuição, uma hipótese de físico, de modo algum um materialismo metafísico. Ele lançou o seu sistema da natureza para defender a sua tese da realidade objetiva do mundo circundante e da indestrutibilidade da matéria contra os filósofos do tempo que, ou contestavam que o movimento fosse compatível com a existência, ou, como os sofistas, mergulhavam nas contradições do relativismo.

A hipótese atômica de Demócrito provou ser justa. Mas está fora de questão fundar esta hipótese cientificamente. De um certo ângulo, o materia­lismo de Demócrito, insuficientemente fundado pela ciência da época, privado dos instrumentos de observação de que se servem os sábios modernos, incrivel­mente pobre de fatos objetivamente estabelecidos, é ele próprio insuficiente para cumprir a tarefa que se impusera: explicar o mundo.

No entanto, Engels, que faz uma reflexão deste gênero, acrescenta isto: "É também nisso que reside a sua superioridade (a da filosofia grega) sobre todos os adversários metafísicos posteriores. Se, no pormenor, a metafísica teve razão contra os Gregos, no conjunto, os Gregos tiveram razão contra a metafísica."

Se passarmos ao aparecimento no nosso mundo da vida, vegetal e animal, dos seres humanos depois, veremos que Demócrito admite que a ciência deve procurar a explicação dele nas leis da atração e da agregação dos átomos da mesma forma. Explicação puramente material. E mais: a vida ou a alma não são em caso algum para ele uma força que se acrescentaria à matéria. A vida está eternamente presente na matéria e é da mesma natureza que ela. Consiste em átomos de fogo, que são muito sutis, redondos e lisos, e extremamente móveis. Movem assim os corpos nos quais se encontram e a vida mantém-se enquanto são em número suficiente. A atmosfera contém um grande número deles e é a respiração que sustenta a vida dos seres até ao seu termo.

Os seres vivos são pois considerados como agregados de átomos, chegados ao Estado em que os vemos após uma longa evolução. Quanto ao homem. Demócrito adiantava a hipótese de "que era um filho do acaso que nascera da água e do lodo".

Quanto à religião, deve-se insistir no fato de que, no sistema atômico, em que a natureza e o homem são explicados por princípios naturais e mate­riais, em que a vida depois da morte é categoricamente negada, o problema religioso está totalmente privado da substância que o alimenta. Demócrito [270] toca-o sobretudo para afirmar que a crença na existência dos deuses tem por causa o medo dos homens perante os fenômenos da natureza que eles não compreendem e particularmente perante a morte.

Contudo, em uma outra passagem, Demócrito faz uma reserva em relação aos deuses que pode parecer estranha, mas que lhe é inspirada pelo seu espírito científico aberto a todas as hipóteses. Admite que poderão existir seres forma­dos de átomos mais sutis que os homens e que, sem serem imortais, viveriam muito e muito tempo. Mas estes seres não têm nenhum poder nem sobre as coisas nem sobre os homens. Razão por que a sua existência (hipotética) não implica nenhum dever da nossa parte. Demócrito não fala nem de oração, nem de piedade, nem de adoração, nem de sacrifício. Ele troça daqueles que implo­ram os deuses a saúde, ao mesmo tempo que se afundam pela intemperança e pela devassidão.

O modo como Demócrito tratou o problema religioso é uma prova evidente da sua liberdade de espírito em relação às crenças populares.

A maneira como Demócrito explicava como o homem toma conhecimento do mundo exterior é também muito interessante de salientar, tanto mais que deu lugar a interpretações diversas.

O homem conhece o mundo pelos sentidos e de maneira toda material. As sensações auditivas, por exemplo, são devidas a correntes de átomos que se propagam do objeto sonoro aos nossos ouvidos. Estas correntes põem em movimento as partículas do ar que lhes são semelhantes e penetram pelas nossas orelhas no nosso organismo. Do mesmo modo, as sensações visuais são produzidas por imagens, ditas simulacros, desprendidas dos objetos exteriores e que penetram nos olhos ou antes pelos olhos no nosso cérebro.

Estas explicações são falsas e parecem-nos infantis. Contudo, o estado da física do século V e sobretudo a inexistência da anatomia e da fisiologia dos órgãos dos sentidos na Antiguidade tornavam difícil ir mais além e acertar mais justamente na hipótese. A ideia de que o conhecimento do mundo nos é dado pelos nossos sentidos e por meio de correntes (nós dizemos ondas) que dos objetos vêm impressionar os nossos órgãos sensoriais, essa é ainda a maneira como a ciência moderna e também toda uma parte da filosofia moderna se representam as coisas.

A posição tomada por Demócrito na teoria do conhecimento é um sensua­lismo materialista. No entanto, Demócrito esbarrava na sua explicação com [271] dificuldades, e mesmo com contradições. A consciência que ele tinha das dificuldades do conhecimento não significa, de modo algum, que deva ser alinhado entre os céticos. Não é um cético, é um espírito consciente da imensidão da tarefa do pesquisador científico. Acontece-lhe pois exprimir sentimentos de reserva e de dúvida, sentimentos que, seja qual for a época da história, todo o investigador honesto experimenta quando compara o resultado alcançado com aquilo que falta atingir. Demócrito declara em um desses momen­tos que a vocação do pesquisador é a mais bela e que dedicar-se alguém a dar uma explicação causal dos fenômenos naturais é mais próprio a tornar um homem feliz que a posse de um trono real.

Eis a título de exemplo uma passagem em que se vê Demócrito esbarrar com uma das contradições a que chega o seu sistema, pelo menos tal como ele o inventou no seu tempo. Esta passagem é do grande médico Galeno"

"Demócrito, depois de ter desacreditado as aparências dizendo: 'Convenção a cor, convenção o doce, convenção o amargo, na realidade não há senão átomos e vazio', dá aos sentidos a linguagem seguinte contra a razão: 'Pobre razão, depois de nos teres tirado os meios de prova, queres abater-nos! A tua vitória é a tua derrota."

O simples fato de que a contradição reconhecida resulta num diálogo e o sinal da robusta vitalidade do pensador que apenas procura uma solução, a verdade.

O sistema de Demócrito, como se vê. é notável quer pela variedade dos problemas que se esforça por resolver, quer pela solidez dos princípios sobre que assenta, como diz Robin, sobre Demócrito: "Esta solução original e coerente... teria podido, se a filosofia das ideias não tivesse prevalecido, fornecer à ciência da natureza... uma hipótese metodológica própria para organizar as suas pesquisas."

Claro que não devemos iludir-nos pelas semelhanças entre o atomismo antigo e o da ciência moderna. Em consequência dos progressos imensos realizados nas técnicas experimentais e nas matemáticas, o átomo não é já hoje essa unidade indivisível que Demócrito supunha. É um sistema formado de um certo número de corpúsculos de electricidade negativa, os electrões, que gravitam à volta de um núcleo carregado positivamente, exatamente como os planetas em volta do Sol.

É contudo (cito aqui a conclusão da obra de Solovine sobre Demócrito). em última análise, a imagem do Universo é para nós a mesma que era para
272 Demócrito: um número inconcebível de corpúsculos disseminados pelo espaço sem limites e movendo-se eternamente.

Admiremos a lucidez e a coragem do grande pensador que foi Demócrito. Ele fez — à custa da sua reputação — uma coisa imensa: deu à matéria a sua dignidade. É o mesmo que dizer que ele nos reconcilia — corpo e alma reunidos — com nós próprios. Se sabemos entendê-lo, ele assegura-nos da grandeza da nossa vocação de homem. Sem nos permitir exaltar-nos excessi­vamente, pois liga os homens ao lodo original de que são feitos, instala-nos contudo no ponto mais avançado de um progresso de que somos o desenlace e de futuro os artifíces.

Apesar disto ou por causa disto, Demócrito foi um dos sábios mais vilipendiados da Antiguidade. Amar e louvar a matéria, a ela reduzir a nossa alma, é ser "cúmplice de Satanás", como mais tarde se dirá.

Demócrito perdeu a sua reputação e a sua obra. "É um louco", diziam os seus concidadãos. Sempre a ler e a escrever. "A leitura perdeu-o!" Ouçamos La Fontaine resumir as palavras dos Abderianos, depois troçar da sua doutrina:

Aucun nombre, dit-il, les mondes ne limite. Peut-être même ils sont remplis
De Démocrites infinis.
Os seus patrícios tomaram o partido de pedir uma consulta a Hipócrates, o grande médico contemporâneo. A conversa dos dois homens de génio descam­ bou, diz-se (porque a anedota é fictícia), no diálogo da ciência e da amizade.
"Ninguém é profeta na sua terra", comenta o fabulista.

*

Porém, se, como foi dito, "o cérebro de Demócrito era feito como o de Einstein", é evidente que o nascimento da ciência que procede das suas pesquisas, das dos seus predecessores como os velhos jônios, ou dos seus sucessores como Aristarco de Samos ou Arquimedes, é um dos fatos mais salientes da civilização antiga e, pelas suas consequências longínquas, sem dúvida o mais importante.

[273]

É certo que por razões que serão expostas mais adiante, a ciência helênica não pôde progredir nem mesmo perdurar na sociedade antiga. Mas o seu desaparecimento quase total na época romana, o seu longo adormecimento durante os séculos da Idade Média, não são mais que uma aparência. Os homens não perderam a confiança em si mesmos, no seu poder de compreender o mundo com a sua razão, de o refazer melhor e mais justo.

Era essa a grande esperança da ciência grega, a sua mais certa justificação.

O Renascimento merece o seu nome. Partirá exatamente do ponto de queda da ciência antiga, e sem a esquecer. [274]

História - Civilização Grega
Sociedade - Artes, Artes plásticas
4/25/2021 12:30:46 PM | Por André Bonnard
As artes plásticas na Grécia antiga

Os Gregos são escultores, tanto quanto poetas. Mas conhecê-los e prestar-lhes justiça na luta que empreendem com o mármore, com o bronze, para deles tirar a imagem do homem e da mulher — essa gloriosa forma humana que será para eles o rosto múltiplo de Deus — , eis uma tarefa difícil, por falta de documentos autênticos. Nunca se reconhecerá bastante a nossa ignorância, no limiar de todo e qualquer estudo sobre um ou outro dos aspectos da civilização grega.

Os museus de Roma, de Londres, de Paris — todos os museus de antiguidades do mundo inteiro — transbordam de um povo inúmero de estátuas que desconcerta, ao mesmo tempo, pela abundância e pela ausência. O visitante passa em revista esta turba ilustre e muda. Espera que um sinal lhe seja feito. Ao longo das salas, o seu olhar não capta nada, nem o menor indício de um estilo original, há muito tempo desaparecido. Não é apenas porque estes destroços recolhidos num museu são estátuas agora desligadas da função que lhes era própria: mostrar na cidade o deus aos seus fiéis. E ainda, e sobretudo, porque não se encontra nesta incrível assembleia mais que um amontoado de subprodutos, de cópias helenísticas e meio mortas de obras que se repetem vinte vezes para melhor se contrafazerem. Canhestras imitações das obras-primas clássicas com que os nossos manuais nos moem os ouvidos desde a infância: nada de autêntico, nada de convincente. Quando muito, uma ou outra exceção. As estátuas e os baixos-relevos da época arcaica são esculpidos pela mão ousada e inábil ainda daquele que os concebeu. Mas, para a arte da época clássica (séculos V e IV) — postos de parte as estátuas e os relevos dos frontões e dos frisos — uma só obra original de um mestre, o Hermes do singular
[229] Praxíteles, saída das mãos do seu autor. Aliás, o Hermes não nos é dado pelos antigos como uma das obras exemplares do estilo praxiteliano. Quanto às estátuas dos frontões, aos relevos do friso do Partenon, depositários da arte clássica de Fídias, a maior parte deles perdem o brilho, encerrados num museu, nos nevoeiros londrinos. Mas não foi para este céu coberto que o cinzel de Fídias talhou no mármore a forma rigorosa e nobre dos deuses do Olimpo, dos magistrados, dos cavaleiros e das mulheres de Atenas.

Tal é, muito sumariamente dito, o estado deplorável e desanimador das fontes do nosso conhecimento da estatuária antiga. Acrescentemos algo mais. que não menos contribui para nos induzir em erro. A maior parte dos mestres da plástica antiga não foram escultores de pedra, mas bronzistas. Nomeadamente, três dos maiores artistas da idade clássica: Míron e Policleto no século V, Lisipo no século IV: nenhum bronze saído das suas mãos chegou até nós. Se os grandes museus não nos apresentam, a maior parte das vezes, senão mármores e pouquíssimos bronzes, é porque os originais dos bronzistas desapareceram desde o fim da Antiguidade. Para conhecer e julgar as obras destes grandes artistas, não possuímos pois senão cópias tardias e feitas noutra matéria, que não aquela em que foram criadas. Os séculos que se seguiram à idade da civilização grega preferiram, em vez de conservar as obras-primas de bronze, refundi-las para fazer delas sinos ou soldos, e mais tarde canhões.

Estas breves reflexões eram necessárias para dizer a que ponto a nossa ignorância em matéria de arte plástica grega (e não falemos já da pintura) limita estreitamente o que dela podemos entrever. Nunca ou quase nunca tocamos em algo de original. Sempre ou quase sempre em obras de segunda mão, quando não de quarta ou quinta.

*

No entanto, ao primeiro contato, as coisas pareciam muito simples. O povo grego é filho de um solo feito todo ele de pedra. Parecia natural que os artistas gregos tivessem tirado desse solo o mais belo dos materiais de escultura, o mármore, para dele fazer as imagens duradouras dos deuses imortais.

Mas isto não se passou com essa simplicidade. Que nos mostra, com efeito, a escultura grega primitiva, do povo grego ainda primitivo? Absolutamente [230] nada. Porquê? Porque não conservamos nenhuma obra dos séculos IX ou VIII. Nessa época, os artistas não esculpiam nem o mármore, nem sequer a pedra mole. Talhavam a madeira. Para esculpir a pedra, e já para talhar a madeira, foi necessária aos Gregos uma longa aprendizagem, uma lenta educação das gerações, uma progressiva adaptação do olho à realidade que o artista se propunha reproduzir. Sobretudo uma formação da primeira ferramenta de que deve dispor o artista — uma formação da mão.

O artista grego primitivo, sem ter a ideia de que os seus sucessores acometerão a pedra, talha a madeira como um camponês. Talha as imagens ainda rudes dos deuses temíveis que adora. Dar-lhes figura humana, é exorcizá-los — reduzir o desconhecido ao conhecido — , é retirar-lhes o seu poder maléfico.

Mas ainda aqui é precisa ao artista uma formação. Esta formação é a sociedade a que ele pertence que lha dá, no quadro do ofício que escolheu. O meio social permite-lhe arriscar-se, e a sua vocação exige que se arrisque a esta operação cheia de perigos: o artista ousa, quando à sua volta se adoram a maior parte das vezes pedras brutas, feitiços, exprimir o divino e exprimi-lo através do humano: ousa dar a forma do homem e da mulher a esses deuses sobre os quais a poesia conta uma multidão de estórias muito humanas. "A mitologia", escreveu-se já, "não é apenas o arsenal da arte grega, mas o seu seio materno".

No século V, e mais tarde ainda, podia-se ver no mais antigo dos santuários de Atenas, o Erecteion, reconstruído depois do incêndio das guerras medas, um antigo ídolo de Atena, esculpido na madeira (e na noite dos tempos) e que se julgava caído do céu. A deusa, desligada da sua imagem, ali ia por vezes residir, ao apelo do seu povo. Retendo a deusa no templo, os Atenienses pensavam dispor do seu poder divino.

Todos os velhos santuários possuíam destas imagens de madeira, quase sempre "caídas do céu". Contudo, o nome com que as designavam indicava que as sabiam confusamente talhadas por mão de homem. Eram os xoana (no singular, xoanon). A etimologia da palavra mostra que as consideravam "peças trabalhadas", por oposição precisamente às pedras brutas que eram os antigos feitiços. Um historiador antigo diz dos xoana que eles tinham os olhos fechados, os braços colados aos flancos. Eram adorados ainda em alguns templos no tempo de Pausânias (século II da nossa era). Eram sagrados, conservados cuidadosamente, pintados de branco ou vermelhão, e possuíam por vezes um completo guarda-roupa. Os céticos troçavam deles, os simples veneravam-nos. [231]

A arte grega, das origens à época clássica, é na verdade um longuíssimo caminho, eriçado de obstáculos de diversa natureza. Obstáculos técnicos, sem dúvida: adaptação do olho e da mão. Mas também obstáculos com que as crenças e superstições mágicas do tempo enchem o cérebro do artista. Porque, enfim, como o disse Miguel Ângelo: "Não é com a mão que se pinta, mas com o cérebro; e quem não puder ter o cérebro livre cobre-se de vergonha." É lutando contra estes obstáculos que o artista cria a sua obra. De cada vez que ultrapassa um deles, realiza uma obra válida.
Em relação ao deus, que é sua missão representar, o artista está empenhado numa série de esforços em que se juntam o respeito do divino e a audácia do homem em enfrentá-lo — aquilo a que a tragédia grega chama o aidôs e a hybris.

Os embaraços do crescimento, se por um lado são entraves, são também incitamentos à criação capaz de os afastar.

Uma longa jornada que nós vamos tentar refazer, procurando, sobretudo com a ajuda de raras obras autênticas, determinar as direções que elas assinalam. A arte grega é profundamente realista desde as origens. Floresce em classicismo. Mas qual é o sentido destas palavras tantas vezes desnaturadas: realismo e classicismo? Este é o objeto principal das páginas que se seguem.

*

Partamos dos xoana. Para fazê-los, o artista havia tomado um tronco de árvore bem direito. Dele cortara um pedaço um pouco maior que a estatura humana. ("Os deuses são maiores que os homens".) Na rotundidade do tronco, colando os dois braços ao longo do corpo, encerrando no vestuário ou na imobilidade as duas pernas aprumadas no solo, conservando no conjunto uma simetria rigorosa, o artista apenas fizera sobressair do resto do corpo e suma­riamente marcara as principais articulações da arquitetura humana. No corpo do deus masculino, o membro viril era claramente indicado. No corpo da deusa, o seio aparecia apenas acentuado sob o vestido.

Depois — segunda etapa da aprendizagem da mão, que a luta contra a matéria tornara mais ágil e mais firme — os Gregos acometeram a pedra [232] macia, o calcário. Estamos nos meados do século VI. Já a poesia épica concluiu a sua carreira gloriosa, mas não está esquecida: recita-se a Ilíada e a Odisseia nas festas das cidades. O lirismo dominou a beleza da forma poética associada ao canto. A escultura balbucia ainda. Porque a luta é aqui mais dura: corpo a corpo do olho, da mão e do pensamento com a matéria.

Eis Herade Samos (museu do Louvre), uma das primeiras estátuas da Grécia, entre as que se conservaram. Data de cerca do ano de 560. Naturalmente, esta obra não é um xoanon. Nenhum xoanon chegou até nós. Mas esta estátua reproduz, com toda a evidência, o estilo tronco de árvore. Toda ela é redonda. A base é circular, graças à túnica que o escultor fez cair até ao solo, canelada de múltiplas pregas verticais. As vestes que a envolvem fazem dela, dos pés aos ombros (a cabeça desapareceu), um tronco de árvore que mal deixa entrever a sua encarnação feminina. A base do corpo ergue-se cilíndrica, sem que alguma coisa das pernas se possa adivinhar sob o tecido. Nem a cintura nem as ancas estão indicadas. O ventre quase nada. Mais acima, o leve inchar dos seios aparece sob o vestuário. O dorso da estátua é mais trabalhado. A espinha dorsal começou a nascer para os olhos do escultor. Viu também e reproduziu a depressão lombar. As coxas e as pernas, em compensação, tanto atrás como à frente, permanecem encerradas,invisíveis e presentes, na sua bainha.

Em baixo, a longa túnica ergue-se para deixar aparecer os dois pés, os dez dedos alinhados para o adorador de Hera que sabe contar.

Esta Hera parece ainda mais um tronco que se anima e se torna mulher que a reprodução de uma criatura divina. Mas o divino não se "reproduz": é sugerido ao coração atento. Da árvore, a deusa apenas reteve a sua maneira de animar-se crescendo: a estátua sobe do solo para a vida. Nenhuma impressão de insuficiência nos toca ao contemplá-la. Ela é esplêndida como um nasci­mento... Apenas o crítico frio e objetivo dirá que a imperfeição da mão não acompanha ainda a exacta ousadia do olho. E tem razão.

Do século VI, as escavações deram-nos, por felicidade, um número assaz grande de estátuas originais. Os seus autores não gozaram, nos últimos séculos ca Antiguidade, da voga que levou os Alexandrinos e os Romanos a espoliar [233] ou a reproduzir, falsificando-as. tantas obras célebres da época clássica. Estas estátuas arcaicas não estão assinadas por um dos "grandes nomes" da arte estatuária. A sua obscuridade foi a nossa sorte.
No entanto, estes mestres anónimos, que designamos em geral pelo nome do local onde foi encontrado o rapaz ou a moça (o deus ou a deusa) criados pelas suas mãos, não foram, no seu tempo, menos grandes que os Fídias ou os Praxíteles. Encontraram incríveis dificuldades para a realização das suas tenta­tivas. Venceram-nas baseando-se na longa sequência de esforços dos seus predecessores. O caráter coletivo da criação artística surge aqui claramente. Mas a estes esforços juntam eles, de cada vez, um esforço novo. no qual manifestam o seu próprio génio. As suas obras, colocadas nessa falsa pers­pectiva histórica que faz da arte arcaica a "preparação" da arte clássica, podem parecer ainda tímidas e canhestras. Mas, tomadas em si mesmas, e cada uma na sua originalidade própria, revelam-se singularmente ousadas, não apenas sedutoras, mas exaltantes. A parte da tradição que assimilam não as impede de exprimir com força a novidade da sua conquista. Porque esta conquista não é apenas a sua: é também a de um povo que, afeiçoando os seus deuses, sobe à mais clara consciência de si mesmo e da sua força.

A arte grega arcaica liga-se quase exclusivamente a dois tipos essenciais. Dois, e não mais. O rapaz nu (couros), a rapariga vestida (coré).

Este rapaz nu é. primeiramente, o deus na plenitude da juventude. Os arqueólogos deram o nome de Apolo à maior parte deles. Do mesmo modo se lhes poderia chamar Hermes. Ou mesmo jovens Zeus. Estas estátuas de Couroi podem ser também imagens de atletas vencedores. Não é grande a distância que vai do homem moldado em beleza pelo desporto aos habitantes do Olimpo. O Céu é feito à imagem da Terra. Que os heróis sejam chamados por Homero "semelhantes aos deuses", isso não honra apenas os heróis perfeitos, mas igualmente os deuses, em nome dos quais se celebram os grandes jogos nacionais de Olímpia, de Delfos ou de outra cidade. Não é verdade que em outro tempo se viram os deuses correr, em carne e osso. sobre a pista dos estádios. É natural que os deuses sejam concebidos à imagem dos jovens formados na beleza corporal pelos exercícios da palestra.

Neste tipo do Couros, o escultor grego aprende a anatomia. Nos ginásios, a juventude masculina anda quase nua: basta lá ir olhar. Nestes costumes encontramos uma das razões essenciais dos progressos rápidos da escultura que nasce e uma das razões do seu carácter realista. O povo inteiro, que olha uma [234] estátua de Couros, de pé, num santuário, viu na corrida pedestre o jogo dos músculos no corpo do campeão.

É certo que no século VI o escultor está ainda longe de apreender este jogo com exatidão. Limita-se a aprender, passo a passo, o ABC da musculatura. Não se atreve sequer a representar este corpo em movimento. Nem um gesto à direita ou à esquerda. Nem uma inclinação da cabeça. A anatomia é ainda rudimentar.

O rosto é caracterizado por alguns traços singulares. Os olhos são ligei­ramente salientes, prestes a saltar das pálpebras pesadas. Isolado, este olhar teria qualquer coisa de bravio. Digamos antes que o olhar parece tenso pela atenção. É como conciliar estes olhos com o sorriso da boca? Que dizer, aliás deste sorriso? Sobre ele, os historiadores de arte antiga longamente disputaram. Para uns, o sorriso arcaico é uma simples inabilidade técnica. Porque, dizem eles, é mais fácil representar a boca sorrindo que em repouso. Quem acreditará neles? Para outros, este sorriso é "profiláctico": deve expulsar os maus espí­ritos, prevenir a desgraça. Não será muito mais simples pensar, uma vez que a estátua representa um deus, que pareceu natural mostrar em alegria esses deuses que Homero entregava ao riso "inextinguível"? O sorriso das estátuas arcaicas é o reflexo da alegria de viver eternamente, privilégio dos bem-aventurados.

Os ombros dos Couroi são tão fortes quanto é delgada a cintura: as ancas apertadas ao ponto de se mostrarem fugidias. O ventre é chato: o artista ignora-o — superfície lisa. furada pelo umbigo. Dois músculos peitorais muito salientes fazem as vezes de toda a musculatura do peito. As pregas da virilha, em contrapartida, são marcadas com decisão.

Os braços mantêm-se verticais e como que apoiados ao longo do torso. Juntam-se ao corpo, de punhos fechados, no nascimento das coxas. Reserva de energia em repouso.

Quanto às pernas, suportam igualmente, uma e outra, o peso do corpo. A estátua não anda. Contudo, uma das pernas adianta-se um pouco em relação à outra. Sempre a esquerda. Temos aqui um indício da influência da escultura egípcia na escultura grega. Na arte egípcia, é por razões rituais que a perna esquerda é posta à frente. Não parece que tais razões tenham justificado esta posição na terra grega. Este avanço de uma das pernas não determina aliás nenhuma deslocação do equilíbrio na rigorosa simetria do corpo inteiro.

Quanto mais observamos o Couros, mais nos surpreende a força [235] extraordinária de que ele dispõe. Pernas sólidas, corpo estreito que se alonga e se dilata para sustentar a barreira robusta dos ombros. Por cima dela a cabeça ri de alegria, ri da sua própria força. Força que não e destituída de sedução Certos Couroi nao se contentam de amedrontar: fazem sonhar, também Há no tratamento do modelado da sua musculatura uma doçura que predispõe a volúpia.

Força e doçura, contudo parecem mais uma promessa do que uma reali­dade adquirida, pois este corpo está imóvel, pois a estátua sem gesto não caminha.

A arte arcaica obedece, com efeito, a uma lei - a que os especialistas chamam lei da frontalidade — , lei que pesa sobre toda a arte egípcia, mas de que a arte grega se libertará por alturas do ano de 500.

Cortemos o corpo em duas metades, segundo um plano vertical que passe pelo alto da cabeça, pela raiz do nariz, pelo nascimento do pescoço, pelo umbigo e pelo osso do púbis..Estas duas metades do corpo constituem duas partes rigorosamente simétricas, se não contarmos a perna esquerda Lem­bremos outra vez: este avanço da perna esquerda não tem qualquer repercussão na musculatura do corpo. A perna esquerda dá pois o sinal da marcha mas o corpo nao a segue. A marcha destruiria a simetria das ancas, dos joelhos, dos ombros. O corpo inteiro fica como que apanhado na rede da sua imobilidade que retem o homem prisioneiro. Quer caminhar e não se mexe. Não resultara isto de uma extrema dificuldade técnica? Como fazer caminhar a pedra ou o bronze, como se de matéria viva se tratasse? Mas não será esta dificuldade técnica o reflexo de um outro obstáculo — um obstáculo de ordem religiosa. Tendo empreendido representar o deus, o escultor não se atreve a precipitá-lo.

O deus parece-lhe mais divino nesta imobilidade que o escultor impõe a si i propno mais do que lhe cede. Como ter a audácia de pôr em movimento o
deus. Dar-lhe ordem de caminhar, é atentar contra a sua liberdade soberana. A dificuldade tecmca de representar o movimento enraíza-se pois no profundo respeito que o artista vota a este deus que ele fez sair da matéria. De resto, não sentimos como uma falta esta lacuna da marcha, de tal modo o escultor soube encher-nos. diante do Couros-deus, do sentimento do seu poder. Acima de tudo, sentimos nele o deus túrgido de energia, sentimo-lo prenhe de promessas, inteiramente disponível em relação ao futuro que traz em
si e que dara a luz. De maneira imprevisível, porque é deus. [236]

Ao tipo do Couros responde, nos tempos arcaicos, o tipo da Coré. Rapaz nu, rapariga vestida. Deus-atleta, risonho e formidável, rapariga ou deusa iluminadas de cores vivas, pintalgadas de encantos orientais. Foram encon­ tradas catorze, vindas da Ásia a erigir-se na Acrópole de Atenas, poucos anos antes das guerras medas. Derrubadas pelos Bárbaros em 480 (no ano de Salamina). foram piedosamente enterradas pelos Atenienses quando voltaram aos seus lares: apertadas umas contra as outras na sua fossa comum, serviam de aterro para apoio da muralha. As cores estavam ainda frescas e vivas, vermelho, ocre e azul repartidos como ao acaso pelos cabelos e pelos belos vestidos. E que, para o artista, não se tratava de tomar a estátua parecida com uma pessoa viva, mas antes iluminar a pedra, pelo simples gosto da cor cintilante. Estas rapariguinhas impertinentes fizeram mentir os académicos que queriam que os Gregos não houvessem tido nunca o mau gosto de pintar as suas estátuas e sustentavam que só a brancura do mármore (e os olhos vazios de expressão) podia exprimir a serenidade de uma arte. que foi, em verdade, muito mais selvagem e alegre que serena.

Estas desenterradas de fresco têm muita coisa a dizer-nos. Nasceram na Jónia, nesse levante da Grécia onde, um belo dia, todas as artes desabrocha­ ram ao mesmo tempo, numa embriagadora profusão. Importadas ou livremente imitadas, respeitosamente aformoseadas na severa Ática, as estátuas instalaram na Acrópole as suas tranças de cabelos ocres ou violáceos, as suas jóias de todas as cores, as suas túnicas de linho fino em múltiplas pregas irregulares, que caem até aos artelhos, por vezes os seus xailes de lã pesada, tudo isto colorido com uma gentileza e caprichos inesperados. Sob esta dupla veste, o corpo começa a aparecer. Mas o escultor ático conhece melhor a musculatura do corpo dos rapazes que as formas ao mesmo tempo mais delicadas e mais largas do corpo da mulher. Estas raparigas jónias aprumam-se como homens: a perna adiantada prepara-se para marchar. As ancas são tão estreitas como as dos seus camaradas masculinos. O peito, desigualmente marcado conforme as estátuas, com os seios muito afastados, permite sobretudo drapejamentos de efeitos imprevistos. Quanto aos ombros: ombros quadrados de ginastas! Com efeito, estas Corai são quase rapazes mascarados, como no teatro, onde adolescentes cheios de frescura representarão Antígona e Ifigênia. De humor [237] alegre, não deixarão de arvorar o sorriso dito arcaico, que é aqui um sorriso leve, malicioso, contente, com uma ponta de humor. Os trajos, o penteado, todos os adornos lhes agradam extremamente. E o que diz este sorriso femi­nino. Para que reparem e a notem, uma delas faz uma pequena careta: amuou.

Estas estátuas lembram-nos também a paciente escola dos artistas, ou antes, a sua petulante emulação. Não há duas Corai que se assemelhem. Cada artista introduz no tipo divertidas disparidades. As modas dos trajos misturam-se: uma Coré, ora traz, sobre uma túnica jónia, com a sua profusão de pregas, um grande rectângulo de lã sem costura, ao qual bastam, para se tomar vestuário, dois alfinetes nos ombros, com um cordão à volta da cintura; ora o manto longo, sem túnica, cai até aos pés; ora a túnica quase não tem pregas e se cola indiscretamente à pele. Dir-se-ia, vendo-as reunidas no museu da Acrópole, um grupo de manequins, preparados para um desfile, a quem se tivesse deixado escolher, um pouco ao acaso, os vestidos a apresentar.

Mas não foi o acaso que escolheu, foi o artista. O que lhe importa, no tipo da Coré, é o estudo complexo dos drapejos, mais que o da anatomia. As pregas do vestuário variam infinitamente segundo a natureza do tecido, o estilo da toilette, segundo também a parte do corpo que o vestuário cobre: o seu papel é o de sugerir a forma do corpo, ao mesmo tempo que parece velá-lo. O vestuário é. na estatuária grega, para o homem, quando o usar, para a mulher, quando reduzido for, um maravilhoso instrumento de beleza: o artista grego jogara com ele, mais tarde, com uma mestria resplandecente. Sobre a Coré faz ele ainda as suas escalas, divertindo-nos e, sem dúvida divertindo-se.

Recordemos que o vestuário grego não é, a maior parte das vezes, cosido como o nosso. Salvo as túnicas, em que as mangas são cosidas, e ainda assim essas mangas são muito largas, deixando os braços livres. O nosso vestuário modemo. que é cosido e ajustado, apoia-'se nos ombros, nas ancas. O vestuário grego não é ajustado, mas sim drapejado. Exprimir a maneira — as cem maneiras — como um dado vestuário e o corpo se desposam um ao outro, drapejar o vestido e o manto sobre o ombro e o peito, fazê-los cair sobre as pemas. tomá-los frouxos graças a uma cinta, pregueá-los em todos os sentidos — eis o que apresenta dificuldades muito grandes! O mais pequeno movimento de um membro ou do corpo modifica a direcção das pregas. Mas o escultor das Corai enfrenta estes obstáculos com alegria, certo de estar à beira de uma descoberta criadora.
[238]

Assim, graças a uma lenta caminhada convergente, os escultores do século VI vão ao encontro duma vasta conquista, que é o conhecimento do corpo humano, seja nu, com a sua musculatura bem carnal, seja dissimulado sob vestuários leves ou pesados, que dizem ou sugerem, através do vestido, a presença graciosa do corpo feminino.

Esta expressão cada vez mais firme da criatura humana, viva na sua :arne, é muito importante. Tanto mais que este corpo humano que a escultura
pesquisa com um ardor nunca diminuído, atribui-o ela aos deuses.

O corpo do homem e da mulher é, com efeito, a melhor representação, a mais exacta imagem dos deuses. Ao esculpir tais imagens, o artista grego
dá vida aos deuses do seu povo.

O escultores gregos caminham no mesmo sentido que os poetas — mais avançados do que eles — e que os sábios — menos avançados do que eles — , que procuram formular algumas das leis naturais. Também eles. ao esculpirem os deuses, explicam o mundo.

Que explicação é esta, pois? É uma explicação dos deuses pelo homem. Nenhuma forma, com efeito exprime mais exatamente a presença divina, invisível e incontestável, no mundo, que o corpo do homem e da mulher. Os Gregos conheciam as estátuas do Egito e da Assíria. Nunca pensaram traduzir o divino por uma mulher com cabeça de vaca, por um homem com cabeça de chacal. O mito pode ir buscar ao Egito certos volteios de linguagem, certas narrativas e personagens (Io, a vitela atormentada pelo moscardo, na tragédia de Ésquilo). O cinzel do escultor afasta desde muito cedo estas figuras mons­ truosas, salvo em seres muito próximos das forças da natureza, como os Centauros, por exemplo, que, nas métopas do Parténon, representam o assalto furioso dos Bárbaros.

O deus é este mancebo simples e nu; a deusa, esta rapariga formosamente adornada e de rosto amável.

(Não nos deixemos deter pela explicação segundo a qual as Corai não representam a deusa, mas as adoradoras da deusa. São, diz-se comummente das da Acrópole, orantes — rezadoras. Talvez, mas nem por isso estão menos consagradas, penetradas do espírito da divindade. Por essa via, são deusas).

Eis a regra: Dar aos deuses o mais belo. Que há de mais belo no mundo que a nudez de um adolescente, ou a graça de uma rapariga vestida de tecidos [239] bordados? É isto que os homens oferecem aos deuses, é assim que eles vêem os deuses. E assim que são os deuses. Não há outra linguagem para os exprimi* que estes mármores iluminados. (Os Couroi, como as Corai, tinham alsjumas pinceladas de cor nos cabelos, nos olhos, sobre os lábios.) Não há linguager mais própria, não há tradução mais exacta. A estátua do Couros é a palavra de mármore, mas a palavra exata que designa o deus.

Esta beleza do corpo humano, com as suas perfeitas correspondências com as suas proporções, tão regulares que os artistas, mais tarde, se atrevera: a exprimi-las por números, com a suavidade e a firmeza das suas linhas rigorosas e macias, essa beleza do nosso corpo tão comovedora e tão poderosa na sua fremente inteireza, tão convincente para a alma como para o própri: corpo essa beleza parece-nos, ainda a nós, imperecível na deslumbrante adolescencia em que a representaram os Gregos. Eis o que o homem tem de mais belo a oferecer aos deuses imortais. Oferece-lhes, todos os dias da vida.

Levantando para o Céu, onde os deuses moram invisíveis, este povo visível e carnal de alegres raparigas e rapazes sob o Sol da Terra.

Mas estes deuses não são apenas a obra de escultores individuais e quase sempre anónimos, são os deuses da cidade, os deuses do povo dos cidadãos que os erguem e os encomendam ao escultor. São mesmo, por vezes, não apenas, os deuses da cidade, mas, em Delfos, em Olímpia, noutros locais, os deuses protectores de toda a comunidade helénica.

Esta escultura é cívica, popular porque fala ao povo, nacional porque e comum a todos os Gregos. Esta arte exprime não a maneira como o escultor vé os deuses, mas a imagem que deles faz uma comunidade de homens livres. Este deus-homem, este homem que vale pelo deus, esta mulher bem enfeitada, esta orante-deusa, esta deusa pintada como mulher — todos estes seres ambí­guos que as cidades dão a si próprios como senhores e companheiros na sociedade da vida, tudo isto, esta fusão do humano e do divino, é um dos empreendimentos mais ousados que eclodiram no solo da Grécia. Em parte alguma o divino esteve menos separado do humano: exprimem-se um pelo outro. Que outra coisa senão o humano poderia pois dizer o divino! É como ousariam os homens privar o deus da beleza da sua própria forma perecível. Dão-lha, imortal, antes mesmo de serem capazes de exprimi-la sem defeito. O amor do homem pelo seu deus e o amor que ele dedica à sua própria carne eis o duplo aguilhão da criação do escultor de pedra.

Acrescentemos um profundo amor da verdade. Conhecimento cada vez [240] mais exato que o escultor tem da nossa ossatura e da nossa musculatura. Rigor cada vez maior da sua representação. Em definitivo, é esse o dom primeiro do escultor, o dom que ele faz ao seu deus, em troca do progresso que lhe deve no seu trabalho.

*

Mas quem dará enfim movimento a este homem-deus? Quem libertará, fazendo-o caminhar, essa energia de que todo ele está cheio?

Nestas breves páginas sobre a estatutária grega, que de modo algum pretendem substituir uma história lógica da arte grega, não podemos seguir passo a passo, na sua evolução, o lento nascimento do movimento na estátua. De resto, ou nos faltam os documentos que permitiriam apreendê-la, ou esta evolução mal existe, e a arte, como a natureza por vezes, procede aqui, após alguns magros esboços, por mutação brusca.

Eis o Discóbolo de Míron. Vem de meados do século v (um pouco antes de 450). Não é indiferente notar, a propósito, em primeiro lugar, que se trata de uma estátua de homem e não de deus. O escultor, que se sente em condições de fazer mexer a estátua, escolheu representar o cúmulo do movimento num ser humano — um atleta — e não num deus. O deus está, por enquanto, votado à imobilidade. O respeito do artista assim o quer.
Notemos, por outro lado, antes de analisarmos a estátua, que não temos qualquer original desta obra célebre e cem vezes repetida desde a Antiguidade. As obras dos museus não são mais que mármores mutilados. Destas cópias mais ou menos seguras tiraram os modernos uma reconstituição de bronze (o original de Míron era um bronze) que está em Roma, no museu das Termas. Escusado será dizer que ela apenas permite reflexões temerárias sobre a arte de Míron.

Contudo, é evidente que este artista, formado no tempo em que reina ainda, quase sem contestação, a lei da frontalidade, concebeu um empreendimento de extrema ousadia. Sem dúvida, antes de Míron, em baixos-relevos, em algumas estatuetas de bronze, em raras estátuas, já a lei da frontalidade fora algum tanto infringida. Mas esta violação fora parcial. Assim no Homem Que Transporta Um Vitelo, os braços, deixando de estar colados ao corpo, [241] tinham-se movido e os seus músculos apertavam com firmeza as patas do vitelo instalado sobre os ombros. No entanto, o resto do corpo mantinha-se comple­tamente inerte e como que indiferente ao peso do fardo que transportava. No Discóbolo, pelo contrário, o corpo do atleta está todo ele dobrado pelo movi­mento que o possui e que parece atravessá-lo de ponta a ponta como um dardo de fogo, dos dedos do pé esquerdo que se aferram ao solo para dar um ponto de apoio sólido a este homem violentamente tenso na instabilidade, até ao braço direito — o braço que segura o disco —, projetado para trás. mas que vai, no momento seguinte, distender-se para a frente para largar o seu peso, e mesmo até ao braço esquerdo, até à perna direita, que, parecendo embora inertes, estão contudo arrastados na ação. Esta ação toma agora o ser inteiro e parece instalar o atleta numa instabilidade em que tudo o que não é movimento é contrapeso: sem este equilíbrio de massas opostas, em que a sua personagem está apanhada como nas malhas invisíveis de uma rede. o Discóbolo cairia.

Míron transporta-nos, com o Discóbolo, para um mundo de ação, onde o movimento reina de súbito com toda a soberania, onde o homem conhece uma embriaguez de força, contida pelo equilíbrio. Neste sentido, Míron é o fun­dador da estatuária, como Ésquilo, seu contemporâneo, é o criador da ação dramática. Um e outro exploram os limites da força humana. Se o escultor não respeitasse as leis do equilíbrio no movimento, a estátua — disse-o já — cairia, como cairá talvez, sobre o solo da palestra, o atleta, logo que o disco lhe tenha escapado das mãos.

O Discóbolo dá-nos pois o movimento. Mas estaremos nós, com ele, em presença de um instantâneo fotográfico? Tal se tem sustentado, sem razão, a meu ver. Se se tratasse de um instantâneo, não reconheceríamos o movimento. O nosso olho não é uma objectiva fotográfica. Na verdade, o Discóbolo apresenta-nos uma síntese de movimentos sucessivos coordenados. Não se trata de fixar numa placa sensível um homem que atira um objeto — como uma fotografia que, pretendendo fixar a marcha de um cortejo, apenas nos apresenta uns sujeitos imóveis, de perna no ar. O movimento de um ser vivo não pode ser fixado numa estátua — feita, por definição, de matéria inerte — senão pela combinação de momentos que se sucedem no tempo.

O senhor do movimento é também o senhor do tempo.

Os Apolos arcaicos assentavam sobre as suas duas pernas, por assim dizer, fora do tempo: podiam assim ficar por toda a eternidade. O Discóbolo [242] parece, se quisermos, a imagem do movimento instantâneo. É que, na verdade, todos os planos da estátua de bronze, apoiados uns nos outros, são tomados, cada um, num momento diferente da ação que os arrasta a todos. Assim o viu o olho de Míron, assim o viu o olho do espectador do estádio antigo. O realismo de Míron é já classicismo no sentido de que o escultor transpõe para uma obra de arte a realidade observada. Esta obra tem por função exprimir não somente o momentâneo, mas os possíveis do indivíduo e, se assim se pode dizer, o seu devir.

No escalão já do Discóbolo, podemos verificar que o realismo do escultor, fundado no conhecimento exacto da ossatura e do jogo dos músculos, não é, no entanto, a simples cópia da realidade. Antes de ser reproduzido, o objeto é, primeiramente, repensado pelo criador.

Por outro lado, a figura é simplificada, estilizada, segundo regras não conformes com as da realidade, e isso adverte-nos já de que ela está pronta a submeter-se a um cânone (a uma regra) clássico.

*

O realismo é propriamente falando, em escultura, o conhecimento do corpo que o escultor quer representar, como realidade objetiva. A escultura grega tende para este conhecimento e possui-o já durante todo o século VI. As insuficiências musculares que a caracterizam nessa época são raramente sen­tidas por nós como tais, mas antes como simplificações. O amor que o escultor tem pela criatura humana e o seu amor da verdade enchem a sua obra de uma força que remedeia todas as lacunas.

Acrescentemos que o conhecimento que o escultor procura só muito raramente é dos indivíduos: só excepcionalmente visa o retrato.

É neste realismo apaixonado — neste modelo típico e social, mais do que individual — que se enraíza com força a escultura do século V e mais particularmente a da segunda metade desde século: o classicismo alimenta-se do realismo arcaico como de uma seiva que lhe dá uma poderosa vitalidade.

Contudo, uma vez adquirido este conhecimento do homem real — prin­cipalmente o da musculatura e da ossatura que a suporta, o conhecimento [243] parece, se quisermos, a imagem do movimento instantâneo. É que, na verdade, todos os planos da estátua de bronze, apoiados uns nos outros, são tomados, cada um, num momento diferente da acção que os arrasta a todos. Assim o viu o olho de Míron, assim o viu o olho do espectador do estádio antigo. O realismo de Míron é já classicismo no sentido de que o escultor transpõe para uma obra de arte a realidade observada. Esta obra tem por função exprimir não somente o momentâneo, mas os possíveis do indivíduo e, se assim se pode dizer, o seu devir.

No escalão já do Discóbolo, podemos verificar que o realismo do escultor, fundado no conhecimento exacto da ossatura e do jogo dos músculos, não é, no entanto, a simples cópia da realidade. Antes de ser reproduzido, o objecto é, primeiramente, repensado pelo criador.

Por outro lado, a figura é simplificada, estilizada, segundo regras não conformes com as da realidade, e isso adverte-nos já de que ela está pronta a submeter-se a um cânone (a uma regra) clássico.

*

O realismo é propriamente falando, em escultura, o conhecimento do corpo que o escultor quer representar, como realidade objectiva. A escultura grega tende para este conhecimento e possui-o já durante todo o século VI. As insuficiências musculares que a caracterizam nessa época são raramente sen­tidas por nós como tais. mas antes como simplificações. O amor que o escultor tem pela criatura humana e o seu amor da verdade enchem a sua obra de uma força que remedeia todas as lacunas.

Acrescentemos que o conhecimento que o escultor procura só muito raramente é dos indivíduos: só excepcionalmente visa o retrato.

É neste realismo apaixonado — neste modelo típico e social, mais do que individual — que se enraíza com força a escultura do século V e mais particularmente a da segunda metade desde século: o classicismo alimenta-se do realismo arcaico como de uma seiva que lhe dá uma poderosa vitalidade.

Contudo, uma vez adquirido este conhecimento do homem real — prin­cipalmente o da musculatura e da ossatura que a suporta, o conhecimento
[243] também, mas um pouco mais tardio, do vestuário que sublinha as formas corporais— , a partir daí, este homem conhecido objetivamente, apresentado aos cidadaos como deus ou deusa, como atleta, pode também ser modificado, nao "idealizado", como vagamente se diz, mas transformado, e, se assim se po e dizer, corrigido, com vista a propor à comunidade dos cidadãos um modelo que, como por um acto eficaz, a muna das virtudes que lhe são necessarias. Desde que o escultor compreende que pode e deve escolher, na realidade objetiva que observa, está no caminho do classicismo, é clássico. O artista escolhe pois as feições, as formas e as atitudes que lhe cabe, em seguida, compor. Esta escolha, apoiada num realismo autêntico, é já classi­cismo. Mas segundo que critério se opera esta escolha? Segundo a beleza, sem duvida. A resposta e por demais vaga e insuficiente. A propósito disto tem-se falado de uma regra de ouro, com a qual se conformaria o artista. Esta regra de ouro seria uma lei objetiva da natureza, que se manifestaria tanto nas proporçoes e nas formas das folhas das árvores como nas proporções do corpo humano, uma vez que o homem faz igualmente parte da natureza. Esta ideia não e destituída de interesse: explicaria, diz-se, ao mesmo tempo o classicismo grego e o classicismo chinês, que lhe é anterior 2500 anos, sem falar de outros. Contudo, devo dizer que me repugna grandemente esta personificação da
natureza que fixaria por uma lei objetiva as proporções mais harmoniosas do homem, lei que o classicismo encontraria: parece-me isto de uma bela imaginação, mas relevar de um misticismo exacerbado. Se o homem (diz-se) tem as proporções que a natureza fixou para ele, é harmonioso, é belo classicamente.

O classicismo nao e outra coisa que a lei de uma arte que quer viver numa sociedade viva. A energia do homem e dos seus manifesta-se em todos estes corpos musculados e bem adaptados a acçao que os solicita. A coragem revela-se na impassibilidade do rosto. Esta impassibilidade, em que quase sempre se viu uma insuficiência tecmca, e o sinal do domínio que o homem adquiriu sobre as suas paixões [244] individuais, e o sinal da força de alma, da perfeita serenidade que outrora so os deuses possuíam. A impassibilidade clássica do rosto responde, pois, mas de uma outra maneira, ao sorriso arcaico. Este sorriso exprimia a alegria ingênua do ser vivo. Numa época ainda carregada de lutas e combativa, a impassibili­ dade exprime o império que a vontade exerce agora sobre as paixões, é como que a consagração do homem a comunidade cívica.

Esta época nova é também mais humana; não está já toda ela impregnada de divino: não é tanto os deuses que ela representa em forma humana, e mais o homem que ela exalta até à estatura divina.

Não há nenhuma estátua clássica em que o homem nao respire o nobre orgulho de desempenhar com fidelidade o seu mister de homem, ou de deus. O classicismo arego, assente em realismo, está agora estreitamente liga o ao humanismo. É a expressão de uma classe ascendente - que ganhou as guerras medas pela sua valentia — a expressão de uma classe que acaba e entrar na posse das vantagens que são devidas ao seu valor. O classicismo é o remate de um combate, e mantém-se pronto para o combate. Não que a força que anima as estátuas clássicas se exprima, pouco que seja, em gestos vee mentes. A sua força está imóvel, repousa. Uma força que "gesticulasse" seria limitada a uma acção única e determinada pelo seu gesto. A força das estatuas clássicas é indeterminada, é um reservatório de força, um lago de serem a e que se transformaria, sabémo-lo, se as circunstâncias o exigissem, numa torrente desencadeada. Eis o que nos mostram, por exemplo, as estatuas do Parténon — os seus restos — que Fídias esculpiu.

*

Mas tomemos alguns exemplos. Policleto situa-se num dos momentos decisivos da arte grega. Está no ápice da perfeição realista: do mesmo golpe,
está no ápice do humanismo clássico.

Antes dele, Míron tinha, na representação do movimento, tendido ao que nos aparece ser o movimento instantâneo. O seu Discóbolo era um admirave exercício de virtuosismo. Mas o virtuosismo fatiga e o instantaneo nao retem muito tempo. Policleto, no Homem da Lança (Doríforo) e em outras estatuas, [245] embora não fazendo marchar a sua personagem, dá-nos a ilusão da continuidade da marcha.

Não chegou até nós o Doríforo. Policleto era um bronzista, o maior dos bronzistas antigos. Dele, só temos cópias de mármore. E que mármores, ai de nós! Digamos apenas que este homem nu, que transporta uma lança sobre o ombro esquerdo, e que parece caminhar, repousa todo o peso do corpo apenas sobre a perna direita, que avança, enquanto a esquerda se arrasta levemente atrás, tocando o solo apenas com os dedos. Desta atitude resulta uma ruptura completa da simetria arcaica. As linhas que unem os dois ombros, as duas ancas, os dois joelhos, já não são horizontais: e não só isso, contrariam-se. Ac joelho mais baixo, à anca mais baixa, à esquerda, corresponde o ombro mais alto, e inversamente. É o mesmo que dizer que o corpo humano possui um ritmo inteiramente novo. O corpo, solidamente construído em ossos e em músculos, é talvez (pelo menos na cópia de Nápoles, a menos infiel) duma robustez um tanto pesada. Mas este corpo está apanhado todo ele numa simetria inversa que dá à sua marcha fictícia ao mesmo tempo flexibilidade e firmeza. Outras estátuas de Policleto, como o Diadumeno (um atleta que cinge a fronte com a fita que é a insígnia da sua vitória), ao mesmo tempo que reproduz o mesmo ritmo a que chamei invertido, aligeira, com o gesto dos dois braços levantados, a suspeita de rudeza do Doríforo, tira-lhe o excesso de peso que parece ter a estátua.

É o homem liberto de todo o temor em relação ao destino, o homem na sua força altiva de senhor do mundo natural, que o Doríforo nos dá. As proporções da estátua podiam exprimir-se em números. Policleto tinha calculado em palmas (largura da palma da mão) as dimensões de cada uma das partes do corpo, assim como a sua relação entre elas. Pouco nos importam estes números e as suas relações, se com eles se chegou à criação de uma obra-prima. Policleto sabia assaz — por Pitágoras, sem dúvida — a importância do número na estrutura dos seres, para os ter estudado com cuidado. Dizia: «A obra-prima resulta de numerosos cálculos, com a aproximação da espessura de um cabelo.» E eis por que os Gregos chamavam orgulhosamente a esta estátua o Cânone! O Doríforo é uma das mais belas imagens que o homem deu de si mesmo. Imagem clássica, ao mesmo tempo verdadeira e embriagadora, do Grego, seguro da sua força física e moral. Imagem optimista (a palavra é feia, eu preferiria ascendente), onde se exprime naturalmente e sem esforço a concepção de uma sociedade humana em devir. A imagem também de uma classe social [246] que chegou ao poder e que dessa ascensão triunfa com uma segurança imper­ turbável. (Demasiada, talvez). Imagem de uma beleza perfeitamente natural, ao mesmo tempo mais objectiva e mais subjectiva do que a estética idealista pretende: inseparável do mundo objectivo da natureza, a que a liga o seu realismo, só pode no entanto exprimir-se em beleza se satisfizer as necessidades humanas a que pretende responder. Imagem eficaz, enfim, a imagem de um povo que saberia defender-se, se necessário fosse, para defender os seus bens ameaçados.

Mas, por enquanto, o Doríforo não se serve da lança que transporta ao ombro. "Há na arte um ponto de perfeição e como de maturidade da natureza", dizia em substância La Bruyère. O gênio de Fídias situa-se neste ponto exacto de maturidade. Por este fato, a sua arte é, para nós, mais difícil de compreender e conhecer que a escultura arcaica, se. como creio, nos tomámos, em certo sentido, primitivos — "pré-clássicos", esperêmo-lo.

Fídias. no entanto, esculpira imagens de deuses muito próximas da huma­ nidade. Não se limitara a representar os deuses sob o aspecto de seres humanos muito belos: partira da forma humana para nos propor figuras heróicas, dignas do Olimpo. Atribuía aos seus deuses, como antes o fizera Ésquilo. a simples oerfeição da sabedoria e da bondade. Esta perfeição concedia-a ele à espécie humana como o dom duma sociedade que ele queria harmoniosa.

Tal é. parece-me. o carácter essencial da arte de Fídias.

Isto é-nos assegurado pelos textos, mais ainda, infelizmente, que pelas obras do escultor. Efetivamente, para conhecer o assunto dos frontões mutilados — devastados pelos homens, muito mais que pelo tempo — estamos Draticamente reduzidos aos desenhos de um viajante, os preciosos desenhos de Jacques Carey, que são anteriores alguns anos ao rebentamento da bomba veneziana que despedaçou o Parténon, anteriores também às vergonhosas depredações, ainda não reparadas, de lorde Elgin. Não esqueçamos também que das noventa e duas métopas nos restam dezoito em bom ou razoável estado!

Dito isto, que era preciso dizer-se, a arte de Fídias (se não imaginamos iemasiado) foi ter feito florir a humanidade em formas divinas. A brutalidade
[247] dos Centauros lutando contra os homens e esmagando-os, a gentileza reservada das jovens atenienses do friso, a tranquila, a pacífica imobilidade dos deuses que, nos ângulos do frontão, esperam que o Sol se levante — tudo isto fala a mesma linguagem.

Fídias quer dizer o que é, exprimir as coisas tais elas são: existem no universo forças brutais — o cio selvagem dos homens-cavalos —, existem também seres que a desgraça ou o acidente podem atingir na sua calma segurança — cavaleiros ricos, outros também cuja montada se encabrita. deuses e deusas calmos e próximos, ventres e peitos que o tecido meio descobre meio oculta, pregas tão belas e verdadeiras que convencem da
presença da carne —, outros ainda. Tudo isto Fídias o diz, não porque o "realismo" palavra abstracta que o grego ignora — o exija, mas porque tudo está na natureza. O homem está na natureza, estará sempre a braços com ela. É seu privilégio exprimir a força e a beleza dela, e também querer dominá-la. querer a sua transformação. E a primeira mutação, a única via de progresso que o artista sugere, é ser senhor de si mesmo, domar os seus instintos selvagens, agir de modo que os deuses estejam presentes na terra, em nós próprios. Era à força de justiça e de benevolência que Fídias atingia a serenidade, imagem da felicidade.

Os deuses de Fídias estão igualmente na natureza: não são sobrenaturais, são naturais. E é por isso que os deuses que são o acabamento do homem, no termo do friso, vêm juntar-se aos humanos, não apenas para receber as suas homenagens, mas para participarem nesta festa popular — que Fídias foi o primeiro a ousar representar num templo, em vez de um mito — , esta festa que é a "das artes e ofícios". Entre as presenças da assembleia divina do friso, características são as de Hefesto e de Atena: o deus das artes do fogo e a deusa industriosa eram os mais caros ao coração do povo ateniense. Fídias mostrou-os lado a lado, conversam amigavelmente, simplesmente, como operários depois de um dia de trabalho. Nada de sobrenatural entre todos estes deuses: nada mais que humanidade levada ao seu cúmulo de excelência.

Se, diante de um grupo dos frontões — por exemplo, o de Afrodite indolentemente reclinada sobre os joelhos e o peito de sua mãe — experimentamos um sentimento que toca o respeito religioso, notemos ao menos que as formas amplas destas duas mulheres, que esse seio que nelas faz inchar o tecido ou dele se escapa, tudo nos indica que para os Gregos o sentimento religioso do século V não separa a carne do espírito. Assim o sentiu e exprimiu Fídias. [248]

No friso, como nos frontões, os deuses estão presentes, como o estão no coração da vida antiga. A sua presença ilumina a vida humana e particularmente a festa popular representada no friso, à maneira de uma bela árvore de Natal iluminada na praça pública de uma das nossas cidadés.
Mas Fídias não foi apenas o escultor genial dos mármores do Parténon. Produzira várias estátuas de deuses isolados. Pausânias chamava-o o "fazedor de deuses". Falarei somente de dois. Primeiro, de Atena Lemnia. Esta estátua foi primitivamente de bronze. Dela subsiste apenas uma cópia de mármores rragmentados. Desta cópia antiga, por infortúnio ou estupidez, a cabeça está em Bolonha, ao passo que o corpo se encontra em Dresde. Eram uma obra da juventude do mestre, oferecida à deusa por colonos atenienses antes da sua partida para Lemnos, na altura em que a guerra meda chegava ao fim. A deusa não está representada como guerreira. Sem escudo, de cabeça descoberta, a égide desatada, o capacete na mão, a lança transportada à esquerda não é mais que um apoio para o braço. Descansa dos trabalhos da guerra: tranquila, está pronta a entregar-se aos trabalhos da paz!

A cabeça admirável, toda encaracolada e muito jovem (durante muito tempo foi tomada pela cabeça de um adolescente), muito orgulhosa também, diz-nos todo o amor de Fídias — apenas saído das oficinas de Argos onde se formou — pela paz, fruto da coragem e da sageza do seu povo.
Será preciso concluir enfim este longo estudo com algumas palavras sobre a obra-prima de Fídias. no entendimento dos antigos — o Zeus de Olímpia? Era uma estátua criselefantina. A estatuária de ouro e de marfim é uma oferenda preciosa da cidade aos deuses. Existiu durante toda a Antiguidade. E reservada, em geral, às estátuas colossais. O marfim de tais estátuas dizia a brancura do rosto, dos braços e dos pés nus, o vestuário era de ouro de cores diferentes, como o sabiam obter os tintureiros de ouro.

Este Zeus, esculpido para o templo nacional de Olímpia, perdeu-se, naturalmente. Além do marfim e do ouro, outros materiais preciosos foram ainda empregados, na confecção do trono, em particular, o ébano e certas pedras preciosas. A estátua sentada tinha doze metros de altura, catorze com o pedestal. Estes números, assim como, o excesso de luxo, assustam-nos um pouco. Não esqueçamos que tais estátuas eram vistas, enquadradas pela pers­ pectiva da dupla colunata interior, no meio dos troféus e dos estofos preciosos que ali eram amontoados ou suspensos. Este Zeus devia, sem dúvida, com os seus adornos e os seus atributos, a magnificência da sua decoração, dar, no [249] pensamento de Fídias, com risco de sobrecarregar a estátua, o sentimento da grandeza do divino. Neste cenário de uma riqueza oriental, Zeus aparecia como o ídolo precioso de um povo inteiro.

No entanto, a acreditar nos autores antigos, o que fazia a beleza única da obra era o contraste entre este aparato triunfal, entre esta exibição de riquezas, e o rosto do deus, todo impregnado de mansidão e de bondade.

Uma cabeça do museu de Boston parece reproduzir-lhe os traços.

Não é o Zeus temível da Ilíada, que com um franzir de sobrolho fazia tremer o Olimpo e o mundo, é o pai dos deuses e dos homens, e não apenas o pai, mas o benfeitor dos humanos.

Dion Crisóstomo, escritor do século I da nossa era, que contemplou o original em Olímpia, descreve-o em termos que parecem prefigurar a linguagem cristã: "É o deus de paz", supremamente doce, dispensador da existência e da vida e de todos os bens, o comum pai e salvador e guardião de todos os homens.

Parece pois que Fídias tentou unir na sua estátua a imagem de um Zeus popular, isto é, todo-poderoso e opulento, com a concepção mais alta de um deus como a podiam ter na mesma época Sócrates ou Péricles — um deus de providência e de bondade. Esta última imagem revelava-se na expressão do rosto, tem a e paternal.

Lembremos que os antigos diziam, a propósito, que Fídias tinha "acres­centado alguma coisa à religião". Alguns arqueólogos modernos consideram que o Zeus de Fídias serviu de primeiro modelo aos artistas modernos que criaram o tipo do Cristo com barba.

É difícil decidir se, sobre estes últimos pontos, não se terá feito o seu tanto de "literatura".

Em todo o caso, o rosto de Zeus do "criador de deuses", mostra que, ao atravessar os séculos, uma obra-prima pode carregar-se de novas significações, desde que seja concebida segundo a verdade do seu tempo.

É esta verdade, é este realismo clássico que vem até nós e nos fala ainda. [250]

História - Civilização Grega
Artes - , 
4/18/2021 2:13:01 PM | Por André Bonnard
A promessa de Antígona

Não se escrevem tragédias com água benta ou água esterilizada. É ate banal dizer-se que as tragédias são escritas com lágrimas e sangue. O mundo trágico é um mundo em parte imaginário, que os poetas de Atenas fabricam para o povo, a partir da dura experiência que, em dois séculos, esse povo de camponeses e marinheiros fez na realidade. No tempo de Solon, o povo ateniense conheceu o domínio dos Eupátridas, depois o domínio dos ricos, ambos tão pesados como o jugo de um destino brutal: então pouco faltou para que esse povo despojado das suas terras e dos seus direitos, fosse lançado fora da cidade, para o exilio ou para a escravatura, condenado a miséria que degrada e mata.

Veio depois, no principio do século V, quando do segundo nascimento da tragédia, a invasão dos Medos e dos Persas, com essas hordas de povos amalgamados e inumeráveis que, para se alimentarem ou simplesmente pelo gosto de destruir, levavam consigo ao passar as reservas de cereais, abatiam os rebanhos, incendiavam aldeias e burgos, cortavam as oliveiras rente ao solo e, flagelo sacrílego, derrubavam os altares dos deuses, partiam as suas estátuas.

O povo de Atenas, em um esforço sustentado com firmeza, depois em um poderoso e brusco golpe de rins, desembaraçou-se dos Eupátridas opressores, liquidou o invasor asiático: arrancou as forças que ameaçavam esmagá-lo a soberania e a igualdade democráticas de que se orgulha e, no mesmo lance, a liberdade da cidade e do seu território, a independência nacional.

A recordação desse século heróico em que o povo dos Atenienses lança a morte que o espreitava um desafio triunfante, essa recordação de uma luta travada é ganha - com a ajuda dos deuses - está sempre presente, que mais não seja como um obscuro reflexo, no coração de toda a tragédia ática.

Na verdade, a tragédia Não é outra coisa que a resposta do povo ateniense, dada em verbo poético, as pressões históricas que fizeram desse povo o que ele é: o defensor da democracia (por pequena que seja a sua base nessa época) e da liberdade dos cidadãos.

Os dois primeiros grandes poetas trágicos pertencem a classe aristocrática ou a alta burguesia. Não importa. Primeiro que nobres ou ricos, são poetas de gênio, são cidadãos atenienses ao serviço da cidade. A sua dependência da comunidade de Atenas é o laço mais firme que os liga aos outros homens. A inspiração poética é sentida por eles como uma cratera de fogo ateada pelos deuses: toda a sua arte tende a disciplinar essa fonte ardente, a transformar essa labareda selvagem em sol nutriente que fará frutificar as vidas dos seus concidadãos.

No momento em que Sófocles aborda o teatro - uma dezena de anos depois de Salamina e de Plateias - um poderoso movimento ascendente, resultante da vitória sobre os Medos, arrebata a nação para novas conquistas e criações. No plano da tragédia, a missão própria do poeta é ser o educador dos homens livres. A tragédia, em principio, é um gênero didático. Contudo, Não tem nunca o tom pedante. É pela representação de uma ação, muito mais que pelos cantos do coro, pelas palavras do corifeu ou pelos discursos das personagens, que o poeta propõe a sua mensagem.

A luta dramática apresentada ao espectador é, quase sempre, a luta de um herói animado de grandeza, que procura - mas, cuidado, ele que não ofenda os deuses que puseram limites a essa grandeza! -, que procura realizar essa extensão dos poderes nessa natureza, esse ir mais longe, essa passagem do homem ao herói, que é o objeto próprio da tragédia. O herói da tragédia é o aviador ousado que se propõe forçar o muro do som. Quase sempre, esmaga-se na tentativa. Mas a sua queda não significa que tenhamos de condená-lo, humanamente, Não é condenado pelo poeta. Foi por nós que ele tombou. A sua morte permite-nos localizar mais exatamente a invisível muralha de chamas e ouro onde a presença dos deuses detém e quebra de súbito o impulso do homem para o além do homem. Não é a morte do herói que é trágica. Todos nos morremos. É trágica a presença, na realidade, na experiência que Sófocles e os homens do seu tempo tem dela - a presença desses deuses inflexíveis que nessa morte se revela.

Porque essa presença parece opor-se ao ir mais além do homem, a sua florescência em herói. No entanto, toda a tragédia traduz e torna mais firme a aspiração do homem a ultrapassar-se em um ato de coragem inaudito, de ganhar uma nova medida da sua grandeza, frente aos obstáculos, frente ao desconhecido que ele encontra no mundo e na sociedade do seu tempo. Ultrapassar-se tendo em conta esses obstáculos, assinalando como guarda avançada da massa dos homens, de quem o herói será doravante patrono e guia, esses limites da nossa espécie que, logo que assinalados e, iluminados, deixam de o ser... Isto com risco de perder ai a vida. Mas quem sabe se aquele que vem esbarrar com o obstáculo não terá feito recuar os limites, enfim denunciados? Quem sabe se uma outra vez, numa outra sociedade histórica, essa morte do herói, que já no coração do espectador se muda em esperança, se produzirá da mesma maneira? Quem sabe mesmo se ela se reproduzira?...

É certo que depois de o muro do som ter sido vencido haverá mais longe o muro do calor ou qualquer outro. Mas, pouco a pouco, graças a estas provas sucessivas, alargar-se-á o estreito cárcere da condição humana. Até que as portas se abram... A vitória e a morte do herói são, juntas, o penhor disso. A tragédia joga sempre com o tempo, com o devir deste movente mundo dos homens que ela exprime e transforma.

É em uma oscilação do pensamento, indeciso entre o horror e a esperança, que acabam a maior parte das tragédias. Que acabam? Nenhuma grande tragédia foi alguma vez acabada. Toda a tragédia, na sua terminação, permanece aberta. Aberta para um céu imenso, todo constelado de astros novos, atravessado de promessas como de meteoros. No decurso da sua existência, retomada sob outras formas em sociedades desagravadas das hipotecas que lhe deram nascimento, a tragédia pode carregar-se de novas significações, resplandecer de uma beleza cintilante e comover-nos pela sua grandeza. Assim se explica (já foi dito) a perenidade das obras-primas. A promessa que tais tragédias tinham feito ou apenas por vezes vagamente esboçado de uma sociedade nova essa promessa foi cumprida pelo futuro em que vivemos.

Antígona, rainha das tragédias, é, sem duvida, de todas as que conservamos da Antiguidade, a mais carregada de promessas. Na sua linguagem de outrora, é a que nos dá ensinamentos mais atuais. É também, por outro lado, os mais difíceis de apreciar exatamente.

Partamos dos fatos. Recordemos os fatos.

Na véspera do dia em que se abre o drama, os dois irmãos inimigos, Etéocles e Polinices, ambos legítimos sucessores do Édipo, seu pai, mataram-se um ao outro na batalha que se travou diante dos muros de Tebas.

Etéocles defendia o solo da pátria. Polinices apoiava o seu direito no auxílio do inimigo. Por este fato, agia como traidor.

Creonte, tio de ambos, herda este trono sangrento. É um homem de princípios, que parece reto. Mas tem a visão limitada daqueles que, subindo ao poder, pensam subir ao pináculo e a si mesmos. Para restaurar a autoridade do Estado, abalada pela revolta de Polinices, para formar o povo sacudido de discórdias no respeito da ordem estabelecida. Creonte, logo que ocupa o trono, publica um édito que concede as honras fúnebres a Etéocles, o bom patriota, e vota o corpo de Polinices rebelde aos animais que o devorarão. Quem infringir este édito arrisca-se à morte.

Logo que conhece a resolução. Antígona, a meio da noite, decide prestar a Polinices as honras de que o privam. A piedade e o amor fraterno exigem-no conjuntamente. Entre os seus dois infelizes irmãos, ela não distingue. A morte deu-lhes uma nova e mais indiscutível fraternidade. Apesar da proibição de Creonte, enterrará Polinices. Sabe que a morte a espera após o seu ato. Uma morte que será "bela... depois desse belo crime".

No arrebatamento da fé, procura conquistar sua irmã Ismene para a nobre empresa. Loucura, responde Ismene. Somos simples mulheres, feitas para obedecer ao poder. Ismene procura dissuadi-la do temerário projeto. O obstáculo torna Antígona mais firme na sua resolução. Assim, em Sófocles, as personagens conhecem-se e fazem-se conhecer aos espectadores, definindo as suas arestas, a propósito dos atos em que se empenham ou que repelem. Antígona repele Ismene do seu coração e vota-a ao desprezo. Presa no momento em que celebrava os ritos funerários por um soldado que o rei colocara com outros perto do corpo de Polinices para o guardar, a mulher é conduzida, de mãos atadas à presença de Creonte. Ela justifica o seu ato. Declara ter obedecido às leis divinas, "leis não escritas", leis eternas, reveladas à as consciência, que devem prevalecer sobre a decisão de um príncipe insensato.

A resistência de Antígona arranca a Creonte a máscara pomposa de chefe de Estado todo dedicado ao bem da cidade, com que o tínhamos visto entrajar-se complacentemente perante o coro espantado dos principais da cidade. A moça leva o rei pavoneado a enterrar-se cada vez mais na arbitrariedade. Ele pronuncia a condenação à morte de Antígona, mais absurdamente ainda a de Ismene, que fora vista desvairada pelo palácio. Ismene, aliás, quer morrer com a irmã. Ajoelhada a seus pés, suplica a Antígona que lhe permitia partilhar a sua morte. Antígona repele duramente este sacrifício tardio, inoportuno, recusa a Ismene essa honra a que ela não tem direito. De resto, nunca Antígona pediu à irmã que morresse com ela ou por ela, mas que arriscasse a vida para todo o momento, cada uma colocada em região diferente da outra. Não fazem mais que colidir em um esgotante contratempo.

Esgotante e fecundo. As cenas de Antígona e de Ismene são importantes, não só porque mostram como, em Sófocles, os caracteres se criam no conflito das semelhanças, mas também porque manifestam de maneira evidente a virtude contagiosa do amor.

Mas eis que se abre, no centro mais sombrio da tragédia, que parece já toda inclinada para o seu termo mortal, uma surpreendente peripécia - a primeira esperança. Ao mesmo tempo, ela prepara o golpe que vai, no desenlace, ferir Creonte. E mais ainda: tal peripécia prepara, em nós, a reconciliação de Antígona e de Creonte.

Hémon apresenta-se diante do rei, seu pai, e pede-lhe o perdão da moça.

Hémon ama Antígona. Os dois jovens estão noivos. Novamente o amor afirma a sua força de contágio. Mas é extremamente importante que não seja em nome do seu amor que Hémon vem pedir a vida de Antígona. Ele fala com nobreza a única linguagem que convém a um homem, não a do sentimento, mas a da razão animada de justiça. Dirige-se ao pai no tom mais grave e mais deferente. Recorda a esse pai a quem ama, e que ele julga desorientado, o respeito da lei divina, ao mesmo tempo que tenta iluminá-lo sobre o seu verdadeiro interesse, inseparável do interesse da cidade que dirige. Não procura enternecê-lo, mas somente convencê-lo. Hémon coraria de pedir pela vida da noiva e mais ainda de pedir por si mesmo: apenas pede por seu pai e pela justiça. Nada mais belo em Hémon que esta filialidade viril. A cena é de uma extraordinária firmeza. Ao passo que o teatro moderno, tão inclinado a exibir o sentimento amoroso, a diluí-lo em discursos, não teria deixado de explorar esta situação no sentido do enternecimento, o poeta antigo recusa-se a ceder ao pendor fácil do sentimento, recusa-se o direito a pôr na boca de Hémon, ao falar ao pai, a menor alusão ao seu amor. Não que Hémon pretenda ceder a alguém no sentimento que experimenta por Antígona. Mas que homem seria ele se ousasse pedir ao pai que fizesse prevalecer esse sentimento sobre o interesse da comunidade? A honra impõe-lhe que contenha a sua paixão, que fale apenas em termos de razão.

Por outro lado, este constrangimento que impõe ao seu coração permite que a cena começada no tom calmo de um debate se desdobre em violência exasperada. A partir do momento em que o pai o acusa de faltar a essa honra tão severamente salvaguardada, como não se revoltaria Hémon contra tanta injustiça, alimentando a sua raiva com a paixão em vão refreada? A explosão de Hemon, nas ultimas replicas da cena, denuncia ao mesmo tempo o seu amor e o seu sentido da honra. Quanto à raiva de Creonte, Não nos diz apenas a que ponto este homem esta atolado na injustiça, adverte-nos da afeição do pai pelo filho - uma afeição como Creonte a pode sentir, um amor paternal que quer que o filho seja uma coisa do pai, e que lhe torna tanto mais intolerável esta súbita resistência a sua autoridade quanto é certo adivinha-la ele alimentada de um amor estranho. A grande cólera de Creonte contra o filho revela-o Não só perdido mas também sem defesa contra o golpe que os deuses se preparam para desferir-lhe. Resta-lhe um coração, belo alvo a visar...

A altercação dos dois homens acaba por firmar Creonte na sua decisão. Uma vez mais sabemos Antígona perdida: Creonte confirma a condenação - ao mesmo tempo que retira a de Ismene - e a pena de morte junta o mais cruel suplicio: Antígona será emparedada viva em uma caverna.

No entanto, no momento em que a morte de Antígona nos parece mais certa do que nunca, ela começa a deixar-nos entrever de maneira mais rigorosa a sua eficácia. Desde a abertura do drama, Antígona foi-nos dada como uma luz posta diante de nós - uma prova de que a existência humana não esta condenada a escuridão. Antes da cena de Hémon, nem a reticente aprovação dos velhos do coro, nem mesmo a rápida labareda da dedicação de Ismene, nos puderam assegurar plenamente que essa luz de Antígona não arderia em vão na praça nua de uma dura cidade. Se bastasse a vontade de um Creonte para extinguir essa claridade, a vida humana estaria entregue a noite da brutalidade! É para esse polo obscuro que o drama progride em nós? Sim, pelo menos até a cena de Hémon. Até essa articulação nova, a morte de Antígona parece ter apenas um sentido estéril. Uma alegria nos foi prometida, depois retirada. Para que Antígona nos seja dada para sempre, é preciso que a sua labareda tenha ateado outros incêndios. Os cantos dos velhos, apesar da sua beleza, o frágil brilho de Ismene, dificilmente nos guardaram do desespero. Só o ardente fogo de Hémon começa a restituir-nos Antígona. É que Hémon, sem pronunciar uma só palavra de amor, afirma esplendentemente, pela sua fidelidade aquela a quem ama, ao mesmo tempo que a justiça e aos deuses, o contágio do amor, o irresistível poder dessa força que conduz o mundo e as nossas vidas - Eros ...

O coro conhece o poder de Eros. Leu a sua presença em Hémon. Nesta meia claridade (de aurora ou de crepúsculo, ignoramo-lo ainda) em que o coro caminha conosco, os seus cantos, que celebram "Eros invencível", avançam tateando para exaltantes verdades...

Agora Antígona apresenta-se uma ultima vez diante de nós. Os guardas conduzem-na ao lugar onde ela vai cumprir a sua morte - morte cega e terrosa. Vemo-la nesta cena travar o ultimo combate prometido a cada um de nós. Deposta a sua couraça de orgulho, sozinha e nua, como tinha de ser, vemo-la encostada ao muro onde o destino alinha os seus reféns.

Esta cena dos lamentos de Antígona, estas estâncias maravilhosas em que a heroína canta a dor de deixar a vida e, na presença dos velhos mais inclinados agora a julgar do que em estado de compreender, sente e canta a amargura da ultima e necessária solidão - esta cena retoma um dos temas tradicionais da tragédia grega. É conveniente, e justo que antes de morrer o herói faça o seu adeus ao mundo dos vivos, que ele diga em um canto o seu amor da preciosa luz do Sol. É preciso também que ele se meça, na sua força e na sua fraqueza, com a omnipotência do destino que o vai esmagar.

Alguns críticos consideraram que esta cena de cantos queixosos concordava mal com o caráter altivo de Antígona. O contrário é que é exato. A crua luz da morte apontada para ela descobre-nos finalmente o fundo ultimo de Antígona. Temos aqui a chave deste ser. Sabemos agora que a dura Antígona - dura no combate, dura consigo mesma, nativamente dura porque e filha de uma raça de combatentes feridos -, sabemos que a áspera Antígona é, no segredo de si mesma, na solidão de si mesma, toda ternura. Ela amava a alegria do sol, amava os regatos e as árvores. Amava os seus. Os seus pais, os filhos que não terá nunca. O seu irmão insubstituível. E como poderia ela morrer por esse irmão, se não fosse toda amor?

De um tema habitual do espetáculo trágico, a arte de Sófocles fez a ilustração desta verdade que resplende em Antígona: nenhum ser humano encontra força para morrer senão no amor que dedicou a vida...

Neste instante da partida de Antígona, nada já pode nada para salvar a vida da moça. Nada, a não ser os deuses.

Os homens, pelo choque das suas paixões opostas, construíram uma engrenagem de fatalidade, um destino de que Antígona foi o primeiro artífice. Um destino nascido da escolha, onde a liberdade da heroína se traduz em fatalidade. Humanamente, por este destino construído, Antígona está perdida. Mas Tirésias faz ouvir a voz dos deuses, que até aqui se calavam e que de súbito falam.

O seu silêncio parado nos confins da tragédia - esse silêncio que encerrava a disputa e os gritos dos homens como no fundo de um poço -, esse silencio de súbito ressoa e fala. Com clareza se pronuncia. Antes de se tornar a fechar sobre novos gritos humanos, entreabre-se e aponta o único caminho por onde pode ainda insinuar-se a sabedoria dos homens. Por um instante, a voz divina e sonora e distinta. Mas a transparência dessa palavra é a claridade lívida do céu imóvel que já contém o raio. Nós sabemos que Creonte pode e não pode ouvir, pode e não pode ordenar o perdão de Antígona, ou antes, sabemos que se ele ainda pode ouvir, é tarde de mais para salvar. Como tantas vezes acontece no termo do conflito trágico, o homem e o destino, nos últimos cem metros da corrida, lutam a quem é mais veloz, de vontade tensa, músculos retesados. Os dois cantos do coro, que encerram a cena de Tirésias, erguem simetricamente uma coluna de gemidos e um jato de esperança, cuja antítese diz exatamente o despedaçar do nosso ser nesse supremo minuto que precede o rebentar do drama.

De súbito, o minuto fecha-se: o homem esbarrou contra o "tarde de mais". A desgraça desaba em vagas enormes. O mensageiro abomino fala-nos de Antígona enforcada, fala-nos do véu que estrangula a sua bela garganta, e o filho cuspindo a cara do pai que aparece, fala da espada de Hémon levantada contra Creonte, voltada contra si mesmo, e o sangue do seu coração que salpica o rosto da moça enforcada. Não é apenas a desgraça, e o horror que cai sobre nós e nos submerge. A tragédia grega não ignora que o horror é um dos rostos permanentes da vida: firmemente, mostra-nos o espetáculo dele.

Agora volta Creonte, trazendo nos braços, arrastando pelo solo o corpo do filho. Grita a sua dor, uiva o seu crime. Atrás dele, uma porta abre-se: um outro cadáver o chama, um outro assassínio o fixa pelas costas. Eurídice, sua mulher, a mãe de Hémon, matou-se. Entre os dois corpos que o acusam e o ferem, Creonte não é mais que uma criatura lastimável, um homem que se enganou e que soluça. Suplica a morte que venha, a morte que está presente naqueles a quem amava e que ele matou. Que ela o leve, por sua vez! Ela não responde.

E é neste momento em que, posto diante de nós, o mundo não é mais que sangue e lagrimas, neste momento em que o círculo de figuras humanas no meio das quais o poeta nos fez viver não é mais que um circulo de fantasmas feridos neste momento em que não esquecemos Antígona enforcada pelo seu véu na caverna -, é neste instante de horror acumulado que uma inconcebível alegria nos inunda. Antígona está em nós viva e radiosa. Antígona é deslumbrante e ardente verdade.

Ao mesmo tempo, Creonte começa a erguer-se no nosso coração como uma outra luz fraternal - Creonte derrubado pelos deuses, mas que nos é proibido ferir. Todo o comprimento do corpo de Hémon, posto entre nós é o pai ajoelhado, como um laço de ternura e piedade, defende Creonte dos nossos golpes.

E agora é preciso compreender. Esta exigência não é mania de intelectual. A nossa sensibilidade comovida até as entranhas, até as raízes do nosso entendimento, obriga-nos a fazer o esforço de encontrar o sentido da tragédia. O poeta pede-nos que demos uma resposta à pergunta que Antígona e Creonte nos dirigem.

Antígona põe um problema de valores, e, porque o põe, grande é para o critico a tentação de a reduzir a uma peça de tese e ver as personagens apenas como sinais algébricos dos valores que representam. Nada falseia mais o nosso juízo sobre Antígona que ver nela um conflito de princípios. Nada, alias, é mais contrário a caminhada criadora do poeta que a ideia de que a sua criação proceda do abstrato para o concreto. Antígona Não é uma competição de princípios, é um conflito de seres, de seres humanos fortemente diferenciados e caracterizados, um conflito de indivíduos. As personagens do drama estão diante de nós como sólidos. E até esta solidez (no sentido geométrico), é a densidade da sua substância que nos permite - mas só depois - projeta-las no plano das ideias.

É pois destas pessoas, do seu ser agravante e convincente que devemos partir para tentar apreender o sentido da obra de Sófocles, sem esquecer pesar nas nossas balanças a qualidade do prazer que esta obra nos dá.

Não esperemos aliás o sentido do drama de nenhuma personagem isolada, por mais importante que ela seja. Um grande poeta nunca se decalca em uma personagem privilegiada. É a presença do poeta em cada uma das suas criaturas que nos liga a elas, nos introduz nelas, nos serve de intérprete para entender a linguagem dessas almas, primeiro estrangeiras e dissonantes, mas que finalmente falam uma só voz, a sua tornada nossa. Entre todos os poetas, o poeta trágico - porque é trágico - só se deixa entender no concerto desses filhos inimigos que se batem nele e em nós, e que nós amamos porque são ao mesmo tempo ele e nós. Concerto por muito tempo irritante antes de se tornar harmonia. Lento caminhar, dolorosamente, deliciosamente inscrito na nossa sensibilidade antes de alcançar o nosso entendimento - pelas vias da carne e do sangue.

Antígona e Creonte batem-se à navalha. Porque é tão violenta a sua luta? Porque sem duvida jamais existiram dois seres ao mesmo tempo tão diferentes e tão semelhantes. Caracteres idênticos, almas inversas. Vontades inflexíveis: vontades marcadas desse indispensável endurecimento, armadas dessa intolerância necessária a todas as almas ébrias de eficácia.

"Caráter inflexível", diz o coro, falando de Antígona, "é bem a filha de um inflexível pai".

Antígona é chamada "intratável", é cruel e crua - como o foi Édipo, duro consigo mesmo até a esses olhos que ele cega, e Antígona até ao enforcamento - como ambos são duros para com os outros.

Mas a filha de Édipo é bem sobrinha de Creonte. Nas alturas de grandeza em que cada um pretende instalar-se, o mesmo enrijamento do ser os fixa em arestas vivas.

"Espirito rígido, caráter duro", diz Creonte de Antígona, ignorando que ao defini-la assim e a si mesmo que se define. E gaba-se de que esses espíritos duros são também aqueles que se partem mais repentinamente, como o ferro endurecido ao fogo, que julgávamos mais solido. Mas falando assim o risco que corre Antígona, é a sua própria aventura que ele descreve de antemão. Veremos a sua vontade tensa até ao limite quebrar-se sob o efeito das ameaças do adivinho Tirésias.

Para com outrem, para aqueles que lhes querem bem, há em Antígona e em Creonte o mesmo reflexo de defesa, a mesma recusa brutal da afeição que pretende salva-los. Antígona frente a Ismene, Creonte frente a Hémon: imagens simétricas de um frontão em que, sob o signo da violência, se exaltam os demônios da grandeza solitária, calcando aos pés quem queira deter-lhes o impulso. O mesmo furor feroz e desprezador, os mesmos ultrajes a quem tente dobra-los, leva-los a refletir um só momento. Seguem o seu caminho reto. Pouco importa que, aos nossos olhos, tenham ou não tenham razão: o que conta para nós e nos convence é a fidelidade que cada um deles guarda a si mesmo. Nisto, como Antígona, é fiel Creonte; se cedesse a quem o ama e o aconselha, trairia o compromisso que assumiu consigo mesmo de ir até ao termo do seu destino, seja o que for que aconteça. Na verdade, o equilíbrio do mundo que um e outro se obstinam em constituir paga-se por este preço. Uma só vacilação da vontade e este mundo desaba. Quando Creonte verga, desmoronar-se-á com ele a estabilidade do universo que nos prometera.

Eis porque Antígona e Creonte odeiam a quem os ama. O amor que os desvia da sua obra, que recusa empenhar-se com eles na sua obra, essa teimosia do coração, aos seus olhos, Não é amor nem merece amor. "Amar-me por palavras, Não é amar-me", diz Antígona a Ismene. E mais:

"As tuas palavras só merecem o meu ódio".

Quem não é por eles, é contra eles. Creonte diz a Hémon:

Para que servem os filhos, senão para pagarem aos nossos inimigos o mal que nos fazem, senão para honrarem e estimarem aqueles que nos estimamos! Um impõe ao filho, como a outra a irmã, o mesmo tudo ou nada. Exigem a mesma escolha absoluta que eles fizeram. A natureza de Antígona não é menos tiranica que a de Creonte.

Digamos a palavra: possui-os o mesmo fanatismo. Uma ideia fixa os habita. Um objeto único exerce neles uma fascinação que os torna cegos a todo o resto. Para Antígona, o corpo não enterrado de Polinices; para Creonte, o seu trono ameaçado. A este objeto dão tudo de antemão, tudo sacrificam, incluindo a vida. Jogam tudo nesta carta, que é para eles o bem supremo. Com delicia. Todo o fanático é um jogador: conhece o êxtase da perda e da salvação postas no mesmo lance decisivo.

É este prazer agudo da vida reduzida a delgada espessura de uma carta de jogar que nos fazem saborear a cada momento os furores contraídos de Creonte e de Antígona. O nosso ser, mobilizado como o deles ao serviço não da sua ideologia, mas das suas paixões que se defrontam, saboreia duas vezes a angústia e duas vezes a alegria de sentir a vida empenhada, com o mesmo apetite de rigor, o mesmo deprezo do risco, num combate contra a morte.

Toda a grandeza se quer exclusiva. O fanatismo de Antígona e de Creonte explica as regiões obscuras da sua psicologia. Alguns críticos perguntam como é possível que Antígona esqueça Hémon tão inteiramente como o faz. Julgam pouco verosímil que ela possa roçar o drama de Hémon, atravessar a sua própria tragédia, sem sequer pronunciar o nome do seu noivo. Por isso alguns desses críticos de coração sensível tomam o partido de atribuir a Antígona este verso que os manuscritos de Sófocles põem na boca de Ismene: "O caro Hémon, como teu pai te ultraja!" Este "caro Hémon" suspirado parece-lhes atenuar o rigor insuportável em que se encerra Antígona e tomar enfim tocante a heroína.

Mas será necessário corrigir o texto de Sófocles para tornar Antígona suportável? O seu silêncio sobre Hémon será incompreensível a esse ponto e enfim tão chocante? Na verdade, esse silêncio não é um esquecimento daquele a quem ela ama e das alegrias que o amor de Hémon lhe prometia. A cena em que a moça se lamenta por deixar a vida sem conhecer as núpcias, sem "ter dado o seio a um filho", assaz o prova. Com estas estâncias admiráveis, em que o amor da vida e das suas alegrias se exprime plenamente à aproximação da morte, não ficamos finalmente satisfeitos de palavras "tocantes"? Contudo, se mesmo nesse momento, e com mais forte razão no decurso do seu combate com Creonte, Antígona não invoca Hémon, esse silêncio explica-se pela concentração voluntária do seu pensamento na desgraça do irmão, pela reunião de todas as forças do seu ser sensível ao serviço da sua fraternidade. Antígona quer-se exclusivamente fraternal. Repele, senão para fora de si mesma, recalca pelo menos no fundo de si mesma, em regiões onde já não têm poder nos seus atos, todos os sentimentos que a desviariam do puro amor de Polinices.

Pelo mesmo traço de carácter se iluminam as obscuridades de Creonte. Este homem é inteligente. Tem uma visão clara do objetivo que se fixou, e que é o de reinar na ordem. Ama seu filho, sua mulher, ama a sua cidade. Egoistamente, sem dúvida, pelo prazer, pela honra e pelo proveito que retira destes bens que lhe pertencem, mas, enfim, ama-os no seu nível de amor, como bom tirano da sua família e do Estado. O fim do drama mostra a força da afeição de Creonte pelos seres que dependiam dele.

Sendo assim, como é possível que este homem avisado, decidido a usar dos bens que a vida lhe oferece, se mostre finalmente tão limitado na conduta da sua vida e no exercício do poder? Como se acha ele incapaz de compreender uma só das boas razões que lhe dá o filho, surdo a essa voz que lhe anuncia claramente a sua perda, se ele pretender governar sozinho contra a opinião de todos? Na verdade, não há nada nesta obscuridade que não seja claro. Está na natureza de Creonte pôs-se todo inteiro, como Antígona, em toda a ação que empreende. Tendo decidido lutar contra a revolta e a anarquia, conduzirá sem derivação a luta ao seu termo, seja esse termo mortal. A cegueira e a obsessão da ideia fixa reconhecem-se nomeadamente no fato de ver até onde ela não está a rebelião que decidiu castigar no corpo de Polinices e depois em Antígona. Ela ergue-se por toda a parte no seu caminho, fantasma do seu espírito, mas que o obriga a esmagá-la. Não somente em Antígona, mas absurdamente no soldado que prende Antígona e a entrega, e que ele supõe pago pelos seus inimigos. Mais absurdamente em Ismene, terna garota de quem faz uma sombria conspiradora. As tímidas reservas do coro são ainda, aos seus olhos, rebelião. Rebelião, os sensatos conselhos do filho, que só procura tornar mais firme a sua autoridade. Rebelião, os silêncios como os murmúrios da cidade. Rebelião, as graves advertências de Tirésias — adivinho cúpido, vendido à conjura da sua família e da cidade! Fechado pelo fanatismo do seu caráter não só na decisão que tomou, mas nesse mundo imaginário que essa decisão construiu em redor de si e de que ela pretende manter-se senhora, não deixando entrar nela, nem o amor do filho, nem o bom senso, nem a piedade, nem mesmo o simples interesse ou a inteligência da situação — quem quebrará a obsessão, quem forçará este cerco estranho, este bloqueio erguido por Creonte contra si mesmo? O seu fanatismo entregou-o à solidão, fez dele o alvo de todos.

Naqueles mesmos que o querem salvar, não pode ver senão inimigos. "Vamos!, como arqueiros, apontai, desferi todos contra mim..."
Uma ameaça, para o final do drama, pesa sobre Creonte como sobre Antígona: é a solidão, escola e armadilha das almas ébrias de absoluto.
No entanto, não é à mesma solidão que Antígona e Creonte estão votados pela forma idêntica do seu carácter cortante.

Deste extremo parentesco de caráter, aliás, nada há a tirar contra o fanatismo em si. A intolerância é, para todas as almas combativas, a forma necessária, e a única eficaz do seu combate.

Verdadeiramente, outra coisa, que não o caráter, conta na luta e define os seres: a qualidade da alma. Antígona e Creonte manifestam, no choque das suas vontades semelhantes, não apenas uma evidente identidade de caráter, mas uma qualidade de alma tão diferente que de repente nos surpreendemos de que tenham podido aproximar-se estes dois seres. Tanto quanto são talhados em arestas semelhantes os contornos do caráter, assim difere o conteúdo da alma. Esta diferença essencial permitirá a Antígona encontrar paradoxalmente na sua morte solitária o meio de escapar a essa solidão que de Creonte vivo fará presa sua.

Assim, nestas duas personagens, se desenham duas vontades de força igual, mas orientadas para pólos opostos. Duas vontades iguais e de sinal contrário.

Em Antígona há uma alma toda cheia de amor. Antígona. áspera de aparência, tem a doçura íntima de uma natureza de amante, como de amante tem o ardor. É uma ternura profunda, é um amor ardente, quase absurdo, que faz dela o que ela é, que põe nesta garota este furor de sacrifício, esta energia de homem, e a sua dureza e os seus desprezos. Porque a doçura torna-se dureza quando se ama, e o humilde serviço desprezo e desdém por tudo quanto não seja o amado. E o amor se torna ódio. Antígona odeia a quem quer que — sobretudo a terna Ismene, terna como ela — recuse segui-la lá aonde a leva o profundo impulso do seu amor.

Os mortos que ela amou, que ela continua a amar como vivos, viva ela, aqueles a quem incessantemente chama "os meus, meus bem-amados", são os senhores soberanos da sua alma. Entre todos, "o irmão bem-amado", esse irmão negado à paz da terra, negado às suas lágrimas, esse corpo vergonhosa­mente prometido aos animais, esse "caro tesouro" da sua alma, é o senhor a quem ela se deu toda, capaz só ele de a fazer amar a morte, de fazer-lhe, não aceitar, mas abraçar num movimento de profunda aiegria, de alegria misturada de lágrimas, mas tão intensa que para ela a dor se transforma em canto.

Como toda a paixão, este amor arde nela com uma labareda devoradora. No seu braseiro aniquilam-se enfim todos os seus outros amores, pálidos perante o brilho intenso da chama única. Os mais seguros, os mais experimen­tados — o de seu pai e o de sua mãe —, os mais desejados — o desse marido que Hémon não será, o dos filhos que ele não lhe dará nunca. Todos esses amores, é necessário que ela os esqueça e que, mesmo quando os chora, quando afirma a necessária ternura deles ao seu coração, chegue a renegá-los, porque um só amor enche todo o campo da sua alma, o amor de seu irmão; é necessário que a esse irmão único, insubstituível, ela leve, ao juntar-se-lhe na morte, a oferenda de um coração que não pode dividir-se. O absoluto da paixão, a sua tirania sem condições, afirma-se numa passagem singular que muitos modernos não compreenderam e cuja paternidade alguns — o próprio Goethe — tentaram ou desejaram retirar a Sófocles. É a passagem em que Antígona declara com veemência que o que fizera por seu irmão, o não faria nem por um marido nem por um filho. Porquê? Porque o irmão, diz ela, uma vez mortos os pais, é o único insubstituível. Detenhamos a nossa atenção. Não há aqui outra coisa que um sofisma do coração, uma dessas costumadas tentativas (muito costumadas no espírito grego) de fundar em razão o que é movimento primeiro da alma. Neste desvario de Antígona afirma-se, com toda a clareza, a extrema violência da paixão que a arrebata ao procedimento normal, que a leva à renegação de tudo quanto não seja o seu único objeto.

O irmão é o seu tudo. Liga-se a ele como a um amor que não pode acabar. Persegue-o na morte. É inseparável da sua duração. "É belo para mim morrer por ele... Repousarei junto de ti, meu bem-amado... Debaixo da terra, ficarei estendida para sempre".

Na verdade, não é nunca o seu cérebro, não é nunca um raciocínio ou um princípio que a conduzem, é sempre ao seu coração que ela segue, é a exaltação do sentimento que a lança na morte. Diz-lhe Ismene desde os primeiros momentos: "Coração que arde pela morte glacial." E ainda:
"Tu vais, querida e louca, fiel ao teu amor".

Mas é a própria Antígona que define mais exatamente a sua natureza no verso cintilante em que proclama a sua recusa de odiar em Polinices o inimigo da sua terra: "Eu não nasci para partilhar o ódio, mas para partilhar o amor".

Pura natureza de amorosa, que não põe ao amor nenhuma condição, nenhuma restrição... Mas a densidade da expressão grega é aqui dificilmente traduzível. "Eu nasci", diz Antígona, "— é a minha natureza, o meu ser... — para partilhar o amor: para o dar e para o receber, para viver na comunhão do amor".

Não nos iludamos. O ato de Antígona é-lhe ordenado pela sua natureza antes mesmo de lhe ser prescrito pelos deuses. Nela, o amor está primeiro, "é de nascença". Se não amasse seu irmão, não descobriria em si essas leis divinas, eternas, não escritas, que lhe ordenam salvá-lo. Essas leis, não as recebeu ela de fora: são as próprias leis do seu coração. Digamos, pelo menos, que é pelo coração, no impulso do amor, que ela acede ao conhecimento da vontade divina, à claridade da exigência espiritual. Amor carnal, no sentido de que se trata do amor de um corpo. É ao amor do corpo fraterno que Antígona vai buscar toda a força de revolta que a levanta contra a vontade dos homens, toda a força de obediência que inteiramente a submete a Deus.

Reconheçamos o amor pelo poder de amplitude, pela sua força fecundante. Se é um Eros que manda Antígona ao suplício, e se este Eros, exclusivo e cioso como todo o Eros, parece fechar esta alma a tudo quanto não seja a salvação fraterna, não é também ele — Eros Gerador — que a fecunda com a mais alta realidade que há no mundo de Sófocles, a Palavra divina? Antígona traz consigo e mostra à luz do dia esta Palavra com uma irradiante segurança. A morte, para ela, nada é, agora que concebeu e amadureceu no amor este fruto esplêndido. Diz Antígona:

"Não são de hoje, nem de ontem, as leis dos deuses, são de sempre... Se eu morrer antes de tempo, sei que a morte é para mim um ganho... um mal que não conta. Desgraça teria sido deixar sem sepultura o filho de minha mãe... O resto é-me indiferente".

Indissolúveis são em Antígona o testemunho prestado à lei divina, o dom da sua vida, o amor de seu irmão.

Tal é o destino de Antígona no amor. Dele assume a vocação mortal e, se dele conhece a cegueira, colhe nele também essa lucidez do olhar que visa o centro do ser, essa autoridade de mensagem que o amor concede às almas mais altas.

Daí esse verso singular, já citado, quase incompreensível: "Eu não nasci para partilhar o ódio, mas para partilhar o amor".

Disse eu, e diz-se à saciedade, que este verso define Antígona, mas é evidente que a define ultrapassando-a. Porque temos também de observar que Antígona nem sempre conforma com ele os seus atos. Ela trai esta palavra quase profética, ao mesmo tempo que lhe permanece fiel. Há ali uma decla­ração que é arrancada ao devir de Antígona, ao para além de ela própria, pela natureza profunda de Antígona, ou antes, pelo seu devir, dela própria des­ conhecido. Uma palavra arrancada pela violência do conflito trágico ao próprio poeta. A sua personagem, neste rasgo, ultrapassa-o, ultrapassa também os séculos...

Em Antígona, tudo é amor, ou tudo o será. Em Creonte, tudo é amor-próprio, entendido no sentido clássico: amor de si mesmo.

Sem dúvida, Creonte, de uma certa maneira, ama os seus: sua mulher, seu filho, os seus súbditos. Mas ama-os sobretudo na medida em que eles manitestam e servem a sua força, instrumentos e argumentos do seu Eu. O que significa que os não ama. A infelicidade deles é-lhe indiferente, só a perda deles o fere. O seu ser é-lhe inteiramente inacessível. Não compreende nada nem ninguém fora de si mesmo, esse Si que completamente o ocupa, aliás sem por isso ver mais claro em si.

Todo o amor lhe está fechado. Todo o amor que diante de si se exprime, imediatamente o fecha. O de Ismene pela irmã, o de Hémon por Antígona. Amor não é para ele outra coisa que desrazão — fora da união carnal. Quando lhe perguntam se realmente mandará matar a noiva de seu filho, responde com uma completa grosseria que não é mais que uma total incompreensão do amor: "Ele encontrará outros ventres para lavrar".

Assim ignora o amor, e assim ignora o filho.

Creonte odeia e despreza o amor. Tem medo dele. Teme este dom que o obrigaria a abrir-se a outrem e ao mundo. Porque Creonte — e nisto atinge-nos num dos perigos de nós próprios — alimentou em si o gosto do poderio até ao ponto em que ele se inverte em impotência. Impressiona-nos que com todos os atributos do poder a ação de Creonte acabe por revelar-se pura impotência. Este homem traz em si autênticas verdades: a essencial esterilidade desta natureza rebelde ao amor toma infecundas essas verdades. Ao tomar a defesa da cidade, ameaçada pela traição de Polinices e pela indisciplina de Antígona, Creonte parece por um instante consagrar-se a um objeto que o excede. Na sua luta pela salvaguarda da ordem pública, no seu combate contra aqueles a quem chama. Hémon incluído, os anarquistas, Creonte dispõe, de começo, de todos os argumentos capazes de nos convencerem. Nós sabemos que a comu­ nidade precisa, num perigo extremo, de ser defendida contra as Antígonas. Sabemos que não há, na profissão de fé política que Creonte faz perante o seu povo, a menor hipocrisia. Mas também não há amor. A natureza de Creonte é, sm seu princípio, infecunda. Toda a verdade, de que ele se apresenta como honesto portador, se revela neste solo ingrato verdade cerebral, semente vazia.

Quando Creonte treme de cólera pela cidade posta em perigo, não será antes de medo que ele treme, de medo por si mesmo? O fundo deste grande rei é o medo. O medo sempre ligado à impotência. Em volta da sua pessoa, cada vez mais entrincheirada no medo. Creonte não vê senão inimigos e conspirações. A cidade fala-lhe claramente pela voz dos velhos: o medo fá-lo atrever-se a enfrentar estas advertências. Os deuses falam-lhe: o medo leva-o a horríveis blasfêmias, porque ele desconfia que os deuses de Tirésias se passaram para o campo dos adversários. À medida que a peça avança, a cortina de idealismo que ele descera entre si próprio e o povo, quando do seu discurso do trono, desvanece-se, frágil. Os acontecimentos obrigam-no a dizer claramente o que a si próprio escondia. Não é já a cidade que reclama o castigo dos traidores, é o terror que cresce e reina no seu Eu. Forçado no retiro onde se esquivava sob o véu de verdades não assumidas no compromisso do amor, o Eu afirma-se diante dos homens e dos deuses na sua medrosa nudez. O homem que se apresentava gloriosamente como defensor exemplar da comunidade não é mais. descoberto aos nossos olhos, que o Indivíduo puro.

Porque não amou senão o seu próprio poder, a sua única personagem, a ideia lisonjeira que de si mesmo fazia — mas seria isso amar? — . Creonte esta finalmente condenado à solidão. Filho, mulher, poder, tudo perde ao mesmo tempo. Ei-lo reduzido a esse pobre invólucro de si mesmo, que em vão inchara de falsa autoridade. Também Antígona — disse-o já — estava só no momento de abandonar a vida. Ninguém, nem sequer o coro, concedia lágrimas à sua sorte, na sua lenta caminhada para o túmulo onde ia ser enterrada viva. Contudo, a solidão patética de Antígona era apenas aparente. Solidão neces­sária a toda a criatura humana no seu último combate. Mas não solidão da alma. Antígona, mesmo nesse momento, tem consigo os seus mortos, o irmão bem-amado. O amor uniu-a à totalidade divina. Ao passo que Creonte, no centro desse círculo de piedade onde o poeta instala toda a criatura sofredora criada pelo seu gênio, surge reduzido à mais desértica solidão: os deuses que ele pretendia aliciar ferem-no, a cidade abandona-o, e os seus mortos — esse filho e essa mulher monstruosamente sacrificados à hipertrofia do seu Eu —, longe de serem no seu coração quentes presenças, uma vida querida e nutriente, nada mais são aos seus olhos, que procuram ainda apropriar-se deles, que cadáveres.

Contudo, este Creonte, este Creonte assustador e desolado, esta figura do erro humano, coloca-a também o poeta em nós, não apenas como uma adver­tência, mas como um ser fraterno. Ao longo de todo o drama, e, neste derradeiro minuto, com uma extrema densidade, Creonte viveu em nós como uma parte autêntica da nossa pessoa. Culpado, decerto, ele o é, mas demasia­ damente próximo dos nossos próprios erros para que pensemos em condená-lo do alio de qualquer princípio abstracto. Creonte faz parte da nossa experiência trágica. A sua maneira, ou no seu lugar, ele tinha razão e era preciso que agisse como agiu para que o poema de Sófocles pusesse em nós o seu fruto, que é o conhecimento integral que tomamos da nossa pessoa divina e do mundo em que é destino dela agir.

Somos, pois, ao mesmo tempo, Antígona e Creonte e o seu conflito. É este um dos rasgos mais claros do génio de Sófocles: fazer-nos participar da vida de cada uma das personagens de maneira tão íntima que a cada uma delas, no momento em que está diante de nós e se exprime, não podemos fazer outra coisa que dar-lhe razão. É que cada uma delas fala e vive em nós: nelas, é a nossa voz que ouvimos, a nossa vida que se descobre.
Sófocles não é um desses escritores que nos dizem grosseiramente: este tem razão, este não tem razão. O seu amor por cada um dos seres nascidos de si é tão forte que cada um deles tem razão no lugar que ocupa no mundo do poeta. A cada um deles aderimos como a um ser verdadeiro, duma verdade por nós próprios experimentada. Até o jovem soldado que. no momento em que fala, está contente por salvar a vida graças à captura de Antígona e se lamenta por entregá-la ao príncipe que a castigará — esse rapaz ingénuo tem razão plena em nós. Razão de salvar a pele e de estar contente por consegui-lo. E nós teríamos feito o que ele fez. Razão de ser fiel à sua natureza, que é uma parte importante de toda a natureza de homem. Razão sobre a terra firme onde todos estamos postos. E a instável Ismene também tem razão de ser simplesmente e puramente, contra a viril Antígona, uma tema natureza de fraca mulher, sábia na sua fraqueza conhecida e consentida e de súbito tão forte como sua irmã, no seu brusco ardor de sacrifício.

E se Antígona tem razão, supremamente razão no zénite da tragédia, a essa altura do heroísmo puro a que a sua natureza lhe permite subir e para que nos convoca, também Creonte contra ela e em nós tem razão, praticamente razão, ao nível necessário da política, no plano constrangedor da cidade em guerra. Mesmo levados pelo desenrolar do drama a não dar razão a Creonte por ter confundido o seu prestígio e o bem do Estado e apenas por isto, não nos desligamos humanamente dele: o se,u erro é por demais natural, por demais inscrito na natureza perigosa da ação política, para que o não confessemos como uma parte de nós próprios. Sabemos, aliás, com Creonte, que tudo é legítimo para o poder, na comunidade posta em perigo pela "anarquia" de uma Antígona que é a do Espírito que sopra perigosamente onde quer. Sabemos também obscuramente  e é essa a desgraça das cidades –, que, as mais das vezes, são os Creontes que as defendem. São feitos para esta tarefa. Melhor ou pior, eles a fazem: nela se sujam, nela se perdem, porque poucas tarefas há que exponham mesmo um bom operário a mais ingratos erros. Através destes erros, os Creontes guardam contudo a sua natureza – baixa, porque não se salvam os Estados com nobres pensamentos, mas com atos rudes e grosseiros – uma espécie de fidelidade. Esta ligação, na nossa vida, da ação à baixeza conhecemo-la, como uma necessidade da nossa condição, uma das partes mais pesadas da nossa natureza. Somos feitos do tosco barro de Creonte – para quê contestá-lo? muito antes de sermos animados pela viva labareda de Antígona. A região menos confessada do prazer trágico, aquela que exige da parte do poeta um incrível esforço de arte e de amor, é essa piedade lúcida, essa corajosa confissão de fraternidade que de nós arranca para com os "maus". Seria fácil lançá-los fora de nossa alma. Mas a verdade da arte e o nosso prazer são a este preço: é preciso que as confessemos.

Assim Sófocles acorda as figuras adormecidas do nosso ser. Faz falar as nossas vozes mudas. Traz à claridade da consciência a nossa secreta complexidade. Tudo o que se procurava em nós e se estreitava envergonhadamente na escuridão, agora se conhece e combate a rosto descoberto. O conflito das personagens é o nosso e põe-nos em perigo. O desenlace faz-nos tremer. Mas também trememos de alegria, deslumbrados de prazer por ver assim postas a luz do dia as riquezas inexploradas da nossa vida possível. Pois é bem o tesouro do nosso possível que o poeta desdobra do combate. Mas o poeta trágico instala em plena luz esta desordem da nossa vida interior e do mundo precisamente para dela tirar a ordem. Do conflito trágico propõe-se ele tirr um prazer mais alto que a simples enumeração das nossas riquezas: o da sua disposiçnao e da sua valorização. Chocando um contra o outro os temas trágicos que nos dilaceram, e sem nada deixar perder das nossas riquezas recuperadas, compõe finalmente, para nossa sedução, a magia de uma música que, exprimindo-nos inteiramente, nos forma e nos arrasta para novos combates.

A tragédia Antígona visa pois a ordenar as figuras do nosso ser em um equilíbrio em que o nosso mundo interior, espelho do conjunto das coisas, se continua e se explica. A operação trágica e o prazer que ela nos dá resolvem em harmonia os valores antagonistas que as personagens nos propõem. Valores de um certo ângulo, mais largo ou mais estreito, todos válidos, mas que a arte do poeta, depois de os ter feito jogar um contra o outro, experimentar um pelo outro, coloca e hierarquiza um em relação ao outro. Assim teremos um após outro, ou antes, um no outro, o prazer da complexidade da vida, da riqueza do nosso ser e o da sua unidade, do seu "sentido". O prazer de possuir toda a nossa vida na profusão das suas tendências e o de escolher a sua "direcção".

Valores, pois. modos de vida válidos se propõem e parecem tatear-se um ao outro, até que encontrem em nós o seu movente equilíbrio. Creonte e Antígona são como duas zonas da vida humana que se buscam para se apoiarem uma na outra e que finalmente se graduam.

Em Creonte é-nos proposta uma ordem em que o Estado se situaria no cume do pensamento e dirigiria toda a ação. Para Creonte, a cidade impõe aos vivos o seu serviço e é a sua conduta cívica que regula a sorte dos mortos. Honrar Polinices. diz Creonte. seria ultrajar Etéocles. Creonte crê nos deuses, mas os seus deuses vergam-se estritamente a esta ordem cujo pólo é cívico: estão, como os homens, comprometidos no serviço do Estado. Creonte está fechado a deuses que não tenham por primeira função assegurar a estabilidade do Estado e por consequência punir os rebeldes. Quando Tirésias lhe faz entender a linguagem dos deuses, que são outra coisa que não isto, blasfema. Deuses e sacerdotes são funcionários, ou não o são. Os deuses estão naciona­lizados (como tantos outros na história). Defendem fronteiras. Honram o soldado que cai ao defender as mesmas fronteiras que eles. Castigam quem quer que, fora ou dentro — Polinices ou Antígona — . se recuse a conhecer a ordem estabelecida e garantida por eles, a autoridade suprema do Estado...

O limite da ordem de Creonte é o fascismo.

Frente a este mundo de Creonte, em que tudo está no Estado, eis, mais vasto, o cosmos de Antígona. Ao passo que Creonte submete o homem e os deuses, e todo o valor espiritual, à ordem política e nacional, Antígona, sem negar os direitos do Estado, limita-os. Os decretos de um homem, diz ela, desse homem que fala em nome do Estado, não podem prevalecer sobre as leis eternas de que a consciência é depositária. Antígona não contesta a lei dos homens, mas afirma a existência duma realidade superior que, a ela, lhe foi revelada no amor que dedicava a seu irmão. A esta realidade imediatamente mscrita na sua consciência, sem livro nem sacerdote — "lei não escrita", precisa — , considera Antígona que deve submeter-se a ordem política, pelo menos nesta circunstância precisa que foi para ela a ocasião desta tomada de consciência.

Este dado da consciência é um absoluto: a distinção entre o bem e o mal. tal como a define a ordem política, apaga-se diante dele. A Creonte que se indigna: "Mas deverá o homem de bem ter a mesma sorte que o criminoso?" Antígona responde claramente: "Quem sabe se as vossas fronteiras têm sentido entre os mortos?" Verdadeiramente. Antígona — e é muito importante notá-lo — não con­testa a Creonte o direito de a condenar à morte. Limita-se a manifestar, pela sua morte livremente escolhida, o primado da ordem espiritual, que ela encarna, sobre a ordem política. Nada mais, mas nada menos também. Na sua alma aprendeu ela uma realidade: ao morrer, testemunha que esse bem é superior à vida.

Assim, enquanto a ordem de Creonte tende a negar Antígona e se esforça por aniquilá-la, Antígona, em contrapartida, não nega Creonte e, se Creonte é o Estado, não contesta a legitimidade da sua existência. Antígona não nos tira esse Creonte que nós reconhecemos como parte do nosso ser. Não o aniquila, antes o coloca no seu lugar, o classifica. Grande é o nosso prazer ao sentirmos que nada do que na nossa natureza pede para viver é abafado ou mutilado pelo desenvolvimento e desenlace do conflito trágico, mas antes ajustado e harmonizado. Este conflito Antígona-Creonte, apoiado pela presença de valores secundários, mas todos autênticos e preciosos, que as outras personagens propunham, não se resolve, com efeito — apesar do sangue dos suicídios e dos gritos do desespero — , em destruição dos laços que possuíamos em cada um desses seres opostos: todas as personagens permanecem vivas e princípios de vida nesta harmonização recíproca a que as vergam o génio do poeta e a soberania da sua criatura eleita — Antígona. Porque esta Antígona, repudiada por todos ou separada de todos, é finalmente por todos confessada como rainha e senhora de suprema verdade.

Nesta harmonia que a tragédia faz nascer em nós, nada nos enche de mais profunda alegria que o triunfo de Antígona sobre Creonte, que a certeza da verdade de Antígona em relação a Creonte.

Antígona é liberdade, Creonte é fatalidade: é aqui que está o sentido do drama e o eixo do nosso prazer.

Antígona é o penhor do primado da alma livre sobre as forças de servidão que a cercam.

Antígona é uma alma livre que recebeu o dom da liberdade no comprome­ timento do amor. Em todos os momentos do drama acompanhamos o seu irresistível impulso para um infinito de liberdade. Na sua essência, ela parece anárquica. Ela o é, e nisso Creonte não se engana — pelo menos numa sociedade em que o poder não conhece o seu domínio e o seu limite. O que é o mesmo que dizer que Antígona é «anarquista» numa sociedade anárquica. De resto, em todas as sociedades históricas, a liberdade da pessoa chocou sempre, até aqui, com a autoridade do Estado. Existe uma necessidade da comunidade, existe uma fatalidade da sociedade. Creonte recorda-o com rigor. Ele próprio é a expressão dela, no que essa ordem pública tem de necessário, de rigoroso e, por vezes, de ofensivo.

Na sociedade histórica em que Antígona nasceu, e na nossa ainda. Antígona tem de morrer. Mas a alegria que por esta morte experimentamos seria comple­ tamente inexplicável se ela não significasse que a exigência fundamental de liberdade que ela manifesta está em acordo, como Antígona o declara, com as leis secretas que regem o universo. A sua morte não é mais que um modo da sua existência transferida em nós. Ela é o princípio da nossa libertação em relação à ordem de fatalidade que ela combateu. A sua morte condena a ordem de Creonte. Não a ordem de todo o Estado, mas todo o Estado cuja ordem ofusque a livre respiração da nossa pessoa. Graças a Creonte, sabemos, melhor ou pior, que o cidadão é solidário da sorte da comunidade, que esta tem direitos sobre ele, que ele deve defendê-la, se ela merece ser defendida, e que a sua vida — não a sua alma — lhe pertence em caso de necessidade. Mas sabemos também, graças a Antígona, que num Estado que falta à sua tarefa, o indivíduo dispõe duma força revolucionária ilimitada, à qual vem associar-se o jogo das leis secretas do universo. Se, por outro lado, a força explosiva da alma, reprimida no impulso da sua liberdade, tende à destruição das fatalidades que a oprimem, a sua acção, longe de ser puramente destrutiva, é geradora de um mundo novo. Se a sociedade, tal como está feita, ainda entregue à pressão das forças trágicas, não pode deixar de esmagar as Antígonas, a existência das Antígonas constitui precisamente a promessa e a exigência duma sociedade nova, refeita à medida da liberdade do homem, uma sociedade em que o Estado, reconduzido ao seu justo papel, não será mais que o garante das liberdades desabrochadas, uma sociedade em que Creonte e Antígona, reconci­liados na história como o estão já no nosso coração, assegurarão pelo seu equilíbrio o livre florescimento da nossa pessoa no seio duma comunidade razoável e justa.

É numa tal promessa que se enraíza profundamente o prazer trágico. As mais altas tragédias a contêm e a explicitam. Entre todas, Antígona.

O prazer que a tragédia nos dispensa não é pois somente repouso em nós de um conflito de tendências contrárias, postas à luz pelo espectáculo, conflito saneado e apaziguado pela claridade salubre da consciência. É também tensão nova: estas forças vitais que se contrariavam em nós. passa o prazer a conjugá-las num feixe de energias tendidas para a conquista e o gozo desse mundo novo prometido pelo poeta.

E já nessa terrível narrativa em que conhecemos a morte de Antígona, nesse supremo minuto do drama em que Creonte cai sobre o corpo do filho, se a atroz visão da rapariga enforcada, se a nudez do desespero de Creonte nos inundam de alegria, é porque uma certeza nos trespassa, é porque uma violenta confiança em nós próprios nos levanta frente ao destino: sabemos que nesse minuto da tragédia um mundo humano começou a nascer, um mundo onde nenhuma Antígona será jamais condenada ao suplício, nenhum Creonte mergu­lhará no embrutecimento da dor, porque o homem, empunhando a espada que o dividia e agora igual à fatalidade, terá vencido as forças trágicas.

História - Civilização Grega
Artes - , 
4/17/2021 2:26:43 PM | Por André Bonnard
Ésquilo e a tragédia grega

Entre as criações do povo grego, a tragédia é talvez a mais alta e a mais ousada. Produziu ela algumas obras-primas inigualadas, cujo fundo, enraizado no medo das nossas entranhas, mas também florescendo na esperança do nosso coração, se exprime em uma beleza perfeita e convincente. O nascimento da tragédia, por meados do século V - no limiar da época clássica , está ligado a condições históricas que convirá recordar, embora de maneira breve, se quisermos apreender o sentido da orientação deste gênero novo. Por um lado, a tragédia grega retoma e prossegue o esforço da poesia anterior para por de acordo o mundo divino com a sociedade dos homens, humanizando ainda mais os deuses. Apesar do desmentido que lhe da a realidade quotidiana e a despeito da tradição do mito, a tragédia grega exige com veemência que os deuses sejam justos e façam triunfar a justiça neste mundo. Por outro lado, é também em nome da justiça que o povo dos Atenienses continua a travar uma luta duríssima, no plano da vida politica e no plano da vida social, contra os possidentes que são também os seus dirigentes, para lhes arrancar enfim a plena igualdade de direitos entre cidadãos - aquilo a que chamará regime democrático. É no decurso do ultimo período destas lutas que a tragédia surge. Pisistrato, levado ao poder pela massa dos camponeses mais pobres, é que ajuda o povo na conquista da terra, institui nas festas em honra de Dioniso concursos de tragédia destinados ao prazer e a formação do povo dos cidadãos.

Passava-se isto uma geração antes de Esquilo. Essa tragédia primitiva, ainda pouco dramática, ao que parece, e indecisa entre o riso lascivo dos sátiros e o prazer das lagrimas, encontra em um acontecimento imprevisto a sua escolha, a escolha da gravidade é aceita corajosamente o peso dessa gravidade, que doravante a define: escolhe como seu objeto próprio o encontro do herói e do destino, com os riscos e os ensinamentos que ele implica. Esse acontecimento que deu a tragédia o tom "grave", tom que não era o da poesia ática imediatamente anterior, foi a guerra persa, a guerra de independência que o povo ateniense sustentou por duas vezes contra o invasor persa. O combatente de Maratona e de Salamina, Esquilo, sucede a Anacreonte, espirito conceituoso e poeta de corte.

Esquilo é um combatente, refunda a tragédia, tal como a conhecemos, senhora dos seus meios de expressão. Mas funda-a como um combate. Todo o espetáculo trágico é, com efeito, o espetáculo de um conflito. Um "drama" , dizem os Gregos, uma ação. Um conflito cortado de cantos de angustia, de esperança ou de sabedoria, por vezes de triunfo, mas sempre, é ate nos seus cantos líricos, uma ação que nos deixa ofegantes, porque nela participamos, nós, espectadores, suspensos entre o temor e a esperança, como se se tratasse da nossa própria sorte: o choque de um homem de quatro côvados (de dois metros), diz Aristófanes, de um herói contra um obstáculo dado como intransponível, e que o é, a luta de um campeão que parece ser o campeão do homem, o nosso campeão, contra uma força envolvida de mistério - uma força que quase sempre, com ou sem razão, esmaga o lutador.

Os homens que conduzem esta ação não são "santos", embora ponham o seu recurso em um deus justo. Cometem erros, a paixão perde-os. São arrebatados e violentos. Mas tem, todos eles, algumas grandes virtudes humanas.

Todos, a coragem; alguns o amor da terra, o amor dos homens; muitos, o amor da justiça e a vontade de a fazer triunfar. Todos, ainda, estão possuídos de grandeza.

Não são santos, não são justos: são heróis, isto é, homens que, no ponto mais avançado da humanidade, ilustram, pela sua luta, ilustram em atos, o incrível poder do homem de resistir a adversidade, de transformar o infortúnio em grandeza humana e em alegria - para os outros homens, e antes de mais para os homens do seu povo.

Há neles qualquer coisa que exalta em cada um dos espectadores a quem o poeta se dirige, que exalta ainda em nós o orgulho de ser homem, a vontade e a esperança de o ser cada vez mais, alargando a brecha aberta por estes ousados campeões da nossa espécie no espago murado das nossas servidões.

"A atmosfera trágica", escreve um critico, "existe sempre que eu me identifico com a personagem, sempre que a ação da peça se torna a minha ação, quer dizer, sempre que eu me sinto comprometido na aventura que se joga... Se digo 'eu', é o meu ser inteiro, o meu destino inteiro que entra em jogo".

Contra quem se bate afinal o herói trágico? Bate-se contra os diversos obstáculos com os quais esbarram os homens na sua atividade, os obstáculos que dificultam a livre florescência da sua pessoa. Bate-se para que não se de uma injustiça, para que não se de uma morte, para que o crime seja punido, para que a lei de um tribunal vença o linchamento, para que os inimigos vencidos nos inspirem fratemidade, para que as liberdades dos deuses, se tem de ser incompreensível para nós, não ofenda ao menos a nossa liberdade. Simplifiquemos: o herói trágico bate-se para que o mundo seja melhor ou, se o mundo tem de continuar a ser o que é, para que os homens tenham mais coragem e serenidade para viver nele.

E ainda mais: o herói trágico bate-se com o sentimento paradoxal de que os obstáculos que encontra na sua ação, sendo intransponíveis, tem de ser transpostos, pelo menos se quiser alcançar a sua própria totalidade, realizar essa perigosa vocação de grandeza que traz em si, isto sem ofender o que subsiste ainda no mundo divino de crume (nemesis), sem cometer o erro da desmedida (hybris).

O conflito trágico é pois uma luta travada contra o fatal, cabendo ao herói afirmar e mostrar em ato que o fatal não o é ou não o será sempre. O obstáculo a vencer é posto no seu caminho por uma força desconhecida sobre a qual não tem domínio e a que, desde então, chama divina. O nome mais temível que dá a esta força é o de Destino.

A luta do herói trágico é dura. Por mais dura que seja, e ainda que de antemão pareça condenado o esforço do herói, lança-se nela - e nós, publico ateniense, espectador moderno, estamos com ele. É significativo que este herói condenado pelos deuses não seja humanamente condenado, quer dizer, condenado pela multidão dos homens que assistem ao espetáculo. A grandeza do herói trágico é uma grandeza ferida: quase sempre ele morre. Mas essa morte, em vez de nos desesperar, como esperaríamos, para além do horror que nos inspira, enche-nos de alegria. Assim acontece com a morte de Antígona, de Alcestes, de Hipolito, e de muitos outros. Ao longo do conflito trágico, participamos da luta do herói com um sentimento de admiração e, mais, de estreita fratemidade. Esta participação, esta alegria, só podem significar uma coisa - uma vez que somos homens: e que a luta do herói contém, até na morte-testemunho, uma promessa, a promessa de que a ação do herói contribui para nos libertar do Destino. A não ser assim, o prazer trágico, espetáculo do nosso infortúnio, seria incompreensível.

A tragédia emprega pois a linguagem do mito e esta linguagem não é simbólica. Toda a época dos dois primeiros poetas trágicos, Esquilo e Sófocles, é profundamente religiosa. Crê na verdade dos mitos. Crê que no mundo divino que apresenta ao povo subsistem forças opressivas que parecem votar a vida humana ao aniquilamento. O destino, por exemplo, como disse. Mas em outras lendas é o próprio Zeus, representado como tirano brutal, déspota hostil à humanidade, que desejaria destruir a espécie humana.

Estes mitos, e outros, muito anteriores ao nascimento da tragédia, é dever do poeta interpretá-los e faze-lo em termos de moral humana. Essa é a função social do poeta quando fala, nas Dionísias, ao seu povo de Atenas. Aristófanes, à sua maneira, confirma-o pela voz de dois grandes poetas trágicos, Eurípedes e Esquilo, a quem põe em cena, e que, adversários na sua comedia, se entendem pelo menos na definição do poeta trágico e no objetivo que ele se deve propor. Em que deve ser admirado um poeta?... No fato de tornarmos melhores os homens nas cidades.,, (E a palavra " melhores" significa mais fortes, mais adaptados ao combate da vida.) A tragédia afirma a sua missão educadora.

Na época de Esquilo, o poeta trágico não considera ter o direito de corrigir os mitos, menos ainda reinventá-los à sua vontade. Mas estes mitos são contados com numerosas variantes. Entre essas variantes da tradição popular ou da tradição dos santuários, Esquilo escolhe. Esta escolha tem de ser feita no sentido da justiça, e ele assim o faz. Razão porque o poeta educador do seu povo escolhe as lendas de mais difícil interpretação, aquelas que parecem trazer mais claro desmentido a Justiça divina. São essas, com efeito, que mais o perturbam e que perturbam a consciência do seu povo. São as lendas trágicas, aquelas que fariam desesperar de viver, se o trágico não pudesse ser, no fim de contas, resolvido em justa harmonia.

Mas porque essa exigência, sempre dificilmente satisfeita, de justiça divina? Porque o povo ateniense traz na sua carne as feridas do combate que sustentou, que ainda sustenta pela justiça humana.

Se, como muitos o pensam hoje, a criação poética, a literatura não são outra coisa que o reflexo da realidade social (pode o poeta ignora-lo, mas não é isso que importa), a luta do herói trágico contra o Destino não é mais que a luta, exprimida na linguagem do mito, conduzida pelo povo, do século VII ao século V, para se libertar das violências sociais que o oprimem ainda no momento em que a tragédia nasce, no momento também em que Esquilo é o seu segundo e antético fundador.

É no decurso desta luta secular do povo ateniense pela igualdade politica e pela justiça social que se instala, na festa mais popular de Atenas, a representação dessa outra luta do herói contra o Destino, que constitui o espetáculo trágico.

Na primeira destas lutas, de um lado está o poderio de uma classe nobre ou rica, em todo o caso impiedosa, que possui ao mesmo tempo a terra e o dinheiro e que conduz a miséria o povo dos pequenos camponeses e dos artífices, que ameaça enfim desagregar a própria existência da comunidade. Frente a ela, a poderosa vitalidade de um povo que quer viver, que exige que a justiça seja igual para todos, que o direito seja o novo laço que assegurara a vida de cada homem e a existência da cidade.

A segunda luta, imagem da primeira, e a de um Destino brutal, arbitrário e assassino e de um herói maior que nós, mais forte e mais corajoso que nós, que bate para que haja entre os homens mais justiça e humana bondade, e para ele a gloria.

Há um ponto do espaço e do tempo em que estas lutas paralelas convergem e se reforçam. O momento é o das duas festas primaveris de Dioniso; o lugar o teatro do deus, no flanco da acrópole da cidade. Ai o povo inteiro se reúne para ouvir a voz dos seus poetas, que, ao mesmo tempo que lhe explicam os mitos do passado, considerados historia, o ajudam na luta para continuarem a fazer historia, a longa luta da sua emancipação. O povo sabe que os poetas dizem a verdade: e a sua função própria instrui-lo nela.

No começo do século v - principio da era clássica - a tragédia apresenta-se ao mesmo tempo como uma arte conservadora da ordem social e como uma arte revolucionaria. Uma arte conservadora da ordem social no sentido de que permite a todos os cidadãos da cidade resolver em harmonia, no mundo fictício para onde os conduz, os sofrimentos e os combates da vida quotidiana de cada homem do povo. Conservadora, mas não mistificadora.

Mas este mundo imaginário é a imagem do mundo real. A tragédia só dá a harmonia despertando os sofrimentos e as revoltas que apazigua. Faz mais do que dá-la, no prazer, ao espectador, enquanto o espetáculo dura, promete-a ao devir da comunidade, intensificando em cada homem a recusa de aceitar a injustiça, intensificando a vontade de lutar contra ela. No povo que a escuta com um coração unanime, a tragédia reúne todas as energias de luta que ele traz em si. Neste sentido, a tragédia não é já conservadora, mas ação revolucionária.

Apresentamos alguns exemplos concretos.

Eis a violenta luta de Prometeu Agrilhoado, tragédia de Esquilo, de data desconhecida (entre 460 e 450). Esquilo crê na Justiça divina, crê em um Zeus justo. De uma justiça que é, muitas vezes, obscura. O poeta escreve, em uma tragédia anterior a Prometeu:

"Não é fácil conhecer o desígnio de Zeus. Mas eis que em todos os lugares Ele flameja de súbito no meio das trevas... Os caminhos do pensamento divino seguem para o seu destino por entre espessas sombras que nenhum olhar poderia penetrar".

É preciso que Esquilo explique ao seu povo como, na obscuridade do mito de Prometeu, "flameja de súbito, a justiça de Zeus".

Prometeu é um deus cheio de bondade para com os homens. Muito popular na Ática, e, com Hefesto, o padroeiro dos pequenos artífices, nomeadamente desses oleiros do Cerâmico que faziam em parte a riqueza de Atenas. Não só dera aos homens o fogo, como inventara para eles os ofícios e as artes. Em honra deste deus venerado pelos Atenienses, a cidade celebrava uma festa na qual era disputada uma corrida de estafetas, por grupos, servindo de testemunho um archote.

Ora, é a este "benfeitor dos homens", a este deus "Amigo dos Homens", que Zeus pune pelo beneficio de que ele foi autor. Fá-lo agrilhoar por Hefesto, compadecido mas vigiado pelos servidores de Zeus, Poder e Violência, cuja linguagem cínica corresponde a horrenda figura que tem. O Titã é cravado a uma muralha de rochedos no deserto de Citia, longe das terras habitadas, e assim ficará até que se resigne a reconhecer a "tirania" de Zeus. É esta a cena impressionante que abre a tragédia. Prometeu não pronuncia uma única palavra na presença dos seus carrascos.

Como é isto possível? Sem duvida Esquilo não ignora que, "roubando o fogo", privilegio dos deuses, Prometeu se tornou culpado de uma falta grave. Mas desta falta nasceu para os homens o alivio da sua miséria. Um tal mito enche Esquilo de angustia trágica. Sente amagada a sua fé em um Zeus justo - Zeus, senhor e sustentáculo da ordem do mundo. Mas não foge a nenhuma das dificuldades do assunto que decidiu olhar em frente. E, assim, escreve toda a sua tragédia contra Zeus.

O Amigo dos Homens (o 'Filantropo', como diz Esquilo, inventando uma palavra em que se exprime, na sua novidade verbal, o amor de Prometeu pela humanidade) é pois abandonado à solidão, em um deserto onde não ouvira "voz humana" nem verá "rosto de homem", nunca mais.

Mas estará realmente sozinho? Repudiado pelos deuses, inacessível aos homens, ele está no seio da natureza, de que é filho. Sua mãe chama-se ao mesmo tempo Terra e Justiça. É a esta natureza, em que os Gregos sempre sentiram a presença escondida de uma vida poderosa, que Prometeu se dirige, em um canto lírico em uma poesia esplendorosa e intraduzível. Ele diz:

"Espaços celestes, rápida corrida dos ventos, Fontes dos rios, riso inumerável, Das vagas marinhas, Terra, mãe comum, Eu vos invoco, invoco a Roda do Sol, Olhar do mundo, apelo para que vejam O que sofro dos deuses - eu, deus...".

Mais adiante, diz a razão do seu suplicio:

"Se, misero, estou ligado a este jugo de necessidade, Foi porque aos mortais fiz o dom mais precioso. Na haste oca do nartecio Escondi o produto da minha caçada, A fonte do Fogo, a Centelha, O Fogo que para os homens se revelou Senhor de todas as artes, Estrada sem fim...".

Neste momento, ergue-se uma musica: a natureza invocada responde ao apelo de Prometeu. É como se o céu se pusesse a cantar. O Titã vê aproximar-se pelos ares o coro das doze filhas do Oceano. Do fundo das aguas, ouviram o lamento de Prometeu e vem compadecer-se da sua miséria. Abre-se um dialogo entre a piedade e a raiva. As Oceanidas trazem as suas lagrimas e os seus tímidos conselhos de submissão à lei do mais forte. Prometeu recusa submeter-se à injustiça. Revela outras iniquidades do senhor do mundo. Zeus, que fora ajudado pelo Titã na luta para conquistar o trono do céu, só ingratidão manifestou a Prometeu. Quanto aos mortais, Zeus pensava exterminar-lhes a raça, "para fabricar uma outra, nova", se o Amigo dos Homens não se tivesse oposto ao projeto. E o amor que manifesta para com o povo mortal que hoje lhe vale o suplicio. Prometeu sabia-o: conhecendo as consequências, aceitando de antemão o castigo, deliberou cometer a falta.

Contudo, nesta tragédia que parece, pelo seu terra e pelo seu herói preso ao rochedo, inteiramente votada ao patético, Esquilo achou maneira de introduzir uma ação, um elemento dramático: deu a Prometeu uma arma contra Zeus. Esta arma é um segredo que ele recebeu de sua mãe, e esse segredo interessa à segurança do senhor do mundo. Prometeu só entregara o segredo em troca da promessa da sua libertação. Entregá-lo-á ou não? Zeus obrigá-lo-á a isso ou não? Tal é o nó da ação dramática. Como, por outro lado, Zeus não pôde aparecer em cena, o que diminuiria a sua grandeza, o combate de Prometeu contra ele trava-se através dos espaços celestes. Do alto do céu, Zeus ouve as ameaças de Prometeu contra o seu poder: treme. As ameaças tornam-se mais claras com algumas palavras que Prometeu deixa voluntariamente escapar, aflorando o seu segredo. Ira Zeus desferir o raio? Ao longo de todo o drama, a sua presença é-nos sensível. Por outro lado, passam diante do rochedo de Prometeu personagens que mantem com Zeus relações de amizade, de ódio ou de servilidade e que, depois dos lacaios Força e Poder do começo, acabam de no-lo dar a conhecer na sua perfídia e na sua crueldade.

No centro da tragédia, em uma cena capital já conhecida do leitor desta, cena que precisa e alarga o alcance do conflito, Prometeu enumera invenções de que fez beneficiar os homens. Não é Já aqui, como o era no mito primitivo que o poeta herdou, apenas o roubador do fogo, e o gênio criador da civilização nascente, confunde-se com o próprio gênio do homem ao inventar as ciências e as artes, ao ampliar o seu domínio sobre o mundo. O conflito Zeus-Prometeu toma um sentido novo: significa a luta do homem contra as forças naturais que ameaçam esmagá-lo. Conhecem-se essas conquistas da civilização primitiva: as casas, a domesticação dos animais, o trabalho dos metais, a astronomia, as matemáticas, a escrita, a medicina.

Prometeu revelou ao homem o seu próprio gênio.

Ainda aqui a peça é escrita contra Zeus: os homens - por eles entendo sempre os espectadores, que e missão do poeta educar - não podem renegar o benfeitor e dar razão a Zeus, sem renegar a sua própria humanidade. A simpatia do poeta pelo Titã não cede. O orgulho de Prometeu por ter levantado o homem da ignorância das leis do mundo ao conhecimento delas e a razão, é partilhado por Esquilo. Sente-se orgulhoso por ser da raça dos homens e, pelo poder da poesia, comunica-nos esse sentimento.

Entre as figuras que desfilam diante do rochedo de Prometeu, escolherei apenas a da infeliz lo, imagem cruel e tocante. Seduzida por capricho amoroso do senhor do céu, depois covardemente abandonada e entregue ao suplicio mais atroz, Io delirante é a vitima exemplar do amor de Zeus, como Prometeu era a vitima do seu ódio. O espetáculo do sofrimento imerecido de lo, em vez de levar Prometeu a temer a cólera de Zeus, só serve para exasperar a sua raiva.

É então que, brandindo mais abertamente como uma arma o segredo de que é senhor e atacando Zeus, lança o seu desafio através do espago:

"A vez de Zeus chegará!

Orgulhoso como é hoje,

Um dia se tornara humilde.

A união que se prepara para celebrar

O deitara abaixo do trono

E o fará desaparecer do mundo.

A maldição de que Crono, seu pai,

O amaldiçoou, no dia em que foi expulso

Da antiga realeza do ceu...

So eu sei o seu futuro, só eu posso ainda conjura-lo.

Que se recoste por agora no seu trono,

Confiante no estrondo do trovão,

Brandindo na mão o dardo de fogo.

Nada o impedira de cair de vergonhosa queda,

Tão poderoso será o adversário que ele se prepara para engendrar,

Ele contra si mesmo,

Gigante invencível, Inventor de um raio mais poderoso que o seu E

de um fragor que cobrirá o do seu trovão...

No dia em que a desgraça o atingir,

Saberá então qual a distancia

Que separa a realeza da escravatura."

Mas Prometeu só descobriu uma parte do seu jogo. O nome da mulher perigosa para Zeus (e Zeus não costuma privar-se de seduzir os mortais), guarda-o ele para si.

O golpe de Prometeu atinge o alvo. Zeus tem medo e riposta. Envia o seu mensageiro, Hermes, a intimar Prometeu que lhe de o nome. Se o não fizer, piores castigos o esperam. O Titã troça de Hermes, chama-lhe macaco e lacaio, recusa entregar o seu segredo. Hermes anuncia-lhe então a sentença de Zeus. Prometeu espera com altivez a catástrofe que irá traga-lo no desastre do universo.

Então o mundo começa a vacilar, e Prometeu responde:

"Eis finalmente os atos, não já palavras.

A terra dança debaixo dos meus pés.

O fogo subterrâneo uiva nas profundidades.

Em sulcos abrasados cai o raio deslumbrante.

Um ciclone levanta a poeira em turbilhoes.

O furor dos ventos divididos lança-os uns contra os outros.

O céu e o mar confundem-se.

Eis o cataclismo que Zeus,

Para me amedrontar, lança contra mim!

O Majestade de minha mãe,

E vos, espaços celestes, que rolais em volta do mundo

A luz, tesouro comum de todos os seres,

Vede as iniquidades que Prometeu suporta".

Prometeu está derrubado, mas não vencido. Amamo-lo ate ao fim, não só pelo amor que nos manifesta, mas pela resistência que opõe a Zeus.

A religião de Esquilo não é uma piedade feita de hábitos passivamente aceitos: não é naturalmente submissa. A condição miserável do homem revolta o poeta crente contra a injustiça dos deuses. O infortúnio da humanidade primitiva torna-lhe plausível que Zeus, que o permitiu, tenha concebido o pensamento de aniquilar a espécie humana. Sentimentos de revolta e de ódio contra as leis da vida existem em toda a personalidade forte. Esquilo liberta magnificamente estes sentimentos, em deslumbrante poesia, na pessoa de Prometeu com a sua própria revolta contra a vida.

Mas a revolta é apenas um instante do pensamento de Esquilo. Uma outra exigência, igualmente imperiosa, existe nele, uma necessidade de ordem e de harmonia. Esquilo sentiu o mundo não como um jogo de forças anárquicas, mas como uma ordem que compete ao homem, ajudado pelos deuses, compreender e regular.

Por isso, depois da peça da revolta, Esquilo escreveu para o mesmo espetáculo a peça da reconciliação, o Prometeu Libertado. O Prometeu Agrilhoado fazia parte, com efeito, daquilo a que os Gregos chamavam trilogia ligada, isto é, um conjunto de três tragédias ligadas por uma unidade de pensamento e de composição. As duas outras peças da trilogia perderam-se. Sabemos apenas que ao Prometeu Agrilhoado se sucedia imediatamente o Prometeu Libertado. (Da terceira parte, que abria ou acabava a trilogia, nada sabemos de seguro.) Acerca do Prometeu Libertado possuímos algumas informações indiretas. Temos também alguns fragmentos isolados.

O suficiente para admitir que Zeus aceitava renunciar ao capricho pela mulher cujo nome Prometeu possuía. Fazia este ato de renuncia para não lançar o mundo em novas desordens. Tornava-se por isso digno de continuar a ser senhor e guardião do universo.

Desta primeira vitória, alcançada sobre si próprio, resultava uma outra: Zeus renunciava à sua cólera contra Prometeu, dando assim satisfação a Justiça. Prometeu fazia, por seu lado, ato de submissão e, arrependendo-se sem duvida da parte de erro e de orgulho que havia na sua revolta, inclinava-se perante o senhor dos deuses, agora digno de o ser. Assim, os dois adversários, vencendo-se a si próprios interiormente, consentiam em uma limitação das suas paixões anárquicas, com vista a servir um objetivo supremo, a ordem do mundo.

O intervalo de trinta séculos que separava a ação das duas tragédias em questão tornava mais verosímil este devir do divino.

Por outros termos: as forças misteriosas que Esquilo admite presidirem ao destino, a evolução do mundo - forças, na origem, puramente arbitrárias e fatais - acedem lentamente ao plano moral. O deus supremo do universo, tal como o poeta o concebe através dos milênios que o precederam, é um ser em devir. O seu devir, exatamente como o das sociedades humanas, de que esta imagem da divindade procede, é a Justiça.

*

A Orestia de Esquilo, trilogia ligada que conservamos integralmente, representada nas Dionisias de 458, constitui a última tentativa do poeta para por de acordo, na sua consciência e perante o seu povo, o Destino e a Justiça divina.

A primeira das três tragédias de Orestia e Agamemnon, cujo assunto é o assassínio de Agamemnon por Clitemnestra, sua mulher, no seu regresso vitorioso de Troia. A segunda intitula-se Coeforas, o que quer dizer Portadoras de oferendas. Mostra como Orestes, filho de Agamemnon, vinga a morte do pai em Clitemnestra, sua própria mãe, que ele mata, expondo-se assim, por sua vez, ao castigo dos deuses. Na terceira, Eumenides, vê-se Orestes perseguido por Erinias, que são as divindades da vingança, levado a um tribunal de juízes atenienses - tribunal fundado nessa ocasião e presidido por Atena em pessoa - e finalmente absolvido, reconciliado com os homens e com os deuses. As próprias Erinias se tornam divindades benéficas, e é isso mesmo que significa o seu novo nome de Eumenides.

A primeira tragédia é a do assassínio; a segunda, da vingança; a terceira, do julgamento e do perdão. O conjunto da trilogia manifesta a ação divina exercendo-se no seio de uma família de reis criminosos, os Atridas. E, no entanto, este destino não é mais que obra dos próprios homens; não existiria, ou não teria força, se os homens o não alimentassem com os seus próprios erros, com os seus próprios crimes, que se vão engendrando uns aos outros. Este destino exerce-se com rigor, mas encontra fim e apaziguamento no julgamento de Orestes, na reconciliação do último dos Átridas com a Justiça e a Bondade divinas.

Tal é o sentido geral da obra, tal é a sua beleza, tal é a sua promessa. Por mais temível que seja, a Justiça divina deixa ao homem uma saída, uma parte de liberdade que lhe permite, guiado por divindades benévolas, Apolo e Atena, encontrar o caminho da salvação. É o que acontece a Orestes, através duma dura provação, a morte de sua mãe, e a provação terrível da loucura em que se afunda durante algum tempo: Orestes é, no entanto, salvo. A Oréstia é um ato de fé na bondade duma divindade severa, bondade difícil de conquistar, mas bondade que não falta.

Leiamos de mais perto, para tentarmos apreender essa força do destino, primeiro concebida como inumana, depois convertida em Justiça, para tentar­mos também entrever a extraordinária beleza da obra.

A ação da Oréstia liga-se e desenvolve-se sempre, ao mesmo tempo, no plano das paixões humanas e no plano divino. Parece mesmo, por instantes mas trata-se apenas de aparência), que a estória de Agamémnon e de Clitemnestra poderia ser contada como a estória de um marido e de uma mulher quaisquer, que têm sólidas razões para se detestarem, tão sólidas, em Clitemnestra, que a levam ao crime. Este aspecto brutalmente humano é acentuado pelo poeta com uma crueza realista.

Clitemnestra é desenhada como uma terrível figura do ódio conjugal. Esta mulher nunca esqueceu, e é natural que não tenha podido esquecer, durante os dez anos de ausência do marido, que Agamémnon, ao partir para Tróia, não temeu — para garantir o êxito dessa guerra absurda que não tinha outro fim senão restituir a Menelau uma bela adúltera — degolar, à fé de um oráculo, sua filha Ifigênia. Clitemnestra ruminou, durante esses dez anos, o seu rancor, à espera da hora saborosa da vingança. "Pronto a levantar-se um dia, terrível, um intendente pérfido guarda a casa: é o Ódio que não esquece, a mãe que quer vingar o seu filho." Assim a descreve o coro no princípio do Agamémnon.

Mas Clitemnestra tem outras razões para odiar e matar, que vai buscar aos seus próprios erros. Na ausência do marido, instalou no leito real "um leão, mas um leão covarde" que, enquanto os soldados se batem, fica em casa, "à espera, espojado no leito, que do combate volte o senhor".

Clitemnestra, com efeito, tomou por amante Egisto, desprezível e brutal, que se embusca com ela, espiando o regresso do vencedor. Serão dois a feri-lo. A rainha ama com paixão este poltrão insolente a quem domina: proclamá-lo-á depois do crime, impudicamente, gloriosamente, frente ao coro. Egisto é a sua desforra: Aga­mémnon, "diante de Ilion, deliciava-se com as Criseidas", e agora fez-lhe a afronta de trazer para o lar e recomendar aos seus cuidados a bela cativa que ele prefere, Cassandra, filha de Príamo, Cassandra, a profetisa — ofensa que exacerba ainda mais o velho ódio da rainha e leva ao extremo a sua vontade de matar o rei. A morte de Cassandra "avivará a volúpia da sua vingança".

Clitemnestra é uma mulher de cabeça, "uma mulher com vontade de homem", diz o poeta. Montou uma armadilha engenhosa e joga um jogo infernal. Para ser avisada sem demora do regresso do marido, instalou, de Tróia a Micenas, através das ilhas do Egeu e nas costas da Grécia, uma cadeia de sinais luminosos que, em uma só noite, lhe transmitirá a notícia da tomada de ílion. Assim, preparada para os acontecimentos, apresenta-se, perante o coro dos principais da cidade, como esposa amante e fiel, cheia de alegria por ver voltar o marido. Desembarcado Agamémnon, repete diante do rei e diante do povo a mesma comédia hipócrita e convida o esposo a entrar no palácio onde o espera o banho da hospitalidade — essa banheira onde o assassinará, desarmado, ao sair dela, com os braços embaraçados no lençol que lhe entrega. "Banho de astúcia e de sangue", em que ela o mata a golpes de machado.

Eis o drama, humano, da morte de Agamémnon — visto deste lado conjugal. Este drama é atroz: revela na alma roída pelo ódio de Clitemnestra, sob a máscara dificilmente sustentada, horríveis negridões. Executado o crime, a máscara cairá: a rainha defenderá o seu ato sem corar, justificá-lo-á, glorificar-se-á dele com um triunfal encarniçamento.

No entanto, este drama de paixões humanas, de paixões baixamente humanas, enraíza-se, na pessoa de Agamémnon, que é nele o herói trágico, num outro drama de mais vasta envergadura, um drama onde os deuses estão presentes. Se o ódio de Clitemnestra é perigoso para Agamémnon, é apenas porque, no seio do mundo divino, e de há muito tempo, nasceu e cresceu uma pesada ameaça contra a grandeza e contra a vida do rei.

Existe nos deuses, e porque os deuses são o que são, isto é, justos, um destino de Agamémnon. Como se constituiu essa ameaça? Que destino é esse, esse peso de fatalidade que acabará por esmagar um rei que procura grandeza para si próprio e para o seu povo? Não é fácil compreender logo de entrada a justiça dos deuses de Esquilo. No entanto este destino não é mais que a soma das faltas cometidas na família dos Átridas de que Agamémnon é descendente, faltas ancestrais a que vêm juntar-se as da sua própria vida. O destino é o conjunto das faltas que exigem reparação e que se voltam contra Agamémnon para o ferir.

Agamémnon é descendente de uma raça adúltera e fratricida. É filho desse Atreu que, tendo convidado seu irmão para um repasto de paz, lhe deu a comer os membros dos filhos, que degolara. Agamémnon traz o peso desses crimes execráveis e de outros ainda. Porquê? Porque, para Ésquilo, é lei dura mas certa da vida que nenhum de nós está sozinho no mundo, na sua responsabi­lidade intacta, que existem faltas de que somos solidários como parte de uma linhagem ou de uma comunidade. Ésquilo, embora o exprima diferentemente, tem a profunda intuição de que somos cúmplices das faltas de outrem, porque a nossa alma as não repeliu com vigor. Ésquilo tem a coragem de olhar de frente essa velha crença, mas também velha lei da vida, que quer que os erros dos pais caiam sobre os filhos e constituam para eles um destino.

No entanto, toda a sua peça diz também que este destino herdado não poderia ferir Agamémnon; só o fere porque Agamémnon cometeu, ele próprio, as mais graves faltas. É, enfim, a sua própria vida de erros e de crimes que abre caminho a esse aspecto vingador do divino que espreitava nele o descen­dente dos Atridas.

Em mais de uma circunstância, com efeito — os coros da primeira parte do Agamémnon o recordam em cantos esplêndidos — , os deuses permitiram a Agamémnon, submetendo-o a uma tentação, escapar à influência do destino, salvar a sua existência e a sua alma recusando-se a fazer o mal. Mas Aga­mémnon sucumbiu. De cada uma das suas quedas, saiu mais diminuída a sua liberdade em relação ao destino.

O seu erro mais grave é o sacrifício de Ifigênia. O oráculo que o prescrevia era uma prova em que o amor paterno do rei deveria ter triunfado da sua ambição ou do seu dever de general. Tanto mais que este dever era um falso dever, uma vez que Agamémnon empenhara o seu povo numa guerra sem justiça, uma guerra em que os homens iam para a morte por causa de uma mulher adúltera. Assim os erros se engendram uns aos outros na vida difícil de Agamémnon. Quando os deuses decidem recusar à frota o caminho de Tróia se ele não verter o sangue de sua filha, abrem no seu coração um doloroso debate.

Agamémnon tem de escolher e é preciso que escolha claramente o bem no fundo da sua alma já escurecida pelas faltas anteriores. Ao escolher o sacrifício de Ifigênia, Agamémnon entrega-se ao destino.

Eis como a poesia de Ésquilo apresenta este debate:

Outrora, o mais velho dos chefes da frota aqueia,

Próximo das águas de Aulis, brancas de remoinhos,

Quando as velas ferradas, os paióis vazios

Fizeram murmurar o rumor dos soldados,

Rei dócil ao adivinho, dócil aos golpes da sorte,

Ele mesmo, Agamémnon, se fez cúmplice do destino.

Os ventos sopravam do Entrímnis.

Ventos contrários, de fome e de ruína,

Ventos de equipagens debandadas,

Ventos de cabos apodrecidos e de avarias,

E o tempo dobrando a sua ação.

Cardava a flor dos Argivos.

E quando, mascarando-se sob o nome de Ártemis,

O sacerdote revelou o único remédio,

Cura mais amarga que a tempestade e o naufrágio,

De tal modo que o bastão dos Atridas batia o solo

E as lágrimas corriam dos olhos deles,

Então o mais velho dos reis disse em voz alta:

"A sorte esmaga-me se eu desobedeço.

Esmaga-me se eu sacrificar a minha filha,

Se eu firo e despedaço a alegria da minha casa,

Se eu maculo do sangue de uma adolescente degolada

As minhas mãos de pai junto do altar.

"De um lado e doutro só para mim desgraça.

Rei desertor, terei de abandonar a frota,

Deixar assim os meus companheiros de armas?

Terei de escolher o sacrifício, acalmar os ventos,

Escolher e desejar o sangue vertido,

Desejá-lo com fervor, com furor?...

Não o permitiram os deuses?...

Que assim seja, pois, e que esse sangue nos salve!"

Agora o destino está pousado na sua nuca,

Lentamente nele cravando um pensamento

De impiedade, de impureza, de sacrilégio.

Escolheu o crime e a sua alma mudou de sentido.

E o vento da cega loucura leva-o a tudo ousar,

Leva-o a erguer o punhal

Do sacrifício de sua filha. — Para quê?

Para a conquista de uma mulher,

Para a guerra de represálias,

E para abrir aos seus barcos

O mar.

O sangue de Ifigênia era, aliás, apenas o primeiro sangue de um crime maior. Agamémnon decidira derramar o sangue do seu povo numa guerra injusta. Isto ele o pagará também, e justamente. Ao longo desta guerra sem fim, a cólera popular subia, antecipando-se ao regresso do rei. A dor, o luto do seu povo, mutilado na perda da sua juventude, juntam-se à cólera dos deuses e, com ela, entregam-no ao Destino.

Mais uma vez a poesia de Ésquilo exprime em imagens cintilantes o crime da guerra injusta. (Cito apenas o fim deste coro).

É bem pesada a glória dos reis

Carregada da maldição dos povos.

Pesado o renome que fica a dever ao ódio.

A angústia oprime hoje o meu coração; pressinto

Qualquer golpe tenebroso da Sorte. Porque

Os reis que chacinam os soldados

Fazem recair sobre si o olhar dos deuses.

E o voo das negras Erínias

Plana por sobre as instáveis fortunas

Que não ganharam raizes na justiça.

Não há recurso contra o julgamento do Céu.

O raio de Zeus fere os cumes mais altos.

Uma última vez, no decorrer do drama, os deuses oferecem a Agamémnon a possibilidade de restaurar a sua liberdade prestando-lhes homenagem. É a cena do tapete de púrpura. Nela vemos juntarem-se o drama das paixões humanas e o drama da ação divina. É a terrível Clitemnestra que tem a ideia desta última armadilha. Ela crê na existência e no poder dos deuses, mas tem, em relação a eles, um cálculo sacrílego: tenta metê-los no seu jogo. Prepara ao orgulho do vencedor de Tróia uma tentação, que os deuses permitem. O que para ela é armadilha, é para eles prova, última possibilidade de salvação. Quando o carro do rei pára diante do palácio, Clitemnestra ordena às servas que estendam um tapete de púrpura sobre o solo, que o pé vencedor não deve pisar. Porque esta honra é reservada aos deuses nas procissões onde se trans­porta a sua imagem. Se Agamémnon se iguala aos deuses, expõe-se aos seus golpes, entrega-se uma vez mais ao destino que o espreita. Vêmo-lo resistir primeiro à tentação, depois sucumbir. Caminha sobre o tapete de púrpura. Clitemnestra triunfa: pensa poder agora ferir impunemente, uma vez que o seu braço passará a ser a arma de que os deuses se servem para ferir. Engana-se: podem os deuses escolher o seu braço, que nem por isso ela será menos criminosa. Só eles têm o direito de ferir, só eles são puros e justos.

As portas do palácio fecham-se atrás do casal inimigo, o machado está pronto.

Agamémnon vai morrer. Não o julguemos. Conhecemos a sua grandeza, e sabemos que ele não era mais que um homem sujeito a errar.
Para fazer ressoar em nós esta morte, digna de piedade, do vencedor de Tróia, Esquilo inventa uma cena de rara força dramática e poética. Em vez de fazer que a morte nos seja contada depois, por um servidor saído do palácio, faz com que a vivamos antes que ela se dê, evocando-a através do delírio de Cassandra, a profetisa ligada a Agamémnon pelos laços da carne apaixonada. Cassandra, até aí calada, no seu carro, insensível à presença daqueles que a rodeiam, é bruscamente presa de um arrebatamento delirante.

Apolo, o deus profeta, está nela: mostra-lhe o assassínio de Agamémnon que se prepara, mostra-lhe a sua própria morte que seguirá a dele. Mas é por fragmentos que o futuro e também o passado sangrento da casa dos Átridas se descobrem na sua visão interior. Tudo isto na presença do coro que troça dela ou renuncia a compreender. Mas o espectador, esse, sabe e compreende... Assim são as estrofes de Cassandra:

Ah! maldita! Eis o que perpetraste.

Preparas a alegria do banho

Ao esposo, com quem te deitas...

Como dizer agora o que se passa?

Ela aproxima-se. A mão

Se levantou para ferir, uma outra mão implora...

Oh! oh!... Oh! oh!... Horror...

O horror aparece, a rede, vejo-a...

Não será ela a rede do Inferno?...

Ah! aí está ela, a verdadeira rede, o engenho...

A cúmplice do leito, a cúmplice do crime...

Acorrei, Erínias insaciáveis, bando maldito!

Vingai o crime, atirai pedras

E gritai e feri...

Ah! ah! Vê, cuidado!

Afasta o touro da vaca.

Ela envolve-o num pano. Fere

Com o corno negro da sua armadilha.

Fere. Ele cai na banheira cheia...

Tem cuidado com o golpe traiçoeiro da cuva assassina.

Aterrorizada Cassandra entra no palácio, onde viu a degolação que a espera no cepo.

Finalmente, as portas abrem-se. Os cadáveres de Agamémnon e de Cas­sandra são apresentados ao povo de Micenas. Clitemnestra, de machado na mão, o pé sobre a sua vítima, triunfa "como um corvo de morte". Egisto está a seu lado. O ódio criminoso do par adúltero terá a última palavra? O coro dos velhos de Micenas enfrenta, como pode, o júbilo da rainha. Lança-lhe à cara o único nome que a pode perturbar, o nome de seu filho exilado, Orestes — esse filho que, segundo o direito e a religião do tempo, é o vingador designado do pai assassinado.

As Coéforas são o drama da vingança, vingança difícil, perigosa. No centro do drama está Orestes, o filho que deve matar a mãe, porque os deuses o ordenam. Recebeu ordem de Apolo. E, contudo, horrível crime é esse, mergulhar a espada no seio da sua própria mãe, um crime que, entre todos, ofende os deuses e os homens. Este crime ordenado por um deus em nome da justiça, porque o filho deve vingar o pai e porque não existe outro direito que permita castigar Clitemnestra, fora desse direito familiar, esse crime será, também em nome da justiça, perseguido pelas divindades da vingança, as Erínias, que reclamarão a morte de Orestes. Assim a cadeia de crimes e vinganças corre o risco de não ter fim.

Orestes, o herói trágico, é apanhado, e de antemão o sabe, entre duas exigências do divino: matar e ser punido por ter matado. A armadilha parece não ter saída para uma consciência reta, pois é o mundo dos deuses, a que é preciso obedecer, que parece dividido contra si mesmo.

No entanto, Orestes, nesta terrível conjuntura, não está sozinho. Quando, no princípio das Coéforas, chega com Pílades a Micenas, onde não passou a sua juventude, encontra junto do túmulo do pai — que é um montículo erguido no centro da cena — sua irmã mais velha, Electra, que vive à espera do seu regresso há longos anos, apaixonadamente fiel à recordação do pai assassinado, odiando a mãe, tratada por ela e por Egisto como serva — alma solitária que não tem outras confidentes além das servas do palácio, as Coéforas, mas alma que permanece viva porque uma imensa esperança habita nela, a esperança de que Orestes, seu caro irmão, voltará, de que ele matará a mãe abominável e o seu cúmplice, de que ele restaurará a honra da casa.

A cena do reconhecimento do irmão e da irmã diante do túmulo do pai é de uma maravilhosa frescura. Depois das cenas atrozes do Agamémnon, essa tragédia em que o nosso universo lentamente se intoxicava de paixões baixas, a hipocrisia da rainha, as covardias do rei e o ódio que ganhava tudo, e, para terminar cinicamente, se patenteava em júbilo de triunfo, depois dessa tragédia que nos asfixiava, respiramos finalmente, com a alegria do encontro dos dois irmãos, uma lufada de ar puro. O túmulo de Agamémnon está ali. O próprio Agamémnon ali está, cego e mudo na sua tumba. Agamémnon invingado, cuja cólera é preciso acordar, a fim de que Orestes, incapaz ainda de detestar sua mãe, a quem não conhece, se encha do furor do pai, faça reviver em si seu pai, até que possa ir buscar a essa estreita ligação que une o filho ao pai, a essa continuidade do sangue que nele corre, a força de ferir sua mãe.

A cena principal do drama — e a mais bela também, poeticamente — é a longa encantação em que, voltados para o túmulo do rei, sucessivamente o coro, Electra e Orestes procuram juntar-se-lhe no silêncio da tumba, no mundo obscuro onde repousam os mortos, recordá-lo, fazê-lo falar por eles, despertá-lo neles.

Mais adiante vem a cena da morte. Orestes começou por matar Egisto. Aqui, nada de difícil. Uma ratoeira, um animal imundo. Nada mais. Agora Orestes vai ser colocado diante de sua mãe. Até aqui apresentara-se diante dela como um estrangeiro, encarregado de lhe trazer uma mensagem, a da morte de Orestes. E nós vimos em Clitemnestra, após o breve estremecimento da ternura maternal, a horrível alegria que encontra na morte do filho, esse vingador que sempre temeu, o único vingador a temer. No entanto, ainda está desconfiada. Não esquece um sonho terrível que teve na noite anterior, no qual uma serpente que ela alimentava com o seu leite a mordia, e do seu seio fazia correr o sangue com o leite.

Assassinado Egisto, um servo vai bater à porta das mulheres, para anun­ciar o crime a Clitemnestra. A rainha sai, esbarra com o filho, de espada ensanguentada na mão, e com Pílades... Compreende subitamente, num grito de amor por Egisto. Suplica, implora, descobre ao filho o seio onde ele mamou o leite nutriente. Orestes tem um momento de desfalecimento, parece cam­balear perante o horror da coisa impossível, volta-se para o amigo: "Pílades, que farei? Poderei matar minha mãe?" Pílades responde: "E que fazes tu da ordem de Apolo e da tua Lealdade? Mais vale ter contra si todos os homens que os deuses."

Orestes arrasta sua mãe e mata-a.

E de novo, como no fim do Agamémnon, as portas do palácio se abrem e, no lugar onde repousavam Agamémnon e Cassandra, jazem agora Clitemnestra e Egisto: Orestes apresenta os cadáveres ao povo e justifica o seu crime.

Orestes está inocente, uma vez que obedeceu à ordem de um deus. Mas pode alguém assassinar a sua própria mãe e ficar inocente? Através da sua justificação, sentimos subir dentro dele o horror. Grita o seu direito e a justiça da sua causa. O coro procura tranquilizá-lo: "Nada fizeste de mal." Mas a angústia não pára de crescer na sua alma, e é a sua própria razão que começa a vacilar. De súbito, erguem-se diante dele as deusas terríveis, as Erínias, vê-as. Nós não as vemos ainda, são apenas aspectos do seu delírio. E no entanto têm uma assustadora realidade. Que vão elas fazer de Orestes? Não o sabemos. O drama das Coéforas, que se abrira num sopro de juventude, num impulso de libertação, numa corajosa ofensiva contra o sinistro destino dos Atridas, ofen­siva conduzida pelo filho, o único filho inocente da raça, esse drama aberto na esperança, acaba mais baixo que o desespero: acaba na loucura.

As Coéforas mostraram o fracasso do esforço humano na luta contra o destino, o fracasso de um homem que, não obstante, obedecia à ordem de um deus, na sua empresa de pôr fim à engrenagem de crime e de vingança que parecem engendrar-se um ao outro, até ao infinito, na raça maldita dos Átridas. Mas a razão deste fracasso é clara. Se o homem não pode já restaurar a sua liberdade, diminuída pelas faltas ancestrais, se não pode, mesmo apoiado na autoridade de Apolo, estendendo as suas mãos para o céu, encontrar os braços dos deuses, é porque o mundo divino aparece ainda aos homens como tragi­camente dividido contra si mesmo.

Esquilo, no entanto, crê com toda a sua alma na ordem e na unidade do mundo divino. O que ele mostra no terceiro drama da Oréstia, as Euménides, é como um homem de boa vontade e de fé, tão inocente de intenção quanto um homem o pode ser, pôde, graças a um julgamento a que de antemão se submetia, lavar-se do crime imposto pela fatalidade, reencontrar uma liberdade nova e finalmente reconciliar-se com o mundo divino. Mas foi preciso para tal que, no mesmo movimento, o mundo divino operasse a sua própria reconci­liação consigo mesmo, e pudesse surgir doravante ao homem como uma ordem harmoniosa, toda penetrada de justiça e de bondade.

Não entro nos pormenores da ação. A cena principal é a do julgamento de Orestes. Coloca-se ela — por uma audácia rara na história da tragédia – a alguns passos dos espectadores, na Acrópole, diante de um velho templo de Atena. Foi ali que Orestes, perseguido pelas Erínias, que querem a sua cabeça e beber o seu sangue, se refugiou. Ajoelhado, rodeia com os braços a velha estátua de madeira de Atena, outrora caída do céu e que todos os Atenienses conhecem bem. Ora em silêncio, e depois, em voz alta, suplica à deusa. Mas as Erimas seguiram-lhe a pista e cercam-no na sua roda infernal. Assim como diz o poeta, "o odor do sangue humano sorri-lhes".

Entretanto, Atena a jovem Atena, sensata e justa — aparece ao lado da sua estátua. Para decidir da sorte de Orestes, funda um tribunal, e esse tribunal é composto de juizes humanos, de cidadãos atenienses. Vemos aqui o mundo divino aproximar-se dos homens e encamar-se na mais necessária das institui­ções humanas, o tribunal. Perante este tribunal, as Erínias acusam. Declaram que ao sangue derramado deve forçosamente responder o sangue derramado.

É a lei de talião. Apolo desempenha o papel da defesa. Recorda as circuns­tâncias atrozes da morte de Agamémnon. Pede a absolvição de Orestes. Os votos dos jurados dividem-se igualmente entre a condenação e a absolvição.

Mas Atena junta o seu sufrágio àqueles que absolvem Orestes. Orestes está salvo.

Doravante, crimes como os que se cometeram na família dos Atridas não relevarão mais da vingança pessoal, mas deste tribunal fundado por uma deusa, onde homens decidirão da sorte dos inocentes e dos culpados, em consciência.

O Destino fez-se Justiça, no sentido mais concreto da palavra.

Finalmente, a última parte da tragédia dá às Erínias, frustradas da vítima que esperavam, uma espécie de compensação que não é outra coisa senão uma modificação da sua natureza íntima. De futuro, as Erínias, agora Eunémides, não serão ávidas e cegas exigidoras de vingança: o seu poder temível é, de súbito, graças à ação de Atena, "polarizado para o bem", como o disse um crítico. Serão uma fonte de bênçãos para aqueles que o mereçam: velarão pelo respeito da santidade das leis do casamento, pela concórdia entre os cidadãos. São elas que preservarão o rapaz de uma morte prematura, que darão à moça o esposo que ela ama.

No fim da Oréstia, o aspecto vingador e fatal do divino penetra-se de benevolência; o Destino, não contente de confundir-se com a Justiça divina, inclina-se para a bondade e torna-se Providência.

Assim a poesia de Ésquilo, sempre corajosa em alimentar a arte dramática com os conflitos mais temíveis que podem opor os homens ao mundo de que fazem parte, vai buscar esta coragem renovada à fé profunda do poeta na existência de uma ordem harmoniosa na qual colaborem enfim os homens e os deuses.

Neste momento histórico em que a cidade de Atenas esboçava uma primeira forma de soberania popular — essa forma de vida em sociedade que, com o tempo, merecerá o nome de democracia — , a poesia de Ésquilo tenta instalar firmemente a justiça no coração do mundo divino. Por aí, exprime o amor do povo de Atenas pela justiça, o seu respeito pelo direito, a sua fé no progresso.

Eis, no fim da Oréstia, Atena rogando pela sua cidade:

Que todas as bênçãos de uma vitória que nada macule

Lhe sejam dadas!

Que os ventos propícios que se levantam da terra, Aqueles que voltejam nos espaços marinhos,

Aqueles também que descem das nuvens como o hálito do sol Regozigem a minha terra!

Que os frutos dos campos e dos rebanhos

Não cessem de abundar em alimento

Para os meus concidadãos!

Que apenas os maus sejam mondados sem piedade!

O meu coração é o de um bom hortelão.

Compraz-me em ver crescer os justos ao abrigo do joio.

História - Civilização Grega
Religião - , 
4/11/2021 1:09:22 PM | Por André Bonnard
Os deuses e os homens

A religião grega começa logo por parecer muito primitiva. É-o realmente. Certas noções que lhe são familiares nos séculos clássicos - como as de hybris e da nemesis - encontram-se em populações tão pouco evoluídas como são as tribos Mois do sul da Indochina. Seria um erro, para procurar compreende-la, ir buscar pontos de comparação à religião cristã. No decurso de dez séculos de existência, e mais ainda, a vida religiosa dos Gregos tomou formas muito diversas: nunca teve forma dogmática, o que para nos simplificaria o seu conhecimento. Nada na religião grega se parece com um catecismo ou com uma aparência de pregação. A menos que os espetáculos trágicos e cômicos possam ser chamados "pregação". E podem-no, num sentido que precisaremos adiante. Acrescentemos que não existe, por assim dizer, na Grécia, qualquer clero, e se o há não tem influencia - excluindo os oráculos dos grandes santuários. São os magistrados da cidade que, entre outras funções, realizam certos sacrifícios e dizem certas orações. Estes atos rituais constituem uma tradição ancestral que os cidadãos não pensam sequer contestar. Mas as orações são extremamente livres, podem mesmo dizer-se flutuantes. A crença conta menos do que o gesto ritual que se executa. Uma espécie de aceno de mão, um beijo atirado com as pontas dos dedos à essas grandes potestades, cuja importância na existência humana às massas populares, como os intelectuais, raramente separados da massa, estão de acordo em reconhecer.

A religião grega tem o aspecto exuberante e mal arrumado de um folclore. Na realidade, é também um folclore. A distinção que hoje se faz entre religião e folclore, se tem algum sentido, quando aplicada a uma religião de índole dogmática como o cristianismo, não o tem quando aplicada as religiões antigas. É ao caos vivo das tradições folclóricas que os poetas e os artistas antigos, que se conservaram crentes enquanto a sua arte se dirigiu ao povo, vão buscar a matéria com que criavam e recriavam incessantemente as imagens dos seus deuses: remoldam assim a fé popular, tornam os deuses mais humanos. Esta humanização progressiva do divino é um dos traços mais salientes da religião grega. Esta tem outros caracteres, não menos importantes, mas, obrigado a escolher, é sobre este ponto que mais insistirei.

Ao principio, a religião grega, como todas as religiões primitivas, reflete a fraqueza do homem perante as "potências" que, na natureza, depois na sociedade ou ainda no seu próprio espirito, lhe parecem embaraçar a sua ação e constituir para a sua existência uma ameaça tanto mais temível quanto é certo apreender mal a origem dela. O que interessa ao homem primitivo não é a natureza ou as forças naturais em si mesmas, mas somente a natureza na medida em que intervém na sua existência e lhe fixa as condições.

O homem, mesmo primitivo, sabe-se capaz de refletir - veja-se Ulisses -, capaz de empreender atos, de calcular as consequências deles. E ei-lo que constantemente esbarra em obstáculos, se engana e falha o seu objetivo, que é simplesmente o de satisfazer algumas necessidades elementares. Acaba naturalmente por admitir que existem à sua volta vontades muito mais poderosas que a sua e que o comportamento delas é para si absolutamente imprevisível.

O primitivo verifica, pois, empiricamente, a ação da divindade como a de uma "potencia" que intervém inopinadamente na sua vida. As mais das vezes em seu detrimento, por vezes também em seu beneficio. Benéfica ou maléfica, mas acima de tudo inesperada e arbitraria. Estranha a si próprio na maneira de ser e de agir. Um deus é, em primeiro lugar, qualquer coisa que surpreende. Sente-se em relação a ele, a sua ação, espanto, temor e também respeito. O grego, para exprimir estes sentimentos complexos, diz aidos, o inglês awe. O homem não considera a "potência" sobrenatural, tem antes o sentimento de ter encontrado outro.

O sentimento religioso primitivo define-se quase inteiramente pelo sentimento da presença do Outro.

O divino pode existir por toda a parte, na pedra, na água, na arvore e no animal. Não que tudo na natureza seja deus, mas tudo pode sê-lo por sorte ou má sorte, e manifestar-se como deus.

Um camponês passa na montanha: encontra à beira de um carreiro um monte de pedras. Este monte formou-se, com o tempo, com as pedras que os camponeses como ele atiravam, ao passar. A estes montes, chama ele "herma". São pontos de referencia tranquilizadores numa região pouco conhecida. Um deus ali habita: mais tarde tomará a forma humana e chamar-se-á Hermes, guia dos viajantes e condutor das almas pelos caminhos difíceis que levam às regiões infernais. Por agora, não é mais que um monte de pedras, mas este monte é deus, todo "poderoso". Por vezes, um viajante que sente necessidade de ser tranquilizado e protegido depõe ali uma oferenda alimentar: o passante seguinte toma-la-á, se tem fome, e ao seu achado chamará "hermaion".

Os Gregos começam por ser, e durante muito tempo, camponeses. Depois, marinheiros. Os seus deuses também. Eles habitam os campos, a floresta, os rios, as fontes. Depois, o mar. A terra grega não recebe toda a agua de que precisa, ou recebe-a de uma maneira caprichosa. Os rios são raros e sagrados. Não atravessar um rio sem ter dito uma oração e lavar as mãos nas suas aguas. Não urinar na foz de um rio ou perto das nascentes. (Conselhos de Hesiodo, o camponês.) Os rios passam por dar fecundidade não só aos campos, mas também ao gênero humano. Quando um rapaz se torna adulto e corta pela primeira vez os seus longos cabelos, consagra-os a um rio da sua terra.

Cada rio tem a sua divindade. Este deus fluvial tem a forma de um touro de rosto humano. Ainda se encontram no folclore europeu atual gênios dos rios com forma de touro. Na Grécia, o gênio da agua aparece também sob a forma de cavalo. Posídon, que se tornou um dos grandes deuses da Grécia clássica, tem relações tão estreitas com o cavalo como com a agua. Um dia fez jorrar, de um golpe de um tridente, um charco de agua salgada - pomposamente denominado mar - sobre a Acrópole de Atenas, como o cavalo alado Pégaso fez brotar a fonte Hipocrene com uma pancada do casco, no monte Helicon. A forma e as funções de Posídon dependem do mester que exercem as populações que lhe prestam culto. Entre os marinheiros da Jônia, Posídon é o deus do mar. Em terra firme, e particularmente no Peloponeso, é ao mesmo tempo o deus-cavalo e dos tremores de terra. Os rios numerosos que se afundam no solo e reaparecem, por vezes, muito mais longe, passam, na crença popular, por corroer o solo e provocar os abalos sísmicos.

Os Gregos povoam ainda a natureza de inúmeros outros gênios, aos quais dão forma meio animal, meio humana. Os centauros, que tem corpo de cavalo e busto de homem, pertencem à criação poética e artística: são contudo, certamente, de origem popular. O seu nome parece significar "os que chicoteiam as aguas", é provável que tenham sido, originariamente, gênios das correntes montanhosas do Pelion e da Arcádia, onde a poesia, os localiza. Na Jônia, os silenos são atestados pelas inscrições: também eles exprimem, com a sua defeituosa forma humana, as suas pernas e cauda de cavalo, os aspectos selvagens da natureza. Além disso, são itifalicos, o que, nos tempos primitivos, não é uma característica destinada a fazer rir, antes exprime o grande poder de fecundidade da natureza. O mesmo em relação aos sátiros, bodes nos pés, nas orelhas e na cauda, e igualmente itifalicos. Reunidos mais tarde no cortejo jovial e bravio de Dioniso, ajudam, com ele, a fazer crescer as arvores e as plantas, contribuem para a multiplicação dos rebanhos e das famílias. Com este grande deus, fazem voltar a Primavera.

Como todos os povos da Europa, os Gregos exprimiram também a fecundidade da natureza sob a forma de numerosos gênios femininos. Os mais populares e os mais próximos do homem - no entanto, como todos os seres divinos, perigosos se se aproximam - são gênios amáveis, acolhedores e graciosos como donzelas e cujo nome de "ninfas" significa exatamente donzelas. Criaturas encantadoras, benévolas, alegres, sempre prontas a dançar, e que de súbito, inexplicavelmente irritadas e ameaçadoras, se tornam esse outro que caracteriza o divino. Um homem diante de nós enlouquece: está "possesso das ninfas". É a elas, no entanto, que se dirige o culto mais intimo, aquele a que nos conduzem os nossos sentimentos mais profundos, o amor da nossa mulher e dos nossos filhos. Ulisses, voltando a Ítaca, depois de vinte anos, e antes de empreender com Telemaco o duro combate contra os pretendentes que deve restituir-lhe Penelope e o seu domínio, aproxima-se do antro profundo, da caverna abobadada das ninfas, perto da beira-mar, as quais, noutros tempos, oferecera tantos sacrifícios. É a proteção delas que confia o tesouro das suas viagens, é sobretudo a elas que quer entregar a salvação da sua empresa. Prosternado, depois de ter beijado essa outra divindade rustica, "a Terra que da o trigo", logo levanta as mãos ao céu, implora as ninfas protetoras e familiares que lhe concedam, com Atena, a vitória.

Há uma rainha da natureza selvagem, muito semelhante às ninfas que a acompanham, aquela a quem primeiro se chamou, muito simplesmente, Senhora dos animais selvagens, destinada a ser na vida religiosa do povo grego a grande deusa Artemis. Frequenta as florestas e os cimos das altas montanhas. O seu culto está ligado ao das árvores, das fontes, dos rios. Chamam-lhe, conforme os lugares, Lygodesmos, o que significa que ela vive entre os salgueiros, por vezes Caryatis, por causa das nogueiras, por vezes Cedreatis, por causa dos cedros. É a deusa mais popular de toda a Grécia. O camponês grego atual não a esqueceu completamente. Da como rainha as ninfas, em que ainda acredita, a "Bela Senhora" ou a "Rainha das Montanhas". Esta sobrevivência de Artemis, através de dois mil anos de fé cristã, é um dos índices mais vivos do caráter ao mesmo tempo popular e universal da antiga religião do camponês grego. E eis ainda outra sobrevivência, no que se refere às ninfas: não há muito tempo - um século, apenas - em um alojamento rupestre de uma colina situada em plena cidade de Atenas, as mulheres gravidas levavam oferendas às ninfas, de quem esperavam bom parto e felicidade conjugal.

Mas eis agora, a Terra que dá o trigo. Velha entre todas as divindades do mundo, com o Céu. Viva sob os pés, a enxada ou a charrua do camponês, e também a mãe de todas as raças de seres vivos - animais, homens e deuses. Alimenta-os com o seu grão. O seu nome grego de Demeter significa provavelmente que é a  "Mãe das Searas". Um dia, segundo Homero, Demeter uniu-se amorosamente a um mortal, Iasion: um campo três vezes lavrado lhes serviu de leito. Ela deitou ao mundo Pluto, cujo nome significa riqueza.

Na economia antiga, a riqueza é constituída pela provisão de trigo que os homens armazenam nos silos e de que vivem na estação em que os frutos da natureza são raros. Hades, deus subterrâneo dos mortos, é uma forma derivada de pluto: o seu nome significa "aquele que possui a riqueza". Esta riqueza não é somente a dos mortos inúmeros de que ele é soberano, e acima de tudo a das sementes acumuladas nos silos.

Demeter é a deusa das sementes. Tem uma filha, sempre associada ao seu culto, que, entre diversos nomes, tem mais comumente o de "Filha do Grão": Core. Demeter e Core - a "Mãe das Searas" e a "Filha do Grão" - são, desde tempos pre-helenicos, duas grandes deusas da população camponesa ática, e, depois, de toda a comunidade ateniense. É conhecida a lenda segundo a qual Hades, o deus subterrâneo dos silos e dos mortos, raptou Core para o seu domínio infernal. Por ordem de Zeus e para acalmar a dor da mãe, foi obrigado a restituir-lhe. Todos os anos lhe torna a dar: os mistérios de Eleusis, na Ática, celebram o regresso da Filha do Grão à luz do dia, o encontro das deusas que passam juntas oito meses sobre a terra e ficam quatro meses separadas.

Os oitos meses contam-se - segundo uma hipótese sedutora - a partir do momento em que se reabrem os silos para fazer as sementeiras do Outono. Toda a vegetação cresce depressa na Ática, os cereais semeados em Outubro crescem durante o Inverno, com uma breve paragem em Janeiro. Amadurecem nos fins de Abril, ceifados em Maio, malhados em Junho. Depois, as sementes que se reservam para as sementeiras seguintes voltam aos silos: a Filha do Grão desce a terra, para junto de Hades... No entanto, por natural confusão, a permanência de Core sob a terra foi também relacionada com o tempo que o grão semeado leva a crescer em nova espiga.

Pouco antes da época da abertura dos silos, celebravam-se na Ática, em Eleusis, os mistérios de Demeter e de Core, nos quais os iniciados assistiam, sob uma forma que não podemos precisar, a reunião da mãe das Searas e da Filha do Grão. De qualquer modo, a iniciação propunha aos mistas um espetáculo, por certo muito simples. Um escritor cristão, que parece honesto (deveremos acreditar nele?), declara que o mais alto mistério da iniciação consistia na ostensão, feita pelo grande sacerdote de Eleusis, de uma espiga de trigo ceifado.

Se o culto de Demeter e de Core tem uma origem agraria elementar, não é menos verdade que, com os séculos, se enriqueceu de significações mais profundas.

A terra alimenta com a sua vida o grão de trigo. Enquanto somos vivos, alimenta-nos dele. Quando morremos, retoma-nos nela e, por nossa vez, tornamo-nos alimento das plantas da terra. Trigo alimentador, somos também o teu alimento. Destinados a descer ao seio da Terra viva, a morte que nos espera perde o seu horror. A germinação da colheita nova pode simbolizar a eternidade da vida.

Assim se desenvolveu, sobre os fundamentos de um velho culto camponês, uma esperança de imortalidade, que primeiro não era para os indivíduos, mas para a sucessão das gerações. Esta evolução esta já concluída a partir do fim dos tempos arcaicos. Mais tarde, na reivindicadora Atenas, no século V, quando se sentiu libertado dos laços da família e da tradição, o individuo passou a desejar a imortalidade para si próprio. Os mistérios de Eleusis acabaram por prometer mais isto aos iniciados: uma vida de felicidade nos Infernos lhes estava destinada. Mas não era este o inteiro e natural desenvolvimento do culto agrário, antes um começo de desvio.

Um ultimo traço interessante deve assinalar-se a proposito dos mistérios de Eleusis. Originariamente, era um culto familiar: o chefe de família admitia nele quem lhe parecia. Isto explica a possibilidade de assistirem a celebração os estrangeiros, as mulheres e os escravos. Os mistérios de Eleusis ofereciam pois aos seres mais deserdados da sociedade antiga, as mulheres como aos escravos, uma compensação para a miséria da sua condição. Deste ponto de vista - pelo caráter de universalidade que tinham, pelo menos em principio prefiguravam de algum modo o culto cristão.

Os Gregos são, a partir do século VIII, tanto quanto camponeses, um povo de marinheiros. Lançam-se, com a Odisseia, à descoberta e a colonização, terra apos terra, do Mediterrâneo ocidental. Sabemos em que difíceis condições e sobre que medíocres barcos. Comparado com Ulisses, arrastado pelos espaços vazios do mar Jônio, Lindbergh atravessou o Atlântico numa poltrona. Mas estes espaços não estão vazios. A cada volta de um cabo, em cada estreito apertado, um "maravilhoso" nascido do terror, um prodígio assustador e contudo sedutor para o coração do homem avido de aventuras e de tesouros, espreita o marinheiro sem bussola. "A miséria do ventre faminto faz equipar os navios e sulcar as vagas.  No entanto, é sobre o mar e as ilhas, e para além da superfície infinita dos abismos que se podem, ver as coisas estranhas, descobrir o mundo, enumerar as suas maravilhas.

Derivando de crenças populares mais antigas que a própria Ilíada, o maravilhoso odissaico refaz em criaturas estranhas às formas da vida, recria-as no gigantesco, no grotesco ou no eternamente belo. Estas criaturas que, demasiado distantes do humano, não podem ser objeto de um culto, são no entanto significativas do duplo sentimento que inspira aos primitivos a grandeza do mar sem limites: o sentimento do seu imenso poder de destruição, o sentimento do seu poder pérfido de sedução. Rimos da aventura do Ciclope porque um homem astuto o venceu para nos permitir que riamos. Mas os marinheiros perdidos sobre a costa da Sicília ou de Nápoles não riam quando ouviam rosnar ou ralhar o Vesúvio ou o Etna.

Os Ciclopes, sob a capa da sua pacifica vida de pastores, são absolutamente enigmáticos para os homens. Não há oração possível de Ulisses a esse monstro antropófago, ateu, anti-social que é Polifemo. O poeta da Odisseia mostra com insistência o horror dos Ciclopes por tudo o que toca a vida civilizada: barcos, leis e assembleias. Tem, como os outros "monstros" do poema, a brutalidade irracional, a impenetrabilidade radical dos primitivos ao entendimento dos fenômenos naturais.

Tome-se Caribdis e Cila: não é mais que vertiginosa mecânica do mar, que engole um apos outro os barcos, ou monstro de seis goelas com tripla mandíbula e dentes "cheio de negra morte". Tais criações exprimem miticamente o horror do marinheiro perante o terrificante poder de aniquilamento de que o mar dispõe em relação a ele.

Com Circe e as Sereias o símbolo e mais complexo. Estas belas ninfas são a armadilha da natureza, o rosto que nos atrai e nos "encanta" (no sentido de que são "encantadoras"). Mas o sorriso das ninfas dissimula mal a fundamental hostilidade do mundo natural (deve ler-se muito para lá desta linguagem de imagens!) para com a espécie humana. Circe usa os seus "encantamentos" para transformar os homens em animais, fecha-os nos seus estábulos. As Sereias cantam com voz divina, mas cantam num prado juncado de ossadas. A natureza é aqui apreendida no contraste que lhe atribuímos da sua beleza e do seu mortal ódio para com a vida da nossa espécie. Uma vez atraídos por Circe, a encantadora faz entrar os homens no circulo da natureza onde ela rema. Transformados em leões ou em porcos, esquecem que existe uma pátria. Assim, como em outras narrativas da Odisseia, de cada vez que os homens penetram na zona interdita, no mundo cego da natureza, de cada vez que se deixam conquistar por uma dessas criaturas de rosto duplo que o poeta vai buscar a tradição para exprimir esse mundo, perdem a pátria, símbolo da sua comum humanidade, perdem o regresso, como diz o poeta. Perdem a sua qualidade de homens que vivem em sociedade.

E se a não perdem completamente, se não se deixam aniquilar pelo terror que os desumaniza, é porque Ulisses é um homem. Não digo sequer um herói: nenhuma labareda sobrenatural se ateia sobre a sua cabeça como sobre a de Diomedes ou de outros combatentes da Ilíada. O seu rosto tão humano só tem a marca das lutas que ele sustentou e da experiência que delas retirou. É um homem por todos os laços que o prendem à sociedade humana: o amor de sua mulher e de seu filho, o amor do trabalho criador de objetos e de ações.

Ulisses é um homem e torna ao seu pais porque, mobilizando ao mesmo tempo todos os recursos da inteligência, do coração e das mãos, venceu os demônios do mar.

Contudo, na época da formação da Ilíada e da Odisseia, uma parte do temor que inspira o "maravilhoso" marinho esta já vencida. O positivo Ulisses é capaz, ao contar as suas aventuras aos seus hospedeiros feaces, de sorrir por momentos desse mundo fantástico e assustador criado pelos seus antepassados marinheiros. Na própria Odisseia temos outros indícios deste recuo do "maravilhoso". Os Gregos, incapazes de aceitar tanto mistério inacreditável, de se resignar ao incompreensível, cedo substituíram, nas suas tradições, estes deuses monstruosos, estas ninfas cruéis, por deuses de forma humana, por isso mesmo mais legíveis para a imaginação e a razão. Sobre o mar, e não só nele, começou a reinar o tranquilizador antropomorfismo. Assim, Posídon, o Príncipe do Mar, atrela os cavalos como um nobre guerreiro da Ilíada. (É certo que os seus cavalos voam sobre as vagas.) A volta dele alegremente saltam os golfinhos, os cães do mar, os cetáceos. Senhor dos espaços marinhos, tem o seu palácio, tem a sua esposa (a rainha Anfitrite) nos abismos. Reina sobre o inumerável povo dos peixes e dos monstros. Este povo fugidio e pérfido. Quanto a Posídon, sempre furioso como as vagas, persegue com a sua raiva Ulisses e todos os marinheiros que se aventuram sobre as ondas. Mas tem a forma, os pensamentos e os sentimentos de um homem: partindo disto, passa a ser permitido aos marinheiros entregues às suas súbitas fúrias procurar os motivos da sua cólera e tentar aplaca-la.

Este antropomorfismo - esta humanização dos deuses - não se estende apenas ao domínio marinho, mas ao conjunto do mundo. Zeus começou por ser um deus do céu, um deus do tempo que faz - deus do raio e das tempestades, deus das nuvens que se amontoam e rebentam em chuvas mais devastadoras que benéficas. A língua grega diz indiferentemente "o deus chove" ou "Zeus chove". Depois Zeus torna-se o deus da vedação. Um dos seus antigos epítetos é Herkeios: Zeus da sebe ou da barreira. Torna-se o deus da casa, que protege das intempéries, torna-se o deus do lar. Zeus Herkeios tem o seu altar em cada morada. É adorado como Zeus pater (Jupiter), o que quer dizer que é, não o antepassado, mas o protetor da família. Protege a casa e os recursos que ela contem, é chamado, a este titulo, em muitas regiões gregas, Zeus Ktesios (Zeus, o Adquiridor). Porque protege a casa, porque vela pelo sal e pelo pão, alimento elementar, porque os oferece ao viajante que entra em casa, e imaginado por aqueles que o invocam como um hospedeiro acolhedor, cheio de humanidade para os estrangeiros e os miseráveis sem lar. É humano, ao mesmo tempo, pela forma e pelos sentimentos. É, simultaneamente, o mais poderoso e o melhor dos deuses.

O mesmo se passou com outros deuses, que se tornaram deuses do Olimpo. Vejamos Apolo. É belo como o dia, o seu rosto irradia claridade. Toda uma parte da sua atividade revela a sua origem solar. As suas flechas ferem de morte súbita, como uma insolação o pode fazer. Mas a sua ação cura os doentes, como os raios solares o fazem também. É um deus humaníssimo, muitas vezes cheio de bondade; não é somente o corpo que ele purifica e cura: lava também a nodoa do crime, quando o culpado vai implorar ao seu altar ou mergulhar-se na fonte próxima do seu santuário de Delfos. Mas - um texto o acentua - terá de ser de coração puro. Como não representar sob forma humana um deus tão próximo dos homens?

Mas nós distinguimos em varias regiões da Grécia, nomeadamente entre os Arcades, povo de pastores, uma outra origem de Apolo (porque a figura de Apolo combina em si varias outras, de origens muito diversas, a maneira de um sincretismo): é Apolo Lykeios, o que quer dizer, deus dos lobos; e matador de lobos. Protege os rebanhos, transporta os cordeiros e os vitelos nos braços... Assim, como bom pastor, o representa a escultura arcaica. Imagem que atravessou os séculos e as religiões: a representação de Apolo bom pastor, ou de Hermes bom pastor, transportando os rebentos do rebanho aos ombros, e também a do Cristo imberbe que se vê nas catacumbas ou nos mosaicos de Ravena - a mais antiga das representações do Deus feito homem.

Por outro lado, Apolo, deus do dia, tem o olhar agudo que conhece o futuro e o revela. No santuário de Delfos, num vale da encosta de Parnaso, há um templo famoso de Apolo, venerado de todo o mundo antigo, helênico e bárbaro. Ali o deus inspira a sua profetisa, e os sacerdotes interpretam em oráculos a linguagem inarticulada da Pitia. Apolo sabe o que melhor convém aos indivíduos e as cidades. Milhares de crentes se juntam no seu santuário. Consulta-se o deus por qualquer coisa, como hoje se consulta o advogado, o notário ou o padre. Em muitos casos, os seus conselhos são excelentes. Se se trata de fundar uma cidade nova para além dos mares, o deus indica o local mais favorável e os recursos da terra distante para onde se vai emigrar. (Claro que os padres que davam os oráculos estavam informados, por meios que não diferiam muito dos de uma agencia de viagens, acerca dessas terras, desconhecida de quem os consultava. Mas escondiam-no pouco e os fieis não o ignoravam.) Delfos enchia-se de tesouros esplendidos que vinham do mundo inteiro.

Por vezes, os oráculos do deus eram enganadores: induziam fatalmente em erro aqueles que queriam segui-los. O deus queria assim, pensava-se, mostrar que a omnipotência e a liberdade divinas podem sempre prevalecer sobre a vontade dos homens. Apolo punha-se à distancia.

Apolo, deus da luz, é também o da harmonia. Inventou a musica e a poesia para encantamento dos homens. Pratica-as e ama-as acima de todas as coisas. O melhor meio de alcançar os favores deste deus, distante mas benévolo, é oferecer-lhe festas em que coros de rapazes e de moças cantam e dançam em volta dos seus altares.

Aliás, a maior parte dos deuses amam as belas festas. São os deuses joviais de um povo cheio de alegria que se concilia os preciosos favores divinos organizando belos espetáculos, competições desportivas, corridas de archotes, jogos de bola. Dirigir aos deuses preces e oferecer-lhes sacrifícios - muito bem. Celebrar festas em sua honra - e mesmo espetáculos cômicos, onde de caminho se troçara deles -, melhor ainda. Os deuses amam o riso, mesmo que esse riso os arranhe um pouco. O riso dos deuses, no Olimpo onde se reúnem, no palácio de Zeus, é "inextinguível", diz Homero. Dançar uma bela dança ao som da flauta, dançar em sua honra com o corpo cheio de musica, eis o que acima de tudo agrada aos deuses, que são deuses carnais, tão sensíveis como os homens à beleza do ritmo e da melodia.

*

Assim nasceram, depois dos tempos primitivos, algumas das figuras dessa religião que foi a dos deuses do Olimpo.

Recriadas por Homero, o genial poeta da Ilíada, os deuses gregos tornam-se intensamente humanos. A sua presença física é percebida por todos os sentidos. Dizer que são vivos, é pouco. Ouvimos os seus gritos, e por vezes os seus bramidos. Os cabelos de Zeus e de Posídon são mais negros que o natural: tornam-se azuis, cianosos. Vemos o branco deslumbrante ou o azul sombrio das túnicas das deusas, ou ainda a sua cor de açafrão. Os véus deslumbram "como o sol". Hera traz pedras preciosas do tamanho de amoras. Zeus não faz uso discreto do ouro nos seus atavios: manto de ouro, ceptro de ouro, chicote de ouro, e o resto. As tranças luzidias de Hera caem aos lados da cabeça. O perfume que usa é violento: enche o céu e a terra. Os olhos de Atena cintilam, os de Afrodite têm o brilho do mármore. Hera sua, Hefesto também, e enxuga o rosto, e tem o peito cabeludo. Coxeia ostensivamente...

Nunca mais acabaríamos. Estes deuses físicos ensurdecem-nos e cegam-nos. Pouco falta para que nos ofusquem.

A esta forte presença carnal corresponde uma vida psíquica igual, e contudo diferente da dos heróis. Não por certo mais complexa, mas mais obscura. Estes deuses de carne e osso, que parecem devolver-nos a sua própria imagem, muito mais humanos e por consequência mais acessíveis às nossas orações que os deuses primitivos (comja ou calhau), têm contudo em si qualquer coisa de inefável — precisamente essa coisa que os torna deuses. Por vezes um simples pormenor no-lo faz entrever. Assim, quando Afrodite, descida ao campo de batalha, é ferida por Diomedes, o poeta mostra-nos a lança aguda do herói, que, antes de penetrar no braço da deusa e de fazer jorrar o sangue imortal, "rasga o leve véu tecido pelas Graças". Por este episódio singular, por este rasgar do tecido quase imaterial que velava a bela carne divina, ficamos sabendo que Diomedes realizou uma ação inaudita e que "a mais fraca das deusas" é, não obstante, uma grande deusa. Na verdade, os deuses humanizados da Ilíada ainda são temíveis: são Potências. Qualquer coisa resiste sempre neles à humanização perfeita, que o próprio leitor do poema lhes recusa. A exuberância extraordinária da sua alegria, no seio da dor do mundo que dirigem, é uma terrível confirmação da sua divindade. Os homens conhecem-nos à aproximação da morte como deuses dos vivos. Vivem a vida numa plenitude tão total que o crente nada mais pode fazer que adorá-los. O crente enche-se da alegria deles através da imagem que lhe é dada pelo poeta-vaies. Pouco importa que façam da sua liberdade soberana um uso quase impossível de prever. Pouco importa que um fosso profundo separe a condição divina e a condição humana. A única coisa que nos toca é que os deuses vivem numa felicidade sem fim, na jovialidade e no riso, no absoluto da alegria. "As lágrimas são reservadas aos homens, o riso aos deuses", diz Homero.

O sentimento religioso que tais deuses podem inspirar aos homens tem a sua grandeza. Está ainda ligado ao temor da Potência desconhecida. Mas a este temor junta-se uma espécie de alegria desinteressada, isto é, que existe no mundo, separada dele e muito próxima dele, como que uma raça de seres imortais, uma raça de homens liberta das mais pesadas servidões que lesam a espécie mortal, de deuses que vivem na serenidade do Olimpo cintilante, eles próprios serenos porque libertados da morte, do sofrimento e dos cuidados. Para estes deuses, a moral não tem sequer sentido: a moral é uma invenção humana, uma espécie de ciência tirada da experiência humana e destinada a remediar os principais acidentes da nossa condição. Mas para que precisariam os deuses da Ilíada de uma moral, se as paixões a que se entregam, na profusão do prazer, não têm para eles as desagradáveis consequências que para os seres mortais? Sabemos que a cólera de Aquiles provoca a derrota dos Gregos e multiplica os mortos sob as muralhas de Tróia. Mas a cólera de Zeus contra Hera, que se lê no mesmo canto da Ilíada, descamba simplesmente em cena doméstica e acaba numa gargalhada "inextinguível". Toda a paixão divina, vivida na aventura, acaba no riso.

Tais reflexões sobre a condição divina são cruéis para os Gregos. Fazem-nas os maiores poetas e comunicam-nas ao povo. O Grego crente contempla, entretanto, o Olimpo como um espectáculo que o "arrebata" (no sentido mais expressivo do termo). Indiferentes às querelas humanas, os deuses da Ilíada existem por si mesmos, pela mera alegria de existir, e não em função do homem, como guardas alistados ao serviço do Bem. Muito simplesmente, existem. Como uma das múltiplas formas da vida, como os rios, o sol e as árvores, cuja única razão aparente de existirem é a de nos agradarem pela sua beleza. São livres, não à nossa maneira de uma liberdade duramente arrancada à natureza, mas de uma liberdade que é um dom da natureza. Nunca se dirá suficientemente o que há de heróico em confiar o governo do mundo e a sorte do homem a grandes forças não imorais mas amorais e obscuras, sem objetivo claramente definido mas talvez não impossível de conhecer, e para as quais o princípio de causalidade não tem papel a desempenhar.

O povo grego é um povo corajoso, cuja coragem não consiste na resigna­ção, mas na luta. Adora nos seus deuses aquilo que ele está decidido a conquistar um dia: os espaços ilimitados da alegria de viver.

Esta religião das figuras do Olimpo não é, como alguns afirmaram, uma religião imóvel, uma espécie de consolação estética para o mal de ter nascido mortal. O esteticismo ameaça-a, mas ela não se afundará nele — apesar das obras-primas inúmeras que deve ao seu culto da beleza — porque, na data em que ela surgiu e floresceu, o povo grego tem ainda em si muitos outros recursos criadores. O que é preciso dizer, contudo, é que, apresentando ao homem uma humanidade mais perfeita, feliz de uma felicidade sempre ativa, posto que não ameaçada, e mais feliz que ele próprio, ela o convida a rivalizar com essa nova espécie de humanidade. Convida o homem a "combater o Anjo". Os Gregos deram o nome de hybris a este perigoso combate, que não se trava sem perigo. Os deuses são ciosos da sua felicidade e defendem-na como classe possidente. Hybris (orgulho) e ciúme (nemêsis), são ainda crenças primitivas. Lentamente, os Gregos libertar-se-ão delas. Uma das linhas essen­ciais do combate da tragédia será a luta que travará contra o perigo da hybris e a ameaça da nemésis. A tragédia responderá, quer aceitando o risco da gran­deza humana, quer pondo os homens em guarda contra uma ambição alta de mais para o povo mortal. De um modo geral, a tragédia afirmará ao mesmo tempo a grandeza do homem ferido e a omnipotência dos deuses que o ferem. E ainda tem, de uma maneira ou de outra, de justificar a ação dos deuses. É preciso que os deuses sejam finalmente justos. Mas ainda não chegámos a esse ponto. Os deuses da Ilíada não querem saber de uma justiça que limitaria a sua liberdade e o seu poder soberanos.

Mas que acontecerá, no fim de contas, a esta bela religião de figuras, que apresentava ao homem, numa forma perfeitamente realizada, os seus desejos inconfessados e as mais preciosas conquistas do seu futuro? Acontecer-lhe-á, muito simplesmente, dissolver-se no humano. As divindades do Olimpo, na época das cidades, das divindades "políadas", tornar-se-ão caudilhos das comu­nidades de cidadãos, ou mesmo, quanto a Zeus e Apolo, por exemplo, da comunidade helênica. Os deuses não serão mais que estandartes das cidades, drapejando aos ventos dos combates. Ou humanizar-se-ão, ao ponto de não serem mais que símbolos das forças ativas que agem no nosso pensamento, no nosso sangue, e mantêm o nosso corpo de pé. Nesse momento, a religião grega, confundida com o poder e a glória da cidade, ou com os motivos mais fortes dos nossos atos, estará muito perto da morte. Imobilizar-se-á em imagens poéticas, belas talvez, mas de uma beleza vazia.

Na verdade, a religião, ao humanizar-se, laiciza-se. O Estado e os deuses formam, a partir de então, uma unidade indissolúvel. Os templos erguidos em Atenas por Pisístrato, mais tarde por Péricles, celebram, não menos que a glória dos deuses, a glória da comunidade que os construiu e, no segundo caso, a glória da metrópole do Império. O sentimento religioso cede aqui o lugar ao patriotismo e ao orgulho dos cidadãos por oferecerem à divindade monumentos tão esplêndidos, pretexto de festas deslumbrantes e objeto da admiração do mundo. Mas, ao identificar-se com o orgulho cívico, a religião dos deuses humanizados de novo se afasta do coração do homem, e engrandece-o menos do que ele pensa.

Entretanto, por essa altura, já o povo grego terá firmemente nas mãos uma outra arma, ou antes uma outra ferramenta para reconstruir o mundo: essa ferramenta é a ciência. Saberá servir-se dela?

*

Falaremos agora dos deuses artesanais. A ciência — como se verá mais adiante, nesta obra — nascerá do trabalho e particularmente da técnica das artes do fogo. Nos tempos arcaicos, o homem atribui aos deuses as suas próprias invenções. Estas invenções multiplicam-se na época em que o povo grego não é já apenas camponês e marinheiro, quando uma nova classe da sociedade — numerosa a partir da época de Sólon — vive do trabalho das suas mãos nas cidades que crescem: é a classe artesanal, a classe obreira, e também a classe dos mercadores, lojistas e comerciantes. Eles têm igualmente os seus deuses, deuses trabalhadores, à sua imagem.

Hefesto — depois de Prometeu — é o génio do fogo, não o fogo do raio, mas o da cozinha e da forja, o fogo submetido ao uso do homem. Tem as suas oficinas, ouvimo-lo trabalhar nos vulcões, com os seus ajudantes. Uma multi­dão de ferramentas à sua disposição — martelos e tenazes — , uma enorme bigorna, vinte foles soprando as fornalhas. Meio nu, trabalha todo o dia, com um gorro de operário na cabeça, martelando o metal na bigorna. Em Atenas, onde lhe chamam simplesmente Obreiro, tem, no século V, um belíssimo templo, ainda quase intacto hoje, na parte baixa da cidade, no bairro mais popular da Atenas antiga. Na esplanada deste templo, o povo festeja-o com danças e ruidosos divertimentos. (Estas festas ficaram populares e são cele­bradas ainda nos nossos dias.) Reservada à classe obreira, a festa antiga chamava-se Calchéia: era a festa dos caldeireiros, embora nela participassem também outros artífices, nomeadamente os numerosos oleiros. Atena presidia também, na sua qualidade de deusa Obreira (Ergané).

A deusa que deu o nome a Atenas — Atena — é a imagem mais perfeita da Atenas industriosa dos séculos arcaicos e clássicos. Boa obreira ela própria, é a padroeira de todo o seu povo trabalhador. O carpinteiro e o pedreiro devem-lhe o esquadro. Protege também as artes metalúrgicas e, mais ainda, o povo inumerável dos oleiros que deu o seu nome ao vasto arrabalde do Cerâmico. Atena inventou a roda de olaria e inventou os primeiros vasos de barro. Vigia de modo a impedir os acidentes na pintura e cozedura. Põe em debandada os diabos que partem os vasos e fazem estalar o verniz — os demónios Syntrips, Sabaktés e Smaragos, que se embuscam na argila e no forno. Todo o grupo de oleiros, patrões, modeladores, compositores, desenha­ dores, pintores que dispõem o preto, reservando para as figuras a argila vermelha, e que retocam o desenho — por vezes com um pincel de uma única seda — com um traço vinoso ou com um traço branco, obreiros encarregados de velar pela cozedura, serventes que amassam argila — , todos a invocam. De um deles, conservamos uma canção popular muito comovente. Começa por uma oração a Atena, para que ela estenda a sua mão sobre o forno, para que os vasos fiquem cozidos ao ponto conveniente, para que o preto conserve o brilho
e a venda dê bom lucro. Num vaso, vemos Atena em pessoa, escoltada de pequenas Vitórias, aparecer no meio de uma oficina de oleiros e colocar coroas sobre a cabeça dos trabalhadores.

A deusa Obreira vela também pelos trabalhos das mulheres. A roca e o fuso são para ela atributos mais preciosos que a lança. É "com os dedos de Atena", diz-se, que as mulheres e as moças de Atenas tecem e bordam esses estofos iluminados de recamaduras, ora flexíveis e transparentes para ficarem soltos na cintura, ora pesados para tombarem em nobres pregas verticais. Quatro garotinhas, de sete a onze anos de idade, fechadas durante nove meses no opistodomo do santuário da deusa, na Acrópole, tecem e bordam de cenas míticas a túnica nova que lhe é oferecida todos os anos na sua festa. Ligada a toda a vida quotidiana do seu povo, a deusa Obreira representa-o exatamente: sobre a Acrópole, defende-o, na sua grandeza, de lança em punho e capacete na cabeça; nas ruas da cidade baixa e no arrabalde, oferece, sem mistério e sem mística, ao povo da gente de pouco, uma religião honesta e, para a época, muito sensata.

Há, num coro de Sófocles, um apelo assim formulado: "Descei à rua, vós, povo dos obreiros manuais, que adorais a filha de Zeus de olhos brilhantes, Ergané, descei com os cestos sacrificiais, ficai perto das bigornas." Este "descei à rua" não deve ser tomado no sentido revolucionário parisiense. (De resto, a passagem é um fragmento, o que exige muita prudência na interpreta­ção.) Podemos pensar que se trata simplesmente de um apelo a qualquer festa comum às duas divindades dos obreiros: pelo menos, trata-se de uma festa popular, todo o povo dos trabalhadores manuais a celebrará.

Próximo destes deuses obreiros, muito popular em toda a Grécia, está o antigo deus dos montes de pedras, agora esperto deus dos viajantes, trafican­tes, lojistas, mercadores e comerciantes, Hermes. Vêem-se as suas estátuas nas praças de mercado e ao longo dos caminhos e estradas por onde os viajantes seguem com as mercadorias. Servem também de referência e protegem contra os ladrões. É inexato apresentar Hermes como deus dos ladrões: ele protege os mercadores contra os ladrões. Protege também a clientela contra os merca­dores. Para garantia das duas partes, inventou as balanças, os pesos e as medidas. Compraz-se nos debates da transação: aguça a língua do comprador e a língua de vendedor, inspirando a cada um a proposta mais honesta e mais lucrativa, até que entre ambos se estabeleça acordo.

Em todas as coisas, Hermes é partidário da conciliação. Nos conflitos entre cidades, sugere aos embaixadores fórmulas diplomáticas. Detesta acima de tudo a violência da guerra, onde perecem ao mesmo tempo o negócio e a humanidade. Os únicos proventos que este deus comerciante não favorece, são os lucros da guerra. Vota aos bandidos o fabricante de lanças e de escudos que deseja que uma boa guerra venha aumentar o seu negócio. Ele, o deus cheio de astúcia, abomina as mentiras da propaganda de que se alimentam, para sua ruína, os povos brigões. Numa das suas comédias, o poeta Aristófanes atribui a Hermes fogosas invetivas contra os maus condutores do povo que, com os seus berros, fazem com que a paz fuja da sua terra. E o poeta declara também que o deus Hermes respira com mais satisfação o hálito da deusa das Festas que o odor da mochila militar.

Tal é a maneira (e podia citar muitos outros exemplos) como o povo grego "humaniza" as duras necessidades do seu trabalho. Os últimos deuses mencio­nados, mais ainda que os outros, nasceram da necessidade e da luta empreen­dida pelas classes inferiores contra os obstáculos que encontram na estrutura do sociedade. Nasceram ou modificaram-se, tomando a forma que disse, na classe obreira ou na dos mercadores; exprimem a vontade do povo de pôr no campo dos trabalhadores os próprios deuses, de os utilizar no seu conflito com a classe dirigente.

O velho temor que inspiravam os deuses desconhecidos dá lugar à ami­zade — uma amizade proveitosa que põe os deuses ao serviço dos homens e que, de algum modo, os doma e os domestica.

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Contudo, nem todos os deuses estão plenamente humanizados. Alguns deles — por virtude da opressão das classes dirigentes e pela ignorância em que os homens vivem ainda das verdadeiras leis do mundo e da sociedade — continuam ser forças incompreensíveis, resolutamente hostis ao progresso e à vida das comunidades. Os oráculos, de que os poderosos não tinham qualquer escrúpulo em servir-se, a favor dos seus interesses, deixavam-se manobrar facilmente: assim, Apolo e Zeus foram muitas vezes "humanizados" num sentido detestável.

Mas eis agora um exemplo de uma divindade que parece irredutível a qualquer tentativa de humanização: o Destino, ou, como se diz em grego, Moira. Moira não é divindade a que alguma vez se tenha dado forma humana. É uma espécie de lei — desconhecida — do universo, cuja estabilidade asse­gura. Intervém no curso dos acontecimentos para repor as coisas nos seus lugares quando elas são desarrumadas pela liberdade assaz relativa dos homens e quase soberana dos deuses.

A noção de destino não é, entre os Gregos, um fatalismo que recusa toda e qualquer liberdade aos seres do mundo. Moira constitui um princípio que se coloca acima da liberdade dos homens e dos deuses, e que, inexplicavelmente, faz com que o mundo seja verdadeiramente uma Ordem, uma coisa em ordem. (Qualquer coisa como — a título de comparação sumária — a lei da gravidade e a lei da gravitação dos astros). Esta concepção é a lei de um povo que, sem ler ainda no jogo das causas sabe contudo que o universo forma um todo, um organismo que tem as suas leis, e que pressente que a tarefa do homem é devassar um dia o segredo dessa ordem existente.

Se a verificação da existência de Moira fica por explicar, ela não revela menos de um racionalismo fundamental, uma vez que supõe uma ordem estável e conhecível um dia. Deste ponto de vista, pelo menos, a lei não humana é uma vez mais reportada ao homem. O próprio nome do Universo é, em grego, altamente significativo: cosmos — e a palavra significa conjunta­mente Universo, Ordem e Beleza.

A religião, nestes séculos religiosos, não é senão uma das formas do humanismo grego.

Mas há que ir mais longe. O esforço principal desta religião, após os séculos homéricos e arcaicos, vai consistir, na época clássica, em tentar ligar mais ainda o mundo divino e o espírito do homem. Estes deuses, como vimos, eram, ao princípio, pouco morais. Caprichosos nos seus serviços e nas suas benesses. A consciência religiosa grega quis absolutamente saber se eram justos. Revoltava-se à ideia de que estes seres mais poderosos que os homens pudessem não obedecer à Justiça.

Muito cedo, um velho poeta-camponês (pouco tempo depois do poeta da Odisseia), esse pequeno proprietário rústico que se chama Hesíodo, põe assim a questão (posta também, mas com menos firmeza, pelo poeta da Odisseia):

"Trinta milhares de Imortais são, sobre a terra, e por vontade de Zeus, os vigilantes dos mortais... E existe também uma virgem, Justiça, filha de Zeus, honrada e venerada pelos deuses, habitantes do Olimpo. Ofende-a alguém com tortuosos insultos? Logo ela vai sentar-se aos pés de Zeus, seu pai, e lhe denuncia o coração dos homens injustos... O olho de Zeus, que vê tudo e distingue tudo, vê também isto, se lhe apraz, e não ignora o que valem os tribunais que os muros de uma cidade encerram. Por mim, quero deixar de ser justo a partir deste dia, e meu filho também: é mau ser justo se o injusto conta com os favores da justiça. Mas custa-me a crer que as sentenças injustas sejam ratificadas pela sabedoria de Zeus".

Nos séculos seguintes, de toda a poesia lírica grega dos séculos VII e VI — a da época da luta pelo direito escrito e pela igualdade dos cidadãos — sobem declarações semelhantes e uma imensa imploração à justiça divina como à justiça humana. Poetas ligados à ação pública afirmam que Zeus é justo ou deve sê-lo, ou insultam-no (o que vem a dar no mesmo) se verificam que o deus supremo não acode em auxílio da Justiça. Sabêmo-lo de Sólon, o Ateniense. Mas eis uma passagem do poeta exilado de Mégara, Teógnis:

"Ó Zeus, tu enches-me de espanto! És o rei do mundo, possuis honra e poder, conheces o coração de cada homem: o teu poder, ó rei, é soberano. Como é possível, pois, ó Zeus, que o teu pensamento vá pôr na mesma linha o perverso e o justo, aqueles cuja alma volta para a sabedoria e aqueles que obedecem à iniquidade e se entregam à violência?".

Tais gritos de revolta significam que a consciência religiosa grega exige que os deuses sejam justos. Contrariamente à poesia anterior — a da Ilía­da — , em que eram simplesmente poderosos e livres.

Com o século V, com a tragédia de Ésquilo, é um deus justo e bom que começa a reinar sobre o mundo e as almas. Esse é aliás o grande problema de Ésquilo, o problema que torna trágica a sua tragédia. Para o poeta do Prometeu e da Oréstia, o mundo, depois de ter atravessado milênios em que só a força bruta reinava, entre os deuses como entre os homens, entrou numa idade em que lentamente se instalam no céu, nos comandos do universo, novos deuses que acederam enfim, eles próprios, à justiça e que amparam com a sua ação justa o progresso das sociedades humanas.
Esta é uma das linhas de evolução da religião grega. Os deuses, ao humanizarem-se — antropomorfizando-se, moralizando-se depois — tornam-se símbolos de um universo em realização de Justiça.

 

História - Civilização Grega
Cotidiano - Escravatura, 
4/10/2021 1:54:30 PM | Por André Bonnard
A escravatura em Atenas

Os Gregos inventaram a democracia. Muito bem. Mas inventaram-na dentro de certos limites que é preciso agora definir. Estas limitações alteraram gravemente, desde a origem, o valor e a eficácia dessa "soberania popular" pela qual os povos tanto se tinham batido. Fizeram pior: eram tão rígidas que impediram a democracia de progredir, travaram pelo contrario o seu desenvolvimento. Podemos mesmo perguntar se não será de fixar qualquer delas entre as causas essenciais do fracasso da civilização antiga.

Entre essas limitações, acentuo duas, as principais: a escravatura e a condição inferior atribuída a mulher. (Havia outras, quase tão graves como estas.)

A democracia - como sabemos - não é outra coisa que a igualdade entre todos os "cidadãos". Muito, e muito pouco. Assim, em Atenas, admite-se que no século V - embora tais cálculos sejam difíceis e incertos - havia a roda de cento e trinta mil cidadãos (contando as mulheres e os filhos, o que está muito longe de fazer cento e trinta mil eleitores!), setenta mil estrangeiros domiciliados, Gregos vindos de outras cidades e instalados de modo duradouro em Atenas, mas sem usufruir dos direitos políticos, e finalmente mil escravos. Quer dizer: para uma população de quatrocentos mil habitantes, metade era composta de escravos. Quer dizer, também, que a democracia ateniense, muito igualitária no que se refere aos direitos políticos dos cidadãos, apenas vivia e se conservava, em grande parte, graças ao trabalho dos escravos.

A escravatura constitui pois uma nítida limitação da democracia grega. Nenhuma sociedade antiga pode dispensar a escravatura. A escravatura é a forma primitiva daquilo a que hoje se chama "a exploração do homem pelo homem". É também a mais dura. A sociedade da Idade Media não conhece já a escravatura, mas tem a servidão. Quanto à sociedade moderna, tem o assalariado, sem esquecer a exploração colonial. A libertação dos homens em relação às forças de opressão que os mais fortes exercem sobre os mais fracos caminha muito lentamente. No entanto, está em marcha desde que existem sociedades humanas.

Porque a escravatura? A escravatura aparece primeiro - por mais paradoxal que seja - como um progresso. Nas tribos primitivas não havia escravos. Quando essas tribos guerreavam, os prisioneiros eram mortos. Em tempos muito antigos (a Ilíada conserva vestígios disso), eram comidos, crus ou assados. A escravatura nasce quando se preferiu conservar a vida do prisioneiro, não por humanidade, mas para que ele desse rendimento trabalhando, ou então, quando o comercio começou, vendiam-se os prisioneiros por dinheiro ou outra coisa. É provável que, quando os homens se puseram a praticar o comercio, uma das primeiras mercadorias a ser objeto de trafico tenham sido os homens. Mas enfim, era um progresso, uma espécie de adoçamento - por interesse - da brutalidade primitiva dos costumes da guerra.

A escravatura, com efeito, nasce da guerra, e, na sociedade grega, a maior parte dos escravos são antigos prisioneiros de guerra. Após uma batalha, aqueles que não se podiam resgatar a si próprios, eram vendidos. Após um assalto, os homens de uma cidade conquistada são em geral passados a fio de espada, mas as mulheres e as crianças são tiradas à sorte entre os vencedores e conservadas ou vendidos como escravas. Estes usos não são estritamente aplicados entre cidades gregas. Sente-se escrúpulos em vender Gregos como escravos, escrúpulos que se acentuam com a circunstancia de que os escravos gregos, ao que se diz, dão pouco rendimento. Mas numa guerra entre Gregos e Persas ou outros povos não gregos, a regra é rigorosa. Cita-se uma vitória grega sobre os Persas, depois da qual vinte mil prisioneiros persas foram lançados no mercado dos escravos.

Os mercadores de escravos seguem os exércitos. O comercio dos escravos é muito ativo e lucrativo. Há grandes feiras de escravos nas cidades gregas próximas dos países bárbaros. Nomeadamente em Efeso, na Jônia, em Bizâncio, nas cidades gregas da Sicília. Em Atenas, mercado de escravos uma vez por ano. Certos traficantes de escravos fizeram fortunas consideráveis.

Há no entanto outras maneiras de tornar-se escravo, além da de prisioneiro de guerra. Em primeiro lugar por nascimento. O filho de uma mulher escrava é escravo. É propriedade, não da rude, mas do proprietário da mãe. Muitas vezes, alias, e mesmo quase sempre, é exposto quando nasce, à beira do caminho, e ai morre. O senhor considera que é demasiado custoso deixar viver essa criança, alimentá-la ate a idade em que poderá trabalhar. Esta regra não é, no entanto, geral: muitos escravos de tragédia gabam-se de ter nascido na casa do senhor. (Não acreditemos demasiado nas tragédias!)

Uma outra fonte da escravatura é a pirataria. Nos países ditos bárbaros do norte das Balcãs ou do sul da Russia, empresários de pirataria fazem razias donde trazem muita carne fresca para vender. Escravos excelentes, e isto pratica-se mesmo em certas regiões gregas (na Tessália, na Etolia, por exemplo) onde a autoridade do Estado e da policia não é suficientemente forte para impedir as depredações de caçadores de homens.

Finalmente, o direito privado é também uma fonte de recrutamento da escravatura. Não esqueçamos que na maior parte dos Estados gregos, o devedor insolvente pode ser vendido como escravo. Que saibamos, só Atenas é exceção, desde que Sólon proibiu a escravização por dividas. No entanto, mesmo na filantrópica Atenas, o pai de família tem o direito de expor os seus recém-nascidos nos caminhos - pelo menos até os ter, numa cerimonia análoga ao nosso batismo, apresentado à cidade. Por vezes, os mercadores de escravos aproveitam-nos. Há pior: em todas as cidades da Grécia, salvo Atenas, o pai de família, considerado senhor absoluto, proprietário dos seus filhos, pode a todo o tempo desfazer-se deles, mesmo quando são crescidos, e vendê-los como escravos. Terrível tentação, nos dias de extrema miséria, para os pobres diabos! Esta venda é interdita em Atenas, salvo para as moças culpadas de impudor.

Guerra, nascimento, pirataria, direito privado, tais são as principais fontes da escravatura.

Vimos que o escravo não só não faz parte da cidade, como não é mesmo uma pessoa humana: juridicamente, não é mais que um objeto de propriedade, objeto que pode ser vendido, legado, alugado, dado.

Um filosofo antigo define exatamente a sua condição, ao dizer que o escravo é uma "ferramenta animada" - uma espécie de maquina que oferecia a vantagem de compreender e executar as ordens que lhe dessem. O escravo é um instrumento que pertence a um outro homem: é uma coisa sua.

Mas a lei não lhe reconhece existência jurídica. Na verdade, nem sequer tem nome: usa o nome do lugar de onde vem ou uma espécie de alcunha. O seu casamento não é legal. Dois escravos podem coabitar, esta união pode ser tolerada pelo senhor, mas não é um casamento. O senhor pode portanto vender o homem ou a mulher separadamente. A progenitura pertence não a eles, mas ao senhor: este fá-la desaparecer, se lhe parecer bem.

Sendo, como é, objeto de propriedade, o escravo não pode exercer ele próprio direito de propriedade. Se lhe acontece reunir um pecúlio, graças a gorjetas ou a outros motivos, só por tolerância o pode conservar. Nada impede o senhor de lhe tirar.

O senhor tem igualmente todos os direitos de correção sobre o escravo. Pode encerra-lo no cárcere, bater-lhe, pôr-lhe o jugo, o que é um suplicio penosíssimo, marcá-lo a ferro em brasa, pode até - mas não em Atenas - mata-lo, o que alias não é vantajoso para o senhor.

O interesse do senhor é, na verdade, a única garantia do escravo. O senhor abstém-se de estragar a sua ferramenta. Aristóteles nota a proposito disto:

"É preciso cuidar da ferramenta, na medida que a obra convém, Logo, quando o escravo é bom instrumento de trabalho, é prudente alimentá-lo suficientemente, vesti-lo melhor, deixa-lo descansar, autoriza-lo a constituir família, deixar-lhe entrever uma recompensa suprema e raríssima - a libertação, a alforria. Platão insiste nesse interesse do senhor em tratar bem o escravo. Considera o escravo um simples, bruto,,, mas é preciso que esse "bruto", não se revolte contra a sua condição servil, que resulta, segundo o filosofo, de uma desigualdade que está na natureza das coisas. Admite pois que se deve tratar bem o "bruto", e acentua "no nosso interesse, mais do que no seu". Bela filosofia -idealista-, como se diz".

A situação do direito do escravo é pois inumana. Devemos mesmo insistir que não há condição jurídica, pois o escravo não é considerado um ser humano, mas uma simples "ferramenta", de que os cidadãos ou outros se servem.

Contudo, não pode deixar de acrescentar-se que tudo isto é um pouco teórico e que os Atenienses, nomeadamente, não se conformam, na pratica da vida quotidiana, com uma doutrina que teria feito dos escravos uma "espécie servil, destinada pela natureza a permanecer servil e a servir os homens, como ha uma espécie bovina e uma espécie cavalar, nitidamente distintas da espécie humana e que o homem domesticou.

Os Atenienses eram, nas suas relações com os escravos, muito menos rigorosos e doutrinários que os seus filósofos. Menos doutrinários e mais humanos, tratavam habitualmente os escravos como homens.

Outros povos gregos - e falemos somente dos Espartanos - eram de uma extrema ferocidade para com os escravos, os hilotas. Deve dizer-se que estes hilotas (e outros), que habitavam o mesmo cantão que os Espartanos, eram nove ou dez vezes mais numerosos que os seus senhores. Os Espartanos tinham medo dos escravos: para os manter em obediência, haviam organizado um regime de terror. Proibição aos hilotas, sob pena de morte, de sair das suas cabanas depois do por do sol. Muitas outras proibições. Além disso, para diminuir o numero deles, os Espartanos organizavam de tempos a tempos, uma vez por ano, ao que parece, caçadas ao hilota que não eram outra coisa que expedições de chacina. Os jovens, emboscados no campo, davam caça a essas bestas malditas, chamadas hilotas, e assassinavam-nas. Treino excelente, dizia-se, para os horrores da guerra. Abominações como esta puderam existir numa civilização que, ao mesmo tempo, inventava coisas admiráveis, doces e belas - é certo que para uso de um pequeno numero de privilegiados. A civilização é coisa muito complexa e é prudente não esquecer, quando se fala da civilização grega, que ela é, não obstante os seus méritos, uma sociedade escravagista. Talvez isto nos deva levar a pensar que uma civilização que não é feita para a totalidade dos homens não merece esse nome, ou esta sempre em perigo de barbárie.

Tornemos aos Atenienses. O escravo, em Atenas, veste da mesma maneira que os cidadãos, pelo menos os pobres. Nenhum sinal distingue um escravo de um homem livre. Em família, fala francamente com o senhor. Numerosas passagens de comedia mostram que os escravos não receiam dizer umas boas verdades. O escravo ateniense é admitido a numerosas cerimonias religiosas no mesmo pé que os cidadãos. Pode mesmo fazer-se iniciar nos mistérios de Eleusis, em que se ensinam aos fieis crenças e ritos que lhe permitem ganhar a imortalidade. Sobretudo, o senhor ateniense não tem já direito de vida e de morte sobre o seu próprio escravo. Se o castigar com excessiva brutalidade, o escravo pode refugiar-se em certos lugares sagrados e, sob a proteção da divindade, exigir do senhor que o venda a outrem.

Nas outras cidades da Grécia, o escravo está exposto à violência de todos os homens livres. Qualquer cidadão pode, na rua, injuriá-lo. Platão acha isso muito bem. Nada de parecido em Atenas, onde os aristocratas se mordem por não poderem espancar os seus escravos por tudo e por nada. Atenas chega mesmo a dar ao escravo garantias contra a brutalidade dos magistrados ou policias, garantias que são como que um começo de condição jurídica. Assim, em toda a Grécia, os regulamentos de policia tem por sanção a multa para os homens livres, e para os escravos (que não tem dinheiro) o chicote. Mas, fora de Atenas, a duração da flagelação está à discrição do juiz ou do carrasco. Em Atenas, pelo contrário, sendo o máximo de multa fixado para os cidadãos em cinquenta dracmas, o máximo de chicotadas e também fixado em cinquenta. Assim, a lei reconhece aqui um direito ao escravo contra os representantes do Estado. É pouco, mas é apesar de tudo o principio de uma revolução jurídica. Aliás, Atenas não foi seguida neste caminho pelas outras cidades - de tal modo o reconhecimento pela lei de um direito respeitante ao escravo parecia perigoso a uma sociedade inteiramente fundada sobre a escravatura.

Mas não tracemos de Atenas um quadro demasiado idílico. Nos subterrâneos da escravatura ateniense vegetam e morrem, nomeadamente nas minas, milhares de seres sórdidos que são alimentados exatamente quanto baste, e frequentemente menos do que isso, para que trabalhem, e cujo labor só é interrompido pelo cacete.

Os filósofos sabem bem que a maneira ateniense de tratar os escravos está cheia de inconsequências. Escutemos Aristóteles sibilar entre dentes, no seu tom de desprezo:

"A democracia acomoda-se com a anarquia dos escravos".

Mas em que trabalham afinal os escravos? Seria grave erro (Grécia "tainiana") pensar que os cidadãos cruzavam os braços ou se ocupavam dos negócios públicos, e que todo o trabalho, toda a produção, cabiam dos escravos. Cidadãos ociosos, ocupados apenas com a política, ao passo que os escravos produziriam para eles, eis um quadro que pode ser apresentado como uma espécie de ideal por certos filósofos. A realidade era diferente.

Os cidadãos atenienses tinham, na sua maior parte, um oficio: eram camponeses, comerciantes, artífices ou marinheiros. E os escravos eram empregados no nível inferior da produção - sempre a titulo de ferramentas animais.

Para os escravos, era, em primeiro lugar, a maior parte do trabalho doméstico. Quase tudo neste dependia do serviço de mulheres escravas. Esmagar ou moer o grão, o que, com as mós antigas, é um trabalho muito penoso: são, diz Homero, as mulheres que o fazem, à noite, "com os joelhos quebrados de fadiga". Cozer o pão e de um modo geral cozinhar. E também tecer o vestuário. Sob o olhar da senhora, que, alias, trabalha como elas, as escravas tecem, fiam ou bordam. Algumas dessas escravas que comparticipam da vida familiar ocupam nela, por vezes, um lugar importante. A comedia e a tragédia atestam-no. É o caso das amas e dos, pedagogos, cujo nome não tem o sentido moderno, mas simplesmente significa que eles conduziam as crianças ao professor, espécies de aias de meninos, que ensinavam os garotos a comportar-se bem. As amas e os pedagogos são, nas peças de teatro, cheios de bons conselhos e também de reprimendas. Ao mesmo tempo, cheios de afeição. Uma afeição que as crianças lhes retribuem, uma vez adultos. É o caso da afeição pitoresca que a ama do pequeno Orestes testemunha vinte anos depois de o ter alimentado e criado, quando lhe dão a noticia - alias, falsa - da morte do " tormento do seu coração". A ama tem de levar esta noticia a Egisto que, com Clitemnestra, matou o pai de Orestes, Agamemnon. Eis alguns versos do papel desta ama, numa tragédia de Esquilo:

"E eu garanto que lá aonde vou, a noticia será bem recebida. Desgraçada de mim! Todas as velhas atribulações, Todas as calamidades desta casa dos Atridas, Pude eu contê-las no meu coração. Sim, a paciência me ajudou a suportá-las.

Mas Orestes, o meu pequeno Orestes! O tormento do meu coração, O menino que eu recebi ao sair de sua mãe para lhe dar o alimento. E esses gritos, à noite, que é preciso saber compreender. Tanta e tanta labuta, e nada de nada pelo meu trabalho!

Porque tem uma pessoa que ocupar-se destes pequenos como de um, animal. Que se pode fazer mais? Ponha-se a gente no lugar deles!

E que os gritos de uma criança enfaixada não querem dizer nada. Seja a fome, ou a sede, ou a necessidade de urinar. Porque essa tenra carne das criancinhas é tirânica. Tudo é preciso adivinha-lo de antemão, e muitas vezes, isso é verdade, Me enganei eu, com prejuízo dos cueiros.

Porque eu era ao mesmo tempo ama e lavadeira, Tendo recebido Orestes de seu pai.

E agora, desgraçada, tenho de ouvir que ele morreu. E vou a esse homem, que a todos nós perdeu, e ele ficara bem contente! Pouco importa que esta ama seja uma ama de tragédia e ligada a uma casa real."

Esquilo tomou o modelo da sua personagem na realidade, apenas transposta, da vida familiar do século V.

Na verdade é preciso que um cidadão ateniense ou de uma outra cidade seja muito miserável para não ter pelo menos um escravo. O cidadão comum possui um servo e duas servas. O burgues rico tem vários, dos dois sexos. Há grandes casas que empregam umas duas dezenas, mas são raras. Notemos, aliás, que a habitação é muito simples na Grécia, e a alimentação a preparar muito sóbria, salvo nos dias de festa. Mas mesmo na cidade há sempre um bocado de terreno para cultivar e ha vestuário a fabricar. A escravatura esta pois, em larga medida, ligada ao artesanato familiar.

No campo, nas herdades, mesmo nos domínios: poucos escravos. Durante muito tempo o domínio foi cultivado coletivamente pelos membros da família, no sentido mais amplo, alguns escravos também, por certo, e ainda trabalhadores do campo que se contratam para a colheita e para a vindima e que são pobres diabos livres. Ou então, quando a terra é pequena e se dividiu, o solo e muitas vezes demasiadamente medíocre para que o pequeno camponês possa manter ao longo do ano vários escravos. Contenta-se pois com um dos dois escravos para todo o serviço. De resto, a cultura da vinha e da oliveira exige cuidados delicados. O pequeno proprietário prefere, tanto quanto possível, ser ele o próprio a explorar. Mantem pouca mão-de-obra servil: custa-lhe muito cara.

Em suma, nas regiões agrícolas da Grécia houve sempre uma proporção fraca, para não dizer insignificante, de escravos. Como os primeiros séculos da historia grega foram sobretudo agrícolas, a escravatura só tardiamente ganhou extensão.

Naturalmente, isso aconteceu com o desenvolvimento do artesanato em indústria. A indústria, qualquer que fosse a sua natureza, exigia muitos escravos. Isto na falta de maquinas ou, como diz Aristóteles, "de instrumentos que trabalham por si mesmos". A escravatura é uma "ferramenta animada", mas para executar um trabalho feito hoje por uma maquina, mesmo simples, são precisos alguns escravos. Um grupo de escravos e uma maquina que tem os homens por peças.

A indústria da construção emprega ao mesmo tempo obreiros livres e escravos. A construção de um templo não é coisa de somenos. Conservamos as contas da construção, pelo Estado ateniense, de um dos tempos da Acrópole. Vemos que, para diversos trabalhos de serventes ou de obreiros qualificados, o Estado contrata quer escravos que lhe são alugados pelos proprietários, quer homens livres. Para um mesmo trabalho o salario é igual, quer se trate de escravos ou de cidadãos, com a diferença de que o patrão dos escravos, que muitas vezes trabalha com eles, embolsa o salario, ficando, bem entendido, encarregado de os alimentar. O mesmo se passa nas industrias privadas de toda a espécie: são organizadas em oficinas ou fabricas. Algumas industrias desligaram-se da família. Há manufaturas de túnicas, sapatarias importantes, fabricas de instrumentos de musica, de leitos, e, naturalmente, de armas. A mão-de-obra servil é empregada de preferência na maior parte destas industrias.

No entanto, há que notar que, por numerosos que sejam no total os escravos industriais, nunca se agrupam em massas importantes. Nada que se assemelhe às nossas grandes fabricas. Em primeiro lugar, porque não há maquinas. Depois porque massas importantes de trabalhadores não pagos exigiriam uma vigilância difícil de organizar. Como grande casa conhecemos a fabrica de armas de um certo Cefalo, que contava cento e vinte homens! Apenas as minas tinham trabalhadores muito mais numerosos. O Estado ateniense possuía minas de prata importantes no Laurao. Admite-se que estas explorações tinham sido desenvolvidas por Pisistrato, ditador levado ao poder, depois de Sólon, pelo povo dos pequenos camponeses desapossados, e que Pisistrato quisera primeiro dar trabalho aos desempregados, ao mesmo tempo que fazia um bom negocio. Os primeiros mineiros do Laurao eram cidadãos livres. As condições de trabalho nestas minas eram abomináveis. Quando, por circunstancias diversas, o desemprego se reabsorveu (entre outras, após uma reforma agraria), o Estado ofereceu estas minas em concessão a empresários que as exploravam com escravos. Conhecemos casos de ricas personagens que, obtendo varias destas concessões, as fizeram explorar por trezentos, seiscentos, e mesmo mil mineiros.

Os escravos industriais deviam ser muito numerosos em Atenas pelos finais do século V. Quando os Espartanos invadiram a Ática e ai instalaram uma praça forte, viram chegar vinte mil escravos fugitivos. Eram, sobretudo, sem dúvida, escravos industriais. Esta fuga maciça significa naturalmente que a condição destes escravos se tornara muito dura.

A escravatura foi, no coração da sociedade antiga, uma chaga muito grave, que a ameaçava na sua própria existência.

Note-se, primeiramente, a proposito disto, que se a ausência de meios mecânicos de produção foi uma das causas da escravatura, a facilidade de arranjar mão-de-obra servil em quantidade suficiente tiveram também como consequência não ter procurado desenvolver as invenções mecânicas. Porque se dispunha de escravos, elas nunca se desenvolveram. Inversamente, porque não havia maquinas, era preciso absolutamente manter a escravatura.

Mas este circulo vicioso é ainda mais deplorável do que parece. A existência da escravatura não se limitava a tornar inútil a invenção de meios mecânicos de produção: a escravatura tinha tendência a travar as investigações cientificas que teriam permitido a criação de maquinas.

Isto equivale a dizer que a escravatura era obstáculo ao próprio desenvolvimento da ciência. É um fato, com efeito, que a ciência - mesmo que os sábios nem sempre se deem conta disso e por vezes o contestem - não se desenvolve e progride, em larga medida, senão para ser útil aos homens, senão para os tornar mais livres em relação às forças naturais e também em relação às opressões sociais. Digamos, pelo menos, que se trata de uma das principais razões de ser da ciência. Uma ciência cujas investigações e descobertas não sejam postas ao serviço do homem, da sua libertação e do seu progresso, perde a sua consciência e não tarda a perecer.

Foi o que aconteceu à ciência grega. Por falta do estimulo que lhe daria a necessidade de descobrir e desenvolver meios mecânicos de produção - que a escravatura substituía -, adormeceu, morreu durante séculos e com ela uma das forças essenciais do progresso da humanidade. Ou então encerrou-se em especulações teóricas, e o resultado no que ao progresso respeita, era o mesmo.

Haveria muitas outras reflexões a fazer sobre o mal que a escravatura fez à sociedade antiga. Notarei somente que uma sociedade tão profundamente escravagista, em que a maioria das criaturas humanas vivia sob a opressão das outras, não estava em condições de se defender contra a ameaça daquilo a que se chamou a invasão dos bárbaros. De antemão, estava vencida. Foi batida, e a civilização antiga pereceu, em parte por causa da escravatura.

Antes de terminar estas reflexões sobre a escravatura, e à altura de dizer como foi possível não ter havido por assim dizer ninguém no mundo antigo que condenasse a escravatura e lutasse contra ela. É chocante, e começa por parecer escandaloso que os maiores filósofos da antiguidade, quando falam da escravatura, longe de a condenarem, antes se ocupam em justifica-la. É o caso de Platão e de Aristóteles. Nomeadamente Aristóteles, que se esforça por demonstrar que para que haja homens livres e para que esses homens livres - os cidadãos - possam administrar as cidades, e absolutamente preciso que haja escravos, uma classe de homens votados por violência à produção dos bens necessários à vida. A escravatura é, para Aristóteles, o corolário da existência dos homens livres. A redução de uma parte dos homens à escravatura é, pois, para ele, um direito natural. Há seres que são escravos por natureza e é normal força-los a isso pela guerra: a guerra é, segundo ele, uma caça que permite adquirir homens que, nascidos para obedecer, recusam submeter-se.

Reflexões como estas, em um homem que é um dos maiores "pensadores" da antiguidade, mostram a que ponto a nossa maneira de pensar é constantemente moldada pelas condições da sociedade em que vivemos.

Mostram também a que ponto a escravatura penetrou toda a sociedade antiga, uma vez que se encontram nesta altas inteligências que justificam a escravatura e desenvolvem, a proposito dela, uma teoria que é, nada mais nada menos, um racismo. O racismo é mortal para as sociedades que o adotam: haveria muitos exemplos a citar. Limito-me ao exemplo antigo: o desprezo em que era mantida uma parte da espécie humana foi a causa essencial da degradação do humanismo antigo, da dissolução da civilização antiga.

No entanto nesta sociedade tão atingida pela chaga da escravatura - da cabeça à base - ergueram-se protestos aqui e além. Não falo das revoltas de escravos: houve-as, e foram duramente esmagadas. Produziram-se sobretudo na época romana, mais do que nos séculos gregos. Em Atenas nunca as houve, porque os costumes, a maneira de tratar os escravos, eram, na verdade, mais humanas que o direito que os regia e as teorias que justificavam a escravatura. Houve quando muito essa fuga maciça, aquando da guerra do Peloponeso, de que fiz menção. Não falo pois das revoltas, falo dos protestos erguidos pelos cidadãos livres distinguindo-se ao povo dos homens livres. Encontramo-los, apesar de tudo, e impressiona verificar que eles se encontram no seio da arte mais popular que os Gregos cultivavam - no teatro, seja na tragédia, seja na comedia.

É em Eurípedes, o terceiro dos grandes poetas trágicos, que os primeiros protestos se fazem ouvir. Em diversas tragédias, este poeta mostra mulheres livres que caem na escravatura: algumas matam-se. Porque preferem a morte à escravatura? Elas o dizem. Vão tomar-se uma coisa do senhor, ser obrigadas a suportar não só as suas carícias, mas, na promiscuidade em que vivem os escravos, as do primeiro que apareça. Sendo assim, preferem morrer. E é Eurípedes o primeiro que se recusa a fazer distinção entre a nobreza do homem livre e a baixeza de alma do escravo. Escreve: "Muitos escravos trazem este nome que os desonra, mas a sua alma é mais livre que a dos homens livres." (Isto já não é racismo, é humanismo integral).

É na comédia, onde muitos escravos aparecem, há-os que se atrevem a dizer ao senhor que não existe diferença de natureza entre o escravo e o senhor. É o caso desse escravo duma comédia do século IV, que declara: "Ainda que escravo, não sou menos homem que tu, meu senhor. Somos feitos da mesma came. Ninguém é escravo de natureza, é o destino que sujeita os corpos".

Esta máxima remonta ao século v. Foi um discípulo do sofista Górgias, Alcidamas, quem lançou este grito impressionante: "Deus criou-nos livres a todos: a natureza não faz escravos."

Assim se preparava, de muito longe e de muito baixo, a revolução cristã. Foi porque o cristianismo oferecia a salvação a todos os homens, pobres e ricos, escravos ou livres, todos iguais aos olhos de Deus, que ele venceu e minou, por dentro, na sua base esclavagista, a sociedade antiga. Foi entre os pobres, entre os escravos, e também entre as mulheres, que ele primeiro se espalhou. Contudo, esta desagregação foi lenta. O mundo antigo, tornado cristão no seu conjunto, nem por isso aboliu a escravatura. A chaga esclava­ gista — tal como o mundo antigo a cultivava — só veio a ceder à violência, à irrupção das invasões bárbaras, que suprimiram a escravatura ao mesmo tempo que o conjunto das estruturas sociais.
Mesmo então a escravatura não desapareceu completamente: reapareceu e manteve-se sob a forma atenuada da servidão.

A evolução progressiva das civilizações, o progresso da liberdade dos homens, são coisas indiscutíveis. Mas as liberdades verdadeiras, concretas, não nascem em um dia. As opressões defendem-se bem.

Quando Filipe da Macedónia sujeitou a Grécia, impôs ao povo grego uma disposição que proibia a libertação dos escravos. Sabia o que fazia.

História - Civilização Grega
Família - Mulher, 
4/10/2021 1:19:34 PM | Por André Bonnard
A condição da mulher na sociedade ateniense clássica

A democracia ateniense é uma sociedade rigorosamente, intratavelmente masculina. Sofre, em relação às mulheres, como em relação aos escravos, de uma grave ,discriminação, que, não sendo racial, não deixa de ter os efeitos deformantes de um racismo. Nem sempre fora assim. Na sociedade grega primitiva, a mulher era altamente venerada. Ao passo que o homem se entregava à caça, a mulher não soóeducava as crianças, esses "rebentos" do homem, de crescimento tão lento, como domesticava os animais selvagens, recolhia as ervas salubres, velava pelas preciosas reservas do lar. Em contato estreito com a vida da natureza, era ela que detinha os primeiros segredos que lhe eram arrancados, ela também que fixava os tabus que a tribo devia respeitar para viver. Tudo isto anteriormente mesmo à instalação do povo grego na região que tomou o seu nome. A mulher, no casal, tinha a igualdade e mesmo a primazia. Aliás, nem sequer se pode falar de casal: não havia então casamento monogâmico, mas uniões sucessivas e temporárias, nas quais era a mulher que escolhia aquele que lhe daria um filho.

Quando os Gregos invadiram, em vagas, o sul da península dos Balcãs e a costa asiática do Egeu, encontraram populações que viviam, na maior parte, sob o regime do matriarcado. O chefe de família era a mãe - a mater familias - e os parentes contavam-se segundo a linha feminina. As maiores divindades eram divindades femininas, que presidiam a fecundidade. Os Gregos adotaram duas delas, pelo menos: a Grande Mãe, ou Cibele, e Demeter, cujo nome significa Terra Mãe ou Mãe das Searas. A importância do culto destas duas deusas, na época clássica, lembra a preeminência da mulher na sociedade grega primitiva.

Os povos chamados Egeus, os Pelasgos, os Lídios, e muitos outros, conservavam ou o regime matriarcal ou usos matriarcais. Estes povos eram pacíficos: não há fortificações no palácio de Knossos. Eram agrícolas. Foram as mulheres que, inaugurando a agricultura, trouxeram a humanidade à vida sedentária, fase essencial da sua evolução. As mulheres gozavam de grande prestigio entre os povos cretenses e dominavam ainda a comunidade.

A literatura grega conserva um grande numero de lendas em que a mulher é pintada com as mais belas cores. Sobretudo a literatura mais antiga. Andromaca e Hecuba na Ilíada, Penélope na Odisseia, sem esquecer Nausica nem Arete, rainha dos Feaces, irmã do rei seu marido e soberana das suas decisões, mulheres que se encontram com os homens em pé de perfeita igualdade e que por vezes conduzem o jogo, que surgem como inspiradoras, como reguladoras da vida dos homens. Em certas regiões gregas, como a Eolida de Safo, a mulher conservou durante muito tempo este papel eminente na sociedade.

Tudo é diferente na democracia ateniense e, de um modo geral, na região jônia. É verdade que a literatura guarda a imagem de belas figuras femininas, mas os cidadãos atenienses só aplaudem Antígona e Ifigênia no teatro. Um divorcio profundo se instalou, neste ponto, entre a literatura e os costumes. Antigona está reclusa no gineceu ou no opistodomo do Partenon. Só a autorizam a sair na festa das Panateneias, onde figura no cortejo que leva a deusa Atena o seu novo véu, que ela bordou, com as suas companheiras, durante longos meses de clausura.

Entretanto, juntamente com estas imagens de mulheres ideais, a literatura começa a apresentar uma imagem deformada da mulher. Um veio de misogenia atravessa a poesia grega. Remonta longe, a Hesíodo, quase contemporâneo do poeta da Odisseia. Hesíodo, o velho camponês resmungão, conta como Zeus, para castigar os homens de terem recebido de Prometeu o fogo que lhe roubara, ordena aos deuses que se juntem para fabricar de argila húmida, de doloroso desejo, de astucia e de impudência esse belo monstro, a mulher - armadilha - precipício de paredes abruptas e sem saída. É a mulher que o homem deve todas as desgraças da sua condição de animal assustado. Hesíodo é inesgotável no tema da astucia, da garridice e da sensualidade femininas.

Não menos que o poeta Simonides de Amorgos que, num poema tristemente celebre, injuria grosseiramente as mulheres, a quem classifica pedantemente em dez categorias, usando de comparações animais e outras.

"Há a mulher que vem da porca: Tudo é desordem na sua casa, tudo rola de mistura no chiqueiro, ela própria não se lava, traz as roupas sujas e, sentada no seu próprio esterco, engorda" Há a mulher-raposa, toda manigâncias, a mulher tagarela e coscuvilheira que, filha da cadela, ladra sem parar e a quem o marido não pode fazer calar, mesmo partindo-lhe os dentes a pedrada. Há a mulher preguiçosa, tão lenta a mexer-se como a terra donde provém; e a filha da água, leviana e caprichosa, ora furiosa e arrebatada, ora meiga e risonha como o mar num dia de Verão. A mulher-burra, teimosa, glutona e debochada; a mulher-doninha, maligna e ladra. Há a mulher-egua: demasiado orgulhosa para sujeitar-se a qualquer trabalho, recusa-se a deitar às varreduras para fora de casa; vaidosa da sua beleza, banha-se duas ou três vezes por dia, inunda-se de perfumes, enfia flores nos cabelos, admirável espetáculo para os outras homens, flagelo para o seu marido. Há a mulher-macaca, de fealdade tão repelente que temos de lamentar ,o desgraçado marido que a aperta nos seus braços".

De tantas mulheres detestáveis, a ultima, que é a mulher-abelha, não nos consola.

Esta poesia, brutalmente anti-feminina, reflete a mudança profunda que, dos tempos primitivos aos séculos históricos, se realizou na condição da mulher.

O casamento monogâmico, ao instalar-se, não favoreceu a mulher. O homem é agora o senhor. A mulher nunca escolheu e a maior parte das vezes não viu sequer nunca o futuro marido. O homem casa-se apenas para a procriação de filhos legítimos. O casamento de amor não existe. O homem tem trinta anos, pelo menos; a mulher, que tem quinze, consagra a sua boneca a Artemis na véspera das bodas. O casamento é um contrato que obriga apenas uma das partes. O marido pode repudiar a mulher e ficar com os filhos, sem outra formalidade senão uma declaração perante testemunhas, com a condição de restituir o dote ou de pagar os respectivos juros. O divorcio pedido pela mulher muito raramente resulta, e só em virtude de uma decisão judicial motivada por sevicias graves ou infidelidade notória. Mas esta infidelidade esta nos costumes. O marido não se priva de concubinas nem de cortesãs. Um discurso atribuído a Demostenes declara:

"Nós temos cortesãs para o prazer, concubinas para sermos bem tratados e esposas para nos darem filhos legítimos".

A mulher legitima devia ser filha de cidadão. Foi criada, ingênua e simples, nesse gineceu que é o seu domínio é quase a sua prisão. Menor do nascimento até a morte, muda de tutor ao casar-se. Se enviúva, passa a estar sob a autoridade do filho mais velho. Não deixa o gineceu onde vigia o trabalho das escravas, no qual participa. Quando muito, sai para uma visita aos pais, ou para ir ao banho, sempre sob a apertada vigilância de uma escrava. Por vezes, em companhia do seu senhor e dono. Não vai sequer ao mercado. Não conhece os amigos do marido, não o acompanha a esses banquetes onde ele os encontra e aos quais acontece levar as concubinas. A sua única ocupação e dar ao marido os filhos que ele deseja, cria-los até a idade de sete anos, idade em que lhe são tirados. Fica com as filhas e educa-as, no gineceu, para a vida que ela própria levou, para a triste condição de reprodutora. A mulher de um cidadão ateniense não é mais que um oikurema, um "objeto (a palavra é neutra) feito para os cuidados da casa". Para o ateniense, e a primeira das suas servas.

O concubinato desenvolveu-se muito nos séculos clássicos de Atenas. É uma espécie de semi-casamento e de semi-prostituição. Neste terreno, não reconhecido mas tolerado é favorecido pelo Estado, cresceram as únicas personalidades femininas atenienses cuja lembrança chegou ate nos. A bela e brilhante Aspasia, cintilante de todas as seduções do espirito e do saber, perita, diz-se, na nova arte da sofistica, era filha de um Milesio. Pericles instalou-a na sua própria casa, depois de ter repudiado a sua nobre mulher legitima. Ai abriu salão, e o seu pseudo-marido soube, apesar de uma campanha de injurias, impô-la a sociedade ateniense. Ele que, num discurso oficial, declarava, segundo Tucidides, que o melhor que as mulheres poderiam, era fazer com que os homens falassem delas o menos possível, para bem como para mal, exibia o seu comercio com esta "hetaira", (a palavra significa simplesmente "amiga") de alto coturno. Assim, o caso de Aspesia e de outras mostra que uma mulher tinha de começar por se tornar meio cortesã para adquirir uma personalidade. Este fato é a condenação mais severa que pode fazer-se da família ateniense.

O concubinato é tolerado por Platão no seu Estado ideal, sob condição de que os homens escondam as suas "amigas" e elas não causem escândalo. E não falamos das prostitutas de baixo nível - escravas em grande parte, mas não todas - que enchiam os bordeis de Atenas e do Pireu e de que os rapazes podiam usufruir por um óbolo. Prostituição oficial nessas casas de que Solon fora o fundador, para assegurar a boa ordem e a moralidade publica. Mas, afinal, como e em que momento se operara uma revolução tão completa na condição da mulher? Como se tornaram as Andromacas e as Alcestes da lenda nas Aspesias da realidade ou nas esposas e concubinas de nomes desconhecidos, simples escravas do prazer do homem ou instrumentos de reprodução? Um fato é certo: houve um momento em que o sexo feminino sofreu a sua mais grave derrota. Senhora da comunidade familiar nos tempos matriarcais, a mulher dos séculos da Grécia clássica caiu na mais humilhante condição. Quando se produziu esta "grande derrota histórica da mulher"? Neste ponto estamos reduzidos a suposições. A mais verossímil é a de que ela esteja ligada à descoberta dos metais e ao desenvolvimento da guerra em indústria de grande rendimento.

Os homens descobrem o cobre e, ligando-o ao estanho, fabricam as primeiras armas de bronze. Depois descobrem o ferro, de que fazem armas novas, temíveis para o tempo. Na posse destas armas, fazem da guerra um negocio que vem a dar lucro imenso. Os saqueadores aqueus enchiam de ouro os túmulos dos reis de Micenas. Os Dórios destroem os restos da pacifica civilização dos Egeus. Tudo isto se passa no principio dos tempos históricos.

Com a civilização egeia desaba, ao mesmo tempo, o primado da mulher e instala-se o pretenso casamento monogâmico. E que o homem, senhor da guerra, quer poder transmitir às riquezas que ela lhe proporciona a filhos de quem tenha a certeza de ser pai. Dai o casamento monogâmico que faz da mulher legitima um instrumento de procriação, das outras um objeto de divertimento ou de prazer.

Os restos do matriarcado desapareceram, aliás, lentamente. Sem falar das lendas que os veiculam, pela poesia trágica, ate ao coração da época clássica, a mulher conservou durante muito tempo direitos que depois veio a perder e que ainda hoje nem em toda a parte recuperou. É o caso do direito de voto, que as Atenienses possuíam ainda, segundo um sábio helenista inglês, na época de Cecrops (que deve situar-se a volta do seculo X).

O cumulo é que o poeta trágico Euripedes, quando se pôs a tratar a tragédia com realismo, a pintar as mulheres, ou com os seus reais defeitos que as pressões sociais que sofriam lhes haviam inculcado, ou então, na mais verdadeira maneira nobre, tais como a lenda as apresentava, mas tão próximas, tão familiares que elas se tornavam realmente as esposas, as irmãs e as filhas dos espectadores - Euripedes provocou altos gritos em toda a Atenas, e foi acusado de misógino. Eurípedes pagou muito caro, junto dos seus contemporâneos, o não ter respeitado a imperiosa ordem de Péricles: Silêncio acerca das mulheres, silencio sobre as suas virtudes, silencio sobre a sua desgraça.  Mas ele amava-as demasiado para se calar...

Mas a desnaturação da mulher teve uma consequência social muito mais grave. Sabe-se, com efeito, que perversão se introduziu no sentimento do amor. Incapaz, no homem, de tomar por objeto um ser tão degradado socialmente como a mulher, tornou-se aquilo a que se chama "amor grego" - essa pederastia de que a literatura antiga está cheia. A literatura, a mitologia - e a vida.

A condição da mulher é, pois, na sociedade antiga, uma chaga tão grave como a escravatura. A mulher excluída da vida cívica invoca, como o escravo, uma sociedade, uma civilização que lhe restitua a igualdade dos direitos com o outro sexo, que lhe restitua a sua dignidade e a sua humanidade.

E eis também porque foi entre as mulheres - já o disse -, tanto como entre os escravos, que o cristianismo se espalhou. Mas as promessas do cristianismo primitivo - promessas de libertação da mulher e do escravo - só imperfeitamente foram cumpridas. Pelo menos neste mundo terrestre em que vivemos.

Quantas revoluções não foram precisas, quantas não o serão ainda, para retirar a mulher do abismo onde a mergulhou a sua grande derrota histórica?

Assim de degradou a democracia ateniense. Reduzida aos cidadãos maiores do sexo masculino, era tão pouco o " poder popular" que o seu nome significava, que podemos avaliar em trinta mil homens, para uma população de quatrocentos mil habitantes, o número de cidadãos que a compunham.

Tenue película de solo nutriente, que uma tempestade arrastará para o mar. Se os Gregos inventaram a democracia, foi da maneira como uma criança tem a sua primeira dentição. É preciso que estes dentes cresçam e depois é preciso que caiam. Eles tornando a nascer.

História - Civilização Grega
Temas gerais - , 
4/10/2021 12:57:40 PM | Por André Bonnard
Sólon e o caminho para a democracia

A civilização grega nasceu nessa franja da Asia onde, há alguns séculos, cresciam as cidades helênicas. Homero era jônio, Arquíloco também, Safo era eólia. Mas cito apenas alguns exemplos. Foi igualmente nas cidades da Jônia que apareceram, por essa mesma altura, os primeiros sábios e filósofos, as primeiras estatuas de mármore, alguns dos primeiros templos. Por essa mesma época, nas cidades da franja extremo-ocidental do mundo helênico, na Sicília e na Grande Grécia, outros sábios e outros filósofos, outros templos, por vezes esplendidos, como o de Posidon, em Pesto, talvez o mais belo de todos os templos gregos, são os primeiros a falar do vigor da civilização que nascia.

Este nascimento da civilização do povo grego no circuito do seu habitat tem varias explicações. Marca, entre outras, a dependência da Grécia em relação às civilizações vizinhas, a que dá o nome de "bárbaras". E que, no espaço entre a Ásia e a Sicília, na Grécia propriamente dita, nada ou quase nada, nessa altura, faz figura de civilização.

Isto é dito um pouco sumariamente. Seria preciso, pelo menos, nomear o poeta-camponês Hesíodo, não esquecer que a Esparta das origens foi a cidade da dança e do canto... E alguns outros fatos que desmentem o "nada ou quase nada" que se escreveu.

Mas eis que se aproxima o reinado de Atenas. Durante mais de três séculos, Atenas, primeiramente pequeno e simples burgo, torna-se "a escola da Grécia", torna-se a "Helade da Helade". A primeira destas expressões, que é do historiador Tucídides, deve ser tomada, no contexto onde é lida, num sentido estritamente politico: Atenas  a escola da Grécia no sentido de que formou para a democracia as cidades mais esclarecidas do seu povo. Não que ela seja a primeira democracia aparecida no mundo das cidades: havia-as, antes dela, na Jônia. Mas pela sua irradiação de grande cidade democrática que oferecia ao povo as mais belas festas, os mais belos espetáculos de tragédia e de comedia, pelo esplendor dos templos e outros monumentos que construiu para ilustrar o povo ateniense, pela maneira como os seus historiadores e os seus filósofos formularam, atacaram ou defenderam os direitos do povo, Atenas está na primeira fila. Aqui, durante séculos, palpitou o coração da Helade. Aqui a comedia disse a todos as suas verdades em palavras impertinentes. Aqui bateu o coração ardente do conflito trágico do homem e do seu destino. Aqui Sócrates e Platão, outros ainda, instalaram na rua, nas lojas e nos estádios o diálogo filosófico e, da rua, o elevaram ao céu.

O primeiro problema que a Atenas do século VIII tinha para resolver, antes de oferecer a si própria o luxo da Antigona ou do Partenon, era viver. Foram precisos cerca de dois séculos para dar a este problema primordial uma solução provisória. O resultado foi a invenção da democracia. Bela palavra, por certo, mas que engana um pouco.

Democracia significa "poder popular". Mas de que povo se trata, afinal? Em poucas linhas, repitamos o principal. Duas classes estão envolvidas na luta que se trava na Ática e em outros pontos, no século VIII: a classe dos possuidores e a classe dos desapossados. Os possuidores tem a terra dos grandes domínios; os desapossados tem poucas terras, os seus braços e o numero. A solução do problema, proposta por Solon, consistira num conjunto de medidas que assegurarão, pouco a pouco, a igualdade dos direitos civis e políticos a todos os cidadãos da cidade. A democracia nunca foi outra coisa que o poder exercido na cidade pelo povo dos "cidadãos".

Logo se vê que não se trata do conjunto dos trabalhadores, do conjunto dos produtores da cidade, mas unicamente e simplesmente dos cidadãos.

A maioria dos produtores de bens, na cidade antiga, são escravos. Aqui se mostra o limite da conquista democrática: ela não pertencera nunca aos escravos. Um grande sociólogo moderno - é muito mais que um sociólogo - disse-o claramente:

"Qualquer que fosse a forma do Estado antigo - monarquia, republica aristocrática ou republica democrática - o Estado da época da escravatura foi um Estado escravagista... O fundo das coisas não se modificava: os escravos não tinham qualquer direito e continuavam a ser uma classe oprimida".

Este sociólogo - que se chama Lenine - pôs nesta frase o limite essencial que impediu a democracia antiga de merecer o seu nome e de desabrochar nos tempos modernos em verdadeira democracia.

Feita esta reserva - grave reserva, pois ela contribuiu para o desaparecimento da civilização antiga -, não é menos verdade que no decurso dos séculos VIII e VII se abre, na maior parte das cidades gregas, primeiro na Jônia, depois em Atenas, uma multidão de conflitos sociais de violência raramente atingida, conflitos nos quais a parte mais pobre do povo dos cidadãos procura arrancar aos mais poderosos a igualdade dos direitos, fazê-la consagrar pelo direito escrito, apoderar-se enfim da parte que lhe é devida no governo da cidade. É pois aqui - os escravos continuam fora do jogo - que se esboça uma primeira figura, vaga como uma promessa a cumprir um dia ou outro, da democracia.

A cidade - sabemo-lo - foi durante muito tempo composta de duas espécies de cidadãos. Havia os nobres, descendentes dos antigos ocupantes da terra, membros dos clãs (ou gentes, diz o latim). Estes nobres, que eram ao mesmo tempo ricos, cultivavam eles próprios as suas terras, quase todos, com as pessoas das suas "casas". Mas já o domínio ancestral primitivo não pertence coletivamente ao clã. Contudo, partilhada entre os parentes, a terra é inalienável: não pode passar a outra família, nem por doação, nem por venda, nem por constituição de dote. É principio absoluto que, os bens fiquem na família.

Orgulhosos do seu sangue, só estes Eupátridas tinham acesso às magistraturas, eram "reis", juízes e generais. Falavam aos deuses em nome da cidade, ofereciam os sacrifícios necessários, únicos sacerdotes desta religião cívica e sem clero. Estes nobres, os Eupátridas, representavam umas cinquenta famílias na cidade de Atenas, ou antes, na Ática.

Mas havia também, no interior da comunidade, uma multidão de pessoas que se tinham estabelecido por sua conta, trabalhadores "livres", se esta palavra tem ainda sentido. Pequenos camponeses que apenas tinham a sua cabana e as suas ferramentas (e que ferramentas!) para arranhar o mato mal desbravado das encostas - sempre a um passo da escravização, gente que nada tinha além dos braços, famintos que morriam em massa na Primavera, "a estação", diz um poeta aristocrata e realista, "em que não há nada para comer". Artífices de todas a espécies, sem mais matéria-prima que a que lhe forneciam os Eupátridas para reparar os seus telhados, fabricar o calçado ou os escudos de couro, as armas de bronze, e também o ouro que se aplica sobre a cabeça das vitimas antes de as degolar. Demasiadamente pobres diabos para possuírem uma oficina. Só o oleiro trabalha no domicilio: tem o seu forno em cada aldeia. Por fim, todo o povo da gente do mar que, nesse século vive de expedições coloniais, começava a ganhar importância: construtores de barcos e remadores, homens de equipagem, e, não tardou muito, armadores. Toda esta plebe era enorme, mas dividida. Os interesses dos marinheiros e dos comerciantes não eram os dos artífices ou dos magros proprietários camponeses. Só contra os "grandes" que a exploravam, esta gente se punha a pensar juntos. Apenas os nobres estão armados. Estas armas ensinam a população a "pensar bem". A guerra civil é o estado normal de todas as cidades gregas nos séculos VIII e VII.

No entanto uma invenção de importância difícil de calcular modifica bruscamente - pelos finais do século VIII - a economia natural ainda meio suportável e a gravação e a invenção da moeda. A luta de classes vai exasperar-se, de duas maneiras diversas: a miséria da classe pobre piorara, mas uma parte desta classe desapossada enriquecera no comercio e reclamara a sua parcela na administração da cidade, lançar-se-á ao assalto dos privilégios aristocráticos.

Ate então - segundo os poemas homéricos - o comercio praticava-se pela troca: vinho por cereais, azeite por metal bruto e assim sucessivamente. Contava-se também em valor de bois. Pouco a pouco, tinham-se imaginado os lingotes de ouro e de prata que serviam as permutas. Mas estes lingotes não eram puncionados pelo Estado, tinham que ser pesados de cada vez. Os cambistas erguiam as suas balanças nos mercados.

A moeda propriamente dita, onde cada cidade batia a sua marca, garante do peso, foi inventada na Lidia, esse país da Ásia Menor onde o Pactolo rola as suas palhetas de ouro. Mas foram as cidades gregas da Jônia costeira que se apoderaram da invenção e a espalharam, no vasto movimento colonial que é da mesma época, pelo mundo inteiro.

Invenção proveitosa para as permutas, sem duvida. Mas proveitosa para quem? Os ricos trataram de deitar mão a esta forma de riqueza, que não era perecível. Na economia natural, com efeito, os grandes proprietários rurais não tinham muitas possibilidades de acumular riqueza. Não se entesoura trigo, azeite ou vinho. Apenas aumentavam um pouco o luxo, comprando no Oriente coxins, tapetes ou armas cinzeladas. Mas, nesta economia primitiva, o grande proprietário empregava antes o supérfluo em ampliar a sua clientela. Nos maus anos, o pequeno cultivador "livre", o próprio artífice, podiam dirigir-se ao senhor da vizinhança. Este punha gloria em ser para o pobre "uma cidadela ou uma muralha", como dizia a poesia épica. O pequeno trabalhador era pois, ainda, de algum modo, protegido pelo grande.

Diferentemente se passaram as coisas com o aparecimento da moeda: ela permitiu capitalizar o excedente da produção convertida em dinheiro. E mais: o rico aprende a fazer frutificar o seu dinheiro, pretende que esse dinheiro tenha "filhos" (é assim que ele chama aos juros). A arrogância hereditária reforça-se com a rapacidade. Enquanto antigamente acontecia ao nobre dar um excedente que não podia consumir, agora empresta, e o juro que exije é muito alto, porque lhe agrada aplicar uma parte do seu capital em empresas marítimas onde o rico é muito grande. Empresta e especula. O capital amontoado não é mais que uma aplicação de fundos com vista a aquisição de novas riquezas.

Assim nasce o que Aristóteles chama a "crematistica", o que significa a arte do dinheiro - a aptidão para acumular e fazer produzir dinheiro. Vê-se que esta "crematistica" não está longe de ser uma primeira forma de capitalismo.

A invenção da moeda teve, sobre as relações das classes sociais, grandes consequências.

Em primeiro lugar, a classe inferior - sobretudo os pequenos camponeses -, obrigada a pedir emprestado em condições muito pesadas, e empurrada lentamente no caminho da servidão. Que é que o pequeno proprietário pode, com efeito, dar como penhor ao grande proprietário? A terra, que ele hipoteca. Em seguida, o trabalho. O que significa que, não tendo reembolsado o credor e uma vez a terra penhorada, nela continuava como, rendeiro, ou antes como servo, para entregar ao credor a maior parte da colheita. Exatamente (o numero fabuloso está atestado quanto a Atenas) cinco sextos. Por fim, não tem já mais que dar, como penhor, que a sua própria pessoa, o seu corpo. Quer isto dizer que podia ser vendido e caia na escravidão, a mulher e os filhos também, e mesmo antes dele e por ele, como últimos bens mobiliários que possuía.

Por aqui se vê que a existência da escravatura e a condição inferior da mulher se voltavam contra o cidadão, barrando o caminho a uma democracia verdadeira.

Tal era, em Atenas, e no exato momento em que ali ia nascer a civilização, sob as formas mais brilhantes, o horrível fruto da "crematistica". Contudo, as consequências de uma invenção não são nunca tão simples como se pensa. A invenção da moeda não foi apenas, entre as mãos dos nobres, um novo instrumento de opressão. Veio um momento em que, através de lutas longas e sangrentas, essa invenção se tornou, nas mãos do povo, um instrumento de libertação.

Não esqueçamos, com efeito, os comerciantes da classe inferior. Alguns destes plebeus enriqueceram - primeiro nos grandes portos da Asia, Esmirna, Mileto, Éfeso - depois na Grécia propriamente dita, em Corinto, em Megara, em Atenas. A nobreza desprezava-os, mas teve de começar a contar com eles. Estes filhos da fortuna puseram-se a comprar a terra aos camponeses pobres, que preferiam vende-la a pedir emprestado a um juro usurário. Comprada a terra, exigiram participação na gestão dos negócios públicos, nas magistraturas, na justiça, no comando dos exércitos - em todos os direitos ate ai ligados ao sangue azul dos nobres.

Mas como consegui-lo senão aliando-se a massa dos desapossados, senão apoiando-se na turba do povo explorado? Assim recomeçava com vigor a luta das classes, reforçada por esta aliança da ambição e da miséria contra a nobreza.

Luta dos kalokagathoi contra os kakoi, segundo o vocabulário inventado pelos nobres. Os kalokagathoi são, na boca dos aristocratas, os homens formados pela pratica dos desportos e pelo culto das Musas em todas as virtudes: são, ao mesmo tempo, belos e cheios de nobreza. Nobres no duplo sentido da palavra: de bom nascimento e prontos para todas as proezas. Os kakoi, em contrapartida, são os maus e os miseráveis - os -vilões: aqueles que pelo seu nascimento vil pertencem ao povo e são incapazes de qualquer ação que não seja vil.

Estranho vocabulário, que o desenlace da luta travada desmentira.

Não convém seguir aqui, passo a passo, as fases desta luta das classes de que resultara, num grande numero de cidades, a libertação democrática, ou pelo menos o que a sociedade antiga pode entender por tal.

Contentemo-nos com Atenas e liguemos a nossa narrativa a historia do legislador-poeta, Sólon.

Sólon era de família nobre. A gens de que ele fazia parte dera a Atenas o seu ultimo rei. Contudo, por razões que ignoramos, esta família estava, por meados do século VII, muito desprovida de dinheiro. Sólon, que cresceu nessa segunda metade do século em que se desenvolvem, com vigor súbito, em Atenas, a indústria e o comercio, decidiu refazer a sua fortuna correndo mundo a vender azeite.

Eis pois um filho-família, e poeta, que se lança no comercio dos azeites. O desejo de visitar países novos e ver civilizações antiquíssimas - a jovem Jônia e o quatro ou cinco vezes milenário Egito - contribuiu muito, sem duvida, para a decisão de Sólon de viajar para ganhar a vida. Muito mais tarde, terminada a sua obra de legislador, o velho Sólon voltara ao mar. O apetite de novos conhecimentos e a sua maneira de envelhecer, ou talvez de continuar jovem:

"Envelheço aprendendo todos os dias qualquer coisa", escreve ele então.

Sólon volta a Atenas, em pleno vigor, depois de ter refeito no comercio, como se propusera, a sua fortuna. Os seus concidadãos consideram-no um espirito livre de preconceitos e, sobretudo, homem de uma fundamental honestidade. Sólon tornara-se uma personagem popular junto das duas classes que travavam em Atenas guerra acesa. Plutarco, que o enfileira na sua galena de homens ilustres, diz dele muito bem:

"Os grandes estimavam-no porque era rico, os pobres porque era honesto".

Um dia, Sólon teve a coragem de prestar ao seu pais um grande serviço. É ainda Plutarco quem conta a historia, um pouco adornada talvez, mas que assenta em fatos autênticos, pois um poema mutilado de Sólon a eles se refere.

Por essa época, Atenas e Megara, cidades vizinhas e ambas em vias de se tornarem cidades comerciais e marítimas, disputavam a posse de Salamina. Esta ilha, ao largo de Atenas, é como que o ferrolho do seu porto. Quem a possui, possui ou bloqueia Atenas. Os Megarenses ocupavam-na, apesar de todos os esforços os Atenienses. Despeitados, estes, segundo Plutarco, fizeram uma lei que proibia, sob pena de morte, que se falasse de Salamina diante do povo.

Sólon imaginou fazer-se passar por louco. Divulgada a sua loucura, apresenta-se ele um dia na praça publica, sobe a pedra das proclamações e recita ao povo reunido um poema de sua composição sobre a beleza de Salamina e sobre a vergonha que era, para Atenas, tê-la cedido aos Megarenses. Escutam-no (é um louco!), depois deixam-se arrastar pelo que diz. O povo marcha sobre Salamina, Sólon dirige as operações. A ilha é reconquistada à gente de Megara.

Conservamos alguns versos isolados deste poema. Sólon diz:

"Se nós, os Atenienses, cedemos Salamina, quero que passem a chamar-me cidadão de Folegandro ou de Sicino (pequenas aldeolas do Egeu) e não de Atenas. Porque não tarda que se diga: Ali esta um Ateniense, um dos que abandonaram Salamina!... Vamos pois a Salamina! Combatamos pela ilha encantadora e expulsemos a vergonha para longe de nos!"

Este tom, ao mesmo tempo popular e ousado, agradou ao povo. Mesmo que a historia tenha sido alindada, é evidente que foi Sólon o instigador da reconquista de Salamina.

Foi este acontecimento, com a estima que Solon inspirava, que levou a escolhê-lo como arbitro e legislador no conflito que dividia os Atenienses. Examinemos uma vez mais os campos em presença e acrescentemos alguns dados complementares.

Os grandes proprietários nobres acabaram por apoderar-se de toda a terra da planície ática ou pouco menos. Estes vastos domínios são por eles cultivados com os seus parentes, à sua clientela, os seus escravos. A cevada e o trigo são raros. Pouco importa: mandam-nos vir das margens do mar Negro. A vinha, a figueira, a oliveira abundam: em parte, para exportação. Estes vastos domínios ampliam-se graças a liquidação dos pequenos.

O proprietário - o Eupátrida - vela de longe pela sua exploração, a maneira de um senhor feudal. Com o tempo, ganhou o habito de viver na cidade. O seu grande negocio e agora a politica. Governa, faz a guerra. Julga, mas segundo um direito apenas em parte escrito e que só ele, com os seus pares, está em condições de interpretar.

Em face destes nobres, está o povo, e em primeiro lugar o proletariado camponês. Alguns proprietários livres, cada vez menos numerosos: rendeiros, salvo na encosta da montanha, onde o solo e tão mau que não se pode tirar dele grande coisa. Rendeiros, servos - camponeses roídos pelos empréstimos. Seja boa ou má a colheita, cinco sextos vão sempre para o senhor, o restante sexto para os desgraçados "sexteiros". Taxa que provoca os gritos de raiva que se ouvem durante um longo século em todos os campos áticos! Acrescentemos que os objetos fabricados, as ferramentas, que o camponês, amarrado à sua condição esmagadora, tem ainda que comprar na cidade ou mandar fabricar pelo artífice, são muito caros relativamente, ao passo que os produtos agrícolas que ele oferece vão por vil preço, tão grande é a quantidade que o proprietário nobre pode por a venda.

Amanha, todos estes pequenos proprietários livres serão escravos. Suponhamos que um deles vende a sua terra hipotecada: ei-lo trabalhador rural, servente desempregado (não há trabalho para um homem livre: há escravos de mais). Suponhamos que, rendeiro, não pode desobrigar-se dos seus 5/6: outra vez escravo. Suponhamos que, nestas mesmas condições, procura exilar-se abandonando a sua propriedade ilusória: ai o temos procurado como escravo fugitivo... A escravização espreita-o em todas as saídas da sua vida.

Na verdade, representa-se um drama terrível na Ática do século VII. Na periferia dos grandes domínios, a terra eriça-se de marcos por todo o lado. Estes marcos assinalam o direito de posse do Eupátrida sobre a terra hipotecada: são eles que indicam a hipoteca e o valor devido. Estes marcos significam que os nobres estão em vias de fazer do povo ateniense um povo de escravos. A terra é o poder para alguns. Os outros, repelidos da comunidade dos cidadãos. Vão os Eupátridas reduzir o povo ateniense a um povo de hilotas? Tornar-se-á Atenas uma outra Esparta?

Como parece estarmos longe da democracia! No entanto, a salvação está perto.

A geografia fez da Atica um pais de marinheiros e de comerciantes. Olhemos esse longo triangulo, cujos lados maiores - 180 quilômetros - são banhados pelo mar. Olhemos essas calhetas e essas costas, ora baixas para as barcas ligeiras, ora portos de água profunda para os barcos mais modernos. Olhemos, da Ática à Ásia, essa ponte de ilhas que atrai e tranquiliza o marinheiro.

Sobre a costa da Ática, assim como em Atenas, aos pés da Acrópole e, depois, no Pireu, fervilha uma população de pescadores, de marinheiros, de patrões de barcas, de artífices, de comerciantes. Alguns, esfarrapados. Outros, enriquecem, fogem pouco a pouco à dependência da aristocracia rural. Muitos viajam. A maior parte desembaraça-se como pode.

Os nobres tem necessidade destes marinheiros e destes comerciantes para escoar os seus produtos no estrangeiro. Tem também necessidade dos artífices oleiros, cujo bairro cresce num arrabalde da cidade, para fabricar os grandes jarros vermelhos e negros nos quais transportam os seus vinhos e sobretudo o seu precioso azeite, esses belos vasos áticos que se encontram, desde o tempo de Sólon, tanto no Egito como nas contas do mar Negro, na Sicília como em Cumes, ate a Etruria.

Os nobres poderiam acabar por reduzir à servidão a classe dos camponeses pobres, mas são obrigados a tratar com os artífices e os mercadores, pobres ou ricos.

Os camponeses pobres formam a parte aparentemente mais desarmada da plebe. É também a mais revoltada, a que constitui a massa mais numerosa. Alguns deles reclamam pura e simplesmente, referindo-se a um antigo uso, a redistribuição igual de toda a terra da Ática. Esta massa será, no momento em que as reformas só puderem seguir adiante por meio da violência, utilizada por Pisistrato, o tirano detestado, mas, pela logica da evolução histórica, autentico continuador de Sólon - o realizador destas reformas.

Quanto aos mercadores, são eles a parte mais moderada, a mais hábil do povo ateniense, a mais disposta a negociar, a mais decidida também a ingerir-se nos negócios da cidade. Estão fartos de ter que aceitar, na vida privada como na vida publica, as decisões tomadas de fora pelos Eupátridas. São cidadãos: não querem que o seu direito de cidade continue vazio de qualquer realidade.

O que assegurou a vitória da classe inferior na sua luta secular contra a nobreza rural, foi, no fim de contas, a aliança das duas partes da plebe, a união dos artífices e dos mercadores com os pequenos camponeses e os trabalhadores agrícolas.

Passemos sobre os tumultos sangrentos que impuseram um compromisso. Este compromisso consistiu em designar, entre as duas partes - a nobreza das gentes e o povo -, um arbitro encarregado de proceder a uma vasta reforma econômica, social e politica. O arbitro escolhido, o homem em quem Atenas, em perigo mortal, depositou a sua confiança - os oprimidos, porque com a sua primeira reforma - a mais indispensável -, aquela que salvou da servidão total a classe semi-serva dos camponeses, foi a libertação sem reservas das terras e das pessoas. Libertação da terra: todos os marcos que assinalavam nos campos a escravização da terra caída entre as mãos dos Eupátridas foram arrancados do solo e a terra restituída aos devedores, que se haviam tornado rendeiros ou escravos. Libertação das pessoas: esses devedores insolventes recuperam a liberdade ao mesmo tempo que a terra, e a sua divida é diferida. Mais ainda: aqueles que tinham sido vendidos como escravos para o estrangeiro foram procurados, comprados novamente e libertos pelo Estado, instalados por fim nos seus domínios.

Esta libertação da terra e do homem é celebrada por Sólon em versos que conservamos ainda e onde se acentuam, ao mesmo tempo, o seu profundo amor à terra e o seu profundo amor aos homens. Invoca a própria Terra, que é a mais antiga das divindades, e roga-lhe que testemunhe em seu favor no tribunal da historia. E declara:

"Ela me dará testemunho, perante o tribunal do tempo, a grande mãe dos Olímpios, a Terra negra, a quem eu arranquei os marcos, enterrados em todos os lugares. E trouxe a Atenas, a sua pátria, fundada pelos deuses, muitas pessoas vendidas como escravos, mais ou menos justamente, e outras que se tinham exilado sob o peso de uma divida e que não falavam já a língua atica, de tal modo haviam errado pelo mundo, e outras ainda que, no meio de nós, sofriam uma servidão indigna e tremiam diante do humor dos seus senhores. A todos eu dei a liberbdade".

São versos magníficos em que se exprime, no mais antigo dos poetas atenienses, o amor que dedicava ao seu povo oprimido, que ele soube restituir à liberdade e à justa posse dos bens.

Dir-se-á que tal medida — a anulação das dívidas — espoliava os ricos. Sem dúvida alguma. Mas esses ricos tinham abusado do seu poder: Sólon atreveu-se a fazê-los restituir o que tinham tomado. Esta medida ousada, que liquidava o passado e salvava o povo ateniense, foi completada por Sólon com uma lei que impedia o retorno de uma tal situação no futuro. Suprimiu a antiga escravização por dívidas: daí para o futuro, foi proibido emprestar tomando como penhor as pessoas. Esta lei salvaguardava a liberdade individual: foi a pedra angular do direito ático. Uma tal lei não existiu nunca em nenhuma outra cidade grega.

Deixemos de lado muitas outras reformas económicas e sociais, ainda que importantes. Por exemplo, a reforma monetária, que Sólon levou a bom termo. Muitas dessas reformas punham em xeque o poder até então sem contrapartida das gentes. Outra: a obrigação imposta por Sólon de dividir o patrimônio nobre pelos herdeiros, por morte do pai. Esta medida enfraquecia a velha nobreza rural. Do mesmo modo, a autorização, na ausência de filho legítimo, para instituir por testamento um herdeiro escolhido fora da gens. Era um golpe directo no velho direito familiar. Finalmente, o direito, para qualquer cidadão, de comprar terra dita nobre. Tudo isto reforçava o povo em pleno crescimento, fragmentava a propriedade, multiplicava os proprietários de pequenos domínios.

Outras leis libertam ousadamente o indivíduo, limitando o poder paterno, tanto quanto era possível na época. Proibir ao pai o direito de expor o filho recém-nascido, nem pensar. Mas a partir do momento em que o pai apresentava à cidade essa criança, perdia sobre ela o direito de vida e de morte. Não lhe era permitido vender a filha, salvo por notória má conduta, expulsar o filho, a não ser por motivos graves. O filho maior tornava-se, enfim, do ponto de vista do Estado, igual de seu pai.

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O que caracteriza a reforma e a acção de Sólon, uma vez cumprida a parte da tarefa que exigia ousadia e rudeza, é a equidade, é a moderação que a animam. Sólon ousou, com efeito, na crise revolucionária que abrira, travar combate em duas frentes. Nada mais difícil, em plena luta, que esta política de "justiça". (A palavra surge constantemente na obra poética de Sólon.)

Assim, Sólon, numa passagem conservada da sua mutilada obra, mostra-se cobrindo com o escudo os dois partidos, ora um, ora outro. Cobrira os nobres contra as reivindicações extremistas do povo montanhês. Sólon alude a isso quando escreve:

"Fiquei de pé cobrindo com o meu sólido escudo os dois partidos, suces­sivamente, e não permiti nem a um nem a outro vencer injustamente." E ainda:

"Redigi leis iguais para o pobre e para o rico, fixando para cada uma recta justiça. Se outro que não eu tivesse tomado o aguilhão, um homem perverso e ávido, não teria podido deter o povo. E se eu tivesse querido fazer então o que desejavam os inimigos do povo... a cidade ter-se-ia tornado viúva de muitos homens. Eis porque, usando de todo o meu vigor, para todos os lados me voltei, como um lobo assaltado por uma matilha de cães".

Uma outra imagem exprime ainda a coragem de Sólon — a bela coragem da sua moderação, resistindo às exigências extremas dos dois campos: "Ergui-me entre eles, como uma pedra de demarcação entre dois campos contestados." (Ainda aqui é o tom popular que define a poesia soloniana.) Tal é a importância e tal é o espírito da reforma económica e social deste grande Ateniense.

*

A sua reforma política não é menos importante. Inspira-se no mesmo espírito de ousadia e de moderação que, em poucas gerações, dará o seu fruto necessário: a democracia.

Na outorgação das funções públicas, Sólon absteve-se de passar, de um salto, de um sistema em que essas funções eram privilégio exclusivo dos nobres para um regime democrático que as teria aberto a todos os cidadãos. Isto, nem Sólon nem ninguém, na Atenas do princípio do século VI, podia fazê-lo. A relação das forças, na luta das classes, opunha-se-lhe absolutamente.

Sólon fez isto: retirou inteiramente ao nascimento nobre o privilégio de magistratura, de direito político. O nascimento deixou de decidir fosse do que fosse, a palavra cabia à riqueza.

Sólon dividiu o povo em quatro classes, segundo essa situação. Os cidadãos da classe mais rica tinham direito às magistraturas mais importantes: suportavam também os encargos mais pesados. Nas classes seguintes, ao mesmo tempo que diminuíam os direitos, diminuíam também os encargos, tanto em impostos como em serviço militar. Deste modo, na quarta e última classe, os cidadãos não pagavam qualquer imposto e só excepcionalmente eram recrutados, como remadores ou nas tropas de armamento ligeiro.

Como se vê, com a constituição de Sólon, estamos numa espécie de democracia censitária. O mais importante é ter ele repelido o direito do nascimento nobre, porque o nascimento não se adquire. Este direito passava à riqueza, e a riqueza adquire-se, pelo menos teoricamente.
De resto, um tal sistema, fundado sobre a situação da riqueza, nunca é senão um patamar no caminho ascendente da conquista democrática. As distin­ções assentes, as barreiras erguidas ante o impulso das forças populares, desaparecerão prontamente. Mais cerca de um século de lutas, mas muito menos sangrentas que as anteriores a Sólon, e os direitos políticos pertencerão igualmente a todos os cidadãos livres. Sólon abriu pois, com um misto de extrema ousadia e de rara prudência, o caminho da democracia.

Aliás, existe já, no sistema soloniano. um direito que pertence a todos, e que é o mais importante. Todos os cidadãos, da primeira à última classe, têm direito de voto na Assembleia do povo. Trata-se de um facto capital: na Assembleia, ricos e pobres são iguais. Qualquer um podia votar, qualquer um podia tomar a palavra.

É certo que na época de Sólon a competência da Assembleia era limitada. Mas, pelo menos, Sólon reconhecia o princípio da igualdade dos direitos dos cidadãos a votar e a falar nela. Com o tempo, a Assembleia do povo tornar-se-á o órgão essencial da vida pública de Atenas. Os pobres — sempre os mais numerosos — não terão qualquer dificuldade em fazer prevalecer a sua opinião sobre a dos ricos. Os limites censitários apagar-se-ão, não sem algumas crises ou reformas novas, e Atenas será a cidade mais democrática do mundo grego. Este desenvolvimento estava em germe na constituição de Sólon.

Uma outra instituição, além da Assembleia, instituição muito importante na vida pública ateniense, estava, desde essa época, aberta por Sólon ao povo inteiro. Era o tribunal dos Heliastas, vasto tribunal popular — que será com­posto mais tarde de seis mil juizes, divididos em dez secções. Qualquer cidadão podia fazer parte dele, Sólon assim o decidira. Alargou a sua juris­dição, dando-lhe a jurisdição do recurso contra as sentenças dadas pelos magistrados. Mais tarde, os Heliastas julgarão praticamente todo o direito público e privado.

Vemos pois que a partir da intervenção de Sólon, o povo, com assento na Assembleia e no tribunal dos Heliastas, estava no caminho de estabelecer a sua soberania. Ora a soberania do povo não é outra coisa que a democracia. Como Aristóteles o diz: "Quando o povo é senhor do sufrágio, é senhor do governo." Já nestes princípios do século VI vemos prefigurar-se essa imagem do povo que, sob o impulso dos seus oradores, discutia e decidia de tudo, dos tratados de paz, da construção do Parténon e dos Propileus, e do resto — esse povo de quem Fénelon nos diz, num resumo eloquente: "Tudo na Grécia (deveria dizer-se: em Atenas) dependia do povo e o povo dependia da palavra".

*

Se procurarmos, em conclusão, qual a fonte mais profunda, qual o fogo que em si permitiu a Sólon criar uma obra tão bela, creio que se dirá: Sólon amava o seu povo e Sólon amava a justiça, acreditava em ambos como se crê em Deus. O seu Deus não tinha só por atributo o poder, tinha também a justiça.

Eu disse: Sólon amava o seu povo. Lembremos a passagem em que ele fala da sua reforma. Vejamo-lo quando recebe os exilados no seu regresso a Atenas: "estes homens que não falavam já a língua ática, de tal modo tinham errado por todos os lugares" — há lágrimas de amor nestes versos. E o verso seguinte contém, pelo menos implicitamente, um dos raros protestos e talvez o mais comovedor que foi arrancado a um Grego contra a desumanidade da escravatura: "E àqueles que, no meio de nós, sofriam uma escravização indigna e que tremiam diante do humor do seu senhor, restituí eu a liberdade".

É o amor que dedica ao seu povo que lhe arranca, aqui, como contra vontade, um movimento de revolta contra uma condição que rebaixa um homem até o fazer tremer diante dos caprichos de um outro homem. Era assim que Sólon amava o seu povo.

Mas como amava a justiça! A justiça é o próprio rosto de Deus em que ele crê. Sólon pôs os ricos à cabeça do Estado. Mas que responsabilidade sobre os seus ombros! Espera deles a prática da justiça. E é uma violenta cólera, uma santa cólera que empolga o poeta, numa espécie de panfleto que ele escreve contra os maus ricos que corrompem a ordem desejada pelos deuses e pelo legislador.

Assim (resumo este fragmento poético), aqueles a quem ele chama a conduzir o povo, os ricos, cedem à injustiça e servem-se do seu poder para roubar! Eles, que deveriam ser os guardiões da religião, roubam até os santuá­rios! Eles, cuja conduta deveria ser obediência às leis da Justiça, ofendem-na pelo seu apetite ilimitado do lucro! A Justiça sofre primeiro o ultraje em silêncio, mas conserva no seu coração a lembrança da ofensa, prepara o castigo... O panfleto cresce. Sobre toda a cidade estende-se a úlcera implacá­vel da injustiça dos ricos. A guerra civil desperta, a juventude perece, aos milhares os pobres retomam o caminho do exílio, carregados de peias, votados à escravatura. Finalmente, o flagelo público que os ricos desencadearam volta-se contra eles. Sólon personifica-o: é o Génio Mau, a que a riqueza iníqua deu nascimento. Nenhum obstáculo o detém na sua obra de justiça vingadora. Salta por cima dos muros das vilas onde os ricos se refugiaram. Sabe procurá-los e encontrá-los até nos recantos dos quartos onde se escondem.

Tal é, segundo o poeta, a catástrofe da cidade onde os ricos praticam a iniquidade. Os últimos versos celebram com fervor a beleza da lei que o legislador tentou instalar na sua pátria:

"A beleza da lei faz reinar por toda a parte a ordem e a harmonia." E mais adiante: "Graças a ela, tudo é paz entre os homens, tudo é Sabedoria!" Vemos por estes fragmentos que Sólon é um político, um grande legislador, porque é acima de tudo uma consciência, um homem em quem se juntam a claridade da razão e o calor do coração. Um poeta, um "entusiasta", diziam os Gregos. A justiça habita nele. Foi ela que Sólon quis fazer reinar na democracia nascente de Atenas.

Mas é esta democracia, verdadeiramente, um povo soberano? Chocamos agora com as graves limitações que ela traz em si, e em primeiro lugar a escravatura.

História - Civilização Grega
Temas gerais - , 
4/3/2021 1:40:39 PM | Por André Bonnard
Grécia, aurora da civilização ocidental

Que é afinal a civilização? A palavra civilizado é, em grego, a mesma que significa domado, cultivado, enxertado. O homem civilizado é o homem enxertado, aquele que a si mesmo se enxerta para produzir frutos mais nutritivos e saborosos. A civilização é o conjunto das invenções e descobertas feitas para proteger a vida do homem, para a tornar mais independente em relação às forças naturais, para a consolidar num universo físico cujas leis (que no estado de ignorância da vida primitiva forçosamente o ferem), mais bem conhecidas, se tornem instrumentos da sua contra-ofensiva. Proteger a vida humana, sim, mas também torná-la mais bela, aumentar a alegria de viver numa sociedade onde se estabelecem lentamente, entre os homens, relações mais equitativas. Finalmente, fazê-la desabrochar na prática das artes que as coletividades apreciam em comum, aumentar a humanidade do homem nesse mundo ao mesmo tempo real e imaginário que é o mundo da cultura, mundo refeito e repensado da ciência e das artes, por sua vez fonte inesgotável de criações novas.

Múltiplas invenções-descobertas-conquistas. Eis algumas delas, à maneira de índice ainda nebuloso.

Vindos dos Bálcãs, em vagas sucessivas, os povos helênicos faziam a vida dos povos nômades. Tendas, armas de madeira, de cobre depois, caça e cabras. O cavalo estava já domesticado, rápido entre todos os animais conquistados pelo homem. Este povo selvagem vivia principalmente da caça. Fixado na península que tomou o nome de Hélade, deitou-se a cultivar rijamente o solo ingrato. Será para sempre mais camponês que citadino: é um povo de aldeões. A própria Atenas, na época da sua grandeza, não é ainda, e em primeiro lugar, sendo o mercado da campina atica. Os Gregos cultivam desde então os cereais, a oliveira, a figueira, a vinha. Rapidamente aprendem a trocar o azeite e o vinho pelos tecidos que os seus vizinhos asiáticos fabricavam. Ou aventuram-se a ganhar o mar para oferecer os seus produtos, em belas cerâmicas pintadas, aos indígenas do norte do mar Negro, em troca da cevada e do frumento indispensáveis à população cada vez maior das cidades que nasciam. Pelo desenvolvimento de uma agricultura especializada, que substituía a caça primitiva e que o levava a trocar o seu regime alimentar cárneo por um regime mais vegetariano, conforme com o clima do seu novo habitat, pelo desenvolvimento das sues relações comerciais, o povo grego conquistou maior bem-estar, ao mesmo tempo que entrou em contato, ele, povo ainda mal delineado, com povos de mais antiga civilização.

Mas, para isso, teve de fazer ousadamente, medrosamente, inabilmente, uma outra conquista: a do mar. O povo grego chegou à sua terra por caminhos terrestres e pelo norte. Errara durante tanto tempo pelas estepes da Ásia e da Rússia, caçando ou empurrando diante de si o seu magro gado, que esquecera o nome da extensão marinha, designada por palavras semelhantes em que quase todos os povos indo-europeus, seus parentes. A essa planura liquida que o latim e as línguas que dele derivam chamam mare, mer, etc., as línguas germânicas Meer, See, sea, etc., e as línguas eslavas more, morze, etc., não tinham já os Gregos nome para lhe dar. Foram obrigados a ir buscar uma palavra às populações que encontravam no solo que ia ser a sua terra: e disseram thalassa. Foi com estas populações, bem mais civilizadas do que eles eram, que aprenderam a construir barcos. A principio cheios de terror diante do elemento pérfido, arriscaram-se, apertados pela, dura pobreza... a fome amarga... e a necessidade do ventre vazio, dizem os velhos poetas, a enfrentar o reino das vagas e dos ventos, a conduzir os barcos carregados de mercadorias por sobre as profundezas abissais. Neste ofício se tornam, não sem trabalho e dano, o mais empreendedor povo marinheiro da antiguidade, destronando os próprios Fenícios.

Povo de camponeses, povo de marinheiros, tais são os primeiros passos da civilização dos Gregos.

Depressa vieram outras conquistas. O povo grego ganha o domínio da expressão poética; explora, arroteia os campos de imensos domínios que se tornarão aquilo a que chamamos gêneros literários. A língua grega não tem, ao principio, nome para isto: contenta-se com florir em obras-primas, numa exuberância sem par. Língua tão viva como a erva e a fonte, flexível na expressão dos cambiantes mais sutis do pensamento, em mostrar a luz do dia os mais secretos movimentos do coração. Musica forte e suave, órgão poderoso, flauta aguda, rústico pífaro.

Todos os povos primitivos tem canções e usam a linguagem ritmada para acompanhar e aliviar certos movimentos do trabalho. Os poetas gregos desenvolvem com uma grande fecundidade os ritmos, a maior parte dos quais lhes vem dum longínquo passado popular. Manejam primeiro o grande verso épico que lhes serve para celebrar, em cadencias nobres mas variáveis, as proezas dos heróis do passado. Imensos poemas, primeiro meio improvisados, - se transmitem de geração em geração. São recitados, com um acompanhamento muito simples de lira, e, pelo prazer compartilhado que neles encontram os assistentes, contribuem para formar a consciência das coletividades nas virtudes empreendedoras e corajosas. Estes poemas flutuantes fixam-se com o tempo: vão rematar nas duas obras mestras que nós lemos ainda, a Ilíada e a Odisséia, bíblias do povo grego.

Outros poetas, unindo mais estreitamente a poesia a musica, ao canto e a dança, e colhendo a sua inspiração na vida quotidiana dos indivíduos e das cidades, troçando e exaltando, encantando e instruindo, inventam o lirismo, ora satírico, ora amoroso, ora cívico. Outros ainda inventam o teatro, tragédia e comedia, ao mesmo tempo imitação e criarão nova da vida. Os poetas dramáticos são os educadores do povo grego.

Ao mesmo tempo que inventavam com as palavras encantadas da língua, com a memória do passado, com os trabalhos e as esperanças do presente, com os sonhos e as miragens da imaginação, os três grandes gêneros poéticos de todos os tempos - epopéia, lirismo e drama -, ao mesmo tempo que isto faziam, enfrentavam com o cinzel, depois da madeira, as mais esplendidas matérias que existem para esculpir, o calcário duro e o mármore, ou fundiam o bronze, e tiravam de uns e do outro a representação do corpo humano, esse corpo de uma beleza sem igual que é também o corpo dos deuses. Porque a estes deuses que povoam o mundo, mistério maligno, era preciso conquistá-los a todo o custo, era preciso amansá-los. Dar-lhes a bela e visível forma do homem e da mulher, era a melhor maneira de os humanizar, de os civilizar. A estes deuses levantam templos esplendidos, nos quais encerram a sua imagem, mas é ao ar livre que os festejam. Estas gloriosas casas votadas a divindade falam também da grandeza das cidades que as constroem. Se, durante séculos, e os maiores, a escultura e a arquitetura dos Gregos são todas consagradas aos habitantes do céu, estas artes, que os Gregos tomam dos povos vizinhos, nem por isso afirmam menos o poder dos homens de fazer beleza com a pedra esculpida ou ajuntada, ou com o metal.

E depois - e sempre ao mesmo tempo, o tempo do grande impulso que o leva, nos séculos VII e VI antes da nossa era, a conquista de todos os bens - o povo grego tenta desenredar as primeiras leis da ciência. Procura compreender o mundo em que vive, dizer de que ele feito, como se fez, procura conhecer-lhe as leis, que quer vergar ao seu próprio uso. Inventa as matemáticas, a astronomia, lança os fundamentos da física, da medicina.

E para quem são todas estas invenções e descobertas? Para os outros homens, para interesse e prazer deles. Mas não ainda para todos os homens. Em primeiro lugar, para os homens da cidade, termo pelo qual devemos entender a comunidade dos cidadãos que habitam um mesmo cantão (campo e povoação) da terra grega. Neste ainda apertado quadro, os Gregos procuram pelo menos construir uma sociedade que se quer livre e que dela fazem parte a igualdade dos direitos políticos. Esta sociedade é, nas cidades gregas mais avançadas, fundada sobre o principio da soberania popular. Os Gregos conquistaram pois uma primeira forma - ainda muito imperfeita - de democracia.

Tais são as mais importantes conquistas cujo conjunto define a civilização grega. Todas elas tendem ao mesmo fim: aumentar o poder do homem sobre a natureza, aumentar a sua própria humanidade. Eis porque tantas vezes se chama a civilização grega um humanismo. Há motivo para o fazer. Foi ao homem e a vida humana que o povo grego se esforçou por tornar melhores. Como este desígnio é ainda o nosso, o exemplo dos Gregos, que o deixaram inacabado, o seu fracasso até, devem ser meditados pelos homens de hoje.

Desta longa caminhada do povo grego, da selvajaria à civilização, enumera o poeta Esquilo, na sua tragédia de Prometeu, algumas jornadas. É certo que ele não sabe nem o porquê nem o como desta acessão dos seus antepassados incultos e miseráveis ao primeiro patamar do conhecimento que os libertou. Partilha ainda com eles algumas das suas superstições; crê nos oráculos, como um selvagem nos feiticeiros. E a Prometeu, ao deus a quem chama Filantropo, que ele atribui todas as invenções que o labor humano arrancou à natureza.

No entanto, votando o Benfeitor dos Homens, e os homens com ele, ao ódio de Zeus, tirano- do céu e da terra, que se propunha aniquilar sem razão a orgulhosa espécie humana, se Prometeu disso o não impedisse, ele faz do Amigo dos Homens, atuante e pensante, a audaciosa testemunha da energia da razão humana na luta que nós travamos desde o fundo das idades contra a miséria e a nudez da nossa condição.

Fala Prometeu:

"Ouvide as misérias dos mortais, sabei o que eu fiz por essas crianças débeis que conduzi à razão, à força do pensamento... Antigamente, os homens tinham olhos para não ver, eram surdos à voz das coisas, e, semelhantes às formas dos sonhos, agitavam ao acaso à duração da sua existência na desordem do mundo.

Eles não construíam casas ao sol, desconheciam o tijolo, as traves e as tábuas, e, como formigas, açoitavam-se no solo, metiam-se na escuridão das cavernas.

Não previam o retorno das estações, pois não sabiam ler no céu os sinais do Inverno, da Primavera florida, do Estio que amadurece os frutos. Faziam tudo sem nada conhecerem.

Até ao momento em que eu inventei para eles a ciência difícil do levantar e do por dos astros. Depois veio a dos números, rainha de todo o conhecimento. É a das letras que se juntam, memória do universo, obreira do labor humano, mãe das artes.

Depois, para os aliviar dos trabalhos mais pesados, ensinei-os a ligar ao arnês os animais selvagens. O boi vergou a cerviz. O cavalo tornou-se dócil ao cavaleiro. Puxou o carro. Foi o orgulho dos reis. E, para correrem os mares, dei-lhes a barca de asas de pano...

E ainda outras maravilhas. Contra a doença, os homens nada tinham, a morte apenas. Misturei filtros, preparei bálsamos: a vida deles extinguia-se, ela se tornou firme e continuou... Finalmente, abri para eles os tesouros da terra: tiveram o ouro e a prata, tiveram o bronze, tiveram o ferro... Tiveram a industria e as artes..."

Entremos na Grécia com o povo grego

Este povo — que a si mesmo se chamava os Helenos — fazia parte, pela língua (não nos arrisquemos a falar da raça), da grande família dos povos a que chamamos indo-europeus. A língua grega, com efeito, pelo seu vocabulário, pelas suas conjugações e declinações, pela sua sintaxe, é próxima das línguas faladas antigamente e hoje na índia e da maior parte das que se falam actualmente na Europa (excepções: basco, húngaro, finlandês, turco). O evi­dente parentesco dum grande número de palavras de todas estas línguas basta para o provar. Assim, père diz-se em grego e em latim pater, em alemão Vater, em inglês father. Frère: em latim frater (e phrater aplica-se em grego aos membros de uma família numerosa), em alemão Bruder, em inglês brother, brat em eslavo, brâtâ em sânscrito, bhrâtar em zend, língua da Pérsia antiga.

E assim por aí fora. Este parentesco da linguagem implica que os grupos humanos que povoaram depois a índia, a Pérsia, a Europa, começaram por viver juntos e falar uma língua comum. Admite-se que estes povos não estavam ainda separados por altura do ano 3000 e viviam em estado nómade entre o Ural (ou para além dele) e os Cárpatos.

Por volta da ano 2000, o povo grego, doravante desligado da comunidade primeira e ocupando a planície do Danúbio, começa a infiltrar-se nas terras que o Mediterrâneo oriental banha, quer na costa asiática, quer nas ilhas do Egeu, quer na Grécia propriamente dita. O mundo grego antigo compreende, pois, desde a origem, as duas margens do Egeu, e, no caminho da civilização, a Grécia da Ásia precede de muito a da Europa. (De resto, só muito recente­mente os Gregos da Ásia foram expulsos pelos Turcos — em 1922 — dessa velha e gloriosa terra helênica que ocupavam há perto de quatro mil anos.)

Ao começarem a fixar-se no seu novo habitat, as tribos gregas apren­deram a agricultura com um povo muito mais avançado que elas e que ocupava todas essas regiões. Ignoramos o verdadeiro nome desse povo, a que os antigos chamavam algumas vezes Pelasgos. Chamamos-lhes, segundo o nome do mar em cujas margens viviam e cujas margens ocupavam, os Egeus. Ou ainda os Cretenses, porque o centro da sua civilização era em Creta. Este povo egeu sabia escrever: nos locais onde se fizeram pesquisas encontrou-se grande número de tabuinhas de argila cobertas de caracteres de escrita. Só muito recentemente esta escrita começou a ser decifrada. Com geral surpresa dos sábios — que há cinquenta anos ensinavam o contrário — , a língua das tabui­nhas egeias revelou-se como grego, transcrito em caracteres silábicos não gregos. Como interpretar esta descoberta, é cedo ainda para o dizer.

Seja como for, se os invasores gregos transmitiram aos Egeus a sua língua, não lhes transmitiram a escrita, que ignoravam. O que aqui importa é determinar os bens que os Gregos primitivos receberam dos Egeus civilizados. Foram muitos e preciosos.

Os Cretenses praticavam há muito tempo a cultura da vinha, da oliveira, dos cereais. Criavam gado miúdo e grande. Conheciam numerosos metais, o ouro, o cobre e o estanho. Fabricavam armas de bronze. Ignoravam o ferro.

Os arqueólogos trouxeram à luz do dia, em Creta, nos princípios do século XX, os restos de vastos palácios dos príncipes egeus. Estes palácios compreendiam uma rede de compartimentos e de salas numerosas, dispostos à maneira de um labirinto e agrupados à volta de um largo pátio. O de Knossos, em Creta, cobre um espaço edificado de cento e cinquenta metros por cem. Tinha pelo menos dois andares. Ali se vêem salas de recepção com frescos nas paredes representando animais ou flores, cortejos de mulheres vestidas luxuo­samente, corridas de touros. Ainda que o nível de civilização não seja acima de tudo uma questão de salas da banho ou de W. C., é curioso notar que no palácio de Knossos não faltavam banheiras nem gabinetes com autoclismo.

Mais digno de ser salientado, é o facto de a mulher gozar, nos tempos cretenses, de uma liberdade e de uma consideração muito superiores às da mulher grega do século V. As mulheres parecem ter exercido, em Creta, os mesteres mais diversos. Recentes pesquisas mostraram, aliás, que houve, em tempos muito recuados, nas margens do Egeu, vários povos em que era muito alta a condição da mulher. Alguns desses povos conheceram o matriarcado. Os filhos usavam o nome da mãe e o parentesco contava-se seguindo a descendên­cia feminina. As mulheres escolhiam sucessivamente vários maridos e domina­ vam a comunidade.

Não parece que os povos egeus tenham sido belicosos. Os palácios e os restos das cidades não apresentam qualquer sinal de fortificação.

Assim, os Gregos, ao invadirem estas regiões entre o ano 2000 e o ano 1500, encontravam ali um povo já civilizado. Começaram a submeter-se ao prestígio e ao domínio dos Egeus: pagavam-lhes tributos. Depois revoltaram-se e, por volta de 1400, incendiaram o palácio de Knossos.

A partir de então, os povos gregos, ao mesmo tempo que herdam alguns dos deuses e dos mitos dos Egeus, e algumas das suas técnicas, seguem o seu próprio caminho. Nem a bela pintura cretense, toda inspirada na natureza — flores e folhas, aves, peixes e crustáceos — , parece ter deixado traços na arte grega, nem a língua parece ter depositado outra coisa que alguns nomes de lugares, a palavra labirinto (com Minos, o rei-touro que nele habitava), o novo nome do mar (thalassa), um reduzido número de outros.

A civilização das primeiras tribos gregas, os Aqueus, conserva ainda uma herança mais definida da época anterior. Dos Cretenses, o povo helénico recebeu dois dons, exactamente aqueles que fizeram dele o povo camponês e marinheiro que foi sempre: a agricultura e a navegação. Oliveiras, vinha e barcos: atributos gregos, e que o serão por muito tempo. Os homens vivem-nos, cantam-nos os poetas.

Mas as tribos gregas eram muito mais guerreiras que os seus predeces­sores desconhecidos. Depois de destruírem e reconstruírem um tanto o palácio de Knossos, transportaram o centro do jovem mundo grego para o Peloponeso. Os reis ergueram aí as temíveis cidadelas de Micenas e de Tirinte, cujas muralhas ciclópicas não desabaram ainda. Estes Aqueus, pouco dados às civilizações egeias, não foram mais que detestáveis ladrões.

Os seus palácios e os seus túmulos regurgitam de ouro roubado.

Sobre o mar, os Gregos começaram por mostrar-se marinheiros muito mais tímidos que os Egeus, que tinham chegado à Sicília. Os barcos dos Gregos de Micenas não se aventuram para fora do Egeu. A navegação dos Aqueus é muito mais pirataria do que comércio. Os senhores de Micenas empreendem com os seus soldados vastas operações de banditismo. Fizeram-no no Delta, fizeram-no na Ásia Menor: daí haver ouro nos túmulos reais, jóias diversas, taças, delgadas folhas de ouro aplicadas em máscara sobre o rosto dos mortos e, sobretudo, inúmeras placas de ouro cinzeladas com arte.

A última das expedições guerreiras dos príncipes aqueus, que levaram consigo os seus numerosos vassalos, foi a não lendária mas histórica guerra de Troia. A cidade de Troia-Ilion, que era também uma cidade helénica, situada a pequena distância dos Dardanelos, enriquecera cobrando direitos aos merca­dores que, para passar o mar Negro, tomavam o caminho de terra, ao longo do estreito, a fim de evitar as correntes, levando aos ombros barcos e mercado­rias. Os Troianos espoliavam-nos largamente à passagem. Estes ratoneiros foram pilhados por seu turno. ílion foi tomada e incendiada após um longo cerco, no princípio do século XII (cerca de 1180). Numerosas lendas, aliás belas, mascaravam as razões verdadeiras, que eram razões económicas não heróicas, desta rivalidade de salteadores. A Ilíada dá-nos algumas. Os arqueó­logos que fizeram escavações em Tróia, no século passado, encontraram, nos restos duma cidade que mostra sinais de incêndio e que a terra duma colina recobria há mais de três mil anos, objectos da mesma época que os encontrados em Micenas. Os ladrões não escapam aos pacientes inquéritos dos arqueólogos-polícias.

Entretanto, novas tribos helénicas — Eólios, Jónios, por fim, Dórios – invadiram, depois dos Aqueus, o solo da Grécia. A invasão dos Dórios os últimos a chegar, situa-se por volta de 1100. Enquanto que os Aqueus se tinham civilizado um pouco em contacto com os Cretenses, os Dórios continuavam a ser muito primitivos. Contudo, conheciam o uso do ferro: com este metal tinham feito diversas armas. Entre os Aqueus, o ferro era ainda tão raro que o consideravam um metal tão precioso como o ouro e a prata.

Foi com estas armas novas, mais resistentes e sobretudo mais longas (espadas de ferro contra punhais de bronze), que os Dórios invadiram a Grécia como uma tempestade. Micenas e Tirinte são por sua vez destruídas e saquea­das. A civilizaçao aqueia, inspirada na dos Egeus, afunda-se no esquecimento.

Torna-se por muito tempo uma terra meio fabulosa da história. A Grécia, rasgada pela invasão dória, está povoada agora unicamente de tribos gregas. A historia grega pode começar. Ela começa na noite dos séculos XI, X e IX. Mas o dia está perto.

*

Que terra era esta que iria tornar-se a Hélada? Que recursos primeiros, que obstáculos oferecia a um povo primitivo para uma longa duração histórica, uma marcha tacteante para a civilização?

Dois caracteres importa revelar: a montanha e o mar.

A Grécia é um país muito montanhoso, embora os seus pontos mais altos não atinjam nunca três mil metros. Mas a montanha está por toda a parte, corre e trepa em todas as direcções, por vezes muito abrupta. Os antigos marinha­vam-na por carreiros que subiam a direito, sem se dar ao trabalho de zigue­ zaguear. Degraus talhados na rocha, no mais escarpado da encosta. Esta montanha anárquica dava um país dividido numa multidão de pequenos can­tões, a maior parte dos quais, aliás, tocavam o mar. Daqui resultava uma compartimentação favorável à forma política a que os Gregos chamam cidade.

Forma cantonal do Estado. Pequeno território fácil de defender. Natural de amar. Nenhuma necessidade de ideologia para isto nem de carta geográfica. Subindo a uma elevação, cada qual abraça, com um olhar, o seu país inteiro. No pé das encostas ou na planície, algumas aldeias. Uma povoação construída sobre uma acrópole, eis a capital. Ao mesmo tempo, fortaleza onde se refu­giam os camponeses em caso de agressão, e, nos tempos de paz, que pouco dura entre tantas cidades, praça de mercado. Esta acrópole fortificada é o núcleo da cidade quando nasce o regime urbano. A cidade não é construída à beira-mar — cuidado com os piratas! — , suficientemente próxima dele, no entanto, para instalar um porto.
As aldeias e os seus campos, uma povoação fortificada, meio citadina, eis os membros esparsos e juntos de um Estado grego. A cidade de Atenas não é menos a campina e as suas lavouras que a cidade e as suas lojas, o porto e os seus barcos, é todo o povo dos Atenienses atrás do seu muro de montanhas, com a sua janela largamente aberta para o mar: é o cantão a que se chama Ática.

Outras cidades, às dúzias, noutras molduras semelhantes. Entre estas cidades numerosas, múltiplas rivalidades: políticas, económicas e a guerra ao cabo delas. Nunca se assinam tratados de paz entre cidades gregas, apenas tréguas: contratos a curto prazo, cinco anos, dez, trinta anos, o máximo. Mas antes de passado o prazo já a guerra recomeçou. As guerras de trinta anos e mais são mais numerosas na história grega que as pazes de trinta anos.

Mas a eterna rivalidade grega merece por vezes um nome mais belo: emulação. Emulação desportiva, cultural. O concurso é uma das formas preferidas da actividade grega. Os grandes concursos desportivos de Olímpia e outros santuários fazem largar as armas das mãos dos beligerantes. Durante estes dias de festa, os embaixadores, os atletas, as multidões circulam livre­mente por todas as estradas da Grécia. Há também em todas as cidades formas múltiplas de concursos entre os cidadãos. Em Atenas, concursos de tragédtas de comedias, de poesia linca. A recompensa é insignificante: uma coroa de hera para os poetas ou um cesto de figos, mas a glória é grande. Por vezes um monumento a consagra. Após a Amígom, Sofocles foi eleito general. E saiu-se com honra de operações que teve de conduzir. Em Delfos, sob o signo de Apolo ou de Dioniso, concursos de canto acompanhado de lira ou de flauta Anas militares, cantos de luto ou de bodas. Em Esparta e em toda a parte concursos de dança. Em Atenas e noutros lugares, concursos de beleza entre homens ou entre mulheres, conforme os sítios. O vencedor do concurso de beleza masculina recebe, em Atenas, um escudo.

A gloria das vitórias desportivas alcançadas nos grandes concursos nacio­nais não pertence somente à nação: é a glória da cidade do vencedor. Os maiores poetas — Píndaro e Simónides — celebram essas vitórias em esplên­didas arquitecturas líricas onde a música e a dança se juntam à poesia para dizerem ao povo a grandeza da comunidade dos cidadãos de que o atleta vencedor não e mais que delegado. Acontece o vencedor receber a mais alta recompensa que pode honrar um benfeitor da pátria: ser pensionado - alimen­tado instalado - no pritaneu, que é a câmara municipal da cidade.

Tal como os exércitos, enquanto duram os jogos nacionais, os tribunais folgam, adiam-se execuções capitais. Tréguas que não duram mais de alguns dias, por vezes trinta.

A guerra crônica das cidades é um maI que acabará por ser mortal ao povo grego. Os Gregos nunca foram além - quando muito, em imaginação - da
forma do Estado cidade-cantão. A linha do horizonte das colinas que limitam e defendem a cidade parece limitar, ao mesmo tempo que a visão, a vontade de cada povo de ser grego antes de ser ateniense, tebano ou espartano. As ligas alianças ou confederações de cidades são precárias, prontas a desfazer-se, à desagregar-se por dentro, mais do que a sucumbir aos golpes de fora. A cidade forte que que constitui o núcleo dessas alianças não leva muito tempo a tratar domo súditos aqueles a quem continua a chamar, por cortesia, aliados: faz da liga um impérioo cujo jugo pesa muito em contribuições militares e em tributos, no entanto, não há uma cidade grega que não tenha a consciência vivís­sima de pertencer a comunidade helênica. Da Sicília à Ásia, das cidades da costa africana às que ficam para lá do Bosforo, até a Criméia e ao Cáucaso. «o corpo helênico é do mesmo sangue», escreve Heródoto, «fala a mesma língua tem os mesmos deuses, os mesmos templos, os mesmos sacrifícios, os mesmos usos, os mesmos costumes». Fazer aliança com o Bárbaro, contra outros Gregos, é trair.

O Bárbaro, termo não pejorativo, é simplesmente o estrangeiro, é o não-Grego, aquele que fala essas línguas que soam bar-bar-bar, tão estranhas que parecem línguas de aves. A andorinha também fala bárbaro. O Grego não despreza os Bárbaros, admira a civilização dos Egípcios, dos Caldeus e de muitos outros: sente-se diferente deles porque tem a paixão da liberdade e não quer ser «escravo de ninguém». «O Bárbaro nasceu para a escravatura, o Grego para a liberdade»: por isto mesmo morreu Ifigênia. (Pontinha de racismo).

Perante a agressão bárbara, os Gregos unem-se. Não todos, nem por muito tempo: Salamina e Plateias, Grécia unida por um ano, não mais. Tema oratório, não realidade viva. Em Plateias, o exército grego combate, ao mesmo tempo que aos Persas, numerosos contingentes doutras cidades gregas que se deixaram alistar pelo invasor. A grande guerra da independência nacional é ainda uma guerra intestina. Mais tarde, as divergências das cidades abrirão a porta à Macedônia, aos Romanos.

*

A montanha protege e separa, o mar amedronta mas une. Os Gregos não estavam encerrados nos seus compartimentos montanhosos. O mar envolvia todo o país, penetrava profundamente nele. Havia pouquíssimos cantões, mesmo recuados, que o mar não atingisse.

Mar temível, mas tentador e mais aliciante que qualquer outro. Sob um céu claro, na atmosfera límpida, o olhar do nauta descobre a terra duma ilha montanhosa a cento e cinquenta quilómetros de distância. Vê-a como «um escudo pousado sobre o mar».

As costas do mar grego oferecem portos numerosos, ora praias de declive suave, para onde os marinheiros podem à noite puxar os seus leves barcos, ora portos de água profunda, protegidos por paredes rochosas, onde as grandes naves de comércio e os navios de guerra podem ancorar ao abrigo dos ventos.

Um dos nomes que o mar toma em grego significa estrada. Ir pelo mar, e ir pela estrada. O mar Egeu é uma estrada que, de ilha em ilha, conduz o marinheiro da Europa à Ásia sem que ele perca nunca a terra de vista. Estas cadeias de ilhotas parecem calhaus lançados por garotos num regato para o atravessarem, saltando de um para outro.

Não há um cantão grego donde não se distinga, subindo a qualquer elevação, uma toalha de agua que reflecte no horizonte. Nem um ponto do Egeu que esteja a mais de sessenta quilômetros de terra. Nem um ponto da terra grega a mais de noventa quilómetros do mar.

As viagens são baratas. Algumas dracmas e estamos no cabo do mundo conhecido. Alguns séculos de desconfiança e pirataria, e os Gregos, mercado­res ou poetas, por vezes uma coisa e outra, tomam contacto amigável com as velhas civilizações que os precederam. As viagens de Racine e de La Fontaine não vão além de Ferté-Milon ou Château-Thierry. As viagens de Sólon, de Ésquilo, de Herodoto e de Platão chegam ao Egipto, à Ásia Menor e Babilónia, a irenaica e a Sicília. Não há um Grego que não saiba que os Bárbaros são civilizados há milhares de anos e que têm muito para ensinar ao povo do «Nós-Gregos-somos-crianças». O mar grego não é a pesca do atum e da sardinha e a via das permutas com os outros homens, a viagem ao país das grandes obras de arte e das invenções surpreendentes, do trigo que cresce vasto nas vastas planícies, do ouro que se esconde na terra e nos rios, a viagem ao pais das maravilhas, tendo por única bússola a carta noturna das estrelas Para além do mar, há uma grande abundância de terra desconhecida para descobrir cultivar e povoar. Todas as grandes cidades, a partir do século VIII, vão plantar rebentos nas cidades novas em terra nova. Os marinheiros de Mileto fundam noventa cidades nas margens do mar Negro. E de caminho fundam também a astronomia.

Concluindo: o Mediterrâneo é um lago grego de caminhos familiares. As cidades instalam-se nas margens dele «como rãs ao redor de um charco», diz Platão. Evoe ou coaxo! O mar civilizou os Gregos. Aliás foi só à força que o povo grego se tornou um povo de marinheiros, o grito do ventre faminto que arma os barcos e os lança ao mar. A Grécia era um pais pobre. «A Grécia foi criada na escola da pobreza.» (Outra vez Heródoto.) O solo é pobre, e ingrato. Nas encostas é, muitas vezes, pedregoso. O clima é seco demais. Após uma primavera precoce e efêmera, com uma magnifica e brusca floração das árvores e dos prados, o sol não se cobre nunca mais. O Verão instala-se como rei e queima tudo. As cigarras zangarreiam na
poeira. Durante meses, nem uma nuvem no céu. Muitas vezes, nem uma gota de água cai em Atenas de meados de Maio ao fim de Setembro. Com o Outono vem a chuva, e no Inverno rebentam as tempestades. Borrascas de neve, mas que não se aguentam dois dias. A chuva cai em grossas pancadas, em tromba. Há sítios em que a oitava parte ou mesmo a quarta parte da chuva de um ano, cai em um só dia. Os rios, meio secos, tornam-se correntes temerosas, água rugidora e devoradora que come a delgada camada de terra das encostas calvas e a arrasta para o mar. A desejada água torna-se um flagelo. Em certos vales fechados, as chuvas formam baixos pantanosos. Deste modo, o camponês tinha que lutar, ao mesmo tempo, contra a seca que queimava os centeios e contra a inundação que lhe afogava os prados. E mal o podia fazer. Construía os seus campos nas encostas, em terraços, e transportava em cestos, de um muro para outro, a terra que resvalara do seu bocado. Tentava irrigar os campos, drenar os fundos pantanosos e limpar as bocas por onde havia de escoar-se a água dos lagos. Todo este trabalho, feito com ferramentas de hotentote, era duríssimo e insuficiente. Teria sido preciso repovoar de árvores a montanha nua, mas isso não sabia ele. Ao princípio, a montanha grega era bastante arborizada. Pinhei­ros e plátanos, ulmeiros e carvalhos coroavam-na de bosques centenários. A caça pululava. Mas desde os tempos primitivos os Gregos derrubaram árvores, fosse para construir aldeias, fosse para fazer carvão. A floresta perdeu-se. No século V, colinas e picos perfilavam já contra o céu as mesmas arestas secas de hoje. A Grécia ignorante entregou-se ao sol, à água desre­grada, à pedra.

Lutava-se «pela sombra de um burro».

Sobre este solo duro, sobre este céu caprichosamente implacável, davam-se bem oliveiras e vinhas, menos bem os cereais, cuja raiz não pode ir buscar a humidade suficientemente fundo. Não falemos das charruas, ramos em forquilha ou grosseiros arados de madeira que mal arranhavam a terra. Aban­donando os cereais, os Gregos vão buscar o trigo às terras mais afortunadas da Sicília ou das regiões a que hoje chamamos Ucrânia e Romênia. Toda a política imperialista de Atenas grande cidade, no século V, é, antes de mais, política do trigo. Para alimentar o seu povo, Atenas tem de se manter senhora dos caminhos do mar, em particular dos estreitos que são a chave do mar Negro.

O azeite e os vinhos são a moeda de troca e o orgulho da filha deserdada do mundo antigo. O produto precioso da oliveira cinzenta, dom de Atena, responde às necessidades alimentares da vida quotidiana: cozinham com azeite, alumiam-se com azeite, à falta de água lavam-se com azeite, esfregam-se, alimentam de azeite a pele sempre seca.

Quanto ao vinho, maravilhoso presente de Dioniso, só nos dias de festa o bebem, ou à noite, entre amigos, e sempre cortado com água. «Bebamos, para que esperar a luz da lâmpada? só resta da luz do dia um quase nada. Traz para baixo, menino, as grandes taças coloridas. O vinho foi dado aos homens pelo filho de Zeus e de Sêmele para que esqueçam as suas penas. Enche-as até à borda com uma parte de vinho e duas partes de água, e que uma taça empurre a outra.» (O Ramuz! Não, Alceu.) «Não plantes nenhuma outra árvore antes de teres plantado vinha.» (Outra vez o velho Alceu de Lesbos, antes de Horácio.) O vinho, espelho da verdade, «fresta por onde se vê o homem por dentro!»

A vinha, amparada em tanchões, ocupa as encostas, arquitectadas em terraços, da terra grega. Na planície plantam-na entre as árvores dos pomares, empada de uma para outra.

O Grego é sóbrio. O clima assim o exige, repetem os livros. Sem dúvida, mas a pobreza não o exige menos. O Grego vive de pão de cevada e de
centeio, amassado em bolos chatos, de legumes, de peixe, de frutos, de queijo e de leite de cabra. E muito alho.

Carne caça, criação, cordeiro e porco — , só nos dias de festa, como o vinho, não falando dos senhores (os «gordos», como se diz). Desta pobreza de regime e de vida (é claro, esta gente do Meio-dia é preguiçosa, vive de coisa nenhuma, regalada de bom sol), a causa não está apenas no solo ingrato ou mesmo nos processos elementares de cultura. Acima de tudo, resulta da desigual repartição da terra pelos seus habitantes.

No começo, as tribos que ocupavam a região tinham feito da terra uma propriedade colectiva do clã. Cada aldeia tinha o seu chefe de clã, responsável pela cultura do solo do distrito, pelo trabalho de cada um e pela distribuição dos produtos da terra. O clã agrupa um certo número de famílias — no sentido amplo de gente duma casa — , cada uma das quais recebe uma extensão de terra para cultivar. Não há, nesses tempos primitivos, propriedade privada: a terra devoluta não pode ser vendida ou comprada, e não se reparte por morte do chefe de família. É inalienável. Em compensação, o parcelamento pode ser refeito, a terra outra vez distribuída, segundo as necessidades de cada família.

Esta terra comum é cultivada em comum pelos membros da casa. Os frutos da cultura são repartidos sob a garantia de uma divindade que se chama Moira, cujo nome quer dizer parte e sorte, e que presidira iguaimente à repartição, por sorteio, dos lotes de terra. Entretanto, uma parte do domínio, mais ou menos metade, é sempre posta de pousio: é preciso deixar repousar a terra, não se pratica ainda, dum ano para outro, a cultura alternada de produtos diferentes. O rendimento é pois muito baixo.

Mas as coisas não ficam por aqui. O antigo comunismo rural, forma de propriedade própria do estádio da vida primitiva (ver os Batongas da África do Sul, ou certos povos de Bengala), começa a desagregar-se a partir da época dos salteadores aqueus. A monarquia de Micenas era militar. A guerra exige um comando unificado. Após uma campanha proveitosa, o rei dos reis e os reis subalternos, seus vassalos, talhavam para si a parte de leão, na partilha do saque como na redistribuição da terra. Ou então certos chefes apropriam-se simplesmente das terras de que apenas eram administradores. O edifício da sociedade comunitária, onde se introduzem graves desigualdades, destrói-se pelo topo. A propriedade privada cria-se em benefício dos grandes.

Instala-se também por outra maneira, sinal de progresso... Alguns indiví­duos podem ser, por razões diversas, excluídos dos clãs. Podem também sair deles de sua própria vontade. O espírito de aventura leva muitos a tomar o caminho do mar. Outros ocupam, fora dos limites do domínio do clã, terras que haviam sido julgadas demasiado medíocres para ser cultivadas. Forma-se uma classe de pequenos proprietários à margem dos clãs: a propriedade deixa de ser comunal, torna-se, por fases, individual. Esta classe é pobríssima, mas muito activa. Quebrou os laços com o clã: rompe-os por vezes com a terra. Estes homens formam guildas de artífices: oferecem aos clãs as ferramentas que fabricam, ou simplesmente trabalho artesanal como carpinteiros, ferreiros, etc. Entre estes «artífices», não esqueçamos nem os médicos nem os poetas.

Agrupados em corporações, os médicos têm regras, receitas, bálsamos e remédios que vão propondo de aldeia em aldeia: estas receitas são sua exclu­siva propriedade. Do mesmo modo, as belas narrativas em verso, improvisadas e transmitidas por tradição oral nas corporações de poetas, são propriedade dessas corporações.

Todos estes novos grupos sociais nascem e se desenvolvem no quadro da cidade. E aqui temos as cidades divididas em duas metades de força desigual: os grandes proprietários rurais, por um lado, e, por outro, uma classe de pequenos proprietários mal favorecidos, de artífices, de simples trabalhadores do campo, de marinheiros — tudo gente de ofício, «demiurgos», diz o Grego, turba miserável ao princípio.

Todo o drama da história grega, toda a sua grandeza futura se enraíza no aparecimento e no progresso destes novos grupos sociais. Nasceu uma nova classe que vai tentar arrancar aos «grandes» os privilégios que fazem deles os senhores da cidade. É que só estes proprietários nobres são magistrados, sacerdotes, juizes e generais. Mas a turba popular depressa tem por seu lado o número. Quer refundar a cidade na igualdade dos direitos de todos. Mete-se na luta, abre o caminho para a soberania popular. Aparentemente desarmada, marcha à conquista da democracia. O poder e os deuses são contra ela. Mesmo assim, a vitória será sua.

*

Eis, sumariamente indicadas, algumas das circunstâncias cuja ação con­junta permite e condiciona o nascimento da civilização grega. Repare-se que não foram somente as condições naturais (clima, solo e mar), como o não foi o momento histórico (herança de civilizações anteriores), nem as simples condi­ções sociais (conflito dos pobres e dos ricos, o «motor» da história), mas sim a convergência de todos estes elementos, tomados no seu conjunto, que consti­tuíram uma conjuntura favorável ao nascimento da civilização grega.

E então o «milagre grego»? — perguntarão certos sábios ou assim chama­dos. Não há «milagre grego». A noção de milagre é fundamentalmente anti- científica, e é também não-helênica. O milagre não explica nada: substitui uma explicação por pontos de exclamação.

O povo grego não faz mais que desenvolver, nas condições em que se encontra, com os meios que tem à mão, e sem que seja necessário apelar para dons particulares de que o Céu lhe teria feito dom, uma evolução começada antes dele e que permite à espécie humana viver e melhorar a sua vida.

Um exemplo só. Os Gregos parecem ter inventado, como que por mila­gre, a ciência. Inventam-na, com efeito, no sentido moderno da palavra: inventam o método científico. Mas se o fazem é porque, antes deles, os Caldeus, os Egípcios, outros ainda, tinham reunido numerosas observações dos astros ou sobre as figuras geométricas, observações que permitiam, por exem­plo, aos marinheiros, dirigirem-se no mar, aos camponeses medir os seus campos, fixar a data dos seus trabalhos.

Os Gregos aparecem no momento em que, destas observações sobre as propriedades das figuras e o curso regular dos astros, se tornava possível extrair leis, formular uma explicação dos fenômenos. Fazem-no, enganam-se muitas vezes, recomeçam. Não há nada aqui de miraculoso, mas apenas um novo passo do lento progresso da humanidade.

Tirar-se-iam outros exemplos, e com abundância, dos outros domínios da atividade humana.

Toda a civilização grega tem o homem como ponto de partida e como objeto. Procede das suas necessidades, procura a sua utilidade e o seu progresso. Para aí chegar, desbrava ao mesmo tempo o mundo e o homem, e um pelo outro. O homem e o mundo são, para ela, espelhos um do outro, espelhos que se defrontam e se lêem mutuamente.

A civilização grega articula um no outro o mundo e o homem. Casa-os na luta e no combate, numa fecunda amizade, que tem por nome Harmonia.

História - Civilização Grega
Social - Escolar, Educação
4/2/2021 12:32:55 PM | Por Charles Richard Snyder
Escolarização positiva

Considerando-se que as escolas cumprem um papel central na promoção dos precei­tos da psicologia positiva, incluímos um capítulo inteiro sobre escolarização. A escolarização, uma palavra menos utilizada para “educação”, transmite a importância da comunidade toda no ensino das crian­ças, e por isso a usamos no título deste ca­pítulo. Começamos tratando das visões in­felizmente negativas que algumas pessoas têm sobre os professores e seu trabalho, e investigamos as características daqueles poucos professores que são realmente ruins. A seguir, descrevemos o apoio que se dá (ou se deixa de dar) à educação nos Estados Unidos. Sendo assim, dedicamos grande parte do capítulo a um exame dos seis componentes das escolas eficazes. Após, resumimos a aplicação educacional desenvolvida por Donald Clifton, pioneiro da psicologia positiva, e damos um pano­rama de alguns professores impressionan­tes, que são exemplos de ensino positivo. Por fim, expomos idéias com relação a agra­decer aos professores que fizeram diferen­ças positivas na vida de seus alunos.

"Quem é professor é porque não consegue emprego de verdade"

A própria existência desse sentimen­to sugere que os professores não são reco­nhecidos por seus esforços (Buskist, Benson e Sikorski, 2005). Não apenas os professo­res recebem salários relativamente baixos por seu trabalho profissional, como tam­bém são alvo de comentários depreciati­vos. Sobre esse último aspecto, eu (C.R.S.) estava na fila do correio para comprar se­los quando um senhor na minha frente reclamou com seu amigo, em voz alta: “Es­ses professores preguiçosos”. Sendo um desses “professores preguiçosos”, fiquei quieto, só esperando para pegar os selos. Foi então que esse mesmo homem anun­ciou para que todos que estavam no saguão ouvissem: “Esses professores não estariam lecionando se fossem bons o suficiente para conseguir empregos de verdade!”. E com­pletou com a declaração impressionante: “Todo mundo sabe que quem não conse­gue arrumar emprego de verdade é que [341] acaba lecionando!”. Não consegui mais morder a língua, e se seguiu uma interação ríspida.

Embora não haja mérito nenhum em declarações do tipo “quem não sabe ensi­na” (como “quem sabe faz, quem não sabe ensina” ou “quem não sabe ensinar ensina os professores”), é provável que todos já tenhamos aguentado maus professores. Entretanto, também tivemos alguns profes­sores maravilhosos. Nesse sentido, muitas das idéias deste capítulo vêm de professo­res premiados que usaram princípios da psicologia positiva em suas iniciativas de sala de aula (vide Snyder, 2005b). Esses professores são talentosos..., poderiam se sair bem em muitas esferas da vida, além da sala de aula. Por isso, dedicamos este capítulo aos que “sabem e ensinam”!

Psicologia negativa: "quem não sabe fazer não deveria estar ensinando"

Concordamos que alguns professores são tão ruins que não deveriam chegar per­to de salas de aula. Esses são aqueles que, “quando recebem o privilégio de lecionar, entediam em lugar de inspirar, contentam-se com o mínimo denominador comum em lugar de aspirar ao máximo numerador, consideram o trabalho como algo fácil em lugar de se maravilhar permanentemente com a benção - pecados contra todas as mentes que eles fecharam, desinformaram e alienaram da educação” (Zimbardo, 2005, p. 12).

O fato de que esses maus professores podem causar danos é mais do que espe­culação. As pesquisas sobre o assunto mos­tram repetidamente que os maus profes­sores têm efeitos negativos sobre os alu­nos (para uma visão geral do tema, vide o livro influente de Jennifer King Rice, de 2003, Teacher quality). Na verdade, con­cluiu-se que a baixa qualidade dos profes­sores é o mais influente de todos os fatoresnrelacionados à escola em termos de preju­dicar a aprendizagem dos alunos e suas ati­tudes em relação à educação como um todo (Rice, 2003). Além disso, os efeitos dos maus professores são aditivos e cumulativos com o passar do tempo (Sanders e Rivers, 1996), sendo que a qualidade dos profes­sores responde por 7,5% da variância no desempenho dos estudantes (Hanushek, Kain e Rivkin, como é relatado em Goldhaber, 2002).

Quais os fatores que determinam a qualidade dos professores? Das várias ma­neiras de avaliar as qualidades, a forma­ção escolar de um professor e suas notas são duas das fontes mais influentes quan­do se trata de aumentar a aprendizagem dos estudantes (Monk e King, 1994; Rowan, Chiang e Miller, 1997). Igualmen­te, Darling-Hammond e Youngs (2002) in­formaram que os índices de desempenho e preparação adequada dos professores fo­ram indicadores sólidos do desempenho dos alunos nas áreas de matemática e lei­tura. Para concretizar o impacto da quali­dade dos professores, consideremos a con­clusão de que a diferença entre ter um mau professor e um bom professor reflete todo um nível de notas em termos de desempe­nho dos alunos (Hanushek, 1994). Em ter­mos gerais, portanto, os maus professores deixam atrás de si trilhas de tédio intelec­tual e desrespeito.

Obviamente, há razões legítimas para que alguns professores “saiam ruins”. A mais óbvia é o burnout, ou esgotamento, em que o educador perde entusiasmo após encontrar obstáculos constantes e falta de apoio para seus esforços (vide Maslach, 1999). Entretanto, não há desculpas para um professor que não faz qualquer coisa para tratar desse burnout. É difícil ter sim­patia pelos professores que continuam sim­plesmente “tocando em frente” quando se trata de entusiasmo e preparação de seus alunos. Mais do que não conseguir ensinar mentes jovens em formação quando elas estão mais abertas ao entusiasmo da apren­dizagem, eles também desligaram essas [342] mentes para toda a vida (vide Zimbardo, 1999).

Embora os professores negativos se­jam relativamente raros, só um deles já é demais. Já seria ruim o suficiente se esses maus professores apenas prejudicassem a aprendizagem de seus alunos, mas eles também podem causar sofrimento e dano psicológicos. Tragicamente, os estudantes podem se tornar participantes involun­tários de profecias autorrealizáveis nas quais eles fracassam nas esferas acadêmi­ca e pessoal. Dessa forma, por mais que possamos ser apaixonados por garantir que a psicologia positiva preencha as mentes e as salas de aula de nossos professores e seus alunos, também somos inflexíveis em rela­ção a querer que os maus professores se­jam identificados muito precocemente em suas carreiras e sejam ensinados a mudar ou saiam das salas de aula.

"Nenhuma criança deixada para trás" e além disso

Em uma carta a John Adams (incluí­da em Barber e Battistoni, 1993, p. 41), Thomas Jefferson expôs sua visão sobre a mudança da aristocracia de “privilégio por herança” dos Estados Unidos para um tipo de aristocracia mais baseado no talento. Desde aqueles tempos longínquos, o ideal norte-americano tem sido o de que a edu­cação pública deveria fazer com que o des­fecho da vida das pessoas dependa menos de situação familiar e mais do uso da edu­cação pública. Dessa forma, as escolas fo­ram idealizadas para fazer uma diferença enorme na vida de nossas crianças.

Infelizmente, essa visão romantizada das escolas dos Estados Unidos tem sido mais sonho do que realidade. É irônico que o presidente Lyndon Johnson acreditasse na força das escolas como as “grandes equalizadoras” (uma expressão populari­zada pelo filósofo e líder da educação do século XIX, Horace Mann) das pessoas. Nessa linha, ele encomendou um estudo enorme, cujos resultados ele (e outros) acreditava que mostrariam de uma vez por todas que a qualidade dos recursos esco­lares (como as instalações, os currículos, os livros) era responsável pelos resultados educacionais superiores dos cáucaso-estadunidenses, comparados com os das pes­soas de cor. Ao contrário dessas expectati­vas, contudo, a publicação do Relatório Coleman Report (tecnicamente chamado de Equality of Educational Opportunity Report) em 1966 (Coleman et al., 1966) levou à conclusão de que “as escolas não fazem muita diferença” nos rumos da vida dos estudantes (vide Fritzberg, 2001, 2002).

Essa foi uma referência extrema­mente perturbadora para os educadores, assim como para o presidente Johnson.

As conclusões do relatório de Coleman e colaboradores (1966) significam que nada pode ser feito em termos de ensino escolar para melhorar a aprendizagem dos alunos? Felizmente, a resposta é não, e já mencio­namos o fator que parece, sim, render me­lhor aprendizagem: a qualidade dos profes­sores. Antes de tratarmos do que se pode fazer para melhorar a qualidade de nossos professores, contudo, descrevemos o atual ambiente da educação nos Estados Unidos.

Com a aprovação da lei No child left behind (Nenhum criança deixada para trás), em 2001, a ênfase tem estado cada vez mais nas responsabilidades dos profes­sores e dos sistemas escolares para produ­zir aprendizagem direcionada e objetivos de desempenho. Para um excelente [343] panorama dessa abordagem, sugerimos o volu­me No child left behind? The politics and practice of accountability, de Peterson e West (2003).

Como observamos, a pesquisa mos­tra que a qualidade dos professores é fun­damental para gerar resultados relaciona­dos à aprendizagem (Monk e King, 1994; Rice, 2003; Rowan et al., 1997). De que forma, então, pode-se aumentar o número de professores qualificados em nossas es­colas? Assim como acontece com muitas escolas, o dinheiro parece cumprir um pa­pel importante. Ou seja, a pesquisa rele­vante mostra que os distritos escolares com salários mais altos e melhores instalações provavelmente atrairão e manterão profes­sores de maior qualidade (Hanushek, Kain, O’Brien e Rivkin, 2004). Além disso, uma competição entre escolas eleva a qualida­de dos professores, bem como melhora a qualidade da educação como um todo (Hanushek e Rivkin, 2003). (Deve-se ob­servar, contudo, que os professores não são totalmente movidos por salários e que a raça, ou etnicidade, e o desempenho dos estudantes em determinadas escolas tam­bém são importantes [Hanushek e Rivkin, 2004].)

Parece que a legislação voltada a ele­var impostos para pagar por escolas e pro­fessores não está recebendo muito apoio entre os eleitores dos Estados Unidos. De­tectamos duas implicações negativas nes­sa tendência. Em primeiro lugar, apenas os distritos escolares mais afluentes terão condições de pagar os altos salários necessá­rios para atrair os melhores professores. Obviamente, isso perpetua o problema da falta de professores excelentes nos distri­tos escolares pobres. Em segundo, as famí­lias ricas estão mandando seus filhos para escolas privadas, de forma que as públicas são deixadas para os professores de mais baixa qualidade.

Em função dessas tendências, vislum­bramos importantes desafios às contribui­ções da psicologia positiva à escola do sé­culo XXI nos Estados Unidos, desafios es­ses que são ampliados pelo fato de que aproximadamente 3 milhões de professo­res, desde a educação infantil até o ensino médio, precisarão ser substituídos na pró­xima década por causa de aposentadorias (Goldhaber, 2002). [345]

Os componentes da escolarização positiva

Antes de examinar os componentes da escolarização positiva (que é uma abordagem à educação que consiste em um alicerce de cuidado, confiança e respeito pela diversidade, em que os professores ajustam os objetivos para que cada aluno engendre a aprendizagem e, a seguir, tra­balham com ele para desenvolver os pla­nos e a motivação para atingir esses obje­tivos), citamos brevemente alguns dos prin­cipais educadores que abriram caminho para essa abordagem. Filósofos de desta­que, como Benjamin Franklin, John Stuart Mill, Herbert Spencer e John Dewey, trata­ram dos recursos dos estudantes (Lopez, Janowski e Wells, 2005). Alfred Binet (Binet e Simon, 1916) costuma ser considerado o pai do conceito de idade mental, mas também destacou o aprimoramento das habilidades dos estudantes em lugar de prestar atenção apenas na solução das fragilidades.

Da mesma forma, Elizabeth Hurlock (1925) acentuou o estímulo como sendo mais influente do que a crítica, como determinante dos esforços dos estudantes. Lewis Terman (Terman e Oden, 1947) tam­bém passou toda a sua carreira exploran­do o pensamento de alunos realmente brilhantes, e Arthur Chickering (1969) bus­cou entender a evolução dos talentos dos estudantes. Mais recentemente, Donald Clifton identificou e depois aprofundou os talentos específicos dos estudantes, em lu­gar de se concentrar em suas fragilidades (vide Buckingham e Clifton, 2001; Clifton e Anderson, 2002; Clifton e Nelson, 1992; Rath e Clifton, 2004).

A seguir, tratamos dos principais com­ponentes da escolarização positiva (vide Buskist et al., 2005; Lopez et al., 2005; Ritchel, 2005). Para o leitor interessado em um currículo real de uma semana para in­serir idéias da psicologia positiva no ensi­no médio, recomendamos a unidade de Amy Fineburg (2002), além de detalhes de vários currículos universitários para ensi­no positivo, os quais podem ser acessados em http://www.positivepsychology.org/ teachingpp.htm.

Figura 16.1

A Figura 16.1 é uma representação visual das lições que são comuns na escola­rização positiva. A referida figura mostra o prédio onde funciona a escola da psico­logia positiva construído em seis partes, desde as bases. Começamos com o alicer­ce, onde descrevemos a importância do cuidado, da confiança e da diversidade. A seguir, o primeiro e o segundo andares de nossa escola positiva representam os obje­tivos de ensino, planejamento e motivação dos alunos. O terceiro andar detém a es­perança, e o telhado representa as contri­buições da sociedade e as compensações geradas pelos alunos egressos de nossa es­cola baseada na psicologia positiva.

Cuidado, confiança e respeito pela diversidade

Começamos com um alicerce que en­volve o cuidado, a confiança e o respeito pela diversidade. É absolutamente crucial ter uma atmosfera de apoio, baseada em cuidado e confiança, porque os estudantes prosperam nesse tipo de ambiente. Ao par­ticipar de cerimônias de homenagem para professores de destaque, observamos que tanto os professores quanto seus alunos comentam sobre a importância de uma sen­sação de cuidado. Os estudantes precisam, como modelos de referência, de professo­res que os atendam e estejam disponíveis permanentemente. Esse cuidado e essas emoções positivas por parte dos professo­res proporcionam a base segura que pos­sibilita que os jovens explorem e encontrem formas de atingir seus próprios obje­tivos acadêmicos e de vida (Shorey, Snyder, Yang e Lewin, 2003). [346]

Talvez uma história pessoal ajude a mostrar a importância de os professores cuidarem dos alunos. Eu (C.R.S.) sempre pensei que queria ser professor, e sabia dis­so já quando entrei na universidade. No outono de 1963, eu estava no primeiro se­mestre da Southern Methodist University, e o início de minha carreira universitária estava indo bem. Então, em 22 de novem­ bro de 1963, a menos de 15 quilômetros da minha faculdade, o presidente John F. Kennedy foi assassinado no centro de Dallas, estado do Texas. Como eu havia feito campanha para ele, sua morte foi tão devastadora que disse a meus professores que iria deixar a faculdade. Eu não conse­guia ir às aulas e, quando ia, estava tão perturbado que não conseguia anotar nada. Em resposta a meu anúncio, meus profes­sores passaram um tempo considerável conversando comigo e me disseram que precisava passar pelo luto. Suas reações de cuidado impediram que abandonasse a fa­culdade, e provavelmente eu não teria [347] conseguido me tornar professor universitário anos depois se esses professores não ti­vessem me ajudado naquele momento crucial. Os bons professores sabem quando ser solidários e ajudar alunos que estejam en­frentando crises.

A confiança em sala de aula recebeu atenção considerável entre os educadores, e o consenso é que ela rende benefícios psicológicos e de desempenho para os es­tudantes (Bryk e Schneider, 2002; Collins, 2001). A confiança é fundamental já des­de as primeiras séries. Por exemplo, em seu influente livro de 2003, Learning to trust: transforming difficult elementary classrooms through developmental discipline, Marilyn Watson (psicóloga educacional) e Laura Ecken (professora do ensino fundamental) tratam do espinhoso problema da adminis­tração da sala de aula e da disciplina nas escolas fundamentais. Sua proposta é es­tabelecer relacionamentos de confiança com os alunos mais difíceis, com a lógica de que isso terá efeitos cascata que se es­palharão para o resto da turma.

Watson e Ecken (2003) defendem o que chamam de disciplina do desenvol­vimento. Essa noção deriva dos princípios da teoria do vínculo (vide o Capítulo 13), que defende ajudar aqueles alunos que têm vínculos inseguros com seus cuidadores. As autoras escrevem que “a construção de re­lacionamentos baseados no cuidado e na confiança passa a ser o objetivo mais im­portante na socialização dessas crianças. Obviamente, enquanto estamos construin­do esses relacionamentos, devemos encon­trar formas não-punitivas de impedir que as crianças agressivas e controladoras cau­sem danos a outras e de estimular a auto­nomia e a autoconfiança nas que são re­traídas e dependentes” (p. 12). Para o leitor interessado em como estabelecer a con­fiança em salas de aula de ensino médio com estudantes em situação de risco, tam­bém sugerimos o volume de 1998, Empo­wering discipline, de Vicki Phillips.

Os professores devem se certificar de que há uma sensação de confiança em suas salas de aula. Eles devem evitar se tornar cínicos em relação aos alunos, pois isso so­lapa a confiança que é tão crucial à apren­dizagem. Muitas vezes, os alunos preferem se comportar mal (e sofrer qualquer puni­ção) do que parecer burros na frente dos colegas. Em suas interações com alunos, contudo, os professores positivos tentam encontrar maneiras de fazer que seus pu­pilos acabem parecendo bem. A menos que sintam que há respeito por parte do pro­fessor, os estudantes não correrão os ris­cos que são tão importantes à aprendiza­gem. As vezes, o melhor ensino acontece quando o professor fica em silêncio e es­cuta as visões dos alunos em uma aula. A premiada professora Jeanne Stahl, do Morris Brown College, comentou: “O silên­cio é a melhor postura quando não se sabe de onde um aluno vem ou para onde está indo” (Stahl, 2005, p. 91).

Uma parte importante do cuidado com os alunos está relacionada a passar grandes quantidades de tempo com eles. Quando se perguntou a alunos de gradua­ção o que eles consideravam os aspectos mais importantes de ser professor univer­sitário (por exemplo, pesquisa, preparar aulas e provas, reuniões de comissões), informaram repetidamente que a disposi­ção dos professores de passar tempo com eles foi a característica mais importante (Bjomesen, 2000).

Outro aspecto do alicerce da psicolo­gia positiva para as escolas é a importância da diversidade das origens e das opiniões dos estudantes na sala de aula. Isso come­ça se estimulando que eles sejam sensíveis às idéias de pessoas que não pertencem à sua coorte étnica ou etária, e pode ser obti­do se revelando aos alunos que eles têm muito em comum com os que são diferentes deles. Também é fundamental se certificar de que as visões de todos os públicos em uma turma tenham voz na sala de aula. A premissa da psicologia positiva é estimular um ponto de vista “NÓS/EU”, ou seja, um ambiente apropriado para o coletivo. (A perspectiva “NÓS/EU” é discutida mais [348] profundamente no Capítulo 18.) Um meio visual interessante para ajudar os alunos a pensar além de seus próprios pontos de vista (EU) é fazer com que pensem sobre as visões refletidas de outros (NÓS).

Uma abordagem excelente para de­senvolver uma atmosfera “NÓS/EU” é im­plementar “a sala de aula quebra-cabeça,” projetada pelo professor emérito da Univer­sidade da Califórnia, em Santa Cruz, Elliot Aronson (Aronson e Patnoe, 1997). Nesse enfoque, os estudantes e os professores usam objetivos baseados em grupos, e os alunos que têm origens diferentes são colocados em unidades de trabalho em que devem compartilhar informações para que o gru­po - e, portanto, cada um de seus mem­bros - tenha êxito. Na sala de aula quebra-cabeça, cada aluno tem parte da informa­ção que é vital para o sucesso do grupo como um todo, e assim há uma forte moti­vação para incluir as contribuições de cada um deles. A sala de aula quebra-cabeça en­sina a cooperação em lugar da competi­ção. Pesquisas sobre o tema mostram que os estudantes aprendem o assunto, junto com respeito por seus colegas. Ela também impede que os alunos se tornem “caçadores de notas” que querem ter sucesso por meio de competição hostil e comparações sociais uns com os outros (Aronson, 2000; Aronson, Blaney, Stephin, Sikes e Snapp, 1978).

Antes de sairmos desta seção sobre diversidade, enfatizamos o quanto é fun­damental ter programas compensatórios voltados a estudantes que possam ter difi­culdades de aprendizagem. Discutimos es­ses programas em detalhe no Capítulo 15, sobre interceder para ajudar as pessoas. Uma questão que não foi destacada neste capítulo, e que deve ser parte da escolarização da psicologia positiva, é que deve­mos ter programas para estimular nossos alunos verdadeiramente talentosos. Mui­tas vezes, prevalece uma atitude infeliz de que esses alunos já têm vantagens tão im­pressionantes que deveríamos simplesmen­te “deixá-los em paz”. Aplaudimos as pala­vras de Martin Seligman (1998d):

Antes da Segun­da Guerra Mun­dial, o talento superior era uma missão da psico­logia. À medida que o nosso cam­po se voltou ca­da vez mais para populações clíni­cas, o gênio foi esquecido com­pletamente. No entanto, é fun­damental ao te­ma principal da psicologia positiva - a psicologia dedicada às melhores coisas da vida, bem como a curar as piores - a busca e a construção da expressão integral do talento de alto nível.

Não foi apenas a psicologia que negli­genciou as crianças superdotadas e ta­lentosas. [A negligência] é encontrada em toda a sociedade, mesmo nos mais impor­tantes formuladores de políticas no go­verno. Tive um encontro impressionante com um alto funcionário do Ministério da Educação dos Estados Unidos, em uma reunião do Conselho de Presidentes da Science Society, recentemente. Ele havia feito uma exposição sobre a política do governo Clinton, de difícil implemen­tação, mas elogiável, de tentar elevar as notas médias de todas as crianças do país em ciências e em matemática.

“O futuro das ciências e da matemáti­ca nos Estados Unidos depende não ape­nas de uma cidadania que tenha conheci­mento de ciências, mas, mais fundamentalmente, dessas próprias pessoas de pou­ca idade que irão se tornar nossos futu­ros cientistas e matemáticos”, comentei. “O que vocês estão fazendo para ajudar essas crianças?” “As crianças talentosas sabem se cui­dar”, ele respondeu.

Essa visão, muito difundida é, ao mes­mo tempo, equivocada e perigosa. Ela condena um número muito grande de crianças talentosas a ser deixadas de lado, em desespero e frustração. O talento in­telectual surge em muitas formas, e os pais, colegas e escolas muitas vezes não [349] conseguem reconhecer ou apoiar esses ta­lentos superiores e, o que é pior, rejeitam-nos à mediocridade. Essa negligência não é benigna, ela desperdiça um recurso na­cional precioso e insubstituível sob uma bandeira do “anti-elitismo”. A psicologia deve assumir de novo essa causa (p. 3).

Tendo dito isso, sobre o estímulo aos alunos mais inteligentes, fecharíamos esta seção observando que o alicerce da escolarização da psicologia positiva reside em uma atmosfera na qual professores e estu­dantes têm respeito e cuidado com vários pontos de vista e origens. Esse respeito flui dos professores aos alunos e dos alunos aos professores.

Objetivos (conteúdo)

O componente dos objetivos é re­presentado pelo se­gundo piso do pré­dio escolar baseado nas qualidades (vide a Figura 16.1). Ex­plorando as respostas dos alunos des­de a educação in­fantil até a facul­dade, a professora da Universidade de Stanford, Carol Dweck, montou um programa de pesquisa impres­sionante mostrando que os objetivos proporcionam um meio de tratar dos esforços de aprendizagem dos estudantes. Além dis­so, esses objetivos são especialmente úteis se forem um consenso entre professor e alu­nos (Dweck, 1999; Locke e Latham, 2002). Talvez os alvos mais úteis sejam os objeti­vos ampliados, nos quais o aluno busca um objetivo de aprendizagem um pouco mais difícil do que o atingido anteriormente. Objetivos razoavelmente desafiadores ge­ram aprendizagem, especialmente se puderem ser ajustados a estudantes específi­cos (ou grupos deles).

É importante que os alunos sintam al­guma sensação de contribuição em rela­ção à condução das aulas por parte de seus professores. É claro que estes estabelecem os objetivos da aula, mas, ao fazê-lo, têm a sabedoria de levar em consideração as re­ações de seus alunos anteriores. O sucesso dos objetivos de aula de­manda que se tome, sempre que possível, o material relevante em relação às expe­riências da vida real dos alunos (Snyder e Shorey, 2002). Isso aumenta a probabilida­de de que eles venham a se envolver com o material e aprendê-lo (vide Dweck, 1999).

Não recomendamos dar um destaque muito rígido às notas, uma vez que se te­nham estabelecido os objetivos de apren­dizagem. Cumprir metas, por exemplo, pode transformar os alunos em caçadores de notas, mais fascinados com seus desem­penhos e com se sair melhor do que seus colegas do que com aprender. De fato, esse tipo de cenário já foi associado a níveis mais baixos de esperança (Shorey et al., 2004) e mais ansiedade relacionada a fazer pro­vas (Dweck, 1999).

Também ajuda fazer com que os ob­jetivos sejam compreensíveis e concretos, assim como dividir um objetivo de apren­dizagem mais amplo em subobjetivos que possam ser cumpridos em etapas. Igual­mente, como observamos com relação às questões de diversidade na seção anterior, a definição de objetivos é facilitada quan­do os professores permitem que parte das notas dos alunos seja determinada por ati­vidades coletivas, nas quais a cooperação com outros alunos seja essencial. Mais uma vez, o paradigma da “sala de aula quebra-cabeça” (www.jigsaw.org), de Aronson, é muito útil para estabelecer objetivos.

Planos

Na Figura 16.1, o primeiro andar da escola das qualidades se divide em planos e [350] motivação, ambos interagindo com os ob­jetivos educacionais no segundo andar (e com o conteúdo). Assim como a construção da ciência a partir da acumulação de idéias, o ensino necessita de um processo cuidadoso de planejamento por parte dos educadores. Uma outra abordagem com relação ao planejamento é defendida pelo conhe­cido psicólogo social Robert Cialdini, da Arizona State University (vide Cialdini, 2005). Depois de estabelecer um objetivo de aprendizagem com relação a um deter­minado conteúdo psicológico, o professor Cialdini apresenta histórias de mistério aos alunos. Ao resolver o mistério, o aluno aprendeu o conteúdo específico. (A neces­sidade inerente de fechamento [vide Kruglanksi e Webster, 1996] com relação aos mistérios também motiva os alunos; a motivação é a companheira do planejamen­to, que discutimos na seção seguinte. Da mesma forma, como as estórias de misté­rio têm início, meio e fim, há um interesse inerente por parte dos alunos de chegar à conclusão [vide Green, Strange e Brock, 2002, sobre a motivação para se chegar ao fim de uma narrativa].)

Outro aspecto a ser levado em consi­deração ao se aumentar a motivação dos alunos é tornar o material relevante a eles (Buskist et al., 2005). No nível mais bási­co, quando as informações da disciplina são relevantes, os alunos têm mais probabili­dades de ir à aula, de prestar atenção e de fazer comentários durante as exposições (Lowman, 1995; Lutsky, 1999). Para au­mentar a relevância do material, os educa­dores podem desenvolver demonstrações de sala de aula e trabalhos para fazer em casa com vários fenôme­nos aplicáveis a situações com que os alu­nos se deparam fora da sala de aula.

Alguns educadores fazem levanta­mentos no início do semestre, quando pe­dem que os alunos descrevam os eventos positivos e negativos que aconteceram em suas vidas. Depois, podem utilizar os even­tos citados com mais frequência para construir demons­trações em sala de aula (Snyder, 2004). Ou, quando o educa­dor descreve um fe­nômeno, pode-se pe­dir que os alunos deem exemplos de suas próprias experi­ências. 

Antes de sair do tema da relevância, alertamos os educadores de mais idade para que não tentem cooptar as manifes­tações dos estilos de vida de alunos muito mais jovens. Essa é uma forma certeira de anular a motivação dos alunos. Nas pala­vras de Snyder (2004, p. 17-18),

Você já viu um professor de mais de 50 ou 60 anos de idade que se esforça tudo o que pode para ser tão “bacana” quanto seus alunos de 21? Não sei o que é mais digno de pena nesse fantasma. Seriam as roupas jovens do velho professor que pa­recem tão fora de lugar? É o corte de ca­belo rebelde, deslocado, feito em uma ca­beça com cabelos já insuficientes? Ou são as tentativas desajeitadas do professor gri­salho de tomar emprestada a linguagem dos universitários? É tolice, em minha opi­nião, que um educador de mais idade tente permanecer “na moda” e fazer parte da turma mais jovem. Na verdade, acho que esses professores acabam fazendo um papel ridículo e de mau gosto. Deixem disso, eu lhes digo, pois só quando somos jovens - porque é o que realmente somos nesse momento - é que é adequado. Além disso, a verdade é que nossos alunos não querem um parceiro de rock como pro­fessor.

Motivação (e mais: dando vida ao conteúdo da disciplina para os alunos)

Os professores devem estar entusias­mados em relação a seus conteúdos para [351] que consigam aplicar as aulas que prepa­raram (vide a seta interativa entre planos e motivação, no primeiro piso da Figura 16.1). Os professores são modelos de en­tusiasmo para seus alunos, de modo que, quando tornarem os objetivos e os planos de aula interessantes para si mesmos, os alunos facilmente captarão essa energia.

Os professores motivados são sensí­veis às necessidades e às reações de seus alunos. Professores que se baseiam em qua­lidades também levam muito a sério as perguntas de seus alunos, e fazem todos os esforços para lhes dar as melhores res­postas. Se o professor não sabe a resposta à pergunta de um aluno, será um estímulo para a turma se ela for informada de que, embora o professor não saiba a resposta naquele momento, fará todos os esforços para encontrá-la. A seguir, o professor passa a localizar a resposta à pergunta e a apre­senta na próxima aula.

Os alunos em geral gostam muito dessa capacidade de respon­der às suas demandas.

Os professores também aumentam o nível motivacional quando assumem riscos e experimentam novas abordagens em aula (Halperin e Desrochers, 2005). Quando esses riscos resultam em um exercício de sala de aula que não funciona, o professor pode rir de si mesmo. O humor gera ener­gia para o próximo exercício, junto com o nível de esforço do professor. Um lema do ensino baseado em qualidades é: “Se você não rir de si mes­mo, não entendeu a maior das piadas” (Snyder, 2005a).

Qualquer coi­sa que um professor possa fazer para que os alunos assumam mais responsabili­dade também pode elevar sua motiva­ção (Halperin e Des­ rochers, 2005). Nes­sa mesma linha, os alunos que esperam ser chamados em aula para responder a perguntas geralmente estão preparados para cada aula, tendo lido o material e acompanhado a exposição (McDougall e Granby, 1996).

Lembre-se de que a abordagem discu­tida anteriormente, da sala de aula “que­bra-cabeça”, estimula a aprendizagem e o planejamento de objetivos coletivos e que, ao fazê-lo, também gera motivação dos alunos à medida que eles trabalham jun­tos. De fato, ser parte de uma iniciativa co­letiva pode gerar uma sensação de energia.

Por fim, o elogio é muito motivador, mas é melhor fazê-lo em privado, porque um aluno pode se sentir desconfortável quando é individualizado na frente de seus colegas. O elogio público também pode aumentar a propensão dos alunos a com­petir entre si. Uma visita à sala do profes­sor ou uma reunião com o aluno fora da sala de aula podem ser bons momentos para apontar seu bom trabalho ou seus avanços (ou elogiá-lo por fazer boas per­guntas). Além disso, o correio eletrônico é um veículo adequado para dar feedback po­sitivo em privado, que pode ser motivador. As oportunidades para interagir bem com os alunos e os motivar são muitas, e os pro­fessores da psicologia positiva muitas ve­zes tentam transmitir esse feedback energizante.

Esperança

Se as lições mencionadas antes com relação a objetivos, planejamento e moti­vação forem aplicadas em uma sala de aula, haverá um espírito de investigação que os alunos captarão (Ritschel, 2005). Como disse o premiado professor da Auburn University, William Buskist (2005, p. 116),

Um aspecto essencial de nosso ensino é passar a tocha - compartilhar nossos va­lores acadêmicos, nossas curiosidades e nosso entusiasmo voltado à disciplina, e estimular os alunos a assumir esses [352] valores e qualidades e se apropriar deles. Ensinar não é emitir fatos e números sem nenhuma paixão. Ensinar é influenciar. E se preocupar profundamente com as idéias e com a forma como essas idéias são transmitidas, entendidas e expressa­das. É se preocupar profundamente com o conteúdo e com os alunos a quem o estamos comunicando. E é por meio des­se cuidado apaixonado que inspiramos os alunos.

Quando os alunos adquirem esse es­pírito, sua aprendizagem se amplia para aumentar sua sensação de fortalecimento. Dessa forma, eles são fortalecidos para se tornar solucionadores de problemas para toda a sua vida. Essa “aprendizagem de como aprender” se baseia em pensamento voltado a objetivos, baseado em caminhos, bem como na motivação do tipo “eu sou capaz”. Sendo assim, a escolarização da psicologia positiva não apenas transmite os conteúdos das disciplinas, como também produz uma sensação de esperança nos alunos. (Vide o Capítulo 9 para uma dis­cussão detalhada sobre a esperança.) A esperança é mostrada na cobertura do pré­dio da escola positiva da Figura 16.1. Um estudante esperançoso acredita que conti­nuará aprendendo muito tempo depois que já tiver saído da sala de aula. Ou talvez seja mais acertado dizer que o pensamen­to esperançoso não conhece limites na vida de um estudante que nunca parou de aprender.

Contribuições da sociedade

Uma última lição da psicologia posi­tiva é que os alunos entendam que fazem parte de um esquema social mais amplo, no qual compartilham aquilo que apren­deram com outras pessoas. Como mostra­do na nuvem potencialmente fomentadora acima da escola metafórica da Figura 16.1, essas contribuições da sociedade represen­tam as compensações duradouras que uma pessoa educada dá aos que estão ao seu redor, seja ensinando crianças a pensar positivamente, seja compartilhando visões e entusiasmo com a multidão de outras pessoas com as quais ela tem contato du­rante toda a sua vida. Portanto, a educa­ção positiva transforma os estudantes em professores que continuam a compartilhar aquilo que aprenderam com outras pessoas. Dessa forma, os benefícios do processo de aprendizagem são retransmitidos a uma ampla gama de outras pessoas. Na escolari­zação positiva, contudo, os alunos se tor­nam professores de outros.

Um exemplo de escolarização positiva: O programa StrenghtsQuest

O StrengthsQuest é um programa vol­tado a desenvolver e a engajar estudantes do ensino médio e universitários para que possam ter sucesso em seus empreendimen­tos acadêmicos em particular e em sua vida em geral. Esse programa deve sua existên­cia ao psicólogo positivo Donald Clifton, que começou seu trabalho com esse enfoque da psicologia da educação na Universidade de Nebraska-Lincoln, na década de 1950. An­tes de nos aprofundarmos em sua teoria e no programa educacional relacionado a ela, saudamos esse homem admirável. Don Clifton foi homenageado pela American Psychological Association como o “pai” da abordagem baseada em qualidades na psi­cologia, além de “avô” da psicologia positi­va (McKay e Greengrass, 2003). Ao contrá­rio das correntes intelectuais e aplicadas dos anos de 1950 até os de 1990, que nadaram nas águas turvas da psicologia voltada aos defeitos, o professor Clifton sempre pare­ceu ter uma questão crucial e diferente: “O que aconteceria se estudássemos o que está certo nas pessoas, em lugar de o que há de errado com elas?”.

Essa pergunta está no centro do pro­grama StrengthsQuest (vide Clifton e Anderson, 2002). É claro que esse enfoque [353] contrasta com a abordagem tradicional à educação, na qual os alunos são ensinados explícita e implicitamente que devem “con­sertar” suas deficiências e, se não o fize­rem, são reprovados (Anderson, 2005). Em termos da esperança e das motivações re­lacionadas a ela discutidas na seção ante­rior, o programa StrengthsQuest energiza os alunos. Isso acontece quando eles se dão conta de que são vistos como alguém que tem os talentos cognitivos naturais para ter sucesso na escola.

O programa StrengthsQuest começa fazendo com que os alunos realizem o Clifton StrengthsFinder, uma avaliação computadorizada, via internet, das cinco áreas de seus maiores talentos naturais. A avaliação envolve 180 itens. Em cada um deles, os respondentes selecionam o descritor mais aplicável de um par (por exem­plo, “Leio instruções com atenção” versus “Gosto de passar diretamente para o que interessa”). O aluno também classifica o grau em que a declaração escolhida é me­lhor do que aquela à qual está associada no par. Há 34 temas possíveis. e o estudante aprende quais cinco temas são mais aplicáveis a ele.

Até o momento, mais de 100 estudos já usaram o enfoque de avaliação do StrengthsFinder para predizer com preci­são uma série de indicadores de resulta­dos (Schmidt e Rader, 1999). Além disso, essa técnica passou por uma razoável vali­dação empírica de constructo (Lopez, Hodges e Harter, 2005).

A seguir, os estudantes completam (pela internet ou em formato impresso) o caderno de exercícios StrengthsQuest: discover and develop your strengths in academics, career, and beyond (Clifton e Anderson, 2002). Esse caderno ajuda os estudantes (assim como os professores, orientadores, coordenadores de residências estudantis e outras pessoas que trabalham com os estudantes) a entender e a cons­truir suas qualidades principais naquilo a que estejam se dedicando na escola naque­le momento. Por fim, os estudantes reali­zam uma formação mais profunda se ins­crevendo na página do StrengthsQuest (www. strengthsquest.com).

Na segunda e na terceira etapas des­sa abordagem educacional, os estudantes trabalham em suas qualidades principais, reveladas nos cinco temas mais consisten­tes do StrengthsFinder. Clifton e colabora­dores, incluindo pesquisadores da organi­zação Gallup (propriedade da família Clifton, que a opera), basearam essa se­gunda fase em suas conclusões de pesqui­sa de que as pessoas com os melhores de­sempenhos e os melhores estudantes

  1. claramente reconhecem seus talentos e os desenvolvem;
  2. aplicam qualidades naquelas áreas em que há boas associações com talentos e interesses naturais e
  3. geram formas de aplicar seus recursos na busca de objetivos desejados.

Essa parte do programa é semelhan­te aos elementos de objetivos e caminhos discutidos na seção anterior, sobre escolarização positiva (Anderson, 2005).

Paralelamente a esses três passos na abordagem Clifton, os alunos parecem pas­sar por três etapas distintas (o que se re­flete em artigos escritos por estudantes que participam do programa; Clifton e Harter, 2003). Na primeira etapa, parece que os estudantes identificam seus talentos; na segunda e na terceira etapas, respectiva­mente, eles têm revelações sobre como in­tegrar essas áreas de talento em suas autoconceituações e, após, fazem mudanças de comportamento (Buckingham e Clifton, 2001). À medida que o programa avança, os estudantes participantes observam exem­plos de coisas que estão fazendo que refli­tam suas predileções e talentos naturais (por exemplo, assumir papel de liderança em situações difíceis, dar instruções a ou­tros, aprender determinadas habilidades novas em determinadas áreas, com muita facilidade). Os alunos não apenas [354] reconhecem seus talentos, como também cada vez mais começam a “se apropriar” deles.

O programa StrengthsQuest está re­cebendo mais atenção nas escolas de ensi­no médio e nas faculdades em todos os Estados Unidos. Os estudos de resultados disponíveis sugerem que o programa tem efeitos positivos sobre os estudantes (vide Hodges e Harter, 2005). Por exemplo, em um estudo realizado com 212 alunos da UCLA que passaram pelo programa, por exemplo, eles relataram aumentos impor­tantes em altruísmo, autoconfiança, eficá­cia e esperança (Crabtree, 2002; Rath, 2002). Da mesma forma, um estudo reali­zado em outra grande universidade esta­dual concluiu que a esperança como esta­do dos estudantes (ou seja, motivação [355] voltada a objetivos, vinculada a um determi­nado tempo e situação, vide Snyder et al. [1996]) aumentou em fun­ção de seu envolvimento no programa StrengthsQuest (Hodges e Clifton, 2004). O que vale a pena destacar sobre essas con­clusões, tomadas em seu conjunto, é o grau em que as atividades envolvidas no pro­grama correspondem aos componentes re­lacionados à esperança (agência, caminhos e objetivos) descritos anteriormente neste capítulo e mostrados na Figura 16.1.

O ensino como vocação 

Assim como os professores negativos prejudicaram esse processo, os professores positivos desencadearam o entusiasmo e a alegria de aprender. Esses professores da escolarização positiva consideram seus es­forços como uma vocação em lugar de um trabalho (Wrzesniewski, McCauley, Rozin e Schwartz, 1997). Uma vocação se defi­ne como uma forte motivação na qual a pessoa repetidamente assume uma atitu­de intrinsecamente satisfatória (vide Buskist, Benson e Sikorski, 2005). Quando os preceitos da psicologia positiva são apli­cados ao ensino, acreditamos que os ins­trutores se comportam como se tivessem vocações nas quais demonstram um amor profundo e intenso por ensinar.

Alguns exemplos de mestres do ensi­no podem dar ao leitor uma sensação me­lhor de sua dedicação. Wilbert McKeachie, da Universidade de Michigan, que é muito aclamado por ter escrito o “manual” sobre ensino positivo em nível universitário, está chegando ao seu 60º ano na atividade de lecionar. Sobre sua atividade como professor, Mc­ Keachie (2002, p. 487) declara que o que quer é estar “pre­parando as aulas da semana seguinte, co­ordenando discussões, apresentando de­monstrações, trabalhando com monitores, interagindo com alunos de diversas ori­gens, lendo os diários dos alunos e, inclusive, comentando e dando notas a provas”.

Outro patriarca do ensino universitá­rio é Charles Brewer, da Universidade Fur­man. Ele retrata seu ensino como “praze­roso, revigorante, misterioso, frustrante, apaixonado, precioso e sagrado”. O pro­fessor Brewer (2002, p. 507) chega a ad­mitir que “lecionar proporciona mais diver­são do que a maioria das pessoas deveria ter”.

David Worley (2001, p. 279) retrata sua atividade de professor como “um so­nho que se tornou realidade” que ele dei­xa “viver a cada dia”. Worley também diz a seus alunos: “Eu fiz pós-graduação e pas­sei pelo trabalho difícil e desafiador, por uma única razão: queria estar aqui com vocês, hoje”.

Todos esses mestres do ensino consi­deram sua vocação como um privilégio, isto é, a chance de influenciar positivamente a vida de seus alunos (Buskist et al., 2005). O estudante e o professor, juntos, realizam uma jornada surpreendente, ilustrada na Figura 16.2.

Figura 16.2

Retribuindo aos professores

Nossa observação final com relação à escolarização positiva diz respeito ao pa­pel que você pode cumprir para melhorar [356] os professores. Há várias coisas que você pode fazer para ajudar os professores em particular e o sistema escolar em geral. Em primeiro lugar, pode trabalhar com os pro­fessores para ajudar, de qualquer maneira possível, a melhorar a aprendizagem de seus próprios filhos. A aprendizagem obviamente acontece fora da escola, e recomen­damos que você experimente várias ativi­dades com seus filhos, para reforçar e pra­ticar as lições que são ensinadas na escola. Da mesma forma, ofereça-se como volun­tário para ajudar em várias atividades es­colares. Seus filhos, assim como outras crianças, ficarão impressionados com o fato de que aprender não é uma coisa com a qual só os professores se preocupam.

Você pode também fazer visitas aos professores de suas escolas locais, tanto de nível fundamental quanto de nível médio, e lhes perguntar do que eles precisam para tornar seu ensino mais eficaz. As necessi­dades dos professores podem variar segun­do a disciplina, mas os computadores cos­tumam ser presentes úteis para a maioria das salas de aula. Se forem necessários computadores novos, ou outros materiais escolares, talvez uma atividade promovi­da por pais e membros da comunidade possa arrecadar o dinheiro necessário. Veja de que outros materiais os professores po­dem precisar para suas salas de aula. Tal­vez seus livros velhos possam ser doados para a biblioteca da escola.

Faça o que pu­der para que esses itens ou serviços sejam obtidos. Se você tem habilidades especi­ais, ofereça-se para ir às aulas e fazer de­ monstrações aos alunos. Você pode querer iniciar uma atividade política para elevar os impostos para a educação, com vistas a aumentar os salários dos professores e seus benefícios, ou construir novas salas de aula. Você é parte da solução da psicologia posi­tiva para melhorar as escolas em sua co­munidade.

Se houver professores em seu siste­ma escolar local que fizeram um trabalho maravilhoso quando lhe ensinaram, des­cubra quando esses professores planejam se aposentar. Eles dedicaram suas vidas a educar as crianças de sua comunidade, então por que não se reunir com outros ex-alunos? Ou ajude a organizar uma festa de despedida para o professor estimado. [359]

Psicologia - Psicologia positiva
Temas gerais - , 
3/27/2021 1:55:01 PM | Por André Bonnard
Ulisses, o mar e a diáspora grega

A segunda epopéia que até nos chegou sob o nome de Homero, ilustra uma das mais importantes destas conquistas: a que o povo grego fez do mar, a força de audácia, de paciência e de inteligência. Ulisses (de quem a Odisséia tirou o nome) é o herói desta conquista. Não é certo, e mesmo improvável que a Odisséia seja do mesmo autor que a Ilíada. Já os antigos o suspeitavam. A língua do poema, os costumes, as crenças religiosas são mais recentes talvez meio século que os da Ilíada. Contudo, o nascimento do poema, a sua composição pelo improviso, a sua transmissão primeiro oral no seio de uma corporação de poetas a quem chamavam os Homeridas, tudo se explica da mesma maneira que para a Ilíada. O autor que a compôs tirou sem duvida a matéria de um conjunto de poemas que formavam o vasto ciclo das lendas de Ulisses: ordenando as partes, que ele escolhia segundo as leis da arte, desenvolvendo ou reduzindo, soube dar ao poema que hoje lemos uma forte unidade, que lhe é conferida, em primeiro lugar, pela vigorosa personalidade do herói. Sem Ulisses, a Odisséia não seria mais que uma coleção de contos e aventuras de desigual interesse.

Mas não há nenhum destes contos, nenhuma destas aventuras - cujas origens são muito diversas e se perdem por vezes na noite do folclore primitivo da humanidade -, não há nenhuma destas narrativas que não nos fale da coragem ou da astucia ou da inteligência ou da sageza de Ulisses. O autor da Odisseia, aquele que a compôs, modelou, orientou uma matéria poética ainda informe, subordinando tudo, ação, episódios e personagens a Ulisses, aquele também que fixou pela escrita esta obra assim recriada, e um altíssimo artista. Mais ainda que um grande poeta. Pode-se fixar, muito proximamente, a data da composição da Odisséia na segunda metade ou mesmo nos finais do século VIII antes da nossa era. (Os sábios estão muito longe de chegar a acordo sobre esta data.) Escrita na mesma época da descoberta e da conquista do Mediterrâneo ocidental pelo povo grego, ainda que finja ignorá-las, a Odisséia é o poema da classe ascendente dos navegadores, mercadores e marinheiros, antes de se tornar a epopéia nacional do povo grego.

O nome do seu autor importa-nos pouco. Não há alias nenhum inconveniente em dar o mesmo nome, Homero (que era talvez uma espécie de nome familiar de todos os membros dos Homeridas), aos autores diferentes da Ilíada e da Odisséia. Mais de vinte e cinco séculos o fizeram antes de nós e isso não os impediu de apreciar as belezas destas obras-primas.

Sabe-se que os Gregos, ao chegarem ao seu pais, não conheciam já nem o mar nem o uso dos barcos. Os Egeus, seus mestres na arte náutica, usavam há séculos barcos a remos e a vela, descobriram os principais caminhos do mar, como diz Homero. Os que conduziam à costa asiática, os que levavam ao Egito, e, mais longe, os que abriam, a partir da Sicilia, o acesso ao Mediterrâneo ocidental. Por estes caminhos, os Egeus praticavam formas elementares de comercio, aquela a que se chama por exemplo ,troca muda, segundo a qual os marinheiros depõem na praia os produtos que querem trocar e, voltando aos seus barcos, esperam que os indígenas tenham deposto produtos de valor igual, após o que - muitas vezes depois de varias tentativas - as mercadorias são trocadas. Mas a forma mais primitiva e mais freqüente do comercio egeu ainda foi a simples pirataria. Os piratas pelasgos ficaram famosos durante muito tempo na tradição helênica: na realidade, tiveram temíveis sucessores.

Os Gregos propriamente ditos - é preciso repeti-lo - só lentamente, durante séculos, retomaram as tradições marítimas dos Egeus. Eram, acima de tudo, terrestres. Sem desdenhar a caça nem os seus magros rebanhos, tinham de aprender a cultura do solo antes da cultura do mar. Cedo a economia puramente agrícola deixou de bastar-lhes. Tiveram necessidade, tiveram desejo de produtos naturais e fabricados que só o Oriente podia proporcionar-lhes. Os nobres desejaram ouro em lingotes, jóias, tecidos bordados ou tingidos de púrpura, perfumes. Por outro lado, o Ocidente oferecia terra a quem queria tomá-la, e muito boa, dizia-se. Havia muito para tentar os indigentes, que já abundavam na jovem Grécia. Mas parece que a necessidade de certos metais contribuiu, mais que qualquer outra coisa, para impelir os Gregos para o mar. O ferro não era abundante na região. Sobretudo, o estanho faltava totalmente, tanto na Grécia como nos países vizinhos. Ora, este metal, que entra, com o cobre, na composição do bronze, era o único capaz de produzir, graças a esta liga, um bronze tão belo como resistente.

Se a espada de ferro, a partir da invasão dos Dórios, triunfara do punhal de bronze, e ainda o bronze que continua a ser no século VIII, é mais tarde, o metal por excelência da armadura defensiva do soldado pesado. Armadura de quatro peças: elmo, couraça dos ombros até ao ventre, perneiras nas canelas, escudo no braço esquerdo. Durante o tempo que esta nobre armadura reinou nos campos de batalha, o estanho era necessário àqueles que a usavam.

Foram pois nobres ousados, oriundos dos velhos clãs, que tomaram o comando das primeiras expedições de comercio. Só eles tinham meios para mandar construir e equipar barcos. Estes ricos terrestres não se enfadavam também de deitar a mão à esta nova fonte de riqueza, o comercio. Mas não bastava que tomassem o caminho do mar: precisavam de remadores, de homens de equipagem, de traficantes e de colonos. A massa dos sem-terra e dos sem-trabalho que pululavam na Grécia deu-lhes o núcleo das suas lucrativas expedições.

Mas onde encontrar esse raro estanho que exerce nos homens do século VIII uma espécie de fascinação? Em dois locais somente, pelo menos no Mediterrâneo. Ao fundo do mar Negro, na Colquida, no sopé do Cáucaso. Mileto, a grande cidade marítima da Jônia, tomou, depois de outras, este caminho oriental do estanho: com as minas do Cáucaso alimentou a sua metalurgia e a dos povos vizinhos. Mas havia um outro caminho do estanho, muito mais perigoso e desconhecido que a velha rota dos estreitos asiáticos: aquele que, contornando a Grécia pelo sul e metendo pelo mar sem ilhas, ia procurar para além do perigoso estreito de Messina, e, seguindo as costas da Itália, o estanho das minas da Etruria. Foi este o caminho das grandes cidades dos senhores da metalurgia, Calcis, na Eubeia, e Corinto.

Esta rota ocidental é também a do périplo de Ulisses, e foi sem dúvida para o público de aventureiros, de marinheiros, de colonos que o seguiam e também para esses ricos negociantes, essa oligarquia militar a quem o fabrico das armas apaixonava, que se compôs a nossa Odisséia. Ulisses tornava-se a guarda avançada desta multidão dispar de marinheiros, mercadores e aristocratas-industriais.

Contudo, a nossa Odisséia não canta em termos claros a historia da conquista do estanho. Faz o que fazem todas as epopéias. Transporta para um passado mítico as descobertas surpreendentes que um marinheiro fazia, cinqüenta ou cem anos antes (que podia fazer ainda, pensava-se), nos caminhos marítimos do Ocidente. Homero explora as narrativas dos navegadores que tinham explorado este mar desconhecido, cujas fábulas corriam por todos os portos - estórias de povos gigantes, de ilhas flutuantes, de monstros que devoram e despedaçam as naves. Por duas vezes o seu Ulisses encontra a ilha da feiticeira. E há também a estória da planta que faz esquecer ao marinheiro a pátria. A Odisséia está repleta de tais narrativas, como delas estão cheias as Mil e Uma Noites. Há nela, quaisquer que sejam a proveniência, a base histórica ou geográfica, contos que nada tem que ver, originalmente, com o regresso de Troia do chefe aqueu Ulisses, ponto de partida da nossa historia, e que são muito mais antigos que ele.

O Ulisses da Odisséia é um bom soldado, um chefe de grande autoridade que impõe a disciplina dos Tersitas do exército, um orador sutil, um diplomata. Nada o aponta como grande marinheiro. Na Odisséia, pelo contrário, todas as aventuras no gênero das de Simbad ou de Robinson Crusoe, que a imaginação popular das gentes do mar tinha forjado, parecem despejar-se sobre a sua cabeça. Atrai-as, torna-se "o homem que viu os povos numerosos, conheceu os seus costumes, suportou os males do mar, salvando a sua vida e a da sua gente". Torna-se o aventureiro dos mares, o homem "que errou por todos os lugares", o herói que sofreu sobre o mar "indizível",. Torna-se assim o antepassado e o patrono dos marinheiros perdidos nos mares do Ocidente, o legendário precursor desses corajosos aventureiros para quem Homero canta.

Mas outros elementos, anteriores ainda a estes contos de marinheiros, anteriores mesmo à navegação mediterrânica, entram na composição da figura de Ulisses. Ulisses, ou Odisseu, é o herói do conto popular do regresso do esposo. Um homem partiu para uma longa viagem. Ser-lhe-á a esposa fiel e reconhece-lo-á no regresso? Tal é o nó deste conto antigo, que se encontra igualmente nos escaldos escandinavos e no Râmayana. O marido que regressa, envelhecido ou disfarçado, e é reconhecido por três sinais que garantem a sua identidade. Os sinais variam de uma para outra versão do conto. Mas vêem-se muito bem, na Odisséia, os três sinais da versão que Homero conheceu. Só o marido é capaz de esticar o arco que possuía. Só ele sabe como foi construído o leito nupcial. Finalmente, tem uma cicatriz que só a esposa conhece - sinal que deveria ser o ultimo do conto, porque assegurava o reconhecimento dos esposos de uma maneira definitiva. Tal era a ordem provável dos sinais no conto seguido por Homero. O poeta utilizou-os em três cenas particularmente dramáticas do poema, mas invertendo-lhes a ordem, modificando-lhes o alcance, variando-lhes as circunstâncias. Nos contos populares, os acontecimentos produzem-se quase sempre em series de três. Esta repetição de três sustenta a atenção duma curiosidade ingênua. Homero, em vez de acentuar o efeito de repetição, varia tanto quanto possível as circunstancias dos três sinais. Só o sinal do leito nupcial é utilizado para o reconhecimento dos dois esposos, na cena admirável em que Penélope, ainda desconfiada, arma uma cilada a Ulisses. Ordena a Euricleia que transporte o leito nupcial para fora do quarto de dormir. Ulisses estremece. Ele próprio o construiu em tempos, afeiçoando os pés da cama num tronco de oliveira que as raízes ligam ao solo. Sabe que a ordem não pode ser executada, salvo se um miserável cortou a oliveira pela base. Di-lo, e desta maneira se faz reconhecer pela mulher. O sinal do arco é utilizado na grande cena do concurso entre os pretendentes. Ulisses, ao esticar o arco que ninguém pode retesar, e ao lançar a sua flecha contra Antinoo, faz-se reconhecer pelos pretendentes, a quem lança o seu nome como um desafio. Finalmente, o sinal da cicatriz é utilizado, antes de nenhum outro, numa cena inesperada, para nós e para Ulisses: a cicatriz fa-lo-á ser reconhecido por Euricleia, a velha serva, na cena em que ela lhe lava os pés - o que provoca uma grave peripécia na ação e faz perigar o plano sabiamente combinado de Ulisses.

Assim a arte de Homero enriquece de circunstancias vivas, imprevistas e diversas, os elementos que ele recebe, em serie do conto do regresso do esposo.

Tais são algumas das origens longínquas da Odisséia, poema do regresso de um homem à sua pátria.

É inútil contar uma vez mais este poema tão conhecido. Não esqueçamos no entanto que Ulisses não é mais que um proprietário rural muito ligado ao seu domínio, como a Penélope, sua mulher, cortejada por vizinhos na sua ausência, como a Telemaco, seu filho, a quem deixou ainda pequeno, ao partir. Conquistada Troia apos dez anos de cerco, Ulisses só pensa em regressar o mais depressa possível. Mas tem de dar a volta a Grécia para chegar  à sua ilha de Itaca. É então, no cabo Maleia, que uma tempestade o atira para os mares do Ocidente, na direção da Sicilia, da Sardenha, da África do Norte, que, nos séculos que se sucedem à guerra de Troia, se tornaram regiões para além do mar desconhecido, terras assustadoras e povoadas de monstros. Assim, forçadamente, este terrestre se torna marinheiro. Mas ele só pensa no regresso, na sua Itaca, na sua família, nas suas terras.

A Odisséia é o relato dos dez anos deste regresso, e a luta contra as ciladas do mar, e depois, quando chega a casa disfarçado, a luta contra os pretendentes que lhe assediam a mulher, lhe devoram os bens, instalados na sua própria casa, e que ele chacina com a ajuda de seu filho de vinte anos e de dois servidores fieis a quem lentamente, prudentemente, se revela. A Odisséia é a reestruturação de uma felicidade familiar. Mas, para isso, quantos esforços e combates!

O mar do Ocidente é para os homens desse tempo uma realidade temível, ainda indomada. Inúmeros perigos esperam os homens que por ele se aventuram. Há correntes que arrebatam os barcos, tempestades que os despedaçam nos estreitos ou contra os rochedos dos cabos, ou então, fulminada pelo raio, a nave enche-se de enxofre e a equipagem e atirada ao mar. Ou então, ainda, é o céu que se esconde, às estrelas-bússolas que se furtam, e já ninguém sabe se está do lado das trevas onde o sol se afunda sob a terra, ou do lado da aurora donde ele emerge. São estes alguns dos riscos quotidianos que Ulisses defronta. Mas há também os piratas que esperam os barcos nos estreitos, que os pilham, e que vendem os marinheiros como escravos. Ou os selvagens que trucidam os marinheiros desembarcados numa costa desconhecida. Ou os antropófagos.

E com que barco se aventuram Ulisses e os seus no mar assustador? Um barco sem coberta, que apenas possui uma vela, a qual só pode servir com vento pela popa. Impossível navegar com vento pela frente, fazendo bordos. Se o vento é contrario, nada mais se pode fazer que remar, o que exige um esforço esgotante. Tenta-se, quase sempre, seguir ao longo da costa, na falta de outra carta que não sejam as constelações celestes, e sobretudo por causa dos víveres. Apenas se pode levar um pouco de pão - uma espécie de bolacha - e pouquíssima água. Isto exige escalas quase diárias e, muitas vezes, longas buscas em terra desconhecida para descobrir uma fonte. A não ser que se pendure no alto do mastro uma pele de carneiro que durante a noite se impregna de orvalho e que e depois espremida para conseguir uma gamela de água.

Assim é a vida do marinheiro grego do século VIII, uma vida de cão, em que o homem está entregue sem defesa a mais temerosa das forças naturais. Ulisses que - segundo a lenda - precede os conquistadores do mar nas rotas do Ocidente, avança como um herói para terras que, logo depois dele, vão povoar-se de cidades gregas. Mas avança ainda através das narrativas que dele contam as gentes do mar, para regiões fabulosas, todas eriçadas de perigos fantásticos que, na imaginação popular, duplicam ainda os perigos.

Na costa da Itália não há apenas os selvagens antropófagos, há o povo dos Ciclopes, gigantes de um só olho que vivem do queijo e do leite dos seus rebanhos, comendo também estrangeiros se a ocasião se proporcionar.

Nas ilhas do mar há também as belas deusas-fadas que retém os navegantes nas delicias e nas armadilhas dos seus amores. Entre elas, a deusa Circe que, no momento de se entregar aos homens que a desejam, lhes bate com a varinha e os transforma em leões, lobos ou outros animais. É a desgraça que acontece à maior parte dos camaradas de Ulisses, que são transformados em porcos. Mas Ulisses nunca abandona os seus. Corajosamente, ajudado pelo deus Hermes, apresenta-se no palácio da deusa, sobe a cama dela, ameaça-a com a espada e arranca-lhe o segredo do encanto. Os companheiros, que o julgavam perdido, acolhem-no "como os bezerros acolhem a manada das vacas que, de ventre repleto, tornam ao estábulo: saltam ao encontro delas, estendem o focinho, as varas do cerrado não podem conte-los, e mugindo rodeiam as mães".

Outras deusas habitam as ilhas do mar. Há a ninfa Calipso. Lançado na margem próxima da gruta da ninfa, Ulisses apaixona-se por ela, como um navegador dos mares austrais se apaixonaria por uma bela polinésia. Mas cansa-se mais depressa da sua conquista que a própria ninfa que, durante sete anos, guarda todas as noites no seu leito o mortal audacioso a quem ama e que um naufrágio privou do meio de a deixar. Todos os dias, porém, Ulisses se vai sentar num rochedo da margem e olha sem fim a extensão sem limites que o separa da terra pátria, da mulher, do filho, do seu domínio plantado de vinhas e de oliveiras. Calipso acaba por ser obrigada, por ordem de Zeus, a deixá-lo partir. Dá-lhe um machado, um martelo, cavilhas, com os quais ele constrói para desafiar a vasta extensão, não sem medo, uma simples jangada.

Há ainda, numa outra ilha do mar, as Sereias: são mulheres-aves-fadas que atraem os marinheiros cantando com uma voz maravilhosa e depois os devoram. No prado, diante delas, vêem-se ossos amontoados. Nenhum navegador que tivesse passado ao largo desta ilha pode resistir ao apelo da mágica voz. Ulisses quer escutar o canto inaudito das sereias, mas não ser vitima delas. Reflete, como é seu costume, descobre o meio de ter o que deseja e de evitar o que teme. Tapa com cera os ouvidos dos seus marinheiros e faz-se atar ao mastro do barco. Assim, para saborear uma beleza interdita ao comum dos mortais, Ulisses enfrenta um risco terrível e triunfa. Único entre os homens, ouviu sem perecer a voz das Aves-Magicas.

Estas ultimas estórias, de que o poeta da Odisséia fez maravilhosas narrativas, mostram que, para o povo grego da época homérica, o mar, por mais cheio de perigos que fosse, não tinha menos atrativos. Ulisses teme o mar, mas também o ama e quer possuí-lo no prazer. Esta extensão sem limites, cujo pensamento, diz ele, lhe "despedaça o coração", e também a grande sedutora. Oh! sem duvida, em primeiro lugar, por causa do proveito que dela se tira. É para além do mar, diz, que ,se amontoam numerosos tesouros; e percorrendo uma vasta parte do mundo que se traz para casa o esplendor do ouro, da prata e do marfim.

Por vezes, este Ulisses que só pensa em voltar para casa, parece ter pena de deixar uma certa ilha deserta que ninguém pensou em cultivar, o que o espanta. Já em imaginação dispõe as diversas regiões da ilha ainda selvagem: aqui, prados úmidos, de terra mole; além, belos vinhedos; mais adiante, campos onde a lavoura seria fácil e que produziriam belas colheitas. Apanha um punhado de terra e verifica que há "gordura debaixo da terra". Admira o porto tranqüilo, defendido do vento e da vaga, de tal maneira que os barcos nem sequer teriam necessidade de amarras. Ulisses, o terreno, parece ter alma de colono. Vê já crescerem nestas terras distantes (ainda desertas ou povoadas de monstros) as cidades que o povo construirá (que começa já a construir).

Assim o além do mar, tão forte como o medo, exerce a sua atração. E não é apenas o gosto do lucro que surge na lenda odissaica, é a infinita curiosidade do povo grego pelo mundo e suas maravilhas. Ulisses não resiste nunca ao desejo de ver coisas estranhas. Porque penetra ele na caverna do Ciclope, apesar das suplicas dos companheiros? Ele o diz: em parte porque espera obter dele, por persuasão, os presentes de hospitalidade que é uso oferecer aos estrangeiros, mas sobretudo porque quer ver esse ser estranho, esse gigante que não é "um comedor de pão". Do mesmo modo, quer ver Circe e quer ouvir as Sereias. Há em Ulisses um profundo sentimento de espanto em relação ao mundo e ao que ele contem. Ulisses, como todos os primitivos, pensa que a natureza esta cheia de mistérios, e tem medo dela - e o seu medo povoa-a de monstros. Mas quer ir ver esse mistério: quer devassá-lo e conhecê-lo. E, finalmente, dominá-lo e tornar-se senhor da natureza. É nisto que Ulisses é um homem civilizado.

Antes de conquistar o mar, de domar o mar e os caminhos do mar, Ulisses defronta-o naquilo em que ele é temível e sedutor. E dos seus sonhos e das suas esperanças que ele o povoa, assim como dos seus temores. Imagina-o, e de algum modo reinventa-o, carregado das maravilhas que cabe talvez ao homem descobrir ou inventar um dia. É este poder de reinvenção do mundo e do homem que da todo o valor, todo o encanto a um dos episódios mais belos da Odisseia, a aventura de Ulisses na terra dos Feaces, o seu encontro com Nausica.

Quem são estes Feaces? Não os procuraremos em nenhuma carta. É um povo de homens felizes que habitam, no seio do mar enfim domado, uma terra maravilhosamente fértil, onde vivem em sabedoria e em simplicidade. A terra dos Feaces - que se chama Esquefa - é um El-Dorado, é uma ilhota da idade do ouro poupada pelo tempo: a natureza e a arte rivalizam ali em belezas, em esplendores, em virtudes.

No grande pomar do rei Alcino, nunca as arvores deixam de produzir em todas as estações. Lá, cresciam grandes arvores de altas ramagens, que produziam a pêra e a romã, as belas laranjas, os doces figos e as verdes azeitonas. E nunca os frutos faltavam, de Inverno como de Verão. O bafo do Zefiro fazia rebentar uns e amadurecer outros, a pêra nova após a velha pêra, a maga apos a maga, o cacho apos o cacho, o figo depois do figo.

Quanto ao palácio de Alcino, brilha de uma luz que parece de sol e de lua. O ouro, a prata e o bronze ali resplandecem. Cães de ouro, mas vivos, obras-primas do deus Hefesto, guardam as portas. É um conto de fadas, este palácio. Neste El-Dorado, os costumes são também de ouro, o coração de Nausica é de ouro e toda a família é digna do paraíso terrestre. A navegação feace ficou nessa idade de ouro imaginada pelos infelizes marinheiros que remam contra ventos e vagas grossas: as naves dos Feaces são barcos inteligentes. Conduzem o marinheiro aonde ele quer ir, sem temer as avarias nem a perda entre as brumas.

Tal e Esqueria, que, ainda por cima, é a pátria da dança e do canto. Sem dúvida, há aqui uma parte de sonho, de conto de fadas, mas há também, no engenhoso povo grego, a idéia confusa, a imaginação clara de que os homens poderiam um dia fazer da terra um jardim maravilhoso, um pais de paz e de sabedoria, no qual levariam uma vida de felicidade...

Mas a maravilha de Esqueria ainda é Nausica, essa filha de rei, de tão graciosa simplicidade, igualmente capaz de fazer a barrela e de acolher com dignidade um estrangeiro nu como um selvagem que sai do bosque para lhe falar. Na véspera, Ulisses, atirado para a costa por uma tempestade, deitara-se sob os ramos na orla do bosque. Entretanto, nessa noite, Nausica teve um sonho. Atena dá-lhe a entender que ela breve casará e que deve, para o dia da boda, lavar a roupa da família no regato junto ao mar. Nausica vai falar ao pai e diz-lhe:

"Meu querido pai (em grego: Pappa phile), não quererás tu mandar preparar-me um carro que me conduza à beira-mar, onde devo lavar a roupa? Tu precisas de roupa lavada para ires ao Conselho. E meus três irmãos, que ainda não são casados, não querem ir ao baile sem roupa lavada de fresco..."

No entanto, Nausica cora de mencionar diante do pai as suas núpcias floridas. Mas o pai adivinhou-a e responde-lhe:

"Minha querida filha, não te recusarei nem um carro... nem coisa alguma".

Nausica parte pois com as servas e a roupa. Lavam-na calcando-a com os pés no regato, estendem-na nas pedras da margem. Merendam, depois jogam a bola. Mas uma bola cai no rio. Todas as moças gritam, e Ulisses acorda. Sai do bosque, tendo apenas o cuidado de partir um ramo para esconder a sua nudez sobre as folhas. As servas assustadas fogem para longe. Só Nausica não se mexe e espera firmemente o estrangeiro. Ulisses aproxima-se e faz a moça, a quem quer conquistar para o seu projeto, mas sem a assustar, um discurso "cheio de mel e habilidade". Ele diz:

"Sejas deusa ou mortal, ó rainha, suplico-te! Se és uma das deusas que habitam o vasto céu, penso que deves ser a filha de Zeus, Artemis, de quem tens a estatura, o talhe e a beleza. Mas se és uma das mortais que habitam a terra, três vezes felizes teu pai e tua nobre mãe, três vezes felizes teus irmãos. O seu coração deve encher-se de alegria quando eles vêem um tão belo ramo de verdura como tu entrar na dança. Mas mais feliz que ninguém no mundo, o marido que merecer lavar-te para a sua casa... Um dia, em Delos, vi um jovem tronco de palmeira de extrema beleza que, brotando do chão, subia para o céu. E, olhando-o, muito tempo fiquei estupefato de que uma coisa tão bela tivesse saído da terra... Assim, moça, te admiro e estou cheio de espanto, e tenho medo de tocar os teus joelhos..."

Depois disto conta-lhe uma parte das suas desgraças, mas sem lhe dizer o nome, e pede-lhe que o conduza ao pai. O resto passa-se como tinha de passar-se. Ulisses, estrangeiro e desconhecido, é recebido com generosidade pelo povo de Feaces. Conta então a sua historia, diz quem é. Reconduzem-no à sua pátria, onde terá ainda duros combates a travar contra os senhores que lhe pilham a casa, a pretexto de quererem casar com a mulher. Reconstrói enfim a felicidade ameaçada, à força de coragem, de inteligência e de amor.

Tais são alguns dos aspectos desta Odisséia que se tornou o poema mais popular de um povo de marinheiros - aquele em que as crianças gregas, que aprendiam a nadar logo que sabiam andar, aprendiam também a ler, decifrando-o e recitando-o em coro.

Este poema do marinheiro, feito com a experiência recente que um povo terreno tinha do mar, este poema feito de lutas e de sonhos, é também um poema de ação. Na pessoa de Ulisses, lança um povo curioso e bravo à conquista cada vez mais vasta do mar. Poucas gerações após a Odisséia, o Mediterrâneo, do Oriente ao Extremo Ocidente, será um lago grego cujas rotas principais estarão para o futuro demarcadas e conquistadas. Assim a poesia grega se liga sempre a ação: dela procede e a guia, dá-lhe uma firmeza nova.

Mitologia - Mitologia Grega
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3/27/2021 1:50:58 PM | Por Robert Graves
A revolta dos gigantes

Enfurecidos por Zeus ter confinado no Tártaro seus irmãos, os titãs, certos gigantes terríveis, de cabeleira espessa, barba hirsuta e com cauda de serpente no lugar de pés, organizaram um assalto ao Céu. Eles haviam sido concebidos pela Mãe Terra em Flegras, na Trácia, e totalizavam 24. Sem aviso prévio, eles se posicionaram no topo de suas montanhas e, de la, passaram a atirar aos céus rochedos e árvores em chamas, deixando em polvorosa os habitantes do Olimpo. Hera profetizou amargamente que os gigantes nunca poderiam ser mortos por um deus, apenas por um simples mortal com pele de leão, e que mesmo ele não poderia fazer nada, a não ser antecipar-se ao inimigo na busca de uma erva da invulnerabilidade, que crescia num lugar se­creto da terra. Zeus foi imediatamente consultar-se com Atena, encarregou-a de avisar Hercules de tudo o que estava acontecendo — Hércules era, evidentemente, o mortal com pele de leão a quem Hera havia se referido - e proibiu Eros, Selene e Hélio de brilharem durante um tempo. Sob a tênue luz das estrelas, Zeus perambulou pela terra na região indicada por Atena, encontrou a erva e a levou em segurança para o Céu.

Os olímpicos agora já podiam travar combate com os gigantes. Hércules disparou sua primeira flecha contra Alcioneu, o líder dos inimigos, que tombou, mas voltou a se erguer ressuscitado, porque estava em Flegras, sua terra natal. “Depressa, nobre Hércules!”, gritou Atena. “Mande-o para outro país!” Hércules agarrou Alcioneu e o pôs sobre seus ombros, levando-o até o outro lado da fron­teira da Trácia, onde o matou com uma clava.
Em seguida, Porfirião saltou para dentro do Céu a partir da grande pirâmide de rocha que os gigantes haviam construído, e nenhum dos deuses conseguiu manter-se em pé. Só Atena conseguiu adotar uma posição de defesa. Porfirião passou por ela como um raio e avançou contra Hera, tentanto estrangulá-la, mas, ferido no fígado por uma flecha oportunamente disparada pelo arco de Eros, sua [158] fúria se converteu em luxúria, o que fez com que ele arrancasse a gloriosa roupa de Hera. Zeus, ao ver que sua esposa estava prestes a ser violada, foi tomado por um ataque de ciúme e derrubou Porfirião com o seu raio. O gigante tornou a se levantar, mas Hércules, que regressava a Flegras naquele exato momento, feriu-o mortalmente com uma flecha. Nesse meio-tempo, Ares foi derrotado por Efialtes e obrigado a se ajoelhar diante dele. Mas Apolo feriu o desgraçado no olho esquerdo e lançou um grito de aviso a Hércules, que imediatamente lançou outra flecha em seu olho direito. Assim morreu Efialtes. Desde então, sempre que um deus feria um gigante —como quando Dionísio derrubou Êurito com seu tirso, ou quando Hécate queimou Clítio com suas tochas, ou quando Hefesto escaldou Mimas com uma vasilha de metal incandescente, ou quando Atena esmagou o lascivo Palas com uma pedra —, era Hércules quem tinha de se incumbir do golpe mortal. As deusas amantes da paz, Héstia e Deméter, não tomaram parte no conflito, permanecendo de pé, aterro­rizadas, retorcendo as mãos de angústia. As Parcas, entretanto, fizeram vibrar os pilões de bronze com grande eficiência.

Desencorajados, os demais gigantes bateram em retirada para a terra, per­seguidos pelos deuses do Olimpo. Atena lançou um enorme projétil na direção de Encélado, esmagando-o e convertendo-o na ilha da Sicília. Poseidon partiu a ilha de Cós com o seu tridente e lançou-a contra Polibotes, que se transformou na ilha próxima de Nisiros, onde está enterrado.

Os demais gigantes realizaram uma última tentativa em Batos, perto de Trapezunte, na Arcádia, onde ainda arde a terra, no meio da qual os lavradores, às vezes, ainda encontram ossos de gigantes. Hermes, tomando emprestado o elmo da invisibilidade de Hades, derrotou Hipólito, e Ártemis atravessou Gration com uma flecha, ao passo que os pilões das Parcas destroçaram a cabeça de Agrior de Toante. Ares, com sua lança, e Zeus, com seu raio, ocuparam-se do resto, embora Hércules ainda fosse chamado para liquidar cada gigante à medida que iam caindo. Conta-se ainda que a batalha teria ocorrido nos Campos Flégreos, peerto de Cumas, na Itália.

Sileno, o sátiro nascido da terra, afirma haver participado dessa batalha ao lado de seu discípulo Dionísio, matando Encélado e semeando o pânico entre os gigantes com o zurro de seu velho burro de carga. Mas Sileno está quase sempre bêbado e não consegue distinguir a verdade da mentira. [159]

Este é um relato pós-homérico, que se conserva numa versão deturpada: Eros e Dionísio, que participam da luta, são os últimos a chegar ao Olimpo, e Hércules é ali admitido antes de sua apoteose no monte Eta. O relato tem como objetivo explicar a descoberta de ossos de ma­mute em Trapezunte (onde ainda estão expostos no museu local) e as erupções vulcânicas próximas de Batos, além daquelas existentes na Palene trácia e árcade, em Cumae e nas ilhas da Sicília e Nisiros, sob as quais diz-se que Atena e Poseidon teriam enterrado dois gigantes.

O incidente historico subjacente à rebelião dos gigantes —e também à rebelião dos Aloídas, geralmente considerada uma réplica da ante­rior - parece ser uma tentativa concertada entre os montanheses não helênicos de atacar certas fortalezas helênicas, tentativa essa que foi rechaçada pelos súditos aliados dos helenos. Mas a impotência e a covardia dos deuses, em contraste com a invencibilidade de Hércules, e os cômicos incidentes da batalha são mais carac­terísticos da ficção popular do que do mito.

Não obstante, há um elemento religioso oculto nessa história. Esses gigantes não são de carne e osso, mas sim espíritos nascidos da terra, como demonstram suas caudas de serpente, e só é possível abatê-los mediante a posse de uma erva mágica. Nenhum mitógrafo menciona o nome da erva, mas prova­velmente tratava-se de ephialtion, remédio específico contra pesadelos. Efialtes, o nome do líder dos gigantes, significa literalmente “o que salta” (incubus em latim). As tentativas de Porfirião de estrangular e violar Hera, bem como as de Palas de violar Atena, sugerem que a estória se refere principalmente à sabedoria de invocar Hércules, o Salvador, quando alguém se encontra acossado por pesa­delos eróticos em qualquer momento das 24 horas do dia.

Alcioneu (“asno poderoso”) é possivelmente o espírito do siroco, “o vento do Asno Selvagem, ou Tífon”, que atrai sonhos maus, além de incli­nação ao assassinato e ao estupro. Isso faz com que a afirmação de Sileno de haver desnorteado os gigantes com o zurro do seu asno seja ainda mais ridícula. Mimas (“mímica”) pode se referir à ilusória verossimilhança dos sonhos. Hipólito ("estouro de cavalos”) recorda a antiga atribuição dos sonhos de terror à deusa com cabeça de égua. Nos países setentrionais, os que padeciam de pesade­los invocavam Odin, até que seu lugar foi ocupado por são Swithold.

O uso que Hércules deu à erva pode ser deduzido do mito babilônico da luta cósmica entre os deuses novos e os antigos. Lá, Marduk, o equivalente de Hércules, segura uma erva na altura de suas narinas para encobrir o odor insupor­tável da deusa Tiamat; aqui, é o hálito de Alcioneu que tem de ser encoberto. [160]

 

Mitologia - Mitologia Grega
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3/19/2021 4:24:49 PM | Por Robert Graves
Os filhos do mar

As cinqüenta nereidas, amáveis e benfazejas ajudantes da deusa marinha Tétis, são sereias, filhas da ninfa Dóris com Nereu, um profético ancião do mar que tinha o poder de mudar de forma.As Fórcidas, primas das nereidas, filhas de Ceto e Fórcis, outro sábio ancião, são Ladão, Equidna e as três górgonas que habitam a Líbia; são também três Gréias e, segundo dizem alguns, as três Hespérides. As górgonas se cha­mavam Esteno, Euríale e Medusa, e houve um tempo em que eram belas. Mas uma noite, Medusa deitou-se com Poseidon, e Atenas, enfurecida porque haviam copulado num de seus templos, converteu-a num monstro alado com olhos brilhantes, dentes enormes, uma língua protuberante, garras afiadas e cabelos serpeirinos, cujo olhar convertia os homens em pedra. Quando finalmente Medusa foi decapitada por Perseu e de seu cadáver saíram os filhos de Poseidon, Crisaor e Pégasaso, Atena cravou a cabeça da morta em sua égide, embora alguns digam que a égide era a própria pele da Medusa, esfolada por Atena.

As Gréias tinham um rosto agradável e aspecto de cisne, mas eram grisalhas de nascimento e compartilhavam, todas as três, de um só olho e um só dente. Seus nomes eram Enio (Belona, entre os romanos), Péfredo e Dino.

As três Hespérides, chamadas Hespera, Egle e Erítia, habitam o longínquo jardim ocidental que a Mãe Terra deu a Hera. Há quem as chame de filhas Noite; outros, de filhas de Atlas e de Hésperis, filha de Héspero. As três can­tam docemente.

Metade de Equidna era uma mulher formosa, e a outra metade, uma serpente malhada. Durante algum tempo ela viveu numa caverna profunda onde devorava vivos os mortais que dela se aproximavam, e deu a [153] seu marido, Tífon, uma prole de características monstruosas: Ortro, Cérbero, a Hidra de Lerna e a Quimera. Mas Argos, o gigante de cem olhos, matou-a enquanto ela dormia.

Ladão era todo serpente, embora dotado da capacidade humana de falar, e guardou os pomos de ouro das Hespérides até o momento em que Hércules o matou.

Nereu, Fórcis, Taumante, Euríbia e Ceto eram filhos de Ponto com a Mãe Terra. E por isso que as Fórcidas e as nereidas declaravam-se primas das harpias. Estas são as filhas louras e de asas velozes de Taumante com a oceânida Electra, que arrebatam os criminosos para serem punidos pelas Erínias. Todas vivem numa caverna cretense.

Parece que o título de Eurínome (“amplo governo” ou “grande viagem”), da deusa-Lua, proclamava sua soberania sobre o céu e a terra. Euríbia (“ampla força”) era seu título como governante do mar, e Eurídice (“ampla justiça”) era a governante que apanhava serpentes no mundo subterrâneo. A Eurídice eram oferecidos sacrifícios humanos masculinos, com mortes aparentemente provo­cadas por veneno de víbora. A morte de Equidna pelas mãos de Argos refere-se provavelmente à supressão do culto argivo à deusa-serpente. Seu irmão Ladão é a serpente oracular que assombra todos os paraísos, enrolando-se na macieira.

Entre os outros títulos marinhos de Euríbia encontram-se: Tétis (“a que dispõe”), ou sua variante Tethys; Ceto, correspondente ao monstro marinho hebraico Rahab, ou ao babilónico Tiamat; Nereide, como deusa do elemento úmido; Electra, como provedora de âmbar, produto marinho altamen­te valorizado pelos antigos; Taumante, como maravilhosa; e Doris, como generosa. Nereu —alias Proteu (“primeiro homem”) —, o profético “ancião do mar” que tomou seu nome de Nereide, e não o contrário, parece ter sido um rei sagrado oracular enterrado numa ilha costeira. Na pintura de uma ânfora primitiva, ele está representado com rabo de peixe e com um leão, um cervo e uma víbora saindo de seu corpo. Na Odisséia, Proteu também mudava [154] de forma, para indicar as estações pelas quais ia passando o rei sagrado desde o nascimento até a morte.

As cinqüenta nereidas parecem ter sido uma corporação de cinqüenta sa­cerdotisas lunares, cujos ritos mágicos asseguravam pesca abundante. E as górgonas aparentemente eram as representantes da deusa tripla que envergavam másca­ras profiláticas - com o cenho franzido, olhos brilhantes e a língua protuberante entre dentes descamados —para apartar os profanos dos Mistérios da deusa. Os Filhos de Homero conheciam uma só górgona, que era uma sombra no Tártaro (Odisséia XI. 633-635) e cuja cabeça, motivo de terror para Odisseu (Odisséia XI. 634), Atena usava em sua égide, sem dúvida para advertir o povo a não se intrometer nos mistérios divinos ocultos por ela. Os padeiros gregos costumavam pintar máscaras de górgonas nas portas de seus fornos para dissuadir bisbilhoteiros de abri-las, impedindo assim que a corrente de ar estragasse o pão. Os nomes das górgonas —Esteno (“forte”), Euríale (“ampla perambulação”) e Medusa (“a astuta”) - são títulos da deusa-Lua. Os órficos chamavam a face da Lua de “cabeça de górgona”.

A condição de Posídon como genitor de Pégaso, com Medusa, evoca condição de genitor do cavalo Árion, ao copular com Deméter disfarçada de égua, bem como o subseqüente ataque de fúria da deusa. Ambos os mitos descrevem como os helenos de Posídon eram obrigados a se casar com as sacerdotisas da Lua, ignorando suas máscaras gorgôneas, e a se encarregar dos ritos de invocação da chuva do culto ao cavalo sagrado. Mas uma máscara de Deméter ficava guardada dentro de uma arca de pedra em Feneu e era usada pelo sacerdote da deusa durante a cerimônia de golpear com varas os espíritos infernais.

Crisaor era o signo da Lua nova de Deméter, a foice ou cimitarra dourada usada por seus consortes quando a representavam. Nessa versão, Atena é a colaboradora de Zeus, renascida de sua cabeça, traidora da antiga religião. As Hárpias, consideradas por Homero como personificações dos ventos de tempestade (Odisséia XX. 66-78), eram a antiga Atena, a deusa tripla com seu potencial de destruição repentina. Assim também eram as Gréias, as três Cinzentas, tal como demonstram seus nomes: Ênio (“belicosa”), Pêfredo (“vespa”) e Dino (“terrível”). Seu único olho e único dente são más interpretações de uma pintura sagrada.

Fórcis, forma masculina de Fórcida, a Deusa ou Porca que revora os cadáveres, aparece em latim como Orcus, um dos títulos de Hades, fenix porcus, porco. As górgonas e as Cinzentas eram chamadas de Fórcidas, pois profanar os Mistérios da deusa era condenar-se à morte. Entretanto, a palavra profética de Fórcis deve se referir a um oráculo-porca. [155]  Os nomes das Hespérides, descritas tanto como filhas de Ceto e Fórcis quanto como da Noite, ou do titã Atlas, que segura os céus no extremo ocidente, referem-se ao pôr-do-sol. Então, o céu se torna verde, ama­relo e vermelho, como se fosse uma macieira carregada de frutos, e o Sol, cortado pelo horizonte como uma meia maçã carmesim, encontra dramaticamente a sua morte nas ondas ocidentais. Quando o Sol já sumiu, surge Héspero. Essa estrela era consagrada a Afrodite, a deusa do amor, e a maçã era o presente com que sua sacerdotisa seduzia o rei, representante do Sol, para levá-lo à morte com canções de amor. Se uma maçã é cortada transversalmente, surge a estrela de cinco pontas de Afrodite no meio de cada uma das metades. [156]

Psicologia - Mitologia Grega
Vida após a morte - , 
3/19/2021 3:31:20 PM | Por Robert Graves
Os deuses do mundo subterrâneo

Quando as almas descem ao Tártaro, cuja entrada principal se encontra num bosque de álamos negros ao lado do caudal do Oceano, os familiares pie­dosos colocam uma moeda debaixo da língua de seus respectivos cadáveres, para que elas possam pagar ao barqueiro Caronte, o avaro que as transporta em seu estranho barco através do rio Estige. Esse odioso rio faz fronteira com o Tártaro pelo lado ocidental e tem como tributários Aqueronte, Flegetonte, Cocito, Aornis e Lete. As almas sem moeda são obrigadas a esperar eternamente numa margem próxima, a menos que consigam escapar de Hermes, seu condutor, e rastejar por uma entrada posterior como a do Tênaro lacônio, ou a do Aornis tespiense. Um cão de três cabeças - ou de cinqüenta, segundo alguns - chamado Cérbero guarda a outra margem do Estige, disposto a devorar intrusos vivos ou almas fugitivas.

A primeira região do Tártaro contém os desolados Campos de Asfódelos, onde as almas dos heróis permanecem, sem propósito algum, entre as multidões de mortos menos distintos que se agitam como morcegos, e onde apenas Orion ainda tem ânimo para caçar cervos fantasmagóricos. Todos eles prefeririam viver como escravos de um camponês sem terra a governar todo o Tártaro. Seu único deleite são as libações de sangue que lhes proporcionam os vivos, e, quan­do bebem, voltam a se sentir quase humanos outra vez. Mas para além dessas paragens fica Érebo e o palácio de Hades e Perséfone. A esquerda do palácio, à medida que alguém se aproxima, um cipreste branco sombreia o remanso de Lete (“Esquecimento”), onde multidões de almas comuns buscam o que beber.

As almas iniciadas evitam essas águas, preferindo beber do remanso da Memória (Mnemósine), sombreado por um alámo branco, o que lhes dá certa vantagem [144] em relação às iniciantes. Perto dali, as almas recém-chegadas são julgadas diariamente por Minos, Radamanto e Éaco no ponto de confluência de três estradas. Radamanto julga os asiáticos, e Éaco se encarrega dos europeus, mas ambos submetem os casos difíceis a Minos. À medida que se emite o veredicto, as almas se dirigem a um dos três caminhos: o que as conduz de volta aos Cam­pos de Asfódelos, se não forem virtuosas nem más; o que as conduz aos campos de punição do Tártaro, se forem más; e o que as leva aos pomares do Elísio, se forem virtuosas.

O Elísio, governado por Cronos, encontra-se perto dos domínios de Hades, apesar de não fazer parte deles e sua entrada ficar perto do remanso da Memória. É uma terra feliz onde o dia é eterno, sem frio nem neve, onde jogos, música e festas nunca terminam e seus habitantes podem decidir renascer na ter­ra sempre que bem entenderem. Perto dali estão as ilhas dos Bem-aventurados, reservadas àqueles que encarnaram três vezes e três vezes mereceram o Elísio. Mas há quem diga que existe ainda uma outra ilha dos Bem-aventurados cha­mada Leuce, no mar Negro, diante da foz do Danúbio, cheia de bosques e de animais selvagens e domésticos, onde as almas de Helena e de Aquiles realizam festins e recitam versos de Homero aos heróis que participaram dos famosos acontecimentos por ele relatados.

Hades, feroz e cioso de seus direitos, jamais visita a atmosfera superior, exceto em caso de negócios ou quando é tomado por um arrebatamento súbito de luxúria. Certa vez ele fascinou a ninfa Menthe com o esplendor de sua carruagem de ouro com quatro cavalos negros, e a teria seduzido sem nenhuma dificuldade se a rainha Perséfone não tivesse aparecido bem na hora e transformado Menthe em uma perfumada planta de menta. Noutra ocasião, Hades tentou violar uma ninfa que foi igualmente metamorfoseada e é o álamo-branco que se ergue junto ao remanso da Memória. De bom grado ele jamais permitiria que nenhum de seus súditos escapasse, e são poucos os que visitam o Tártaro e conseguem voltar para descrevê-lo, o que o faz ser o mais odiado de todos os deuses. Hades nunca sabe o que ocorre no mundo superior, ou no Olimpo, salvo algumas informações fragmentadas que lhe chegam quando os mortais golpeam a terra com as mãos e o invocam com juras e maldições. [145] Sua mais preciosa possessão é o elmo que o torna invisível, presenteado como símbolo de gratidão pelos ciclopes, quando ele aceitou libertá-los por ordem de Zeus. Todas as rique­zas relativas a gemas e metais preciosos escondidos no subsolo lhe pertencem, mas ele não possui propriedades no mundo superior, a não ser alguns templos tétricos na Grécia e possivelmente um rebanho de gado bovino na ilha de Eritéia, que, segundo alguns, pertence na verdade a Hélio.

Entretanto, a rainha Perséfone pode ser benigna e misericordiosa. É fiel a Hades, mas não lhe deu filhos e prefere a companhia de Hécate, deusa das bru­xas, à dele. O próprio Zeus tem um respeito tão grande por Hécate que nunca a priva do antigo poder que ela sempre desfrutou: o de conceder ou negar aos mortais qualquer dom que desejem. Ela tem três corpos e três cabeças — de leão, de cachorro e de égua.

Tisífone, Alecto e Megera, as Erínias ou Fúrias, vivem no Erebo e são mais velhas que Zeus ou qualquer outra divindade do Olimpo. Sua tarefa consiste em escutar as queixas dos mortais contra a insolência dos jovens com os anciãos, dos filhos com os pais, dos anfitriões com seus hóspedes e dos amos ou assembléias com os requerentes, e em castigar esses delitos acossando im­placavelmente os culpados, sem descanso ou trégua, de cidade em cidade e de país em país. Essas Erínias são velhas, têm serpentes em vez de cabelos, cabeças de cachorro, corpos negros como carvão, asas de morcego e olhos injetados em sangue. Trazem nas mãos açoites arrematados com cravos metálicos, e suas vítimas morrem devido ao tormento. E uma imprudência mencionar o nome delas numa conversa, portanto são geralmente chamadas de Eumênides, que significa “as Amáveis” — do mesmo modo como Hades é chamado de Plutão ou Pluto, “o Rico”.

Os mitógrafos tiveram de fazer um esforço considerável para reconciliar as visões contraditórias do mundo do além sustentadas pelos primitivos habitantes [146] da Grécia. Uma delas era que as almas viviam em suas tumbas, ou em cavernas ou grutas subterrâneas, de onde podiam tomar a forma de serpentes, camun­dongos ou morcegos, mas nunca reencarnar como seres humanos. Outra visão era que as almas dos reis sagrados podiam ser vistas caminhando sobre as ilhas sepulcrais em que seus corpos haviam sido enterrados. Uma terceira dizia que as unas podiam voltar a se converter em seres humanos, se conseguissem entrar no feijão, nas nozes ou nos peixes e fossem comidas por suas futuras mães. Uma quarta dizia que iam para o extremo norte, onde nunca brilha o sol, e voltavam, se tanto, apenas como ventos fertilizantes. Uma quinta afirmava que o destino das almas era o extremo ocidente, onde o sol se põe no oceano e existe um mun­do espiritual muito parecido com o nosso. Na sexta versão consta que as almas recebiam a punição conforme a vida que haviam levado na terra. A isso os órficos finalmente acrescentaram a teoria da metempsicose, ou seja, a transmigração das almas: um processo que poderia ser, até certo ponto, controlado mediante o uso de fórmulas mágicas.

Perséfone e Hécate representavam a esperança pré-helênica de regene­ração, ao passo que Hades era o conceito helênico da inevitabilidade da morte. Apesar de seus antecedentes sanguinários, Cronos continuou desfrutando dos prazeres do Elísio, já que esse havia sido sempre o privilégio do rei sagrado. A Menelau (Odisséia IV. 561) prometeu-se a mesma regalia, não por ter sido especiaimente virtuoso ou valente, mas por ter-se casado com Helena, a sacerdotisa da deusa-Lua espartana. O adjetivo homérico asphodelos, aplicado apenas a leimönes (“pradarias”), significa provavelmente “no vale do que não se reduz a cinzas” (de a =não, spodos =cinza, elos =vale) - ou seja, a alma do herói depois de seu corpo ter sido incinerado. Exceto na Arcádia, onde se comiam frutos do carvalho, as raízes e as sementes de asfódelo que se ofereciam a essas amas constituíam a dieta básica grega antes da introdução do cereal. Os asfódenos crescem livremente mesmo em ilhas sem água, e as almas, como os deuses, eram conservadoras no que se refere a dieta. Parece que Elísio significa “terra das macãs” —alisier é uma palavra pré-gálica para “sorva” —, assim como a palavra “Avalon” e a latina “Avernus”, ou “Avolnus”, ambas formadas a partir da raiz indo-européia abol, significam maçã.

Cérbero era o equivalente grego de Anúbis, o filho com cabeça de cão da deus líbia da morte Néftis, encarregado de conduzir as almas ao mundo subterrâneo. No folclore europeu, que tem origem parcialmente líbia, as almas dos malditos eram perseguidas até o Inferno Setentrional por uma matilha de cães estridentes —os sabujos de Annwm, Herne, Artur ou Gabriel —, um mito decifrado da ruidosa migração estival dos gansos selvagens para seus lugares de peregrinação no Círculo Polar Ártico. Cérbero tinha, no início, cinqüenta cabeças, [147] como a matilha espectral que destruiu Actéon, mas depois ficou com três, como sua amante Hécate.

O Estige (“odiado”), um pequeno rio na Arcádia cujas águas supostamen­te eram venenosas, foi situado no Tártaro somente por mitógrafos posteriores. Aqueronte (“rio de dor”) e Cocito (“lamento”) são nomes imaginativos para des­crever as misérias da morte. Aornis (“sem pássaros”) é uma tradução grega equi­vocada do itálico “Avernus”. Lete significa “esquecimento”, e Érebo, “coberto”. Flegetonte (“ardente”) refere-se ao costume da cremação, mas também, talvez, à teoria de que os pecadores eram queimados em rios de lava. O Tártaro parece ser uma reduplicação da palavra pré-helênica tar, que compõe os nomes de lugares situados a oeste. O sentido de inferno surgiu mais tarde.

Os álamos negros eram consagrados à deusa da morte, e os álamos brancos, ou choupos, a Perséfone, como deusa da regeneração, ou a Hércules, por haver rastelado o inferno. Em sepulturas mesopotâmicas do quarto milênio a.e.c. foram encontrados diademas de ouro em forma de folhas de álamo. As tabuletas órficas não mencionam o nome da árvore que se alçava junto ao remanso da Memória, embora se tratasse provavelmente do álamo-branco em que se transformou Leuce, ou quiçá uma nogueira, símbolo da sabedoria. A madeira do cipreste branco, considerada de grande resistência, era utilizada para fazer arcas domésticas e ataúdes.

Hades tinha um templo aos pés do monte Mente, na Élida, e o fato de ter violado Menthe (“menta”) foi certamente deduzido a partir do emprego da menta nos ritos funerários, junto com o alecrim e o mirto, para eliminar o odor da decomposição. A água de cevada de Deméter, que se tomava em Elêusis, era aromatizada com menta. Embora controlasse o gado solar de Eritéia (“terra vermelha”) porque era ali que o sol morria toda noite, Hades e mais freqüentemente chamado de Cronos ou, neste contexto, de Gerião.

O relato de Hesíodo sobre Hécate demonstra que ela havia sido a deusa tripla original, suprema no céu, na terra e no Tártaro, mas os helenos enfatizaram seus poderes destrutivos em detrimento de sua força criadora, até que finalmente ela passou a ser invocada apenas nos rituais clandestinos de magia negra, espe­cialmente em lugares onde se cruzavam três caminhos. O fato de Zeus não lhe ter negado o antigo dom de outorgar a cada mortal o que desejasse é um tributo às bruxas da Tessália, temidas por todos. Suas cabeças de leão, de cachorro e de cavalo referem-se evidentemente ao antigo ano tripartite, sendo o cachorro a estrela-cão Sírio, bem como às cabeças de Cérbero.

As Erínias, companheiras de Hécate, personificavam os remorsos depois da transgressão de um tabu - primeiro apenas o tabu do insulto, [148] da desobediên­cia ou da violência para com a mãe. Requerentes e hóspe­des encontravam-se sob a proteção de Héstia, deusa do lar, e tratá-los mal equivalia a cometer um insulto contra a deusa.

Leuce, a maior ilha do mar Negro, embora muito pequena, é atualmente uma colônia penal romena. [149]

Mitologia - Mitologia Grega
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2/28/2021 12:46:33 PM | Por Robert Graves
Os feitos e a natureza de Afrodite

Raramente se conseguia convencer Afrodite a emprestar às outras deusas seu cinto mágico, que fazia com que todos se apaixonassem pela portadora, pois tinha muito ciúmes de sua vantajosa posição. Zeus a havia cedido em matrimônio a Hefesto (Vulcano, entre os romanos), o deus ferreiro coxo, mas o verdadeiro pai de seus três filhos - Fobos, Deimos e Harmonia - era Ares, o impetuoso, ébrio e irascível deus da guerra, de membros fortes e bem formados. Hefesto ignorava a traição, até que, uma noite, os amantes permaneceram tempo demais na cama do palácio de Ares, na Trácia. Quando Hélio se levantou e viu que estavam se divertindo, foi contar tudo a Hefesto.

Hefesto retirou-se furioso para a sua ferraria e, a golpes de martelo, forjou uma rede de caça em bronze, tão fina como uma teia de aranha mas inquebrável, que atou secretamente aos pilares e as laterais de seu leito matrimonial. Quando Afrodite voltou da Trácia, toda sorridente, dizendo que havia resolvido certos assuntos em Corinto, seu marido lhe disse:

- Perdoe-me, querida, farei um breve retiro na ilha de Lemnos, minha favorita.

Afrodite não se ofereceu para acompanha-lo e, quando o perdeu de vista, apressou-se em chamar Ares, que veio imediatamente. Os dois se atiraram alegremente na cama, mas, ao amanhecer, viram-se envoltos na rede, nus e incapazes de escapar. Ao regressar de sua viagem, Hefesto os surpreendeu ali e chamou todos os deuses para testemunhar sua desonra. Anunciou então que não libertaria a esposa enquanto não recebesse de volta os valiosos presentes nupciais que entregara a Zeus, pai adotivo de Afrodite.

Os deuses logo se prontificaram a contemplar o embaraço de Afrodite.

As deusas, por delicadeza, ficaram em casa. Apolo cutucou Hermes:

- Você não se importaria em estar no lugar de Ares, com rede e tudo, não? - Perguntou.

Hermes disse, jurando por sua própria cabeça, que não se importaria em absoluto, mesmo que houvesse três vezes mais redes e que todas as deusas estivessem olhando com desprezo. Diante de tal resposta, ambos explodiram em gargalhadas. Mas Zeus estava tão desgostoso que se negou a devolver os presentes nupciais ou a interferir numa vulgar disputa entre marido e mulher, declarando que Hefesto era um estupido por ter propalado o assunto. Ao ver o corpo desnudo de Afrodite, Posídon apaixonou-se por ela, mas ocultou a inveja que sentia de Ares, fingindo simpatizar com Hefesto:

- Já que Zeus se recusa a ajudar - disse Posídon -, providenciarei para que Ares pague, para ser liberado, o equivalente aos presentes nupciais em questão.

- Assim está muito bem - replicou Hefesto, triste.

- Mas, se Ares não cumprir a obrigação, você terá de substitui-lo embaixo da rede.

- Em companhia de Afrodite? - perguntou Apolo, rindo.

- Não creio que Ares falte com a palavra - disse Posídon, com nobreza - Mas, se o fizer, estou disposto a pagar eu mesmo a divida e a me casar com Afrodite.

Assim, Ares foi colocado em liberdade e voltou para a Trácia, enquanto Afrodite foi para a ilha de Pafos, onde renovou sua virgindade no mar.

Lisonjeada pela sincera confissão de amor de Hermes, Afrodite passou uma noite com ele, e o fruto deste ato foi Hermafrodito, uma criatura com os dois sexos. Igualmente contente com a intervenção de Posídon em sua defesa, ela lhe deu dois filhos, Rodo e Herofilo. É desnecessário dizer que Ares se omitiu, alegando que, se Zeus não se dispôs a pagar, por que ele o faria? No final, ninguém pagou porque Hefesto estava loucamente apaixonado por Afrodite e não tinha intenções reais de se divorciar dela.

Mais tarde, Afrodite entregou-se a Dionísio, dando-lhe Priapo, um menino feio com um falo descomunal (foi Hera quem lhe deu essa aparência obscena a fim de punir Afrodite por sua promiscuidade). Ele era jardineiro e carregava consigo um podao.

Embora Zeus nunca tenha se deitado com sua filha adotiva Afrodite, como afirmam alguns, a magia de seu cinto submeteu-o a constantes tentações, e, finalmente, ele decidiu humilha-la, fazendo-a apaixonar-se perdidamente pelo mortal Anquises, o atraente rei dos dardanos e neto de Ilo. Uma noite, quando dormia em sua cabana de pastor, no monte Ida, em Troia, Afrodite veio visita-lo disfarçada de princesa frigia, envolta numa deslumbrante túnica vermelha, e se entregou a ele num leito de peles de ursos e leões, enquanto as abelhas zumbiam sonolentas ao seu redor. Quando se separaram, ao amanhecer, ela revelou sua identidade e o fez prometer que não contaria a ninguém que ela havia partilhado o leito com ele. Anquises ficou horrorizado ao descobrir que havia violado a nudez de uma deusa e suplicou-lhe que poupasse sua vida. Ela lhe garantiu que não tinha nada a temer e que o filho que teriam haveria de ser famoso. Alguns dias depois, enquanto Anquises bebia com os amigos, um deles lhe perguntou:

- Você não preferiria dormir com a filha de cicrana e beltrano a ter nos braços a própria Afrodite?

- Por certo que não - respondeu ele com imprudência. - Tendo dormido com as duas, considero absurda a pergunta.

Zeus escutou a bazofia e lançou um raio contra Anquises, que teria morrido na hora não houvesse Afrodite usado seu cinto para desviar o corisco na direção da terra onde estavam seus pés. De qualquer modo, o impacto enfraqueceu Anquises de tal maneira que nunca mais ele foi capaz de se manter em pé, e Afrodite, pouco depois de dar a luz seu filho Eneias, perdeu toda a paixão por ele.

Um dia, a mulher do rei Ciniras, do Chipre - também chamado rei Fenix, de Biblos, e rei Teias, da Assíria -, teve a leviandade de alardear que sua filha Esmirna chegava a ser mais bela que Afrodite. A deusa vingou-se desse insulto fazendo Esmirna apaixonar-se pelo pai e esgueirar-se furtivamente para a cama dele numa noite escura, depois de mandar que sua aia o embebedasse a ponto de perder a noção do que fizesse. Mais tarde, Ciniras descobriu que era ao mesmo tempo pai e avô do futuro filho de Esmima e, num ataque de ira, empunhou uma espada e a perseguiu ate expulsa-la do palácio. Alcançou-a no alto de uma colina, mas Afrodite apressou-se em transformá-la em uma árvore de mirra, que a espada cortou pela metade. Dela saiu o menino Adônis. Afrodite, já arrependida da maldade que havia cometido, escondeu o recém-nascido em um cofre e o confiou a Perséfone, Rainha da Morte, pedindo-lhe que o guardasse em um lugar escuro.

Perséfone ficou muito curiosa e abriu o cofre, encontrando Adônis lá dentro. Ele era tão adorável que ela o pegou nos braços e o levou para seu palácio. A noticia chegou a Afrodite, que imediatamente se apresentou no Tártaro para reclamar Adônis. Mas, diante da recusa de Perséfone, que o havia convertido em seu amante, apelou a Zeus. Dando-se conta de que Afrodite também queria deitar-se com Adônis, Zeus negou-se a julgar uma disputa tão vulgar e transferiu assunto para um tribunal menor, presidido pela musa Caliope. Seu veredito foi Perséfone e Afrodite tinham o mesmo direito sobre Adônis: Afrodite por ter dado o seu nascimento e Perséfone por tê-lo resgatado do cofre, mas que a deveriam ser concedidas breves ferias anuais para poder descansar das exigências amorosas dessas duas deusas insaciáveis. Portanto, Caliope dividiu o ano em três partes iguais, uma das quais Adônis dedicaria a Perséfone, outra a Afrodite e a terceira a si mesmo.

Afrodite foi ardilosa: valendo-se de seu cinto mágico, convenceu Adônis a dedicar-lhe o tempo que tinha para si mesmo e a detestar o período dedicado a Perséfone, descumprindo, portanto, a sentença do tribunal.

Perséfone, legitimamente ofendida, foi a Trácia para contar a seu benfeitor Ares que agora Afrodite o estava preterindo por causa de Adônis.

- É um simples mortal - gritou ela -, e, ainda por cima, efeminado!

Enciumado, Ares metamorfoseou-se em javali, correu ao morte Líbano, onde Adônis estava caçando, e o escornou ate a morte diante dos olhos de Afrodite. De seu sangue brotaram anêmonas, e sua alma desceu ao Tártaro. Afrodite foi ter com Zeus e, aos prantos, suplicou-lhe que Adônis não passasse mais do que a metade mais melancólica do ano com Perséfone e que fosse o seu companheiro durante os meses de verão. Zeus aquiesceu magnanimamente. Mas há quem diga que o javali era, na verdade, Apolo, vingando-se de uma ofensa que Afrodite lhe havia feito.

Certa vez, para fazer ciúmes a Adônis, Afrodite passou varias noites em Lilibeu com o argonauta Butes, com quem teve o filho Erice, que se tornou rei da Sicilia. Com Adônis teve Golgos, fundador de Golgi, no Chipre, e uma filha, Beroe, fundadora de Beroea, na Trácia. Há quem diga inclusive que foi Adônis, e não Dionísio, o pai de seu filho Priapo.

As Moiras determinaram para Afrodite um único dever divino: fazer amor. Mas um dia Atena surpreendeu-a trabalhando secretamente em um tear e foi se queixar de que suas próprias prerrogativas estavam sendo infringidas, ameaçando abandoná-las por completo. Afrodite desculpou-se profusamente e desde então jamais voltou a realizar um trabalho manual sequer.

Os helenos posteriores diminuíram a importância da grande deusa do Mediterrâneo - durante muito tempo, deusa suprema de Corinto, Esparta, Tespias e Atenas -, colocando-a debaixo da tutela masculina e considerando suas solenes orgias sexuais como indiscrições adulteras. Homero descreve Afrodite presa por Hefesto em uma rede que originalmente pertencia a ela, como deusa do mar, e que provavelmente era usada por sua sacerdotisa durante o carnaval da primavera. A sacerdotisa nórdica Holle, ou Gode, fazia o mesmo no Dia de Maio.

Príapo teve origem nas rudes imagens fálicas de madeira que presidiam as orgias dionisíacas. Foi considerado filho de Adônis por causa dos "jardins" em miniatura ofertados durante suas festas. A pereira era consagrada a Hera como deusa principal do Peloponeso e, por conseguinte, ela foi chamada de Apia.

Afrodite Urânia ("rainha da montanha'), ou Ericina ("deusa da urze"), era a deusa-ninfa de meados do verão. Ela destruiu o rei sagrado, com quem copulou no cume de uma montanha, da mesma maneira que a abelha-mestra aniquila o zangão: arrancando-lhe os órgãos sexuais. Isso explica as abelhas amantes da urze e a túnica vermelha, elementos presentes em seu romance com Anquises em cima da montanha, bem como o culto de Cibele, a Afrodite frigia do monte Ida como abelha-mestra, e a extática autocastração de seus sacerdotes em memória de seu amante Atis.

Anquises era um dos vários reis sagrados feridos com um raio ritualístico após terem sido consortes da deusa da monte-em-vida. Na versão mais antiga do mito ele era assassinado, mas nas posteriores consegue escapar: para justificar a história de como o bondoso Eneias, que levou o sagrado Paládio a Roma, conseguiu salvar seu pai quando a cidade de Tróia estava em chamas. Seu nome identifica Afrodite com Isis, cujo esposo Osíris foi castrado por Seth disfarçado de javali. De fato, "Anquises" é um sinônimo de Adônis. Um santuário de Anquises em Egesta, perto do monte Erix, levou Virgílio a concluir que ele morreu em Drépano, uma cidade vizinha, e foi enterrado na montanha. Na Trôade e na Arcádia surgiram outros santuários a ele. Um favo de mel de ouro exposto no santuário de Afrodite, no monte Erix, parece ter sido uma oferenda votiva de Dédalo por ocasião de sua fuga para a Sicília.

Como deusa da morte-em-vida, Afrodite recebeu muitos títulos que parecem incompatíveis com sua beleza e complacência. Em Atenas era conhecida como a Maior das Moiras e irmã das Erínias e, em outros lugares, como Melenis "a negra", nome que significaria, segundo uma ingênua explicação de Pausânias, que a maior parte dos atos sexuais ocorre durante a noite. Outros nomes são: Escócia ("a escura'), Andrófonos ("assassina de homens") e, segundo Plutarco, Epitímbria ("das tumbas").

O mito de Ciniras e Esmirna registra evidentemente um período da História em que o rei sagrado, numa sociedade matrilinear, decidiu prolongar seu reinado para além da duração habitual. E o fez casando-se com a jovem sacerdotisa - em teoria, sua filha - que viria a ser rainha no próximo mandato, para impedir que algum principezinho se casasse com ela e pusesse fim a seu reino.

Adonis (do fenício adon, "senhor") é uma versão grega do semideus sírio, Tamus, o espírito da vegetação anual. Na Síria, na Ásia Menor e na Grécia, o ano sagrado da deusa se dividia em três partes, regidas pelo Leão, pela Cabra e pela Serpente. A Cabra, emblema da parte central, pertencia à deusa amor, Afrodite; a Serpente, emblema da ultima parte, à deusa da morte, Perséfone; e o Leão, emblema da primeira parte, era consagrado à deusa do parto, chamada aqui de Esmirna, que não tinha nenhum direito sobre Adônis. Na Grécia esse calendário deu lugar a um ano de duas estações, dividido no estilo oriental pelos equinócios, como em Esparta e em Delfos, ou pelos solstícios, segundo estilo ocidental de Atenas e Tebas. Isso explica as diferenças entre os respectivos veredictos de Zeus e da deusa da montanha Caliope.

Tamus foi morto por um javali, como diversos personagens míticos semelhantes: Osíris, o Zeus cretense, Anceu da Arcádia, Carmanor da Lídia e o herói irlandês Diarmuid. Esse javali parece uma vez ter sido uma porca com presas em forma de meia-lua, ou seja, a própria deusa na figura de Perséfone. Mas, quando se dividiu o ano, a estação luminosa passou a ser regida pelo rei sagrado, e a metade escura, pelo seu sucessor, o rival, que aparecia disfarçado de javali selvagem - como Seth, quando matou Osíris, ou como Finn mac Cool, quando matou Diarmuid. O sangue de Tamus e uma alegoria das anemonas que cobriam de vermelho as encostas do monte Líbano depois das chuvas invernais. Em Biblos celebrava-se, a cada primavera, a Adônia, festa funeral em homenagem a Tamus. O nascimento de Adônis a partir de uma árvore de mirra - um afrodisíaco bem conhecido - demonstra o caráter orgiástico de seus ritos. As gotas de resina que essa árvore espelia são supostamente as lágrimas por ele derramadas. Higino faz de Ciniras o rei da Esfria, talvez porque o culto a Tamus parecesse ter tido ali sua origem.

Hermafrodito, filho de Afrodite, era tão jovem com cabelos longos e seios de mulher. Tal como a androgina, ou mulher barbuda, o hermafrodita tinha, naturalmente, sua extravagante contrapartida física, mas, como conceitos religiosos, ambos surgiram durante a transição do matriarcado para o patriarcado. Hermafrodito e o rei sagrado, representante da Rainha, que porta seios artificiais. Andrógina é a mãe de um clã pré-helênico que conseguiu evitar o patriarcado, e, para manter seus poderes magistrais ou enobrecer os filhos nascidos dela com um pai-escravo, adota uma barba falsa, como era o costume em Argos. As deusas barbudas, como a Afrodite cipriota, e os deuses efeminados, como Dionísio, correspondem a essas etapas sociais de transição.

Harmonia é, a primeira vista, um nome estranho para uma filha nascida de Afrodite e Ares, mas naquela época, assim como agora, o que prevalecia em um Estado que estava em guerra era mais do que simplesmente carinho e harmonia.

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2/28/2021 12:37:09 PM | Por Robert Graves
Os feitos e a natureza de Ares

O Ares trácio adora a batalha pela batalha, e sua irmã Eris está sempre criando motivos para desencadear uma guerra, seja difundindo rumores ou semeando ciúmes e invejas. Como ela, Ares nunca privilegia uma cidade ou um partido, mas luta de um lado ou de outro, de acordo com sua inclinação, deleitando com a matança de gente e o saque de cidades. Todos os seus colegas imortais o odeiam, desde Zeus e Hera até o mais inferior, exceto Eris, Afrodite - que alimenta uma paixão perversa por ele - e o voraz Hades, que dá boas-vindas aos valentes jovens guerreiros mortos em guerras sangrentas.

Ares nem sempre saiu vencedor. Atena, guerreira muito mais hábil derrotou-o duas vezes em combate. Uma vez, os Aloidas o capturaram e o enceraram em um pote de bronze durante 13 meses, até que, semimorto, ele foi libertado por Hermes. Em outra ocasião, Héracles o fez voltar correndo para o Olimpo apavorado. Desprezava profundamente os litigios, nunca se apresentou diante um tribunal como pleiteador e apenas uma vez como acusado, quando os deuses o responsabilizaram pelo horrível assassinato de Halirrotio, filho de Posídon. Ele se justificou com a alegação de que agira para salvar sua filha Alcipe, da Casa de Cecrope, que ia ser violada pelo tal Halirrotio. Como ninguém havia presenciado o incidente, exceto o próprio Ares e Alcipe, que naturalmente confirmou o testemunho do pai, o tribunal o absolveu. Essa foi a primeira sentença pronunciada em um julgamento por assassinato, e a colina onde os procedimentos ocorreram ficou conhecida como Areópago, nome que ainda conserva.

Os atenienses não eram amantes da guerra, a não ser para defender sua liberdade ou por alguma outra razão igualmente urgente, e desprezavam os trácios por serem bárbaros que haviam feito da guerra um passatempo.

No relato de Pausânias sobre o assassinato, Halirrotio já havia conseguido violar Alcipe. Mas Halirrotio pode ser simplesmente um sinônimo de Posídon - e Alcipe, um sinônimo da deusa com cabeça de égua. De fato, o mito evoca o estupro de Démeter cometido por Posídon e faz referência à conquista de Atenas por sua gente, bem como a humilhação da deusa em suas mãos. Mas ele foi alterado por razões patrióticas e associado a uma lenda de algum velho julgamento por assassinato. Areiopagus significa provavelmente "colina da deusa conciliadora", areia sendo um dos títulos de Atena.

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2/28/2021 12:22:08 PM | Por Robert Graves
Os feitos e a natureza de Hestia

O maior mérito de Hestia (Vesta, entre os romanos) e ter sido a única, entre as divindades olímpicas, que nunca participou de guerras ou disputas. Além disso, assim como Artemis e Atena, ela sempre resistiu ao assedio amoroso de deuses, titãs e outros. Assim, depois do destronamento de Cronos, quando Posídon e Apolo apareceram como pretendentes rivais, ela jurou pela cabeça de Zeus que permaneceria virgem para sempre. Em agradecimento por ela ter servido a Paz no Olimpo, Zeus passou a oferecer-lhe a primeira vitima de todo e qualquer sacrifício publico.

Uma vez, em uma festa observada pelos deuses, Priapo, embriagado, tentou viola-la quando todos, já saciados, tinham adormecido. Mas um asno zurrou alto, despertando Hestia, que, ao ver Priapo prestes a montar em cima dela, deu um grito tão pavoroso que ele saiu correndo, tomado de um cômico terror.

Ela é a deusa do lar, que, em cada casa particular e nas cidades e colônias protege todos os que lhe prestam veneração. Hestia é reverenciada universalmente não só por ser a mais amável, correta e caridosa de todo o Olimpo, mas também por ter inventado a arte de construir casas. Seu fogo é tão sagrado que se, por acidente ou em sinal de luto, a lareira de um determinado lar se esfria, ele se ilumina novamente com a ajuda de uma roda de fogo.

O centro da vida grega - até mesmo em Esparta, onde a família havia se subordinado ao Estado - era a lareira doméstica, considerada também altar de sacrifícios. Hestia, por ser sua deusa, representava a segurança pessoal e a felicidade, bem como o dever sagrado da hospitalidade. As estórias das propostas matrimoniais de Posídon e Apolo foram deduzidas talvez com base no culto conjunto dessas três divindades em Delfos. A tentativa de estupro de Priapo é uma advertência anedótica sobre os maus-tratos sacrílegos aos hospedes do sexo feminino, que se encontram sob a proteção do lar doméstico ou publico. Neste caso, inclusive, o asno, símbolo da luxuria, proclama a loucura criminosa de Priapo.

A arcaica imagem nao-iconica branca da Grande Deusa, utilizada em todo o Mediterrâneo oriental, parece ter representado um monte de brasa que se mantém ardendo sob uma camada de cinzas brancas, tendo sido este o sistema mais agradável e econômico de calefação na Antiguidade, pois não produzia fumaça nem dramas e constituía o centro natural das reuniões familiares ou do clã. Em Delfos, o montículo de carvão foi trasladado para um recipiente de pedra calcária, para ser usado ao ar livre, convertendo-se no Onfalo, ou umbigo, representado com frequência nas pinturas de vasos gregos, que supostamente indicava o centro do mundo. Esse objeto sagrado, que sobreviveu às ruinas do santuário, está inscrito com o nome da Mãe Terra. Com suas 11,5 polegadas de altura e 15,5 de diâmetro [28,57 centímetros de altura por 39,37 centímetros de diâmetro], ele tem o tamanho e a forma de um forno a carvão capaz de esquentar uma sala grande. Na época clássica, a pitonisa dispunha da ajuda de um sacerdote encarregado de induzi-la ao transe, queimando grãos de cevada, cânhamo e louro em uma lâmpada de azeite dentro de um espaço fechado, e de interpretar depois o que ela dizia. Mas é provável que uma vez o cânhamo, o louro e a cevada tenham sido postos sobre as cinzas ardentes do montículo de carvão, que é uma forma mais simples e efetiva de produzir fumos narcóticos. Em santuários cretenses e micênicos foram encontradas numerosas conchas triangulares ou em forma de folha, feitas de pedra ou argila - algumas com sinais de sujeição a altas temperaturas, que aparentemente serviam para proteger o fogo sagrado. O montículo de carvão em brasa era colocado às vezes sobre uma mesa de argila redonda com três pernas, pintada de vermelho, branco e preto, que são as cores Lua. Preservaram-se amostras no Peloponeso, em Creta e em - sobre uma delas, proveniente de uma tumba funerária em Zafer Papoura perto de Knossos, ainda havia carvão.

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2/28/2021 12:10:06 PM | Por Robert Graves
Os Filhos de Zeus

Zeus, o eterno enamorado, deitou-se com numerosas ninfas descendentes dos titãs e dos deuses e, depois da criação do homem, deitou-se também com mulheres mortais. Nada menos que quatro divindades olímpicas maiores nasceram-lhe ilegítimas. Primeiro, ele gerou Hermes (Mercúrio) com Maia, filha de Atlas, que o pariu numa caverna do monte Cilene, na Arcádia. Depois, gerou Apolo e Artemis (Diana, entre os romanos) com Leto (Latona, entre os romanos), filha dos titãs Ceo e Febe, tendo-a transformado e a si próprio em codornizes, enquanto copulavam. Mas a ciumenta Hera mandou a serpente Piton perseguir Leto mundo afora e decretou que ela não deveria dar a luz em nenhum lugar onde o sol brilhasse. Carregada pelas asas do Vento Sul (Austro), Leto finalmente chegou a Ortigia, perto de Delos, onde pariu Artemis, que, mal acabara de nascer, pôs-se a ajudar a mãe a cruzar o estreito istmo. Uma vez lá, entre uma oliveira e uma tamareira que cresciam no lado norte do monte Cinto, em Delos, Leto pariu Apolo depois de nove dias de trabalho. Delos, até então uma ilha flutuante, tornou-se imóvel, fixada no mar, e, por decreto, ninguém tem agora permissão de nascer ou morrer ali: doentes e mulheres gravidas são transportados em balsas para Ortigia.

A mãe de Dionísio, filho de Zeus, recebe nomes variados: alguns dizem que teria sido Demeter, ou Io; há quem a chame de Dione; outros, de Perséfone, com quem Zeus copulou depois de assumir a forma de uma serpente; há ainda quem diga ter sido Lete.

Mas a historia mais difundida reza que Zeus, disfarçado de mortal, teve um caso de amor secreto com Semele ("lua"), filha do rei Cadmo de Tebas, e que a ciumenta Hera, revestida das feições de Beroe, velha ama de Semele, recomendou a jovem, já grávida de seis meses, que exigisse de seu misterioso amante que ele parasse de engana-la, e lhe revelasse sua verdadeira forma e natureza. Senão, como poderia ela saber se ele não era um monstro? Semele acatou o conselho e, diante da recusa de Zeus a seu apelo, passou a negar-lhe acesso a seu leito. Ele, então, furioso, surgiu na forma de trovão e raio, fulminando-a. Mas Hermes conseguiu salvar o filho que estava no sexto mês de gestação e o costurou dentro da coxa de Zeus, para que ali maturasse por mais três meses. No tempo devido, ele nasceu. Por isso Dionísio é chamado de "nascido duas vezes" ou "a criança da porta dupla".

Os estupros cometidos por Zeus referem-se, aparentemente, às conquistas helênicas dos antigos templos da deusa, como o do monte Cilene, e seus casamentos, a um antigo costume de dar titulo de "Zeus" ao rei sagrado do culto do carvalho. Hermes, seu filho, nascido após Zeus haver estuprado Maia - titulo de uma deusa da Terra representada por uma velha -, originalmente não era um deus, mas a virtude totêmica de um pilar fálico, ou um marco de pedras. Tais pilares constituíam o centro de uma dança orgíaca em honra a deusa.

Um componente na divindade de Apolo parece ter sido um camundongo oracular - Apolo Esminteu ("Camundongo-Apolo") figura entre os seus primeiros títulos - consultado num tempo da Grande Deusa, o que talvez explique por que ele nasceu em um lugar onde o sol jamais brilhou, ou seja, no subterrâneo. Camundongos estariam associados a doenças e cura, por isso os helenos veneravam Apolo como deus da medicina e da profecia. Registros mais tardios relatam que ele nasceu debaixo de uma oliveira e de uma tamareira, na encosta setentrional de uma montanha. Era chamado de irmão gêmeo de Artemis, deusa do parto. Sua mãe Leto - filha dos titãs Febe ("lua') e Ceo ("inteligência') -, conhecida no Egito e na Palestina como Lat, tornou-se deusa da fertilidade da ramareira e da oliveira: dai sua chegada a Grécia com o Vento Sul. Na Itália, ela se tornou Latona ("rainha Lat"). Sua briga com Hera sugere um conflito entre os primeiros imigrantes da Palestina e as primeiras tribos nativas que adoravam uma sutra deusa da Terra. O culto ao camundongo, que ela parece ter trazido consigo, estabeleceu-se com firmeza na Palestina (I Samuel VI. 4 e Isaias LXVI. 17). O fato de Piton perseguir Apolo evoca o uso de cobras, nas casas gregas e romanas, para afastar camundongos. Mas Apolo era também o fantasma do rei sagrado que havia comido a maçã - a palavra Apolo deriva, provavelmente, da raiz abol "maçã", e não de apollunai, "destruir", como geralmente se considera.

O pássaro consagrado a Artemis, originalmente uma deusa orgíaca, era a lasciva codorniz. Bandos de codornizes faziam de Ortígia um lugar de descanso durante sua migração de primavera rumo ao norte. A estoria de que Delos, local de nascimento de Apolo, havia sido até então uma ilha flutuante deve ser uma compreensão errônea de um registro que anunciava o estabelecimento oficial de seu local de nascimento, haja vista que Homero (Ilíada IV 101) o chama de "licigeno", isto é, "nascido em Licia" (o gentílico seria lício), e que os efésios vangloriavam-se do fato de ele ter nascido em Ortigia, perto de Éfeso (Tacito: Anais 111. 61). Tanto os tegirenses beocios quanto os zosteranos áticos reivindicavam-no também como seu filho nativo (Estevão de Bizâncio sub Tegira).

Ao que tudo indica, Dionísio surgiu inicialmente como uma espécie de rei sagrado que, no sétimo mês depois do solstício de inverno, foi fulminado pela deusa e devorado por suas sacerdotisas. Isso explica suas mães Dione, a deusa do carvalho; Io e Demeter, deusas do trigo; e Perséfone, deusa da morte. Plutarco, ao chama-lo de "Dionísio, filho de Lete ("esquecimento"), refere-se ao seu aspecto tardio de deus da vinha.

A estória de Semele, filha de Cadmo, parece registrar a ação sumaria tomada por Hellenese da Beocia, ao terminar a tradição do sacrifício real: o Zeus Olímpico afirma seu poder, põe o rei condenado sob sua proteção e fulmina a deusa com seu próprio raio. Dionísio, assim, torna-se imortal, após renascer de seu pai imortal. Semele foi venerada em Atenas durante a Lenaea, Festim das Mulheres Selvagens, ocasião em que um Touro do Ano, representando Dioníso, era cortado em nove pedaços e sacrificado em sua honra: um pedaço era queimado, enquanto o restante era comido cru pelas adoradoras. Semele é geralmente explicada como uma forma de Selene ("lua'), e nove era o número tradicional das sacerdotisas orgíacas da Lua que participavam de tais festins - nove delas foram retratadas dançando em torno do rei sagrado numa pintura rupestre em Cogul, e outras nove mataram e devoraram o acolito de são Sansão de Dol na Idade Media.

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2/21/2021 6:14:52 PM | Por Robert Graves
Hera e seus filhos

Hera (Juno), filha de Cronos e Reia, nasceu na ilha de Samos ou, segundo outras fontes, em Argos, e foi criada na Arcádia por Temeno, filho de Pelasgo. As Estações eram suas pajens. Após haver banido seu pai Cronos, Zeus, irmão gêmeo de Hera, procurou-a em Knossos, em Creta ou, diz-se, no monte Tornax (chamado agora de montanha do Cuco), na Argólida, onde a cortejou, primeiro sem nenhum sucesso. Somente quando ele se disfarçou de cuco molhado e que Hera teve pena do irmão e o aqueceu carinhosamente no peito. Zeus, então, retomou imediatamente sua forma verdadeira e a violou, forçando-a a casar-se com ele por causa da vergonha.

Todos os deuses trouxeram presentes de casamento. A Mãe Terra, particularmente, deu a Hera uma arvore com maças de ouro, mais tarde guardada pelas Hesperides no pomar de Hera, no monte Atlas. Ela e Zeus passaram sua lua-de-mel, que durou trezentos anos, em Samos. Hera se banha regularmente na fonte de Canato, perto de Argos, renovando, assim, sua virgindade.

Hera e Zeus tiveram como filhos as divindades Ares (Marte), Hefesto (Vulcano) e Hebe (Juventas), embora se diga que Hera teria concebido Ares e sua irmã gêmea Eris (Discórdia) ao tocar uma certa flor, e Hebe, ao tocar uma alface, é que Hefesto seria também seu filho partenogenico - milagre em que ele não acreditava até aprisiona-la em uma cadeira mecânica, cujos braços se dobravam em torno da pessoa sentada, forçando-a a jurar pelo rio Estige que não estava mentindo. Diz-se também que Hefesto era seu filho com Talo, sobrinho de Dedalo.

O nome de Hera, geralmente considerado como uma palavra grega para "senhora", talvez represente uma Herwã ("Protetora') original. Ela é a Grande Deusa pré-helênica. Samos e Argos eram as sedes principais de sua adoração na Grécia, embora os arcades alegassem ter sido os primeiros a cultua-la, já desde os tempos de seu ancestral autóctone Pelasgo ("antigo"). O casamento forcado de Hera com Zeus comemora as conquistas de Creta e da Grécia micênica e a queda da supremacia de Hera em ambos os países. É provável que o disfarce de cuco molhado usado por Zeus para se aproximar de Hera corresponda a chegada de certos fugitivos helenos à Creta; que, uma vez aceitos para trabalhar na guarda real, urdiram uma conspiração palaciana e tomaram o reino. Knossos foi saqueada duas vezes; ao que tudo indica, pelos helenos, em torno de 1700 a.e.c. e de 1400 a.e.c. Micenas foi tomada pelos aqueus um século depois. O deus Indra, no Ramayana, havia cortejado uma ninfa disfarçado de cuco. Agora, era Zeus que tomada emprestado o cetro de Hera, sobrepujando-a com o pássaro. Em Micenas foram encontradas estatuetas folheadas a ouro de uma deusa argiva nua segurando cucos, bem como poleiros de cuco numa maquete de templo folheada a ouro do mesmo lugar. No famoso sarcófago cretense de Hagia Triada, a ave encontra-se empoleirada em um machado duplo.

Hebe, deusa em forma de criança, tornou-se copeira dos deuses no culto olímpico. Por fim casou-se com Héracles, após Ganimedes usurpar o cargo dela. "Hefesto" parece ter sido um titulo do rei sagrado como semideus solar, e "Ares", um título de seu comandante militar, ou tanist, cujo emblema era o javali. Ambos se tornaram nomes divinos quando se estabeleceu o culto olímpico e foram escolhidos para desempenhar os papeis, respectivamente, de deus da guerra e deus ferreiro. A "certa flor" deve ter sido provavelmente a flor do espinheiro-branco: Ovídio faz a deusa Flora - a cujo culto está associada a flor do espinheiro-branco - chamar a atenção de Hera para a flor. O espinheiro-de-maio, ou espinheiro-branco, esta ligado à concepção miraculosa no mito popular europeu: na literatura celta, sua "irmã" é o abrunheiro, símbolo da Disputa - a gêmea de Ares, Eris.

Talo (ou Ácale), o ferreiro, era um herói cretense, filho da irmã de Dedalo, Perdiz, com quem o mitógrafo identifica Hera. Perdizes, consagradas a Grande Deusa, estavam de certo modo presentes nas orgias do equinócio de Primavera no Mediterrâneo oriental, através da apresentação de uma dança claudicante imitando perdigões. As gêmeas, segundo Aristóteles, Plinio e Eliano, eram capazes de conceber apenas ouvindo a voz do macho. Hefesto e Talo parecem ser o mesmo personagem partenogênico: ambos foram subjugados por rivais furiosos originalmente em honra à sua deusa-mãe.

Em Argos, a famosa estátua de Hera estava sentada em um trono de ouro e marfim. A historia de seu aprisionamento em uma cadeira deve ter surgido do hábito grego de acorrentar estatuas divinas a seus tronos a fim de "evitar fugas". Por perder uma estatua antiga de seu deus ou deusa, uma cidade poderia ser privada da proteção divina, e por isso os romanos adotaram um costume educadamente chamado de "atrair" os deuses a Roma - que, na época imperial, tornara-se um deposito de imagens roubadas. "As Estações eram suas pajens" e uma maneira de dizer que Hera era uma deusa do ano calendarico. Dai o cuco da primavera no seu cetro e a romã madura do outono tardio, que ela carregava na mão esquerda para simbolizar a morte do ano.

Um herói, como a palavra indica, era um rei sagrado, oferecido em sacrifício a Hera, cujo corpo estava a salvo debaixo da terra e cuja alma fora desfrutar o paraíso, atrás do Setentrião. Suas maçãs douradas, nos mitos grego e celta, eram passaportes para esse paraíso.

O banho anual com que Hera renovava sua virgindade era também tomado por Afrodite em Pafos. Essa parece ter sido a cerimonia de purificação prescrita para a Sacerdotisa da Lua após o assassinato de seu amante, o rei sagrado. Hera, por ser a deusa do ano vegetativo, da primavera, do verão e do outono (simbolizados também pelas luas nova, cheia e velha), era venerada em Estinfalo como Criança, Noiva e Viúva.

A lua-de-mel em Samos durou trezentos anos: talvez se tratasse do ano sagrado samiano, que, assim como o etrusco, consistia em dez meses de trinta dias cada: janeiro e fevereiro eram omitidos. Cada dia durou um ano. Mas o mitógrafo talvez queira indicar que se passaram trezentos anos até que os helenos impingissem a monogamia ao povo de Hera.

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2/21/2021 1:18:28 PM | Por Robert Graves
As origens de Eros

Alguns estudiosos afirmam que Eros, nascido do ovo primordial engendrado pela Noite, foi o primeiro dos deuses, pois sem ele nenhum dos outros poderia ter nascido. Consideram-no contemporâneo da Mãe Terra e de Tártaro e negam que tivesse pai ou mãe, a não ser que tenha sido obra de Ilitia, a deusa do parto. Outros dizem que era filho de Afrodite com Hermes ou com Ares, ou com o próprio pai dela, Zeus, ou filho de Iris com o Vento Oeste (Zefiro). Ele era um garoto travesso que não demonstrava nenhum respeito pela idade ou pela posição social, mas voava por ai com asas douradas, lançando flechas farpadas aleatória ou intencionalmente, incendiando corações com suas tochas formidáveis.

Para Hesíodo, Eros ("paixão sexual") era uma mera abstração. Os gregos primitivos o retratavam como um Ker, ou um "mal" transcendente, como a velhice ou a peste, no sentido de que a paixão sexual fora de controle poderia perturbar a ordem social. Mais tarde, entretanto, os poetas descobriram um prazer perverso em suas artimanhas e, na época de Praxiteles, já o assimilavam como um jovem belo e sensível. Seu templo mais famoso era o de Tespias, onde os beocios o veneravam como um simples pilar fálico - o pastoral Hermes, ou Priapo, com um nome diferente. Os numerosos relatos sobre sua ascendência são auto-explicativos. Hermes era um deus fálico. Ares, como um deus da guerra, incrementava de desejo as mulheres dos guerreiros. O fato de Afrodite ter sido a mãe e Zeus, o pai de Eros é uma indicação de que a paixão sexual não se resumia ao incesto. Seu nascimento a partir do Arco-iris e do Vento Oeste não passa de uma fantasia lírica. llitia, aquela que vem em auxilio as mulheres no leito do parto, era um dos títulos de Artemis, significando que não há amor mais forte do que o amor materno.

Eros nunca foi considerado um deus suficientemente responsável para figurar entre os Doze da família governante do Olimpo.

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2/21/2021 1:13:13 PM | Por Robert Graves
As origens de Afrodite

Afrodite (Vênus), deusa do desejo, surgiu nua da espuma do mar e, cavalgando uma concha de vieira, onde primeiro pôs os pés foi na ilha de Citera. Porém, considerado-a apenas uma ilhota, cruzou o Peloponeso e, finalmente, passou a residir em Pafos, no Chipre, ainda hoje a principal sede de seu culto. Plantas e flores cresciam por onde ela pisasse. Em Pafos, as Estações, filhas de Temis, apressaram-se em vesti-la e adorná-la.

Há quem afirme que ela surgiu da espuma formada pelos testículos de Urano, quando Cronos os atirou ao mar. Conta-se também que Zeus a gerara com Dione, filha de Oceano e Tetis, a ninfa do mar, ou do Céu com a Terra. Mas todos concordam que ela sustem o ar, acompanhada por pombas e pardais1.

Afrodite ("nascida da espuma') é a mesma deusa com amplos poderes que surgiu do Caos e dançou sobre o mar, tendo sido venerada na Síria e na Palestina como Ishtar ou Ashtaroth. Seu mais famoso centro de adoração era Pafos, onde a imagem aniconica original da deusa é ainda visível por entre as rumas do grandioso templo romano. La, em toda primavera, suas sacerdotisas banhavam-se no mar e retornavam renovadas.

Ela é chamada de filha de Dione, porque Dione era a deusa do carvalho, onde a pomba apaixonada fazia seu ninho. Zeus alegou ser pai de Afrodite apos apoderar-se do Oraculo de Dione em Dodona, portanto Dione tornou-se sua mãe. "Tetis" e "Thetis" são nomes da deusa como Criadora (formados, assim como "Temis" e "Teseu", de tithenai, "dispor" ou "ordenar") e como deusa do mar, desde o momento em que começou a haver vida no mar2. Pombas e pardais eram famosos pela lascívia. Os frutos do mar ainda são considerados, por todo o Mediterrâneo, afrodisíacos.

Citera foi um importante centro do comércio cretense com o Peloponeso e deve ter sido por ali que a adoração a Afrodite entrou na Grécia. A deusa cretense tinha estreitos laços com o mar. Conchas cobriam o chão de seu palácio-santuário em Knossos. Ela é representada em cima de uma pedra preciosa da caverna Ideana, soprando uma concha de tritão, com uma anêmona-do-mar ao lado de seu altar. O ouriço-do-mar e a siba eram consagrados a ela. Uma concha de tritão foi encontrada em seu antigo santuário de Festo, e muitas outras mais, nas tumbas minoicas tardias, algumas delas sendo replicas de terracota.

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2/21/2021 1:09:07 PM | Por Robert Graves
Os Feitos e a Natureza de Pã

Vários deuses e deusas poderosos da Grécia jamais se incluíram entre os Doze Olímpicos. Pã, por exemplo, um tipo humilde, agora morto, contentou-se em viver sobre a terra na Arcádia rural. Hades, Perséfone e Hécate sabiam que sua presença não era bem-vinda no Olimpo. A Mãe Terra, por sua vez, era demasiado velha e apegada a seus hábitos para se adaptar à vida familiar de seus netos e bisnetos. Contam que Hermes concebeu Pã com Driopéia, filha de Dríope; ou com a ninfa Eneis; ou com Penélope, mulher de Odisseu, que ele visitou sob a forma de um carneiro; ou com a cabra Amaltéia. Diz-se que ele era tão feio quando nasceu, com chifres, barba, rabo e pés de bode, que sua mãe fugiu assustada e Hermes o levou ao Olimpo para divertir os deuses. Mas Pã era irmão adotivo de Zeus e, portanto, muito mais velho que Hermes ou Penélope, a qual, segundo outra versão, o teria concebido com todos os pretendentes que a cortejaram durante a ausência de Odisseu. Há também quem o considere filho de Cronos e Réia: ou de Zeus e Híbris, que é a explicação mais plausível.

Ele vivia na Arcádia, onde cuidava de seus rebanhos, manadas e colméias, participava das folias das ninfas montanhesas e ajudava os caçadores a encontrar sua presa. Em geral, era tranqüilo e preguiçoso. Nada lhe apetecia mais do que uma sesta vespertina, e vingava-se daqueles que vinham perturbar o seu sono lançando-lhes, de dentro de uma cova ou caverna, um grito repentino, de arrepiar os cabelos. Apesar disso, os árcades tinham tão pouco respeito por ele que quando voltavam de mãos vazias depois de um longo dia de caça, ousavam ataca-lo com cebolas.

Pã seduziu diversas ninfas, entre elas Eco, que lhe deu Iinx e teve um fim desgraçado por amar Narciso; e Eufeme, a nutriz das musas, que lhe deu Croto, o Arqueiro do Zodíaco. Ele também se gabava de ter copulado com todas as mênades bêbedas de Dionísio.

Uma vez tentou violar a casta Pítis, que escapou dele facilmente, metamorfoseando-se num abeto, cujo ramo passou a ser usado desde então por Pã como grinalda. Em outra ocasião, perseguiu a casta Siringe do monte Liceu até o rio Ládon, onde ela se transformou em junco. Não conseguindo distingui-la do resto, ele cortou vários juncos ao acaso e os transformou numa flauta de Pã. Seu maior êxito amoroso foi Selene, a quem seduziu cobrindo seus pelos pretos de pele de cabra com tosões brancos bem lavados. Sem dar-se conta de quem era ele de fato, Selene aceitou montar no seu lombo, permitindo-lhe desfrutar dela como bem entendesse.

Os deuses olímpicos utilizavam para seu próprio proveito os poderes de Pã, apesar de desprezarem sua simplicidade e seu gosto por escândalos. Apolo obteve dele a arte da profecia, e Hermes copiou uma flauta que Pã deixara cair, dizendo-se seu inventor e vendendo-a a Apolo.

Pã é o único deus que morreu na nossa época. A notícia de sua morte chegou através de Tamo, marinheiro cujo barco ia rumo a Italia, fazendo escala na ilha de Paxi. Uma voz divina gritou do mar:

- Está aí, Tamo? Quando chegar a Palodes, trate de anunciar a morte do grande deus Pã! E assim fez Tamo. A notícia foi recebida desde a costa com gemidos e lamentos.

Pã, cujo nome deriva habitualmente depaein, “pastar”, representa o “demônio”, ou “homem de pé”, do culto árcade da fertilidade, que mantinha grande semelhança com o culto das bruxas do noroeste europeu. Esse homem, vestido com uma pele de cabra, era o amante eleito pelas menades bebedas durante suas orgias nas montanhas altas, privilégio que, mais cedo ou mais tarde, ele acabaria pagando com a própria morte.

Os relatos sobre o nascimento de Pã são muito variados. Levando-se em conta que Hermes era a força residente numa pedra fálica que constituía o centro dessas orgias, os pastores descreviam seu deus Pã como filho de Hermes com um pica-pau, cujas fortes batidas do bico supostamente pressagiavam a bem-vinda chuva estival. O mito de que ele tenha concebido Pã com Eneis é auto-explicativo, ainda que as mênades originais usassem outros estupefacientes além do vinho. O nome de sua famosa mãe Penélope (“a que tem uma rede sobre o rosto”) sugere que as mênades tinham! algum tipo de pintura de guerra para as orgias, recordando as listras da penelope, uma espécie de pato.

Plutarco diz (Sobre as demoras do castigo divino) que as mênades que mataram Orfeu tinham sido tatuadas por seus esposos como castigo.

A visita feita por Hermes a Penélope sob a forma de carneiro — demônio carneiro é tão comum quanto a cabra no culto das bruxas do noroeste - e o fato de ela engravidar com todos os pretendentes, além da jactância de Pã de ter copulado com todas as mênades, aludem ao caráter promíscuo das orgias em homenagem à deusa-abeto Pítis ou Élate. Os montanheses árcades eram os habitantes mais primitivos da Grécia, e seus vizinhos, mais civilizados, manifestavam desprezo por eles.

O filho de Pã, o torcicolo, ou biguatinga, era uma ave migrante de primavera, utilizada para encantamentos eróticos. As cebolas contêm uma substância tóxica irritante — muito efetiva contra camundongos e ritos - e eram usadas como purgante e diurético antes de se tomar parte num ato ritual, motivo pelo qual passaram a simbolizar a eliminação de más influências, e a imagem de Pã era açoitada com essas cebolas quando rareava a caça.

A sedução de Selene deve se referir a uma orgia do Dia de Maio sob a luz do luar, em que a jovem Rainha de Maio montava no lombo do seu homem de pé. antes de celebrar com ele um casamento silvestre. Nessa época, o culto do carneiro havia substituído o da cabra na Arcádia.

Ao que parece, o egípcio Tamo ouviu mal o lamento cerimonial Tbamus Pan-megas Tethnêce (“o todo-poderoso Tamus morreu!”) e entendeu: “Tamo, o grande Pã morreu!”. De qualquer modo, Plutarco, sacerdote de Delfos na segunda metade do século I a.e.c., assim acreditou e publicou, mas, quando Pausânias fez sua viagem pela Grécia, aproximadamente um século depois, encontrou santuários de Pã, altares, cavernas e montanhas sagradas dedicadas a ele, que ainda eram muito freqüentadas.

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2/21/2021 12:41:16 PM | Por Robert Graves
Mito de Criação Olímpico

No Início de todas as coisas, a Mãe Terra (Gaia) emergiu do Caos e pariu seu filho Urano (Céu) enquanto dormia. Fitando-a com carinho a partir das montanhas, ele fez cair uma chuva fértil sobre suas fendas secretas, e ela pariu grama, flores e árvores, com todos os animais e pássaros característicos. Essa mesma chuva fez os rios fluírem, preenchendo os lugares côncavos com água, formando, assim, os lagos e mares.

Seus filhos de forma semi-humana foram os hecatônquiros: Briareu, Giges e Coto. Em seguida surgiram os três violentos ciclopes, ferreiros construtores das muralhas gigantes, primeiro da Trácia, depois de Creta e da Lícia, cujos filhos foram encontrados por Odisseu (Ulisses, entre os romanos) na Sicília. Seus nomes eram Brontes, Estérope e Argés, e seus fantasmas passaram a morar nas cavernas do vulcão Etna desde que Apolo os matou, vingando-se da morte de Asclépio (Esculápio, entre os Romanos).

Os líbios, entretanto, alegam que Garamas nasceu antes dos hecatônquiros e que, ao subir a colina, concedeu á Mãe Terra uma oferenda de bolota doce.

Esse mito patriarcal de Urano obteve aceitação oficial durante o sistema religioso olímpico. Urano, cujo nome veio a significar "o céu", parece ter ganhado a posição de Primeiro Pai ao ser associado ao deus pastoral Varuna, um dos componentes da trindade ariana masculina, mas seu nome grego é uma forma masculina de Ur-ana ("rainha das montanhas", "ranha do verão", "rainha dos ventos" ou "rainha dos bois selvagens") - a deusa em seu aspecto orgíaco típico do solstício de verão. O casamento de Urano com a Mãe Terra registra uma antiga invasão helênica ao norte da Grécia, que permitiu ao povo de Varuna alegar que Urano havia gerado as tribos nativas lá encontradas, mesmo sendo reconhecidamente filho da Mãe Terra. Uma retificação do mito, registrada por Apolodoro, reza que a Terra e o Céu se separaram numa briga mortal e depois se reconciliaram, apaixonados: isso e mencionado por Euripides (Melanipa, a Sábia, fragmento 484, ed. Nauck) e por Apolonio de Rodes (Argonáutica 1. 494). A briga mortal deve se referir ao choque entre os princípios patriarcal e matriarcal que as invasões helênicas causaram. Giges ("nascido da terra') tem uma outra forma, gigas ("gigante"), e os gigantes estão associados miticamente às montanhas da Grécia setentrional. Briareu ("forte") também era chamado de Egeon (Iliada 1. 403), portanto seu povo talvez sejam os libio-tracios, cuja deusa-cabra Egis deu nome ao mar Egeu. Coto foi o ancestral eponimo (que da nome) dos cotianos, veneradores da orgástica Cotito que propagaram seu culto desde a Trácia ate o noroeste da Europa. Essas tribos são descritas como sendo "de cem mãos", talvez porque suas sacerdotisas fossem organizadas em grupos de cinquenta, como as danaides e as nereidas, ou porque os homens fossem organizados em bandos militares de cem, como os primeiros romanos.

Os ciclopes parecem ter sido uma corporação dos primeiros artífices helênicos que trabalhavam o bronze. Ciclope significa "com olho de anel", e eles eram provavelmente tatuados com anéis concêntricos na testa, em homenagem ao Sol, fonte de seu fogo de fornalha. Os trácios continuaram se tatuando ate a época clássica. Círculos concêntricos fazem parte do mistério do ofício de ferreiro: a fim de fabricar tigelas, elmos ou mascaras rituais, o ferreiro costumava guiar-se por esses círculos, marcados pelo compasso ao redor do centro do disco chato sobre o qual trabalhava. Os ciclopes tinham um só olho também no sentido de que os ferreiros geralmente cobrem um olho com uma venda para resguardá-lo das faíscas. Mais tarde, a identidade deles foi esquecida e a imaginação dos mitógrafos colocou seus fantasmas nas cavernas do Etna, a fim de explicar o fogo e a fumaça provenientes de sua cratera. Existiu uma conexão cultural estreita entre Trácia, Creta e Lícia; os ciclopes eram muito familiares em todos esses países. A cultura heládica primitiva propagou-se também pela Sicília, mar e bem possível (Samuel Butler foi o primeiro a sugerir) que a composição siciliana da Odisseia explique a presença dos ciclopes lá. Os nomes Brontes, Esterope e Arges ("trovão", "raio" e "relâmpago") são invenções tardias.

Garamas é o ancestral pepônio dos garamantes líbios, que ocuparam o Oasis de Djado, ao sul de Fezzan, tendo sido conquistador pelo general romano Balbo em 19 a.e.c. Diz-se que são de linhagem camito-berbere e que, no segundo século da era cristã, foram subjugados pelos berberes matrilineares lemta. Mais tarde, misturaram-se aos aborigines negros da margem meridional do Alto Niger, adotando sua Iinguagem. Sobrevivem ainda hoje em um único vilarejo chamado Koromantse. Garamante deriva das palavras gara, man e te, significando "povo do Estado de Gara. Gara parece ser a deusa Ker, Qre ou Car, que deu seu nome aos cariates, entre outros, e ficou associada a apicultura. Bolotas comestíveis, principal alimento do mundo antigo antes da introdução do trigo, cresciam na Líbia. O assentamento garamante de Ammon uniu-se ao assentamento grego setentrional de Dodona em uma liga religiosa que, de acordo com Sir Flinders Petrie, pode ter surgido já no terceiro milênio a.e.c. Ambos os lugares detinham um antigo oráculo de carvalho. Heródoto descreve os garamantes como um povo pacifico, mas muito poderoso, que se dedica ao cultivo de tamareira e trigo e ao pastoreio de gado.

 

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2/21/2021 12:37:53 PM | Por Robert Graves
Mitos de Criação Homérico e Órfico

Conta-se que todos os deuses e todas as criaturas vivas originaram-se da torrente com que o Oceano cerca o mundo, e que Tétis foi a mãe de todos os filhos dele. Mas os órficos dizem que a Noite, deusa de asas negras que até mesmo Zeus reverencia, foi cortejada pelo Vento e pôs um ovo prateado no ventre da escuridão; e que Eros, também chamado Fanes, foi chocado nesse ovo e colocou o Universo em movimento. Eros tinha dois sexos e asas douradas e, por ter quatro cabeças ora rugia como um touro ou um leão, ora silvava como uma serpente ou balia como um carneiro. A Noite, que o chamava de Ericepaius e Faetonte Protogênico, vivia com ele numa caverna, exibindo-se numa tríade: Noite, Ordem e Justiça. Diante dessa caverna ficava a inescapável mãe Réia (Cibele, entre os romanos), tocando um tambor de latão para chamar a atenção do homem aos oráculos da deusa. Fanes criou a terra, o céu, o sol e a Lua, mas a deusa tripla governou o universo até seu cetro ser transferido para Urano.

O mito de Homero é uma versão da história da criação pelasga, pois Tétis governou o mar como Eurínome, e Oceano cercou o Universo como Ofíon.

O mito órfico constitui outra versão, influenciada, porém, por uma doutrina mística tardia do amor (Eros) e por teorias sobre relações adequadas dos sexos. O ovo prateado da Noite significa a Lua, a prata sendo o metal lunar. Assim como Ericepaius "comedor de urze", o deus do amor Fanes "revelador" é uma abelha celestial com um forte zunido, filho da Grande Deusa.

A coméia foi estudada como uma república ideal e confirmou o mito da Era de Ouro, quando o mel pingava das árvores. O tambor de latão de Réia era tocado para evitar que as abelhas se enxameassem no lugar errado e para repelir influências malignas, como os rugidos de touros usados durante os Mistérios. Assim como Faetonte Protogênico "primogênito brilhante", Fanes é o Sol que os órficos transformaram em símbolo de iluminação, e suas quatro cabeças correspondem aos animais simbólicos das quatro estações. Conforme Macrobius, o oráculo de Cólofon identificou esse Fanes com o deus transcendente Iao: Zeus (carneiro), Primavera; Hélio (leão); Hades (cobra), Inverno; Dioníso (touro), Ano-Novo.

O cetro da Noite passou para Urano por ocasião do advento do patriarcado.

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2/21/2021 12:19:12 PM | Por Robert Graves
Mitos de Criação Filosóficos

Reza a lenda que primeiro foi a Escuridão, e da Escuridão surgiu o Caos. Da união entre a Escuridão e o Caos surgiram a Noite, o Dia, Erebo e o Ar. Da união entre a Noite e Erebo surgiram o Destino, a Velhice, a Morte, o Assassinato, a Moderação, o Sono, os Sonhos, a Discórdia, a Miséria, a Aflição, Nemesis, a Alegria, a Amizade, a Misericórdia, as três Parcas e as três Hesperides. Da união entre o Ar e o Dia surgiram a Mãe Terra, o Céu e o Mar.

Da união entre o Ar e a Mãe Terra surgiram o Terror, o Ofício, a Raiva, a Luta, as Mentiras, os Juramentos, a Vingança, a lntemperança, a Altercação, o Pacto, o Esquecimento, o Medo, o Orgulho, a Batalha e também Oceano, Metis e outros titãs, o Tártaro e as três Erínias, ou Fúrias.

Da união entre a Terra e o Tártaro surgiram os gigantes.

Da união entre o Mar e seus Rios surgiram as nereidas. Mas, ate então, não havia mortais, de maneira que, com o consentimento da deusa Atena, Prometeu, filho de Japeto, formou-os à semelhança dos deuses. Utilizou-se de barro e agua de Panopeus na Fócida, e Atena insuflou vida neles.

Contam ainda que o Deus de Todas as Coisas - não importa quem tenha sido, alguns o chamam de Natureza - surgiu subitamente no meio do Caos e separou a terra dos céus, a agua da terra e o ar de cima do ar de baixo. Apos desenredar os elementos, colocou-os na devida ordem, assim como podem ser encontrados agora. Ele dividiu a terra em zonas, algumas muito quentes, outras muito frias, outras temperadas, modelou-a em planícies e montanhas e a revestiu de plantas rasteiras e arvores. Acima dela, fixou o firmamento giratório enfeitado de estrelas e estabeleceu estações para os quatro ventos. Povoou as aguas com peixes, a terra com animais e o céu com o Sol, a Lua e os cinco planetas. Finalmente, fez o homem - união entre os animais que ergue o rosto para o céu e observa o Sol, a Lua e as estrelas -, a não ser que seja de fato verdade que Prometeu, filho de Japeto, tenha feito o corpo do homem com base em agua e barro, e que sua alma tenha sido fornecida por certos elementos divinos errantes, sobreviventes da Primeira Criação.

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Na Teogonia de Hesíodo - em que se baseia o primeiro destes mitos filosóficos -, a lista de abstrações é confundida pelas nereidas, pelos titãs e pelos gigantes, os quais ele se sente na obrigação de incluir. Tanto as três Parcas quanto as três Hesperides constituem a deusa-Lua tripla em seu aspecto de morte.

Quanto ao segundo mito, encontrado apenas em Ovídio, os gregos tardios tomaram-no emprestado da epopeia babilônica de Gilgamesh, cuja introdução registra a criação particular da deusa Aruru do primeiro homem, Eabini, a partir de um pedaço de argila. Mas, embora Zeus houvesse sido o Senhor Universal por vários séculos, os mitógrafos viram-se forçados a admitir que o Criador de todas as coisas pode bem ter sido uma Criadora. Os judeus, como herdeiros do mito "pelasgo" ou cananeu, sentiram o mesmo embaraço. No relato do Genesis, um "Espirito do Senhor" fêmeo move-se por cima das águas, embora não ponha o ovo do mundo; e Eva, "a Mãe de Todos os Viventes", recebe a ordem de esmagar a cabeça da Serpente, embora esta não se veja obrigada a descer até às Profundezas do fim do mundo.

De maneira semelhante, na versão talmúdica da Criação, o arcanjo Miguel - a contraparte de Prometeu - forma Adão a partir do pó atendendo as ordens não da Mãe de Todos os Viventes, mas de Jeová. Jeová então insufla vida nele e o da a Eva, que, como Pandora, traz prejuízos à humanidade.  Os filósofos gregos diferenciaram o homem prometeico da imperfeita criação nascida da terra, parcialmente destruída por Zeus e cujo resto foi levado pela agua durante o dilúvio de Deucalião. Uma diferenciação muito semelhante pode ser encontrada no Genesis VI. 2-4 entre os "filhos de Deus" e as "filhas dos homens" com quem eles se casavam.

As tábuas de Gilgamesh são tardias e equivocas. La acredita-se que a "Brilhante Mãe do Vazio" tenha formado tudo - "Aruru" é apenas um dos numerosos títulos dessa deusa -, e o tema principal é a revolta contra a ordem matriarcal, descrita como uma confusão absoluta provocada pelos deuses da nova ordem patriarcal. Marduk, o deus-cidade babilônico, finalmente derrota a deusa na pessoa de Tiamat, a Serpente do Mar. E, então, anuncia-se descaradamente que ele, e ninguém mais, criara as plantas, as terras, os rios, os animais, os pássaros e a humanidade. Esse Marduk foi uma divindade menor que subitamente ascendeu, cuja alegação de ter derrotado Tiamat e criado o mundo havia sido feita antes pelo deus Bel - uma forma masculina de Belili, a deusa-mae suméria. A transição do matriarcado para o patriarcado parece ter ocorrido na Mesopotâmia, assim como em outros lugares, devido à revolta do consorte da Rainha, a quem ela havia outorgado o poder executivo, permitindo-lhe usar seu nome, suas vestes e seus instrumentos sagrados.

Mitologia - Mitologia Grega
Comportamento - Desequilíbrio psicológico, Ansiedade
2/13/2021 3:21:28 PM | Por Daniel Goleman
Os prejuízos da ansiedade nos processos de aprendizado

Só uma vez na vida fiquei paralisado pelo medo. Isso ocorreu numa prova de cálculo em meu primeiro ano na universidade, para a qual eu tinha arranjado um jeito de não estudar. Ainda me lembro da sala em direção a qual marchei naquela manhã de primavera, me sentindo como um condenado e com maus presságios no coração. Estivera naquele anfiteatro assitindo a muitas aulas. Naquela manhã, porém, não vi nada através das janelas e nem mesmo vi a própria sala. Meu olhar fixava-se apenas no pedaço de chão à minha frente, quando me dirigi para uma cadeira perto da porta. Ao abrir a prova, as batidas do coração latejavam em meus ouvidos, e eu sentia um gosto de ansiedade na boca do estômago.

Dei uma olhada rápida nas questões da prova. Não havia esperança. Durante uma hora, fiquei olhando para aquela página, a mente antevendo as conseqüências que eu iria sofrer. Os mesmos pensamentos repetiam-se sem parar, num ciclo de medo e tremor. Fiquei sentado, imóvel como um animal paralisado no meio de um movimento. O que mais me impressiona naquele pavoroso momento é como o meu raciocínio ficou embotado. Não utilizei aquele momento para uma desesperada tentativa de costurar um tipo qualquer de resposta para as questões. Não recorri à minha imaginação. Simplesmente fiquei sentado, fixado em meus terrores, esperando acabar o sofrimento.

A capacidade de manter o autocontrole, de suportar o turbilhão emocional que o acaso nos impõe e de não se tornar um “escravo da paixão”, tem sido considerada, desde Platão, como uma virtude. Na Grécia clássica, esse atributo era denominado sophrosyne, “precaução e inteligência na condução da própria vida; equilíbrio e sabedoria”, como interpreta Page DuBois, um estudioso do idioma grego. Para os romanos e para a antiga Igreja cristã isso significava temperantia, temperança, contenção de excessos. O objetivo é o equilíbrio e não a supressão das emoções: cada sentimento tem seu valor e significado. Uma vida sem paixão seria um entediante deserto de neutralidade, cortado e isolado da riqueza da própria vida. Mas, como observou Aristóteles, o que é necessário é a emoção na dose certa, o sentimento proporcional à circunstância. Quando as emoções são sufocadas, geram embotamento e frieza; quando escapam ao nosso controle, extremadas e renitentes, tornam-se patológicas, tal como ocorre na depressão paralisante, na ansiedade que aniquila, na raiva demente e na agitação maníaca.

Essa narrativa de uma provação pelo terror é de minha autoria; até hoje, é para mim a prova mais convincente do impacto devastador da perturbação emocional sobre a clareza mental. Agora vejo que meu apuro foi muito provavelmente um testemunho do poder de domínio e de paralisação que a emoção exerce sobre a razão.

A forma como as perturbações emocionais podem interferir na vida mental não é novidade para os professores. Alunos ansiosos, mal-humorados ou depri­midos não aprendem; pessoas colhidas nesses estados não absorvem eficiente­mente a informação e nem a elaboram devidamente. Emoções negativas muito fortes desviam a atenção para suas próprias preocupações, interferindo na tentativa de concentração em qualquer outra coisa. Na verdade, um dos sinais de que os sentimentos transpuseram o limite do patológico é que são tão intrusos que esmagam outro pensamento, sabotando continuamen­te as tentativas de darmos atenção à tarefa que tenhamos de cumprir. Para a pessoa que passa por um divórcio conturbado — ou o filho cujos pais passam por isso — , a mente não se fixa muito nas rotinas mais ou menos triviais do trabalho ou da escola; para os clinicamente deprimidos, os pensamentos de autopiedade e desespero, desesperança e desamparo se sobrepõem a qualquer outro.

Quando as emoções subtraem a concentração, o que está sendo subtraído de fato é a capacidade mental cognitiva que os cientistas chamam de “memória funcional”, isto é, a capacidade de ter em mente toda a informação relevante para a execução de uma determinada tarefa. O que ocupa a memória funcional pode ser banal como os algarismos de um número de telefone, ou complicado como as intricadas linhas da trama que o romancista tenta juntar. A memória funcional é uma função executiva por excelência na vida mental, possibilitando todos os outros esforços intelectuais, desde pronunciar uma frase até enfrentar uma complicada proposição de lógica. O córtex pré-frontal executa a memória funcional — e, lembrem-se, é ali onde os sentimentos e emoções se encontram. Quando os circuitos límbicos que convergem no córtex pré-frontal estão tomados por angústia emocional, o ônus recai na eficácia da memória funcional: não podemos pensar direito, como eu descobri naquela pavorosa prova de cálculo.

Por outro lado, pensem no papel da motivação positiva — a reunião dos sentimentos de entusiasmo, zelo e confiança — na conquista de um objetivo. Estudos sobre atletas olímpicos, músicos de fama mundial e grandes mestres de xadrez constatam que o que eles têm em comum é a capacidade de motivarem-se para seguirem implacáveis rotinas de treino. E, com o aumento constante no grau de excelência exigido para um desempenho em nível mundial, essas rigorosas rotinas, hoje, cada vez mais, devem começar na infância. Nas Olimpía­das de 1992, membros de doze anos da equipe de mergulhadores chineses tinham feito tantos mergulhos em treino quanto os membros da equipe estadunidense com vinte anos — os mergulhadores chineses iniciavam seu rigoroso treino aos quatro anos. Do mesmo modo, os melhores tocadores do violino do século 20 começaram a estudar o instrumento por volta dos cinco anos de idade; os campeões internacionais de xadrez iniciaram-se no jogo numa idade média de sete anos, enquanto os que se elevavam apenas à projeção nacional começavam aos dez. A iniciação precoce oferece uma vantagem para a vida inteira:  os melhores alunos de violino da melhor academia de música de Berlim, todos com vinte e poucos anos, haviam acumulado dez mil horas de ensaio e os da segunda leva, uma média de sete mil e quinhentas horas, em suas vidas.

O que parece distinguir os melhores nas competições de outros com capacidade mais ou menos semelhante é o grau em que, começando cedo na vida, podem manter uma árdua rotina de exercício durante anos e anos. E essa obstinação depende de características emocionais — entusiasmo e persistência diante dos reveses — acima de tudo mais.

Uma outra contribuição que a motivação oferece para o sucesso na vida, além de outras capacidades inatas, pode ser vista no notável desempenho de estudan­tes asiáticos nas escolas e profissões estadunidenses. Um exame detalhado das provas sugere que as crianças asiático-americanas podem ter uma vantagem média de QI sobre os brancos de apenas dois ou três pontos. Contudo, com base nas profissões, como direito e medicina, opção de muitos asiático-americanos, como grupo eles se comportam como se tivessem um QI muito mais alto — o equiva­lente a um QI de 110 para os nipo-americanos e de 120 para os sino-americanos. O motivo parece ser que, desde os primeiros anos de escola, as crianças asiáticas se esforçam mais que as brancas. Sanford Dorenbusch, sociólogo de Stanford que estudou mais de 10 mil ginasianos, constatou que os asiático-americanos passavam 40 por cento mais tempo fazendo trabalho de casa que os outros.

— Enquanto a maioria dos pais estadunidenses aceita o fato de os seus filhos serem mais fracos em determinadas disciplinas e investirem mais naquelas em que se saem melhor, para os asiáticos o comportamento é inverso: estudar mais à noite, e se ainda assim não dá certo, levantar-se mais cedo e estudar de manhã. Eles acreditam que qualquer um pode se sair bem na escola com o esforço adequado.

Em suma, uma forte ética de trabalho cultural traduz-se em maior motivação, zelo e persistência — uma vantagem emocional.

Na medida em que nossas emoções atrapalham ou aumentam nossa capacidade de pensar e fazer planos, de seguir treinando para alcançar uma meta distante, solucionar problemas e coisas assim, elas definem os limites de nosso poder de usar nossas capacidades mentais inatas, e assim determinam como nos saímos na vida. E na medida em que somos motivados por sentimentos de entusiasmo e prazer no que fazemos — ou mesmo por um grau ideal de ansiedade —, esses sentimentos nos levam ao êxito. É nesse sentido que a inteligência emocional é uma aptidão mestra, uma capacidade que afeta profun­damente todas as outras, facilitando ou interferindo nelas.

Controle da impulsividade: o teste do marshmallow

Imagine que você tem quatro anos de idade, e alguém lhe faz a seguinte proposta: se esperá-lo voltar de uma determinada tarefa, você ganha dois marshmallows de presente. Se não conseguir esperar até lá, ganha só um — e imediatamente. Este é um desafio seguro para testar a alma de qualquer menino de quatro anos, um microcosmo da eterna batalha entre o impulso e a contenção, id e ego, desejo e autocontrole, satisfação imediata e capacidade de aguardar a satisfação. Que escolha a criança fará é um teste revelador; oferece uma rápida leitura não apenas do caráter, mas da trajetória que ela provavelmente seguirá pela vida afora.

Talvez não haja aptidão psicológica mais fundamental que a capacidade de resistir ao impulso. É a raiz de todo autocontrole emocional, uma vez que todas as emoções, por sua própria natureza, levam a um ou outro impulso para agir. O significado básico da palavra emoção, lembrem-se, é “mover”. A capacidade de resistir ao impulso para agir, de subjugar o movimento incipiente, com a maior probabilidade significa, no nível da função cerebral, que os sinais límbicos para o córtex motor são inibidos, embora esse seja um entendimento ainda em especulação.

De qualquer modo, o estudo notável em que o desafio do marshmallow foi feito a crianças de quatro anos mostra como é fundamental a capacidade de conter as emoções e, desta forma, conter o impulso. Iniciado pelo psicólogo Walter Mischel na década de 60, numa pré-escola da Universidade de Stanford, e envolvendo sobretudo filhos de professores universitários e de outros funcionários do campus, o estudo acompanhou as crianças até concluírem o segundo grau.

Algumas foram capazes de esperar o que certamente devem ter sido intermináveis quinze a vinte minutos até o pesquisador retornar. A fim de se agüentarem na luta contra o impulso, tapavam os olhos para evitar a tentação, ou metiam a cabeça entre os braços, conversavam consigo mesmas, cantavam, brincavam com as mãos e pés, e até tentavam dormir. Esses valentes pré-escolares receberam a recompensa dos dois marshmallows. Mas outros, mais impulsivos, agarraram o seu único doce, quase sempre segundos depois de o pesquisador deixar a sala para ir cumprir sua “tarefa”.

O poder diagnóstico de como lidaram com esse momento de impulso tornou-se claro doze a quatorze anos depois, quando essas mesmas crianças foram observadas na adolescência. A diferença emocional e social entre os pré-escolares que agarraram o marshmallow e seus colegas que adiaram a satisfação era impressionante. Os que resistiram à tentação aos quatro anos eram, agora, adolescentes mais competentes socialmente: pessoalmente eficazes, auto-assertivos e mais bem capacitados para enfrentar as frustrações da vida. Tinham menos probabilidade de desmontar-se, paralisar-se ou regredir sob tensão, ou ficarem abalados e desarvorados quando pressionados; aceitavam desafios e iam até o fim, em vez de desistir, mesmo diante de dificuldades; eram independentes e confiantes, confiáveis e firmes; e tomavam iniciativas e mergulhavam em projetos. E, mais de uma década depois, ainda podiam esperar um certo tempo para receber suas recompensas, enquanto perseguiam seus objetivos.

Aqueles que agarraram o marshmallow — cerca de um terço do grupo — tendiam a ter reduzidas essas qualidades e possuíam, ao contrário, um perfil psicológico relativamente mais problemático. Na adolescência, tinham mais probabilidade de serem considerados tímidos nos contatos sociais; de serem teimosos e indecisos; de perturbarem-se facilmente diante de frustrações; de julgarem-se “ruins” ou indignos; de regredirem ou ficarem imobilizados quando tensos; de serem desconfiados e ressentidos por “Não conseguir nada”; de tenderem ao ciúme e à inveja; de reagirem exageradamente a irritações com mau humor, desta forma provocando discussões e brigas. E, após todos aqueles anos, continuavam sendo incapazes de aguardar a recompensa.

O que aparece discretamente no início da vida desabrocha numa ampla gama de aptidões sociais e emocionais com o desenrolar dela. A capacidade de conter os impulsos está na raiz de uma pletora de esforços que vão desde manter uma dieta até lutar para a obtenção de um diploma em psicologia. Algumas crianças, mesmo aos quatro anos, já dominaram o básico: conseguiram interpretar as circunstâncias sociais como uma situação em que o saber esperar é vantajoso, significa desconcentrar-se da tentação imediata e distrair-se enquanto mantêm a necessária perseverança para chegar ao objetivo — os dois marshmallows.

Mais surpreendente ainda: quando as crianças testadas foram de novo avaliadas ao concluírem o ginásio, as que tinham sido pacientes aos quatro anos eram muito superiores, como estudantes, do que as que haviam agido impulsi­vamente. Segundo relato dos pais, eram mais competentes em termos acadêmi­cos: mais capazes de pôr as idéias em palavras, usar e responder à razão, concentrar-se, fazer planos e segui-los até o fim, e mais ávidas por aprender. Mais espantoso ainda: contavam pontos sensacionalmente mais altos em seus testes SAT. O terço de crianças que aos quatro anos agarraram mais avidamente o marshmallow tinha uma contagem verbal média de 524 e quantitativa (ou matemática) de 528; o terço que esperou por mais tempo tinha contagens médias de 610 e 652, respectivamente — uma diferença de 210 pontos na contagem total.

Aos quatro anos, o desempenho da criança nesse teste de adiamento da satisfação é duas vezes mais poderoso como previsão de qual vão ser suas contagens no SAT do que o QI nessa idade; o QI só se torna um previsor mais forte do que o SAT depois que as crianças aprendem a ler. Isso sugere que a capacidade de adiar a satisfação contribui muito para o potencial intelectual, inteiramente à parte do próprio QI. (Um fraco controle de impulso na infância é também um poderoso previsor de delinqüência futura, também aqui mais que o QI). Embora alguns afirmem que o QI não pode ser mudado e que, portanto, representa uma inflexível limitação do potencial de vida da criança, há amplos indícios de que aptidões emocionais como o controle de impulso e a interpretação de uma circunstância podem ser aprendidas.

O que Walter Mischel, que fez o estudo, descreve com a expressão um tanto infeliz “auto-imposto adiamento de satisfação com vistas a uma meta” é talvez a essência da auto-regulaçâo emocional: a capacidade de controlar um impulso para conseguir chegar a um objetivo, seja montar uma empresa, solucionar uma equação algébrica ou disputar a Copa Stanley. As constatações dele acentuam o papel da inteligência emocional como uma capacidade de atingir metas, determinando como as pessoas podem empregar bem ou mal suas outras capacidades mentais.

Alta ansiedade baixo desempenho

Eu me preocupo com meu filho. Ele entrou para o time de futebol da universidade, e logo vai acabar se machucando. É tão dilacerante vê-lo jogar que deixei de ir aos jogos de que ele participa. Sei que meu filho deve estar decepcionado por eu não ir vê-lo jogar, mas isso é demais para mim.

Essa mãe está fazendo um tratamento por causa da ansiedade; ela sabe que sua preocupação a impede de fazer o que gostaria. Mas, quando chega a hora de tomar uma decisão simples, como ver o filho jogar futebol, fica com a cabeça inundada de idéias trágicas. Não possui livre-arbítrio; as preocupações sufocam a razão.

Como vimos, a preocupação é a essência do efeito prejudicial da ansiedade sobre todo tipo de desempenho mental. É claro que a preocupação é, num certo sentido, uma resposta útil que desembestou — uma supercuidadosa preparação mental para uma ameaça previsível. Mas esse ensaio mental é uma desastrosa interferência cognitiva quando colhido numa rançosa rotina que prende a atenção, intrometendo-se em todas as outras tentativas de concentrar-se em outra coisa.

A ansiedade solapa o intelecto. Numa tarefa complexa, intelectualmente exigente e de grande pressão como a dos controladores de tráfego aéreo, por exemplo, a alta ansiedade crônica é um previsor quase certo de que a pessoa vai acabar fracassando no treinamento ou na profissão. Os ansiosos têm mais probabilidade de falhar, ainda que tenham contagens superiores em testes de inteligência, como constatou um estudo de 1790 alunos em treinamento para postos de controle de tráfego aéreo. A ansiedade também sabota todos os tipos de desempenho acadêmico: 126 diferentes estudos com mais de 36 mil pessoas constataram que, quanto mais a pessoa é propensa a preocupações, mais fraco é o seu desempenho acadêmico, não importa qual a espécie de medição — notas em provas, média de pontos ou testes de rendimento.

Quando se pede a pessoas inclinadas a preocupações que executem uma tarefa cognitiva do tipo classificar objetos ambíguos em uma de duas categorias, e narrar, ao mesmo tempo, o que lhes passa pela cabeça, descobre-se que são os pensamentos negativos — “Não vou conseguir fazer isso”, “Não sou bom nesse tipo de teste” — que mais diretamente atrapalham seus processos de decisão. Na verdade, quando se pediu a um grupo de controle, de não preocupados, que simulassem preocupação durante quinze minutos, sua capa­cidade de fazer a mesma coisa deteriorou-se acentuadamente. E quando os preocupados tiveram uma sessão, anteriormente à execução da tarefa, de quinze minutos de relaxamento — o que reduziu seu nível de preocupação — não tiveram problemas com ela.

O teste de ansiedade foi estudado cientificamente pela primeira vez na década de 60, por Richard Alpert, que me confessou ter esse seu interesse despertado porque, quando estudante, os nervos muitas vezes o faziam sair-se mal nas provas, enquanto um colega, Ralph Haber, achava que a pressão antes de uma prova na verdade o ajudava a sair-se melhor. A pesquisa deles, entre outros estudos, mostrou que há dois tipos de estudantes ansiosos: aqueles cuja ansiedade prejudica o desempenho acadêmico, e os que se saem bem apesar da tensão — ou, talvez, por causa dela. A ironia do teste de ansiedade é que a mesma apreensão quanto ao sucesso na prova que, idealmente, motiva alunos como Haber a se prepararem melhor para as provas e terem bom desempenho, é capaz de sabotar o êxito de outros. Para pessoas muito ansiosas, como Alpert, a apreensão pré-prova interfere na clareza de raciocínio e na memória, que são fundamentais para um estudo eficaz e, durante a prova, a clareza mental — essencial para que se saiam bem — fica comprometida.

A variedade de preocupações relatadas por pessoas que deverão ser subme­tidas a um teste prediz qual será o desempenho delas. Os recursos mentais despendidos numa tarefa cognitiva — a preocupação — simplesmente minam os recursos existentes para o processamento de outras informações: se ficarmos preocupados com a possibilidade de fracassar na prova que estamos fazendo, teremos menos atenção para ser empregada na resolução das questões. Nossas preocupações se tornam profecias autoconcretizantes, impelindo-nos para o próprio desastre que predizem.

As pessoas capazes de canalizar suas emoções, por outro lado, podem usar a ansiedade antecipatória — sobre um discurso ou teste próximos, digamos — para motivarem-se a prepararem-se bem para a tarefa, com isso saindo-se bem.

A literatura clássica em psicologia descreve o relacionamento entre ansiedade e desempenho, incluindo o desempenho mental, em termos de um U invertido. No pico do U invertido está a proporção ideal entre ansiedade e desempenho, com uns poucos nervos propulsionando o grande rendimento. Mas ansiedade de menos — o primeiro lado do U — traz apatia e pouquíssima motivação para o esforço necessário ao êxito, enquanto ansiedade demais — o outro lado do U — sabota qualquer tentativa de êxito.

Um estado de euforia branda — hipomania, como é tecnicamente chamada — parece ideal para escritores e outros em vocações criativas que exigem fluidez e diversidade imaginativa de pensamento; fica em algum ponto do pico do U invertido. Mas é só a euforia sair de controle, que se torna mania mesmo, como nas oscilações de humor dos maníaco-depressivos, e a agitação solapa a capacidade de pensar com coesão suficiente para escrever bem, muito embora as idéias fluam livremente — na verdade, livremente demais para podermos acompanhá-las bem e concretizarmos alguma coisa.

Os estados de espírito positivos, enquanto duram, aumentam a capacidade de pensar com flexibilidade e mais complexidade, tornando assim mais fácil encontrar soluções para os problemas, intelectuais ou interpessoais. Isso sugere que uma das maneiras de ajudar alguém a solucionar um problema é contar-lhe uma piada. O riso, como a euforia, parece ajudar as pessoas a pensar com mais largueza e a fazer associações de forma mais livre, percebendo relações que de outro modo poderiam ter-lhes escapado — uma aptidão mental importante não apenas na criatividade, mas para reconhecer relacionamentos complexos e prever as conseqüências de uma determinada decisão.

As vantagens intelectuais de uma boa risada são mais impressionantes quando se trata de resolver um problema que exige uma solução criativa. Um estudo constatou que as pessoas que assistiram a um vídeo de humor, depois resolviam com facilidade um quebra-cabeça que foi durante muito tempo utilizado por psicólogos para testar o pensamento criativo. No teste, as pessoas recebem uma vela, fósforos e uma caixa de percevejos, e pede-se que elas preguem a vela numa parede de cortiça, de modo que ela queime sem pingar cera no chão. Muitas pessoas que recebem esse problema entram em “fixidez funcional'’, pensando em usar os objetos das formas mais convencionais. Mas os que assistiram ao filme cômico, comparados com outros que assistiram a um filme sobre matemática ou fizeram exercícios, tinham mais probabilidade de ver um uso alternativo para a caixa de percevejos, e com isso davam a solução criativa: pregar a caixa na parede e usá-la como castiçal.

Mesmo ligeiras mudanças de humor podem dominar o pensamento. Ao fazer planos ou tomar decisões, as pessoas têm um desvio perceptivo que as leva a ficar mais expansivas e positivas no pensar. Isso se deve em parte ao fato de a  memória ser específica de um estado de espírito, de modo que, quando estamos num bom estado de espírito, lembramos de coisas boas; ao pesarmos os prós e contras de uma linha de ação quando estamos nos sentindo bem, a memória desloca nossa avaliação dos sinais para os que apontam para o lado positivo, tornando mais provável que façamos alguma coisa ligeiramente aventureira ou arriscada, por exemplo.

Da mesma forma, um estado de espírito negativo prejudica a memória, tornando mais provável que nos fixemos numa decisão medrosa, excessivamente cautelosa. As emoções descontroladas tolhem o intelecto. Mas, podemos colocá-las sob controle; essa capacidade emocional é a aptidão mestra, facilitando todos os outros tipos de inteligência. Vejamos alguns casos a esse respeito: as vantagens de esperança e otimismo, e os momentos sublimes em que as pessoas se superam.

A Caixa de Pandora e Pollyana: a força do otimismo

Colocou-se para estudantes universitários a seguinte situação: aptidão intelectual equivalente nos rendimentos acadêmicos, o que os distingue e a esperança.

Como diz a conhecida lenda, Pandora, a mando de Zeus, levou como presente à Prometeu e seu irmão Epimeteu, uma caixa misteriosa. Dissera-lhe que nunca a abrisse. Mas um dia, vencida pela curiosidade e a tentação, ela abriu a tampa para dar uma espiada, deixando escapar para o nosso mundo os grandes males — doença, inquietação, loucura. Um deus compadecido permitiu-lhe, porém, fechar a caixa a tempo de prender o único antídoto que torna suportável a infelicidade na vida: a esperança.

A esperança, descobrem os pesquisadores modernos, faz mais que oferecer um pouco de conforto na aflição; desempenha um papel surpreendentemente poderoso na vida, oferecendo uma vantagem em domínios tão diversos como no desempenho acadêmico e em agüentar empregos opressivos. A esperança, no sentido técnico, é mais do que uma visão otimista de que tudo vai dar certo. Snyder a define com mais especificidade como sendo a capacidade de “acreditar que se tem a vontade e os meios de atingir as próprias metas, quaisquer que sejam”.

As pessoas tendem a se diferenciar na medida em que têm esse tipo de esperança. Alguns julgam-se, geralmente, capazes de sair de uma enrascada ou encontrar meios de solucionar problemas, enquanto outros simplesmente acham que não têm a devida energia, que não possuem capacidade ou meios para atingir suas metas. Snyder constata que as pessoas com altos níveis de esperança têm certos traços comuns, entre eles poder motivar-se, sentir-se com recursos suficientes para encontrar meios de atingir seus objetivos, tendo a certeza, mesmo diante de uma situação difícil, de que tudo vai melhorar, de ser flexível o bastante para encontrar meios diferentes de chegar às metas, ou trocá-las se não forem viáveis, e de ter a noção de como decompor uma tarefa grande em parcelas menores, mais fáceis de serem enfrentadas.

Da perspectiva da inteligência emocional, ser esperançoso significa que não vamos sucumbir numa ansiedade arrasadora, atitude derrotista ou em depressão diante de desafios ou reveses difíceis. Na verdade, as pessoas esperançosas mostram menos depressão que as outras ao conduzirem suas vidas em busca de suas metas, são em geral menos ansiosas e têm menos distúrbios emocionais.

Psicologia - Neuropsicologia
Vida após a morte - , 
2/13/2021 2:25:37 PM | Por A. S. Franchini
A eternidade da alma Asteca

Como os astecas concebiam o surgimento da vida? E o destino do homem após a morte? Existem várias interpretações, segundo a escatologia asteca. Para Alfredo López Austin, a geografia do mundo asteca está dividida em três planos - subterrâneo, terreno e celestial -, todos ligados pela árvore cósmica de Tamoanchán, chamada Xochtlicacín (De Onde Brotam as Flores). O plano subterrâneo, onde estão fincadas as raízes da árvore, se chama Chicnauhmictlín (O Nono Lugar do Inframundo). O plano terrestre, ocupado pelo tronco da árvore, se chama, por sua vez, Tlalticpac (A Superfície da Terra), e se compõe de quatro planos. E, finalmente, onde estão esparramados os galhos mais altos, situa-se o Chicnauhtopin (Os Nove Lugares Celestiais).

No começo dos tempos, por dentro do tronco, fluíam as energias do céu e do inframundo, enroscadas, mas não misturadas. Com o pecado dos deuses, entretanto, rompeu-se o tronco e as duas seivas, superior e inferior ou "quente e fria”, segundo a terminologia mítica -, misturaram-se, dando origem ao caos mortífero da vida terrena.

Mas de onde se origina a vida do homem?

Seu ponto de partida se dá sob a forma simbólica de uma “semente” (ochlachtli) originária do nível mais inferior do inframundo. Essa semente - às vezes chamada de “coração” -, desprovida de qualquer pecado ou impureza, é colocada no Tlalocan, o paraíso do deus Tlaloc, onde aguarda o chamado da vida. Quando as duas forças, superior e inferior, se conjugam na semente, ela é trazida, então, à vida no Tlalticpac terreno, onde nasce sob a forma de uma criança.

Ao ingressar na Terra, contudo, a criança é envolvida pelas energias inferiores do inframundo, tais como a morte, o sexo e o pecado, o que a obriga a ser submetida, logo após o nascimento, a um ritual de purificação, semelhante ao do batismo cristão. Com o passar dos anos, dependendo da pessoa e dos seus esforços, pode acontecer de ela conseguir eliminar quase que totalmente estas “forças frias”, a ponto de se tornar algo semelhante a um iogue ou um santo cristão. (Esse processo de aquisição de forças divinas, adverte López Austin, ocasiona a perda da sexualidade, o que representa um bem, já que o sexo é visto no esoterismo asteca como um dos elos da cadeia nefasta que conduz à degeneração e à morte.)

Finalmente, quando o homem morre, o seu “coração” ou “semente” é recambiado de volta para o nível mais profundo do inframundo, sofrendo no caminho um demorado processo de "eliminação das impurezas”. (Esse processo estaria retratado na árdua viagem de quatro anos que os “mortos comuns” devem empreender antes de alcançar o último nível do inframundo).

Mas, e depois dessa purificação, o que acontece ao morto?

Na hipótese mais conhecida, o morto simplesmente desaparece após uma estadia de quatro anos no último nível do Mictlán. (O que não deixa de ser um contrassenso: se o destino é desaparecer para sempre, para que esta “prorrogação” da vida, trabalhosa e absolutamente inútil?)

Numa segunda hipótese, quase tão aflitiva quanto a primeira, o morto, transformado novamente em semente “limpa" e completamente despersonalizada, fica pronto para retornar ao Tlalticpac (a Terra), numa espécie de "reencarnação asteca”. (Matos Moctezuma compara a descida aos nove níveis do inframundo como uma gestação às avessas, na qual o morto retrocede à condição de semente, estando pronto para recomeçar o ciclo de uma nova vida terrena.) López Austin acrescenta que um dos termos aplicados ao inframundo -Ximoayan -, que deriva do verbo “polir”, pode ser uma indicação de que o inframundo é o local onde se procede à “purificação” da semente para uma posterior reutilização.

Finalmente, numa terceira e última hipótese, o morto deve executar algum tipo de trabalho retributivo no Além, celestial ou subterrâneo - conforme tenham predominado em seu coração as energias do “alto” ou de “baixo” antes de ir gozar (presume-se que para sempre) das delícias da Árvore Celestial.

Mitologia - Mitologia Asteca
Personalidade - Cognição, Psicologia da auto-ilusão
2/12/2021 4:57:58 PM | Por Daniel Goleman
A relação entre dor e atenção

David Livingstone, o missionário escocês de “Dr. Livingstone, eu supo­nho”, certa vez foi atacado por um leão. A lembrança do incidente o perseguiu durante anos. Ele esteve muito perto da morte. Relembrando, uns vinte anos depois, Livingstone surpreendeu-se com uma coisa estra­nha. No que devia ter sido um momento de completo terror, sentiu um curioso alheamento. Ouvi um grito. Sobressaltado, voltei-me para o lado e vi o leão no ato de saltar para mim... Ele atingiu meu ombro e o impacto nos derrubou. Rosnando horrivelmente perto do meu ouvido, ele me sacudiu como um terrier sacode um rato. O choque produziu um estupor semelhante talvez ao que sente um camundongo depois da primeira sacudidela do gato. Provocou uma espécie de adormecimento onde não havia sensação de dor nem de terror, embora [eu estivesse] perfeitamente consciente do que estava acontecendo. Era como a sensação descrita por um paciente semi-anestesiado, que vê a operação mas não sente o bisturi.

Por que somos capazes de responder à dor amortecendo seus efei­tos? O encontro do doutor Livingstone com o leão nos oferece um even­to exemplar para considerar essa questão e um ponto de partida seminal para explorar a natureza da nossa reação à dor e o que sua dinâmica pode significar para o resto da vida mental.

Minha premissa é que a conformação básica do cérebro oferece um protótipo de como lidamos com todo o tipo de dor, incluindo sofrimento psicológico e ansiedades sociais. Esses mecanismos neurais da dor representam padrões que operam também na nossa vida social e psicoló­gica — pelo menos esse é o nosso argumento.

Consideremos a dor. Embora não comumente considerada desse modo, a dor é um sentido, como ver ou ouvir. Tem conjuntos próprios de nervos e circuito nervoso (o equilíbrio, sob esse aspecto, é outro sen­tido negligenciado como tal). Assim como acontece com os outros sen­tidos, a experiência psicológica da dor depende de muito mais do que a simples força dos sinais nervosos: medo do motor do dentista e a alegria do parto, ambos alteram a dor, em direções completamente opostas.

O cérebro pode determinar como a dor é percebida. Nossa visão da plasticidade neural da dor baseia-se na evidência descoberta nos últimos anos, especialmente em experiências com animais. Durante décadas, os pesquisadores relutavam em aceitar a relevância, para os humanos, dos resultados baseados em animais de laboratório. Acreditava-se que os sistemas de dor dos animais eram extremamente simples, ao passo que o dos humanos era complexo, entrelaçado com os centros cerebrais superiores e exclusivamente humanos. Contudo, os veterinários há muito tempo sabiam que passar a mão na cabeça de um animal facilita a localização de um ferimento — os animais tinham também uma psicologia da dor.

A análise mais detalhada das áreas da dor nos humanos e animais revelou que o sistema se formou tão cedo na cadeia da evolução que animais primitivos como lesmas e moluscos compartilham com os humanos o desenho básico. Essa descoberta significava que experiên­cias com animais podiam nos permitir uma melhor compreensão da res­posta dos seres humanos à dor. O resultado foi uma intensificação da pesquisa da neurologia da dor nas últimas décadas.

Embora o estímulo direto dos nervos em várias partes do sistema de dor produza dor, o estímulo de outras partes produz efeito completa­mente oposto, alivia a dor. O efeito é tão forte que o estímulo de um determinado local do cérebro de um rato permite que o mesmo perma­neça calmo durante uma cirurgia gástrica sem anestésico. A analgesia, o alívio da dor, é uma propriedade do sistema, tanto quanto a percepção da dor.

Os farmacologistas há muito tempo supunham a existência de um neurotransmissor com a capacidade de aliviar a dor. Porém, só no fim da década de 70, Solomon Snyder, no Johns Hopkins (bem como outros pesquisadores do cérebro, trabalhando independentemente), demonstrou que a área do cérebro sobre a qual a morfina age tem células com receptores especificamente formados para se adaptar às moléculas dos opia­tos, como uma fechadura se adapta à chave.

Para que serviam esses locais de ação? Um pesquisador diz: “Parecia pouco provável que receptores tão específicos tivessem evoluí­do na natureza, fortuitamente, somente para interagir com alcalóides do ópio da papoula.”

A subseqüente descoberta das endorfinas, um grupo de neurotransmissores que atuam no cérebro como opiatos, resolveu essa questão. Os caminhos pelos quais a morfina podia provocar analgesia são exatamen­te o local de ação das endorfinas. As endorfinas, que foram chamadas de “morfina do cérebro”, constituem o bálsamo natural contra a dor.

As endorfinas fazem parte de uma classe maior de compostos quí­micos do cérebro chamados “opióides”. Os efeitos dos opiatos, como morfina e heroína, são devidos ao fato da sua estrutura molecular imitar a dos opióides do cérebro. A endorfina, como as drogas que a imitam, também produz uma euforia, a sensação de “embriaguez” e bem-estar procurada pelos que usam opiatos.

A descoberta das endorfinas levou a uma intensificação das pes­quisas para determinar as condições que detonam a liberação desses compostos químicos que aliviam a dor. A princípio foram experimenta­dos vários estressores físicos. Milhares de ratos de laboratório tiveram as caudas queimadas ou levaram choques elétricos nos pés, para induzir a formação de endorfinas. Centenas de seres humanos mergulharam as mãos em água gelada.

Então foi feita uma nova descoberta. O estresse mental, sem mais nada, pode agir como um gatilho para as endorfinas. Mais exatamente, a apreensão dos voluntários à espera do choque, durante um estudo da dor, provocou a liberação de endorfinas. Portanto, isso acontece também com outros tipos de estresse psicológico. Por exemplo, estudantes, du­rante os exames finais, apresentaram altos níveis de endorfina.

É lógico supor que o puro estresse psicológico provoque no cére­bro a mesma reação que uma dor biológica. Na natureza, a dor é envia­da num envelope de estresse. A ameaça da dor é a essência do estresse. O animal que foge de um predador pressente o perigo muito antes de sentir dor, se chegar a sentir. O objetivo principal da evolução, aparente­mente, é que a resposta à dor seja parte de um conjunto total de reação ao perigo.

Esse conjunto como um todo é o que Hans Selye, o pioneiro da pesquisa sobre estresse, chamou de “resposta do estresse”, ou “síndrome geral de adaptação”. A palavra estresse, embora hoje de uso comum, com várias conotações imprecisas, para Selye tem um significado muito preciso. Ele descreveu uma série de mudanças neurofisiológicas às quais o corpo é submetido, em resposta ao dano físico, à ameaça de dano ou experiências relativamente penosas. Selye acredita que a res­posta ao estresse seja uma reação universal do corpo a ameaças e peri­gos de todo tipo, desde queimaduras e bactérias a ursos e más notícias.

Em resumo, quando uma pessoa percebe um evento como estres­sor, o cérebro envia um sinal ao hipotálamo para secretar uma substân­cia chamada CRF, ou “fator de liberação cortical”. O CRF passa através de um canal específico para a glândula pituitária, onde detona a libera­ção do ACTH (hormônio adrenocorticotrófico) e opióides, especialmen­te as endorfinas. Provavelmente, nas primeiras fases da evolução, esse alarme do cérebro disparava quando um tigre dente-de-sabre aparecia. Hoje, um encontro com os contadores é suficiente.

Resumindo, seja de origem física ou mental, a dor é registrada no cérebro por meio de um sistema que pode amortecer seus sinais. No desenho do cérebro, o alívio da dor é construído na sua percepção. Esta é uma pista para o torpor físico e mental de Livingstone quando foi ata­cado pelo leão — uma pista à qual retornaremos. Porém, há mais nessa história. Consideremos o papel da atenção em tudo isso.  

O Elo Dor-Atenção

Os clínicos consideram padrões de linguagem como esse um indicador de esquizofrenia.

Esses padrões coloridos de linguagem não são intencionais, nenhum esforço para fazer poesia. A linguagem esquizofrênica é sinto­ma de um problema básico, o distúrbio do déficit de atenção. Os esqui­zofrênicos se distraem facilmente — com ruídos, movimentos, idéias. O que é mais significativo para os padrões da sua linguagem é o fato de serem distraídos pelos próprios pensamentos e associações mentais.

A atenção focalizada é a que pode desligar ou ignorar as distra­ções, ou pelo menos emudecê-las. Porém, para o esquizofrênico, a dis­tração invade a zona focal da percepção com a mesma força da linha primária de pensamento. Com isso está sabotando o esforço necessário para construir uma frase.

A construção de uma frase é uma tarefa complexa da atenção, que parece simples unicamente por ter se tornado automática. À medida que uma linha de pensamento se transforma em algo com sentido, uma cadeia de palavras e associações surge na mente. A palavra “ação”, por exemplo, pode levar, por associação, a títulos da bolsa, Bolsa de Valo­res, dividendos, ou a atividade, empreendimento, e assim por diante.

Em geral, a mente escolhe entre essas associações apenas aquelas que completam o pensamento que queremos expressar. No caso do esquizofrênico, porém, a incapacidade para inibir pensamentos irrele­vantes faz com que as associações entrem ao acaso na frase que ele cria. Essas falhas significam um colapso na capacidade de atenção.

O colapso da atenção na esquizofrenia tem sido reconhecido há pelo menos um século. Porém, só recentemente esse déficit foi ligado a outra estranha característica dos esquizofrênicos: eles têm uma tolerân­cia à dor maior do que a normal.

Uma série de experiências realizadas pelo psiquiatra Monte Buchsbaum e um grupo de pesquisadores, no Instituto de Saúde Mental dos Estados Unidos, concluiu que, tanto o déficit de atenção quanto a alta tolerância à dor são devidos a uma anormalidade no sistema da endorfina.

Várias linhas de evidências apontam para uma anormalidade da endorfina na esquizofrenia. Um estudo, por exemplo, comparou um gru­po de 17 esquizofrênicos hospitalizados com um grupo normal, com as mesmas idades e sexo. Os dois grupos foram submetidos aos mesmos processos para medir sua reação à dor. Os pesquisadores aplicaram uma série cuidadosamente controlada de choques elétricos fracos num deter­minado ponto do braço de cada indivíduo. Os choques variavam de in­tensidade desde uma picada quase mínima até os níveis em que a maio­ria das pessoas sente uma dor aguda.

Os esquizofrênicos demonstraram menor sensibilidade à dor do que os indivíduos do grupo-controle. Esse fato isolado sugere que os esquizofrênicos também têm níveis mais altos de endorfinas.

A equipe de Buchsbaum foi mais adiante. Administraram aos es­quizofrênicos doses de naltrexona, que bloqueia a atividade das endorfi­nas no cérebro. Quando as doses de naltrexona provocam a reversão de qualquer comportamento específico, é um bom sinal de que o comporta­mento é devido à ação das endorfinas no cérebro. Quando os esquizofrê­nicos — todos classificados como insensíveis à dor — tomaram a dose de naltrexona, sua sensibilidade à dor triplicou de intensidade. O resul­tado indica um aumento dos níveis de endorfina como a causa da insen­sibilidade à dor nos esquizofrênicos.

A naltrexona tem outro efeito interessante nos esquizofrênicos. Melhora a capacidade de prestar atenção, chegando até mesmo a norma­lizá-la. A equipe de Buchsbaum seguiu essa pista, agora por um novo caminho. Comparou a capacidade de atenção dos dois grupos. Os esqui­zofrênicos apresentaram baixos níveis de atenção — até a administração da naltrexona. Porém, a maior surpresa foi quando os pesquisadores administraram naltrexona aos indivíduos do grupo normal. Para eles tam­bém, o bloqueador da endorfina melhorou significativamente a capacida­de de atenção. Aparentemente as endorfinas prejudicam a atenção.*

A interação dor-atenção envolve outro neurotransmissor, o ACTH. Há uma curiosa complementaridade entre endorfinas e ACTH, ambos li­berados no começo da resposta ao estresse. As endorfinas aliviam a dor, permitindo assim que ela seja ignorada no momento. Diminuem tam­bém a atenção, um efeito que facilita mais ainda a negação à urgência da dor. O ACTH, porém, tem efeito oposto.

A equipe de Buchsbaum administrou ACTH a pacientes do teste de reação a sons e luzes. O ACTH melhorou a atenção, exatamente como os bloqueadores de endorfinas num estudo anterior. Outros pes­quisadores, faz notar Buchsbaum, descobriram que, em ratos, o ACTH aumenta a sensibilidade à dor.

Portanto, o ACTH de certa forma é regulado para amortecer o efei­to das endorfinas. Aparentemente, ACTH e endorfinas têm efeitos opos­tos. O ACTH aumenta a atenção e sensibiliza o sistema nervoso para a dor, ao passo que as endorfinas fazem justamente o contrário.

Endorfinas e ACTH são originários da mesma molécula principal — são, literalmente, partes do mesmo conjunto neuroquímico para enfrentar o perigo. A interação ACTH e endorfina é orquestrada, em parte, pelo cálculo exato do tempo. Durante a resposta ao estresse, esses dois compostos químicos do cérebro são ativados pela pituitária. Porém, o  ACTH entra no corpo com maior rapidez. Nos seres humanos, seus efeitos podem ser verificados nos primeiros trinta segundos de um alar­me de estresse. As endorfinas são mais lentas. Seu efeito só aparece depois de mais ou menos dois minutos. A primeira resposta ao alarme nos alerta para o perigo, a segunda nos permite ignorar a dor.

Tanto o ACTH quanto as endorfinas percorrem o cérebro durante a resposta do estresse. Mas a proporção relativa de cada um vai determinar, em grande parte, o grau da nossa atenção e da nossa sensibilidade à dor. Esses dois elementos de experiência — o amortecimento da dor e a diminuição da atenção — parecem ter um objetivo comum. Diminuir a aten­ção é um meio de amortecer a dor. O fato de esses dois sistemas neuroquímicos serem ligados é uma prova da elegância do desenho do cérebro.

A separação conceitual entre percepção da dor e atenção pode ser mais artificial do que pensamos. O cérebro não precisa necessariamente analisar as funções mentais, como nós fazemos na experiência. Buchsbaum chama atenção para o fato de o estudo científico da dor e da atenção ter sido feito em separado, em virtude das disciplinas diferentes que os estudam. Essas descobertas recentes sobre a ligação íntima entre atenção e dor, segundo ele, “indicam que a separação é artificial, uma vez que os mesmos neurotransmissores, estruturas anatômicas e siste­mas de processamento de informação” podem modular tanto a dor quanto a atenção.

O sistema das endorfinas, então, é ativado para reduzir a atenção enquanto alivia a dor. O alívio da dor e a atenção seletiva compartilham os mesmos caminhos no cérebro, embora seu relacionamento seja de mútua exclusão. Quando as endorfinas entram em atividade, a dor dimi­nui e a atenção é obscurecida. O aumento da atenção que acompanha a atividade do ACTH aumenta a sensibilidade à dor.

Esse processo está permanentemente fixado no cérebro. As redes neurais que promovem esse relacionamento entre a dor e a atenção fo­ram elaboradas no decorrer de milhões de anos de evolução. Considere­mos outra vez a "sensação de sonho” sentida por Livingstone nas garras do leão. Poderia oferecer uma pista para a base evolutiva da curiosa conexão entre dor e atenção.

Por que a atenção obscurecida alivia a dor ?

Sempre um missionário, Livingstone imaginou se seu “desligamento” na boca do leão podia fazer parte de um plano divino. Deve haver, pen­sou ele, algum objetivo mais alto, que chamou de “estado peculiar”. Essa condição, pensou Livingstone, “provavelmente é produzida em todos os animais mortos por carnívoros, e nesse caso, é uma dádiva misericordiosa do nosso criador para aliviar a dor da morte”.

Embora haja um sentimentalismo atraente na proposta de Livings­tone, uma interpretação diferente parece mais interessante. A evolução favorece reações que permitem ao animal sobreviver e procriar. Um ge­ne encarregado de produzir uma morte em paz teria pouca chance de ser passado adiante por aqueles para os quais funciona melhor.

A dor geralmente provoca reações que ajudam a recuperação e a cura — recolhimento, descanso, maior lentidão do processo metabólico e diminuição da atividade. Essa fase de recuperação, porém, tem valor de sobrevivência nulo se a pessoa está para ser devorada, se precisa de­fender um filho ou se precisa correr. Nesses casos é essencial um meio para ignorar a urgência de atender a um ferimento doloroso. As endorfi­nas permitem justamente isso.

A resposta do amortecimento da dor a uma emergência grave — o ataque de um predador sendo o caso mais relevante — é um objetivo muito mais perfeito para a sobrevivência do que para uma morte calma e resignada. O completo terror é paralisante. Mas a ameaça de um pre­dador exige ação, uma resposta à altura do desafio. O que melhor do que amortecer a dor e o terror do momento, ao mesmo tempo induzindo a calma? Isso permite uma resposta salvadora, baseada na avaliação da situação menos obscurecida pelo medo e pelo pânico. Esse é precisa­mente o estado descrito por Livingstone.

O estímulo de certas partes da área das endorfinas traz também a idéia de manobra de agressão e de defesa, pelo menos em animais de laboratório. Por exemplo, depois de uma batalha por domínio de território, os ratos demonstram uma acentuada analgesia após a luta, indican­do altos níveis de endorfina. Isso sugere que o sistema de amortecimen­to da dor está intimamente ligado aos sistemas designados para enfren­tar o perigo e a ameaça. Parece razoável — embora sem dúvida especu­lativo — supor que o sistema de amortecimento da dor evoluiu como parte de um conjunto que permite ao cérebro se situar à altura do desa­fio de uma ameaça física.

Portanto, esta é a alternativa à teoria de Livingstone. Aptidão para a sobrevivência existe nos membros de uma espécie que, quando os eventos exigem, são mais capazes de ignorar a dor, enquanto atendem à ameaça do momento. O alto valor de sobrevivência do amortecimento da dor explicaria por que ele é encontrado nas áreas primitivas do cére­bro que os humanos compartilham com as espécies mais antigas. Na verdade, receptores de opióides foram encontrados em todas as espécies estudadas, incluindo aquelas com sistemas nervosos tão primitivos quanto os das sanguessugas.

Outra linha de pesquisa apóia a idéia de que a resposta de endorfi­na é adaptada para enfrentar emergências, não para a recuperação poste­rior. Uma pesquisa realizada na Universidade da Califórnia, em Los An­geles (UCLA), revelou que choques inevitáveis nos pés — mas não os evitáveis — aumentam os níveis de endorfina nos ratos. Choques que podem ser evitados provocam a liberação de um não-opióide. Esses choques constituem uma ameaça menor do que os inevitáveis.

Essa diferença exata nas reações aos tipos de estresse, observam os pesquisadores, é verificada também nos tumores. Quando os ratos de laboratório com tumores cancerosos levam um choque inevitável, aumenta a velocidade de crescimento do tumor. Quando os ratos podem escapar do choque, essa velocidade não se altera. As endorfinas podem ser as responsáveis. Quando os ratos com tumores recebem antagonistas de opióides, como a naltrexona, o crescimento do tumor fica mais lento e eles vivem mais tempo. Esse padrão sugere que os opióides, embora amorteçam a dor, interferem no processo de cura. A implicação mais ampla é que o sistema de endorfina de supressão da dor, embora possa ter valor vital nos casos de emergência, não é a resposta ideal para a fase de recuperação.

O sistema que amortece a dor precisa discriminar de alguma forma entre essas duas fases, quando vale a pena aliviar a dor ou o contrário. Alguns soldados feridos, por exemplo, relataram ter experimentado um estado semelhante ao de Livingstone. Porém, para a maioria deles, a dor continuou como uma agonia. O sistema de amortecimento da dor atua de forma seletiva.

Embora haja diretrizes lógicas para quando a dor deva ser ignorada ou não, o sistema de endorfina parece seguir os próprios imperativos. Exatamente quais são é ainda um mistério. Não sabemos como um me­canismo tão fisiologicamente primitivo como esse distingue entre o leão e os pagamentos da hipoteca.

Porém, é provável que, a longo prazo, seja vantajoso para uma es­pécie ter a capacidade de suplantar a dor em casos especiais. Há valor para a sobrevivência tanto na percepção da dor quanto no seu entorpeci­mento. Mas por que o alívio da dor precisa diminuir a atenção? Essa resposta a uma emergência pareceria, à primeira vista, de pouco valor para a sobrevivência. Que papel positivo a diminuição da atenção pode representar? Só podemos especular, é claro. O leão de Livingstone suge­re uma solução.

Um ferimento grave é uma questão de vida ou morte. Deveria merecer toda a atenção, ser o foco primário para garantir seu tratamento. A sobrevivência deveria determinar uma atenção reflexa e involuntária à dor. Na verdade, o sistema da dor é feito de modo a dirigir a atenção à fonte da dor — na maioria dos casos.

Entretanto, no momento em que um perigo maior o ameaça, um animal cuja atenção se volta compulsivamente para o ferimento em vez de para o leão praticamente já está morto. A atenção deve se movimen­tar num arco mais amplo. Para anular a atenção reflexa voltada para a dor, muitas vezes é necessário afastar a percepção. A endorfina é o agente químico capaz de enfraquecer a atenção desse modo. Embora a atenção sofra no processo, o resultado evolutivo — a sobrevivência — demonstra que a troca é vantajosa. O sistema da dor é um acessório do nosso legado neurológico. Sua antiguidade atesta seu sucesso como estratégia para a sobrevivência.

Minha premissa é que a troca entre dor-atenção indica um padrão que encontrou seu lugar próprio nas áreas psicológica e social. Para o homem moderno, a dor física é um evento relativamente raro. Muito mais comum é a dor psicológica — afronta à auto-estima, apreensão, perda. Enfrentamos essas dores com um sistema de alarme regulado por milhões de anos de ameaças primitivas.

A tática do cérebro para manejar a dor física, amortecendo a per­cepção, oferece-se como modelo: para manejar também os ferimentos psicológicos e sociais. Se esses mecanismos do cérebro são a verdadeira raiz do amortecimento que age quando somos ameaçados por dores mentais, ou simples análogos  para ela, é um assunto questionável. Meu objetivo neste livro é mais modesto: pretendo mostrar um padrão de conexão. A percepção da dor inclui a capacidade para amortecer a dor, passando-a para outro canal. Esse padrão, como veremos, se repete mui­tas e muitas vezes em todas as principais áreas do comportamento humano.

Psicologia - Neuropsicologia
Temas gerais - , 
2/9/2021 3:10:45 PM | Por Catherine Salles
As subversivas e sedutoras amazonas

As amazonas pertencem ao domínio da transgressão. Essas guerreiras mitológicas simplesmente desprezavam os valores femininos vigentes na Antiguidade. Por isso, os gregos as viam como um desafio a qualquer "lei natural" ou social. Mais ainda, como um mal encarnado e ambíguo, que causava repulsa e, ao mesmo tempo, seduzia os homens. De fato, elas tinham em si uma centelha revolucionária, capaz de virar pelo avesso todas as certezas da sociedade grega. No mundo real, a mulher era sempre um ser menor, e sua função essencial era parir os futuros cidadãos da Grécia. O homem e a mulher eram complementares, mas sua natureza, de acordo com a vontade dos deuses, era essencialmente diferente, daí serem considerados unicamente viris o trabalho no campo, a caça, o treino desportivo e a guerra. Por extensão, as gregas também eram alijadas do poder político.

As virtudes femininas eram a obediência e o pudor. Um texto de Aristóteles evoca bem o modo como os gregos justificavam pela ordem natural as relações entre sexos e define por antítese o que seria impossível para a mulher:

"A natureza criou um sexo forte e um sexo frágil. O primeiro, em razão da sua virilidade, está mais apto a afastar os adversários, o segundo está mais apto a realizar-se sob a guarda masculina, devido a uma tendência natural para o medo. O primeiro traz para o domicílio os bens do exterior, o segundo vela sobre o que está em casa".

O texto prossegue da seguinte forma:

"Na divisão do trabalho, o primeiro, menos afeito ao descanso, encontra prazer no movimento. O segundo está mais apto a levar uma vida sedentária e não tem forças suficientes para a vida ao ar livre. Enfim, se os dois sexos participam na geração das crianças, o bem destas últimas irá exigir de cada um dos pais um papel particular: a mulher terá a função de alimentá-las, o homem, a de educá-las".

A amazona é aquela que recusa essa distribuição de competências, pois pura e simplesmente eliminou os homens de sua estrutura política e social. Na Ilíada, essas guerreiras são chamadas por Homero de antianeira (anti-homem). O prefixo grego anti, nesse caso, pode ter o sentido de "contra" o homem, mas também de "igual" a ele.

Representadas sempre como guerreiras e caçadoras, desde pequenas montavam cavalos (com as pernas abertas) e aprendiam a manejar o arco, o dardo, a espada e o machado de combate. Para atirar melhor, elas cauterizavam (ou cortavam) o seio direito, o que, para Hipócrates, "desloca toda a força e desenvolvimento para o ombro e braço".

O nome das fabulosas criaturas vem dessa prática: a-mazos significa "sem seio". Por alguma razão, porém, a iconografia disponível costuma mostrá-las com os dois seios intactos. Além do significado prático, a mutilação do seio tem um aspecto simbólico: elas permaneciam mulheres pelo lado esquerdo e tornavam-se homens pelo direito.

As guerreiras veneravam Ártemis, que, como elas, habitava os espaços selvagens, recusava a sociedade dos homens e dedicava seus dias à caça. Os relatos antigos sobre esses lendários seres informam que sua sociedade era dividida geralmente em duas tribos, cada qual com sua rainha. Enquanto uma estava ocupada com a guerra, a outra permanecia sedentária, para proteger seu povo. Sua hipotética "cidade" chamava-se Themiscrya, situada além do mar Negro, às margens do rio Termodonte.

As amazonas podiam fazer longínquas incursões. São atribuídas a elas invasões na Ásia Menor e na Grécia. Em uma delas, Myrina, à frente de 20 mil guerreiras a cavalo e 3 mil a pé, declarou guerra aos habitantes de Atlântida, tomou conta da cidade, massacrou os homens prendeu mulheres e crianças. Elas eram temidas por andarem armadas e em bandos, mas também porque, não aceitando a presença de homens em seu meio, acasalavam como os animais, desprezando as regras do casamento entre humanos. Uma vez por ano, se entregavam aos povos vizinhos e obrigavam os homens a ter relações com elas. Tudo acontecia aleatoriamente, na escuridão, de modo que não pudessem reconhecer seus parceiros. Eram elas que violentavam e "usavam" os homens.

Quando nasciam as crianças, conservavam as meninas e matavam os meninos. Recusavam-se a amamentar as filhas, com medo de deformar os seios, e criavam-nas com leite de égua.

Não conheciam a navegação nem a cultura dos cereais - daí vem a outra etimologia proposta para seu nome, a-maza também quer dizer "sem cevada". Alimentavam-se de carne crua.

Para os gregos, as amazonas não pertenciam apenas ao domínio da lenda. Muitos escritores procuraram emprestar fundamentos históricos às aventuras das guerreiras anti-homens.

Heródoto consagrou-lhes inúmeros capítulos da obra Investigações. Segundo ele, quando os gregos conduzidos por Hércules voltaram para tomar o cinturão de Hipólita, trouxeram amazonas como prisioneiras. Elas reagiram em dado momento, mataram-nos e jogaram os corpos no mar.

Ignorando tudo o que dizia respeito a navios e navegação, as mulheres deixaram então que a embarcação seguisse à deriva até encalhar no território dos citas, que viram no episódio uma ameaça de invasão. Partiram para o ataque, até perceber que os "inimigos" eram mulheres. Decidiram, então, "domesticá-las", para gerar filhos corajosos. As amazonas aceitaram se unir aos jovens citas, mas logo tomaram as rédeas da coabitação: eles foram obrigados a deixar seu país e suas famílias para acompanhá-las até suas terras.

As amazonas foram reencontradas em textos históricos posteriores. Por três vezes, entre 331 e 324 a.e.c., os exércitos de Alexandre, o Grande, encontraram as guerreiras. Sua rainha, Talestris, foi ao encontro do rei macedônio e passou 13 noites com ele.

Em 63 a.e.c., o general romano Pompeu, perseguindo o rei Mitridates, chegou ao pé das montanhas do Cáucaso, onde enfrentou os albaneses. Após o combate, encontrou sobre o campo de batalha escudos leves e sandálias femininas. De acordo com algumas fontes, entre os prisioneiros de guerra encontravam-se inúmeras mulheres que, por falta de termo melhor, os romanos chamaram de amazonas.

Nestes dois últimos exemplos, há uma grande distância entre as mulheres-soldados e as lendárias amazonas. Mas, penetrando em terras distantes, onde mal conheciam os povos e costumes, os ocidentais enfrentaram exércitos locais em que as mulheres combatiam como os homens - por falta de outra referência, gregos e romanos viram nelas a encarnação das guerreiras mitológicas.

Na literatura, as amazonas foram protagonistas de algumas histórias imortais. Em uma delas, Teseu, tendo acompanhado Héracles (ou Hércules) em sua expedição até o reino das guerreiras, foi seduzido pela beleza de uma delas, Antíope. Sob o pretexto de lhe mostrar seu navio, ele a levou a bordo e zarpou imediatamente rumo a Atenas.

Furiosas com o rapto, as amazonas atacaram a cidade tempos depois. Teseu conseguiu convencer seus compatriotas a enfrentar o temível exército feminino, e começou uma batalha aos pés da colina de Pnyx. No começo, elas levaram vantagem e perseguiram os adversários fora dos muros de Atenas. Depois os homens adquiriram vantagem e venceram a guerra. Antíope morreu atravessada por um dardo durante o conflito. Ela tivera tempo de dar a Teseu um filho, Hipólito, que herdou da mãe o gosto pela caça e era muito casto. - C. S.

História - Civilização Grega
Cosmogonia - , 
2/9/2021 2:35:09 PM | Por Odsson Ferreira
Quando no Alto - Cosmogonia Babilônica

Quando no alto, o Céu não tinha ainda um nome, e embaixo só existia o Apsu, Tiamat (Oceano) e Mummu (A reunião das águas doces com as águas salgadas), e o Destino ainda não estava estabelecido, foi então que o Apsu e sua mulher, Tiamat, criaram os primeiros deuses. Foram: Lakhmu, e Lakhamu, Anchar e Kicar. Anchar procriou Anu, igual a si mesmo, e Anu, à sua própria imagem, criou Nudimmud (Ea, Enki). Depois nasceram todos os outros, numerosíssimos, que, cantando e fazendo alarde por toda a Terra, não deixavam dormir nem pensar ao Apsu e Tiamat.

Apsu, não tolerando mais, decide aniquilar esta enxame de vagabundos. Tiamat se opõe, mas Apsu, também pelos conselhos malignos de Mummu, fica inamovível. A destruição é decidida, as vítimas divinas, devidamente informadas, choram aos soluços; mas o sábia Ea, que tudo conhece, detém a ameaça, pondo em ação um esconjuro mortal com o qual consegue matar Apsu no sono. Depois, se apodera do pérfido Mummu, amara-o, tira-lhe a coroa, castra-o e lhe arrebenta o cérebro.

O vitorioso Nudimmud-Ea fixa os lugares sagrados do Oceano e ali estabelece sua residência. Foi então que no Santuário dos Destinos, no meio do Oceano, a mulher de Ea põe no mundo o mais sábio dos deuses, Marduk. De belíssimas formas, foi nutrido com o leite divino, enquanto que uma ama-de-leite lhe dava "o leite da terribilidade". Seu pai lhe deu dupla virilidade, dupla visão e dupla audição. Gigantesco e valoroso, de sua boca, quando estava irado, saíam chamas e seu esplendor era como o de dez deuses.

Enquanto isso, Tiamat, desesperada e furibunda pelo assassinato do marido, jura vingança e cria os mais horríveis monstros para fazer com eles um exército contra os deuses: a víbora, a serpente furiosa, o grande leão, o cão raivoso, o homem-escorpião, e outros iradíssimos animais. Depois toma um destes, um tal de Quingu, como marido; nomeia-o comandante-em-chefe, confere-lhe poderes divinos e ata-lhe ao peito as Tábuas do Destino. O exército está pronto, o ataque é iminente. Parte a declaração de guerra e Ea, ao recebê-la, desmaia. Recuperado, vai ao seu pai Anchar, que empalidece ele também, e envia Anu a Tiamat para procurar um acordo. Mas quando Anu percebe ao longe de que consiste o exército inimigo, aterrado, foge.

Reúne-se a toda pressa a assembléia dos deuses, e o voto é unânime: ninguém quer enfrentar Tiamat. Então Anchar, autoritariamente, designa para o feito descomunal o corajoso Marduk e manda chamá-lo.

Marduk chega, declara-se pronto para qualquer empresa, mas obviamente quer saber contra quem deve medir-se. Com a devida cautela, Anchar dá a entender que se trata nada mais, nada menos de Tiamat e seu horrível séquito de monstros. Marduk sem pestanejar declara-se pronto para partir. Grande é a alegria dos deuses, aos quais porém Marduk, pela vitória, impõe condições precisas: que seu destino seja mudado, isto é, que lhe seja designado um lugar proeminente na hierarquia divina. Para tanto, torna-se necessária nova assembléia, que, como de hábito, se transmuta num esplêndido banquete, ao fim do qual a resposta é a seguinte:

"Foste honrado entre os grandes deuses, o teu Destino não tem igual, o teu comando é igual ao de Anu (...). Tu, Marduk, és o nosso vingador, concedemos-te a realeza do poder sobre o universo das cosias. Senta-te na Assembléia, a tua palavra tornou-se eminente. Que as tuas armas aniquilem os inimigos!"

Marduk não perde tempo; arma-se de cimitarra, arcos e flecha, e uma grande rede; ata o raio ao seu lado, e como aliados escolhe os sete ventos impetuosos, a tempestade e o furação. Brande o ciclone e, munido da "erva do veneno", parte contra o inimigo.

Quando vislumbra a boca escancarada de Quingu, a coragem lhe desfalece por um instante, o que lança  os deuses na consternação. Tiamat, sem se dignar a observar Marduk, urra contra ele as mais atrozes maldições. O breve temor é substituído pela ira: o herói enfurecido a insulta e a desafia a um duelo singular. Igualmente fora de si pela raiva, a monstruosa Tiamat se lança contra o inimigo com as fauces abertas, prontar a abocanhá-lo. Marduk lança dentro dela o vento mau que a impede de fechar a boca, e depois sua mortífera flecha que lhe trespassa o coração.

Seus horrendos acólitos tentam a fuga, mas o vencedor os apanha todos com a rede, despedaça sua armas, os faz prisioneiros e pisa sobre suas cabeças. Depois, voltando à carcaça de Tiamat, corta-a em dois como uma ostra, e com a metade superior forja o Céu, fixando-o com ferrolhos e pondo-lhe guardiães, para que suas águas não fujam, e com a outra metade, cria a Terra. No Céu, coloca a morada dos deuses, as estrelas, os signos do zodíaco e a Lua, "confiandolhe a noite".

De Quingu, tira as Tábuas do Destino e pendura-as ao pescoço, tornando-se assim o dominador do universo. Depois, o mata; com o seu sangue, conforma a argila e cria Lilu, o homem, e depois os animais, as plantas, as várias partes do mundo. Ao homem designa o serviço dos deuses, e estes foram divididos por Marduk em dois grandes grupos: os iguigui, deuses do Céu, e os Annunaki, deuses da Terra.

Ao fim, todos os deuses exprimem sua gratidão erigindo para Marduk um grande santuário, o Entemenanki, a Torre de Babel. E no dia da inauguração, oferecem um suntuoso banquete e cantam em louvor de seu salvador.

História - Civilização Babilônica
Temas gerais - , 
2/9/2021 2:12:22 PM | Por Robert Graves
A origem líbia de Atena

Conforme os pelasgos, a deusa Atena nasceu às margens do lago Tritônis, na Líbia, onde foi encontrada e criada pelas três ninfas da Líbia, que se vestem com pele de cabra. Em sua infância, ela matou acidentalmente sua amiguinha Palas, enquanto brincavam de lutar com lança e escudo, e, como sinal de sua tristeza, colocou o nome de Palas antes do seu. Chegando à Grécia após passar por Creta, ela viveu primeiramente na cidade de Atenas, às margens do rio Tritão, na Beócia.

Platão identificou Atena, padroeira de Atenas, com a deusa líbia Neith, que pertencia a uma época em que a paternidade não era reconhecida. Neith tinha um templo em Saïs, onde Sólon foi bem tratado só porque era ateniense. As sacerdotisas-virgens de Neith entregavam-se a cada ano a um combate armado, que valia, ao que tudo indica, a posição de sacerdotisa-superior. O relato de Apolodoro sobre a luta entre Atena e Palas é uma versão patriarcal tardia: ele diz que Atena, nascida de Zeus e criada pelo deus fluvial Tritão, matou acidentalmente sua irmã de criação Palas, filha do rio Tritão, porque Zeus interveio com sua égide no momento em que Palas estava prestes a ferir Atena, distraindo, então, sua atenção. Porém, a égide - uma bolsa mágica de pele de cabra contendo uma serpente e protegida por uma máscara gorgônea - pertencia a Atena muito antes de Zeus ter alegado ser seu pai. Aventais de pele de cabra eram a roupa habitual das meninas líbias, e Pallas significa somente "virgem" ou "jovem". Heródoto escreve:

"Os gregos tomaram emprestadas as roupas e a égide de Atena das mulheres líbias, que se vestiam exatamente da mesma maneira, exceto pelo fato de suas roupas de couro eram guarnecidas com tiras, e não com serpentes."(Heródoto IV 189)

As meninas etíopes ainda envergavam essa roupa, que é por vezes ornamentada com búzios, um símbolo jônico. Heródoto acrescenta, nessa passagem, que os gritos estridentes de triunfo olulu ololu, proferidos em homenagem a Atena (Ilíada VI. 297-301), eram de origem líbia. Tritone significa "a terceira rainha": ou seja, o membro mais velho da tríade - mãe da virgem que combateu Palas e da ninfa em que ela se transformou -, assim como Core/Perséfone, era filha de Demeter.

Cerâmicas descobertas sugerem uma imigração líbia para Creta em 4000 a.e.c. Um grande número de líbios, adoradores da deusa, refugiados do delta ocidental, parece ter chegado lá quando o Alto e Baixo Egito encontravam-se compulsoriamente unidos sob a Primeira Dinastia, em torno do ano 3000 a.e.c. A primeira Era Minóia começou logo depois, e a cultura cretense difundiu-se pela Trácia e pela Grécia Heládica primitiva.

Entre outros personagens mitológicos chamados Palas, havia o titã que se casou com as águas do rio Estige, gerando, assim, Zelo "o ardor", Crato "o Poder", Bia "a Violência" e Nike a "Vitória". Ele era talvez uma alegoria do golfinho pelópida, consagrado à deusa-Lua. Homero chama um outro Palas de "pai da Lua". Um terceiro deu origem aos cinquenta palântidas, inimigos de Teseu, que parecem ter originalmente lutado contra sacerdotisas a serviço de Atena. Um quarto Palas foi descrito como sendo o pai de Atena.

Mitologia - Mitologia Grega
Pesquisas - Pesquisas relacionadas, 
2/8/2021 8:21:37 AM | Por Gregory J. Feist, Jess Feist, Tomi-Ann Roberts
Pesquisas relacionadas à Teoria centrada na pessoa

Comparadas à teoria de Maslow, as idéias de Rogers sobre a força da consideração positiva incondicional geraram uma boa quantidade de pesquisa empírica. De fato, as próprias pesquisas de Rogers sobre as três condições ne­cessárias e suficientes para o crescimento psicológico fo­ram precursoras da psicologia positiva e ainda mais apoia­das pela pesquisa moderna (Cramer, 1994, 2002, 2003a). Além do mais, a noção de Rogers de incongruência entre o self real e o ideal e a motivação para perseguir objetivos despertaram o interesse contínuo dos pesquisadores.

Teoria da autodiscrepância

Rogers também propôs que o pilar da saúde mental era a congruência entre como, de fato, nos vemos e como idealmente gostaríamos de ser. Se essas duas autoavaliações forem congruentes, então a pessoa está relativamente adaptada e sadia. Em caso negativo, a pessoa experimenta várias formas de desconforto mental, como ansiedade, de­pressão e baixa autoestima.

Na década de 1980, E. Tory Higgins desenvolveu uma versão da teoria de Rogers que continua a ser influente em pesquisas da psicologia da personalidade e social. A versão de Higgins da teoria é denominada teoria da autodiscre­pância trata não apenas da discrepância entre real e
self ideal, mas também da discrepância entre real e o self esperado (Higgins, 1987). Uma diferença entre Rogers e Higgins é a natureza mais específica da teoria de Higgins. Propondo pelo menos duas formas distintas de discrepân­cia, ele previu resultados negativos diferentes de cada uma. Por exemplo, a discrepância real-ideal deve levar a emoções relacionadas a desânimo (p. ex., depressão, tristeza, decep­ção), enquanto a discrepância real-esperado deve ocasionar emoções relacionadas à agitação (p. ex., ansiedade, medo, ameaça). Apesar de mais específica, a teoria de Higgins possui, essencialmente, a mesma forma e os mesmos pres­supostos que a teoria de Rogers: os indivíduos com altos níveis de autodiscrepância têm maior probabilidade de ex­perimentar altos níveis de afeto negativo em suas vidas, como ansiedade e depressão.

A teoria da Higgins conquistou muita atenção empí­rica desde a metade da década de 1980. Algumas das pes­quisas recentes procuraram clarificar as condições sob as quais as autodiscrepâncias predizem a experiência emocio­nal (Phillips 8c Silvia, 2005). Por exemplo, Ann Phillips e Paul Silvia previram que a emoção negativa experimentada das discrepâncias entre real-ideal ou real-esperado seria mais extrema quando as pessoas são mais autofocadas ou autoconscientes. Estar em um estado de autofoco não só deixa a pessoa mais consciente dos traços relevantes para si, mas também aumenta a probabilidade do indivíduo [207] detectar discrepâncias e, portanto, interessar-se mais por ser congruente.

Para testar sua predição, Phillips e Silvia levaram os participantes para um laboratório e induziram a autoconsciência (self-awareness) na metade deles, fazendo-os preencherem questionários sobre autodiscrepâncias e hu­mor na frente de um espelho. A outra metade da amostra preencheu os mesmos questionários, mas sentada em uma escrivaninha normal, sem um espelho presente. Por razões óbvias, ao responder perguntas sobre si mesmo se olhan­do em um espelho, você tem maior probabilidade de estar autoconsciente. Conforme previsto, o fenômeno de expe­rimentar emoção negativa em conseqüência de autodis­crepâncias ocorreu apenas nos participantes que estavam altamente autoconscientes (i. e., aqueles que preencheram os questionários na frente do espelho).

Em outras pesquisas ainda sobre autodiscrepância, Rachel Calogero e Neill Watson (2009) examinaram se as discrepâncias percebidas dos indivíduos entre real-ideal e real-esperado prediziam uma forma peculiar de autoconsciência que eles denominaram "autoconsciência social crônica”. A autoconsciência social crônica é caracteriza­da pela atenção focada em si, quando em público, e um monitoramento vigilante do self e do corpo. As pesquisas também examinaram até que ponto homens e mulheres diferiam na discrepância real-esperado em termos de ima­gem corporal e autoconsciência. Esses estudiosos prog­nosticaram que as discrepâncias real-esperado deveriam estar mais fortemente relacionadas a essa tendência de assumir tal visão vigilante do self como um objeto social do que as discrepâncias real-ideal. Isso ocorre porque as discrepâncias real-ideal resultam em frustração por não satisfazerem as aspirações pessoalmente relevantes, en­quanto as discrepâncias real-esperado produzem agitação ou medo, devido à punição prevista pela violação das obri­gações sociais.

Se isso parece uma descrição que se enquadra mais em mulheres do que em homens, foi exatamente o que os pes­quisadores encontraram. De fato, em seu primeiro estudo, Calogero e Watson detectaram que, entre 108 estudantes de graduação, as discrepâncias real-esperado, porém não entre real-ideal, prediziam autoconsciência social crônica nas mulheres, mas não nos homens. Em um segundo estu­do de mais de 200 estudantes de graduação do sexo femi­nino, eles constataram que, controlando outras variáveis, como a importância da aparência física, a discrepância real-esperado continuou a predizer fortemente autoconsciência social crônica nas mulheres jovens. Se considerarmos a divulgação na mídia de padrões restritos e impossíveis de beleza física feminina, faz muito sentido que as meninas e as mulheres desenvolvam uma discrepância real-esperado para si mesmas e que isso resulte em um tipo de atenção vigilante a si mesmas como objetos sociais, em comparação aos homens.

Motivação e busca dos próprios objetivos

Uma área de pesquisa na qual as idéias de Rogers conti­nuam a ser influentes é a busca de objetivos. Estabelecer e perseguir objetivos é uma forma de as pessoas organi­zarem suas vidas de maneira que conduzam a resultados desejáveis e acrescentem significado às atividades diárias. Estabelecer objetivos é fácil, mas estipular as metas certas pode ser mais difícil do que parece. De acordo com Rogers, uma fonte de sofrimento psicológico é a incongruência, ou quando o self ideal da pessoa não corresponde sufi­cientemente a seu autoconceito, e essa incongruência pode ser representada nos objetivos que a pessoa escolhe perseguir. Por exemplo, uma pessoa pode perseguir o objetivo de se sair bem em biologia, sem nem mesmo gostar de biologia, ou pode nem mesmo precisar dela para seu objetivo de ser um arquiteto. Talvez os pais dessa pessoa sejam biólogos e sempre tenha sido esperado que ela fi­zesse o mesmo, embora a pessoa considere a arquitetu­ra como mais estimulante e satisfatória. Nesse exemplo, a biologia faz parte do autoconceito da pessoa, porém a arquitetura faz parte de seu self ideal. A incongruência entre os dois é uma fonte de angústia. Felizmente, Ro­gers (1951) ampliou essas idéias para propor que todos temos um processo de valorização organísmica (OVP, organismic valuing process), ou seja, um instinto natural que nos direciona para as buscas mais satisfatórias. No exemplo anterior, o OVP é representado como uma sensa­ção profunda visceral ou inexplicável de que a arquitetura, não a biologia, é o caminho certo.

Ken Sheldon e colaboradores (2003) exploraram a existência de um OVP em universitários, projetando estu­dos que pedissem aos estudantes para classificarem a im­portância de vários objetivos repetidamente ao longo do curso de muitas semanas. Cada vez que as pessoas classificarem a mesma coisa (p. ex., objetivos) ao longo do tempo, haverá uma flutuação em suas classificações. Sheldon e co­laboradores, no entanto, prognosticaram que a flutuação na importância de vários objetivos teria um padrão distin­to. Se as pessoas, de fato, possuem um OVP, como Rogers teorizou, então, ao longo do tempo, elas classificarão os objetivos que são inerentemente mais satisfatórios como mais desejáveis do que os objetivos que levam apenas a ganhos materiais. Para testar sua previsão, Sheldon e cola­boradores pediram a estudantes de graduação que classifi­cassem vários objetivos pré-selecionados (alguns dos quais eram inerentemente mais satisfatórios do que outros). Seis semanas depois, os participantes classificaram os mesmos objetivos outra vez e ainda mais uma vez seis semanas de­pois disso. Os pesquisadores detectaram que, de acordo com a previsão de que as pessoas possuem um OVP, os participantes tenderam a classificar os objetivos mais satis­fatórios com importância crescente ao longo do tempo e os objetivos materiais com importância decrescente. [208]  Mais recentemente, Ransom, Sheldon e Jacobsen (2010) exploraram o processo de OVP de Rogers no con­texto de sobrevivência ao câncer. Esses pesquisadores observaram que muitas pessoas com câncer relatam ex­perimentar um crescimento positivo em conseqüência
da doença e até mesmo dizem que o câncer teve um im­pacto mais positivo do que negativo em suas vidas. Essa tendência humana notável a encontrar significado positivo duradouro na seqüência de eventos tão estressantes foi denominada crescimento pós-traumático (CPT, do inglês
post traumatic growth,Tedeschi &Calhoun, 1996). O estudo testou a validade dos relatos de CPT. Os sobreviventes de câncer experimentam realmente um crescimento pessoal em conseqüência do processo de valorização organísmica de Rogers? Ou seus relatos de mudança positiva são ape­nas ilusões resultantes de uma comparação tendenciosa do self presente com o self passado? Os indivíduos podem enfrentar o desafio que o câncer apresenta percebendo um crescimento positivo em si mesmos onde não existem evidências objetivas disso. Oitenta e três indivíduos com câncer de mama ou próstata preencheram medidas de atri­butos pessoais positivos e objetivos pessoais de vida, an­tes e depois do tratamento com radioterapia. Os achados corroboraram fortemente a conceitualização de Rogers do OVP. Os pacientes apresentaram tanto uma mudança real quanto percebida ao longo do curso da radioterapia. Po­rém, importante para a psicologia humanista, as mudanças para uma orientação mais pessoal e genuína em direção aos objetivos prediziam CPT. Ou seja, os relatos dos pacientes de crescimento pessoal positivo não eram apenas ilusórios; eles se refletiam em uma transição muito real para a va­lorização de objetivos mais profundos e satisfatórios, em detrimento de objetivos mais materialistas durante o tra­tamento contra o câncer.

Ainda que o estudo recém-discutido sobre o papel do OVP na busca de objetivos seja um teste direto das idéias de Rogers, existe outra pesquisa moderna sobre a persona­lidade inspirada no potencial para incongruência que usa uma terminologia diferente. Por exemplo, os pesquisado­res da personalidade referem o fato de os objetivos serem motivados de forma intrínseca ou extrínseca. Objetivos intrínsecos são aqueles que uma pessoa considera satis­fatórios e gratificantes; eles fazem parte do ideal, e os indivíduos são direcionados para eles por seu OVP. A busca dos objetivos intrínsecos não precisa ser encorajada por re­compensas como dinheiro, notas ou presentes. Perseguir o objetivo é uma experiência gratificante por si só. Objetivos extrínsecos, por sua vez, são aqueles que não são experi­mentados como inerentemente gratificantes; podem estar representados no autoconceito da pessoa, mas não são, necessariamente, parte do self ideal. Os objetivos extrínsecos costumam ser motivados por fatores como dinheiro e prestígio. Um teste simples para ver se um de seus obje­tivos é intrínseco ou extrínseco é perguntar a si mesmo se perseguiria o objetivo mesmo que nunca recebesse alguma compensação material por ele. Se a resposta for afirmativa, então o objetivo será intrínseco, mas, se a resposta for ne­gativa, então o objetivo provavelmente será de motivação extrínseca.

As atividades motivadas intrinsecamente, em geral, tornam as pessoas mais felizes e mais satisfeitas. A mo­tivação intrínseca e a satisfação estão conectadas porque as atividades motivadas intrinsecamente representam o self ideal. Pesquisas recentes exploraram até que pon­to ter mais experiências autorrealizantes, em que as pes­soas podem expressar quem elas realmente são (similar ao self ideal de Rogers), está relacionado a experimentar mais motivação intrínseca (Schwartz & Waterman, 2006). Schwartz e Waterman projetaram um estudo longitudinal em que, no momento 1, os participantes listaram várias atividades que eram importantes para eles. Então, em mo­mentos posteriores, espalhados ao longo de um semestre, os pesquisadores verificaram com os participantes até que ponto o envolvimento nas atividades listadas no momento 1 levaram a sentimentos mais intensos de autorrealização (i. é., oportunidades de desenvolver os próprios potenciais) e até que ponto as atividades estimularam a motivação intrínseca. Os resultados desse estudo longitudinal indi­caram que, assim como Carl Rogers teria previsto, quanto mais as atividades em que as pessoas se engajam refletem autorrealização, maior a probabilidade de essas atividades serem interessantes, autoexpressivas e levar a uma expe­riência de “flow”. Flow é a experiência de estar totalmente imerso e engajado em uma experiência até o ponto de per­der a noção do tempo e do sentimento de self (Csíkszentmihályi, 1990).

Carl Rogers tinha claramente uma visão perspicaz da condição humana, e suas idéias continuam a ser validadas pela maior parte das pesquisas modernas. Se você se engajar em experiências que fazem parte do seu self ideal, será levado a buscas que são mais engajadas, enriquecedoras, interessantes e recompensadoras (Schwartz & Waterman, 206). Mas e se não souber quais buscas específicas você achará mais gratificantes? Conforme Sheldon e colaboradores (2003, 2010) encontraram em seus dois estudos com universitários sadios e sobreviventes de câncer, temos um sistema inato (OVP) que nos direciona para buscas mais satisfatórias, mesmo, ou talvez especialmente, quando a vida nos apresentar desafios estressantes. Tudo o que temos que fazer é ouvir nossos instintos.

Psicologia - Teoria centrada na pessoa
Geografia - , 
2/7/2021 5:10:24 PM | Por Johannes Lehmann
Anatólia, centro do poder Hitita

Com base no que os primeiros arqueólogos sabiam pelas escavações e pelas fontes escritas, procurou-se o centro do império hitita na vasta área entre o Mediterrâneo e a Mesopotâmia, ao longo do Tigre e Eufrates, ou seja, na outra vertente da grande cadeia montanhosa do Touro. Então encontrara-se, ao invés, a capital hitita atrás dessa cadeia, na zona entre o mar Negro e o Mediterrâneo, que os gregos chamaram simplesmente Anatólia, quer dizer Oriente. A Anatólia - hoje parte asiática da Turquia - tem aproximadamente duas vezes o tamanho da Itália, e é cercada de cada lado por cadeias montanhosas que protegem o território inteiro.

Na Anatólia meridional estende-se, da Lícia a oeste ao Eufrates a Leste; o Touro, que separa a região costeira mediterrânea do planalto anatólico. Com os seus montes que ultrapassam os 4.000 metros e elevam-se Íngremes sobre o mar, o Touro representa uma barreira quase intransponível que apenas poucos conseguiram penetrar. Assim, não existe praticamente nenhuma ligação entre o Mediterrâneo meridional e a Anatólia.

Mais a leste, no ponto de encontro entre a Anatólia e a Síria, a cadeia do Touro é atingível apenas onde os rios tem escavado o seu leito no passar de milênios. Uma dessas passagens é a famosa Porta de Cilícia, de apenas dez metros de largura em seu ponto mais estreito, pela qual transitou o exército de Alexandre Magno em marcha para Índia.

Ao norte, a Anatólia é separada do Mar Negro por uma outra barreira montanhosa, os Montes do Ponto, de 1.100 quilômetros de comprimento por 150 quilômetros de largura, enquanto a oeste, é separado Egeu apenas um umbral montanhoso menor.

A leste, os Montes do Ponto e o Touro formam, encontrando-se, um planalto em ascensão progressiva, que atinge, em largos trechos, alturas superiores a 4.000 metros, e fica parcialmente coberto de neve ou gelado durante todo o ano. Dos trinta e um picos que ali se encontram nas proximidades do lago de Van, apenas seis estão abaixo dos 3.000 metros. Trata-se, em parte, de vulcões extintos. O mais imponentes desses cones vulcânicos é o Agri Dagi (cheio de fendas) com os seus 5.167 metros, conhecido na bíblia com o nome de Ararat.

Nessa gigantesca bacia circundada por montes encontra-se o planalto anatólico, que no ponto mais baixo está a 500 metros do nível do mar, mas sai em amplas planícies a mil e mais metros, e é atravessado novamente por cadeias de colinas, montes e montanhas.

Os planaltos que se encontram no meio têm nascentes e rios, mas nenhuma queda d'água, por isso nasceram uma série de lagos que, como o Van, perdem bastante água por evaporação durante os verões tórridos e se acham portanto com uma salinidade tal, que impedem a vida íctica.

O Tuz Golu por exemplo, o grande lago salgado no "coração morro da Anatólia" tem, com seus 34%, uma salinidade superior à do Mar Morto e pertence, portanto, às águas mais salgadas do mundo. E um lago de apenas dois ou três metros de profundidade, porém em seu nível máximo chega a cobrir uma superfície de cerca de três vezes o lago de Constanza (Bodensee) com uma superfície de 538 quilômetros quadrados. No verão, a água se evapora quase totalmente, de modo que no outono o lago apresenta um campo de neve esbranquiçado, como resultado das camadas salinas de vários metros de espessura.

Existem poucos dos que chegam ao mar, na Anatólia, e nenhum deles é navegável: o Meandro, este campeão que com todos os seus aqui e ali e adiante e atrás não consegue avançar, toma o seu nome de rio Anatólio ocidental Menderes, que na antiguidade se chamava exatamente Meandro.

A maior parte dos rios que são forçados a escavar seu percurso nos montes levam atrás de si enormes massas de terra aluvionar, que colorem suas águas. Eis por que um deles se chama "Pintado de Vermelho".

Trata-se do Kizil Irmak, que nasce nos montes do Ponto, dobra primeiro para o sul e depois volta em amplo arco ao norte, para desembocar no Mar Negro. Na antiguidade se chamava Halys, e é o rio que Creso atravessou, confiando no oráculo de Delfos, para destruir um grande império que não imaginava que se tomaria seu. - Entre o arco do Halys, mais próxima do Mar Negro do que do Mediterrâneo, está exatamente Hattusa, encostada ao sul contra uma montanha, em um vale profundo que se abre para o norte.

A posição e a direção do olhar não fariam supor inicialmente que os hititas estenderiam seu império sobretudo a sul e sudeste além das cadeias do Touro até a Babilônia e na Palestina, tanto mais que os moines anatólicos dobram também para o interior predominantemente na direção oeste-leste, tornando difícil a estrada do sul devido aos contínuos desbarrancamentos de montanhas.

Tanto maior portanto a maravilha da descoberta do império hitita na Anatólia setentrional, em uma zona que já na antiguidade não se enumerava entre os centros da civilização.

Seriam os hititas então um povo montanhês da Anatólia? As escavações haviam revelado a existência de relações originais entre diversas culturas. Foram desenterrados conjuntos arquitetônicos cujas plantas podiam ser substituídas pelas do labirinto de Creta (e semelhantes as encontradas mais tarde na Índia), comprovou-se que algumas divindades provinham da Mesopotâmia; soube-se que os hititas escreviam em caracteres cuneiformes babilônicos arcádicos e conheciam o babilônico, mas que tinham uma língua própria, sem qualquer relação com as línguas conhecidas.

História - Civilização Hitita
Sociedade - , 
2/7/2021 4:21:37 PM | Por James Graham-Campbell
A introdução da Escandinávia na Europa

Para os historiadores, a época viking começa convencionalmente com o primeiro ataque que se conhece de uma frota norueguesa ao indefeso mosteiro de Lindisfarne, uma ilha perto da costa nordeste da Inglaterra, em 793, e termina no século XI após a conversão ao cristianismo de todos os países escandinavos. Para os arqueólogos, que recorrem a provas materiais como sinais de mudança cultural mais que a acontecimentos históricos para anunciar novos períodos na historia da humanidade, as datas são um pouco diferentes. Uma mudança cultural pode derivar de muitos fatores e manifesta-se de diferentes maneiras. As alterações internas podem produzir uma nova organização social, com novos centros de poder e de hierarquias sociais; estas podem derivar de influencias externas, como o que está sucedendo nas terras adjacentes, de invasões do exterior ou de maior conhecimento do mundo exterior como resultado de esferas mais amplas de intercambio e de comercio.

É bastante evidente que essas modificações tiveram lugar na Escandinávia durante o século VIII, devido sobretudo aos contatos com o continente cristão. Aqui, reinos muito organizados, cuja origem remontava a civilização romana, estavam tornando-se muito poderosos e tentavam ampliar-se. Eles puseram os olhos nas terras dos nórdicos pagãos cujos países eram fonte de produtos muito solicitados no sul cristão, como, por exemplo: peles, marfim de morsa, âmbar. O fato de o norte ser pagão era também um desafio para a Igreja cristã, e as tentativas de conversão foram feitas em conjunto com os interesses políticos e comerciais. Assim, a Escandinávia foi-se abrindo cada vez mais as influencias do continente. Podemos ver provas disso, por exemplo, nas alterações dos estilos artísticos que adornavam as joias e outros objetos decorativos fabricados e usados pelos escandinavos naquela época. As mercadorias importadas do sul indicam também que a Escandinávia estava buscando contatos mais estreitos com os vizinhos continentais. A cerâmica e o vidro da Renania encontram-se em maiores quantidades, especialmente na Jutlandia, e as moedas (uma forma de troca totalmente estranha aos escandinavos) começaram a circular em pequenas quantidades e até foram cunhadas ali por algum tempo.

Os arqueólogos recorrem a esse tipo de coisas para definir um período de modificação cultural como aquele que pensam que se deu na Escandinávia nos séculos VI-VII. Assim, o inicio da época viking pode ver-se claramente no afastamento do estilo de vida do período de Vendel e na aproximação a um estilo diferente - uma cultura diferente - na segunda metade do século VIII. A incursão de Lindisfarne em 793 e, portanto, a manifestação externa de um processo que se iniciou 50 anos antes: a introdução da Escandinávia na Europa.

Durante 50 anos depois do ataque inicial a Lindisfarne, os vikings saquearam, com frequência cada vez maior, as costas das ilhas britânicas e a margem oeste do continente europeu, invadindo os mosteiros indefesos onde havia ricas coleções em forma de pratinhos de igreja e de outros objetos requintados. Podemos fazer uma ideia daquilo que os vikings levaram pelas peças de metal muito adornadas que foram encontradas em alguns túmulos da Escandinávia. Esta fase inicial parece ter sido de pura pirataria: estes invasores, que vinham principalmente da Noruega e da Dinamarca, tinham descoberto como era fácil roubar os lugares ricos da Europa Ocidental, e os seus ataques-relâmpago eram favorecidos pelos seus velozes barcos de grande maleabilidade. Na segunda metade do século IX, surgiu uma nova fase, pois os vikings deixaram a pirataria e começaram a colonizar. Os seus barcos transportavam agora grupos de colonizadores com seus equipamentos domésticos e outros fornecimentos para os novos lares nas ilhas Orcades e Shetland, Islândia e Groenlândia e, depois, até na América do Norte. Foram sobretudo os noruegueses que viajaram nesta direção. Os dinamarqueses fixaram a sua atenção nos países mais povoados, como a Inglaterra e a França, primeiro enviando expedições combatentes e depois instalando-se. Os Suecos dirigiram-se principalmente para o leste; as suas viagens levaram-nos ao Sudoeste da Finlândia, para o sul e o leste báltico, e depois através da Rússia ate Bizâncio (Constantinopla, atualmente Istambul) e até o mar Cáspio e mesmo Bagdá. Um menor numero de gente procedente de Vastergotland, na Suécia Central, com acesso ao oeste, também viajou para as ilhas britânicas. Toda essa gente recebe hoje comumente o nome de vikings.

A origem do nome é obscura. É pouco mencionado em fontes contemporâneas, e quando surge refere-se a homens que partiram "a vikine", isto é, que deixaram suas casas e sua pátria e adotaram a pirataria, preferindo essa forma de vida aos trabalhos agrícolas normais. "Vik" significa baia ou enseada nas línguas escandinavas, e pode acontecer que o termo "a viking" derive dos lugares onde os piratas se faziam ao mar ou se refira as aguas protegidas onde se ocultavam antes de atacar a sua presa. E também possível que "Vik" se referisse aos lugares de comercio na Europa continental e nas ilhas Britânicas visitados pelos vikings, dado que muitos deles eram conhecidos como "wic" (que significa estabelecimento comercial), por exemplo, Hamwic, próximo do atual Southampton, na Inglaterra, e Quentovic, no Norte de França. No século VIII houve um desenvolvimento comercial enorme no Norte da Europa, e a riqueza desses povos te-los-ia tornado atraentes alvos para a pirataria e a colonização. Talvez os vikings fossem, no principio, as pessoas que visitavam estes lugares, como piratas ou como comerciantes pacíficos. Para os escritores contemporâneos, as pessoas da Escandinávia não eram conhecidas na Europa como vikings. Chamavam-nos nórdicos ou escandinavos, e dessa derivação surgiu o termo nórdico, usado agora em alternativa ao de viking. Qualquer que fosse a sua derivação, viking nunca foi usado para o conjunto dos escandinavos, e só foi de uso comum com o aparecimento de movimentos nacionalistas escandinavos no século XIX. Nessa época, os vikings começaram a ser representados por capacetes com chifres, os quais, inexplicavelmente, se associam hoje a sua imagem popular, mas não tem nenhuma base histórica.

No inicio da época viking, os dinamarqueses, os noruegueses e os suecos falavam todos aproximadamente a mesma língua, conhecida por eles e pelos forasteiros como a "língua dinamarquesa" (mas hoje chamada nórdico antigo pelos linguistas). Pertencia ao ramo germânico de línguas que se falavam a volta do mar do Norte e compartilhava raízes comuns com o anglo-saxão e o alto alemão antigo, mas tinha-se afastado o suficiente para que os contemporâneos a tomassem por língua independente. No decurso do período viking, desenvolveram-se diferentes variações fonéticas nas diferentes regiões da Escandinávia. Esses dialetos formaram a base do dinamarquês, do norueguês e do sueco modernos, mas podiam ser entendidos por todos os escandinavos (como ainda acontece com os seus derivados modernos).

O exame antropológico dos esqueletos recuperados das inumações indica que os vikings tinham estatura média, um pouco menor que a da população escandinava atual. É obvio que algumas pessoas, podemos supor que dos estratos sociais mais altos da sociedade, eram mais altas, mais robustas e geralmente mais saudáveis que outras, cujos esqueletos mostram evidentes deformações causadas pela má nutrição e pelo trabalho penoso. A mortalidade infantil era maior que agora, e a esperança de vida, mais curta, embora não fosse raro que algumas pessoas vivessem cerca de 40 a 50 anos. Uma maior longevidade era pouco frequente. As doenças mais correntes, refletidas nos restos dos esqueletos, eram o reumatismo e a artrite, mas há poucos sinais de caries dentárias, que são uma praga das sociedades modernas, sem duvida devido a dieta sem açúcar dos vikings. Quando as incursões vikings estavam no seu ponto culminante, grande parte da população deve ter ficado pacificamente em suas casas, cuidando dos seus rebanhos e cultivos ou trabalhando como artesãos. As razões que levaram tantos a tomar a decisão de deixar a Escandinávia naquela época, para participar das expedições invasoras ou estabelecer-se para além dos mares, continuam um mistério, mas a superpopulação nas terras nativas, a falta de terreno cultivável e os conflitos entre diferentes facções são algumas das razões que se propuseram. Provavelmente, todos esses fatores desempenharam papel decisivo nas grandes migrações vikings nos séculos IX e X.

História - Vikings
Educação - , 
2/7/2021 3:49:26 PM | Por Carlos Rodrigues Brandão
O processo de ensino-aprendizagem nas sociedades tribais

Ninguém escapa da educação. Em casa, na rua, na igreja ou na escola, de um modo ou de muitos todos nós envolvemos pedaços da vida com ela: para aprender, para ensinar, para aprender-e--ensinar. Para saber, para fazer, para ser ou para conviver, todos os dias misturamos a vida com a educação. Com uma ou com várias: educação? Educações. E já que pelo menos por isso sempre achamos que temos alguma coisa a dizer sobre a educação que nos invade a vida, por que não começar a pensar sobre ela com o qúe uns índios uma vez escreveram?

Há muitos anos nos Estados Unidos, Virgínia e Maryland assinaram um tratado de paz com os índios das Seis Nações. Ora, como as promessas e os símbolos da educação sempre foram muito adequados a momentos solenes como aquele, logo depois os seus governantes mandaram cartas aos índios para que enviassem alguns de seus jovens às escolas dos brancos. Os chefes responderam agradecendo e recusando. A carta acabou conhecida porque alguns anos mais tarde Benjamin Franklin adotou o costume de divulgá-Ia aqui e ali. Eis o trecho que nos interessa:

"...Nós estamos convencidos, portanto, que os senhores desejam o bem para nós e agradecemos de todo o coração.

Mas aqueles que são sábios reconhecem que diferentes nações têm concepções diferentes das coisas e, sendo assim, os senhores não ficarão ofendidos ao saber que a vossa ideia de educação não é a mesma que a nossa

...Muitos dos nossos bravos guerreiros foram formados nas escolas do Norte e aprenderam toda a vossa ciência. Mas, quando eles voltavam para nós, eles eram maus corredores, ignorantes da vida da floresta e incapazes de suportarem o frio e a fome. Não sabiam como caçar o veado, matar o inimigo e construir uma cabana, e falavam a nossa Iíngua muito mal. Eles eram, portanto, totalmente inúteis. Não serviam como guerreiros, como caçadores ou como conselheiros.

Ficamos extremamente agradecidos pela vossa oferta e, embora não possamos aceitá-Ia, para mostrar a nossa gratidão oferecemos aos nobres senhores de Virgínia que nos enviem alguns dos seus jovens, que lhes ensinaremos tudo o que sabemos e faremos, deles, homens."

De tudo o que se discute hoje sobre a educação, algumas das questões entre as mais importantes estão escritas nesta carta de índios. Não há uma forma única nem um único modelo de educação; a escola não é o único lugar onde ela acontece e talvez nem seja o melhor; o ensino escolar não é a sua única prática e o professor profissional não é o seu único praticante.

Em mundos diversos a educação existe diferente: em pequenas sociedades tribais de povos caçadores, agricultores ou pastores nômades; em sociedades camponesas, em países desenvolvidos e industrializados; em mundos sociais sem classes, de classes, com este ou aquele tipo de conflito entre as suas classes; em tipos de sociedades e culturas sem Estado, com um Estado em formação ou com ele consolidado entre e sobre as pessoas.

Existe a educação de cada categoria de sujeitos de um povo; ela existe em cada povo, ou entre povos que se encontram. Existe entre povos que submetem e dominam outros povos, usando a educação como um recurso a mais de sua dominância. Da família à comunidade, a educação existe difusa em todos os mundos sociais, entre as incontáveis práticas dos mistérios do aprender; primeiro, sem classes de alunos, sem livros e sem professores especialistas; mais adiante com escolas, salas, professores e métodos pedagógicos.

A educação pode existir livre e, entre todos, pode ser uma das maneiras que as pessoas criam para tornar comum, como saber, como ideia, como crença, aquilo que é comunitário como bem, como trabalho ou como vida. Ela pode existir imposta por um sistema centralizado de poder, que usa o saber e o controle sobre o saber como armas que reforçam a desigualdade entre os homens, na divisão dos bens, do trabalho, dos direitos e dos símbolos.

A educação é, como outras, uma fração do modo de vida dos grupos sociais que a criam e recriam, entre tantas outras invenções de sua cultura, em sua sociedade. Formas de educação que produzem e praticam, para que elas reproduzam, entre todos os que ensinam-e-aprendem, o saber que atravessa as palavras da tribo, os códigos sociais de conduta, as regras do trabalho, os segredos da arte ou da religião, do artesanato ou da tecnologia que qualquer povo precisa para reinventar, todos os dias, a vida do grupo e a de cada um de seus sujeitos, através de trocas sem fim com a natureza e entre os homens, trocas que existem dentro do mundo social onde a própria educação habita, e desde onde ajuda a explicar - às vezes a ocultar, às vezes a inculcar - de geração em geração, a necessidade da existência de sua ordem.

Por isso mesmo - e os índios sabiam - a educação do colonizador, que contém o saber de seu modo de vida e ajuda a confirmar a aparente legalidade de seus atos de domínio, na verdade não serve para ser a educação do colonizado. Não serve e existe contra uma educação que ele, não obstante dominado, também possui como um dos seus recursos, em seu mundo, dentro de sua cultura.

Assim, quando são necessários guerreiros ou burocratas, a educação é um dos meios de que os homens lançam mão para criar guerreiros ou burocratas. Ela ajuda a pensar tipos de homens. Mais do que isso, ela ajuda a criá-los, através de passar de uns para os outros o saber que os constitui e legitima. Mais ainda, a educação participa do processo de produção de crenças e idéias, de qualificações e especialidades que envolvem as trocas de símbolos, bens e poderes que, em conjunto, constroem tipos de sociedades. E esta é a sua força.

No entanto, pensando às vezes que age por si próprio, livre e em nome de todos, o educador imagina que serve ao saber e a quem ensina mas, na verdade, ele pode estar servindo a quem o constituiu professor, a fim de usá-lo, e ao seu trabalho, para os usos escusos que ocultam também na educação - nas suas agências, suas práticas e nas idéias que ela professa - interesses políticos impostos sobre ela e, através de seu exercício, à sociedade que habita_ E esta é a sua fraqueza.

Aqui e ali será preciso voltar a estas idéias, e elas podem ser como que um roteiro daqui para a frente. A educação existe no imaginário das pessoas e na ideologia dos grupos sociais e, ali, sempre se espera, de dentro, ou sempre se diz para fora, que a sua missão é transformar sujeitos e mundos em alguma coisa melhor, de acordo com as imagens que se tem de uns e outros: " ...e deles faremos homens". Mas na prática a mesma educação que ensina pode deseducar: e pode correr o risco de fazer o contrário do que pensa que faz, ou do que inventa que pode fazer: "... eles eram portanto, totalmente inúteis".

A educação existe onde não há a escola e por toda parte podem haver redes e estruturas sociais de transferência de saber de uma geração a outra, onde ainda não foi sequer criada a sombra de algum modelo de ensino formal e centralizado. Porque a educação aprende com o homem a continuar o trabalho da vida. A vida que transporta de uma espécie para a outra, dentro da história da natureza, e de uma geração a outra de viventes, dentro da história da espécie, os princípios através dos quais a própria vida aprende e ensina a sobreviver e a evoluir em cada tipo de ser.

Os bichos do mundo aprendem de dentro para fora com as armas naturais do instinto. Mas a isto eles acrescentam maneiras de aprender de fora para dentro, convivendo com a espécie, observando a conduta de outros iguais de seu mundo e experimentando repetir muitas vezes essas condutas da espécie, por conta própria. Entre os que nos rodeiam de perto ou de longe, não são raros os bichos cujos pais da prole criam e recriam situações, para que o treino dos filhotes faça e repita os atos da aprendizagem que garante a vida, como a mãe que um dia expulsa com amor o filho do ninho, para que ele aprenda a arte e a coragem do primeiro vôo.

O homem que transforma, com o trabalho e a consciência, partes da natureza em invenções de sua cultura, aprendeu com o tempo a transformar partes das trocas feitas no interior desta cultura em situações sociais de aprender, ensinar-e-aprender: em educação. Na espécie humana a educação não continua apenas o trabalho da vida. Ela se instala dentro de um domínio propriamente humano de trocas: de símbolos, de intenções, de padrões de cultura e de relações de poder. Mas, a seu modo, ela continua no homem o trabalho da natureza de fazê-lo evoluir, de torná-lo mais humano. esta a ideia que Werner Jaeger tem na cabeça quando, num estudo sobre a educação do homem grego, procura explicar o que ela é, afinal:

"A natureza do homem, na sua dupla estrutura corpórea e espiritual, cria condições especiais para a manutenção e tranimissão da sua forma particular e, exige organizações físicas e espirituais, ao conjunto das quais damos o nome de educação. Na educação, como o homem a pratica, atua a mesma força vital, criadora e plástica, que espontaneamente impele todas as espécies vivas à conservação e à propagação de seu tipo. E nela, porém, que essa força atinge o seu mais alto grau de intensidade, através do esforço consciente do conhecimento e da vontade, dirigida para a consecução de um fim."

Quando um povo alcança um estágio complexo de organização da sua sociedade e de sua cultura; quando ele enfrenta, por exemplo, a questão da divisão social do trabalho e, portanto, do poder, é que ele começa a viver e a pensar como problema as formas e os processos de transmissão do saber. É a partir de então que a questão da educação emerge à consciência e o trabalho de educar acrescenta à sociedade, passo a passo, os espaços, sistemas, tempos, regras de prática, tipos de profissionais e categorias de educandos envolvidos nos exercícios de maneiras cada vez menos corriqueiras e menos comunitárias do ato, afinal tão simples, de ensinar-e-aprender. No entanto, muito antes que isso aconteça, em qualquer lugar e a qualquer tempo - entre dez indios remanescentes de alguma tribo do Brasil Central, no centro da cidade de São Paulo - a educação existe sob tantas formas e é praticada em situações tão diferentes, que algumas vezes parece ser invisivel, a não ser nos lugares onde pendura alguma placa na poria com o seu nome.

Quando os antropólogos do começo do século saíram pelo mundo pesquisando "culturas primitivas" de sociedades tribais das Américas, da Asia, da África e da Oceania, eles aprenderam a descrever com rigor praticamente todos os recantos da vida destas sociedades e culturas. No entanto, quase nenhum deles usa a palavra educação, embora quase todos, de uma forma ou de outra, descrevam relações cotidianas ou cerimônias rituais em que crianças aprendem e jovens são solenemente admitidos no mundo dos adultos.

De vez em quando, aparece, perdido num mar de outros conceitos, o de educação, como quando Radcliffe-Brown - um antropólogo inglês que participa da criação da moderna Antropologia Social - lembra que, entre os andamaneses, um grupo tribal de ilhéus entre Burma e Sumatra, para se ajustar a criança à sua comunidade Hé preciso que ela seja educada". Parte deste processo consiste em a criança e o adolescente aprenderem aos poucos a caçar, a fabricar o arco e flecha e assim por diante. Outra parte envolve a aquisição de "sentimentos e disposições emocionais" que regulam a conduta dos membros da tribo e constituem o corpo de suas regras sociais de moralidade.

Quando os antropólogos pouco falam em educação, eles pouco querem falar de processos formalizados de ensino. Porque, onde os andamaneses, os maori, os apaches ou os xavantes pra- ticam, e os antropólogos identificam processos sociais de aprendizagem, não existe ainda nenhuma situação propriamente escolar de transferência do saber tribal que vai do fabrico do arco e flecha à recitação das rezas sagradas aos deuses da tribo. Ali, a sabedoria acumulada do grupo social não "dá aulas" e os alunos, que são todos os que aprendem, "não aprendem na escola".' Tudo o que se sabe aos poucos se adquire por viver muitas e diferentes situações de trocas entre pessoas, com o corpo, com a consciência, com o corpo-e-a-consclencia. As pessoas convivem umas com as outras e o saber flui, pelos'atos de quem sabe-e-faz, para quem não-sabe-e-aprende. Mesmo quando os adultos encorajam e guiam os momentos e situações de aprender de crianças e adolescentes, são raros os tempos especialmente reservados apenas para o ato de ensinar.

Nas aldeias dos grupos tribais mais simples, todas as relações entre a criança e a natureza, guia- das de mais longe ou mais perto pela presença de adultos conhecedores, são situações de aprendizagem. A criança vê, entende, imita e aprende com a sabedoria que existe no próprio gesto de fazer a coisa. São também situações de aprendizagem aquelas em que as pessoas do grupo trocam bens materiais entre si ou trocam serviços e significados: na turma de caçada, no barco de pesca, no canto da cozinha da palhoça, na lavoura familiar ou comunitária de nos grupos de brincadeiras de meninos e meninas, nas cerimônias religiosas.

Emile Durkheim, um dos. principais sociólogos da educação, explica isto da seguinte maneira:

"Sob regime tribal, a caracterlstica essencial da educação reside no fato de ser difusa e administrada indistintamente por todos os elementos do clã. Não há mestres determinados, nem inspetores especiais para a formação da juventude: esses papéis são desempenhados por todos os anciãos e pelo conjunto das gerações anteriores."

As meninas aprendem com as companheiras de idade, com as mães, as avós, as irmãs mais velhas, as velhas sábias da tribo, com esta ou aquela especialista em algum tipo de magia ou artesanato. Os meninos aprendem entre os jogos e brincadeiras de seus grupos de idade, aprendem com os pais, os irmãos-da-mãe, os avós, os guerreiros, com algum xamã (mago, feiticeiro), com os velhos em volta das fogueiras. Todos os agentes desta educação de aldeia criam de parte a parte as situações que, direta ou indiretamente, forçam iniciativas de aprendizagem e treinamento. Elas existem misturadas com a vida em momentos de trabalho, de lazer, de camaradagem ou de amor. Quase sempre não são impostas e não é raro que sejam os aprendizes os que tomam a seu cargo procurar pessoas e situações de troca que lhes possam trazer algum aprendizado. Assim, entre os Wogeo, da Nova Guiné, de acordo com o depoimento de um antropólogo:

"Onde é necessário aprender habilidades especiais as crianças estão, em regra geral, ansiosas por saber o que os seus pais conhecem. O orgulho do trabalhador e o prestigio do bom artesão dominam sua vida e elas necessitam de muito pouco estímulo para procurá-los por si mesmas o saber da comunidade, aquilo que todos conhe- cem de algum modo; o saber próprio dos homens e das mulheres, de crianças, adolescentes, jovens, adultos e velhos; o saber de guerreiros e esposas; o saber que faz o artesão, o sacerdote, o feiticeiro, o navegador e outros tantos especialistas, envolve portanto situações pedagógicas interpessoais, fami- liares e comunitárias, onde ainda não surgiram técnicas pedagógicas escolares, acompanhadas de seus profissionais de aplicação exclusiva. Os que sabem: fazem, ensinam, vigiam, incentivam, demonstram, corrigem, punem e premiam. Os que não sabem espiam, na vida que há no cotidiano, o saber que ali existe, vêem fazer e imitam, são instruídos com o exemplo, incentivados, treinados, corrigidos, punidos, premiados e, enfim, aos poucos aceitos entre os que sabem fazer e ensinar, com o próprio exercício vivo do fazer. Esparramadas pelos cantos do cotidiano, todas as situações entre pessoas, e entre pessoas e a natureza - situações sempre mediadas pelas regras, símbolos e valores da cultura do grupo - têm, em menor ou maior escala a sua dimensão pedagógica. Ali, todos os que convivem aprendem, aprendem, da sabedoria do grupo social e da força da norma dos costumes da tribo, o saber que torna todos e cada um pessoalmente aptos e socialmente reconhecidos e legitimados para a convlvencia social, o trabalho, as artes da guerra e os ofícios do amor. 

Os meninos observam os homens quando fazem arcos e flechas; o homem os chama para perto de si e eles se vêem obrigados a observá-lo. As mulheres, por outro lado, levam as meninas para fora de casa, ensinando-as a conhecer as plantas boas para confeccionar cestos e a argila que serve para fazer potes. E, em casa, as mulheres tecem os cestos, costuram os mocassins e curtem a pele de cabrito diante das meninas, dizendo-lhes, enquanto estão trabalhando, que observem cuidadosamente, para que, quando forem grandes, ninguém as possa chamar de preguiçosas e ignorantes. Ensinam-nas a cozinhar e aconselham-nas sobre a busca de bagas e outros frutos, assim como sobre a colheita de alímentos. "

Em todos os grupos humanos mais simples, os diversos tipos de treinamento através das trocas sociais, que socializam crianças e adolescentes, incluem, entre outras, estas situações pedagógicas:

  • o treinamento direto de habilidades corporais, por meio da prática direta dos atos que conduzem o corpo ao hábito;
  • a estimulação dirigida, para que o aprendiz faça e repita, até o acerto, os atos de saber e habilidade que ignora;
  • a observação livre e dirigida, do educando, dos procedimentos daqueles que sabem;
  • a correção interpessoal, familiar ou comunitária, das práticas ou das condutas erradas, por meio do castigo, do ridículo ou da admoestação;
  • a assistência convocada para cerimônias rituais e, aos poucos (ou depois de uma iniciação), o direito à participação nestas cerimônias (solenidades religiosas, danças, rituais de pas· sagem);
  • a inculcação dirigida em situações de quase-ensino, com o uso da palavra e turmas de ouvintes, dos valores morais, dos mitos histórico-religiosos da tribo, das regras dos códigos de conduta.

Assim, tudo o que é importante para a comunidade, e existe como algum tipo de saber, existe também como algum modo de ensinar. Mesmo onde ainda não criaram a escola, ou nos intervalos dos lugares onde ela existe, cada tipo de grupo humano cria e desenvolve situações, recursos e métodos empregados para ensinar às crianças, aos adolescentes, e também aos jovens e mesmo aos aduItos, o saber, a crença e os gestos que os tornarão um dia o modelo de homem ou de mulher que o imaginário de cada sociedade - ou mesmo de cada grupo mais específico, dentro dela - idealiza, projeta e procura realizar. De duas tribos vizinhas de pastores do deserto, é possível que se dê franca importância a um artifício pedagógico, em uma delas, como o castigo corporal, por exemplo, ou a atemorização de crianças, e ele seja simplesmente rejeitado na outra. Mas em uma e na outra, como em todas do mundo, nunca as pessoas crescem a esmo e aprendem ao acaso.

O que vimos acontecer até aqui, formas vivas e comunitárias de ensinar-e-aprender, tem sido chamado com vários nomes. Ao processo global que tudo envolve, é comum que se dê o nome de socialização. Através dela, ao longo da vida, cada um de nós passa por etapas sucessivas de inculcação de tipos de categorias gerais, parciais ou especializadas de saber-e-habilidade. Elas fazem, em conjunto, o contorno da identidade, da ideologia e do modo de vida de um grupo social. Elas fazem, também, do ponto de vista de cada um de nós, aquilo que aos poucos somos, sabemos, fazemos e amamos. A socialização realiza em sua esfera as necessidades e projetos da sociedade, e realiza, em cada um de seus membros, grande parte daquilo que eles precisam para serem reconhecidos como "seus" e para existirem dentro dela.

Ora, no interior de todos os contextos sociais coletivos de formação do adulto, o processo de aquisição pessoal de saber-crença-e-hábito de uma cultura, que funciona sobre educandos como uma situação pedagógica total, pode ser chamado (com algum susto) de endoculturação.

Dentro de sua cultura, em sua sociedade, aprender de maneira mais ou menos intencional (alguns dirão: "mais ou menos consciente"), através do envolvimento direto do corpo, da mente e da afetividade, entre as incontáveis situações de relação com a natureza e de trocas entre os ho- mens, é parte do processo pessoal de endoculturação, e é também parte da aventura humana do "tornar-se pessoa".

Vista em seu vôo mais livre, a educação é uma fração da experiência endoculturativa. Ela aparece sempre que há relações entre pessoas e intenções de ensinar-e-aprender. Intenções, por exemplo, de aos poucos "modelar" a criança, para conduzi-Ia a ser o "modelo" social de adolescente e, ao adolescente, para torná-lo mais adiante um jovem e, depois, um adulto. Todos os povos sempre traduzem de alguma maneira esta lenta transformação que a aquisição do saber deve operar. Ajudar a crescer, orientar a maturação, transformar em, tornar capaz, trabalhar sobre, domar, polir, criar, como um sujeito social, a obra, de que o homem natural é a matéria-prima.

Não é nada raro que tanto na cabeça de um índio quanto na de um de nossos educadores ocidentais, a melhor imagem de como a educação se idealiza seja a do oleiro que toma o barro e faz o pote. O trabalho cuidadoso do artesão que age com tempo e sabedoria sobre a argila viva que é o educando. A argila que resiste às mãos do oleiro, mas que se deixa conduzir por elas a se transformar na obra feita: o adulto educado. Quando o educador pensa a educação, ele acredita que, entre homens, ela é o que dá a forma e o polimento. Mas ao fazer isso na prática, tanto pode ser a mão do artista que guia e ajuda o barro a que se transforme, quanto a forma que iguala e deforma.

É bom separar agora algumas palavras usadas até aqui e que serão ainda trabalhadas mais adiante. Tudo o que existe transformado da natureza pelo trabalho do homem e significado pela sua consciência é uma parte de sua cultura: o pote de barro, as palavras da tribo, a tecnologia da agricultura, da caça ou da pesca, o estilo dos gestos do corpo nos atos do amor, o sistema de crenças religiosas, as estórias da história que explica quem aquela gente é e de onde veio, as técnicas e situações de transmissão do saber. Tudo o que existe disponível e criado em uma cultura como conhecimento que se adquire através da experiência pessoal com o mundo ou com o outro; tudo o que se aprende de um modo ou de outro faz parte do processo de endoculturação, através do qual um grupo social aos poucos socializa, em sua cultura, os seus membros, como tipos de sujeitos sociais.

Ora, a educação é o território mais motivado deste mapa. Ela existe quando a mãe corrige o filho para que ele fale direito a Iíngua do grupo,  ou quando fala à filha sobre as normas sociais do modo de "ser mulher" ali. Existe também quando o pai ensina ao filho a polir a ponta da flecha, ou quando os guerreiros saem com os jovens para ensiná-los a caçar. A educação aparece sempre que surgem formas sociais de condução e controle da aventura de ensinar-e-aprender. O ensino formal é o momento em que a educação se sujeita à pedagogia (a teoria da educação). cria situações próprias para o seu exercício, produz os seus métodos, estabelece suas regras e tempos, e constitui executores especializados. quando aparecem a escola, o aluno e o professor.

Ciências humanas - Antropologia
Cosmogonia - , 
2/7/2021 1:39:07 PM | Por A. S. Franchini
O 3º Reinado, Glória de Zeus

Titanomaquia: A Guerra dos Titãs - Não há crônica, antiga ou moderna, que refira de maneira exata todos os feitos e lances heróicos desta que foi a verdadeira primeira guerra mundial. Ela é demasiado antiga e perde-se na noite dos tempos. Só podemos nos basear no que dela referiram alguns comentadores tardios, como Hesíodo. Ainda sim ela houve: os sinais, por tudo, são demais evidentes. A própria geologia comprova que as extintas divindades de outrora - personificações, talvez, dos elementos em estado caótico - se engalfinharam um dia numa luta impiedosa, revolvendo no embate o Céu, a Terra e os mares.

Esta gigantesca querela teve início com a pretensão de um filho rebelde, chamado Zeus, sobre o poder supremo que estava em mãos de uma divindade cruel e despótica, chamada Crono. Mas quem foram as partes deste espantoso embate? De um lado, liderados por Crono, estavam ele e seus irmãos, os poderosos Titãs "filhos da Terra". Do outro, Zeus, o filho insubmisso, e seus irmãos, além de algumas defecções titânicas que se alistaram à causa rebelde, tais como o Oceano e o filho de Japeto, Prometeu.

Os Deuses da segunda geração, liderados por Zeus, foram organizar seu ataque no monte Olimpo (daí serem chamados de "deuses olímpicos"), enquanto os Titãs, abrigados no monte Ótris, tramavam a sua defesa. Numa dia incerto, que nenhum calculo humano pode aproximar, deu-se o primeiro lance desta refrega colossal, que os anais bélicos da humanidade batizaram de Titanomaquia ou "Guerra dos Titãs". Uma imensa massa negra de nuvens destacou-se dos limites extremos do Olimpo e começou a marchar, num estrondo feroz de carros de guerra que rondam pelos céus. O empíreo escureceu de tal forma que o Caos parecia haver gerado de seu ventre uma segunda noite, ainda mais negra e tétrica do que a primeira.

De dentro desta montanha alada, da cor do ferro, partiam raios tão ofuscantes (novidade horripilante inventada pelos Ciclopes, aliados de Zeus, que este libertara do Tártaro), que por alguns instantes brevíssimos não havia em todo o Universo a menor parcela de escuridão. Mas logo o negror da noite tombava outra vez sobre a Terra, e a alma de tudo quanto vivia agachava-se, oprimida por indizível pavor.

Ocultos acima dessa nuvem prodigiosa, Zeus, e seus aliados caíram finalmente sobre seus inimigos. Os Titãs, contudo, bem protegidos em suas trincheiras, começaram a enterrar suas unhas duras e compridas como gigantescas pás de bronze até as profundezas do solo, para dali arrancarem pela raiz, com pavoroso estrondo, montanhas inteiras, que arremessavam em seguida contra os deuses olímpicos.

Uma voz espantosa ecoou, vinda do alto, sobrepondo-se à massa inteira de ruídos:

- Irmãos da nobre causa, desçamos até onde rastejam estes vermes! - Disse Zeus e, junto com seus aliados, saltou das nuvens com as vestes guerreiras, dando grandes brados de fúria. Seus escudos refulgiam na queda como tremendos sóis prateados, enquanto suas lanças, brandidas com fúria, pareciam a raios retilíneos que cada qual portasse com destemor infinito.

- Amantes da nobre verdade, recebamos estas aves de rapina que descem dos céus, tal como elas merecem! - bradou outra voz, desta vez de Crono, encorajando os seus Titãs.

Quando os depois exércitos se misturaram, um ruído mais feroz do que qualquer outro jamais escutado fez-se ouvir, então, por todo Universo. A terra inteira sacudia-se em tremores, levantando-se de dentro dela imensas labaredas de fogo e de pez. Posídon, com seu tridente aceso, fazia ferver os mares, e por toda parte não havia um único bosque que não tivesse sido varrido pelo assobio endemoniado de uma tórrida ventania.

Os combatentes, misturados num pavoroso atraque corporal - atirando às cegas, uns contra os outros, cutiladas, raios, rochas imensas, vapores sufocantes e dentadas -, assim estiveram por uma eternidade, até que Zeus, temendo que a vitória estivesse pendendo para o inimigo, anunciou um novo propósito:

- Companheiros, libertemos do Tártaro profundo os poderosos Hecatônquiros! - Hecatônquiros. Esses Terríveis seres haviam sido aprisionados por Crono nas profundezas da terra e, uma vez libertos, espalhariam o terror entre as hostes inimigas.

Zeus, auxiliado pelos seus, desceu até as tênebras profundas e, após romper com os grilhões que mantinham estas colossais criaturas presas ao abismo, subiu com elas à superfície. Uma fenda enorme rasgou-se sob o chão; imediatamente um vapor negro subiu da cratera num jato hediondo, até envolver o próprio sol. tudo estava envolto numa treva sufocante, quando todos sentiram um baque formidável sacudir o solo. Um tufão poderoso surgiu em seguida, varrendo fora a fuligem espessa e deixando à mostra, sobre a superfície, os três Hecatônquiros, postados lado a lado. A arte dos antigos não nos deixou nenhuma imagem do que seriam tais divindades, porém as descrições nos afirmam que se tratavam de seres "enormes como a mais alta das montanhas" e que possuíam "cem olhos e cinqüenta cabeças".

Um urro colossal, partido das cento e cinqüenta bocas, atroou todo o Universo. As criaturas, empunhando rochedos imensos, lançaram sobre os apavorados Titãs trezentas montanhas, sepultando-os vivos sob os escombros. Em seguida os Ciclopes os acorrentaram com suas pesadas correntes, encerrando-os para sempre nas profundezas do Tártaro, de onde jamais tornariam a sair, vigiados pelos invencíveis Hecatônquiros.

Esta, em resumo, foi a primeira batalha que o Universo conheceu, e da qual saiu vitorioso Zeus, o novo soberano do Universo, para reinar como pai dos deuses sobre todos os homens e as demais divindades.

Terminada a refrega, os três grandes deuses receberam por sorteio seus respectivos domínios: Zeus obteve o Céu; Posídon,o mar; Hades Plutão, o mundo subterrâneo ou Hades, ficando, porém, Zeus com a supremacia do Universo.

Gigantomaquia: A Guerra dos Gigantes - Geia, ficou profundamente irritada contra os Olímpicos por lhe terem lançado os filhos, os Titãs, no Tártaro, e excitou contra os vencedores os terríveis Gigantes, nascidos do sangue de Urano caído na terra ao ser castrado por Crono.

Os Gigantes foram gerados por Geia para vingar os Titãs, que Zeus havia lançado no Tártaro. Eram seres imensos, prodigiosamente fortes, de espessa cabeleira e barba hirsuta, o corpo horrendo, cujas pernas tinham a forma de serpente. Tão logo nasceram, começaram a jogar para o céu árvores inflamadas e rochedos imensos. Os deuses prepararam-se para o combate. A princípio lutavam somente Zeus e Palas Atena, armados com a égide, o raio e a lança. Já que os Gigantes só podiam ser mortos por um deus com o auxílio de um mortal, Héracles passou a tomar parte no combate. Apareceu também Dionísio, armado com um tirso e tochas, e secundado pelos Sátiros. Aos poucos o mito se enriqueceu e surgiram outros deuses que vieram em socorro de Zeus.

Os mitógrafos destacam nessa luta treze Gigantes, embora seu número tenha sido muito maior. Alcione foi morto por Héracles, auxiliado por Atena, que aconselhou o herói arrastá-lo para longe de Palene, sua cidade natal, porque, cada vez que o Gigante caía recobrava as forças, por tocar a terra, de onde havia saído.

Porfírio atacou a Héracles e Hera, mas Zeus inspirou-lhe um desejo ardente por esta e enquanto o monstro tentava arrancar-lhe as vestes, Zeus o fulminou com um raio e Héracles acabou com ele a flechadas. Efialtes foi morto por uma flecha de Apolo no olho esquerdo e por uma outra de Héracles no direito. Êurito foi eliminado por Dionísio, com um golpe de tirso; Hécate acabou com Clício a golpes de tocha; Mimas foi liquidado por Hefesto, com ferro em brasa. Encélado fugiu, mas Atena jogou em cima dele a ilha de Sicília; a mesma Atena escorchou a Palas e se serviu da pele do mesmo, como uma couraça, até o fim da luta. Polibotes foi perseguido por Posídon através das ondas do mar até a ilha de Cós. O deus, enfurecido quebrou um pedaço da ilha de Nisiro e lançou-o sobre o Gigante, esmagando-o. Hermes usando o capacete de Hades, que o tornava invisível, matou Hipólito, enquanto Artemis liquidava Grátion. As Moiras mataram Ágrio e Toas. Zeus, com seus raios, fulminou os restantes e Héracles acabou de liquidá-los a flechadas.

A Gigantomaquia quer dizer, a luta dos Gigantes, foi travada na Trácia, segundo uns, segundo outros na Arcádia, às margens do rio Alfeu.

Seres ctônios, os Gigantes simbolizam o predomínio das forças nascidas da Terra, por seu gigantismo material e indigência espiritual. Imagem da Hýbris, do descomedimento, em proveito dos instintos físicos e brutais, renovam a luta dos Titãs. Não podiam ser vencidos, como se viu, a não ser pela conjugação de forças de um deus e de um mortal. O próprio Zeus necessita de Héracles, ainda não imortalizado, para liquidar Porfírio; Efialtes foi morto por Apolo e Héracles. Todos os Olímpicos, adversários dos Titãs, Atena, Hera, Dionisio, Posídon... deixam sempre ao mortal a tarefa de acabar com o monstro. A idéia parece clara: na luta contra a "bestialidade terrestre", Deus tem necessidade do homem tanto quanto esse precisa de Deus. A evolução da vida para uma espiritualização crescente e progressiva é o verdadeiro combate dos gigantes. Esta evidência implica, todavia, num esforço do alto, para triunfar das tendências involutivas e regressivas ao heroísmo humano. O Gigante representa tudo quanto o homem terá que vencer para liberar e fazer desabrochar sua personalidade.

Tifão, a última prova de Zeus - Geia, num esforço derradeiro, uniu-se a Tártaro, e gerou o mais horrendo e terrível dos monstros, Tifão ou Tifeu.

Tifão era um meio-termo entre um ser humano e uma fera terrível e medonha. Em altura e força excedia a todos os outros filhos e descendentes de Geia. Era mais alto que as montanhas e sua cabeça tocava as estrelas. Quando abria os braços, uma das mãos tocava o Oriente e a outra o Ocidente e em lugar de dedos possuía cem cabeças de dragões. Hesíodo ainda é mais preciso:

De suas espáduas emergiam cem cabeças de serpentes, de um pavoroso dragão, dardejando línguas enegrecidas; de seus olhos, sob as sobrancelhas, se desprendiam clarões de fogo...

Da cintura para baixo tinha o corpo cemadado de víboras. Era alado e seus olhos lançavam línguas de fogo. Quando os deuses viram tão horrenda criatura encaminhar-se para o Olimpo, fugiram espavoridos para o Egito, escondendo-se no deserto, tendo cada um tomado uma forma animal: Apolo metamorfoseou-se em milhafre; Hera, em um boi. Zeus e sua filha Atena foram os únicos a resistir ao monstro. O vencedor de Crono lançou contra Tifão um raio, o perseguiu e feriu com uma foice de sílex. O gigantesco filho de Geia e Tártaro fugiu para o monte Cásico, nos confins do Egito com a Arábia Petréia, onde se travou um combate corpo a corpo. Facilmente Tifão desarmou Zeus e com a foice cortou-lhe os tendões dos braços e dos pés e, colocando-o inerme e indefeso sobre os ombros, levou-o para a Cilícia e o aprisionou na gruta Corícia. Escondeu os tendões do deus numa pele de urso e os pôs sob a guarda do dragão-fêmea Delfine. Mas o deus Pã, com seus gritos que causavam pânico, e Hermes, com sua astúcia costumeira, assustaram Delfine e apossaram-se dos tendões do pai dos deuses e dos homens. Este recuperou, de imediato, suas forças, e, escalando o Céu num carro tirado por cavalos alados, recomeçou a luta, lançando contra o inimigo uma chuva de raios. O gigante refugiou-se no monte Nisa, onde as Moiras lhe ofereceram "frutos efêmeros", prometendo-lhe que aqueles lhe fariam recuperar as forças: na realidade, elas o estavam condenando a uma morte próxima.

Tifão atingiu o monte Hêmon, na Trácia, e agarrando montanhas, lançava-as contra o deus. Este, interpondo-lhes seus raios, as atirava contra o adversário, ferindo-o profundamente. As torrentes de sangue que corriam do corpo de Tifão deram nome ao monte Hêmon, uma vez que, em grego, sangue se diz (haima). O filho de Geia fugiu para a Sicília, mas Zeus o esmagou, arremessando sobre ele o monte Etna, que até hoje vomita suas chamas, traindo lá embaixo a presença do monstro: essas chamas provêm dos raios com que o novo soberano do Olimpo o abateu.

Mitologia - Mitologia Grega
Cultura - , 
2/7/2021 1:08:07 PM | Por Roque Laraia
A Cultura Tem uma Lógica Própria

A participação do indivíduo em sua cultura é sempre limitada; nenhuma pessoa é capaz de participar de todos os elementos cie sua cultura. Este fato é tão verdadeiro nas sociedades complexas com um alto grau dc especialização, quanto nas simples, onde a especialização refere-se apenas às determinadas pelas diferenças de sexo e de idade. Com exceção dc algumas sociedades africanas — nas quais as mulheres desempenham papéis importantes na vida ritual e econômica —, a maior parte das sociedades humanas permite uma mais ampla participação na vida cultural aos elementos do sexo masculino. Grande parte cia vida ritual do Xingu, por exemplo, é interditada às mulheres.

Estas não podem ver as flautas Jacui e as que quebram esta interdição sofrem o risco de graves sanções. Em alguns segmentos de nossa sociedade, o trabalho fora de casa é considerado inconveniente para o sexo feminino. Como já discutimos este tema na primeira parte deste trabalho, quando tratamos dos determinismos biológicos, vamos nos limitar a uma discussão mais ampla das restrições decorrentes das categorias etárias.

E óbvio que a participação de um indivíduo em sua cultura depende de sua idade. Mas é necessário saber que, esta afirmação permite dois tipos de explicações: uma de ordem cronológica e outra estritamente cultural.

Existem limitações que são objetivamente determinadas pela idade: uma criança não está apta para exercer certas atividades próprias de adultos, da mesma forma que um velho já não é capaz de realizar algumas tarefas. Estes impedimentos decorrem geralmente da incapacidade do desempenho de funções que dependem da força física ou agilidade, como as referentes à guerra, à caça etc. Entre outras funções podemos incluir as que dependem do acúmulo de uma experiência obtida atravcs de muitos anos cle preparação.

Torna-se fácil entender por que estas são interditadas às crianças e aos jovens c reservadas às pessoas maduras, como certos cargos políticos etc.

No primeiro tipo de impedimento etário as razões parecem ser bastante evidentes, o que não ocorre com o segundo tipo, quando tratamos das razões determinadas culturalmente.

Por que um jovem aos 18 anos pode votar, ter um emprego, ir à guerra, se não pode casar, manipular os seus bens financeiros antes dos 21 anos sem a autorização paterna?

Por que um homem necessita ter 35 anos para ser um senador? Qual o argumento para impedir o acesso ao mesmo cargo para um homem de 34 anos? Por que uma jovem com 18 anos pode assistir a um determinado filme e uma outra com 17 anos, 11 meses e 20 dias não o pode? Por que um assassino com exatamente 18 anos pode ir a julgamento e outro com um dia a menos de vida recebe um tratamento diferenciado?

Estas e outras questões estão relacionadas com a determinação do limite entre as classes etárias, ou seja, como separar objetivamente adolescentes de adultos, sem incorrer em algum tipo de arbitrariedade?

Os grupos tribais utilizam métodos mais evidentes para estabelecer esta distinção: uma moça é considerada adulta logo após a primeira menstruação, podendo a seguir exercer plenamente todos os papéis femininos. Em contrapartida, pode-se afirmar que é evidente que uma jovem de 12 ou 13 anos não está ainda adequadamente socializada para exercer esses papéis numa sociedade complexa. Mas mesmo numa sociedade simples a determinação idêntica para um jovem do sexo masculino não parece ser tão fácil. Provavelmente depende do desempenho individual dos candidatos a um novo status.

Mas, qualquer que seja a sociedade, não existe a possibilidade de um indivíduo dominar todos os aspectos de sua cultura. Isto porque, como afirmou Marion Levy Jr.,1 “nenhum sistema de socialização é idealmente perfeito, em nenhuma sociedade são todos os indivíduos igualmente bem socializados, e ninguém é perfeitamente socializado.

Um indivíduo não pode ser igualmente familiarizado com todos os aspectos de sua sociedade; pelo contrário, ele pode permanecer completamente ignorante a respeito de alguns aspectos”. Exemplificando: Einstein era um gênio na física, um medíocre violinista e, provavelmente, seria um completo desastre como pintor.

O importante, porém, é que deve existir um mínimo de participação do indivíduo na pauta de conhecimento da cultura a fim de permitir a sua articulação com os demais membros da sociedade. Todos necessitam saber como agir em determinadas situações e, também, como prever o comportamento dos outros. Somente assim é possível o controle de determinadas ações. Apesar disso tudo há sempre o risco de perda do controle da situação, porque "em nenhuma sociedade todas as condições são previsíveis e controladas”.

De fato, os indivíduos podem perder o controle da situação, embora na maioria dos casos isto não seja verdadeiro.

E não o é porque o conhecimento mínimo referido abrange um certo número de padrões de comportamento que são regulares e, portanto, permitem a previsão.

Todos os membros de nossa sociedade sabem que uma forma cortês de solicitar algum tipo de lavor é a de preceder o pedido com a expressão “por favor”. Sabem também da necessidade de agradecer formalmente o atendimento conseguido com as palavras “muito obrigado”, sob a pena de não mais conseguir nada de seu interlocutor se esquecerem de pronunciar estes simples vocábulos. Estas palavras, pois, fazem parte de nossos padrões de comportamento e ignorá las significa o rompimento de uma regra e, consequentemente, a impossibilidade de prever a resposta. Assim, a solicitação de um favor cm termos imperativos pode provocar, entre outras, as seguintes ações: o interlocutor atende ao pedido; finge não ouvir o pedido; nega em termos ríspidos atender ao pedido; ou retruca com um forte palavrão. Estas alternativas somente ocorreram porque foram rompidos padrões de comportamentos que asseguravam a possibilidade de uma previsão.

Tomemos, ainda como exemplo, os nossos termos de parentescos. Se uma pessoa denomina outra dc pai, ela espera um determinado tipo de comportamento que geralmente a beneficia. Daí a expressão popular: “negócio de pai para filho”. As pessoas sabem como agir e podem prever a ação do outro, mesmo quando diante de um pai com o qual nunca teve um contato anterior.

Um candidato a um emprego sabe que o empregador dispõe apenas cie duas alternativas básicas: conceder-lhe o lugar ou não. A surpresa ocorrerá, apenas, se o empregador agir de maneira inusitada, não prevista pelas duas possibilidades de respostas.

Nem sempre, porém, a falta de comunicação acontece porque um padrão de comportamento foi quebrado, mas porque às vezes os padrões não cobrem todas as situações possíveis. Tal fato ocorre em períodos de mudança cultural e, principalmente, quando estes são determinadas por forças externas, quando surgem fatos inesperados e de difícil manipulação.

São situações sem precedentes e que, portanto, não são controladas pelo conjunto de regras ordinárias. Nem sempre os indivíduos envolvidos conseguem utilizar sua tradição cultural para contorná-las sem provocar conflitos.

Alan Beals transcreve um texto de Robert Murphy, acerca dos índios Munduruku, localizados no rio Madeira, que serve como exemplo para este tipo de situação: Isto ocorreu ao jovem chefe Munduruku, quando chamado Biboi. Ele era o filho de um chefe, mas tinha sido

educado por um comerciante brasileiro e se sentia superior a seus companheiros. Foi o comerciante que o nomeou capitão de Cabitutu. O papel de capitão consistia em servir de intermediário entre o grupo e as necessidades de comercialização do caucho por parte do comerciante. Em Cabitutu, Biboi não tinha parentes e era considerado muito jovem e por isto tinha menos prestígio que muitos homens cio povoado. No intento de fortalecer sua posição, Biboi casou com uma viúva vários anos mais velha que ele. Considerando a mulher pouco atraente, trouxe para casa uma segunda mulher.

A primeira esposa não gostou e atacou a jovem. Os irmãos da primeira obrigaram Biboi a despedir a segunda esposa e afastá-la do povoado. Biboi, então, estabeleceu a jovem em Cabruá, o povoado de seu pai.

Tendo deixado a sua formosa esposa num lugar seguro, como a casa cie seu pai, Biboi voltou a Cabitutu para arranjar as coisas e acalmar os descontentes. Mas continuou com as suas maneiras arrogantes e exigentes, e assim os sentimentos do povoado foram se inflamando sem que ele recebesse nenhum apoio de sua primeira esposa e de seus parentes. Entre eles foi crescendo cada vez mais a determinação dc exterminá-lo. Enquanto isto, a pessoa de sua jovem esposa não estava tão segura como Biboi acreditava. Seu esposo estava ausente e ela era uma moça desacompanhada; a sua retidão não loi suficiente para fazer frente aos homens de Cabruá. Breve todos os homens do povoado, com exceção daqueles que eram afetados pela proibição do incesto, desfrutaram os favores da jovem esposa de Biboi...

O equilíbrio do poder e da moral favorecia os oponentes de Biboi, e o esforço dos que o apoiavam tornou-se cada vez mais difícil em virtude do fato de que Biboi havia quase deixado de ser uma pessoa social, as regras já não se aplicavam a ele. Nós mesmos deixamos o lugar antes de que caísse o pano deste pequeno drama social, mas já se podia prever a conclusão. Esta se tornou mais evidente após a nossa saída, quando Caetano caiu de uma palmeira e ficou gravemente ferido durante vários dias. Sabendo que o povo de Cabitutu lhe daria a morte voltou imediatamente a Cabruá e ali permaneceu até que o ancião conseguisse recuperar-se. Durante este período Biboi se acercou de mim e disse: “Sabe, se meu pai morrer, partirei desta terra e viverei na margem do rio Tapajós.” Perguntei por que ele se ia, Biboi respondeu: “Porque é muito bonito lá.” Biboi sabia que a sua vida como membro dos Munduruku estava terminada. Biboi é um homem que não se sente em nenhuma cultura. Não soube manejar as regras para viver bem na sociedade Munduruku — ele se considerava muito superior a eles e acreditava poder ensiná-los. Estava colocado em um status que não lhe pertencia e onde não podia ter êxito já que não contava com o apoio de parentes. No final teve que escolher entre a morte ou o exílio.

O exemplo descrito acima mostra o que pode ocorrer com uma pessoa que, por força cie uma socialização inadequada, não conhece as regras de seu grupo. Embora nenhum indivíduo, repetimos, conheça totalmente o seu sistema cultural, é necessário ter um conhecimento mínimo para operar dentro do mesmo. Além disto, este conhecimento mínimo deve ser partilhado por todos os componentes da sociedade de forma a permitir a convivência dos mesmos.

Um médico pode desconhecer qual a melhor época do ano para o plantio de feijão, um lavrador certamente desconhece as causas de certas anomalias celulares, mas ambos conhecem as regras que regulam a chamada etiqueta social no que se refere às formas de cumprimentos entre as pessoas de uma mesma sociedade.

Ciências humanas - Antropologia
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2/7/2021 11:39:07 AM | Por Lawrence Soundhaus
Antecedentes da Primeira Guerra Mundial

O historiador estadunidense Laurence Lafore (1917-85) caracterizou a Europa no período pré-guerra como um “barril de pólvora” de tensões, das quais a mais complicada era a ameaça sérvia ao Império Austro-Húngaro. Havia a Alsácia-Lorena: caso se iniciasse uma guerra entre Alemanha e França, esta só aceitaria a paz se a Alsácia-Lorena fosse devolvida [...] [e] a Alemanha jamais admitiria a perda das províncias. Havia a rivalidade naval anglo-germânica: declarada a guerra, a Grã-Bretanha não aceitaria a paz, a menos que a ameaça de uma marinha alemã poderosa fosse permanentemente extirpada. Havia Constantinopla: depois de deflagrada a guerra, o governo russo não aceitaria a paz antes de [...] satisfazer a ambição que há séculos tinha por Constantinopla. Havia o cerco à Alemanha: iniciada a guerra, o país só acataria [...] a paz se o cerco fosse rompido, o que implicava o esmagamento da França e da Rússia [...]. Mas [...] havia um problema inegociável e incontrolável, suscitado por ameaças à integridade do Império Austro-Húngaro. A composição da monarquia dos Habsburgos a deixava em posição mortalmente vulnerável às atividades dos sérvios; ao mesmo tempo, dificultava a eliminação dessas atividades por meio de ação rápida e resoluta [...]. Foi esse problema o causador daquela que veio a ser a Primeira Guerra Mundial.

Fritz Fischer (1908-99) notabilizou-se como o primeiro acadêmico alemão importante a atribuir à Alemanha a culpa pela eclosão da guerra, e também como estudioso socialista defensor da primazia das considerações internas nas decisões de política externa, particularmente as da Alemanha pré-guerra: O objetivo [alemão] era consolidar a posição das classes dominantes com uma bem-sucedida política externa imperialista; na verdade, esperava-se que uma guerra resolvesse as crescentes tensões sociais. Ao envolver as massas no grande conflito, as partes da nação que até então se mantinham apartadas seriam integradas ao Estado monárquico. Em 1912, em todo caso, a crise interna era evidente [...]. O dinamismo com que, aliada a componentes internos, a liderança imperial tinha iniciado em 1897 uma “política mundial” vigorou sem interrupção até 1914, já que a esperança de então era de uma “Grande Alemanha” e a preservação do sistema conservador. As ilusões criadas em 1897 levaram às ilusões de 1914

Perspectivas: as origens da guerra

Tão logo os canhões silenciaram em novembro de 1918, teve início a batalha a respeito das origens da Primeira Guerra Mundial. Governos ávidos por defender as decisões que tinham tomado no verão de 1914 publicaram compilações de documentos oficiais, editados de modo a apresentar suas ações sob a luz mais favorável possível, ao passo que historiadores de todos os países lançaram-se à tarefa de explicar as causas do conflito. A decisão dos vitoriosos de incluir no Tratado de Versalhes uma “cláusula de culpa” refletia a convicção, unânime em 1919, de que a Alemanha tinha sido responsável pela guerra. Esse veredicto foi rejeitado por praticamente todos os acadêmicos alemães e, durante a década de 1920, por um amplo espectro de historiadores revisionistas que eximiram a Alemanha e culparam o sistema de alianças e as outras grandes potências, consideradas em conjunto ou individualmente. Se o “antirrevisionismo” da década de 1950 voltou a imputar aos alemães a maior parcela de responsabilidade, os estudiosos das décadas seguintes exploraram mais a fundo o papel de cada um dos beligerantes, suas políticas internas, alinhamentos diplomáticos e objetivos de guerra em 1914. Fatores gerais como nacionalismo e outras ideologias, a crença que os militares depositavam na guerra de ofensiva e as corridas armamentistas pré-guerra, também foram alvo de escrutínio mais detalhado.

A crise que resultou na eclosão da Primeira Guerra Mundial ocorreu no âmbito de um sistema de relações internacionais cujas raízes remontavam à Paz de Westfália (1648), ao final da Guerra dos Trinta Anos. O grupo de quatro a seis países mais poderosos da Europa afirmava ou rompia alianças em busca de seus próprios interesses, no âmbito de um equilíbrio geral de poder, mas, em períodos de paz, esses países raramente se dividiam em campos armados hostis entre si. Isso mudou na década anterior à deflagração da Primeira Guerra Mundial, quando Grã-Bretanha, França e Rússia formaram a Tríplice Entente, como resposta à Tríplice Aliança firmada entre Alemanha, Império Austro-Húngaro (ou Áustria-Hungria) e Itália. A Tríplice Aliança, acordo militar estabelecido em 1882, figurava em 1914 como a mais longeva aliança multilateral em tempos de paz na história da Europa, perdurando apesar da vigorosa e recíproca animosidade entre Áustria-Hungria e Itália, porque ambas consideravam indispensável a amizade com a Alemanha – no caso da primeira, contra a Rússia; para a última, contra a França. A Tríplice Entente, em contraste, tinha sido formada por três acordos separados – a convenção militar e Aliança Franco-Russa (1892-94), a Entente Cordiale Anglo-Francesa (1904) e a Entente Anglo-Russa (1907) – todas motivadas pelo temor em relação ao crescente poderio alemão.

A tríplice aliança: Alemanha, império austro-húngaro e Itália

A Alemanha alcançou a unificação política sob os auspícios da Prússia graças à liderança de Otto von Bismarck, cujas vitoriosas guerras contra Dinamarca (1864), Áustria (1866) e França (1870-71) levaram à criação do Segundo Reich, tendo como imperador o rei prussiano Guilherme I. Se por um lado anexou territórios da Dinamarca (Schleswig-Holstein) e da França (Alsácia-Lorena), Bismarck fez da Áustria (a partir de 1867, Áustria-Hungria) o aliado mais próximo da Alemanha e o alicerce de um sistema de alianças pós-1871 cujo propósito era manter a França isolada.

A constituição da Alemanha Imperial dava sustentação a um chanceler forte, que prestava contas ao imperador, e não a uma maioria legislativa.

Bismarck criou o cargo para si mesmo e nele se manteve de 1871 a 1890; ao longo dos 28 anos seguintes, a função foi exercida por sete homens menos competentes, dos quais os mais notáveis foram Bernhard von Bülow (1900-9), que antes de se tornar chanceler atuou como ministro do Exterior e Theobald von Bethmann Hollweg (1909-17). O Reichstag avaliava projetos de lei apresentados pelo chanceler por meio da Bundesrat, câmara superior composta por representantes nomeados pelos governos dos estados germânicos, mas não podia legislar. Equilibrando esses aspectos autoritários, a Constituição de 1871 fez da Alemanha a segunda potência europeia depois da França a realizar eleições com base no sufrágio universal masculino. Uma vibrante cultura política incluía seis grandes partidos, dos quais o Partido Social Democrata (SPD, na sigla em inglês) e o Partido Católico de Centro, precursor da União Democrata Cristã (CDU, na sigla em inglês) pós-Segunda Guerra Mundial, teriam importância duradoura. Entre 1890 e 1913, a população alemã aumentou de 49 milhões para 67 milhões de habitantes e as áreas urbanas duplicaram de tamanho. O Produto Interno Bruto (PIB) per capita ficava atrás apenas de Estados Unidos, Grã-Bretanha e domínios britânicos e a produção industrial do país ultrapassava a da Grã-Bretanha. Do ponto de vista político, essas mudanças fortaleceram o SPD, partido da predileção da maior parte da crescente classe operária do país, que ganhou força ainda que a constituição de Bismarck não tenha promovido uma nova divisão distrital para dar conta das mudanças na população. Na eleição de 1912, o SPD obteve 35% do voto popular – duas vezes mais que qualquer outro partido – e assegurou 27% das cadeiras do Reichstag. A ascensão do SPD preocupava o imperador Guilherme II e os líderes conservadores, porque o partido apoiava reformas que fariam da Alemanha uma verdadeira monarquia constitucional e também se opunha à agressiva política externa do país, votando sistematicamente contra o investimento de recursos no exército mais poderoso e na segunda maior frota naval da Europa. A esquadra mais prejudicou do que beneficiou os interesses estratégicos da Alemanha, impelindo a Grã-Bretanha a se bandear para o lado de seus tradicionais rivais, França e Rússia, além de consumir mais de um terço do orçamento destinado à defesa nacional. Somente em 1913, o Reichstag reverteu essa tendência, aprovando um aumento de 18% do contingente em períodos de paz do exército alemão, que agora passava a contar com 890 mil homens.

Depois que a derrota para a Prússia em 1866 deu fim a seu papel tradicional nas questões alemãs, o Império Austríaco transformou-se na Monarquia Dual da Áustria-Hungria. Daí por diante, Francisco José (imperador desde 1848) comandou um Estado de estrutura singular, com política externa comum e exército e marinha únicos, mas com dois primeiros-ministros e gabinetes separados, com parlamentos em Viena e Budapeste. Áustria e Hungria mantinham suas próprias leis, cidadania e militares da reserva independentes, e renegociavam suas relações econômicas a cada dez anos. Esse “compromisso de 1867” tinha como intuito fomentar a paz interna no multinacional domínio habsburgo, ao elevar os húngaros étnicos (magiares) a um status de igualdade com os austríacos alemães tradicionalmente dominantes; porém, uma vez que estes últimos compunham apenas 25% dos súditos de Francisco José e os magiares respondiam por 20% da população, a medida mais excluía do que incluía. Para a Áustria-Hungria, mais do que para qualquer outra potência europeia, política interna e política externa eram inextricavelmente indissociáveis. O PIB per capita da Monarquia Dual ficava atrás de todas as potências europeias a não ser a Rússia, e metade de suas transações econômicas era realizada com a Alemanha, o que deixava a Áustria-Hungria na desconfortável posição de aliado dependente. Mas ambas as nacionalidades dominantes apoiavam os laços estreitos com o Segundo Reich (o que os austríacos alemães viam como algo quase tão bom quanto fazer parte da Alemanha; já para os magiares era a melhor garantia contra uma invasão russa a partir do leste). O movimento paneslavista, apoiado pela Rússia, desfrutava de grande simpatia junto à intelligentsia das nacionalidades eslavas que compunham quase metade da população total de 52 milhões de habitantes (em 1913), e a presença de milhões de italianos, romenos e sérvios no Império afetava suas relações com esses países vizinhos. Cada uma das metades do Império encarava à sua própria maneira o problema da nacionalidade, mas nem uma nem outra era capaz de oferecer muita esperança para o futuro. A Áustria dava a todas as suas nacionalidades acesso ao Parlamento via sufrágio universal masculino, instaurado em 1907, mas acabou tendo 22 partidos no Reichsrat de 1911, o que impossibilitava os primeiros-ministros de formarem uma maioria para governar. Em contraste, a política húngara de restrição ao voto mantinha o poder nas mãos dos magiares e, exceto por um número fixo de assentos reservados aos croatas, o restante da população não contava com representação política. Francisco Ferdinando, sobrinho e herdeiro do já idoso Francisco José, esperava reduzir a dependência da Áustria-Hungria em relação à Alemanha e reorganizar o Império para dar poderes aos eslavos do sul como terceira força política.

Essas ideias granjearam-lhe a inimizade de muitos austríacos alemães, de quase todos os magiares e daqueles eslavos (especialmente os sérvios) que temiam uma revitalização do Império. O exército austro-húngaro não tinha muita popularidade junto ao público e nem entre os políticos, e, como resultado, a Monarquia Dual tinha o menor exército per capita entre as potências europeias – um contingente em tempos de paz de apenas 400 mil homens. Por outro lado, uma marinha de guerra pequena, mas respeitável – uma das instituições verdadeiramente integradas do Império – desfrutava de melhor reputação e, por volta de 1912, recebia mais de 20% do total do orçamento destinado à defesa.

A Itália alcançou a unidade nacional na mesma década que a Alemanha; o reino da Sardenha-Piemonte desempenhou o mesmo papel da Prússia e o monarca sardo-piemontês Vítor Emanuel II tornou-se rei. As semelhanças acabam aí. O correspondente italiano de Bismarck, Camilo Benso di Cavour, contou com a França na guerra de 1859 para expulsar a Áustria de boa parte dos territórios do norte da Itália e com os revolucionários de Giuseppe Garibaldi para assegurar, no sul, o controle de Nápoles e da Sicília. Quando Cavour morreu, pouco depois da proclamação da Unificação em 1861, Veneza ainda estava em mãos austríacas e o papa ainda reinava em Roma. Seus sucessores adquiriram Veneza aliando-se à Prússia contra a Áustria em 1866 – a despeito da derrota para a Áustria em terra e mar – e anexaram Roma após a derrota do protetor do papa, Napoleão III, para a Prússia, em 1870. Depois disso, os italianos ficaram pouco à vontade com relação a sua nada gloriosa unificação. Até sua morte, em 1882, o republicano Garibaldi foi o mais idolatrado dos heróis do país, mas, felizmente para a monarquia, participou apenas por um breve período do cenário político italiano, em meados da década de 1870, apesar de ter sido eleito para o Parlamento por eleitores de diversos distritos. O Partido Liberal, centrista, dominou o Parlamento de 1870 a 1914; a maior parte dos republicanos, caso de Garibaldi, aceitou com relutância a monarquia constitucional italiana ao estilo britânico, ao passo que muitos católicos conservadores deram ouvidos ao apelo do papa Pio IX para protestar contra a anexação de Roma, boicotando totalmente a política italiana. A questão do status do papa vis-à-vis o Estado italiano – impasse que durou até que o Tratado de Latrão de Mussolini estabelecesse a Cidade do Vaticano – também afetava o reino em termos internacionais. Visitantes oficiais de países com população católica numerosa, incluindo aliados da própria Itália, Alemanha e Áustria-Hungria, tinham de ser hospedados em outras cidades que não Roma. Políticos italianos ambiciosos, que viam a França como o principal rival de seu país, defenderam a Tríplice Aliança e, depois de 1882, formularam políticas navais e coloniais que dependiam do apoio diplomático alemão, aceitando como parte da barganha a aliança com os austríacos e que a Áustria mantivesse a posse de territórios italianos étnicos nos Alpes (o Tirol do Sul ou Trentino) e no mar Adriático. O norte industrializado da Itália impulsionou o PIB per capita a um nível significativamente mais alto do que o da Áustria-Hungria, mas o país era o menos populoso entre as grandes potências (35 milhões de habitantes em 1913) e o de menor poderio bélico. Na verdade, com apenas 250 mil homens, o contingente italiano era o menor entre as grandes potências da Europa à exceção da Grã-Bretanha, e todas as outras, a não ser a Áustria-Hungria, tinham marinhas de guerra mais fortes. A Itália perdeu a fé na Tríplice Aliança depois de 1900, quando a deterioração das relações anglogermânicas fez pairar o espectro da guerra com o Império Britânico, mas, às vésperas da Primeira Guerra Mundial, a Guerra Ítalo-Turca (1911- 1912) prejudicou as relações da Itália com os três membros da Tríplice Entente e resultou na renovação da Tríplice Aliança em 1912.

A Tríplice entente: Grã-bretanha, França e Rússia

Sob a Pax Britannica da Era Vitoriana, a Grã-Bretanha atuara como potência hegemônica global, afirmando a posse de um quarto da superfície terrestre do planeta, preponderando nos oceanos com a maior frota naval do mundo e dominando a economia com um setor industrial cuja produção superou, durante anos, a de todos os outros países combinados. Confiante em seu “isolamento esplêndido”, a Grã-Bretanha também exercia em larga medida o que os especialistas em relações internacionais chamam de soft power, ou “poder suave”, não apenas por conta de seu sistema parlamentar muito admirado e seus conceitos de direitos individuais, mas também graças a uma tremenda influência sobre a cultura mundial, tanto no nível de elite como em suas formas mais populares. Essas conquistas, tomadas em conjunto, suscitaram uma reação internacional que incluía uma complexa mistura de admiração, inveja e, em alguns casos, franca e total hostilidade. No plano internacional, a Guerra Anglo-Bôer (1899-1902) salientou o isolamento da Grã-Bretanha, para desconforto dos líderes britânicos, que, depois disso, rapidamente se mobilizaram para estabelecer uma aliança com o Japão (1902), a Entente Cordiale com a França e a reaproximação com a Rússia (1907) – estes dois últimos acordos lançaram as bases para a Tríplice Entente. O PIB per capita da Grã-Bretanha continuava sendo o maior da Europa, mas tinha ficado para trás na comparação com os Estados Unidos, e sua envelhecida base industrial tinha sido sobrepujada pela Alemanha em áreas fundamentais como a produção de aço. Contudo, inovações da Marinha Real como o navio de guerra HMS Dreadnought (couraçado) (1906) e modelos de cruzadores de batalha permitiram que a Grã-Bretanha enfrentasse com êxito a ameaça naval alemã. O governo liberal de Herbert Asquith (primeiro-ministro de 1908 a 1916) financiou a expansão naval e um ambicioso programa de bem-estar social. Em 1909, o então chanceler do Tesouro (cargo equivalente ao de ministro das Finanças) David Lloyd George introduziu o “Orçamento do Povo”, que propunha uma inédita cobrança de impostos dos ricos. A medida não foi aprovada pela Câmara dos Lordes, majoritariamente conservadora, e os liberais revidaram com a Lei Parlamentar de 1911, eliminando o poder de veto dos lordes. A partir daí, todo e qualquer projeto de lei que fosse aprovado pela Câmara dos Comuns em três sessões consecutivas tornava-se lei, o que abriu caminho para a resolução da velha questão do Home Rule (governo autônomo) da Irlanda (onde viviam quase 5 milhões do total de 46 milhões de habitantes da Grã-Bretanha pré-guerra), que os liberais havia muito defendiam e ao qual os conservadores se opunham. O Partido Trabalhista, terceira força emergente na política britânica, apoiou os liberais nas questões da reforma e da Irlanda, mas nenhum dos três partidos teve a coragem de encampar o sufrágio feminino, cujos proponentes passaram, depois de 1910, a adotar táticas cada vez mais violentas. Às vésperas da guerra, o governo autônomo foi finalmente aprovado em forma de lei e entrou em vigor em setembro de 1914. Mas com a eclosão da guerra, os trâmites foram suspensos por Asquith enquanto durasse o conflito, medida que enfureceu a maioria católica da Irlanda e fortaleceu os revolucionários dentro dela. A fim de vencer a corrida naval com a Alemanha, entre 1907 e 1913 a Grã-Bretanha aumentou em 57% os gastos com a marinha de guerra; no mesmo período, os gastos com o exército de 200 mil voluntários subiram apenas 6%. O relativo declínio da Grã-Bretanha na Europa aumentou a importância estratégica de seu império.

Em 1914, a França era provavelmente a mais vulnerável das grandes potências – exceção feita à Áustria-Hungria –, mas sua parceria cada vez mais intensa com a Grã-Bretanha sob a Entente Cordiale, a rápida recuperação da Rússia após a derrota na Guerra Russo-Japonesa e a reaproximação anglo-russa de 1907 tinham melhorado em muito sua situação estratégica. O isolamento que a França enfrentara durante a Guerra Franco-Prussiana (1870-1871) e a oficialização da Convenção Militar Franco-Russa (1892) eram coisa do passado. A Terceira República, estabelecida após a derrota de Napoleão III em Sedan, em 1870, contava com uma legislatura forte e um presidente fraco e eleito por via indireta, sacrificando a estabilidade para se poupar do destino das duas repúblicas francesas anteriores (que deram lugar às monarquias napoleônicas em 1804 e 1852). Entre 1871 e 1914, o cargo de primeiro-ministro mudou de mãos 49 vezes. Na política externa, a Terceira República foi revolucionária, pelo menos no sentido revisionista, no que tangia ao seu posicionamento acerca da Alsácia-Lorena. Nenhum político francês que admitisse publicamente aceitar a anexação das províncias por Bismarck tinha chance de ser eleito. O conservador exército francês estava profundamente abalado pelo Caso Dreyfus (1894-1906), em que o capitão Alfred Dreyfus, o único oficial judeu do exército, foi acusado de repassar segredos aos alemães. O caso revelou um profundo abismo político e social entre católicos conservadores e secularistas liberais; estes, triunfantes após a exoneração e prisão de Dreyfus, jogaram no lixo a Concordata de Napoleão de 1801, obtendo assim a separação entre Igreja e Estado, e fizeram pressões exigindo um exército mais igualitário, com dois anos de serviço militar obrigatório. Essas medidas ajudaram a provocar uma reação conservadora nas eleições legislativas de 1910, e a crise franco-germânica em função do Marrocos, no ano seguinte, prenunciou um “renascimento nacionalista”. Voltou ao primeiro plano a questão da Alsácia-Lorena, personificada por Raymond Poincaré (presidente de 1913 a 1920), nascido na Lorena e para quem o destino das duas províncias perdidas era a base de um antigermanismo visceral. Entre as potências europeias, a França tinha o terceiro maior PIB per capita, pouca coisa atrás da Alemanha, mas, por conta de tendências demográficas, os franceses não estavam em posição de lutar sozinhos contra os alemães, em parte porque a França foi o primeiro país cuja população tinha praticado em ampla escala o controle de natalidade. No final do século XIX, a França tinha a menor taxa de natalidade da Europa e, em 1913, sua população estava na casa dos 40 milhões de habitantes, apenas dois milhões a mais do que em 1890. Um ano antes da eclosão da guerra, a França aumentou seu contingente de tempos de paz para 700 mil homens (a Alemanha tinha 890 mil), mas recorrendo a um período de serviço militar obrigatório de três anos (na Alemanha, eram dois) e aumentando os gastos com a defesa para 36% do orçamento nacional (na Alemanha, eram 20%). Os aliados da França não apoiariam uma tentativa de recuperar a Alsácia-Lorena por meio de uma guerra violenta, mas, em caso de conflito generalizado, nem a França nem seus aliados aceitariam a paz se as províncias continuassem em mãos alemãs.

A Rússia czarista e a França republicana, em termos ideológicos os mais improváveis dos parceiros, às vésperas da Primeira Guerra Mundial tinham a aliança mais firme e os laços mais estreitos. A Rússia entrou no século XX como a última monarquia absolutista do continente, bem como a mais atrasada economia europeia. O país estava se industrializando rapidamente, graças, em parte, a empréstimos da França, mas 40% de seu comércio exterior era realizado com a Alemanha, o maior importador dos grãos russos. Em termos de PIB per capita, a Rússia ficava atrás até mesmo – e por ampla margem – da Áustria-Hungria, e apenas 7% dos 175 milhões de súditos do czar Nicolau II viviam em áreas urbanas. Poucos camponeses tinham prosperado após a abolição da servidão em 1861, e o descontentamento do campesinato, somado ao desagrado da pequena e sobrecarregada classe operária do país, levou a uma revolução contra Nicolau em 1905, durante a guerra perdida contra o Japão. O czar salvou o trono aceitando uma monarquia constitucional limitada. O primeiro-ministro russo (como o chanceler alemão) só precisava responder por suas ações ao monarca; já o Parlamento, ou Duma, convocado pela primeira vez em 1906, foi eleito com tantas restrições de poder e limitações de autoridade que deixava sem representação a maioria dos camponeses e dos operários. Nicolau encontrou seu homem forte em Piotr Stolypin (primeiro-ministro de 1906 a 1911), cujo assassinato em 1911 deixou um vácuo jamais preenchido. Em 1907, a Rússia deu fim à sua longeva rivalidade com a Grã-Bretanha em um acordo que delineava suas respectivas esferas de interesse desde a Pérsia, passando pela Ásia Central até o Extremo Oriente. Na esteira da sua derrota para o Japão, a entente russa com a Grã-Bretanha deixava apenas os Bálcãs como rota para futura expansão. O pan-eslavismo russo despertou sentimentos nas nações eslavas emergentes dos Bálcãs – Sérvia, Montenegro e Bulgária –, que tinham em comum a religião Ortodoxa Oriental russa. A Rússia também tinha amigos na Romênia e na Grécia, nações ortodoxas, mas não eslavas, e toda a região a admirava por seu papel histórico como principal inimiga da Turquia otomana. Os pan-eslavistas russos também instigaram revolucionários entre as nacionalidades eslavas que viviam na Áustria-Hungria. A Monarquia Dual retaliou oferecendo refúgio e apoio aos revolucionários russos, incluindo Lenin, Trotski, Stalin e boa parte dos líderes bolcheviques de 1917, todos eles vivendo no Império Austro-Húngaro em 1914, bem como o socialista polonês Józef Pilsudski, que comandou uma legião polonesa ao lado das tropas austro-húngaras na fronteira com a Rússia pouco depois do início da guerra. O exército russo de 1,3 milhão de homens, o maior do mundo, tinha sido destroçado por motins durante a guerra com o Japão, e a maior parte das embarcações de guerra tinha sido afundada. Exército e marinha se recuperaram em pouco tempo, embora o país ainda não dispusesse da base industrial para mantê-los adequadamente. Em 1914, o grau em que Alemanha e Império Austro-Húngaro subestimavam a Rússia talvez tenha sido o maior trunfo estratégico russo.

O Império Otomano e as guerras nos Bálcãs

Desde que os turcos otomanos tomaram Constantinopla e derrubaram o Império Bizantino, em 1453, a região sudeste da Europa conhecida como Bálcãs (o termo faz referência à cordilheira dos Bálcãs no leste da Sérvia e Bulgária) passou a servir como ponte entre a Europa e o Oriente Médio muçulmano. Após seu apogeu de poder em 1683, quando os exércitos do sultão cercaram Viena, os turcos foram progressivamente perdendo força e território: para os austríacos nos Bálcãs ocidentais, para os russos no Cáucaso e em torno do mar Negro e, por fim, para movimentos nacionalistas ou autonomistas locais [às vezes apoiados por várias combinações de grandes potências) no sul e no leste dos Bálcãs e no norte da África. Não sem justificativa, os políticos do século xix apelidaram o Império Otomano de "o doente da Europa”.

Durante o século xix, o Império Otomano buscou se modernizar, mas, sem sua própria revolução industrial, dependia da Europa para obter armas, produtos manufaturados e o conhecimento técnico especializado para a construção de ferrovias e a exploração de suas matérias-primas. Os turcos (como fariam mais tarde chineses e japoneses) concederam humilhantes privilégios extraterritoriais aos especialistas estrangeiros que gerenciavam esses projetos; em 1882, depois que o sultão não conseguiu honrar seus empréstimos, a dívida do Estado otomano passou a ser gerida por europeus. Uma série de sultões usou seus poderes absolutos para reorganizar, nos moldes europeus, suas forças armadas, a burocracia, as escolas e o sistema jurídico. Essas medidas granjearam-lhes a inimizade de poderosos e nobres locais e regionais, líderes islâmicos e devotos muçulmanos em geral, e, em certo sentido, prenunciaram o árduo esforço de alguns governantes do século xx na tentativa de estabelecer Estados mais seculares. A secularização colocou particularmente em risco a lealdade da população muçulmana não turca do Império - de maioria árabe e sunita -, porque, durante séculos, os sultões turcos também tinham sido reconhecidos como califas (sucessores do profeta Maomé) pela maioria sunita dos muçulmanos do mundo. Ironicamente, os otomanos sucumbiram não aos adversários da reforma, mas a defensores frustrados de reformas mais amplas. 0 movimento dos Jovens Turcos, iniciado em 1889, buscou reduzir o sultão a uma figura decorativa e revitalizar o Império como um Estado nacional turco constitucional e secular. Infiltrando-se aos poucos entre os oficiais do exército otomano, os Jovens Turcos tomaram o poder em um golpe, em 1908. Governando como Partido Unionista (Comité de União e Progresso), implementaram um programa que incluía igualdade jurídica para todas as nacionalidades e liberdade de religião, mas também instituíram o turco como língua oficial. Essas medidas ameaçaram as populações árabe e arménia do Império, e especialmente os eslavos na parte dos Bálcãs ainda sob dominação turca.

Por ocasião do golpe dos Jovens Turcos, o mapa dos Bálcãs vinha de um período de estabilidade desde o Congresso de Berlim (1878), que deu reconhecimento formal à independência de Sérvia, Montenegro e Roménia; a Bulgária permanecera autónoma, mas ainda sob suserania otomana, e a Bósnia-Herzegovina ainda era tecnicamente otomana, mas ocupada pela Áustria-Hungria. Temendo uma mudança para pior sob o governo dos Jovens Turcos, em 1908 a Áustria-Hungria anexou a Bósnia-Herzegovina e a Bulgária declarou independência. Os turcos aceitaram essas perdas, mas buscaram manter seus territórios balcânicos remanescentes - Albânia, Macedonia e Trácia -, cobiçados em conjunto ou em parte por Bulgária, Sérvia, Montenegro e Grécia. Depois que os turcos se envolveram na Guerra Ítalo-Turca (1911-1912), esses quatro países formaram a Liga Balcânica e se mobilizaram para a guerra. Em outubro de 1912, quando os turcos fizeram as pazes com os italianos, abrindo mão da Líbia, a Liga declarou guerra ao Império Otomano, iniciando, assim, a primeira Guerra dos Bálcãs. Entre as grandes potências, a Rússia apoiou a Liga e a Áustria-Hungria, os otomanos, e as tensões entre os dois impérios ficaram sérias a ponto de cada um mobilizar parcialmente seus exércitos. Quando a guerra chegou ao fim, em maio de 1913, as grandes potências permitiram que a Sérvia ficasse com Kosovo e a Grécia, com Épiro, mas determinaram que o restante do território albanês fosse cedido para um novo país independente. A Grécia também recebeu Creta e dividiu com a Sérvia a Macedonia, limitando à Trácia os ganhos da Bulgária. Incitados por uma violenta indignação pública por conta do magro espólio, apenas um mês depois os búlgaros declararam guerra à Sérvia e à Grécia, na esperança de assegurar parte da Macedonia. Na breve segunda Guerra dos Bálcãs, os turcos retomaram as hostilidades contra os búlgaros, e Montenegro também interveio, mas a entrada da Roménia (que se mantivera neutra na primeira Guerra dos Bálcãs) se mostrou decisiva, o que levou a Bulgária a abandonar parte de suas conquistas anteriores na Trácia, de modo a se defender contra uma invasão romena desde o norte. No acordo que deu fim ao conflito em agosto de 1913, a Bulgária recuperou a Trácia ocidental e uma rota de saída para o mar Egeu, mas devolveu a Trácia oriental ao Império Otomano e cedeu Dobruja à Roménia. As Guerras dos Bálcãs deixaram a região mais volátil do que nunca. As perdas territoriais otomanas (tanto na Guerra Ítalo-Turca quanto nas Guerras dos Bálcãs) tinham reduzido a população do Império a apenas 21 milhões de habitantes, contra os 39 milhões em 1897, embora os turcos ainda governassem 6 milhões de não muçulmanos.

Em janeiro de 1913, enquanto a primeira Guerra dos Bálcãs perdia força, os Jovens Turcos eliminaram seus adversários remanescentes e estabeleceram um Estado de partido único. Entre os líderes desse segundo golpe estava Ismail Enver Beyefendi (Enver Bey), que se tornou ministro da Guerra aos 31 anos de idade. Seu papel subsequente na reconquista da Trácia oriental na segunda Guerra dos Bálcãs granjeou-lhe o título de paxá, e no início de 1914 ele assumiu o papel de chefe do Estado-Maior. Nessas funções, ele trabalhou em colaboração estreita com o general Otto Liman von Sanders, chefe de uma missão militar alemã instalada em Constantinopla em outubro de 1913. Uma vez que os turcos (pelo menos desde a Guerra da Crimeia) dependiam da proteção britânica e francesa contra a Rússia, o alinhamento dessas potências na Tríplice Entente empurrou o Império Otomano na direção da Alemanha. Nesse ínterim, uma missão naval britânica continuou a assessorar a frota turca, que tradicionalmente fiava-se na Grã-Bretanha para o fornecimento de navios de guerra e arsenal. Em 1914, a marinha de guerra otomana tinha três couraçados em construção em estaleiros britânicos, e o destino desses navios tinha enorme peso nos cálculos do governo unionista.

A Sérvia e os Estados balcânicos às vésperas da guerra

Ainda que, como consequência das Guerras dos Bálcãs, todos os países balcânicos tenham aumentado em termos de território e população, nenhum deles ficou satisfeito com o resultado. 0 Império Austro-Húngaro estava particularmente alarmado, pois a Sérvia dobrou de tamanho, aumentando sua população para 4,5 milhões de habitantes e seu exército - testado na batalha - para 260 mil homens, e ainda cobiçava a Bosnia- Herzegovina (onde os sérvios eram numerosos, em meio a uma população heterogénea) e uma saída para o mar. Desde que, em 1830, a Sérvia obtivera autonomia dentro do Império Otomano, o trono do país se alternava entre a dinastia Karageorgevic, pró-Rússia, e a dinastia Obrenovic, pró-Áustria-Hungria. Esta última retornou ao poder em 1858, e de maneira geral buscou uma política externa que, na visão dos sérvios nacionalistas, não era suficientemente ambiciosa. Por fim, em 1903, o capitão Dragutin Dimitrijevic e um grupo de jovens oficiais do exército assassinaram o rei Alexandre i e alçaram ao trono Pedro Karageorgevic. Aclamado pelo Parlamento sérvio como “o salvador da pátria", o volátil Dimitrijevic ascendeu à patente de coronel em 1914, ampliando sua influência no exército graças às suas funções como professor na academia de guerra sérvia e chefe do serviço de inteligência. Ao mesmo tempo, Dimitrijevic tinha papel ativo na semissecreta Defesa Nacional (Narodna Odbrana), organização fundada em 1908 para minar a Áustria-Hungria. Mais tarde, agindo sob o codinome revolucionário “Apis", dirigiu o grupo terrorista União ou Morte (Ujedinjenje ili Smrt), também conhecido como Mão Negra. Com a dinastia Karageorgevic de volta ao trono, as relações com a Rússia melhoraram bastante, mas os sérvios ficaram profundamente desapontados em 1908-1909, quando os russos não manifestaram apoio a eles depois que a Austria-Hungria proclamou a anexação da Bosnia- Herzegovina. A Sérvia mobilizou seu exército, levando a Austria-Hungria a ordenar uma mobilização parcial de suas tropas, mas quando a Alemanha declarou apoio à Áustria-Hungria, a Rússia recuou. Depois disso, a Sérvia prometeu dar um basta a seus esforços - e às iniciativas de seus cidadãos - de solapar a Áustria-Hungria. Mas não honrou seu compromisso. A bem da verdade, o governo em Belgrado nada fez para impedir a Mão Negra de recrutar e treinar sérvios bósnios para pôr em prática tentativas de assassinato de oficiais habsburgos nas terras eslavas do sul do Império Austro-Húngaro. Após um malogrado ataque ao comandante das tropas da Bosnia em 1910, a Mão Negra baleou e feriu um membro do governo croata em 1912 e o governador da Croácia em 1913.

Durante o mesmo período, o grupo terrorista lançou sobre a política interna da Sérvia uma enorme sombra. Nikola Pasic, cinco vezes primeiro- ministro e cujo Partido Radical governou o país após 1903, compartilhava com Dimitrijevic o ideal de uma Grande Sérvia, que incluía a Bósnia- Herzegovina e as adjacentes terras eslavas do sul, objetivo que só poderia ser alcançado pelo desmembramento da Áustria-Hungria. Pasic temia uma reação aos ataques terroristas, mas se sentia intimidado demais para tomar qualquer medida contra Dimitrijevic e seus comparsas dentro do exército. Na década anterior a 1914, o Partido Radical havia tomado a dianteira da democratização da política sérvia, ao mesmo tempo em que fomentava e explorava sentimentos nacionalistas. Fatidicamente, no verão daquele ano, a crise decorrente do assassinato do arquiduque Francisco Ferdinando, por obra da Mão Negra, coincidiu com uma campanha eleitoral na Sérvia, gerando uma retórica nacionalista que inflamou a opinião pública em todo o país e intensificou o nível de indignação do outro lado da fronteira com a Áustria-Hungria.

Sérvia à parte, Montenegro figurava como o mais antiaustríaco dos países balcânicos. Os montenegrinos cobiçavam uma porção pequena, mas estrategicamente importante, do território da Monarquia Dual, a baía de Cattaro (Kotor), na ponta sul da Dalmácia, base fundamental para a marinha de guerra austro-húngara. Montenegro também se ressentia do papel da Áustria em dar fim à primeira Guerra dos Bálcãs, por meio da qual os montenegrinos se viram forçados a ceder parte de seus ganhos, conquistados a duras penas, ao novo Estado da Albânia. No caso da Bulgária, o ressentimento com o resultado da segunda Guerra dos Bálcãs sobrepujava qualquer sentimento de afinidade pan-eslava e ortodoxa oriental que outrora tinha nutrido por sérvios, montenegrinos e seus protetores russos. Quando da eclosão da guerra em 1914, o rei Fernando i da Bulgária, nascido em Viena na condição de príncipe germânico, estava pendendo para o lado da Alemanha e da Áustria-Hungria. A Roménia, cujo rei Carlos i era primo de Guilherme n, tinha uma aliança com as Potências Centrais que remontava a 1883. Depois da segunda Guerra dos Bálcãs, a província húngara da Transilvânia era o único território predominantemente romeno que não estava sob controle dos romenos, mas o temor que a Roménia sentia em relação à Rússia era maior do que seu desejo pela Transilvânia, e assim o país manteve uma cautelosa

 postura de alinhamento com a Alemanha e Áustria-Hungria. Do mesmo modo, os Hohenzollern tinham uma ligação com a Grécia, cujo rei Constantino i se casara com a irmã de Guilherme n. Depois que a Primeira Guerra Mundial teve início, Constantino se empenhou em manter a neutralidade da Grécia em face da simpatização crescente da população grega em relação à Entente (sentimento que se intensificou ainda mais quando o Império Otomano e a Bulgária se tornaram aliados da Alemanha e Áustria-Hungria). Quando da deflagração da guerra, nenhum país balcânico era mais vulnerável que a Albânia, criada em 1913 na esteira da primeira Guerra dos Bálcãs, porque nem a Áustria-Hungria nem a Itália queriam que a Sérvia adquirisse uma base sólida e uma posição segura no Adriático. No começo de 1914, as grandes potências alçaram ao posto de soberano da Albânia um obscuro rei germânico, Guilherme de Wied, mas seus súditos muçulmanos jamais o aceitaram. Ele reinou por apenas seis meses e abdicou pouco depois da eclosão da guerra, deixando para trás um país caótico, em meio a vizinhos ávidos por mergulhar no abismo na esperança de emergir com seus objetivos nacionalistas alcançados.

O dilema dos países menores da Europa

A divisão das grandes potências europeias entre Tríplice Aliança e Tríplice Entente conferiu aos países menores e mais fracos do restante da Europa um papel relativamente mais importante. A Alemanha jamais perdeu a oportunidade de persuadir esses países a se associarem ao lado que julgava mais forte, o seu próprio - "seguindo o fluxo" ou “pegando carona”, no jargão dos especialistas em relações internacionais -, ao invés de "equilibrarem as forças” aliando-se aos rivais alemães ou permanecendo em cima do muro. Além do Império Otomano e dos países balcânicos, outros menores se sentiram pressionados por uma Alemanha que não conseguia entender por que razão esses países não enxergavam que era mais sábio se aliar - formal ou informalmente - ao Segundo Reich. Quando o rei belga Alberto visitou a Alemanha em novembro de 1913, o próprio Guilherme n deixou isso bem claro, e seu chefe do Estado-Maior, Helmuth von Moltke, o Jovem, foi ainda mais direto e abrupto ao declarar com todas as letras ao adido militar belga que “ofuror teutonicus vai devastar tudo" assim que tiver início uma guerra generalizada.1 Essa intimidação funcionaria muito bem no caso do Terceiro Reich, mas rendeu poucos dividendos para o Segundo. Ainda que os líderes alemães do

 período demonstrassem a mesma arrogância dos líderes da Alemanha nazista um quarto de século mais tarde, a Alemanha Imperial ainda não tinha acumulado o mesmo nível de poder com relação a outros países proeminentes da Europa, o que dava aos países menores ou mais fracos de 1914 um leque de opções viáveis de que não disporiam no final da década de 1930. Além das grandes potências e excetuando os Bálcãs, todos os países europeus não alinhados de 1914 se manteriam neutros durante toda a guerra, com exceção de Bélgica e Portugal.

As grandes potências tinham declarado uma garantia mútua de neutralidade da Bélgica em 1839, quando reconheceram sua separação da Holanda e instalaram no poder a casa germânica Saxe-Coburgo-Gota para reger como monarcas constitucionais. O catolicismo romano era o único vínculo cultural de uma população [de 7,5 milhões em 1914) ferrenhamente dividida entre falantes de francês (os valões) e falantes de alemão (os flamengos). Oterritório do país, todo a oeste do Reno, tinha sido anexado pela França durante as Guerras Napoleônicas, e todos supunham que qualquer futura crise internacional envolvendo a Bélgica seria precipitada por uma invasão francesa. A Bélgica gozava de relações cordiais com a Alemanha, e até o final de junho de 1914 seus líderes ainda temiam mais a França. Nos anos imediatamente anteriores à guerra, a imprensa e a opinião pública belgas criticavam a Grã-Bretanha mais do que qualquer outra grande potência, tomando uma firme posição pró-Bôer durante a Guerra Anglo-Bôer e rejeitando as subsequentes críticas britânicas à má administração belga de suas vastas possessões coloniais no Congo. Entre os trunfos da Bélgica, incluía-se uma próspera economia industrializada, mais do que suficientemente forte para manter o exército de 340 mil homens que o país era capaz de mobilizar sob uma lei de serviço militar compulsório aprovada em 1913.

Em contraste com a Bélgica, Portugal dispunha apenas da proteção britânica graças à mais longeva aliança militar bilateral da história (remontando a 1373), e tinha uma vizinhança relativamente segura. O país fazia fronteira apenas com a Espanha, que vinha em declínio havia séculos e recentemente fora privada de suas colónias remanescentes na guerra contra os Estados Unidos em 1898. País de pobreza crónica, cuja população somava apenas cinco milhões de habitantes, a Espanha alijara do poder sua monarquia numa revolução em 1910 e no ano seguinte adotara uma constituição que tomou como modelo a Terceira República Francesa. A francofilia republicana portuguesa, combinada a um tradicional sentimento pró-britânico, predispunha Portugal a apoiar a Entente. Em 1914, os resquícios do Império Ultramarino português incluíam quatro colónias que seriam estrategicamente importantes na guerra mundial vindoura: os futuros Angola e Moçambique, ambos adjacentes às possessões coloniais na África, e as ilhas atlânticas de Madeira e Açores.

Estados Unidos e Japão

Durante as duas décadas anteriores ao início da Primeira Guerra Mundial, Estados Unidos e Japão juntaram-se ao grupo das grandes potências, antes limitado a países europeus. A estruturação de uma moderna marinha de guerra [a partir de 1883) abriu caminho para uma espetacular vitória na Guerra Hispano-Americana [1898), em que os norte-americanos adquiriram as Filipinas, Guam e Porto Rico. A ação militar estadunidense libertou Cuba do controle espanhol e, em 1903, a diplomacia dos canhões ajudou a libertar o Panamá da Colômbia; ambos tornaram-se dependentes dos Estados Unidos: os cubanos cederam uma base naval na baía de Guantanamo e os panamenhos deram aos norte- americanos o controle da Zona do Canal, onde foi construído o canal do Panamá [1903-1914). Os Estados Unidos também anexaram o Havaí em 1898. Do mesmo modo, o poderio naval japonês facilitou vitórias na Guerra Sino-Japonesa [1894-1895) e na Guerra Russo-Japonesa [1904-1905), cujo resultado foi a anexação de Taiwan, o sul de Sakhalin e esferas de influência na Coreia e na Manchúria, incluindo uma base naval em Port Arthur. A guerra contra os russos confirmou a ascensão do Japão como grande potência, bem como expôs as fraquezas da Rússia. OJapão anexou a Coreia em 1910, e quatro anos depois usou sua aliança britânica como pretexto para entrar na Primeira Guerra Mundial. Em 1905, os japoneses aceitaram que Theodore Roosevelt atuasse como mediador do Tratado de Portsmouth, que pôs ponto final à guerra com os russos, mas depois as relações entre Japão e Estados Unidos azedaram. Embora os dois países fossem aliados na Primeira Guerra, o resultado do conflito os colocou em rota de colisão no Pacífico.

A população dos Estados Unidos saltou de 5 milhões de habitantes em 1800 para 75 milhões em 1900, expansão estimulada por dezenas de milhões de imigrantes europeus. O sistema político descentralizado do país propiciava a seus cidadãos poucos benefícios, mas um grau de liberdade sem paralelos no mundo, pelo menos para os estadunidenses brancos de ascendência europeia. Com base na força de uma população que cresceu mais 30% (chegando a 97 milhões) nos primeiros 13 anos do novo século, em 1913 os Estados Unidos detinham o maior pib per capita do mundo, eram os líderes mundiais em produção agrícola, geravam um terço da produção industrial do mundo e fabricavam mais aço do que os outros quatro maiores produtores mundiais juntos. O crescente poder económico inspirou a autoconfiança, e depois que o Congresso reduziu as tarifas alfandegárias em 1913, o país tornou-se o maior paladino mundial do livre comércio. Quando a guerra foi deflagrada, a frota naval dos Estados Unidos só perdia em tonelagem para a Grã-Bretanha e a Alemanha; porém, seu exército em tempos de paz ainda era bastante pequeno; em 1914, até mesmo a Itália tinha o dobro de soldados. A política norte-americana contava com um estável sistema bipartidário. O Partido Republicano, fundado com base em princípios antiescravagistas, depois da Guerra Civil, se expandiu e tornou-se uma agremiação progressista e favorável às práticas comerciais, ao passo que o Partido Democrata continuou sendo mais forte nos estados predominantemente rurais, em especial no sul do país. De 1860 a 1908, os republicanos venceram todas as eleições presidenciais, exceto duas. Ambos os partidos incluíam isolacionistas, mas em geral os republicanos eram favoráveis a uma marinha de guerra mais forte e defendiam uma política externa mais agressiva, traços fundamentalmente personificados por Theodore Roosevelt (que exerceu a presidência de 1901 a 1909). Presidente do país durante a guerra, o democrata Woodrow Wilson (1913-1921) chegara à Casa Branca quase que por acaso. Sulista de nascimento, sua carreira como professor de Ciência Política levou-o à Universidade de Princeton, da qual acabou se tornando reitor. De lá, assegurou sua eleição como governador de Nova Jersey em 1910; apenas dois anos depois, obteve a maioria dos votos numa disputa contra o sucessor republicano de Roosevelt, William H. Taft, e o próprio Roosevelt, que ensaiava um retorno à esfera política com seu Partido Progressista, de vida efémera. Único acadêmico a chegar à presidência dos Estados Unidos, o moralista Wilson corporificou o que havia de melhor e pior nos ímpetos estadunidenses. Ele buscou fazer dos Estados Unidos um país melhor, e após 1917 tentou usar o poder norte- americano para criar um mundo melhor. Suas convicções, embora invariavelmente contraditórias, eram defendidas com ardor.

O Japão tinha a distinção de ser o único país não ocidental visado pelo imperialismo ocidental a sobreviver ao massacre, modernizar-se e emergir como grande potência por seus próprios méritos. Tradicionalmente, o sistema de governo predominante no Japão era o feudal, em que a figura do guerreiro samurai desfrutava de grande prestígio. Por tradição, o imperador, tido como um deus pela religião xintoísta, não tinha papel político; o governante de fato era o xogum, chefe militar hereditário a cuja autoridade se subordinava o samurai. O xogunato isolacionista Tokugawa (1603-1868), última dinastia do tipo, foi obrigado a abrir o Japão para o mundo exterior em 1853, quando os Estados Unidos enviaram uma esquadra sob o comando do comodoro Matthew Perry para a baía de Tóquio. Depois que as potências europeias seguiram o exemplo norte- americano, as humilhantes concessões arrancadas junto aos nipônicos jogaram no descrédito o xogunato e levaram uma facção de samurais reformistas a reconhecer que o Japão só conseguiria se salvar por meio da modernização. Em 1868, tomaram o poder sob o pretexto de “restaurar" a autoridade do imperador. O governo da Restauração Meiji aboliu o feudalismo, abriu empresas e escolas de estilo ocidental e fundou um exército e uma marinha de guerra modernos, criados respectivamente com base nos modelos alemão e britânico. Espelhada na constituição alemã de Bismarck, a constituição japonesa (1889) deu destaque a um primeiro-ministro de mão forte, que só devia responsabilidade ao imperador, mas um limitadíssimo sistema de cidadania dava direito de voto apenas aos japoneses abastados do sexo masculino. Os camponeses arcaram com o fardo da modernização, pagando altíssimos impostos que os condenavam a uma existência de pobreza. Por conta de sua população relativamente grande (51 milhões de habitantes em 1913), às vésperas da Primeira Guerra Mundial o Japão tinha um pib per capita um pouco menor que o da Rússia e um nível de industrialização similar, embora detivesse a quinta maior frota naval do mundo e contasse com quase duas vezes mais soldados que os Estados Unidos. A produção de aço correspondia a menos de 1% da norte-americana, mas na época da guerra contra a Rússia os japoneses estavam fabricando sua própria artilharia pesada para suplementar as importações junto ao grupo alemão Krupp. Todos os grandes navios de guerra empregados contra os russos foram construídos na Grã-Bretanha (aliada do Japão desde 1902); apenas mais tarde os estaleiros nipônicos começaram a construir seus próprios navios de guerra, e o primeiro couraçado foi lançado às águas em 1910. Em menos de 40 anos, o Japão se transformou de país feudal isolado em grande potência moderna, embora tivesse a menor base industrial entre as grandes potências. A fim de se manter entre as nações mais poderosas do mundo, o país teria de devotar uma porção bem maior de recursos às forças armadas, e conseguiu fazer isso graças à capacidade de seu governo autoritário de extrair o máximo de sua patriótica população, que, a despeito das condições em que vivia, continuava disposta a suportar o fardo em apoio aos objetivos da nação. Na verdade, manifestações contra a paz em Tóquio ao término da Guerra Russo-Japonesa indicavam que o povo não apenas apoiava uma ambiciosa política externa, mas preferia fazer sacrifícios ainda maiores a aceitar espólios de guerra menores que os previstos.

Domínios e colónias

Os denominados “domínios britânicos" de governo autónomo - Austrália, Canadá, Nova Zelândia e África do Sul - desempenhariam um papel singular e importante na Primeira Guerra Mundial, participando do conflito na condição de parceiros e não apenas de dependentes da metrópole. Considerados em conjunto, estavam entre os países mais prósperos do planeta, com um pib per capita coletivo que só perdia para Estados Unidos e Grã-Bretanha. Juntamente com as colónias do Império Britânico (com destaque para a índia) e as colónias francesas (em particular as da África), forneceram recursos significativos para o esforço de guerra da Entente.

Os domínios britânicos tinham seus próprios parlamentos e partidos políticos, gabinetes e primeiros-ministros, mas, até o Estatuto de Westminster (1931), seus governos dispunham apenas de poderes limitados para conduzir a política externa e não eram totalmente independentes para decidir se tomariam ou não parte em um conflito armado. Quando a Inglaterra entrava numa guerra, seus domínios também estavam em guerra, embora contassem com uma importante prerrogativa de que as colónias não dispunham: não eram formalmente obrigados a enviar tropas a terras estrangeiras para lutar pela metrópole. Assim, os governos dos domínios tinham voz ativa para decidir com quantos soldados contribuiriam, onde e quando. 0 domínio mais antigo, o Canadá - autónomo desde 1867 - tinha uma população de 7,8 milhões de habitantes em 1914, mas contava com apenas três mil soldados regulares em seu exército voluntário permanente, suplementado por uma numerosa e relativamente desorganizada milícia, em que homens de 18 a 60 anos estavam aptos a servir. Em caso de emergência imperial, a milícia canadense podia ser mobilizada e despachada para terras estrangeiras ao lado das tropas regulares e complementada via convocação se o número de voluntários se mostrasse insuficiente. Em 1913, cerca de 55 mil canadenses receberam treinamento de milícia. Quando a guerra eclodiu, o Canadá honraria seu compromisso enviando unidades regulares suplementadas por voluntários recrutados por meio de sua estrutura de milícia.

A Austrália, alçada à condição de domínio em 1901, implementou, dez anos depois, um sistema que exigia que meninos e jovens entre 12 e 25 anos se submetessem a um treinamento militar anual obrigatório - dos quais os rapazes entre 18 e 25 anos podiam ser mobilizados para combate em caso de guerra. O intuito do sistema era dar à Austrália (país que mal chegava a cinco milhões de habitantes em 1914) condições de arregimentar oito batalhões totalizando cerca de 250 mil homens, mas a força treinada ativa de 1914 incluía apenas os três primeiros grupos, todos formados por soldados menores de 21 anos - um “exército de meninos" que a Austrália optaria por não enviar para o estrangeiro. Em vez disso, criou-se um exército voluntário separado, a Força Imperial Australiana (aif, na sigla em inglês), para atuar na Europa, e a Força Expedicionária Naval e Militar Australiana, bem menor, para atuar no Pacífico contra as colónias alemãs. A Nova Zelândia, autónoma desde 1907, também havia instituído treinamento militar obrigatório para os homens, já desde a adolescência - de acordo com a Lei de Defesa de 1909, o treinamento era compulsório para todos os homens entre 14 e 21 anos. No verão de 1914, o país de 1,1 milhão de habitantes cumpriria suas obrigações para com a Grã-Bretanha despachando destacamentos de seu exército.

A União Sul-Africana, que recebeu o status de domínio em 1910, tinha uma população de seis milhões de habitantes; a minoria branca de 1,3 milhão desfrutava de superioridade formal e jurídica com relação aos quatro milhões de negros e 700 mil sul-africanos indianos e mestiços (“de cor"). O país tinha uma estrutura militar semelhante à do Canadá, com um pequeno exército regular, a Força de Defesa da União, suplementada por uma milícia a que estavam aptos a servir homens de 17 a 60 anos de idade. A milícia podia ser suprida por meio de recrutamento e, ao contrário do Canadá, incluía certo número de incorporados para compensar a impopularidade geral do serviço militar entre os africâneres, cujos independentes Estado Livre de Orange e República Sul-Africana (Transvaal) tinham sido integrados à força à África do Sul britânica, como resultado da recente Guerra Anglo-Bôer. Depois de deflagrada a guerra, a África do Sul só enviaria tropas para a Europa depois que suas forças tivessem conquistado a colónia vizinha do Sudoeste Africano Alemão.

Em termos de população, os 20 milhões de súditos britânicos dos quatro domínios nem de longe se comparavam aos 380 milhões das colónias britânicas, mais de dois terços dos quais viviam na índia. A mais numerosa tropa colonial, o exército indiano, contava com 150 mil homens arregimentados com base em recrutamento voluntário, por isso incluía números desproporcionais de povos do sul da Ásia com orgulhosas tradições marciais, caso dos gurkhas do Nepal e dos rajputs do Rajastão. Entre as províncias indianas que enviaram para o serviço militar mais soldados até do que precisavam incluía-se o Punjab (que cedeu um grande número de siques), ao passo que o sul da índia contribuiu com poucos homens e a populosa Bengala praticamente não enviou um homem sequer. Ao fim e ao cabo, durante a Primeira Guerra Mundial, a índia mobilizou 1,4 milhão de homens, dos quais 1 milhão serviram em terras estrangeiras, incluindo 580 mil combatentes. As colónias britânicas na África negra contribuíram com um número bem menor de soldados, integrantes da Real Força de Fronteira da África Ocidental ( rwaff , na sigla em inglês), arregimentada em Serra Leoa, Nigéria, Gâmbia e Costa do Ouro (Gana), ou dos Fuzileiros Africanos do Rei (kar , na sigla em inglês), formada por contingentes nativos de Quénia, Uganda e Niassalândia (atual Malauí). Durante a guerra, nenhum desses dois regimentos coloniais sairia do continente, mas ambos desempenharam papel importante na campanha Aliada contra as colónias alemãs na África.

O Império Colonial Francês tinha uma população de apenas 60 milhões de habitantes em 1914, e por isso só era potencialmente capaz de suprir menos de um quarto do número de homens que a índia britânica podia fornecer sozinha. O exército da África, arregimentado nas colónias do norte do continente (Argélia, Tunísia e Marrocos), incluía unidades separadas para soldados oriundos da vasta colónia francesa na Argélia e da população árabe e berbere, embora, em 1914, essa restrição tenha sido mais ou menos abolida, permitindo, por exemplo, que cavalarianos franceses se integrassem aos sipahis (regimentos de cavalaria) árabes, ou que alguns soldados da infantaria árabe lutassem ao lado dos zouaves franceses. Os habitantes das colónias francesas eram em sua maioria recrutas servindo sob as mesmas obrigações em vigor na França. Os árabes incluíam alguns combatentes escolhidos por recrutamento compulsório (introduzido na Argélia em 1913), mas a maior parte dos 33 mil argelinos muçulmanos que serviram em 1914 era de voluntários. O exército da África incluía também a Legião Estrangeira, composta apenas de voluntários e condenados militares cumprindo pena na Infantaria Leve Africana. As tropas arregimentadas no restante do Império Francês, juntamente com os soldados franceses servindo nessas colónias, eram chamadas de "tropas coloniais” [troupes coloniales). Como os soldados da África negra britânica, eram organizadas em unidades de fuzilaria, das quais as mais notáveis eram os Tirailleurs sénégalais [composta não apenas de soldados do Senegal, mas de toda a África Ocidental francesa e da África Central), os Tirailleurs malagaches [de Madagascar) e os Tirailleurs indochinois [da Indochina). Devido à crónica escassez de homens no exército francês, durante toda a guerra, suas unidades africanas tomaram parte dos combates em solo europeu.

Além das possessões britânicas e francesas, a maior colónia africana, o Congo Belga, também produziu sua maior tropa em tempos de paz. A Force Publique congolesa era um típico exército colonial no que tangia a seu tamanho modesto - apenas 17 mil homens em 1914, para uma colónia de 7 milhões de habitantes - e aos termos de serviço, como força profissional de voluntários de longa duração. Como as tropas da África negra britânica, essas forças tomariam parte na ação na Primeira Guerra Mundial lutando contra as colónias alemãs na África. Sem exceção, as forças coloniais da Ásia e da África eram comandadas por expatriados europeus ou oficiais designados a partir do exército regular da metrópole.

Tradicionalmente, os europeus tinham valorizado suas colónias ultramarinas por conta de seus recursos económicos, de início metais preciosos e produtos agrícolas a ser comercializados, e mais tarde uma lista cada vez maior de matérias-primas. Mas, na era industrial, a importância relativa das colónias entrou em declínio, o que se reflete no alargamento do abismo entre o pib per capita das potências coloniais e o de suas colónias. Nas economias desenvolvidas das metrópoles, a industrialização incrementou a tal ponto as taxas de produtividade que o pib per capita continuou em ascensão mesmo em uma época de crescimento da população; em contraste, na maior parte das possessões de ultramar [os domínios britânicos foram uma expressiva exceção) a produtividade não conseguiu melhorar suficientemente rápido para dar sustentação a um ritmo de crescimento similar no pib per capita, o que causou estagnação ou até mesmo queda. Em 1913, a Grã-Bretanha tinha um pib per capita mais de sete vezes acima do de seu vasto império pré- guerra [excetuando os domínios), ao passo que, no caso da França, o número era mais de cinco vezes superior ao de suas colónias. Uma vez que a produtividade das colónias estava mais abaixo do que nunca em comparação às metrópoles, em termos práticos, isso significava que sobrava pouco excedente a ser explorado depois que a demanda local era suprida. Ademais, em virtude da distância da metrópole, após o início da guerra ficou difícil transportar esse pequeno excedente até a Europa. 2 Assim, entre as possessões ultramarinas, as que tiveram o maior impacto na guerra foram os domínios britânicos - onde a produtividade sobrepujava a distância da Europa - e o norte francês da Africa - onde a proximidade com a Europa falava mais alto que a baixa produtividade.

Nacionalismo, darwinismo e culto à ofensiva

As grandes potências da Europa, as potências emergentes não europeias, os países periféricos, os domínios britânicos e as colónias tinham um denominador comum: seu comportamento anterior à guerra tinha sido moldado pelo nacionalismo que emergira um século antes na Revolução Francesa e nas Guerras Napoleônicas. Durante o século xix, o benigno nacionalismo cultural da era romântica tinha se transformado em um nacionalismo racial mais tarde aguçado e definido pelo darwinismo, depois da fatídica decisão de Charles Darwin de usar imagens e vocabulário bélico para articular conceitos naturais e biológicos em A origem das espécies [1859) eA descendência do homem (1871). Depois disso, conceitos básicos do darwinismo, tais como a sobrevivência do mais apto e a luta pela existência, propiciaram um alicerce “científico" para ideologias agressivas e, de forma geral, o nacionalismo racial “científico" deu esteio à unidade nacional na causa da grandeza nacional. Esse pensamento infectou os intelectuais europeus, de uma ponta a outra do espectro ideológico. 0 darwinismo não afetou a França tanto quanto as outras grandes potências, mas, mesmo lá, Émile Zola, herói da esquerda francesa, declarou em 1891 que a guerra é a própria vida! Na Natureza, nada existe que não tenha nascido, crescido ou se multiplicado por meio do combate. É necessário comer ou ser comido para que o mundo possa viver. Somente as nações guerreiras prosperaram; uma nação morre assim que se desarma.

Na verdade, o que alguns acadêmicos rotularam de “militarismo", e tentaram generalizar em termos sociais, económicos e políticos, originou-se nas décadas anteriores a 1914 como uma manifestação distinta do nacionalismo racial darwinista.

Nessa atmosfera, Bertha von Suttner (ver box “Uma voz no ermo") e outros pacifistas europeus encararam uma tarefa impossível. Até mesmo o prémio da paz outorgado anualmente a partir de 1901 em reconhecimento a seu trabalho surgiu graças à generosidade do inventor da dinamite, Alfred Nobel. No cenário político europeu, apenas os socialistas advogavam abertamente a paz e a cooperação e, no âmbito de cada país, seus partidos políticos tendiam ou a se isolar por conta de sua força eleitoral (caso do spd alemão) ou a ser ignorados por causa de sua fraqueza eleitoral (caso do Partido Trabalhista Britânico). A Segunda Internacional Socialista (fundada em 1889) refletia a profunda divisão do movimento entre moderados, que apoiavam os ideais de Marx, mas não seus métodos revolucionários, e radicais, que insistiam (de maneira problemática para a causa pacifista) em que a mudança genuína realmente capaz de beneficiar o proletariado deveria vir por meio da insurreição violenta. Apenas na Alemanha os socialistas eram fortes o bastante para preocupar os líderes governamentais, e mesmo ospd - depois de se opor sistematicamente aos gastos navais e militares ao longo dos anos pré-guerra - votaria a favor de créditos de guerra na atmosfera de crise do verão de 1914. Em meio à Crise de Julho, a Segunda Internacional viu seu sonho de uma greve geral mundial - a fim de impedir a mobilização dos exércitos - ser esmagado pela dura realidade de que, para a vasta maioria dos trabalhadores europeus, a identidade nacional era mais importante que a identidade de classe.

Não chega a surpreender que o pensamento militar pré-guerra refletisse o espírito nacionalista e darwinista da época, que se manifestou no culto à ofensiva que afetou todas as forças armadas na virada do século. Oculto à ofensiva tinha suas raízes no modo prussiano-germânico de fazer guerra, nascido nas reformas militares que a Prússia adotou depois de sofrer uma derrota acachapante nas mãos da França de Napoleão, em 1806. Cari von Clausewitz (1770-1831) serviu como profeta desse credo, seu livro póstumo Vom Kriege [Da guerra], de 1832, era a sagrada escritura, e o marechal de campo Helmuth von Moltke, o Velho (1800- 1891), foi o Messias. Após os triunfos de Moltke contra a Áustria (1866) e a França (1870-1871) nas Guerras da Unificação Alemã, a obra foi traduzida e estudada em toda a Europa, quase sempre com um prefácio darwinista. No prefácio que escreveu a uma reimpressão pré-guerra da tradução inglesa original de Vom Kriege (publicada em 1873 com o título On War), o coronel F. N. Maude declarou que “o que Darwin conquistou para a Biologia em termos gerais, Clausewitz fez para a História de vida das nações quase meio século antes dele, pois ambos provaram a existência da mesma lei em cada caso [...] a sobrevivência do mais apto". Moltke, como Napoleão, buscava destruir os exércitos inimigos em batalhas decisivas. Admiradores do exemplo prussiano-germânico também adotaram a ofensiva, tratando com desleixo [em algumas traduções, eliminando) a parte mais longa do livro, que versava sobre guerra defensiva. 0 general e escritor militar alemão Colmar von der Goltz, principal intérprete darwinista de Clausewitz, acelerou a tendência com seu bestseller internacionalDas Volk in Waffen [0 país em armas], de 1883. Paradoxalmente, os países mais fracos não tinham menos probabilidades que os fortes de adotar a guerra ofensiva, o que lhes dava esperanças de que sua vitalidade fosse posta à prova no campo de batalha. Assim, o culto à ofensiva teve especial relevância para as duas potências militares mais vulneráveis da Europa, a Áustria-Hungria e a França. Franz Conrad von Hõtzendorf, instrutor da Escola de Guerra em Viena (1888-1892) antes de se tornar chefe do Estado-Maior da Áustria-Hungria (1906-1917), e Ferdinand Foch, instrutor (1895-1901) e comandante (1907-1911) da Escola de Guerra em Paris antes de se tornar supremo comandante Aliado em 1918, defendiam estratégias ofensivas que se mostraram completamente inadequadas a situações enfrentadas por seus países na Primeira Guerra Mundial. Os resultados seriam fatais para a Áustria- Hungria e quase letais para a França.

O culto à ofensiva persistiu a despeito das evidências fornecidas pela Guerra Anglo-Bôer, a Guerra Russo-Japonesa e as Guerras dos Bálcãs, de que as tecnologias emergentes privilegiavam a guerra defensiva. A Guerra Anglo-Bôer foi a primeira em que ambas as partes beligerantes empregaram infantaria armada, principalmente com fuzis de repetição, e o poder de fogo da infantaria tinha sido claramente decisivo. A artilharia rápida e a pólvora sem fumaça, que tinham revolucionado o combate naval na década de 1880, também fizeram sua primeira aparição em campanhas em terra. Taticamente, a infantaria britânica fracassava a cada tentativa de investida da baioneta, mas obtinha mais êxito quando os soldados eram organizados em formações abertas e avançavam em pequenos grupos atuando sob cobertura. Futuros comandantes da Força Expedicionária Britânica (bef) na Primeira Guerra, sir John French e sir Douglas Haig, defenderam com sucesso a performance da cavalaria por eles liderada na África do Sul, ignorando o fato de que os cavalarianos britânicos tinham sido mais úteis quando combatiam desmontados, empunhando fuzis, como nos comandos bóeres.
A campanha na Manchúria durante a Guerra Russo-Japonesa apresentou um número inaudito de soldados, o maior emprego de trincheiras até então e o primeiro uso em larga escala de metralhadoras. A decisiva Batalha de Mukden (fevereiro a março de 1905) envolveu cerca de 250 mil homens de cada lado, em contínuas linhas de trincheiras que se estendiam por 145 km. Como na Guerra Anglo-Bôer, a infantaria teve maior êxito atuando em formações abertas e avançando em pequenos grupos sob cobertura, mas ambos os exércitos realizavam sucessivamente investidas corpo a corpo com as baionetas em campo aberto, ainda que a custos medonhos, invalidando (pelo menos na opinião de muitos observadores) as lições aprendidas na África do Sul no que dizia respeito à natureza decisiva do poder de fogo da infantaria dispersa. Os japoneses demonstraram que uma força de assalto com a disposição de ânimo das tropas para absorver perdas de 30% a 40% ainda podia levar a melhor, mesmo em um campo de batalha onde a tecnologia moderna - a primeira geração de metralhadoras - favorecia claramente o defensor. Em última análise, o resultado reforçou a visão convencional do culto à ofensiva: os japoneses tinham atacado e vencido, ao passo que os russos tinham ficado na defensiva e perderam.

Observadores das Guerras dos Bálcãs elogiaram os búlgaros por sua determinação em atacar posições entrincheiradas e seu uso da baioneta, em particular na Linha Çatalca, mais parecida com a frente ocidental da Primeira Guerra Mundial do que qualquer outra coisa na Manchúria durante a Guerra Russo-Japonesa. Última linha turca de defesa, apenas 32 km a oeste de Constantinopla, a Linha Çatalca consistia em uma frente contínua de trincheiras de 24 km de extensão, do mar Negro ao mar de Mármara, sem flancos, e que só dava aos oponentes a possibilidade de ataque frontal. Os que elogiaram a coragem dos búlgaros na Linha Çatalca e o espírito ofensivo de seu comandante, o general Radko Ruskov Dimitriev, o fizeram apesar das horríveis baixas - incluindo 90 mil mortos, feridos e doentes em apenas cinco dias de ataques em novembro de 1912 - e seu fracasso na tentativa de romper as linhas inimigas e chegar a Constantinopla. 0 exército búlgaro aprendeu com esse banho de sangue que as investidas da infantaria exigiam um robusto apoio de artilharia e introduziu um inovador fogo de barragem progressivo na tomada de Adrianopla, em março de 1913, mas poucos analistas estrangeiros perceberam a manobra. Os Aliados só introduziriam o fogo de barragem progressivo na frente ocidental depois de sofrer milhões de baixas em ataques de infantaria levados a cabo sem o adequado apoio de artilharia.

Uma vez que os observadores e participantes das guerras entre 1899 a 1913 estavam influenciados por suas perspectivas nacionais e pela mentalidade predominante na época, a maior parte das lições por eles aplicadas em 1914 teve claras implicações para a guerra ofensiva. Embora subestimassem a dimensão das baixas que uma futura guerra de grandes proporções acarretaria, ainda assim esperavam um grande número de mortes e tomaram medidas para limitar os danos por meio de melhorias nos equipamento e treinamento. A Guerra Anglo-Bôer selou o destino dos coloridos uniformes de campo do exército britânico e acelerou uma tendência que levou todas as grandes potências a adotarem a cor parda ou a camuflagem (exceto a França, que adotou o horizon bleu em julho de 1914) a tempo das campanhas de abertura da Primeira Guerra. A experiência britânica na África do Sul, onde as demandas de campanha rapidamente exauriram seu pequeno exército regular, também levou os ingleses a promover melhorias em suas formações de reserva (criando a Força Territorial em 1908 para substituir as tradicionais milícias a cavalo e grupos de voluntários). A maioria das outras grandes potências tomou medidas semelhantes para dar fim à lacuna entre a capacidade de combate de suas tropas regulares e suas forças de reserva. Se por um lado os exércitos geralmente subestimavam a importância da artilharia e das metralhadoras, por outro, nas corridas armamentistas pré-guerra a maior parte deles tentou assegurar uma superioridade qualitativa e quantitativa dessas armas.

Corrida armamentista, nacionalismo, alianças e o dilema da segurança

Os anos imediatamente anteriores à guerra testemunharam um aumento sem precedentes de gastos militares e navais; em 1913, as seis grandes potências europeias investiam em armamentos 50% a mais que em 1908. Especialistas em relações internacionais julgam as corridas armamentistas pré-guerra como o melhor exemplo histórico do “dilema da segurança" - o fenômeno em que as ações de um país para assegurar sua própria segurança causam insegurança em outros países, o que, por sua vez, provoca uma resposta que acaba alimentando uma espiral de gastos bélicos cada vez maiores e uma crescente atmosfera de desconfiança cujo resultado é aumentar a probabilidade de guerra. Após 1918, o papel da corrida armamentista nas origens da guerra recebeu considerável atenção, e os futuros apelos por parte de vários estadistas em nome de um regime de “segurança coletiva”, primeiramente no período entreguerras e, mais tarde, durante a Guerra Fria, almejavam evitar a repetição do desastre.
A corrida naval anglo-germânica serviu como peça central da competição armamentista pré-guerra. A tentativa alemã de rivalizar com a Grã-Bretanha no mar teve início em 1897, com a nomeação do almirante Alfred von Tirpitz como secretário de Estado no Gabinete da Marinha Imperial. Os objetivos da esquadra inicial de Tirpitz pareciam bastante modestos, incluindo 27 couraçados e 12 cruzadores grandes - já estavam em construção ou em serviço 20 couraçados e 12 cruzadores. O Reichstag aprovou o plano de Tirpitz em 1898, depois de ouvir um discurso em que o almirante usou uma agourenta linguagem darwinista para caracterizar a expansão da esquadra alemã como uma "questão de sobrevivência" da Alemanha.5 Dois anos depois, uma segunda lei naval ampliou os planos para 38 couraçados e 14 cruzadores grandes e, por fim, leis suplementares aumentaram o número de couraçados para 41 e o de cruzadores para 20. O plano de Tirpitz em pouco tempo fez com que a Alemanha saltasse do quinto lugar para a segunda posição entre as maiores potências navais da Europa. O debate sobre seus projetos de lei navais se concentrou nos novos navios de combate que eles exigiam, negligenciando as provisões para a substituição automática de couraçados após 25 anos e dos cruzadores após 20 anos. Felizmente para Tirpitz, os navios de batalha mais antigos em uso incluídos em seu plano de 1898 chegaram ao término previsto de seu tempo de serviço em 1906, bem no momento em que a Grã-Bretanha introduzia seus dois novos projetos revolucionários, o navio de guerra hms Dreadnought e o cruzador de batalha. Uma vez que esses novos modelos tornavam obsoletos todos os navios de guerra de maior porte existentes, os britânicos anularam sua própria e considerável vantagem em termos do número de navios de guerra pré-couraçados e cruzadores blindados, o que deu aos alemães a oportunidade de alcançar os rivais em força naval. Subsequentemente, Tirpitz construiu todos os novos navios de guerra alemães como couraçados e todos os cruzadores grandes como cruzadores de batalha. Em 1908, o Reichstag aprovou outra lei suplementar possibilitando que Tirpitz acelerasse a construção de couraçados e cruzadores de batalha ("navios capitais", como os dois tipos juntos vieram a ser conhecidos), e em pouco tempo a Alemanha já contava com 10 concluídos ou em construção, contra 12 da Grã-Bretanha. Nesse ritmo, Tirpitz conseguiria bem mais do que a proporção de inferioridade de 3 para 2 que, a seu ver, daria à esquadra alemã uma chance de derrotar os britânicos no mar do Norte, mas a aceleração da construção naval alemã chocou o Parlamento britânico a ponto de ele financiar oito navios capitais para 1909 e 1910, suplementados por outro par custeado por Austrália e Nova Zelândia. Os alemães reagiram a esses dez novos navios capitais britânicos com apenas três, e assim, ficaram para trás na corrida, por 22 a 13. Depois disso, a construção naval britânica continuou sobrepujando a dos alemães ano após ano, embora sem a tremenda vantagem do biénio 1909-10. No final de julho de 1914, a Grã-Bretanha contava com 29 navios capitais em serviço e 13 em construção, ao passo que a Alemanha tinha 18 em serviço e oito em construção. A vantagem britânica, ligeiramente melhor do que na proporção de 3 a 2, seria suficiente para manter a esquadra alemã ancorada no porto por boa parte da Primeira Guerra Mundial.

A competição pré-guerra no desenvolvimento das primeiras forças aéreas da Europa não chegou a configurar uma corrida armamentista, pois poucos anteviram a importância que os céus teriam em futuras guerras. Em 1908, cinco anos após seu bem-sucedido voo, os irmãos Wright levaram sua aeronave à Europa para uma série de demonstrações públicas. 0 exército francês incorporou aviões às manobras anuais de 1910, e no ano seguinte a marinha alemã começou a fazer testes com aeronaves, mas deu preferência a dirigíveis, sob a influência do conde Ferdinand von Zeppelin e outros pioneiros alemães em aeróstatos. A Itália pré-guerra também optou por dirigíveis, embora os italianos tenham sido os primeiros a pilotar aviões em missões de combate na guerra contra a Turquia em 1911-1912. Em 1912, a Grã-Bretanha estabeleceu a separação entre exército e marinha, e a Áustria-Hungria abriu uma estação de hidroaviões em Pula. Na França, na Itália e na Rússia, inicialmente o exército monopolizou o poder aéreo e as marinhas não controlavam nenhum tipo de aeronave. Em 1910-1911, a marinha dos Estados Unidos tornou-se a primeira a promover decolagens e aterrissagens de aviões a partir de navios de guerra (usando para tanto plataformas temporárias no convés) e a primeira a utilizar aeronaves para a localização de artilharia de longo alcance. No início de 1914, o almirantado britânico autorizou a construção de um seaplane tender, precursor dos porta-aviões, o Ark Royal, de 7.080 toneladas, construído sobre o casco de um navio mercante inacabado.

Para todas as potências europeias a não ser a Grã-Bretanha, os exércitos constituídos com base em serviço militar obrigatório continuaram sendo a pedra angular da defesa nacional. Nos anos anteriores à guerra, a maior parte das grandes potências reduziu o tempo de serviço militar para espelhar o modelo alemão de dois anos de serviço ativo (a França em 1905, Império Austro-Húngaro, em 1906, e a Itália, em 1910), ao mesmo tempo em que seguiam o exemplo britânico de aumentar o calibre de suas formações de reserva. Na Alemanha, a preocupação de que o exército tivesse sido negligenciado durante a corrida de desenvolvimento naval levou o Reichstag a aprovar, no verão de 1914, uma nova Lei do Exército, custeando uma força ativa de tempos de paz de 890 mil homens. A perspectiva desse aumento do número de alemães servindo na ativa por dois anos sem dispensa causou considerável alarme na França, que prontamente aumentou de dois para três anos seu tempo de serviço militar, medida que entrou em vigor de imediato, adicionando uma nova classe de recrutas, de modo a elevar para 700 mil homens o tamanho do contingente francês em tempos de paz. Assim como a corrida naval entre ingleses e alemães, essa competição franco-germânica para incrementar a capacidade dos dois exércitos serviu apenas para exacerbar as tensões e contribuiu para a sensação geral de que a guerra era inevitável.

Conclusão

Em âmbito internacional, os anos anteriores à guerra testemunharam a criação das condições em que a Guerra Mundial teve início e foi gradativamente aumentando de intensidade. A Guerra Anglo-Bôer salientou o isolamento da Grã-Bretanha, fez com que seus líderes se sentissem pouco à vontade para dar continuidade ao "isolamento esplêndido" da Pax Britannica e levou a parcerias com Japão, França e Rússia. A Guerra Russo-Japonesa confirmou a emergência do Japão como grande potência e expôs as fraquezas da Rússia; em 1914, um encorajado Japão usaria seus laços com os ingleses como pretexto para tomar parte da Primeira Guerra Mundial, ao passo que a Rússia demonstraria que se recuperara da derrocada de 1904-1905 muito mais rápido do que o esperado. Por fim, as hostilidades de 1912 e 1913 deixaram os Bálcãs mais voláteis do que nunca, na medida em que, embora tivessem saído do conflito com território ampliado e populações maiores, todos os países balcânicos ainda alimentavam ambições maiores, em especial as da Sérvia, que só poderiam ser consumadas às custas do desmembramento da Áustria-Hungria. Ideologicamente, o superaquecido nacionalismo do período, aguçado pelo darwinismo, estabeleceu o contexto no âmbito do qual, na maioria dos países, a opinião pública geral, bem como os líderes políticos e intelectuais, aceitaria, quando não acolhesse, com bons olhos a perspectiva de uma guerra generalizada. Militarmente, os combates na África do Sul, na Manchúria e nos Bálcãs propiciaram vislumbres dos horrores que estavam por vir, mas estrategistas e especialistas em tática se recusaram a abandonar sua crença nas campanhas ofensivas. Foram à guerra em 1914 sabendo que o conflito seria sangrento [embora subestimando o quanto) e na expectativa de que fosse breve. Talvez o aspecto mais importante de todos, as guerras entre 1899 e 1913 advertiram de que um esforço de guerra moderno bem-sucedido requereria o apoio sincero e incondicional da frente interna. Em particular, as manifestações contra a paz em Tóquio após o tratado que deu fim à Guerra Russo-Japonesa em 1905, ao lado da rejeição do povo búlgaro ao tratado que deu fim à primeira Guerra dos Bálcãs em 1913, serviram como lembretes de que, quando apoiavam com tanto ardor a guerra, as populações civis não aceitariam outro resultado que não a vitória total.
 

História - Primeira Guerra Mundial
Temas gerais - , 
2/6/2021 1:01:21 PM | Por Mary Vincent
Os ousados Vikings

"Como homens, viajaram longe em busca de ouro", proclamava-se em uma lápide em memória de um grupo de suecos que morreu batalhando enquanto procurava fortuna em uma terra distante. Essa inquietude e essa ousadia caracterizaram os vikings, nome com o qual ficaram conhecidos todos os escandinavos, em sua terra e fora dela, que viveram na extraordinária época por volta do ano 800, tempos marcados pelas incursões, pelo comércio e pela colonização. A era foi iniciada com os devastadores ataques dos vikings nórdicos aos mosteiros e a outros lugares vulneráveis das costas da Inglaterra e do continente europeu. A partir de então, os vikings adquiriram uma duradoura reputação de larápios sangrentos, embora além de invasores fossem também colonos, exploradores ao mesmo tempo em que saqueadores, comerciantes tanto como conquistadores, criadores e destruidores.

Muito antes de se apoderarem do mundo pela força, os escandinavos eram comerciantes empreendedores. Em data tão remota como 1500 a.e.c., já praticavam o escambo de produtos com as tribos da Irlanda e da Inglaterra, cruzando o Mar do Norte. No início do século primeiro de nossa era. comerciavam com os romanos e no século V recebiam negociantes estrangeiros em seus mercados. Com o comércio começaram a conceber quanta riqueza possuíam outros povos, e isso alimentou suas fantasias de pilhagem e conquista.

Para realizar estes sonhos, os escandinavos tiveram de começar pelo domínio da arte da construção naval. Já havia tempo que fabricavam barcos sem velas com os quais atravessavam os fiordes de sua terra natal e até mesmo, quando fazia bom tempo, o mar. Por volta do século VIII, haviam conseguido desenvolver magníficos veleiros, os drakars, barcos rápidos, capazes de navegar ao longo das costas ou subir a remo os rios. Os drakars abriram o mundo aos vikings, e milhares deles aproveitaram a oportunidade levados pela fome de terras ou de pilhagens.

Em um dia de junho de 793, vikings noruegueses a bordo de drakars chegaram à Ilha de Lindisfarne, na costa leste da Inglaterra, e saquearam seu belo mosteiro, mataram muitos monges e tomaram como escravos os que não massacraram. O ataque causou pavor na Europa cristã e marcou o início da violenta era viking. A princípio, as incursões limitaram-se às zonas costeiras e eram realizadas por bandos de poucos homens que abandonavam o lugar assim que terminavam a pilhagem. Mas não transcorreu muito tempo antes que expedições de guerreiros bem organizados das emergentes nações da Dinamarca, da Suécia e da Noruega, capitaneadas por ambiciosos chefes tribais e reis, começassem a invadir terras estrangeiras, exigindo tributos e apoderando-se de territórios. Em 810, o rei dinamarquês Godofredo atacou a costa da Frísia, que naquela época fazia parte do Império Carolíngio. Animado pelo sucesso inicial, Godofredo falou em conquistar a Germânia, mas morreu antes que pudesse pôr em prática seu plano. Carlos Magno aproveitou-se disso para reforçar suas defesas diante de futuras ameaças vikings.

As ilhas britânicas, divididas em muitos reinos rivais, eram mais vulneráveis. Durante o século IX, os vikings noruegueses apoderaram-se de grandes partes da Irlanda e fundaram Dublin, entre outras povoações. Os dinamarqueses disputaram o controle da Irlanda com os noruegueses, enquanto faziam grandes avanços na Inglaterra e se apoderavam de quase todo o país, antes que o Rei Alfredo, o Grande, de Wessex, os expulsasse das terras do sul, confinando-os em uma área do nordeste que ficou conhecida como Danelaw. Um exército de dezenas de milhares de dinamarqueses dirigiu-se então a França e subindo o Sena chegou a Paris, que sitiou em 885. O exército invasor finalmente se retirou, mas os vikings tornaram-se fortes nas zonas costeiras a tal ponto que o rei francês teve de ceder ao chefe dinamarquês Rollo o território hoje chamado Normandia. Os suecos, enquanto isso, com suas incursões armadas pelo interior da Rússia, procurando capturar escravos e comerciar com comerciantes bizantinos e árabes em lugares como Bulgária e Kiev, que transformaram em praças fortes. Outros vikings alcançaram o Mediterrrâneo e as costas do Norte da África.

Parte do ímpeto para tão extraordinária expansão viking adveio dos problemas em suas terras natais da Escandinávia, onde ambiciosos soberanos como Haroldo, o Louro, da Noruega tomavam territórios pela violência, expulsando régulos, que não tinham outro remédio senão, exilar-se em terras estranhas com seus seguidores. A ascensão de Haroldo, o Louro, foi um dos fatores que empurraram milhares de escandinavos (noruegueses, na maioria) a cruzar o Atlântico Norte e estabelecer-se na Islândia entre 870 e 930. No entanto, os vikings não pararam por aí. Em 982, o islandês Erik, o Ruivo, aventurou-se na direção oeste e chegou a Groelândia, onde anos depois fundaria uma colônia. Leif Eriksson, seguindo a trilha de seu pai Erik, zarpou da Groenlândia rumo ao desconhecido e atingiu o litoral da América do Norte, assentando as bases de uma efêmera colônia viking denominada Vinland.

Enquanto isso, a colonização viking da Europa estava chegando ao seu auge. No século XI, o cristianismo começou a deslocar a tradicional religião nórdica da Escandinávia, graças aos alienados reis cristãos como Olaf Haraldsson (conhecido depois de sua morte como santo Olavo), que subiu ao trono em 1015 e dispôs-se a alienar o mundo inteiro a força. Apesar das campanhas militares que realizou para “cristianizar” o país, não conseguiu pacificar a região. Assim que consolidaram suas posições, os monarcas escandinavos começaram a lutar entre si e com os reis da Inglaterra e da Normandia. Um dos guerreiros vikings que teve mais sucesso foi Canuto, que chegou a dominar sua terra natal, a Dinamarca,  Noruega e a Inglaterra. O trono inglês acabou retornando às dinastias locais, embora a Inglaterra continuasse sendo uma peça cobiçada entre os forasteiros desejosos de repetir a façanha de Canuto. Em 1066, ocorreu uma feroz batalha pelo controle da Inglaterra na qual tomaram parte os reis Haroldo Godwinsson da Inglaterra, Haroldo Hardradi da Noruega e William, duque da Normandia. Os ingleses derrotaram os noruegueses, mas, por sua vez, foram superados pelos normandos. Isto significou o final do expansionismo viking, já que os vitoriosos normandos há tempos haviam renunciado à sua identidade nórdica e consideravam a si mesmos franceses.

A Islândia e a Groenlândia continuaram sendo solitários bastiões avançados da cultura viking até o século XIII, época em que renunciaram à sua independência para tornar-se possessões da Noruega, no meio de um recrudescimento do clima e outras penúrias. Os islandeses, muito apegados às suas tradições nórdicas, registraram por escrito as sagas que contavam poeticamente sua história, oferecendo às gerações futuras um vasto panorama do mundo viking, um lugar no qual mulheres corajosas defendiam os interesses de seus lares empurrando, se fosse preciso, seus homens a ações violentas; onde porta-vozes do Althing e juizes de paz esforçavam-se energicamente para resolver os conflitos e manter a ordem; um mundo onde os renegados se reabilitavam cruzando os mares para apoderar-se de ricas terras novas nas quais instalar seus seguidores. Estas histórias, junto com os significativos trabalhos dos artesãos nórdicos que acompanhavam os vikings na tumba, proporcionam um rico e equilibrado retrato dos vikings, um povo cujo sucesso era devido tanto à sua habilidade para adaptar-se e à sua engenhosidade, como à sua notória ferocidade.

História - Vikings
Texto - , 
1/23/2021 5:28:45 PM | Por Simon Roberts
Mitos de criação e conselhos práticos finlandeses

Para além de contar as muitas aventuras de Vãinãmõinen,  llmarinen e Lemminkainen, o Kalevala descreve em pormenor as origens de várias coisas como o ferro
e o fogo, entre outras. Estes «mitos das origens» são como que encantamentos que conferem poderes místicos a quem os recita. O Kalevala também fornece conselhos práticos para leitores e ouvintes. Um capítulo inteiro (Runa) do Kalev é dedicado a conselhos às noivas. Escutai, oh donzela, o que vos conto, O que digo e o que vos conto,
Não deveis ir sem a roupa,
Nem sem camisa para a diversão, Nem andar sem roupa interior, E sem os sapatos a arrastar os pés,
Pois em choque ficará o noivo,
e o jovem marido de nariz torcido.
TRADUÇÃO LIVRE DA VERSÃO INGLESA DE W.F.KIRBY (1907)

Xamanismo e cultos ancestrais

Os Finlandeses da antigüidade acreditavam em um mundo tripartido. Em cima estavam os céus, onde viviam
os deuses, enquanto os vivos habitavam uma ilha rodeada por um grande rio. Do outro lado do rio, encontrava-se o reino da morte, Tuonela.

A unidade familiar era considerada como incluindo os membros vivos e os que tinham atravessado o rio pai o reino da morte. Os mortos não se libertavam dos seus deveres individuais ou familiares; o falecido continuava a fazer parte das vidas dos descendentes sob várias formas. Por outro lado, aos vivos era exigida a observância rigor dos rituais antigos e a continuação do trabalho dos ante passados. Esta prática estava profundamente enraizada na noção de vida familiar nos antigos Finlandeses.

Se os ritos de passagem para o Tuonela não eram devidamente cumpridos, o morto poderia tornar-se nurr alma penada, a que chamavam sijattomat sielut, que assombrava a casa de futuras gerações da família,
em vez de se integrar na unidade familiar alargada.

O Reino dos Mortos

Na mitologia finlandesa, o reino
dos mortos não é considerado como
um lugar de punição. Embora seja mais escuro que os outros reinos, o Sol brilha
e as plantas crescem. É governado pelo
rei Tuoni e pela sua mulher, Tuonetar.
As duas filhas são visões terríveis e causam toda a espécie de doenças e mal-estares.

Os antigos Finlandeses acreditavam
que era possível viajar até Tuonela, se bem
que a tentativa fosse como que uma morte
horrorosa, que, se não ocorresse na floresta densa e escura, a caminho, então ocorreria quase seguramente às mãos
dos habitantes do reino dos mortos. Lemminkainen,
um jovem, viajou até às margens do rio negro que rodeia
o reino dos mortos, quando ia em perseguição de um cisne maravilhoso; entrou no rio e ficou aos pedaços. Foi um trabalhão para a mãe, que teve de usar todas as suas habilidades mágicas para voltar a tê-lo inteiro.

Vãinãmõinen foi o único que pôde visitar o reino dos mortos e voltar vivo para contar a história.

Tinha viajado para Tuonela em busca de um encantamento que o ajudasse
a acabar o seu barco de cobre. Foi-lhe oferecida uma infusão de sapos e vermes, por Tuonetar, que lhe disse que ele jamais seria autorizado a partir. Mas, nessa noite, transformou-se em uma espécie de serpente e fugiu.

Os Xamãs

Uma família podia contatar com os antepassados do reino dos mortos através de um xamã que os convocava batendo no seu tambor mágico. Um xamã podia também comer certas espécies de cogumelos para ficar em um estado de transe necessário à comunicação com o morto.

Os sucessivos vizinhos e ocupantes da Finlândia olhavam para os xamãs com suspeição e medo. Na Idade Média,
os reis da Noruega proibiram os seus súbditos de viajarem para a Finlândia, para contatarem os xamãs. Nos séculos
XVI e XVII as autoridades suecas tentaram retirar-lhes as suas capacidades confiscando-lhes os tambores (quodbas).

Animismo

Há que ter algum cuidado quando se usa o Kalevala como um meio para averiguar as crenças dos antigos Finlandeses. Embora os cantares sejam
de origem primitiva, foram colecionados no século XIX
e ostentam algumas influências externas.

As análises feitas ao Kalevala
a respeito do lugar dos deuses finlandeses
em relação aos xamãs têm causado grandes discussões. Um comentador diz: «Os mortos eram os guardiães
da moral, os juizes dos costumes e eram eles
que mantinham a ordem na sociedade. Neste aspecto, nem mesmo o deus de regiões superiores podia competir com eles.» The New Larousse Encyclopaedía of Mythology (Hamlyn: Londres, 1968) refere que «xamamismo...
só dificilmente é compatível com a idéia de deuses que na sua essência sejam superiores à humanidade, visto que o xamã é capaz de dominar tudo com as suas palavras mágicas.»

É hoje geralmente aceito que os deuses do Kalevala são demasiado nebulosos para terem constituído a base de uma «religião» e é talvez mais correto sugerir que as crenças dos antigos Finlandeses residia algures entre a adoração da natureza e as divindades que habitam os fenômenos naturais.

Um Mundo Vivo

Os antigos Finlandeses acreditavam que todos os objetos tinham uma «essência», ou alma, a que davam o nome de haltijat. Esta essência não era como a alma cristã,
que vive para lá da morte daquele que a abriga; a haltijat é inalienável da sua forma física e morre juntamente
com o objeto em que habita.

Os Finlandeses consideravam que mesmo
os objetos inanimados tinham uma espécie
de vida. Existiam os espíritos da casa e do quintal, da arrecadação, dos cereais e do curral. Desde que estes espíritos fossem tratados com
a reverência adequada e não fossem «mortos», olhariam pelas atividades das pessoas que viviam e trabalhavam nestas construções. Até mesmo quando tiravam água de um poço, deveriam sempre devolver-lhe umas gotas em uma deferência para com o espírito do poço.

Uma Ligação Entre Oponentes

Acreditava-se que as almas dos animais viveriam enquanto os ossos dos animais existissem. O Kaleva descreve uma intrigante «festa de ursos.» Após
o urso ter sido morto e comido, os seus ossos
eram colocados em um túmulo com vários objetos.
O urso morto era então tratado como um amigo
e pedia-se-lhe que contasse aos outros ursos
as honras que os humanos lhe tinham prestado.
E até mesmo já no século XVII foi descrito um ritual semelhante com algum desdém pelo bispo luterano Isak Rothovius: «Quando matavam um urso faziam  uma festa, bebiam através do crânio do urso
e imitavam os seus rugidos para assegurar caça suficiente no futuro».

Os deuses finlandeses

O mito da criação no Kalevala descreve como Luonnotar, uma virgem, se fartou da sua vida estéril e solitária nos céus e se permitiu cair
do plano celestial para o vazio. Ficou aí a pairar durante sete séculos até um anjo aparecer, construir um ninho nos joelhos e incubar os seus
ovos. Finalmente, estes caíram dos joelhos
E Luonnotar - a gema transformou-se no Sol,
As claras em Lua e os fragmentos das cascas em estrelas.

Os heróis de Kalevala, incluindo o filho de Luonnotar, váinãmõinen, foram encarregados de cultivar as terras selvagens que ela criou.

A mitologia da Finlândia não estabelece uma hierarquia pormenorizada dos deuses, embora algumas invocações refiram Ukko como o chefe do panteão. Ele é por vezes descrito como «o deus do céu e do ar» e outras vezes, mais estritamente, como o deus do raio. De fato, deu o seu nome à palavra finlandesa para raio, ukkonen. Parece ser também responsável por todos os fenômenos naturais que emanam dos céus: nuvens, chuva, neve, granizo. A mulher dele era a divindade Rauni.

Os deuses que se conhecem são: Paiva (o Sol), Kun a Lua) e Uma (a divindade do ar cuja filha Luonnotar, referida no mito da criação). Entre as divindades menores havia: Pellervoinen (os campos), Atho (água), vtannu (Terra) e Metsola (floresta).

Mas as divindades finlandesas são numerosas. Mesmo divindades vulgares como tingir e tecer estão imbuídas
de divindades próprias (Sinettaret e Kankahattaret).


Assunções precipitadas

Quando Tácito descreve os Finlandeses como «incrivelmente bárbaros e miseravelmente pobres» ignorava que a riqueza deste povo estava na sua mitologia. O Kalevala, com a sua narrativa poética e viva dos feitos heróicos de Vãinãmõinen, ganha na comparação com os melhores contos míticos dos povos vizinhos.

O Kalevala foi escrito para ser recitado em vez de lido em silêncio. Felizmente para os amantes
dos contos antigos finlandeses, partes dele ainda hoje são cantadas por grupos de música popular.

Mitologia - Mitologia Finlandesa
Mitos de origens - , 
1/23/2021 5:23:44 PM | Por Alice Mills
Mitos de flores e plantas

Existem muitos mitos gregos sobre a origem de várias árvores, flores e outras plantas. A maior parte deles envolve metamorfoses de seres humanos que passam a ter uma forma vegetal; ocasionalmente, uma ninfa, como Dafne, também é transformada numa planta. Estas metamorfoses são irreversíveis. É muito raro na mitologia grega a transformação numa planta funcionar como uma recompensa, como acontece na estória de Báucis e Filémon. É muito mais freqüente a criação de uma nova planta ser ocasião para uma celebração amarga e doce. Na mitologia grega, nem mesmo os deuses conseguem repor a vida de um mortal quando a perde, mas, por vezes, como última escolha, homenageiam para sempre os amigos e os amantes queridos na forma de alguma nova planta.

Por vezes, a transformação de pessoas em plantas ocorre como uma punição, até mesmo um castigo auto-imposto, como no caso de Narciso, em que o insensato ser humano desperdiçou a sua preciosa vida, que não lhe podia ser dada novamente. A flor narciso, que nasce de novo todos os anos, troça da sua leviandade, ao mesmo tempo que homenageia a sua beleza.

Eco e Narciso

Narciso era filho da náiade Liríope e de um deus rio, Cefiso, o deus do mesmo rio em que Deucalião e Pirra se purificaram antes de se tornarem pais de uma nova raça humana, após o dilúvio. Aquando do nascimento de Narciso, o adivinho Tirésias profetizou que ele viveria por muito tempo, desde que nunca se visse a si mesmo.

Ninguém sabia o que esta profecia significava, mas tornou-se claro demasiado tarde, quando ele estava entre a adolescência e a idade adulta.

Narciso era o mais belo dos jovens pelo que despertava muitos desejos sexuais, ao que ele não ligava qualquer importância. Mantinha-se afastado, preferindo caçar animais selvagens do que desfrutar da companhia dos humanos ou das ninfas. Um dia, a ninfa Eco encontrou-o e apaixonou-se por ele de imediato e profundamente. Ela era uma ninfa e tinha sido amaldiçoada com o costume de não dizer nada de novo e apenas repetir a última parte do que outra pessoa dissesse ao seu ouvido. Esta maldição tinha-lhe sido lançada por Hera (Juno), rainha dos deuses, porque a tagarela Eco a tinha distraído demasiadas vezes, impedindo-a de se aperceber do indomável marido a divertir-se com outras ninfas. «Podes continuar uma tagarela», disse Hera, «mas nada do que disseres será da tua autoria.»

Eco esforçou-se por dizer a Narciso o quanto o amava, mas tinha de ficar em silêncio até ecoar o que alguém dissesse e esperando que essa pessoa desse voz ao desejo dela. Narciso ouviu um sussurro entre as árvores e perguntou: «Está alguém nos arbustos?» 

Eco respondeu:

«Nos arbustos.» 

E Narciso exigiu: 

«Sai e deixa-me ver-te!»

E ela respondeu: «Deixa-me ver-te!»

A seguir ela saiu detrás dos arbustos e avançou para ele abraçando-o.

Por momentos, Narciso ficou demasiado surpreendido e não fez nada, mas, logo a seguir, empurrou-a dizendo:

«Tira as tuas mãos de cima de mim! Metes-me nojo! Nunca mais ouses tocar-me assim!»

E tudo o que a pobre Eco conseguiu dizer foi: «Tocar-me assim!»

Eco definhou por amor a Narciso. Deixou de comer, afastou-se das outras ninfas e, finalmente, o seu corpo desapareceu. Tudo o que restou dela foi a voz, que continua a repetir a última coisa que alguém diz. Narciso não se abalou nada com o desgosto de Eco, nem com o de centenas de outras cujo amor rejeitou. Um dia, alguém que suspirava por Narciso apanhou uma fúria e pediu aos deuses que o enfadado rapaz se apaixonasse por quem o tratasse tão mal como ele tratava as outras.

Houve um dia em que ele foi caçar, como de costume, e começou a sentir sede, pois a tarde estava quente. Encontrou uma lagoa, ajoelhou-se para beber mas viu a sua imagem nas águas paradas e ficou de imediato apaixonado. Tentou convencer-se de que a imagem que vira na lagoa era a de outra pessoa, alguém que para troçar dele imitava os seus movimentos. Narciso estendeu uma mão para tocar o amado rapaz que estava na água, e o rapaz estendeu a mão em resposta, mas em vez de dedos quentes, o que ele sentiu foi apenas a água. Tentou beijar o seu amado, mas por mais que mergulhasse o rosto na água, aos seus lábios só chegava água. Narciso deixou de comer, deixou de dormir e não podia afastar-se da lagoa. Ele sabia que estava apaixonado pelo seu próprio reflexo, mas o seu coração ignorava tudo o que ele lhe dizia. Ele desejou separar-se dele próprio, para poder amar-se a si mesmo como desejava tão ardentemente. Narciso começou a definhar como tinha acontecido a Eco, até estar prestes a morrer.

Então Eco voltou à lagoa, para ouvir o seu amado Narciso pela última vez. «Sou tão infeliz», gemeu ele, e Eco respondeu: «Sou tão infeliz.»

Narciso lamentou-se: «O meu amor é fútil.»

E Eco retorquiu: «O meu amor é fútil.» Ele já não tinha forças para falar e não tardou a morrer.

As ninfas choravam sobre aquele corpo desperdiçado e preparavam-no para os ritos fúnebres, mas quando terminaram, o corpo tinha desaparecido. Tinha-se transformado numa flor branca e amarela, com pétalas em forma de trompeta, que floresce no início da primavera. Foi assim que nasceu o primeiro Narciso.

Apolo e Jacinto

Os homens e mulheres mortais que os deuses desejaram, normalmente morreram jovens, algumas vezes por terem rejeitado as investidas dos deuses e outras vezes porque algum outro deus ciumento decidiu puni-los. Jacinto morreu porque dois deuses se apaixonaram por ele ao mesmo tempo.

Ele era filho do rei Amiclas e da rainha Diomede e tornou-se famoso em toda a Lacônia pela sua beleza. Apolo apaixonou-se por ele e o mesmo aconteceu com Zéfiro, o rei do vento de oeste. Num dia quente de verão, Jacinto e Apolo estavam a jogar à malha, quando Zéfiro se meteu no jogo. Soprou tão violentamente a malha que Apolo tinha lançado, que esta foi bater com toda a força na cabeça de Jacinto tendo-lhe provocado a morte imediata. Apolo chorou sobre o corpo do belo rapaz, e transformou o sangue dele que caiu no solo numa flor, o jacinto. Nas suas pétalas podem ver-se as letras «AI», que também em grego são um lamento. Quando Jacinto morreu, o deus não pôde trazê-lo de volta à vida como ser humano, mas a planta jacinto morre em cada verão quente, como se fosse morta pelo Sol, e renasce na primavera do ano seguinte.

Apolo e Clítia

Afrodite (Vênus) decidiu que Apolo andava a imiscuir-se demais nos assuntos dela. Tinha sido ele que tinha contado ao marido Hefesto (Vulcano) do amor dela por Ares (Marte) e, como punição, ela pediu ao filho Eros (Cupido) para atirar uma flecha de amor sobre o deus Sol. Após ser atingido pela seta de Eros, Apolo apaixonou-se de imediato por Leucótoe, princesa da Pérsia e disfarçou-se da mãe dela. Ordenou então aos servos que saíssem do quarto e revelou-se a Leucótoe como um deus. Que mais podia ela fazer para além de se submeter e chorar?

A irmã de Leucótoe, Clítia, desejava Apolo também apaixonadamente, mas o deus Sol só se interessava pela sua amada Leucótoe. Naquela noite, quando ela se convenceu de que Apolo não queria saber dela, Clítia correu para junto do pai, o rei Oceano, e dominada pelos ciúmes contou-lhe que a irmã tinha um amante secreto. O rei sentenciou que Leucótoe fosse queimada viva imediatamente sob um monte de areia. Na manhã seguinte, Apolo olhou lá de cima do seu carro e viu o que tinha acontecido. Espalhou a areia, mas era tarde demais. Leucótoe estava esmagada e morta. A única coisa que o deus pôde fazer foi transformar o seu corpo sem vida numa nova planta, o incenso, cuja seiva aromática era queimada nos templos de Apolo.

Clítia sonhava que Apolo se pudesse apaixonar por ela agora que a irmã rival estava morta, mas ele odiava-a pelo que tinha feito. Clitia não podia comer nem beber, nem dormir e a única coisa que podia fazer era chorar toda a noite e ficar sentada ao Sol durante todo o dia, virando a cabeça para ver Apolo no seu carro. Após nove dias, as pernas transformaram-se em raízes e o fino corpo metamorfoseou-se num caule alto e fino, enquanto a cabeça se tornou numa flor dourada. Tinha-se tornado no primeiro girassol, uma planta cujas flores seguem os passos do Sol.

Báucis e Filémon

Freqüentemente, os deuses gostavam de se disfarçar de seres humanos, para investigar crimes, dar conselhos aos heróis e testar a devoção do povo. Um dia, Zeus (Júpiter) e o filho Hermes (Mercúrio) desceram à Terra, em Frígia, disfarçados de pessoas comuns e começaram a procurar um lugar para passarem a noite. Era dever de todos os Gregos serem hospitaleiros para os estranhos, mas os dois deuses tiveram de tentar muitas casas antes de encontrarem uma que os deixasse entrar. Era a mais pobre de todas, feita de lama, colmo e canas, e estava prestes a desmoronar-se no lamaceiro em que se erguia. Um casal idoso abriu imediatamente a porta da casa convidando os deuses a entrarem, enquanto pediam desculpa pela pobreza em que viviam. A mulher idosa, Báucis, pegou num bocado de presunto que há muito se encontrava pendurado no teto e cortou uma boa dose para fazer um guisado. O marido, Filémon, foi buscar todas as achas que tinha para fazer uma fogueira, depois foi à horta e apanhou os legumes e a fruta que encontrou, para os juntar ao guisado. Em seguida o casal deu água aos deuses para se lavarem e puseram as roupas de festa já muito remendadas no único colchão que tinham, esperando que os hóspedes inesperados se sentissem bem-vindos.

A mesa oscilava por todo o lado, o colchão estava gasto e as roupas de festa eram usadas, mas Báucis limpara a mesa com hortelã e colocara sobre ela toda a comida que tinha em casa: ovos, fruta, queijo, legumes frescos e depois o guisado de presunto e vegetais. Serviu vinho e água, e quando todos tinham comido, ofereceu aos hóspedes frutos secos e bagas, tâmaras e maçãs, e mel acabado de tirar da colmeia. Ela receava que, no fim da refeição, os convidados ainda tivessem fome e sede, mas não havia mais nada em casa que pudesse oferecer. Então ela reparou que o jarro do vinho continuava cheio, embora Filémon tivesse enchido as taças dos convidados várias vezes. Ela e o marido ajoelharam-se lado a lado, orando para que os visitantes divinos tivessem aceite a humilde refeição.

Filémon teve de repente uma idéia. Podia matar o ganso que guardava a cabana e que os avisava da chegada de visitantes com o seu grasnar incessante, e cozinhá-lo em honra destes convidados extraordinários. Filémon saiu para ir apanhar o ganso, mas a sua avançada idade tornava-o lento e o ganso correu rapidamente para dentro da casa e refugiou-se no regaço do grande Zeus. «Não mates o teu guarda fiel», disse o deus, «e não fiquem aqui mais tempo. Tencionamos vingar-nos de toda essa gente que nos virou as costas e violou assim a lei da hospitalidade a estranhos, mas vocês merecem viver. Subam a montanha connosco e não olhem para trás até chegarem ao cimo.» Báucis e Filémon levaram muito tempo a subir a montanha, e quando finalmente chegaram ao cimo olharam para trás e viram que todos os campos estavam inundados e apenas a casa deles continuava de pé, mas tinha deixado de ser uma cabana.

Em vez de lama e colmo, era agora um templo em mármore com um telhado de ouro. Zeus ofereceu a Báucis e Filémon tudo o que quisessem. «Deixem que vos sirvamos», responderam eles, «como sacerdote e sacerdotisa do vosso templo.

E depois, quando for altura de morrermos, fazei com que morramos no mesmo instante, para que nenhum de nós sofra a perda do outro.» Zeus teve muito gosto em satisfazer ambos os desejos.

Durante anos depois do ocorrido, o velho casal continuava a viver como sacerdote e sacerdotisa de Zeus, até que um dia pararam em frente do templo de mármore e constataram que não podiam continuar a andar.

As quatro pernas de ambos transformaram-se em raízes que se prenderam com firmeza ao solo e os corpos começaram a ganhar folhas. Zeus tinha satisfeito o desejo especial de ambos viverem a vida humana juntos e continuaram a viver como árvores entrelaçadas em frente do templo.

 
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1/23/2021 11:45:18 AM | Por Jacques le Goff
O Papa e o Imperador: Confusão política na Idade Média

No plano politico da evolução histórica, os fenômenos aparecem muitas vezes complexos, perdidos nas particularidades dos homens, dos acontecimentos, e dos textos dos historiadores facilmente seduzidos por tais aparências e aparições superficiais. A historia política do Ocidente medieval é especialmente complicada porque reflete o extremo desmembramento em virtude da fragmentação da economia e da sociedade, e do monopólio dos poderes públicos pelos chefes de grupos mais ou menos isolados. Mas a realidade do Ocidente medieval não está somente nesta atomização da sociedade e do governo, está também na confusão horizontal e vertical dos poderes. Entre os múltiplos senhores, a Igreja e as igrejas, as cidades, os príncipes e os reis, os homens da Idade Media nem sempre sabem de quem dependem politicamente. No próprio âmbito da administração: e da justiça, os conflitos de jurisdição que se repetem continuamente exprimem esta complexidade.

Como conhecemos o desfecho da história, podemos neste domínio tomar como fio condutor a evolução dos Estados.

Pouco após o ano mil, dois personagens parecem guiar a Cristandade: o papa e o imperador. O conflito entre eles ocupara o primeiro plano ao longo de todo o período: Teatro de ilusões, por trás do qual se passarão as coisas mais importantes.

Após a morte de Silvestre II (1003), o papado não faz boa figura. Caiu nas mãos dos senhores do Lácio, e depois de 1146; nas mãos dos imperadores germânicos. Mas recuperou-se em seguida. Melhor ainda, libertou, também toda a Igreja do poder senhorial laico. É ao nome de Gregório VII (1073-1085) que se liga a Reforma Gregoriana, que constitui apenas o aspecto mais exterior do grande movimento da Igreja rumo às suas raízes. Tratava-se de restaurar a autonomia e o poder da classe dos sacerdotes em face da classe dos guerreiros. A Igreja teve que se renovar e dar contornos a si própria, de onde a luta contra a simonia e a lenta instauração, do celibato clerical. De onde a tentativa de independência do papado ao reservar a eleição do pontífice aos cardeais (decreto de Nicolau Item 1059). De onde, sobretudo, os esforços para subtrair o clero do domínio da aristocracia laica, para retirar do imperador e, por isso, dos senhores; a nomeação e investidura dos bispos; e para, ao mesmo tempo, submeter o poder temporal ao poder espiritual baixando o gládio temporal diante do gladio espiritual ou mesmo entregando os dois gládios ao papa. Gregório VII pareceu ter vencido por ocasião da humilhação do Imperador Henrique IV em Canossa (1077). Mas o penitente imperial teve em seguida sua revanche. Urbano 11, mais prudente, aprofundou a obra e recorreu ao expediente da Cruzada com o fim de atrair para si a autoridade sobre, a cristandade. Em 1122 chegou-se a um compromisso em Worms: o imperador reservou ao papa a investidura pelo: báculo e pelo anel prometeu respeitar a liberdade das eleições e consagrações, mas conservou a investidura "pelo cetro" do, poder temporal dos bispados.

A luta reacendeu sob outras formas com Frederico I  Barba-Ruiva (1152-1190) e atingiu o clímax na primeira metade do século 13 com Frederico II. Ao final, o papado pareceu definitivamente vitorioso. Frederico II morreu em 1250 deixando o imperador exposto a anarquia do Grande Interregno (1250-1273). Mas ao combater um ídolo de pés de barro, um poder anacrônico como o do imperador, o papa negligenciou chegando por vezes a favorecer a emergência de um novo tipo de poder, o dos reis.

O conflito entre o mais poderoso deles Filipe o Belo, rei da França, e o papa Bonifácio VIII, terminou com a humilhação do pontífice, esbofeteado - em Agnani (1303) e exilado, e com o "cativeiro" do papado em Avinhão (1305-1376). Na primeira metade do século 14, o confronto entre o papa Joao XXII e o imperador Luís da Baviera será apenas uma sobrevivência que permitirá aos partidários de Luís; sobretudo a Marsílio de Pádua, em seu Defensor Pacis (1324), definir um novo modelo de cristandade na qual os poderes espiritual e temporal estavam nitidamente separados. Com ele a laicização desembocou na ideologia politica: Dante, o último grande partidário da confusão dos poderes, o ultimo grande homem da Idade Media - a qual resumiu em sua obra genial -, morreu em 1321, com o olhar voltado para o passado.

História - França
Cosmografia - , 
1/20/2021 12:15:45 PM | Por A. S. Franchini
Os céus e os submundos astecas

Além da geografia horizontal, os astecas também possuíam uma vertical: um universo escalonado, composto por 22 níveis, divididos em 13 céus e 9 inframundos. A Terra, chamada de Tlalticpac ("Sobre a Terra"), era considerada o primeiro piso - ou a "capa" do inframundo. Diz a lenda que Tlalticpac, o mundo terrano, se originou de parte do monstro Cipactli, um crocodilo gigante que foi esquartejado pelos deuses. Parte dele se converteu na Terra e parte no céu, que foi erguido por quatro deuses ou gigantes e sustentado por pilares, a fim de não tornar a se juntar à Terra. Cipactli foi homenageado no calendário mágico (tonalpohualli) como o primeiro dos vinte signos do "zodíaco" asteca.

Mas que forma passou a possuir a Terra após essa gênese violenta?

Jean Marcilly diz que, para os astecas, a Terra é um disco chato, cruzado pelos pontos cardeais, sendo o ponto de confluência de duas pirâmides, cujos vértices principais se tocam. A pirâmide de cima são os céus; a de baixo, os inframundos. A de cima recebe as horas do dia; a de baixo, as horas da noite.
Ao redor do Tlalticpac (Terra) está um rio chamado Chicunauhapín ("A Corrente dos Nove").

A Região celeste

Do topo para baixo, são estes os céus astecas, em grau de importância:

13° céu: Omeyocín. ("Região da Dualidade"). Morada do deus supremo Ometeotl, "O Senhor da Dualidade", que se compõe de duas divindades: Ometecuhtli (masculino) e Omecihuatl (feminina). Ambos são os criadores de todos os demais deuses e de tudo quanto há no universo;

12° céu: Teteocín ("Morada dos Deuses"). A região onde os deuses vivem e assumem as mais diversas aparências;

11° céu: Yayauhtlín ("Região Vermelha"). Região do Sol no crepúsculo;

10° Céu: Cozauhquitlín ("Região do Amarelo"). Região da divindade amarela (teotlcozauhca);

9° Céu: Iztlín ("Região Branca"). Região da divindade branca (teotliztaca);

8° Céu: Iztlacoliuhqui ("Região Onde se Chocam as Lâminas de Obsidiana"). Essa região celeste é assim chamada porque nela se dão as tempestades. Tezcatlipoca comparece ali, junto com Tlaloc, disfarçado de deus do frio (Iztlacoliuhqui);

7° céu: Ilhuicatl Xoxouhqui ("Aquele que Mostra seu Rosto Durante o Dia"). É o céu do deus nacional asteca Huitzilopochtli, cujas cores são o azul e o verde;

6° Céu: Yayauhco ("Região Celeste Verde e Negra"). O céu dominado por Tezcatlipoca (verde e negro são as suas cores características). É a região onde nasce a noite;

5° Céu: Ilhuicatl Mamoloaco ("Lugar Onde as Estrelas Fumegam"). É a região celeste por onde transitam os cometas e as estrelas errantes. Quando os cometas possuem "cauda" se chamam Citlalmim; quando possuem "cabeleira"se chamam Xihuitli;

4° Céu: Ilhuictlal Huitztlín ("Onde se Move Vênus"). Ali habita a maior das estrelas, conhecida entre nós como Vênus e chamada pelos astecas de Hey Citlalin ("A Estrela Maior e mais Brilhante"). Está associada ao deus Quetzalcoatl como estrela da manhã e da tarde. A deusa do sal (ou das águas salgadas) Huixtocihuatl também vive ali, juntamente com as aves;

3° Céu: llhuicatl Tonatiuh ("Onde se Move o Sol"). Habitado por Tonatiuh, o Quinto Sol asteca;

2° Céu: llhuicatl Citlaco ("Onde se Movem as Estrelas"). Nesse céu, as estrelas estão divididas em dois grupos: as Estrelas do Norte (Centzon Mimixcoa) e as Estrelas do Sul (Centzon Huitzinahua). Além delas, temos também a Via Láctea (Citlaltonac) e a constelação da Ursa Maior e de Escorpião. Também ali vivem, segundo algumas versões, as tzitzimime, "mulheres de mau agouro" feitas só de ossos e encarregadas de devorar a humanidade no final dos tempos;

1° Céu: llhuicatl Meztli ("Onde se Move a Lua"). O mais próximo do Tlalticpac (Terra), é o céu, como o próprio nome diz, onde estão situadas a Lua (Meztli) e as nuvens. Entre as divindades habitantes desse primeiro céu estão, além de Meztli (ou Tlazolteotl, em sua "versão lunar"), Tlaloc, deus da chuva, e Ehecatl, deus do vento.

O inframundo asteca

Chamado genericamente de Mictlín, era uma espécie de "campo de provas" sobrenatural para o qual as pessoas iam após morrer (o destino estava vinculado ao tipo de morte sofrida, e não à conduta: todos quantos sofressem uma morte considerada natural deviam percorrer as regiões do Mictlín). Com uma pedra de jade enfiada entre os dentes, que funcionava como uma espécie de "coração de troca", o morto estava pronto para enfrentar uma longa viagem de quatro anos que o levaria até o nível mais profundo do inframundo, onde encontraria o repouso e a desaparição final.

A região subterrânea

Da Terra em direção às profundezas, são estes os nove níveis do inframundo asteca:

Apanohuaia ("Onde Passa o Rio"): situado na superfície da Terra, era o local onde corria o rio Chicunauhapín ("A Corrente dos Nove"), espécie de Aqueronte asteca que os mortos deviam atravessar com a ajuda de um cão (o local também era chamado de Itzcuintlín, "Lugar do Cão"). Normalmente, sacrificava-se o cão que pertencera ao morto para servir de guia ao seu dono. Tinha de ser cinza ou vermelho, pois o branco se recusaria a entrar nas águas pútridas do rio, a fim de não se sujar, e o preto para não desbotar (ou porque, misturado à treva, se tornaria invisível);

Tepectli Monanamictlín ("Lugar Onde as Montanhas se Chocam"): consistia de duas montanhas flutuantes que estão sempre se chocando (aqui não há como deixar de evocar os Rochedos Flutuantes da Odisseia). Esses rochedos, na verdade, seriam uma espécie de portas ou batentes os quais era preciso atravessar para se ingressar no Micilín propriamente dito;

Iztepetl ("Montanha das Navalhas"): era uma montanha incrustada de navalhas de obsidiana que o morto devia escalar em direção às profundezas (a contradição é apenas aparente: o Mictlán é um mundo invertido, sendo preciso subir, portanto, para se chegar ao subterrâneo.);

Itzehecayín ("Lugar do Vento de Obsidiana"): aqui a sovada metáfora do "vento cortante como uma navalha" se torna a mais pura realidade: ao chegar ao topo do monte Iztepetl o morto se depara com um vento glacial, feito de lâminas geladas de obsidiana. Desviar-se delas é tarefa que o ocupará suficientemente até conseguir ingressar no inframundo seguinte;

Paniecatlacayín ("Lugar Onde os Corpos Flutuam como as Bandeiras"): ali, como o próprio nome diz, os corpos dos mortos flutuam pelos ares, carregados pelo vento. Quando estão próximos de abandonar o local, um novo pé de vento os atira de volta ao redemoinho. (Alguns dizem tratar-se de um lugar "embandeirado", interpretando ao pé da letra o nome do lugar.);

Temiminaloyín ("Lugar do Flechamento"): lugar onde todas as flechas perdidas nas batalhas terrenas são reutilizadas contra os mortos por um arqueiro misterioso. Escapar à obstinação do flechador sobrenatural é a tarefa do morto;

Teocoyolcualoya ("Onde as Feras Devoram os Corações"): nesse local há uma fera - um jaguar, um coiote, ou mesmo um crocodilo, dependendo do exegeta - que se dedica a comer o coração do morto que ali ingressa. Segundo a crença, seria esta a razão de o morto levar entre os dentes uma pedra de jade, que ofertaria à fera no lugar do coração;

Yzmictlín Apochcaloca ("Onde se Perde a Visão no Caminho da Névoa"): também chamado de Apanhuiayo ("Laguna das Águas Negras"), é o local onde o morto, despido de toda a matéria, mergulha numa laguna de nove correntes, ingressando num sono profundo. A essa altura, exausto e reduzido a quase nada, já não teme nem deseja mais coisa alguma;

Chicnauhmictlín ("O Nono Lugar do Inframundo"): assim como há no topo dos treze céus um casal celestial, também aqui, no último nível do inframundo, há um casal ínfero: Mictlantecuhtli e sua esposa Mictlancihuatl. Espécie de contrafação macabra do casal celestial, eles são os anfitriões da última morada. Aranhas sobem e descem pelos seus corpos descarnados, enquanto morcegos se aninham nos seus cabelos brancos e ressecados. Diante da perspectiva de vir a tornar-se hóspede perpétuo deste casal abominável, o morto reencontra finalmente a paz de espírito, aceitando com gratidão a ideia de sua extinção definitiva nas trevas do Mictlín.

Mitologia - Mitologia Asteca
Saúde - Prevenção, Prevenção primária
1/19/2021 5:26:08 PM | Por Charles Richard Snyder
Intercedendo para prevenir o que é ruim e potencializar o que bom

Ávida para começar, uma nova clien­te de psicoterapia anunciou apaixonadamente: “Quero fazer que as coisas ruins parem de acontecer, mas não só isso... que­ro mais coisas boas!”. Suas palavras dão conta das duas categorias amplas de inter­venção que exploramos neste capítulo. A primeira categoria, interromper o que é ruim, envolve esforços para prevenir que coisas negativas ocorram posterior­mente, e pode ser dividida em prevenções primárias e secundárias. As prevenções pri­márias reduzem ou eliminam os problemas físicos ou psicológicos antes que eles sur­jam. As prevenções secundárias reduzem os problemas após seu surgimento. Esse se­gundo processo costuma ser chamado de psicoterapia.

A segunda categoria, produzir mais coisas boas, significa potencializar aquilo que as pessoas querem de suas vidas; ela também pode ser dividida em tipos primá­rio e secundário. As potencializações primá­rias estabelecem um bom funcionamento e uma boa satisfação. As potencializações secundárias vão ainda mais longe, contu­do, partindo de funcionamento e satisfa­ção já bons para chegar a experiências máximas. As potencializações primárias tornam as coisas boas (criam experiências ótimas), ao passo que as secundárias si­tuam as coisas no melhor que elas podem ser (criam experiências máximas).

Se cada uma dessas abordagens pri­márias e secundárias à prevenção e potencialização tivesse que ter um slogan, suge­riríamos os seguintes:

  • Prevenção primária: “parar o que é ruim antes que aconteça”.
  • Prevenção secundária (psicoterapia): “consertar o problema”.
  • Potencialização primária: “tomar a vida boa”.
  • Potencialização secundária: “fazer da vida o melhor possível”.

Prevenção primária: interromper o que é ruim antes que aconteça 

Definição

Como mostrado na extrema esquer­da da Figura 15.1, as prevenções primá­rias refletem as ações que as pessoas rea­lizam para reduzir ou eliminar a probabi­lidade de ter dificuldades psicológicas (Heller, Wyman e Allen, 2000) ou proble­mas físicos (Kaplan, 2000) subsequentes. Com as prevenções primárias, as pessoas ainda não estão manifestando quaisquer problemas, e é só mais tarde que esses [312] problemas vão aparecer, se não forem dados passos para proteção, ou profiláticos (Snyder, Feldman, Taylor, Schroeder e Adams, 2000). Quando a prevenção pri­mária é dirigida à população de uma co­munidade inteira, chama-se de prevenção universal (por exemplo, vacinações em crianças); quando visam a uma determi­nada população em risco, chama-se pre­venção seletiva (como visitas aos domicí­lios em busca de crianças que nascem abai­xo do peso; Munoz e Mendelson, 2004).

Figura 15.1

As atividades de prevenção primária se baseiam na esperança em relação ao futuro. Como expressam Snyder e colabo­radores (2000, p. 256), “sugeriríamos que a prevenção é, em seu âmago, um ato de esperança, uma visão positiva, fortalecida, sobre a capacidade da pessoa de agir com vistas a conquistar melhores amanhãs”. Como um exemplo intrigante (descrito em Munoz e Mendelson, 2004) do fato de que a prevenção não precisa implicar um en­tendimento completo de um determinado problema ou doença, consideremos o sur­to de cólera em Londres, no século XIX. Embora John Snow ainda não soubesse qual era o verdadeiro fator causal em ní­vel bioquímico, ele sabia o suficiente para conseguir interromper a epidemia ao re­mover a alavanca da bomba de água na Rua Broad! O palpite de Snow era de que a cólera era transmitida por alguma coisa na água que vinha da bomba desse local.

De fato, ele conseguiu impedir a difusão da cólera ao cortar essa fonte.

A prevenção primária pode ocorrer em nível governamental. Ao estabelecer e aplicar as leis que permitem que as pesso­as tenham sucesso em função de seus mé­ritos e seus esforços, por exemplo, um go­verno pode reduzir as conseqüências ne­gativas para seus cidadãos (Snyder e Feldman, 2000). Havendo uma legislação contra práticas contratuais danosas, como racismo e sexismo, os cidadãos individuais provavelmente permanecerão satisfeitos porque percebem que têm oportunidades iguais de obter os empregos que desejam. Da mesma forma, quando os cidadãos per­cebem que as leis possibilitam oportunida­des iguais de ir em busca de atividades vol­tadas a objetivos, eles deveriam

  1. sentir-se menos frustrados a agressivos (um aspecto da hipótese de frustração-agressão [Zillman, 1979]);
  2. continuar a fazer esforços em seus am­bientes profissionais e pessoais (o re­sultado negativo, nesse caso, foi cha­mado de desamparo aprendido [Peter­son, Maier e Seligman, 1993]); e
  3. ter menos probabilidades de cometer suicídios (Rodriguez-Hanley e Snyder, 2000).

Sobre esse último aspecto, em um estudo realizado em diversos países, Krauss [313] e Krauss (1968) examinaram o grau em que os cidadãos consideravam que seus governos os bloqueavam em suas diversas atividades voltadas a objetivos. Os pesqui­sadores concluíram que os maiores blo­queios percebidos tinham uma correlação significativa com taxas de suicídio mais ele­vadas entre os diversos países.

O que quer que se possa fazer para aumentar os níveis educacionais, em ter­mos locais e nacionais, servirá a propósi­tos de prevenção primária ao reduzir as chances de que os cidadãos venham a ter má saúde e ser psicologicamente infelizes (Diener, 1984; Veroff, Douvan e Kulka, 1981). Além disso, quaisquer ações reali­zadas para promover o emprego devem impedir que as pessoas incorram em desa­justes psicológicos e físicos (Mathers e Schofield, 1998; Smith, 1987).

Aprevenção primária é eficaz?

Em termos gerais, as intervenções pri­márias são bastante eficazes (Albee e Gullotta, 1997; Durlak, 1995; Durlak e Wells, 1997; Mrazek e Haggerty, 1994; Yoshikawa, 1994). Para entender a magni­tude dos efeitos das iniciativas de preven­ção primária, considere os resultados de uma meta-análise (uma técnica estatística que possibilita que os pesquisadores com­binem resultados de vários estudos para descobrir tendências comuns) realizada por Durlak e Wells (1997). Durlak e Wells examinaram a eficácia dos programas de prevenção para problemas comportamentais e sociais de crianças e adolescentes, concluindo que a prevenção dava resulta­dos eficazes semelhantes em magnitude (e, em alguns casos, superiores) aos procedi­mentos médicos, como quimioterapia para câncer ou cirurgia para implantação de ponte de coronária.

Além disso, os autores observaram que, com relação a participan­tes de grupos de controle, os que partici­param de programas de prevenção estavam em algum ponto entre 59 e 82% melhores em termos de redução de problemas e au­mento de competências.

Componentes das prevenções primárias eficazes

Heller e colaboradores (Heller et al., 2000, p. 663-664) apresentaram cinco su­gestões para implementar prevenções pri­márias com sucesso. Em primeiro lugar, as populações-alvo devem receber informa­ções sobre o comportamento de risco a ser prevenido. Em segundo, o programa deve ser atraente, devendo motivar os partici­pantes potenciais a aumentar os compor­tamentos desejados e reduzir os indesejados. Em terceiro, o programa deve ensi­nar habilidades de solução de problemas e como resistir a retomar aos padrões con­traproducentes anteriores. Quarto, deve mudar quaisquer normas ou estruturas so­ciais que reforcem comportamentos con­traproducentes. Sobre esse último aspecto, são necessários o apoio e a aprovação social para superar as qualidades gratificantes dos comportamentos problemáticos. Quinto, devem-se coletar dados para possibilitar a avaliação das conquistas do programa. Es­ses dados de avaliação podem ser usados posteriormente para argumentar em nome da implementação de programas de pre­venção primária em outros ambientes.

O programa Head Start: um exemplo de prevenção primária

Talvez o exemplo mais destacado de prevenção primária seja o programa Head Start, que teve início na década de 1960, como parte da guerra contra a pobreza, do presidente Lyndon Johnson. O programa foi implementado em resposta a amplas preo­cupações de que crianças pobres dos Esta­dos Unidos não estivessem recebendo [314] estimulação cognitiva e intelectual suficientes para ter os benefícios adequados de seus estudos. Infelizmente, algumas crianças eram reprovadas com frequência, desde o momento em que ingressavam na escola.

O objetivo era dar às crianças pobres um nível de preparação que refletisse aquele de seus colegas economicamente mais privilegiados. Além de seus componentes educacionais, o Head Start acrescentou refeições nutritivas, triagens médicas e for­mação para os pais. Esta se revelou especi­almente eficaz, com os resultados tendo mostrado que, quando as crianças freqüen­tavam o programa por pelo menos três dias por semana, durante dois anos ou mais, e quando os pais estavam envolvidos, os be­nefícios em termos de desempenho esco­lar eram sólidos e duradouros (Ramey e Ramey, 1998). O Head Start também mos­trou a crianças e seus pais que eles não precisavam retomar comportamentos con­traproducentes anteriores; além disso, esse programa mostrou que era possível uma vida melhor para as crianças. Por fim, com­parado a vários outros programas de pre­venção, o Head Start foi testado exaustiva e repetidamente para mostrar que funcio­nava. Talvez o resultado mais fundamental tenha sido que as crianças que participa­ram do programa tiveram melhores resul­tados acadêmicos do que seus colegas que não participaram (Ramey e Ramey, 1998).

Prevenções primárias para minorias étnicas

Em uma versão modificada dos pro­gramas de redução de risco para crianças da área rural, de Bierman (1997), Alvy (1988) desenvolveu um programa eficaz de formação de pais voltado a afro-americanos. Esse programa enfatizava o orgu­lho, as habilidades de estudo e a obediên­cia às autoridades. Da mesma forma, ensi­nou-se aos pais a importância de dar apoio familiar a seus filhos. Alvy teve o cuidado de usar funcionários de diversas origens raciais, tanto em nível local quanto nacio­nal, com especialistas afro-americanos. Um programa igualmente eficaz foi implemen­tado para a formação de mães mexicano-americanas (D. L. Johnson, 1988).

O fato de membros da família e da comunidade terem sido abordados de for­mas culturalmente sensíveis parece ter sido um importante fator para o sucesso desses programas. Além disso, todos os programas destacam que o apoio da comunidade de inserção é crucial para a adoção de novas atitudes (orgulho, estudo, disciplina, etc.) Por fim, embora tenha havido alguma testagem empírica da eficácia desses pro­gramas, devem-se continuar as análises para examinar suas utilidades, dentro e fora das culturas das minorias envolvidas.

Prevenções primárias para crianças

Vários programas de prevenção pri­mária visavam a crianças e jovens em situa­ção de risco. O trabalho de Shure e Spivak (Shure, 1974; Shure e Spivak, 1988; Spivak e Shure, 1974) é exemplar para ensinar ha­bilidades de solução de problemas a crian­ças que tinham probabilidades de usar res­postas impulsivas e inadequadas ao se de­parar com problemas interpessoais. Projetavam-se vidas infelizes para essas crian­ças, nas quais elas recorreriam ao crime e a comportamentos agressivos. Como antí­doto a esses problemas previstos, as crian­ças aprenderam a produzir outras soluções para seus problemas, que não as explosões agressivas. Esses exitosos programas de prevenção primária com base na solução de problemas foram ampliados a turmas de 5a a 8a séries (Elias, Gara, Ubriaco, Rothbaum, Clabby e Schuyler, 1986) e a adolescentes identificados com probabili­dades de usar drogas (Botvin e Torn, 1988), engravidar (Weissberg, Barton e Shriver, 1997) ou contrair o HIV (Jemmot, Jemmot e Fong, 1992).

Discutimos agora um programa que teve bastante êxito em ajudar crianças em [315] risco de depressão. Usando o modelo de otimismo aprendido de Seligman (vide o Capítulo 9), Gillham, Reivich, Jaycox e Seligman (1995) implementaram um pro­grama de prevenção primária de 12 sema­nas, para crianças de 5a a 6a séries. O pro­grama de prevenção ajudou as crianças a identificar visões negativas de si mesmas e a mudar suas atribuições para outras, mais otimistas e realistas. Em relação a um gru­po de controle de crianças que não recebe­ram esse pacote de prevenção, as que par­ticiparam do grupo experimental tiveram depressão significativamente mais baixa. Essas conclusões estavam diretamente liga­das a sua aprendizagem de atribuições mais otimistas. (Para conclusões análogas com estudantes do ensino médio, vide Clarke, Hawkins, Murphy, Sheeber, Lewinsohn e Seeley [1995].) O programa de Seligman é especialmente elogiável porque tem ava­liado sua eficácia permanentemente em termos de resultados positivos das crian­ças participantes que, caso contrário, estariam em risco de depressão grave.

Prevenções primárias para idosos

Os programas de prevenção destina­dos a idosos podem se concentrar em mui­tos objetivos diferentes, incluindo a tria­gem para reduzir a probabilidade de pro­blemas de saúde física e doenças posterio­res (Ory e Cox, 1994), a verificação das condições de moradia para remover riscos físicos que podem levar a quedas e outros acidentes (Stevens et al., 1992) e tentati­vas de maximizar o envolvimento profis­sional, social e interpessoal dos idosos (Payne, 1977). Um desses intrigantes pro­gramas de prevenção, chamado Grandma Please, faz que as crianças telefonem para seus avós depois da escola (Szendre e Jose, 1996). Embora tenham sido variados, os resultados desse programa se baseiam na premissa contundente de que manter os idosos envolvidos e participando ativamen­te em suas famílias os impede de entrar em uma espiral de vida marcada pelo iso­lamento e a depressão. Infelizmente, esses programas para idosos não geraram ne­cessariamente resultados uniformes. Por exemplo, Baumgarten, Thomas, Poulin de Courval e Infante-Rivard (1988) partiram do pressuposto de que fazer com que os adultos mais velhos ajudassem seus vizi­nhos debilitados seria benéfico para os pri­meiros, mas acabaram não encontrando re­sultados positivos. Em relação a essa últi­ma ausência de resultados esperados, pode ser o caso de que passar tempo com a fa­mília seja mais importante para os idosos nessas atividades de prevenção do que passá-lo com novos amigos (Thompson e Heller, 1990). Obviamente, é necessário fa­zer mais pesquisas para entender quais ti­pos de prevenção realmente funcionam para os idosos, e isso se tornará mais importante à medida que a grande coorte de nascidos na explosão demográfica posteri­or à Segunda Guerra Mundial tenha uma idade mais avançada.

Advertências com relação à prevenção primária

Vários fatores dificultam a implemen­tação de programas de prevenção primá­ria. Em primeiro lugar, as pessoas tendem a acreditar que o futuro resultará em coi­sas boas que acontecerão a elas, enquanto as coisas ruins acontecerão aos outros. Esse fenômeno foi chamado de ilusão da sin­gularidade (Snyder e Fromkin, 1980) ou invulnerabilidade singular (Snyder, 1997). Uma forma de redução dessas vi­sões falsas é proporcionar às pessoas in­formações estatísticas sobre o quanto é tí­pico se deparar com problemas. Isso faz que pareça mais “normal” ter o problema, e os receptores dessa informação ficam mais dispostos a buscar ajuda antes que o problema cresça a um tamanho tal que seja difícil de tratar.

Em um teste empírico dessa aborda­gem, Snyder e Ingram (1983) disseram a [316]  estudantes universitários, metade dos quais tinha ansiedade elevada em testes, que havia alta prevalência de ansiedade entre universitários. Os resultados mostraram que apenas os estudantes com alta ansie­dade passaram a percebê-la como normal e tiveram mais probabilidades de procurar tratamento. Uma abordagem parecida é mostrar anúncios de televisão curtos ou es­trelas de filmes contando que buscaram tra­tamento e agora estão melhores (Snyder e Ingram, 2000b). Resumindo, ao normali­zar o problema, as pessoas que o têm po­dem estar mais dispostas a buscar ajuda para tratá-lo.

Outra força que sabota as atividades de prevenção é a dificuldade de convencer as pessoas de que esses programas são efi­cazes e valem o esforço. As pessoas ten­dem a permanecer passivas e a acreditar que “as coisas vão acabar dando certo”. Além disso, as instituições de financiamen­to podem não enxergar o ganho, ou seja, que fazer alguma coisa agora vai ter bene­fícios anos mais tarde. Uma maneira de corrigir essa percepção equivocada é reali­zar pesquisas para mostrar os ganhos dire­tos em termos de aumento de produtivida­de e dinheiro economizado por essas instituições onde se podem ampliar as preven­ções (empresas, organizações governamen­tais, etc.) (Snyder e Ingram, 2000b). Se as pesquisas mostrarem a uma empresa que iniciativas de prevenção primária podem economizar seu dinheiro no longo prazo, ela provavelmente investirá dinheiro nes­sas atividades.

Por fim, ainda que tenha havido avanços na área de prevenção, é necessário um tempo considerável até que essas conclu­sões sejam publicadas e se tornem parte da base de conhecimento da psicologia (Clark, 2004). Embora tenhamos bastante conhecimento sobre como intervir contra as psicopatologias (em função da aplica­ção ampla do modelo anterior de patolo­gias), temos muito menos entendimento de prevenção para promover a saúde e redu­zir futuros problemas entre populações identificadas (Holden e Black, 1999). Mes­mo assim, a prevenção primária pode ser aplicada com eficácia a comportamentos-alvo relacionados à saúde psicológica e fí­sica. A prevenção primária pode ajudar a manter as enfermidades físicas contidas e aumentar a qualidade psicológica da vida nos anos seguintes (Kaplan, 2000; Kaplan, Alcaraz, Anderson e Weisman, 1996; Ka­ plan e Anderson, 1996).

Prevenção secundária (psicoterapia): "consertar o problema"

A prevenção secundária trata de um problema quando ele começa a surgir. Comparada com a prevenção primária, portanto, ela ocorre mais tarde na seqüên­cia temporal do problema que se desen­volve (vide a Figura 15.1). Snyder e cola­boradores (2000, p. 256) descreveram a prevenção secundária como algo que ocorre quando “o indivíduo produz ensina­mentos ou ações para eliminar, reduzir ou conter o problema uma vez que este apa­receu”. Sendo assim, o tempo em relação ao problema é um fator de diferenciação fundamental nesses dois tipos de preven­ção, com a prevenção primária envolven­do ações iniciadas antes do problema se de­senvolver e a secundária, ações realizadas depois que o problema apareceu.

A prevenção secundária é sinônimo de intervenções psicoterápicas. Embora a maioria das pessoas provavelmente se dê conta de que há muitas formas de psicoterapia, muitos se surpreendem ao saber que os profissionais atualmente estão pratican­do mais de 400 tipos diferentes de inter­venção (Roth, Fonagy e Parry, 1996).

Consideramos a psicoterapia como um excelente exemplo de prevenção secun­dária porque as pessoas que vêm a esse tipo de tratamento sabem que têm [317] determinados problemas que estão além de suas ca­pacidades de enfrentamento, e é isso que as leva a buscar ajuda (Snyder e Ingram, 2000a). De fato, a literatura relacionada revela que os problemas específicos dos fatores de estresse na vida desencadeiam a busca de ajuda psicológica (Norcross e Prochaska, 1986; Wills e DePaulo, 1991). É claro que, quando a psicoterapia é bem sucedida, ela também pode produzir a ca­racterística de prevenção primária de re­duzir ou prevenir a recorrência de proble­mas semelhantes no futuro.

A prevenção secundária é eficaz?

Desde as sínteses mais antigas sobre a eficácia da psicoterapia (por exemplo. Smith, Glass e Miller, 1980) às mais con­temporâneas (vide Ingram, Hayes e Scott, 2000), há evidências constantes de que ela melhora a vida de adultos e crianças. Quan­do dizemos que a psicoterapia “funciona”, queremos dizer que há uma redução da gravidade e/ou frequência dos problemas e sintomas do cliente. Em média, por exem­plo, uma pessoa que fez psicoterapia me­lhorou na magnitude de 1 desvio-padrão (ou seja, está cerca de 34% melhor) em vários indicadores de resultado, em rela­ção à que não fez (Landman e Dawes, 1982; Shapiro e Shapiro, 1982). Sendo assim, existe sustentação científica consistente para a eficácia do que chamamos de tratamentos baseados em evidências para adultos (Chambless et al., 1998; Chambless e Hollon, 1998; Chambless et al., 1996), crianças (Casey e Berman, 1985; Kasdin, Siegel e Bass, 1990; Roberts, Vemberg e Jackson, 2000; Weisz, Weiss, Alicke e Klotz, 1987), idosos (Gallagher-Thompson et al., 2000; Woods e Roth, 1996) e para mino­rias étnicas (Malgady, Rogler e Costantino, 1990). Além disso, os clientes que passa­ram por tratamentos psicoterápicos infor­mam estar muito satisfeitos com suas experiências (Seligman, 1995).

Para o leitor interessado em panora­mas de tratamentos eficazes para depres­sões, transtornos bipolares, fobias, trans­tornos de ansiedade generalizada, agorafobias, transtornos obsessivo-compulsivos, transtornos alimentares, esquizofrenia, transtornos de personalidade, dependência e abuso de álcool e disfunções sexuais, recomendamos o livro de 1996, What works for whom? A critical review of psychotherapy research, organizado por Anthony Roth e Peter Fonagy. As intervenções eficazes para problemas específicos são resumidas no Anexo A, dispostas nas páginas 334-335.

Componentes comuns das intervenções secundárias

Sobre a eficácia da psicoterapia, o renomado psiquiatra e estudioso da psico­terapia Jerome Frank (1968, 1973, 1975) sugeriu que a esperança seria o processo subjacente comum a todos os enfoques bem-sucedidos da psicoterapia. Partindo das idéias pioneiras de Frank, Snyder e colaboradores (Snyder, Ilardi, Cheavens, et al., 2000; Snyder, Ilardi, Michael e Chea­ vens, 2000; Snyder, Parenteau, Shorey, Kahle e Berg, 2002) usaram a teoria da es­perança (vide o Capítulo 9) para demons­trar como o pensamento dirigido a objeti­ vos, baseado em caminhos e em agência, facilita os bons resultados na psicoterapia. Aprofundamos, a seguir, a discussão sobre a aplicação desses processos de agência e caminhos a processos de psicoterapia.

Os efeitos placebo na pesquisa em psicoterapia representam o quanto os clien­tes iriam melhorar se fossem motivados a acreditar que as mudanças iriam aconte­cer. Portanto, se o tamanho do efeito de resultado terapêutico do placebo for com­parado com o tamanho do efeito terapêutico para clientes que não recebem ex­pectativas motivacionais, podemos produ­zir aquilo que eqüivale a um efeito-agência (ou motivação). Igualmente, se [318] tomar-mos o efeito de resultado total do trata­mento (incluindo agência e mais os cami­nhos do tratamento) e subtrairmos o efei­to placebo (agência), permanece havendo um efeito de tipo caminhos. Já se mostrou que o tamanho do efeito da agência típico é de 0,47 desvios-padrão em magnitude (isto é, os clientes ficam 16% melhores do que estariam se não tivessem recebido tra­tamento), e o efeito de caminhos foi de 0,55 desvios-padrão em magnitude (isto é, os clientes ficam 19% melhores do que es­tariam se não tivessem recebido tratamen­to; dados de Barker, Funk e Houston, 1988). Somando-se esses efeitos de agência e caminhos, tem-se o tamanho geral do efeito da esperança, de 1,02 desvios-padrão (isto é, os clientes ficam cerca de 35% melhores do que estariam se não tivessem recebido tratamento). Como é mostrado na Figura 15.2, podemos ver que cerca de me­tade do importante efeito de resultado da psicoterapia está relacionado à motivação de agência, e a outra metade do efeito da psicoterapia está relacionada aos caminhos aprendidos em intervenções específicas.

Programas de prevenção secundária para adultos

A maioria dos enfoques de psicote­rapia usou o que Berg e de Shazer (1992) chamam de “discurso do problema” em lugar do “discurso da solução”. Ou seja, o foco tradicional tem estado na redução dos pensamentos e comportamentos negativos em lugar de se concentrar na construção de pensamentos e comportamentos positi­vos (Lopez, Floyd, Ulven e Snyder, 2000). Embora o enfoque do comportamento hu­mano com base na patologia ainda seja o modelo predominante, nos últimos anos muitos terapeutas têm começado a prestar atenção às qualidades dos clientes. Igual­mente, às vezes é necessário que um clien­te desaprenda pensamentos e comporta­mentos negativos antes de aprender os positivos.

Figura 15.2

Antes de tratar de exemplos de abor­dagens terapêuticas mais novas da psico­logia positiva, seria interessante descrever abordagens anteriores que se mostraram eficazes para reduzir os problemas dos [319] clientes. Nesse sentido, algumas interven­ções de psicoterapia envolvem a autogestão (Rokke e Rehm, 2001). Uma delas é o modelo de autoeficácia de Bandura, dis­cutido anteriormente, no Capítulo 9. Se­gundo esse modelo, um cliente pode apren­der visões de eficácia por meio de

  1. conquistas reais em termos de desem­penho na área problemática;
  2. seguir o modelo de outra pessoa que está enfrentando de forma eficaz;
  3. persuasão verbal por parte do profissio­nal da ajuda e
  4. controle de processos cognitivos nega­tivos ao aprender a implementar humo­res positivos (Forgas, Bower e Moylan, 1990).

É importante observar que existem comportamentos-alvo específicos nessas abordagens baseadas na autoeficácia.

Um segundo tipo de autogestão en­volve a formação autodidática de Meichenbaum (1977), que geralmente se destina a tratar problemas de ansiedade. A etapa inicial dessa abordagem é coletar informa­ções sobre o problema, incluindo cognições mal-adaptativas. Isso se consegue quando o profissional pede que o cliente imagine o problema e descreva o diálogo interno que está ocorrendo. Na segunda etapa da abordagem de tratamento de Meichenbaum, ensinam-se diálogos internos mais adaptativos ao cliente. Por fim, o cliente pratica esses novos diálogos de enfrentamento para fortalecer a probabilidade de vir a usá-los de verdade.

Uma terceira abordagem baseada na autogestão é o modelo de autocontrole em três etapas, de Kanfer (1970), que costuma ser usado com problemas de ansiedade. Na primeira etapa, de automonitoramento, o cclente observa o comportamento problemá­tico no contexto de seus antecedentes e con­seqüências. Na segunda, de autoavaliação, o cliente aprende a comparar o comporta­mento problemático atual com o padrão melhorado de desempenho que se deseja, e entende que está ficando abaixo dele. Na terceira etapa, a de autorreforço, o cliente aprende a se reforçar (com recompensas ou punições) para o controle do comportamen­to indesejado. Além disso, o cliente deve es­tar comprometido a mudar e deve perceber que os comportamentos em questão estão sob seu controle.

Não podemos descrever todas as prin­cipais abordagens psicoterapêuticas em detalhes aqui. Para revisões das várias abor­dagens, vide o 2000 handbook of psycholo­gical change: psychotherapy processes & practicesfor the 21stcentury, organizado por C. R. Snyder e R. E. Ingram, e o 2004 handbook of psychotherapy and behavior change, organizado por M. J. Lambert. Os principais modelos de psicoterapia incluí­ram abordagens psicodinâmicas, técnicas comportamentais, estratégias cognitivo-comportamentais, modelos humanistas e abordagens do sistema de família, junto com o possível uso de medicações psicotrópicas (Plante, 2005).

Voltemos agora às abordagens de pre­venção secundária que são descritas den­tro do novo campo da psicologia positiva. Para uma revisão dessas abordagens da psicoterapia, recomendamos 2004 positive psychology in practice, organizado por E A. Linley e S. Joseph.

Seligman usou sua teoria do otimis­mo aprendido como uma estrutura de retreinamento de atribuições para desen­volver uma abordagem terapêutica à de­pressão. Para visões gerais de sua terapia de adultos, sugerimos o livro de 1991 de Seligman, Learned optimism e Authentic happiness, de 2002.

O retreinamento de atribuições para adultos de Seligman começa por ensinar às pessoas os ‘ABCs” relacionados a even­tos negativos em suas vidas. Especificamen­te, A é de adversidade, B para crença (belief) em relação à razão por trás do even­to negativo e C é de conseqüências em ter­mos de sentimentos (geralmente negativos ou deprimidos). A seguir, o autor ensina o adulto a acrescentar o D à seqüência ABC. [320]

Esse D representa a aprendizagem por par­te do cliente de confrontar e questionar a crença anterior, contraproducente e que gera depressão, com evidências contunden­tes e precisas. Por exemplo, na seqüência a seguir, considere um cliente hipotético, cha­mado Jack:

Adversidade = A percepção de Jack de que seu amigo Bob o tem ignorado.
Belief (a crença de Jack) = Bob não gosta dele porque Jack “não é divertido”.
Conseqüência = Jack se sente mal.

Com o treinamento para questionar com vistas a aprender outras explicações para o comportamento de Bob, Jack con­seguirá se sentir melhor consigo mesmo. Por exemplo, observe a seqüência a seguir, na qual se acrescenta o questionamento:

Adversidade = Bob não fala com Jack du­rante toda a tarde, no trabalho.
Belief (a crença de Jack) = Bob não gosta de Jack.
Conseqüência = Jack se sente mal.
Questionamento = Jack invoca a atri­buição mais otimista de que Bob também tem estado silencioso com outras pessoas no trabalho. Jack observa que, na verdade, Bob havia falado com ele no intervalo do café, pela manhã. Sendo assim, tendo feito essas atribuições mais otimistas, Jack con­segue se sentir muito melhor com a situação.

Além de aprender a terapia do oti­mismo, prestou-se um pouco de atenção à implementação do que se chamou de “te­rapia da esperança” em cenários de conta­to individual (Lopez et al., 2000; Lopez et al., 2004; McDermott e Snyder, 1999), com casais (Worthington et al., 1997) e em gru­pos (Klausner et al., 1998). Por exemplo, Klausner e colaboradores (Klausner et al., 1998; Klausner, Snyder e Cheavens, 2000) desenvolveram uma intervenção grupal válida para adultos mais velhos deprimi­dos. Especificamente, em uma série de 10 sessões de grupo, aprender as atividades direcionadas a objetivos que são inerentes à teoria da esperança reduziu a depressão e levantou os níveis de atividade física para pessoas mais velhas deprimidas. Além dis­so, essas melhorias baseadas no tratamen­to por meio da esperança foram superio­res às obtidas por um grupo de compara­ção que se submeteu à terapia grupal das reminiscências de Butler (1974), que im­plica que os idosos relembrem épocas ante­riores de suas vidas, mais prazerosas.

Também usando a teoria da esperan­ça como base, Cheavens e colaboradores (Cheavens, Feldman, Gum, Michael e Snyder, no prelo; Cheavens et al., 2001) desenvol­veram uma intervenção eficaz de oito ses­sões, para adultos deprimidos.

Em mais uma aplicação terapêutica da esperança, pacientes que faziam consultas em um centro de saúde mental comunitá­rio receberam uma preparação terapêutica pré-tratamento com base na teoria da espe­rança (isto é, aprenderam os princípios bá­sicos dessa teoria) e receberam as interven­ções psicoterápicas normais que são aplica­das nessa instituição. Os resultados mostra­ram que as pessoas que receberam instruções pré-tratamento na teoria da esperança melhoraram mais nos tratamentos subse­quentes do que as que não receberam essas preparações prévias (Irving et al., 2004). Deve-se enfatizar que todos os clientes nes­se estudo receberam tratamentos reais com­paráveis, mas o grupo que recebeu forma­ção pré-tratamento na teoria da esperança aproveitou melhor suas intervenções. Em mais uma intervenção com base na espe­rança, Trump (1997) formulou um trata­mento gravado em videoteipe usando nar­rativas esperançosas de mulheres que ha­viam sobrevivido ao incesto na infância. Os resultados mostraram que assistir a essa fita aumentava os níveis de esperança dessas mulheres em relação aos que assistiram a uma fita de controle.

Como mostrado no Anexo B (página 336), que é uma planilha para se usar na implementação da teoria da esperança com adultos, o cliente que passa pela terapia [321] da esperança é investigado em relação a seus objetivos em diferentes áreas da vida. A seguir, pede-se que escolha um domínio da vida específico, para nele trabalhar. Nas sessões seguintes, o terapeuta ajuda o clien­te a esclarecer os objetivos ao apontar referências concretas que sejam visíveis, para avaliar o progresso em atingir esses objeti­vos. Várias vias para se atingir os objetivos são ensinadas a seguir, junto com formas de motivar a pessoa para usar realmente essas vias. Os impedimentos aos objetivos desejados são previstos, e os clientes rece­bem instruções sobre como instituir rotas alternativas para os objetivos. À medida que diferentes objetivos são praticados ao longo do tempo, os clientes aprendem como aplicar a terapia da esperança natu­ralmente, em suas buscas cotidianas de objetivos. O propósito geral é ensiná-los a usar os princípios da terapia da esperança para atingir objetivos de vida atuais, espe­cialmente quando se encontram obstácu­los (Cheavens, Feldman, Woodward e Snyder, no prelo).

Prevenções secundárias para minorias étnicas

Os comentários a seguir, sobre psicoterapia para clientes que sejam membros de minorias étnicas, devem ser considera­ dos à luz do fato de que as pessoas de cor tendem a não buscar tratamento. Por exem­plo, enquanto os membros de grupos minoritários representam cerca de 30% da população dos Estados Unidos, eles perfa­zem apenas 10% dos que buscam psicoterapia (Vessey e Howard, 1993). Esse pro­blema é aumentado pelo fato de que mem­bros de grupos minoritários que entram em psicoterapia têm mais probabilidades do que os caucasianos de encerrar o tratamen­to antes (Gray-Little e Kaplan, 2000).

Mencionamos esses fatos para desta­car que o sistema não é eficaz para chegar às pessoas de cor e ajudá-las. Além disso, foi feita tão pouca pesquisa com clientes de psicoterapia que sejam de origem afri­cana, hispânica ou asiática, que atualmen­te não se podem fazer declarações em re­lação às melhores abordagens para tais tra­tamentos. Ao comentar a falta de amos­tras suficientes de clientes de minorias, Gray-Little e Kaplan (2000, p. 608) escre­veram: “Nossa revisão nos fez sentir como o convidado para jantar que comentou que a comida foi decepcionante e que ‘as por­ções eram muito pequenas!”’. Obviamen­te, uma das missões da psicologia positiva deveria ser entender as razões para a subutilização dos profissionais de saúde mental por membros de grupos minori­tários, bem como aumentar suas propensões a buscar esses serviços e se manter em tratamento.

Prevenção secundária para crianças

Para panoramas de prevenções secun­dárias para crianças, consulte as duas pá­ginas na internet http://www.state.hi.us/ doh/camhd/index.html e http://www.clinicalchildpsychology.org. Trataremos ago­ra de intervenções de psicologia positiva específicas para crianças. Anteriomente, neste capítulo, discutimos a abordagem de Seligman para o otimismo e seu uso como programa de prevenção primária para de­pressão em alunos de 5a série (vide, tam­bém, Jaycox, Reivich, Gillham e Seligman, 1994). Ém seu livro de 1995, The optimistic child, Martin Seligman mostra a professo­res e pais como educar as crianças para atingir as habilidades de vida necessárias de forma a diminuir a depressão. Esse pro­grama também melhora a autoconfiança, o desempenho escolar e a saúde física.

Usando a teoria da esperança como a desenvolveram Snyder e colaboradores, também tem havido programas explora­tórios para elevar a esperança de crianças. Nesses programas de treinamento para a esperança, as crianças aprendem a estabe­lecer objetivos claros e a encontrar várias rotas viáveis para chegar a eles. A seguir, ]322]  aprendem a se motivar para usar as rotas que levem aos objetivos desejados. Em seu livro Hope for the journey, Snyder, McDer­mott, Cook e Rapoff (2004) usam histórias para implantar pensamentos e comporta­mentos esperançosos nas crianças. Além disso, os programas iniciais nas escolas de ensino fundamental (McDermott et al., 1996) e nas de ensino médio (Lopez, 2000) usaram histórias para promover modestos aumentos na esperança. Da mesma forma, McNeal (1998) informou que a esperança das crianças aumentou após seis meses de psicoterapia, e Brown e Roberts (2000) concluíram que uma colônia de férias de seis semanas resultou em melhoras signi­ficativas nos escores de esperanças das cri­anças (essas mudanças se mantiveram após quatro meses). (Para mais um panorama das intervenções com base em esperança voltadas a crianças, leia The great big book of hope, de McDermott e Snyder [2000].)

Prevenções secundárias para idosos

A depressão é o problema mais fre­qüente entre pessoas mais velhas que vêm à psicoterapia. Nas palavras de Blazer (1994), a depressão é como o resfriado na vida psicológica dos idosos. A abordagem terapêutica mais predominante com os ido­sos é a cognitivo-comportamental (Thomp­son, 1996), embora a psicodinâmica (Newton, Brauer, Gutmann e Grimes, 1986), a interpessoal (enfatizar as habilidades de comunicação; Klerman, Weissman, Roun- saville e Chevron, 1984) e a das reminiscências (Butler, 1974) também tenham sido usadas com eficácia. Como os idosos ge­ralmente enfrentam eventos negativos qua­se inevitáveis (redução de renda e saúde, perda de amigos e cônjuge, etc.), o desen­volvimento de visões mais adaptativas em relação às próprias circunstâncias e a si mesmos é especialmente aplicável (Galla- gher-Thompson et al., 2000). Nessa abor­dagem, é importante se certificar de que o cliente idoso:

  1. tem expectativas apropriadas daquilo que virá à tona no tratamento;
  2. consegue ouvir e ver claramente nas sessões; e
  3. tem sessões estruturadas para avançar com a calma necessária para que as lições sejam absorvidas.

Embora a abordagem usual seja con­duzir esse tratamento em um setting indi­vidual, os formatos grupais também podem funcionar. Nesse sentido, a abordagem psicoeducacional com adultos de mais ida­de será cada vez mais importante no futu­ro. (Para um manual sobre como conduzir uma aula dessas, vide Thompson, Gallagher e Lovett, 1992).

Uma advertência sobre intervenções secundárias

Infelizmente, há um estigma relacio­nado a consultar um profissional de saúde mental para fazer psicoterapia. Embora a maioria das pessoas não tenha problemas em consultar outros profissionais de saú­de, como oftalmologistas ou cirurgiões, elas ficam reticentes em relação a ver um psi­quiatra ou um psicólogo profissional. Um exemplo claro desse estigma ocorreu na eleição presidencial de 1972 nos Estados Unidos, quando o candidato democrata George McGovern escolheu o senador Thomas Eagleton como seu candidato a vice-presidente. Quando o público norte- americano descobriu que o senador Eagleton havia feito tratamento para depressão clí­nica com terapia eletroconvulsiva de cho­que, houve uma preocupação de que uma pessoa depressiva pudesse estar a “a um passo da presidência” se alguma coisa acon­tecesse a McGovern (caso ele fosse eleito presidente). O estigma associado à depres­são acabou fazendo que McGovern retiras­se Eagleton da chapa.

Outro exemplo vem da ex-primeira dama Rosalynn Carter (Carter, 1977), que escreveu, [323] 

Quando eu era criança em Plains, no Es­tado da Geórgia, eu não ouvia falar em “saúde mental” e “doença mental”. Com os anos, escutei que um vizinho nosso teve um “colapso nervoso” e outro amigo “não estava muito bem”, e que um primo dis­tante havia sido colocado em uma instituição do Estado na qual, supus, todo mundo era louco. Lembro-me claramen­te de quando meu primo veio para casa uma vez visitar a família. Acho que me lembro da ocasião com tanta clareza por­que ele correu atrás de mim pela rua - e eu nunca me senti tão apavorada. Eu não sabia porque deveria fugir... Como nação, ainda estamos fugindo de pessoas que ti­veram ou ainda têm transtornos mentais e emocionais. E o estigma ligado à sua sina é uma desgraça não merecida... Em suma, a doença mental ainda não é acei­tável em nossa sociedade” (p. D4).

Os meios de comunicação tocam nes­ses assuntos em programas de televisão ocasionais, como The Bob Newhart Show e Frasier, em que rimos do humor inerente ao comportamento de psicoterapeutas es­quisitos. Esse tipo de televisão nada faz para reduzir o estigma, contudo, e pode muito bem alimentar os estereótipos ne­gativos. De fato, restam poucas dúvidas de que esse estigma persiste na sociedade dos Estados Unidos, pois a maioria das pessoas ainda evita falar de seu cuidado com a saú­de mental. A tragédia, nesse caso, é que esse estigma impede muitas pessoas de buscar o tratamento de que necessitam. Além disso, se as pessoas conseguirem pro­curar tratamento nas primeiras fases de seus problemas psicológicos, a probabili­dade de que tenham resultados eficazes no tratamento aumenta. Entretanto, elas po­dem esperar até que o problema psicológi­co se torne tão grave que seja extremamen­ te difícil intervir de forma eficaz. Talvez a psicologia positiva possa trabalhar para re­duzir esse pensamento preconceituoso fa­zendo com que as pessoas pensem em psicoterapia não apenas como uma solução para problemas, mas também como o for­talecimento das qualidades da pessoa e seus talentos, para que ela se torne mais produtiva e mais feliz. Em outras palavras, com o crescimento da psicologia positiva, o estigma associado à psicoterapia pode se reduzir, pois as pessoas passariam a ver o tratamento como algo que envolve proces­sos para aumentar seus recursos.

Potencialização primária: "tornar a vida boa" 

A potencialização primária é o es­forço para estabelecer funcionamento e sa­tisfação ótimos. Como mostrado no lado es­ querdo da Figura 15.3, a potencialização primária envolve tentativas de aumentar o bem-estar hedônico ao maximizar o que é agradável ou aumentar o bem-estar eudaimônico ao estabelecer e atingir objetivos (Ryan e Deci, 2001; Waterman, 1993). En­quanto as potencializações primárias hedônicas visam à indulgência no prazer e à satisfação de apetites e necessidades, as potencializações primárias eudaimônicas enfatizam o funcionamento eficaz e a feli­cidade, como resultado desejável do proces­so de busca de objetivos (Seligman, 2002; Shmotkin, 2005). Nesse aspecto, deve-se observar que a pesquisa de análise fatorial sustentou a distinção entre motivações hu­manas hedônicas e eudaimônicas (Compton, Smith, Cornish e Qualls, 1996; Keyes, Shmotkin e Ryff, 2000).

Figura 15.3

Antes de descrever as várias rotas para a potencialização primária, são necessários alguns comentários sobre o papel da evolu­ção. Em um sentido evolutivo, determina­das atividades são biologicamente predis­postas a produzir satisfação (Buss, 2000; Pinker, 1997). Uma premissa evolutiva é que as pessoas vivenciam o prazer sob circuns­tâncias favoráveis à propagação da espécie humana (Carr, 2004). Assim, a felicidade é resultado de laços interpessoais íntimos, es­pecialmente os que levam ao acasalamento e à proteção da prole. De fato, as pesquisas mostram que a felicidade vem: [324]

  1. de uma unidade de vida segura e que proporcione apoio, com pessoas que tra­balham juntas;
  2. de um ambiente que seja fértil e produ­tor de alimentação;
  3. da ampliação dos limites de nosso cor­po por meio do exercício e da busca de objetivos dotados de senti­do no trabalho (Diener, 2000; Kahne- man, Diener e Schwartz, 1999; Lykken, 1999).

Mais uma advertência cabe aqui. Muitas das experiências que estão na cate­goria de potencialização primária também se encaixam na de potencialização secun­dária, envolvendo experiências de pico. A divisão entre uma experiência ótima e uma experiência de pico pode ser muito sutil.

Potencialização primária: saúde psicológica

Muitas pessoas em seus leitos de mor­te podem pensar: “Eu queria ter passado mais tempo com minha família”. Isso su­gere que nossos relacionamentos são cru­ciais para a satisfação na vida. De fato, para maioria das pessoas, os relacionamentos interpessoais com parceiros amorosos, pa­rentes e bons amigos são as fontes mais poderosas de bem-estar e satisfação na vida (Berscheid e Reis, 1998; Reis e Gable, 2003).

Realizar atividades compartilhadas que sejam agradáveis aumenta o bem-es­tar psicológico (Watson, Clark e Tellegen, 1988), especialmente se essa participação conjunta gera excitação e atividades novas (Aron, Norman, Aron, McKenna e Heyman, 2000). Igualmente, é benéfico para ambas as partes enfrentar atividades intrinsecamente motivadas, nas quais podem com­partilhar aspectos de suas vidas deixando-se absorver pelo flow atual de seus com­portamentos (Csikszentmihalyi, 1990).

Para além do relacionamento com o parceiro amoroso, as satisfações da poten­cialização primária também podem advir de outras relações, por exemplo, com ami­gos e parentes. As circunstâncias de vida para estar em proximidade física com a família também podem produzir os apoios sociais que são tão cruciais para a felicida­de. A rede formada por alguns amigos ín­timos também pode gerar contentamento. Por fim, há argumentos evolutivos contun­dentes (Argyle, 2001) e pesquisa empírica (Diener e Seligman, 2002) para sustentar as razões pelas quais esses relacionamen­tos com parentes e amigos são fundamen­tais para a felicidade.

Outro relacionamento que gera feli­cidade é o envolvimento em questões de [325] religião e espirituais (Myers, 2000; Pied­ mont, 2004). Em parte, isso pode ser um reflexo do fato de que a religiosidade e a oração estão relacionadas à esperança ele­vada (Laird, Snyder, Rapoff e Green, 2004; Snyder, 2004c). Da mesma forma, parte da satisfação com a religião provavelmente provém dos contatos sociais que ela proporciona (Carr, 2004). A felicidade tam­bém pode resultar da espiritualidade oriun­da dos relacionamentos de uma pessoa com uma força superior. Sobre esse aspecto, há evidências de um possível vínculo genéti­co com as necessidades espirituais das pes­soas (vide Hamer, 2004).

O trabalho gratifícante também é uma importante fonte de felicidade (Argyle, 2001). Se as pessoas estiverem satisfeitas com seu tra­balho, elas também ficarão mais felizes (uma correlação geral de 0,4 entre estar empregado e o nível de felicidade; Diener e Lucas, 1999). A razão para essa conclu­são é que, para muitas pessoas, o trabalho proporciona uma rede social e também pos­sibilita testar talentos e habilidades. Para adquirir esse tipo de satisfação no traba­lho, contudo, é fundamental que os em­pregos ofereçam bastante variedade nas atividades realizadas. Além disso, as tare­fas devem ser adequadas às habilidades e aos talentos do trabalhador. Também aju­da ter um chefe que apoie e estimule a au­tonomia (Warr, 1999) e, ao mesmo tem­po, possibilite ao trabalhador individual en­tender e assumir como sendo seus os obje­tivos mais amplos da empresa (Hogan e Kaiser, 2005).

As atividades de lazer também podem gerar prazer (Argyle, 2001). Relaxar, des­cansar e fazer uma boa refeição têm todos o efeito de curto prazo de fazer que as pes­soas se sintam melhor. As atividades recre­ativas, como praticar esportes, dançar e escutar música, possibilitam às pessoas es­tabelecer contatos prazerosos com as ou­tras. Embora possa parecer incoerente com o termo lazer, as pessoas costumam ser muito ativas ao participar de atividades desse tipo. Portanto, às vezes a felicidade vem da estimulação e de uma sensação de excitação positiva, ao passo que, em ou­tras vezes, ela reflete um processo tranqüilo e de repor as energias.

Sejam quais forem as atividades es­pecíficas de potencialização primária, as ações totalmente absorventes são as mais agradáveis. Csikszentmihalyi e colaborado­ res (Csikszentmihalyi, 1990; Nakamura e Csikszentmihalyi, 2002) estudaram as cir­cunstâncias que levam a uma sensação de envolvimento total. Essas atividades cos­tumam ser intrinsecamente fascinantes por levar os talentos a níveis satisfatórios, nos quais as pessoas se deixam levar e perdem a noção do tempo. Esse tipo de potencia­lização primária já foi chamado de expe­riência de flow, e artistas, cirurgiões e ou­tros profissionais relatam ter esse tipo de flow em seu trabalho (vide o Capítulo 11, para mais discussão sobre flow).

Uma outra via para se atingir uma sensação de contentamento é a contempla­ção, no momento presente, do ambiente externo e interno da pessoa. Uma linha comum no pensamento oriental é a de que se tem imenso prazer por meio de “ser” ou vivenciar. Mesmo nas sociedades ociden­tais, contudo, a meditação sobre as expe­riências internas ou pensamentos ganhou muitos seguidores (Shapiro, Schwartz e Santerre, 2002). A meditação foi definida como “uma família de técnicas que têm em comum uma tentativa consciente de con­centrar atenção de forma não analítica e uma tentativa de não se manter no pensa­mento discursivo, ruminativo” (Shapiro, 1980, p. 14). Por exemplo, a meditação mindfulness (Langer, 2002) envolve uma atenção sem julgamento, que possibilita uma sensação de paz, serenidade e prazer. Kabat-Zinn (1990) propôs as sete qualida­des a seguir em relação à meditação mind­fulness: não-julgar, aceitar, abrir-se, não lutar, ter paciência, ter confiança e desvencilhar-se (vide o Capítulo 11). Igualmente, naquilo que se chama de meditação con­centrada, a consciência é restringida por [326]  meio da concentração em um único pen­ samento ou objeto, como um mantra pes­ soal, a própria respiração, uma palavra (Benson e Proctor, 1984), ou mesmo um som (Carrington, 1998).

Outro processo que se assemelha à meditação em sua forma de operação é a apreciação (savoring), que envolve pensa­mentos e ações que visam apreciar e, tal­vez, amplificar, uma experiência positiva de algum tipo (vide Bryant, 2004; Bryant e Veroff, 2006). Segundo Fred Bryant (2005), psicólogo que cunhou esse termo e que produziu as principais pesquisas e teorias a respeito, a apreciação pode assu­mir três formas temporais:

  1. Antecipação, ou o prazer por um even­to positivo vindouro.
  2. Estar no momento, ou pensar e fazer coisas para intensificar e, talvez, pro­longar um evento positivo à medida que ele ocorra.
  3. Reminiscência, ou se lembrar de um evento positivo para resgatar os senti­mentos e pensamentos favoráveis.

Além disso, a apreciação pode assu­mir a forma de:

  • Compartilhar com outras pessoas.
  • Tirar “fotografias mentais” para cons­truir a própria memória.
  • Congratular-se.
  • Comparar com o que se sentiu em ou­tras circunstâncias.
  • Afiar os sentidos por meio da concen­tração.
  • Ser absorvido pelo momento.
  • Expressar-se por intermédio do compor­tamento (rir, gritar, dar socos no ar).
  • Dar-se conta do quão fugaz e preciosa é a experiência.
  • Contar as próprias bênçãos.

Como exemplo de apreciação, veja os comentários (retirados de seu diário), de Bertrand Piccard (1999), quando este con­templava a última noite de sua viagem de balão ao redor do mundo, quando que­brou recordes

Na última noite, saboreei mais uma vez o rela­cionamento ínti­mo que estabele­cemos com nos­so planeta. Sen­tindo calafrios no assento do piloto, tenho a sensação de ter saído da cápsula para voar sob as estrelas que engoliram nosso ba­lão. Sinto-me tão privilegiado que quero desfrutar cada segundo deste mundo aé­reo... Em seguida, ao clarear do dia, [o balão] aterrissará na areia do Egito... [e eu] precisarei imediatamente encontrar palavras para satisfazer a curiosidade do público. Mas agora, silenciado dentro de minha japona, deixo que a mordida fria da noite me lembre de que ainda não ater­rissei, de que ainda estou vivendo um dos momentos mais bonitos da minha vida... a única maneira por meio da qual posso fazer que este instante dure é compar­tilhá-lo com outras pessoas (p. 44).

Ainda há mais que as pessoas podem fazer, para além da apreciação. Nesse sen­tido, a psicóloga Barbara Fredrickson (2002), da Universidade da Carolina do Norte, desenvolveu seu pioneiro modelo “ampliar e potencializar” (vide o Capítulo 7, para uma discussão mais detalhada do modelo) após observar que as emoções negativas, como a raiva e a ansiedade, ten­dem a limitar o repertório de pensamento e ação de uma pessoa. Ou seja, quando sentem emoções negativas, as pessoas se interessam por proteção - e seus pensa­mentos e ações passam a estar limitados a umas poucas opções restritas, que visam a se manter “em segurança”. Por outro lado, Fredrickson propôs que, ao experimentar emoções positivas, as pessoas se abrem e se tornam flexíveis em seus pensamentos e em seus comportamentos. Dessa forma, [327] as emoções positivas ajudam a produzir uma mentalidade voltada a “ampliar e potencializar”, na qual acontece um carros­sel positivo de emoções, pensamentos e ações subsequentes. Portanto, qualquer coisa que a pessoa possa fazer para vivenciar alegria, talvez por meio de diver­são ou outras atividades, pode render be­nefícios psicológicos.

Em sua pesquisa, Fredrickson (1999, 2001, 2002) induziu emoções positivas, fa­zendo que os participantes se lembrassem de um evento alegre, ouvissem uma música favorita, assistissem a um bom filme e rece­bessem avaliações positivas acerca de si mesmos, para citar alguns exemplos. Essas induções emocionais positivas, por sua vez, tornam as pessoas mais felizes, mais perceptivas, melhores na solução de problemas, com mais facilidade nas interações sociais, e assim por diante. O ciclo de “am­pliar e potencializar” é mostrado no Capí­tulo 7, na Figura 7.3. As emoções positivas abrem a pessoa às circunstâncias em que ela está inserida, bem como às importantes pistas que são relevantes às tarefas nessas circunstâncias. Além disso, as emoções po­sitivas lembram a pessoa de outros episódios de sucesso em sua vida, elevando, assim, a possibilidade percebida de se sair bem nas condições atuais. Portanto, o modelo de “ampliar e potencializar”, de Fredrickson, põe em movimento um carrossel positivo.

O psicólogo Steve Ilardi e colabora­dores da Universidade do Kansas, inicia­ram um novo tratamento para a preven­ção da depressão e para o aumento da feli­cidade pessoal, chamado de Mudança te­rapêutica de estilo de vida, Therapeutic Lifestyle Change ([TLC], Ilardi e Karwoski, 2005; para mais informações sobre o programa, consulte a página na internet www.psych.ku.edu/TLC). O preceito básico do TLC é o de que o desenvolvimento de determinadas postu­ras em relação ao estilo de vida, especial­mente as atividades que eram parte natu­ral da vida de nossos ancestrais que vive­ram há muito tempo, gera uma redução da depressão e um aumento da felicidade.

Os componentes do TLC são o exer­cício, suplementos de ácidos graxos ômega- 3, exposição à luz, menos ruminação e pre­ocupações, apoio social e bom sono. Inicial­mente, são recomendados 35 minutos de exercício aeróbico ao menos três vezes por semana. A ideia é fazer que o batimento cardíaco da pessoa chegue entre 120 e 160 por minuto. Segundo, os suplementos de ácidos graxos ômega-3 (óleos de peixe, vendidos sem prescrição médica) podem ser comprados em farmácias. Parece que nossos ancestrais consumiam quantidades mais altas de peixe do que nós consumi­mos hoje. Em terceiro, tente obter pelo menos 30 minutos de luz do sol por dia. Pode-se fazer isso naturalmente, ficando ao sol ou se sentando próximo a uma caixa de luz especial que emite luz muito bri­lhante (10.000 lux). Quarto, pare de rumi­nar. Entre as coisas que funcionam para re­duzir essa preocupação estão telefonar a um amigo, exercitar-se, colocar os pensa­mentos negativos em um diário ou reali­zar outras atividades prazerosas. Em quin­to lugar, certifique-se de estar com outras pessoas. Isso também ajuda a distraí-lo da ruminação. Sexto, durma ao menos 8 ho­ras por noite. Faça isso assumindo um ritu­al para a hora de dormir e evite cafeína e álcool muitas horas antes de deitar. Em sín­tese, o TLC parece ser uma nova aborda­gem promissora (com base em ações hu­manas muito antigas) que pode aumentar nossa felicidade. Além disso, deve-se regis­trar que o TLC envolve inerentemente vá­rios processos já discutidos nesta seção e cobre a potencialização primária da saúde psicológica.

Martin Seligman e colaboradores rea­lizaram um programa de pesquisa voltado a encontrar intervenções que fossem [328] eficazes para potencializações primárias (vide Seligman, Steen, Park e Peterson, 2005). Especificamente, Seligman recrutou 577 adultos que visitaram a página na internet de seu livro Authentic happiness (Seligman, 2002). A maioria dessas pessoas era de origem caucasiana, com alguma instrução universitária, entre 35 e 40 anos de idade, e 58% eram mulheres. Antes e depois de passar pela intervenção de potencialização primária, cada participante realizou medi­das de autoavaliação da felicidade. (Em­bora os participantes tenham sido desig­nados aleatoriamente a condições diversas, tratamos de uma condição de controle e três condições de intervenção para poten­cialização primária.)

A condição de controle para compa­ração era um exercício placebo no qual os participantes escreviam durante uma sema­na sobre suas memórias mais antigas. Os participantes colocados na intervenção de gratidão receberam uma semana para “entregar pessoalmente uma carta de gra­tidão a alguém que tivesse sido especial­mente gentil com eles, mas que nunca hou­vesse recebido os devidos agradecimentos (Seligman et al., 2005, p. 416). Os partici­pantes designados à condição que envol­via três coisas boas na vida deveriam es­crever, durante uma semana, sobre três coisas que foram bem a cada dia, junto com as causas por trás de cada uma delas. Por fim, pediu-se que um grupo de partici­pantes examinasse suas qualidades de ca­ráter de uma nova maneira, durante uma semana.

Os resultados mostraram que cada uma dessas três intervenções de potencia­lização primária teve efeitos positivos consistentes para revelar os níveis de feli­cidade dos participantes em relação aos que estavam na condição de controle/placebo. A visita de gratidão gerou os maiores aumentos em felicidade, mas eles duraram apenas por um mês. Além disso, escrever sobre três coisas boas que tivessem acontecido, junto com o uso de qualidades pessoais aplicados de uma nova maneira, tornou as pessoas mais fe­lizes, e essas mudanças positivas duraram até 6 meses.

Tomadas em seu conjunto, essas con­clusões sugerem que os psicólogos podem ajudar a desenvolver e a implementar in­tervenções de potencialização primária que elevem a felicidade das pessoas. Em seus comentários finais sobre essas descobertas pioneiras, Seligman e colaboradores (2005, p. 421) concluíram que “a psicoterapia é, há muito tempo, o lugar aonde se vai para falar dos problemas... Sugerimos que a psicoterapia do futuro também possa ser o lugar aonde se vai falar das próprias quali­dades”.

Antes de encerrarmos esta seção so­bre potencialização primária na saúde psi­cológica, a observação a seguir pode surpreendê-lo: um objetivo que não parece se adequar à potencialização primária é a busca de saúde financeira pessoal. Além de garantir as necessidades básicas da vida, o dinheiro pouco faz para melhorar o bem-estar (Diener e Biswas-Diener, 2002; Myers, 2000). Pense nas pessoas que você conhe­ce. É provável que as que se dedicam a obter riqueza provavelmente não sejam tão felizes. Na verdade, como apontamos em nosso capítulo anterior sobre os anteceden­tes da felicidade (Capítulo 7), adquirir muito dinheiro não é o caminho das pe­dras para a satisfação na vida.

Potencialização primária: saúde física

O exercício é um caminho comum para se obter uma sensação de condicio­namento físico, boa forma e força. Um as­pecto importante do exercício e da boa for­ma é dar às pessoas maior segurança de suas capacidades de realizar as atividades que formam suas rotinas cotidianas. Mais do que as melhorias fisiológicas que resul­tam dos exercícios, a segurança que eles geram também aumenta a felicidade e o bem-estar (Biddle, Fox e Boutcher, 2000). Embora os exercícios elevem os humores [329] positivos no curto prazo, é no longo prazo que eles produzem maior felicidade (Argyle, 2001; Sarafino, 2002). Nesse sentido, pode-se acrescentar o exercício à seção anterior sobre potencialização primária e saúde psicológica.

Parte da motivação para o exercício pode ser ter boa aparência e obter uma imagem física melhor (Leary, Tchividijian e Kraxberger, 1994). Outra razão por trás disso pode ser o desejo de ter boa saúde física. Sobre isso, algumas pessoas encon­tram prazer em ingerir vitaminas e alimentação nutritiva.

Atividades físicas regulares produzem benefícios psicológicos e físicos. Por exem­plo, a atividade física está relacionada aos seguintes benefícios (de Mutrie e Faulkner, 2004, p. 148):

  1. menores chances de morrer prematu­ramente;
  2. menos probabilidade de morrerprema­turamente de doenças cardíacas;
  3. menos riscos de diabete;
  4. menos probabilidade de desenvolver pressão sanguínea elevada;
  5. menos chances de desenvolver câncer de colo;
  6. perda e controle do peso e 
  7. ossos, músculos e articulações saudáveis.

Uma advertência sobre a potencialização primária

As pessoas devem tomar cuidado, em potencializações primárias, para não exa­gerar nessas atividades. Quando são se­duzidas pelos prazeres que derivam da po­tencialização de suas qualidades, as pes­soas podem perder a noção de equilíbrio nas atividades de sua vida. Assim como ocorre com qualquer atividade, pode ser necessária moderação.

Potencialização secundária: "Fazer da vida o melhor possível"

Em comparação com a potencializa­ção primária - na qual a pessoa busca um desempenho ótimo e uma satisfação por meio da busca de objetivos na potencialização secundária o objetivo é aumen­tar níveis já positivos para chegar ao máximo em termos de desempenho e satisfação (vide o lado direto da Figura 15.3). Em um sentido temporal, as atividades de potencialização secundária acontecem após terem sido atin­gidos níveis básicos de desempenho e satis­fação com a potencialização primária.

Potencialização secundária: saúde psicológica

A potencialização secundária da saú­de psicológica permite que as pessoas ma­ximizem seus prazeres partindo de sua saú­de mental positiva pré-existente. Momen­tos psicológicos de pico muitas vezes en­volvem importantes conexões humanas, como o nascimento de um filho, um casa­mento, a formatura de uma pessoa queri­da ou, talvez, o amor apaixonado e com­panheiro em relação ao parceiro.

Existem experiências psicológicas co­letivas cujo propósito é ajudar as pessoas a atingir prazeres extremos por meio do re­lacionamento profundo com outras. Já na década de 1950, por exemplo, os grupos de treinamento, ou grupos T, como eram chamados (Benne, 1964), enfatizavam a forma como as pessoas poderiam se juntar para vivenciar integralmente suas emoções positivas (Forsyth e Corazinni, 2000). (Por vezes, esses grupos eram chamados de “treinamento para a sensibilidade” [F. Johnson, 1988].)

A contemplação existencialista do sentido da vida é mais uma abordagem [330] para se chegar a uma experiência trans­cendentemente gratificante. Viktor Frankl (1966, 1992), ao analisar a questão de “qual é a natureza do sentido”, concluiu que o máximo em termos de vivenciar o sentido da vida vem de pensar sobre nos­sos objetivos e nossos propósitos. Mais do que isso, especulamos que a satisfação maior vem de contemplar nossos propósi­tos em tempos nos quais estamos sofren­do. Os pesquisadores da psicologia positi­va relataram que esse sentido na vida está relacionado à esperança muito elevada (Feldman e Snyder, 2005). Para o leitor interessado em instrumentos de autoapoio relacionados ao sentido na vida, reco­mendamos o Teste do propósito da vida (Purpose in life test, Crumbaugh e Maholick, 1964; Crumbaugh e Maholick, 1981), o índice de Interesse na Vida (Life Regard Index, Battista e Almond, 1973) e a Escala de sensação de coerência (Sense of cohe­rence scale, Antonovsky e Sagy, 1986).

Às vezes, ocorrem potencializações psicológicas secundárias em contextos em que as pessoas conseguem competir umas com as outras. Essas “competições normais” (vide Snyder e Fromkin, 1980) estão rela­cionadas ao envolvimento em disputas competitivas. Há regras para essas dispu­tas, e com o tempo uma ou mais pessoas surgem como vencedores. O elevado nível de prazer que esses vencedores sentem é descrito muitas vezes como “pura alegria”.

Ocasionalmente, os níveis máximos de prazer são resultado de maior envolvi­mento do que qualquer pessoa pode atin­gir sozinha (Snyder e Feldman, 2000). Tra­balhando juntas, as pessoas conseguem lutar por conquistas que seriam impensá­veis para qualquer indivíduo (vide Lemer, 1996). Depois, como parte dessa unidade coletiva, elas podem experimentar uma sensação de sentido e emoções que fazem parte dessa escala mais grandiosa. A histó­ria está cheia desses casos de triunfo cole­tivo diante da adversidade. Da mesma for­ma, a literatura costuma detalhar o inten­so êxtase vivenciado por pessoas que tra­balharam juntas para superar obstáculos difíceis e desafiadores para atingir seus objetivos coletivos. Alguns psicólogos já deram início a experiências com enfrentamento de ambientes selvagens, nas quais um pequeno grupo de pessoas aprende o júbilo supremo de cooperar como grupo para conseguir realizar diversas tarefas em ambientes difíceis e naturais (mergulho, canoagem, rafting, escaladas, etc.).

Ajudar os outros também faz com que as pessoas se sintam muito bem consigo mesmas. Outra experiência transcendente é ver outra pessoa fazendo algo que seja tão es­pecial que inspire admiração ou eleve. Nes­sas circunstâncias, é como se tivéssemos tido a dádiva de testemunhar o que de melhor há nas pessoas, e assistir a isso pro­duz um estado de profunda admiração (vide Haidt, 2000, 2002). Considere um exemplo real dessa admiração que (C.R.S.) tive o privilégio de testemunhar. O que aconteceu foi o seguinte: eu tinha tido um dia muito ruim. Não apenas as coisas ti­nham ido mal no trabalho (tinham-me dito que minha solicitação de bolsa havia sido negada), como também eu estava me sen­tindo mal fisicamente. Fui almoçar com meus colegas na associação dos estudan­tes apenas para descobrir que eles, tam­bém, não estavam em um bom momento. De repente, um jovem que vestia um abri­go da Universidade do Kansas correu até uma mesa do outro lado do corredor e ad­ministrou a manobra de Heimlich em um homem mais velho que estava se engas­gando. A cantina imediatamente ficou em [331] silêncio enquanto as pessoas assistiam a esse ato heroico que pode ter salvado a vida do homem. Quando a comida foi retirada da garganta dele, rompeu-se o silêncio à medida que as pessoas aplaudiam o ato do jovem. Com uma aparência um pouco constrangida, ele sorriu e foi saindo. Senti uma tremenda elevação que durou o resto do dia (e os vários dias que se seguiram). Foi um dos eventos mais comoventes em [332] que jamais estive envolvido, e meu único papel foi o de testemunhar essa ação im­pressionante e altruísta. Sem sombra de dúvida, observar um ato como esse, ver­dadeiramente excepcional, pode gerar um tipo de potencialização secundária.

Finalmente, por meio das artes, como a música, a dança, o teatro e a pintura, são proporcionados grandes prazeres às mas­sas. Assistir a apresentações artísticas im­portantes pode elevar públicos aos mais altos níveis de satisfação e prazer (Snyder e Feldman, 2000). Podemos estimular adul­tos de mais idade a resgatar algumas das alegrias e prazeres que vêm com a explo­ração e com as conquistas de novas habilidades quando somos mais jovens. 

Potencialização secundária: saúde física

A potencialização secundária da saú­de física diz respeito aos níveis de pico da saúde física, níveis esses que estão além daqueles das pessoas em boa condição. As pessoas que buscam potencialização secun­dária lutam por níveis de condicionamen­to físico que ultrapassam em muito os que geralmente são atingidos por pessoas que simplesmente realizam exercícios. Não per­ca de vista, contudo, que essas pessoas não precisam ser atletas de nível olímpico que competem contra outros atletas de elite com o objetivo de chegar ao máximo de­ sempenho em um esporte. Em lugar disso, os atletas que buscam os níveis mais ele­vados de competição podem ver a forma física como meio de aumentar as probabi­lidades de vencer. Por outro lado, as pes­soas que tipificam a potencialização secun­dária da saúde física são motivadas para atingir os níveis mais altos de proeza física por si só. Esse último nível superior de for­ma física reflete aquilo que Dienstbier (1989) definiu como robustez (toughness').

Advertências com relação à potencialização secundária

Por mais estranho que possa soar, as pessoas podem se tornar quase viciadas nas experiências de pico que refletem a poten­cialização secundária. Há uma força de equilíbrio natural, contudo, no fato de que as atividades mundanas da vida necessi­tam que as pessoas prestem atenção a elas, o que as deixa com pouco tempo para ir em busca de potencialização primária e secundária.

Também temos uma preocupação sé­ria com o desenvolvimento potencial de ins­trutores pessoais para ajudar as pessoas a atingir experiências de pico em termos de potencialização secundária. Nossa preo­cupação é que apenas os ricos tenham con­dições de pagar esses instrutores, o que se­ria antiético em relação ao espírito de igual­dade que acreditamos que deva guiar o cam­po da psicologia positiva. A proliferação de instrutores pessoais de psicologia positiva deve acontecer de tal forma que as pessoas de todos os grupos étnicos e socioeconômicos possam ter acesso a eles. Como já dis­ semos em outros momentos, a psicologia positiva deve ser para muitos, e não para uns poucos (Snyder e Feldman, 2000).

O equilíbrio entre sistemas de prevenção e potencialiação

Neste capítulo, descrevemos separa­damente as intercessões de prevenção e potencialização. As prevenções primárias e secundárias implicam esforços para ga­rantir que os resultados negativos não aconteçam, ao passo que as potencializações primárias e secundárias refletem iniciativas para garantir que os resultados positivos aconteçam. Libertas de seus pro­blemas por meio de prevenções primárias e secundárias, as pessoas podem dar aten­ção a potencializações primárias e secun­dárias com vistas a atingir experiências e [333] satisfação na vida em níveis ótimos ou até mesmo de pico (Snyder, Thompson e Heinze, 2003). Juntas, prevenções e potencializações formam uma díade podero­sa para o enfrentamento e a excelência.

Note-se que a prevenção e a potencialização têm um paralelo com as duas maio­res motivações da psicologia. A prevenção reflete processos voltados a evitar resulta­dos prejudiciais, enquanto a potencialização reflete os processos que tratam de atin­gir resultados benéficos. A justaposição dos sistemas de evitação e aproximação tem uma longa tradição na psicologia, incluin­do as primeiras idéias sobre defesas, na teoria psicanalítica de Freud (1915/1957), a pesquisa comportamental (Miller, 1944), a pesquisa fenomenológica (Lewin, 1951) sobre o tema do conflito humano e, mais recentemente, a psicologia da saúde (Carver e Scheier, 1993, 1994).

Embora o sistema de evitação tenha sido retratado como contraproducente (para uma revisão, vide Snyder e Pulvers, 2001), essas primeiras visões ignoraram a possibilidade de que, por meio do pensa­mento de evitação, as pessoas estejam pen­sando e se comportando de maneira pró-ativa para evitar um resultado ruim mais tarde. Essa última definição está no centro das abordagens de prevenção primária e secundária, as quais têm benefícios eviden­tes. Em lugar de sugerir que a evitação é sempre “ruim”, fechamos este capítulo su­gerindo que os processos de evitação e aproximação (ou, como são chamados às vezes, processos aversivos e apetentes) fun­cionam, ambos, para ajudar a pessoa a enfrentar. Dessa forma, as intercessões de potencialização proporcionam desafios que as pessoas devem equilibrar em suas vidas cotidianas. [334]

Psicologia - Psicologia positiva
Personalidade - Psicopatologia, Transtornos de personalidade
1/18/2021 7:56:53 PM | Por Ana Elizabeth Cavalcanti
Esquizofrenia, afinal o que é isso

A origem do interesse e da populariza­ção se deve ao grande número de portadores de patologias que procuram estar informados sobre possíveis causas e tratamentos. O proble­ma é que muitas vezes as informações obtidas (grande parte em sites da Internet) nem sempre se baseiam em conceitos acadêmicos, criando assim noções errôneas sobre essas doenças.A esquizofrenia é um exemplo. Muitas vezes, o termo é empregado para definir com­ portamentos estranhos e esquisitos das pessoas. Pode-se considerar que as “inverdades” sobre a esquizofrenia, assim como as de outras síndro- mes, são em grande parte propagadas na mídia por meio de conceitos contidos em romances, histórias e filmes, que não contêm embasamento científico. Assim, pessoas portadoras de diversas síndromes são rotuladas como esquizofrênicas sem uma relação coerente com a verdade. Esse fato é abordado por Lilifeld, Lynn, Ruscio e Beyerstein, em Os 50 maiores mitos populares da Psicologia (Editora Gente). Na obra, eles enumeram uma série de conceitos equivoca­ dos e mitos sobre diversas síndromes, divulgados principalmente em páginas da Web. Alguns, de forma totalmente equivocada, afirmam que a esquizofrenia é o mesmo que “dupla personali­dade’' ou “transtorno de personalidade múltipla”.

Segundo os autores, a esquizofrenia é, provavelmente, o termo psicológico mais mal empregado de todos os tempos. De acordo com a obra a confusão entre esquizofrenia e perso­nalidade múltipla é disseminada. Como exemplo eles citam um estudo realizado em 1977. por E.D Vaughn que constatou que 77% de alunos ma­triculados em cursos de introdução à psicologia endossaram a afirmação de que o esquizofrênico ê um indivíduo com uma personalidade dividida.

Acredita-se que a confusão entre os concei­tos sobre esquizofrenia e Transtorno Dissociativo de Identidade (TDI) tem origem em parte na contusão gerada pela terminologia. Lilifeld, Lynn, Ruscio e Beyerstein esclarecem que o psi­quiatra suíço Eugen Bleuler criou em 1911 o ter­mo esquizofrenia, que significa “mente dividida”.

Assim, tanto os leigos como alguns psicólogos, interpretaram mal a definição do estudioso. “Por esquizofrenia, Bleuler entendia que as pessoas por essa séria condição sofriam uma 'divisão’ em suas funções psicológicas, especialmente com re­lação às suas emoções e ao seu pensamento. Para a maioria das pessoas, o que sentimos em um momento corresponde ao que sentiremos no momento seguinte, assim como o que pensamos em um determinado instante corresponderá àquilo que pensaremos em seguida. Ou seja, se nos sen­timos tristes em um dado momento, frequente­ mente nos sentiremos tristes na sequência. Além disso, o que sentimos em um momento, em geral, corresponde ao que estamos pensando na­quele instante; em contrapartida, se temos pen­ samentos tristes, tendemos a nos sentir tristes".

Os estudiosos esclarecem que no caso da esquizofienia essas ligações sofrem frequen­ tes rupturas. Assim, as pessoas com esqui­ zofrenia possuem uma única personalidade que sofreu uma tragmentação ou cisão.

Em muitos casos, a doença pode es­ tar ligada a situações de risco como sui­ cídio. abuso de drogas ou álcool, etc.

O que é

A palavra esquizofrenia tem origem grega - schizein, equizo= dividir, cisão; phren, rema=mente - e significa “cisão da mente”. Segundo o dicionário Aulete Digital, o termo engloba várias e graves afecções mentais crôni­cas, de etiologia desconhecida, caracterizadas por uma dissociação entre o pensamento e a ação, e que provocam a perda do contato com a realidade e a desagregação da personalidade.

O psiquiatra suíço, Paul Eugen Bleu- er criou o termo em 1911 e definiu a es­ quizofrenia como uma doença psíquica caracterizada basicamente pela “cisão do pen­ samento, do afeto, da vontade e do senti­ mento subjetivo da personalidade”.

Trata-se de um transtorno mental que tem como característica a desintegração dos proces­sos de pensamento e a capacidade de resposta emocional. Ela tem como característica alterações na percepção ou expressão da realidade. Dessa forma, ela altera toda a estrutura vivencial do indivíduo que, muitas vezes, age como alguém que fica preso às suas fantasias e desconsidera a razão.

Pessoas com esquizofrenia podem ter distúrbios adicionais, incluindo transtorno de ansiedade e depressão. Alguns proble­mas sociais como o desemprego de longa duração, dificuldades financeiras e a falta de moradia, são comuns nesses pacientes.

Sintomas

Os sintomas da esquizofrenia geralmen­ te são divididos em positivos e negativos. Os sintomas positivos, segundo GJ Ballone em PsiqWeb. são “as alucinações (mais frequente­mente, as auditivas e visuais e, menos frequentes as táteis, e olfativas), os delírios (persecutórios, de grandeza, de ciúmes, somáticos, místicos, tantásticos), perturbações da forma e do curso do pensamento (como incoerência, prolixidade, desagregação), comportamento desorganizado, bizarro, agitação psicomotora e mesmo negligên­cia dos cuidados pessoais. Os sintomas negativos são, geralmente, de déficits, ou seja, a pobreza do conteúdo do pensamento e da fala, embotamen­to ou rigidez afetiva, prejuízo do pragmatismo, incapacidade de sentir emoções, incapacidade de sentir prazer, isolamento social, diminui­ção de iniciativa e diminuição da vontade”.

O delírio é considerado um sintoma marcante na esquizofrenia e pode ser entendi­do como um falso juízo da realidade. A pessoa interpreta erroneamente suas percepções e experiências. Ela pode, por exemplo, se sentir perseguida, ameaçada, enganada, atormentada ou espionada. Em alguns casos, a falsa percep­ção da realidade pode criar situações constran­gedoras. O indivíduo, por exemplo, ao ver um grupo de pessoas conversando, pode imaginar que algo está sendo planejado contra ele.

Segundo Barone, as alucinações podem ocorrer em qualquer modalidade sensorial; ou seja, auditivas, visuais, olfativas, gustati­vas e tateis. As alucinações auditivas são as mais comuns e geralmente são experimentadas como vozes conhecidas ou estranhas, que são percebidas como distintas dos pensamentos da própria pessoa. O conteúdo pode ser bas­ tante variável, embora as vozes pejorativas ou ameaçadoras sejam especialmente comuns.

Sintomas e Tratamento

De acordo com as doutoras Alice Si­ bile Koch e Daynae Diomário da Rosa, em Esquizofrenia e outros transtornos psicóticos (www abcdasaude.com.br), para fazer o diagnóstico o medico realiza uma entrevista com o pacien­ te e sua família visando obter uma história de sua vida e de seus sintomas o mais detalhada­ mente possível. “Até o presente momento não existem marcadores biológicos próprios dessa oença nem exames complementares especí­ ficos, embora existam evidências de alterações da anatomia cerebral demonstráveis em exames de neuroimagem e de metabolismo cerebral sofisticados, como a tomografia computadorizada.

De maneira geral os sintomas iniciais  são semelhantes aos de outros transtornos como a perda de interesse, desleixo com o aspecto pessoal, estreitamento de interes­ ses, irritação, morosidade nas ações. 

Segundo Ballone, alguns sintomas, em­ bora nao sejam específicos da Esquizofrenia, são de grande valor para o diagnóstico, como: audição dos próprios pensamentos sob a forma de vozes, alucinações auditivas que comentam o comportamento do paciente, alucinações somáticas, sensação de ter os próprios pensa­ mentos controlados, irradiação destes pensa­ mentos, sensação de ter as ações controladas e influenciadas por alguma coisa do exterior.

Tratamento

Até bem pouco tempo, acreditava-se que a esquizofrenia era um doença crônica que não tinha cura. Na verdade, não existe uma cura total. Entretanto, tem sido evidente a reabilita­ção psicossocial de um número expressivo de pacientes. Atualmente, muitas pessoas portado­ras da doença podem ter uma vida normal. As que apresentam quadros mais graves, apesar de dependerem de medicamentos, conseguem uma grande melhora, podendo inclusive desempe­nhar algum tipo de trabalho e constituir família.

Segundo Koch e Rosa, “As medicações antipsicóticas ou neurolépticos são o tratamen­to de escolha para a esquizofrenia. Elas atuam diminuindo os sintomas (alucinações e delírios), procurando restabelecer o contato do paciente com a realidade; entretanto, não restabelecem completamente o paciente. As medicações an­tipsicóticas controlam as crises e ajudam a evitar uma evolução mais desfavorável da doença. Em geral, as drogas antipsicóticas apresentam efeitos colaterais que podem ser bem controlados”.

Elas também afirmam que, em situações de crise grave, em que não houve resposta às medicações, pode-se fazer úso da eletroconvulsoterapia (ECT). Esse método, antigamen­te, era conhecido como eletro-choque e tem demonstrado resultados positivos na melhora dos sintomas da esquizofrenia. Há ainda a possibi­lidade do uso de antipsicóticos mais modernos conhecidos como atípicos ou de última geração.

As abordagens psicossociais, como acompa­nhamento psicoterápico, terapia ocupacional e familiar também são recomendadas pelos dou­tores, pois diminuem as recaídas e promovem o ajustamento social dos portadores da doença”.

Psicologia - Psicopatologia
Comportamento - Comportamento pró-social, Perdão
1/18/2021 9:52:52 AM | Por Ana Elizabeth Cavalcanti
Os limites da raiva e do perdão

A emoção faz parte da vida huma­na e sem ela provavelmente a vida não teria muito sentido. Na verdade, é uma experiência subjetiva ligada ao jeito de ser de cada um, como personalidade ou temperamento. Ela sempre é motivada por alguma coisa, boa ou má, que nos afeta diretamente. Neste contexto, pode-se dizer que a emo­ção provoca reações. Esta situação pode ser observada facilmente com os comportamen­tos que ela produz: sorriso, choro, fuga, etc. Algumas emoções são agradáveis, como ale­gria, empatia ou gratidão. Outras nem tanto, como o rancor, a mágoa ou a inveja. Dentre as emoções negativas, que produzem sensações desgastantes e  desagradáveis, muito provavelmente a mais intensa é a raiva que acontece quando alguém ou alguma coisa nos prejudica, nos magoa ou nos decepciona de forma intencional ou não. Ela surge quando o ego se sente ameaçado ou ferido. Sua intensidade varia de acordo com o grau de decepção que ela causa na pessoa.

Mas será que a raiva pode ser usada de forma positiva? A analista junguiana Clarissa Pinkola Estés, assim como muitos estudiosos da Psicologia, acre­dita que sim, pois ela é capaz de iluminar lugares em nós que geralmente não enxergamos ou perce­bemos. Por outro lado, Estés descreve que, quando a raiva é usada apenas em seu sentido negativo, age como um ácido capaz de gerar uma úlcera e de causar prejuízos à nossa psique. A estudiosa consi­dera que o ciclo da raiva é similar a qualquer outro: ­ “ela sobe, cai, morre e é liberada como energia nova. Sempre que nos permitimos aprender com a nossa raiva, assim transformando-a, nós a dispensamos”.

Geralmente é muito difícil ficar calado diante de injustiças ou “oferecer a outra face”, da forma que apregoa muitas crenças religiosas. Em algumas situa­ções, a raiva pode ser liberada por meio de “explosões”. Para Estés, o grande aprendizado da raiva se dá pelo perdão, embora seja muito difícil. Entretanto, “per­doar” não significa necessariamente apenas “virar a página”, esquecer de uma hora para outra a decepção, pois também acontece por meio de etapas, ou ciclos.

Estés é conhecida por seus trabalhos realiza­dos a partir de mitos, contos de fadas e lendas, com
o objetivo de resgatar a natureza instintiva femini­na. Uma de suas obras mais famosas é Mulheres que correm com os lobos (Editora Rocco) onde, por meio de diversas histórias, revela uma psicologia da mulher em seu estado mais puro e a busca do conhecimento da alma. As histórias são lições que nos levam à reflexão e à ação. A autora as considera como um material capaz de nos dar coragem para a busca e a conquista da liberdade natural. Embora seja um livro dedicado às mulheres, Estés nos dá grandes lições de vida que podem trazer resultados benéficos a qualquer pessoa.

 

O URSO DA MEIA-LUA

Em um dos capítulos, ela nos conta uma história tradicional do Japão, O Urso da Meia-Lua, em que descreve os limites da raiva e do perdão. Segundo a narrativa, uma mulher ficou muito feliz com o retomo de seu marido para casa. Há anos, ele estava na guerra e retomava ao lar devido a um ferimento. Apesar de ser bem recebido pela mulher, ele se mostrou com um péssimo humor. Esta­va arredio e com muita raiva. Apesar dos agra­dos da mulher, não entrou na casa, dormiu ao relento e rejeitou a pontapés toda a comida que ela preparara especialmente para a ocasião.

Muito triste com a situação, a mulher procurou por uma curandeira porque desejava que o marido voltasse a ser amoroso e gentil, e deixasse toda aquela raiva de lado. A curandeira prometeu ajudá-la, mas para tanto precisava que a mulher fosse ao alto da monta­nha de gelo pegar um pelo do Urso da Meia-Lua.

Muito feliz, a mulher saiu à busca do Urso, sem pensar nos perigos que teria que en­ frentar em sua missão, pois seu amor pelo com­panheiro era maior que qualquer coisa.

Durante dias, ela atravessou montanhas, vales e florestas até chegar à montanha de gelo. Mesmo cansada a escalou e quando chegou ao topo, se abrigou em uma pequena toca para dormir. Quando percebeu a presença do grande urso negro, atirou para ele um bocado de comida que trouxera numa sacola. Atraído pelo cheiro do alimento o urso a deixou em paz. Ele comeu e se abrigou em sua própria caverna. Para evitar um futuro ataque do urso, a mulher, durante dias, passou a deixar comida perto de seu abrigo.

Alguns dias depois, o urso notou as peque­nas pegadas da mulher ao lado do pote de comida e decidiu procurá-la. Em pouco tempo, estavam cara a cara. Embora estivesse assustada, a mulher não saiu do lugar e enfrentou os rugidos fortes do animal.

Ao perceber que ia ser atacada, ela lhe pediu com carinho e gentileza que a ajudasse. Contou então a história do marido e que precisava de um pelo do seu pescoço para curá-lo. O animal ficou penalizado com a história e permitiu que ela arrancasse o pelo.

Ao fazê-lo, o urso sentiu dor e, apesar da permissão que havia dado, ficou enfurecido. A mulher saiu correndo, assustada, mas feliz porque estava levando o ingrediente importante para a cura do esposo. Dias depois, ela chegou à casa da curandeira, cansada, suja e com as roupas rasgadas, mas eufórica com a ideia de ter um remédio que curasse a raiva do marido.

A curandeira pegou o pelo de suas mãos e simplesmente o atirou ao fogo. Perplexa com o gesto,
a mulher não conseguia compreender o que estava acontecendo. A curandeira então lhe disse que na verdade o pelo não tinha nenhuma importância na cura do marido e lhe disse: “Fique calma. Tudo está bem. Você se lembra de cada passo que deu para escalar a montanha? Você se lembra de cada passo que deu para conquistar a confiança do Urso da Meia-Lua? Você se lembra do que viu, do que ouviu e sentiu?

A mulher respondeu que se recordava de tudo. A curandeira então lhe aconselhou: “Então minha filha, volte, por favor, para casa, com seus novos conheci­mentos e proceda da mesma forma com o seu marido”.

ENTENDENDO A ESTÓRIA

A estória do Urso da Meia-lua trata de um tema comum em diversas partes do mundo: a procura por um objeto mágico e transformador, que pode ser feita tanto por uma mulher como por um homem. Na verdade, retrata, segundo Estés, um modelo completo para tratar a raiva e para se curar dela “a procura de uma força restauradora calma e sábia (a ida à curandeira), a aceitação do desafio de entrar em um terreno psíquico que nunca havíamos abordado antes (a escalada da montanha), o reconhecimento das ilusões (a atitude para escalar as rochas, para correr debaixo das árvores), o descanso propiciado aos nossos velhos sentimentos e pensamentos obsessivos, o agrado ao grande Self com­passivo (a alimentação do urso com paciência e a retri­buição da gentileza por parte do urso), a compreensão do lado furioso da psique compassiva (o reconheci­mento de que o urso, o Self compassivo, não é manso. A história mostra a importância de trazer esse conheci­mento psicológico até aqui embaixo, até nossa vida real (a volta para a aldeia), de aprender que a cura reside na busca e na prática, não numa única ideia (destruição do pelo). O cerne da história é, ‘‘aplique tudo isso à sua raiva, e tudo correrá bem” (o conselho da curandeira para que volte para casa e aplique esses princípios).”

 

OS QUATRO ESTÁGIOS DO PERDÃO

Sempre que a raiva se transforma numa re­presa para o pensamento e a ação criativa, ela pre­cisa ser abrandada ou modificada. Algumas pessoas naturalmente têm mais facilidade para perdoar do que outras. Para alguns indivíduos, trata-se de um dom, enquanto para outros se trata de uma técnica a ser aprendida. Em seu trabalho, Estés descreve quatro níveis de perdão que podem ser úteis a qualquer pessoa.

1- DEIXAR PASSAR

Antes de perdoar, é preciso deixar passar algum tempo, “tirar” umas férias sobre o assunto. O importante nessa etapa é tirar a atenção da raiva, pois, do contrário, nos sentiremos exaustos. Esse estágio, de acordo com Estés, “é um bom treino para o aban­dono definitivo que mais adiante advirá do perdão.

A ideia não é a de fechar os olhos, mas a de adqui­rir força e agilidade para se desligar da questão”.

2- CONTROLAR-SE

Controle, neste caso, significa abster-se do desejo de punir o ofensor, representa “não pensar no fato nem reagir a ele, seja em termos grandes, seja em termos pequenos. Essa atitude concentra a atenção à hora em que a pessoa se dirigir aos próximos passos”.

Assim, controlar-se significa o mesmo que ter paci­ência, resistir e canalizar a emoção, é ser generoso.

3- ESQUECER

Para Estés, esquecer não significa entorpecer ou enfraquecer o cérebro, mas afastar da lembrança. O esquecimento consciente significa deixar o aconteci­mento de lado, ou seja, não permitir que ele permaneça em primeiro plano na mente. O ideal é que o fato saia do cenário. A analista pondera ainda que, esquecer não é uma atitude passiva, “significa não trazer certos ma­teriais até a superfície, nem revirá-los constantemente, nem se irritar com pensamentos, imagens ou emo­ções repetitivas. O esquecimento consciente significa a determinação de abandonar a prática obsessiva”.

4- PERDOAR

O perdão “final” é uma decisão consciente que se desliga do ressentimento, o que inclui o perdão
da ofensa e a desistência do revide. Estés esclare­ce que algumas pessoas optam pelo perdão total,
ou seja, liberam para sempre a pessoa de qualquer tipo de reparação. Há ainda pessoas que preferem “interromper a reparação no meio, abandonando a dívida, alegando que o que está feito está feito e que a compensação já é suficiente. Outro tipo de perdão consiste em isentar a pessoa sem que ela tenha feito qualquer reparação emocional ou de outra natureza”.

A analista considera ainda que para algumas pessoas finalizar o perdão é considerar o outro com indulgência. Alguns perdoam e ainda ajudam o ofensor de forma compassiva. “O perdão é um ato de criação. Você pode escolher entre muitas for­mas de proceder. Você pode perdoar por enquanto, perdoar até que, perdoar até a próxima vez, perdoar, mas não dar outra chance - começa tudo de novo se acontecer outro incidente”. Neste contexto, pode­mos dar mais uma chance ou muitas. Na verdade, somos nós que decidimos a forma de perdão.

Psicologia - Psicologia Analítica
Antropologia social - Cultura, 
1/17/2021 9:27:08 AM | Por Roque Laraia
A cultura interfere no plano biológico

Comecemos pela reação oposta ao etnocentrismo, que é a apatia. Em lugar da superestima dos valores de sua própria sociedade, numa dada situação de crise os membros de uma cultura abandonam a crença nesses valores e, consequentemente, perdem a motivação que os mantém unidos e vivos. Diversos exemplos dramáticos deste tipo de comportamento anômico são encontrados em nossa própria história. Os africanos removidos violentamente de seu continente (ou seja, de seu ecossistema e de seu contexto cultural) e transportados como escravos para uma terra estranha habitada por pessoas de fenotipia, costumes e línguas diferentes, perdiam toda a motivação de continuar vivos. Muitos foram os suicídios praticados, e outros acabavam sendo mortos pelo mal que foi denominado de banzo. Traduzido como saudade, o banzo é de fato uma forma de morte decorrente da apatia.

Foi, também, a apatia que dizimou parte da população Kaingang de São Paulo, quando teve o seu território invadido pelos construtores da Estrada de Ferro Noroeste. Ao perceberem que os seus recursos tecnológicos, e mesmo os seus seres sobrenaturais, eram impotentes diante do poder da sociedade branca, estes índios perderam a crença em sua sociedade. Muitos abandonaram a tribo, outros simplesmente esperaram pela morte que não tardou.

Entre os índios Kaapor, grupo Tupi do Maranhão, acreclita-se que se uma pessoa vê um fantasma ela logo morrerá.

O principal protagonista de um filme, realizado em 1953 por Darcy Ribeiro e Hains Forthmann, ao regressar de uma caçada contou ter visto a alma de seu falecido pai perambulando pela floresta. O jovem índio deitou em uma rede e dois dias depois estava morto. Em 1967, durante a nossa permanência entre estes índios (quando a história acima nos foi contada), fomos procurados por uma mulher, em estado de pânico, que teria visto um fantasma (um “anan”). Confiante nos poderes do branco, nos solicitou um “anan-puhan” (remédio para fantasma). Diante de uma situação crítica, acabamos por fornecer-lhe um comprimido vermelho de vitaminas, que foi considerado muito eficaz, neste e em outros casos, para neutralizar o malefício provocado pela visão de um morto.

É muito rica a etnografia africana no que se relere às mortes causadas por feitiçaria. A vítima, acreditando efetivamente no poder do mágico e de sua magia, acaba realmente morrendo. Pertti Peito descreve esse tipo de morte como sendo consequência de um profundo choque psicofisiológico: “A vítima perde o apetite e a sede, a pressão sanguínea cai, o plasma sanguíneo escapa para os tecidos e o coração deteriora. Ela morre de choque, o que é fisiologicamente a mesma coisa que choque de ferimento na guerra e nas mortes de acidente de estrada.” É de se supor que em todos os casos relatados o procedimento orgânico que leva ao desenlace tenha sido o mesmo.

Deixando de lado estes exemplos mais drásticos sobre a atuação da cultura sobre o biológico, podemos agora nos referir a um campo que vem sendo amplamente estudado: o das doenças psicossomáticas. Estas são fortemente influenciadas pelos padrões culturais. Muitos brasileiros, por exemplo, dizem padecer de doenças do fígado, embora grande parte dos mesmos ignorem até a localização do órgão. Entre nós são também comuns os sintomas de mal-estar provocados pela ingestão combinada de alimentos.

Quem acredita que o leite e a manga constituem uma combinação perigosa, certamente sentirá um forte incômodo estomacal se ingerir simultaneamente esses alimentos.

A sensação de fome depende dos horários de alimentação que são estabelecidos diferentemente em cada cultura.

“Meio-dia, quem não almoçou assobia”, diz um ditado popular. E de fato, estamos condicionados a sentir fome no meio do dia, por maior que tenha sido o nosso desjejum. A mesma sensação se repetirá no horário determinado para o jantar. Em muitas sociedades humanas, entretanto, estes horários foram estabelecidos diferentemente e, em alguns casos, o indivíduo pode passar um grande número de horas sem se alimentar e sem sentir a sensação de fome.

A cultura também é capaz de provocar curas de doenças, reais ou imaginárias. Estas curas ocorrem quando existe a fé do doente na eficácia do remédio ou no poder dos agentes culturais. Um destes agentes é o xamã de nossas sociedades tribais (entre os Tupi, conhecido pela denominação de paie ou pajé). Basicamente, a técnica de cura do xamã consiste em uma sessão de cantos e danças, além da defumação do paciente com a fumaça de seus grandes charutos (petin), e a posterior retirada de um objeto estranho do interior do corpo do doente por meio de sucção. O fato de que esse pequeno objeto (pedaço de osso, insetos mortos etc.) tenha sido ocultado dentro de sua boca, desde o inicio do ritual, não é importante. O que importa é que o doente é tomado de uma sensação de alívio, e em muitos casos a cura se efetiva.

A descrição de uma cura dará, talvez, uma ideia mais detalhada do processo. Após cerca de uma hora de cantar, dançar e puxar no cigarro, o pajé recebeu o espírito. Aproximando-se do doente que estava sentado em um banco, o pajé soprou fumaça primeiro sobre as próprias mãos e, em seguida, sobre o corpo do paciente.

Ajoelhando-se junto a ele, esfregou-lhe o peito e o pescoço. A massagem era dirigida para um ponto no peito do doente, e o pajé esfregava as mãos como se tivesse juntado qualquer coisa. Interrompia a massagem para soprar fumaça nas mãos e esfregá-las uma na outra, como se quisesse livrá-las de uma substância invisível.

Após muitas massagens no doente, levantou-lhe os braços e encostou seu peito ao dele. Queria assim passar o ymaé (a causa da doença, aquilo que um ser sobrenatural faz entrar no corpo da vítima) do doente para o seu próprio corpo. Não o conseguiu e voltou a repetir as massagens, dessa vez dirigidas para o ombro. Aí aplicou a boca e chupou com muita força. Repetiu as massagens e sucções, intercalando-as com baforadas de cigarro e contrações como se fosse vomitar. Finalmente conseguiu extrair e vomitar o ymaé, que fez desaparecer na mão. Nas curas a que assistimos, os pajés jamais mostraram o ymaé que extraíam dos doentes. Guardavam-nos por algum tempo dentro da mão, livre do cigarro, para fazê-lo desaparecer após. Explicavam, porém, à audiência a sua natureza, o que parecia bastante. Dizem que os pajés mais poderosos o fazem, e algumas pessoas guardam pequenos objetos que acreditam terem sido retirados de seu corpo por um pajé.

 

Ciências humanas - Antropologia
Epistemologia - Teoria, Aspectos históricos
1/16/2021 3:12:08 PM | Por Gregory J. Feist, Jess Feist, Tomi-Ann Roberts
Antecedentes do sistema de personalidade cognitivo-afetivo

Alguns teóricos, como Hans Eysenck e Gordon Allport, acreditavam que o comportamento era, sobretudo, um produto de traços de personalidade relati­vamente estáveis. Contudo, Walter Mischel contestou esse pressuposto. Sua pesquisa inicial (Mischel, 1958, 1961a, 1961b) o levou a acreditar que o comportamento era, em grande parte, função da situação. Mischel constatou que tanto leigos quanto psicólogos profis­sionais parecem acreditar de modo intuitivo que o compor­tamento das pessoas é relativamente consistente, embora evidências empíricas sugiram muita variabilidade no com­portamento, uma situação que Mischel denominou paradoxo da consistência. Para muitas pessoas, parece evidente, por si, que disposições pessoais globais, tais como agressivi­dade, honestidade, avareza, pontualidade, entre outras, ex­pliquem muito do comportamento. As pessoas elegem po­líticos para um cargo porque os veem como honestos, leais, determinados e íntegros; os gerentes de pessoal selecionam empregados que sejam pontuais, leais, cooperativos, traba­lhadores, organizados e sociáveis. Uma pessoa se mostra, de modo geral, amistosa e gregária, ao passo que outra costu­ma comportar-se de modo hostil e taciturno. Os psicólogos, bem como os leigos, há muito tempo sintetizaram o com­portamento das pessoas usando tais definições de traços descritivos.

Assim, muitas pessoas presumem que os traços de personalidade globais se manifestem por um período de tempo e também conforme a situação. Mischel sugeriu que, na melhor das hipóteses, essas pessoas estão apenas parcial­mente certas. Ele argumentava que alguns traços básicos, de fato, persistem ao longo do tempo, mas existem poucas evi­dências de que eles se generalizam de uma situação para ou­tra. Mischel contestava enfaticamente as tentativas de atri­buir o comportamento a esses traços globais. Uma tentativa de classificar os indivíduos como amistosos, extrovertidos, conscienciosos pode ser uma forma de definir a personalida­de, mas essa é uma taxonomia que não consegue explicar o comportamento (Mischel, 1990,1999,2004; Mischel et aL, 2002; Shoda 8t Mischel, 1998).

Por muitos anos, as pesquisas não conseguiram apoiar a consistência dos traços de personalidade entre as situa­ções. Hugh Hartshome e Mark May, em seu estudo clássi­co de 1928, constataram que as crianças em idade escolar eram honestas em uma situação e desonestas em outra. Por exemplo, algumas colavam nos testes, mas não rou­bavam lembrancinhas de festas; outras quebravam as re­gras em uma competição atlética, mas não colavam em um teste. Alguns psicólogos, como Seymour Epstein (1979, 1980), argumentaram que estudos como o de Hartshome e May usavam comportamentos muito específicos. Epstein defendia que, em vez de se basearem em um único com­portamento, os pesquisadores precisam agregar medidas do comportamento; ou seja, eles devem obter uma soma de muitos comportamentos. Em outras palavras, Epstein referia que, muito embora as pessoas nem sempre exibam um traço pessoal forte, por exemplo, conscienciosidade, a soma total de seus comportamentos individuais reflete uma essência geral de conscienciosidade.

Entretanto, Mischel (1965) anteriormente havia des­coberto que um comitê de avaliação de três pessoas, que usava informações agregadas de uma variedade de escores, não conseguia predizer de forma confiável o desempenho de professores do Peace Corps. A correlação entre o jul­gamento do comitê e o desempenho dos professores era um 0,20 não significativo. Além do mais, Mischel (1968) defendia que correlações de cerca de 0,30 entre diferentes medidas do mesmo traço, assim como entre os escores dos traços e dos comportamentos subsequentes, representa­vam os limites externos da consistência do traço. Assim, essas correlações relativamente baixas entre traços e com­portamento não decorrem da falta de fidedignidade do instrumento de avaliação, mas de inconsistências no compor­tamento. Mesmo com medidas perfeitamente fidedignas, argumentava Mischel, comportamentos específicos não predizem com precisão os traços de personalidade.

Interação pessoa-situação

Com o tempo, no entanto, Mischel (1973, 2004) acabou percebendo que as pessoas não são vasos vazios sem traços de personalidade duradouros. Ele reconheceu que a maio­ria tem alguma consistência em seu comportamento, mas continuou a insistir em que a situação tem um efeito po­deroso sobre o comportamento. A objeção de Mischel ao uso de traços como preditores de comportamento não se baseava em sua instabilidade temporal, mas na inconsis­tência de uma situação para outra. Para ele, muitas dispo­sições básicas podem ser estáveis por um longo período de [363] tempo. Por exemplo, um estudante pode ter um histórico de conscienciosidade no trabalho acadêmico, mas não ter a mesma postura para limpar seu apartamento ou manter seu carro em condições de funcionamento. Sua falta de cuidado com a limpeza do apartamento pode ser devida a desinteresse, e sua negligência com seu carro pode ser resultado de conhecimento insuficiente. Assim, a situação específica interage com competências, interesses, objeti­vos, valores, expectativas, entre outros, etc. para predizer o comportamento. Para Mischel, essas visões de traços ou disposições pessoais, embora importantes na predição do comportamento humano, negligenciam o significado da situação específica em que a pessoa funciona.

As disposições pessoais influenciam o comportamen­to somente sob certas condições e em determinadas situa­ções. Essa visão sugere que o comportamento não é causa­do por traços pessoais globais, mas pelas percepções que as pessoas têm de si mesmas em uma situação particular. Por exemplo, um jovem que em geral é muito tímido perto de mulheres jovens pode se comportar de maneira sociável e extrovertida quando está com homens ou com mulheres mais velhas. Esse jovem é tímido ou extrovertido? Mischel diria que ele é ambos - dependendo das condições que o afetam durante uma situação específica.

A visão condicional sustenta que o comportamento é moldado pelas disposições pessoais e pelos processos cog­nitivos e afetivos específicos de uma pessoa. Enquanto a teoria dos traços sugere que as disposições globais predi­zem o comportamento, Mischel argumenta que as crenças, os valores, os objetivos, as cognições e os sentimentos in­teragem com essas disposições para moldar o comporta­mento. Por exemplo, a teoria dos traços tradicional sugere que as pessoas com o traço de conscienciosidade tendem a se comportar de uma maneira conscienciosa. No entan­to, Mischel assinala que, em uma variedade de situações, a conscienciosidade pode ser usada com outros processos cognitivo-afetivos para atingir um resultado específico.

Em um estudo exploratório para testar esse modelo, Jack Wright e Mischel (1988) entrevistaram crianças de 8 e 12 anos e adultos e pediram que relatassem tudo o que sabiam sobre “grupos-alvo" de crianças. Tanto os adultos quanto as crianças reconheceram a variabilidade do com­portamento de outras pessoas, porém os adultos estavam mais certos acerca das condições sob as quais comporta­mentos particulares ocorrem. Enquanto as crianças res­tringiram suas descrições a termos como: “Carlo às vezes bate em outras crianças", os adultos foram mais específi­cos, por exemplo: “Carlo bate quando provocado". Esses dados sugerem que as pessoas reconhecem prontamente a inter-relação entre situações e comportamento e que elas, de modo intuitivo, seguem uma visão condicional das dis­posições.

Nem a situação isolada nem os traços de persona­lidade estáveis isolados determinam o comportamento. Em vez disso, o comportamento é produto de ambos. Portanto, Mischel e Shoda propuseram um sistema de personalidade cognitivo-afetivo que procura conciliar es­sas duas abordagens de predição dos comportamentos humanos.

Psicologia - Teoria da aprendizagem social cognitiva
Outros temas - , 
1/16/2021 11:50:13 AM | Por Robert Graves
Zeus e Hera, um casal conflituoso

Só Zeus, o pai do Céu, podia controlar o raio. Era com a ameaça do seu lampejo fatal que controlava sua família briguenta e rebelde do monte Olimpo. Ele também ordenava os corpos celestes, compunha leis, fazia cumprir juramentos e pronunciava oráculos. Quando sua mãe Reia, prevendo os problemas que sua lascívia viria a causar, proibiu-o de se casar, ele, furioso, ameaçou viola-la. Apesar de ela imediatamente ter-se transformado em uma serpente apavorante, Zeus não se deixou intimidar, transformando-se, por sua vez, em uma serpente macho que, enrolando-se nela num no indissolúvel, cumpriu a ameaça. Foi então que começou sua longa serie de aventuras amorosas. Ele gerou as Estações e as três Moiras com Têmis; as Cárites (Graças, entre os romanos) com Eurínome; as três musas com Mnemosine, com quem partilhou o leito por nove noites; e também, diz-se, Perséfone (Proserpina, entre os romanos), a rainha do mundo subterrâneo, com a qual seu irmão Hades casou-se à força, na presença da ninfa Estige. Portanto, não lhe faltava poder acima ou abaixo da Terra, e sua mulher, Hera, estava em pé de igualdade com ele apenas num ponto: ela podia conceder o dom da profecia a qualquer homem ou animal que desejasse.

Zeus e Hera brigavam constantemente. Irritada com suas infidelidades, ela o humilhava frequentemente com suas maquinações. Embora acostumado a revelar-lhe seus segredos e, por vezes, aceitar seus conselhos, Zeus jamais confiou totalmente na esposa. Hera sabia que, caso uma ofensa ultrapassasse um certo limite, ele poderia açoita-la, ou mesmo arremessar-lhe um raio. Ela se limitava, portanto, a intrigas inescrupulosas, como, no caso do nascimento de Hercules (Héracles), e, as vezes, tomava emprestada a cinta de Afrodite, a fim de excitar a paixão do marido e, assim, aplacar sua fúria. Ele agora alegava ser o filho primogênito de Cronos.

Em um determinado momento, o orgulho e a petulância de Zeus se tornaram tão intoleráveis que Hera, Posídon, Apolo e todos os outros deuses, à exceção de Hestia, cercaram-no rapidamente enquanto dormia em seu feito e o amarraram em correias de couro cru com uma centena de nós, que o impediam de se mover. Zeus os ameaçou com morte instantânea, mas, como eles haviam colocado o raio fora de seu alcance, insultaram-no com escárnio. Enquanto celebravam a vitória e discutiam ciosamente sobre quem seria o sucessor, Tétis, a Nereida, prevendo uma guerra civil no Olimpo, apressou-se em buscar o hecatônquiro Briareu, que prontamente desfez os nós, utilizando suas cem mãos ao mesmo tempo, e libertou seu amo. Por ter sido Hera quem liderara a conspiração, Zeus a pendurou no céu com um bracelete dourado em cada pulso e uma bigorna amarrada a cada tornozelo. As outras divindades ficaram profundamente contrariadas, mas não ousaram tentar resgatá-la, apesar de seus comoventes clamores. Finalmente, Zeus comprometeu-se a libertá-la mediante o juramento de que nunca mais se rebelariam contra ele. E foi o que, com relutância, cada uma das partes fez. Zeus puniu Posídon e Apolo, mandando-os como escravos ao rei Laomedonte, para trabalhar na construção da cidade de Troia, mas perdoou os outros, por considerar que eles tinham agido sob coação.

As relações maritais entre Zeus e Hera refletem as da era dórica bárbara, em que as mulheres eram privadas de todo seu poder mágico, exceto a profecia, além de serem vistas como propriedade dos homens. Na ocasião em que o poder de Zeus foi salvo graças a ajuda de Tétis e Briareu, depois da conspiração dos outros deuses contra ele, é possível que príncipes vassalos do Alto Rei helênico tenham feito uma revolução palaciana, através da qual quase conseguiram destroná-lo. A ajuda deve ter vindo de uma companhia de tropas domesticas leais neo-helênicas, recrutadas na Macedônia, lar de Briareu, e de um destacamento de magnésios, o povo de Tétis. Nesse caso, a conspiração deve ter sido instigada pela suma sacerdotisa de Hera, que o Alto Rei, logo depois, humilhou, conforme a descrição do mito.

O fato de Zeus haver violado a deusa da Terra Réia significa que os helenos, adoradores de Zeus, passaram a controlar as cerimonias agrícolas e funerárias. O fato de ela ter proibido Zeus de se casar significa que, ate então, a monogamia era desconhecida, pois as mulheres tinham quantos amantes quisessem.

Sua paternidade sobre as Estações e sobre Têmis significa que os helenos assumiram também o controle do calendário: Têmis ("ordem") era a Grande Deusa que determinara o ano de 13 meses, dividido pelos solstícios de verão e de inverno em duas estações. Em Atenas, essas estações foram personificadas por Talo (ou Acale) e Carpo (originalmente "Carfo"), significando respectivamente "broto" e "murcho", cujo templo incluía um altar ao Dionísio Fálico. Eles aparecem em uma pedra entalhada em Hattusha, ou Pteria, onde constituem aspectos gêmeos da deusa-leão Hepta, nascida das asas de uma águia-sol bicéfala.

Carite ("graça") tinha sido a deusa em seu aspecto irresistível, na ocasião em que a suma sacerdotisa escolhia o rei sagrado como seu amante. Homero menciona duas Carites - Pasiteia e Cale, que parecem ser a separação forçada de três palavras: Pasi thea cale, "a deusa que é bela para todos os homens". As duas Carites, Auxo ("aumento") e Hegemone ("mestria'), que os atenienses honravam, correspondiam as duas Estações. Mais tarde, as Carites passaram a ser veneradas como uma tríade, a fim de se equipararem as três Moiras - a deusa tripla em sua mais irredutível forma. O fato de serem filhas de Zeus com Eurinome, a Criadora, significa que o senhor helênico tinha o poder de dispor de todos as jovens núbeis.

As musas ("deusas da montanha'), originalmente uma tríade, são a deusa tripla em sua forma orgíaca. A alegação de que Zeus era o pai delas é tardia. Hesíodo as chama de filhas da Mãe Terra e do Ar.

Mitologia - Mitologia Grega
Temas gerais - Temas gerais, 
1/11/2021 6:33:01 PM | Por Gregory J. Feist, Jess Feist, Tomi-Ann Roberts
Abordagem de Allport da teoria da personalidade

As respostas a três perguntas inter-reladonadas revelam a abordagem de Allport da teoria da personalidade: (1) O que é personalidade? (2) Qual é o papel da motivação consciente na teoria da personalidade? (3) Quais são as características da pessoa psicologicamente sadia? [236] Poucos psicólogos foram tão meticulosos e exaustivos quanto Allport na definição de termos. Sua busca de uma definição da personalidade é clássica. Ele rastreou a eti­mologia da palavra persona até as raízes gregas, incluindo o significado em latim antigo e etrusco. .... a palavra “personalidade" provavelmente tem origem em persona, que se refere à máscara proveniente do teatro grego antigo e usada pelos atores romanos du­rante o primeiro e o segundo século antes de Cristo.

Após rastrear a história do termo, Allport especificou 49 defini­ções de personalidade usadas em teologia, filosofia, direi­to, sociologia e psicologia. Ele, então, apresentou uma 50" definição, que, em 1937, era “a organização dinâmica dentro do indivíduo daqueles sistemas psicofísicos que determinam seus ajustes únicos a seu ambiente" (Allport, 1937, p. 48). Em 1961, ele mudou a última sentença para “que deter­minam seu comportamento e pensamento característicos" (Allport, 1961, p. 28). Amudança foi significativa e refletia a propensão de Allport à exatidão, Em 1961, ele percebeu que a sentença “ajustes a seu ambiente” poderia implicar que as pessoas meramente se adaptam a seu ambiente. Em sua última definição, Allport transmitia a ideia de que o comportamento é expressivo, além de adaptativo. As pes­soas não só se ajustam ao próprio ambiente como intera­gem e se refletem nele, de modo a fazer com que também o ambiente se molde a elas.

Allport escolheu cuidadosamente cada sentença de sua definição, para que cada palavra transmitisse com precisão o que ele queria dizer. A expressão organização dinâmica im­plica uma integração ou inter-relação de vários aspectos da personalidade. A personalidade é organizada e padroniza­da. No entanto, a organização está sempre sujeita a mu­dança: daí o qualificador “dinâmica”. A personalidade não é uma organização estática; ela está constantemente cres­cendo ou mudando. O termo psicofísicos enfatiza a impor­tância dos aspectos psicológicos e físicos da personalidade.

Outra palavra na definição que implica ação é determinam, sugerindo que “a personalidade é alguma coisa e faz alguma coisa” (Allport, 1961, p. 29). Em outras palavras, a personalidade não é meramente a máscara que usamos, nem é apenas o comportamento. Ela se refere ao indivíduo por trás da fachada, à pessoa por trás da ação.

Por característicos, Allport sugeria “individual" ou “úni­co”. A palavra “caráter” originalmente significava uma mar­ca ou gravação, termos que conferem sabor ao que Allport queria dizer com "característicos". Todas as pessoas regis­tram sua marca única ou gravação em sua personalidade, e seu comportamento e pensamento característicos as distinguem de todas as demais pessoas. As características são marcadas com uma gravação única, uma estampa ou registro, que ninguém mais consegue duplicar. As palavras comportamento e pensamento apenas se referem a algo que a pessoa faz. Trata-se de termos globais que pretendem in­cluir comportamentos internos (pensamentos) e externos, como palavras e ações.

A abrangente definição da personalidade de Allport sugere que os seres humanos são as duas coisas: produto e processo; as pessoas têm uma estrutura organizada; ao mesmo tempo, elas possuem a capacidade de mudar. Pa­drão coexiste com crescimento; ordem, com diversificação.
Em resumo, a personalidade é tanto física quanto psicológica; ela inclui comportamentos explícitos e pensa­mentos encobertos; ela não somente é alguma coisa, mas faz alguma coisa. A personalidade é substância e mudança, produto e processo, estrutura e crescimento.

Qual é o papel da motivação consciente?

Mais do que qualquer outro teórico, Allport enfatizou a im­portância da motivação consciente. Os adultos sadios são, em geral, conscientes do que estão fazendo e de suas razões para fazê-lo. Sua ênfase na motivação consciente remonta a seu encontro em Viena com Freud e sua reação emocio­nal à pergunta do médico vienense: “E aquele menino era você?". A resposta de Freud tinha a implicação de que seu visitante de 22 anos estava falando inconscientemente da própria mania de limpeza ao revelar a história do me­nino limpo no bonde. Allport (1967) insistia em que sua motivação era bem consciente - ele simplesmente queria conhecer as idéias de Freud acerca da fobia por sujeira em uma criança tão pequena.
Ainda que Freud presumisse um significado incons­ciente subjacente para a história do menino no bonde, Allport estava inclinado a aceitar os autorrelatos de modo mais literal. “Essa experiência ensinou-me que a psicolo­gia profunda, por todos os seus méritos, pode mergulhar muito fundo e que os psicólogos fariam muito bem em dar total reconhecimento aos motivos manifestos antes de sondarem o inconsciente”(Allport, 1967, p. 8).

Entretanto, Allport (1961) não ignorou a existência ou mesmo a importância dos processos inconscientes. Ele reconheceu o fato de que alguma motivação é incitada por impulsos ocultos e impulsos sublimados. Ele acreditava, por exemplo, que a maioria dos comportamentos compul­sivos é de repetições automáticas, em geral autodestrutivas e motivadas por tendências inconscientes. Eles com frequência se originam na infância e mantêm um aspecto infantil na vida adulta.

Quais são as características da pessoa sadia?

Muito antes de Abraham Maslow ter torna­do popular o conceito de autoatualização, Gordon Allport (1937) formulou hipóteses profundas acerca dos atributos da personalidade madura. O interesse de Allport na pes­soa psicologicamente sadia remonta a 1922, ano em que [237] ele concluiu seu doutorado. Não tendo habilidade particu­lar em matemática, biologia, medicina ou manipulações laboratoriais, Allport (1967) foi forçado a “encontrar [seu] próprio caminho no terreno humanista da psicologia" (p. 8). Esse terreno o conduziu a um estudo da personalidade psicologicamente madura.

Alguns pressupostos gerais sâo necessários para com­preender a concepção de Allport da personalidade madura. Primeiro, as pessoas psicologicamente maduras sáo carac­terizadas pelo comportamento proativo; ou seja, elas não reagem aos estímulos externos, mas são capazes de agir conscientemente sobre seu ambiente de formas novas e inovadoras e fazem o ambiente reagir a elas. O comporta­mento proativo não é apenas direcionado para reduzir ten­sões, mas também para criar novas.

Além disso, as personalidades maduras têm maior pro­babilidade do que as perturbadas de serem motivadas por processos conscientes, o que lhes permite maior flexibili­dade e autonomia em comparação às pessoas que não são sadias, que permanecem dominadas por motivos inconscientes que se originam das experiências da infância.

As pessoas sadias, em geral, experimentaram uma in­fância relativamente livre de traumas, muito embora seus anos posteriores possam ser temperados por conflito e sofrimento. Os indivíduos psicologicamente sadios não deixam de ter suas deficiências e idiossincrasias que os tomam únicos. Além disso, idade não é um requisito para maturidade, apesar de as pessoas sadias parecerem mais maduras conforme ficam mais velhas.
Quais, então, são os requisitos específicos para a saúde psicológica? Allport (1961) identificou seis critérios para a personalidade madura.

O primeiro é uma extensão do senso de self. As pessoas maduras procuram continuamente se identificar com eventos externos e deles participar. Elas não são autocentradas, mas são capazes de se envolver em problemas e atividades que não estão focadas nelas. Elas desenvolvem um interesse altruísta pelo trabalho, pelo esporte e pela recreação. Interesse social, família e vida espiritual são importantes para elas. Por fim, essas atividades externas se toram parte do próprio ser. Allport (1961) resumiu esse primeiro critério afirmando: “Todos possuem amor por si mesmos, mas somente a ampliação do self é a marca da maturidade." (p.285).

Segundo, as personalidades maduras são caracteriza­das por uma “relação cordial do self com os outros". (Allport, 1961, p. 285). Elas possuem a capacidade de amar os ou­tros de maneira íntima e compassiva. A relação cordial, é claro, depende da capacidade de ampliar o senso de self. Somente olhando além de si mesmas é que as pessoas maduras podem amar os outros de modo não possessivo e desinteressado. Os indivíduos psicologicamente sadios tratam as outras pessoas com respeito e percebem que as necessidades, os desejos e as esperanças dos outros não são completamente estranhos aos deles. Além disso, expres­sam uma atitude sexual sadia e não exploram os outros para gratificação pessoal.

Um terceiro critério é asegurança emocional ou autoaceitação. Os indivíduos maduros se aceitam pelo que são e pos­suem o que Allport (1961) chamou de equilíbrio emocional. Essas pessoas psicologicamente sadias não ficam perturba­das em demasia quando as coisas não ocorrem conforme planejado ou quando elas estão apenas “tendo um dia ruim". Elas não se apegam a irritações menores e reconhecem que as frustrações e inconveniências fazem parte da vida.

Quarto, as pessoas psicologicamente sadias também possuem uma percepção realista do ambiente. Elas não vi­vem em um mundo de fantasia ou torcem a realidade para que se encaixe em seus próprios desejos. Elas são orientadas para o problema, em vez de autocentradas, e estão em contato com o mundo como é visto pela maioria das pessoas.

Um quinto critério é insight e humor. As pessoas ma­duras se conhecem e, portanto, não têm necessidade de atribuir os próprios erros e fraquezas aos outros. Elas tam­bém têm um senso de humor não hostil, o qual lhes dá a capacidade de rirem de si mesmas, em vez de se basearem em temas sexuais ou agressivos para produzir riso nos ou­tros. Allport (1961) acreditava que insight e humor estão intimamente relacionados e podem ser aspectos da mesma coisa, ou seja, a objetificação do self. Os indivíduos sadios veem-se objetivamente. Eles são capazes de perceber as incongruências e os absurdos na vida e não têm a necessida­ de de fingir ou de se vangloriar.

O critério final de maturidade é uma filosofia de vida unificadora. As pessoas sadias possuem uma visão clara do propósito da vida. Sem essa visão, seu insight seria va­zio e estéril e seu humor seria trivial e cínico. A filosofia de vida unificadora pode ou não ser religiosa, mas Allport
(1954,1963), em nível pessoal, parece ter achado que uma orientação religiosa madura é um ingrediente essencial na vida da maioria dos indivíduos maduros. Ainda que muitas pessoas freqüentadoras da igreja tenham filosofia religiosa imatura e preconceitos raciais e étnicos limitados, aquelas muito religiosas são relativamente livres desses precon­ceitos. A pessoa com uma atitude religiosa madura e uma filosofia de vida unificadora tem uma consciência bem-desenvolvida e, muito provavelmente, um forte desejo de servir aos outros. [238]

Psicologia - Psicologia do indivíduo
Epistemologia - Teorias de base, Teorias de grupo
1/10/2021 7:41:32 PM | Por Gerald Bernard Mailhiot
As minorias psicológicas

Tendo situado Kurt Lewin na evolução da psicologia social, compreenderemos agora melhor a importância de seus diversos trabalhos e de suas descobertas. Ao expor suas hipóteses e suas teorias, respeitaremos a ordem cronológica de sua elaboração e de sua formulação. Assim veremos pouco a pouco precisar-se sua concepção pessoal da gênese e da dinâmica dos grupos.

O primeiro problema social ao qual Lewin dedica sua atenção, após emigrar para os Estados Unidos, é a psicologia de seu próprio grupo étnico. As discriminações, as injustiças, os vexames, o ostracismo aos quais ele e os seus foram submetidos pelos nazistas nos últimos meses vividos na Alemanha traumatizaram-no sob muitos aspectos. Lewin procura compreender e encontrar uma interpretação científica para o que sofreu: seres humanos que, pelo simples fato de pertencerem a um determinado grupo étnico, vivem em uma insegurança permanente e dependem das variações do clima político das comunidades humanas nas quais procuram se integrar.

Depois de tentar elucidar a psicologia das minorias judias, Kurt Lewin se esforça por elaborar uma psicologia dos grupos minoritários. A partir do que descobre como fundamental para a psicologia das minorias, é levado a repensar e a redefinir o que se torna depois o objeto quase exclusivo de sua reflexão e de suas pesquisas: que problemas constituem o centro da ex  ploração e da experimentação da psicologia social? A dinâmica dos grupos, tal qual a conceberá finalmente, será o resultado desta série cada vez mais convergente de recolocação de ques  tões e de proposições sistemáticas.

Demografia e psicologia

Desde o início de seus trabalhos sobre a psicologia das minorias, Kurt Lewin procura clarear e dissipar o que o termo [29] minoria comporta de ambiguidades e de equívocos no plano da semântica.

A demografia utiliza os termos minoria e maioria em sentidos diferentes da psicologia. Em demografia um grupo cons  titui uma maioria desde que a porcentagem de seus membros ultrapasse de um a metade da população em que está inserido. Por outro lado todo grupo constituído de menos de 50% da população dada é considerado como uma minoria.

Em Psicologia minoria e maioria adquirem sentidos mais diversificados. Um grupo é considerado fundamentalmente como maioria psicológica quando dispõe de estruturas, de um estatuto e de direitos que lhe permitam auto-determinar-se no plano do seu destino coletivo, independentemente do número ou da porcentagem de seus membros. Assim, minorias demográficas podem constituir maiorias psicológicas. É considerado como maior pelo psicólogo social todo grupo humano que se percebe na

posse de plenos direitos que dele fazem um grupo autônomo. Por outro lado, um grupo deve ser classificado como uma minoria psicológica desde que seu destino coletivo dependa da boa vontade de um outro grupo. Este grupo, mais ou menos conscientemente, percebe-se como menor, isto é, como não possuindo direitos totais ou um estatuto completo que lhe permitam optar ou orientar-se nos sentidos mais favoráveis a seu futuro. Desde que se trate da sorte de seu grupo, os membros que pertencem a uma minoria psicológica se sentem, se percebem e se conhecem em estado de tutela. E isto independentemente da porcentagem de seus membros em relação à população total onde vivem. Assim maiorias demográficas podem ter, por estas razões, uma psicologia de minorias.

Mas não param aqui as distinções da psicologia social. Como numerosos sociólogos e_psicólogos sociais, antes e depois dele, Kurt Lewin utiliza ainda os termos: minoria discriminada e minoria privilegiada. Vejamos em que sentido. Toda minoria psicológica, tal qual foi definida acima, é sempre considerada como uma minoria discriminada ou susceptível de sê-lo pelo fato de sua sorte e seu destino estarem na dependência do grupo majoritário. Por outro lado, toda maioria psicológica tende a tornar-se, mais ou menos rapidamente, um grupo privilegiado. Freqüentemente as maiorias psicológicas, com o tempo, estratificam-se. No interior destes grupos uma minoria de membros pode constituir-se em oligarquia e atribuir-se ou reservar-se privilégios exclusivos. A minoria privilegiada é portanto uma [30] minoria demográfica no seio de uma maioria psicológica que ela controla e manipula a seu favor.

As minorias judias

Kurt Lewin publicou quatro estudos sobre a psicologia dos judeus. O primeiro aparece em 1935 e tem por título: “Psychosociological problem of aminority group”. (58). O segundo é publicado em 1939 e traz o título: “When facing danger” (68). O terceiro e o quarto aparecem sucessivamente em 1940 e 1941. Os títulos que Lewin lhes dá são os seguintes:  “Bringing up the jewish child” e "Self-hatred among jews” (73), (78).

Estes quatro estudos são de caráter fenotípico ou sintomático. Kurt Lewin aplica-se neste estágio em nos apresentar uma caracteriologia étnica de seu povo e um psico-diagnóstico. À margem de sua reflexão, ele se permite generalizar e destacar constantes que retomará mais tarde, ao elaborar sua psicologia das minorias.

Não nos ocuparemos aqui senão da análise apresentada nos três últimos estudos mencionados acima, sendo que o primeiro estudo nada mais é que um esboço das teorias que os três outros retomarão de modo mais explícito e mais articulado.

  1. O estudo intitulado “When facing danger” trata do futuro ou das possibilidades de sobrevivência das minorias judias no Ocidente.

Lewin inicia com considerações sobre a perseguição em massa aos judeus nos países que sofriam então a dominação nazista. Como, de fato, pergunta Lewin, uma minoria pode sobreviver em um contexto de perseguição como aquele? Estudos sociológicos demonstraram que em todas as guerras européias dos últimos séculos os judeus tiveram que lutar e morrer por seu país de adoção, fossem eles alemães, franceses, espanhóis ou ingleses. No momento dos combates não foram poupados. Ao contrário, em certos países, foram selecionados para sofrer uma série de maus tratos tanto da parte de seus amigos como de seus inimigos. Na maior parte das vezes, acrescenta Lewin, estava-se disposto a lutar até o último judeu. É o caso, especialmente, dos judeus alemães que tiveram, repetidas vezes, de um século para cá, a ocasião de morrer por sua pátria. A partir da tomada do poder pelos nazistas, os jornais editados pelo regime passaram a sugerir com freqüência a formação de [31] bataIhões judeus que seriam mobilizados para serem enviados aos pontos mais perigosos do front. Foi aliás o que de fato ocorreu na Itália, na Hungria, na Polônia e em todos os países conquistados pelos nazistas e aterrorizados pela Gestapo.

Outro traço comum às doutrinas nazista e facista foi a tentativa de justificar a reconstituição dos guetos para os judeus. E Lewin nota que os judeus não foram rcalmente reconhecidos como seres humanos na Europa Ocidental, senão a partir do momento em que as ideias das revoluções francesa e americana fizeram deles seres humanos iguais em direitos e em privilégios. Conclui daí que os direitos judeus são inseparáveis de uma filosofia de igualdade dos homens. Os regimes políticos que perseguiram os judeus nestes últimos tempos tentaram sempre fazer prevalecer a teoria da inferioridade de certas raças e a superioridade da sua.

Lewin está consciente de não inovar ao retomar por sua conta e ao considerar como válidas estas observações já formuladas por sociólogos contemporâneos (68) . As reflexões de Lewin adquirem um caráter pessoal ao se perguntar em que medida o problema judeu é um problema individual ou um problema social. Para decidir sobre o assunto lhe basta lembrar que no momento da anexação da Áustria, os judeus foram me- tralhados pelo simples fato de serem judeus, sem nenhuma consideração por sua conduta passada ou seu status social. Para Lewin o problema judeu é um problema essencialmente social, um caso típico de minoria não privilegiada ou discriminada. O que caracteriza as classes ou os grupos não-privilegiados é que em todos os casos eles têm em comum o seguinte: não existem senão porque são tolerados. Sua sobrevivência coletiva depende da boa vontade das classes privilegiadas. Para ilustrar seu pensamento Lewin evoca o passado do grupo judeu. Segundo ele, a emancipação dos judeus dos guetos não foi conseguida por eles, mas em conseqüência da modificação dos sentimentos e das necessidades da maioria. Ainda hoje pode-se demonstrar que as pressões e as discriminações contra os judeus aumentam ou diminuem, conforme as dificuldades econômicas da minoria crescem ou decrescem. Lewin acrescenta ironicamente: é uma das razões pelas quais os judeus de toda parte estão necessariamente interessados em contribuir para o bem-estar econômico das maiorias no meio das quais vivem.

O problema judeu é um problema social. Mais explicitamente, o anti-semitismo tem por fundamento, cada vez que se [32] manifesta, a necessidade para a maioria de um bode expiatório. É necessário precisar ainda, segundo Lewin, que seria mais exato falar de uma minoria privilegiada que consegue mobilizar e manipular para seus fins uma massa ou uma multidão cuja agressão canaliza contra uma minoria rejeitada. Lewin pretende também que muitos judeus se enganam ao acreditar que, se todos os judeus se conduzissem decentemente, não haveria anti-semitismo. Geralmente é o contrário que acontece. É a capacidade de trabalho dos judeus, seus sucessos profissionais como médicos ou advogados, seus talentos para o comércio que, na maior parte dos casos, provocam periodicamente ondas de anti-semitismo. Na medida em que os judeus se sobressaem arriscam-se a ser perseguidos. Como último argumento de que não há relação entre a incidência do anti-semitismo e a conduta delinqüente de certos judeus, Lewin salienta que as razões invoca  das pelas minorias privilegiadas para justificar junto às massas seu anti-semitismo têm mudado de século para século. Há quatrocentos anos os judeus eram perseguidos por motivos religiosos. Em nossos dias as racionalizações promulgadas como bem-fundadas teorias racistas às quais adere oficialmente o partido nazista, são retiradas de argumentos supostamente baseados na antropologia e na biologia.

  1. O segundo estudo: “Bringing up the jewish child” trata da educação que deveria receber o jovem judeu para evoluir normalmente.

Kurt Lewin compara a educação do jovem judeu à educação de uma criança adotada. Eis as razões que o levam a esta conclusão. Lewin, pela primeira vez, nos revela suas concepções, ainda embrionárias, sobre a psicologia dos grupos. O grupo ao qual um indivíduo pertence pode comparar-se ao terreno sobre o qual ele se mantém e que lhe dá ou nega, segundo o caso, seu status social. Na medida em que o grupo lhe dá um status social, o indivíduo se sente em segurança; ao contrário, se o grupo não lhe concede nenhum status social, torna-se fonte de insegurança para o indivíduo. Esta segurança ou insegurança relaciona-se com a solidez ou fluidez do terreno sobre o qual o indivíduo se matém, uma vez que ele pode ou não identificar-se com seu grupo.

Segundo Lewin, isto é verdadeiro sobretudo quando se trata do meio familiar. Com efeito, parece-lhe amplamente provado pelas descobertas recentes da psicologia da criança (as suas próprias não o tinham esclarecido sobre este problema) [33] que a estabilidade ou instabilidade do meio familiar determina a estabilidade ou instabilidade emotiva da criança. A razão fundamental, Lewin é o primeiro a afirmá-lo, é que o meio familiar no qual a criança cresce e evolui forma um único campo de forças, “one dynamic field”, segundo uma expressão sua. É necessário pois levar em conta que o meio familiar, ou qualquer grupo ao qual pertence um indivíduo, não é para ele somente uma fonte de proteção ou segurança. Todo grupo, inclusive o grupo familiar, desenvolve suas leis, seus tabus, suas proibições coletivas. E segundo os tabus, as proibições, os mitos que prevalecem em um grupo, a criança ou o indivíduo que pertence a este grupo, disporá de um espaço de movimento livre mais ou menos extenso. Em conclusão, conforme seja largo ou restrito o espaço de movimento livre, o indivíduo terá maior ou menor facilidade de se adaptar à vida social, ou no caso da criança, de socializar-se. Para Lewin o problema fundamental em qualquer grupo humano é o seguinte: em que medida um indivíduo, pertencendo a seu grupo, pode satisfazer suas próprias necessidades ou aspirações psíquicas sem comprometer indevidamente a vida e os objetivos do grupo?

Lewin termina este estudo com considerações de ordem pedagógica, deduzidas do que lhe parece fundamental na socialização do ser humano: não é o fato de pertencer a vários grupos que constitui a origem dos conflitos mas a incerteza sobre sua própria participação num grupo determinado. Donde os quatro princípios pedagógicos nos quais deve inspirar-se a educação do jovem minoritário.

Lewin sugere, inicialmente, com muita insistência que, assim como a criança adotada se beneficia ao conhecer o mais cedo possível sua condição, também a criança que pertence a um grupo minoritário deve conhecer o mais cedo possível, desde que possa assimilá-lo emotivamente, o fato de o grupo ser objeto de vexames, discriminações, em uma situação não-privilegiada. Quanto mais os pais e educadores tardarem em revelar-lhe o fato, mais arriscam comprometer sua adaptação social. Este conselho vale sobretudo quando o meio educacional no qual a criança cresce não é confessional e mostra-se tolerante para com as crianças judias.

Além disto, a educação do jovem judeu, como de todo minoritário, deve procurar sensibilizá-lo muito cedo ao fato de que a questão judia é antes de tudo uma questão social. Os pais judeus devem deixar de pressionar as crianças a adotarem [34] uma conduta exemplar em presença dos não-judeus. Devem igualmente abster-se de constranger a criança a ambicionar os altos postos nas diferentes esferas em que se orienta. Em uma palavra, é necessário libertar a criança judia do mito de que será facilmente aceita pelos não-judeus se sobressair. Assim, quando as expressões de anti-semitismo o atingirem, ele estará imunizado contra o jogo dos mecanismos de auto-acusação que, de outro modo, poderiam ser adotados por ele em resposta à discriminação.

Os pais e os educadores no encargo de socializarem o jovem judeu devem lhe transmitir que, o que liga os judeus entre si não são as semelhanças ou as diferenças que existem entre judeus e não-judeus. O que constitui essencialmente um grupo e dele faz um todo dinâmico é a interdependência da sorte de seus membros.

Finalmente é fundamental ensinar muito cedo ao jovem judeu que o verdadeiro perigo para ele é de ser, durante toda a sua vida, um marginal na sociedade em que tenta integrar-se e assim permanecer durante toda a sua existência um eterno adolescente, incapaz como eles, de se identificar ao grupo ao qual pertence ou aos grupos aos quais deseja pertencer.

  1. O terceiro estudo é incontestavelmente o mais importante dos três. Tem por título: “Self-hatred among Jews” e tratados mecanismos de auto-depreciação que Kurt Lewin observara repetidas vezes em seus próprio grupo.

No início deste estudo Kurt Lewin refere-se a dois livros datando da mesma época (1930). O primeiro livro é do pro  fessor Lessing que tenta, do ponto de vista da psicopatologia, descrever o que ele chama “Ó ódio de si entre os Judeus”. O segundo é um romance americano do autor Ludwig Levisohn “Island with in”. Este romance tem como cenário a cosmopolita cidade de Nova York no interior da qual os judeus constituem uma ilha cultural, isolada e cercada de zonas de silêncio no seio da coletividade estadunidense em constante interação.

Para Kurt Lewin o fenômeno do ódio de si entre os judeus pode ser encarado ao mesmo tempo como um fenômeno individual, como um fenômeno de grupo e sobretudo como um fenômeno social, conforme os aspectos estudados.

Como fenômeno de grupo, o ódio de si afeta as relações intragrupais no interior da grande família judia, ou melhor, as relações entre os diversos grupos ou sub-grupos judeus que [35] existem no mundo. E aqui Lewin evoca recordações pessoais que datam do tempo em que vivia na Alemanha, onde por várias vezes foi testemunha de expressões de fortes ressentimentos da parte dos judeus alemães em relação aos judeus dos países eslavos. Os judeus alemães acusavam os judeus eslavos de serem responsáveis pela perseguição nazista de que eram vítimas. Lewin afirma ter observado o mesmo fato nos Estados Unidos: todos os judeus emigrados culpam os judeus alemães considerando-os responsáveis por todas as desgraças que caem sobre os judeus no mundo desde 1933.

Segundo Lewin, o ódio de si pode, também, em certos casos, apresentar-se como um fenômeno individual. Neste caso há uma variedade quase infinita de formas que o ódio de si toma entre os judeus considerados como indivíduos. Certos judeps, por exemplo, culpam o grupo judeu como tal ou se identificam negativamente a uma fração particular de judeus, ou difamam sistematicamente sua própria família. Outros rejeitam a si próprios, recusam aceitar-se como judeus e cedem periodicamente a mecanismos de auto-acusação e de auto-punição. Por outro lado, alguns judeus dirigirão o ódio de si exclusivamente contra as instituições, os costumes, a língua judia ou ainda o sistema de valores próprios da raça ou da cultura judia. Na maior parte das vezes, nota Lewin, este tipo de ódio de si não se manifesta abertamente, mas é camuflado por racionalizações de toda espécie.

O ódio de si é sobretudo um fenômeno social, segundo Lewin. Neste nível sua análise e sua interpretação tornam-se bastante penetrantes. Para ele, Lessing o Levisohn, que se inspiraram em Freud, quiseram explicar o ódio de si pelos instintos primários que seriam inerentes à natureza humana. Em seu apoio recorrem à tese que Freud elaborou para explicar as nevroses de fracasso, postulando a existência em todo ser humano de um instinto de morte que teria primazia sobre o instinto de vida. O que, sempre segundo Freud, explicaria a tendência que aparece com a idade, em todo ser humano, de uma degenerescência progressiva que se conclui pelo retorno ao inorgânico. Kurt Lewin recusa-se a explicar assim o ódio de si entre os judeus. Se assim fosse, argumenta, estaríamos em presença de um dado da natureza e não seria então estranho não se encontrar no mesmo grau o ódio de si entre os ingleses, os italianos, os alemães e os franceses em relação a seus próprios compatriotas? Além disto, se o ódio de si sentido pelos judeus [36] dependesse de algum instinto de base, seria a personalidade de cada indivíduo que nos revelaria sua intensidade. Parece, ao contrário, conclui Lewin, que este ódio de si — não obstante os diversos graus em que se manifesta — depende muito mais das atitudes que cada indivíduo adota em relação ao problema judeu do que das estruturas mentais ou emotivas de sua personalidade.

Aliás, nota Lewin, o ódio de si manifestado pelos judeus é um fenômeno observado em todas as minorias discriminadas. Nos Estados Unidos, por exemplo, os negros são muito sensíveis às diferentes tonalidades de cor da epiderme humana. Aqueles cuja epiderme é de cor “chocolate com leite” ou “café-creme” menosprezam aqueles que são “café-preto”. Quanto mais a cor da epiderme de um negro se aproxima do branco, mais tendência tem ele a dirigir aos outros negros um olhar de superioridade e, em conseqüência, a identificar-se negativamente com seu grupo étnico. O mesmo fenômeno foi observado e abundantemente descrito pelos sociólogos americanos (2), (141), ao tratarem dos conflitos existentes entre a primeira e a segunda geração de imigrantes nos Estados Unidos. A segunda geração menospreza seus pais que não lhe parecem suficientemente americanizados e permanecem ainda por demais ligados à sua cultura de origem, dificultando assim uma identificação incondicional com seu país de adoção.

Vejamos agora, segundo Lewin, como o ódio de si aparece, tipicamente, em muitos judeus. Um indivíduo judeu tem ambições, alimenta e constrói projetos para logo descobrir que sua participação no grupo judeu constituirá sempre uma barreira intransponível à realização de seus projetos. Começa então a perceber e a considerar seu grupo como fonte de frustrações e passa a odiá-lo. Logo chegará à conclusão de que sua ascenção social como indivíduo está ameaçada e que sua segurança sócio-econômica e seu próprio destino pessoal correm o perigo de ficar comprometidos por causa de sua participação no grupo judeu. Surge então em muitos judeus o sentimento agudo de rejeição da interdependência de seu próprio destino e do destino de uma minoria discriminada.

Kurt Lewin termina este estudo concluindo que o ódio de si entre os judeus não poderia, na maior parte dos casos, ser diagnosticado como do domínio da psicopatologia. Como muitos outros fenômenos psíquicos com componentes nevróticos, o ódio de si não é geralmente senão a expressão de um conflito [37] criado pela situação social na qual um indivíduo é forçado a viver. Este fenômeno apresenta-se sob traços nevróticos, mas na realidade não se trata de nevrose. Tanto assim que o ódio de si entre os judeus é encontrado tanto entre os nevróticos como entre as pessoas normais. De fato, trata-se de um fenômeno sócio-psicológico. A tal ponto que, cada vez que os judeus, dentro de uma coletividade, são aceitos em clima de igualdade de direitos e de privilégios, desaparecem então os traços nevróticos que certos autores afirmam como típico do grupo judeu. Por outro lado, quando os judeus tornam-se o objeto sistemático de discriminação, seu único meio de não ceder ao ódio de si é intensificar entre eles as tendências de atração e de coesão pela causa judia. Daí a importância vital que os educadores e pais judeus devem dar à criação de climas de crescimento propícios a que os jovens judeus, desde seus primeiros anos de formação, possam identificar-se positivamente com seu grupo étnico.

Minorias e minoritários

Kurt Lewin publica, em seguida, um estudo onde, a partir de suas interpretações e de suas considerações sobre a minoria judia, tenta formular uma teoria suficientemente coerente para explicar a psicologia de todo grupo minoritário. Será sua última pesquisa ligada aos macro-fenômenos de grupo. Ela o convencerá definitivamente da certeza de sua opção ao escolher como centro da experimentação em psicologia social o estudo dos micro-grupos. Estas teorias tiveram uma influência determinante nos meios universitários, sobretudo no que se refere à psicologia das relações inter-raciais e revelaram-se fundamentais à compreensão das concepções definitivas sobre a gênese e a dinâmica dos grupos, que Kurt Lewin defenderá nos anos se  guintes. Parece-nos também importante destacar aqui as teses essenciais.

O estudo de que trataremos inicialmente tem por título: “Cultural Reconstruction” e foi publicado em 1943 (88). Depois disto Lewin refere-se à psicologia das minorias duas outras vezes (103), (104), durante o ano que precede sua morte.

Suas preocupações serão então exclusivamente de ordem metodológica. Partindo das suas próprias pesquisas sobre o problema, tentará destacar aquilo que elas lhe ensinaram sobre as exigências da experimentação em psicologia social. Retornaremos [38] ao assunto em um capítulo próximo para constatar e salientar a que ponto em três anos, de 1943 a 1946, os interesses, as concepções e as aproximações de Lewin evoluíram. Estes três anos lhe provaram que a inteligência científica dos macro-grupos não se tornará acessível senão após longas e sistemáticas pes  quisas sobre a psicologia dos grupos restritos. No momento não nos deteremos senão no seu estudo “Cultural Reconstruction”. Nele encontramos uma tese fundamental e três outras, dela deduzidas: sobre a origem das minorias, sua natureza psicológica e seu futuro.

A tese fundamental é formulada de modo que transcende o caso judeu para tornar inteligível o que Kurt Lewin considera como as constantes psicológicas de todo grupo minoritário. Para Lewin toda minoria psicológica tem suas dimensões antes de tudo sociais. Com isto não opõe social a psíquico, mas dissocia o social do individual. As minorias psicológicas são sociais em sua origem, em suas estruturas e em sua evolução. Sua dinâmica é essencialmente social. Do mesmo modo, a sobrevi  vência dos grupos minoritários não pode ser assegurada senão a partir do momento em que eles tomam consciência deste dado fundamental e o aceitam.

1. Origem das minorias.

Para Kurt Lewin a própria existência de toda minoria só é possível, em última análise, graças à tolerância da maioria no meio da qual ela se insere. Não é em consideração aos comportamentos aceitáveis ou em reação aos comportamentos re preensíveis de alguns indivíduos (se bem que isto seja, de fato, alegado como pretexto oficial), mas por motivos extrínsecos aos comportamentos dos membros das minorias, que as maiorias edificam, fortificam, multiplicam ou deixam cair as barreiras psicológicas com que cercam as minorias. Lewin acrescenta que* a maioria tem sempre interesse em privar as minorias de todo direito e de todo privilégio. Mas é sobretudo em período de tensão e de perigo coletivo que a maioria tende a exercer represálias contra as minorias, cedendo à necessidade de descar  regar sobre um bode expiatório as ondas de agressividade, de  sencadeadas pelas frustrações e privações que lhe são impostas durante estes períodos críticos. Por mecanismos de deslocamento sua agressividade torna-se extrapunitiva com relação às mino  rias sem defesa. [39]

2. Constituintes, constituídos e constitutivos das minorias.

Com esta terminologia tentaremos sistematizar o essencial do pensamento de Lewin sabre a existência das minorias. Esta sistematização nos parece necessária para evitar que o leitor tenha que seguir os caminhos tortuosos da argumentação de Lewin. Faremos todos os esforços para não trair em nada seu pensamento.

A . Os constituintes das minorias.

Os constituintes das minorias podem ser definidos diferentemente, conforme se faça referência às estruturas ou à dinâmica dos grupos minoritários.

  1. a) Em relação às suas estruturas, as minorias aparecem constituídas de várias camadas. No centro encontram-se as ca madas mais solidificadas. Elas compõem-se de membros que aderem com a maior boa vontade às instituições, aos costumes, às tradições e aos sistemas de valores, que distinguem seu grupo dos outros grupos. Estes membros identificam-se positivamente com tudo aquilo que é tipicamente próprio ao seu grupo. Já as camadas periféricas, longe de serem solidificadas como as primeiras, são móveis e fluidas. São compostas de membros que experimentam uma ambivalência marcante em. relação a tudo que distingue e por isto mesmo isola seu grupo da maioria.

São os membros marginais das minorias. Eler suportam de má vontade ter que viver em um espaço vital onde são mantidos à força por uma maioria que constrói barreiras psicológicas intransponíveis à sua migração para a maioria que invejam.

Lewin acrescenta que é sobretudo nas zonas periféricas que se situam os minoritários dê maior sucesso, aqueles que conseguiram sobressair-se em seu trabalho ou profissão e em conseqüência sentem maior atração pela maioria. Sua ilusão, segundo Lewin, consiste em esperar que seus sucessos pessoais facilitem sua aceitação por parte da maioria que lhe perdoará assim sua origem e sua identidade étnica.

Enfim, é nas camadas periféricas que as minorias têm tendência a recrutar seus dirigentes ou a agrupar-se em torno de dirigentes que pertençam a estas camadas. Estes indivíduos são geralmente designados para este posto em razão de seus suces  sos pessoais. Aceitam o posto com a esperança de poder, graças [40] à sua função de líder oficial, multiplicar seus contatos com a maioria e encontrar assim algum substitutivo de prestígio do qual estão privados em virtude de sua ligação com a minoria. Por outro lado, numerosos são os grupos minoritários que es  peram que este líder seja melhor aceito e pareça mais maleável à maioria e conseqüentemente possa melhorar magicamente as relações entre minoria e maioria.

  1. b) Em relação à sua dinâmica de grupo, as minorias se revelam ao observador como constituindo um equilíbrio mais ou menos estável entre dois campos de força. De um lado, um campo de forças que exerce sobre os membros uma influência integrante de coesão. Estas forças são constituídas pela atração que exercem sobre as minorias os traços culturais próprios a este grupo e irredutíveis às culturas vizinhas. Estas forças centrípedas desempenham o papel de núcleo dinâmico no seio das minorias. Elas engendram entre os minoritários atitudes de lealdade para com seu grupo ou aquilo que Lewin gosta de chamar de o chauvinismo positivo. Fazem nascer neles, paralelamente, um desejo cada vez mais intenso de se emancipar da maioria.

No extremo oposto situa-se um campo de forças centrífugas que exerce uma influência dissolvente sobre os membros da minoria. Estas forças são constituídas pela atração, algumas vezes irresistível, exercida pela maioria, com seus privilégios, incluindo as promessas de prestígio e de satisfação dos instintos frustrados ou limitados pelas discriminações impostas pela*maioria às minorias. As atitudes coletivas provocadas pelas forças centrífugas são (isto em oposição à lealdade do grupo) de uma parte, o desamor em relação a seu próprio grupo ou o chauvi  nismo negativo e, de outra parte, o desejo de assimilação à maioria.

  1. A minoria como constituída.

Se concebemos a minoria como uma totalidade dinâmica, torna-se necessário assinalar o fator de integração deste grupo que faz destes indivíduos múltiplos um só grupo coerente. Este fator de unificação é o constitutivo do grupo. Tentaremos destacá-lo mais adiante. Mas se tentamos, agora, definir as mino  rias como constituídas, Kurt Lewin nos fornece os conceitos que explicam o grau maior ou menor de integração que atingem nos diferentes momentos de seu desenvolvimento. [41]

Deste ponto de vista, Lewin distingue dois tipos de mino  rias. Algumas constituem unidades articuladas de modo orgânico. É o caso das minorias cujas camadas centrais englobam a maioria dos membros em ligações muito estreitas e em uma forte adesão à sua sorte e destino. Para a maioria dos membros, seu grupo étnico é percebido em termos de valência positiva .

Por outro lado, existem minorias mal ou não integradas que se revelam ao observador não mais como uma unidade orgânica, mas como uma unidade aparente, artificial, resultante de pressões e de coerções exteriores. Estas minorias não constituem um grupo no sentido restrito. Trata-se, antes, de um agregado de indivíduos, mais ou menos submetidos às mesmas restrições, às mesmas privações, às mesmas frustrações. Neste tipo de minorias o núcleo dinâmico não compreende senão alguns indivíduos que não perderam a fé no destino do seu grupo, a quase totalidade dos membros não vive senão da esperança de poder um dia pertencer à maioria. As ligações entre os membros são portanto muito frágeis. O equilíbrio entre os diferentes estratos é muito instável e quase inteiramente polarizado por valências negativas.

  1. O fator constitutivo das minorias.

Como explicar, pergunta Lewin, que em certos casos as minorias constituam unidades orgânicas e, em outros, não tenham senão a aparência de integração?

O fator constitutivo de todo grupo, segundo Lewin, é a interdependência da sorte de seus membros. No caso das minorias integradas, sua condição de minoritários é aceita, o que permite aos membros se unirem na luta pela emancipação. Por outro lado, no caso das .minorias não integradas ou mal integradas, sua condição de minoritários é suportada. Não existe inter-dependência entre os membros. O único fator negativo que os une é sua disposição a consentir em todos os compromissos, em todas as servidões ou em todas as baixezas que lhes facilitem a assimilação à maioria.

3 . O futuro das minorias.

Segundo Lewin, o futuro das minorias, assim como sua origem e existência, é antes de tudo social. [42]

O futuro das minorias não se coloca nos mesmos termos de superação em que se coloca o futuro de um grupo normal que não sofre nenhuma pressão, nem encontra nenhum obstáculo no processo de seu desenvolvimento. O futuro das minorias não pode se definir senão em termos de sobrevivência. A este respeito, três opções são possíveis, segundo Lewin. Há, inicialmente, o caso das minorias que perdem a crença em sua sobrevivência e estão prontas a tudo que possa apressar ou favorecer sua assimilação à maioria. Quanto às minorias que optam por sua sobrevivência, duas atitudes são possíveis. Elas têm em comum o seguinte: ambas concebem sua sobrevivência como uma emancipação do jugo arbitrário da maioria. Eis o que as distingue: certas minorias querem assegurar sua sobrevivência através da integração com a maioria, pela igualdade dos direitos e dos privilégios. Para conseguir seu intento estes grupos minoritários têm tendência de sublinhar e de destacar, em suas relações intergrupais com a maioria, muito mais o que os aparenta ou os une à maioria do que aquilo que os distingue ou os opõe a ela. Enfim, existem minorias que não acreditam poder assegurar sua sobrevivência, senão separando-se ou emancipando-se totalmente da maioria. Elas aspiram à independência total e definitiva em relação à maioria. Estão convencidas de que só assim poderão conservar a integridade de sua cultura, prosseguir na conquista de sua plena identidade e realização do seu destino coletivo. Lewin conclui que só estas últimas minorias têm alguma possibilidade de assegurarem sua sobrevivência. Enganam-se aquelas que acreditam poder integrar-se à maioria e nela con  servar sua identidade étnica. Cedo ou tarde elas serão assi  miladas.

Kurt Lewin termina este ensaio teórico sobre a psicologia das minorias, tentando caracterizar entre os minoritários as di  ferenças de atitudes coletivas que implicam estas três opções a respeito do futuro de suas relações inter-raciais com a maioria que as oprime e as discrimina.

Lewin afirma que as minorias que renunciam à sua sobre  vivência e aquelas que optam pela integração em um contexto de relações cordiais e um pouco servis em relação à maioria têm tendência, ambas, a adotarem as mesmas atitudes coletivas. Ele considera, com efeito, que no plano inter-racial as atitudes coletivas destas minorias são tipicamente adolescentes. Suas es  tratégias têm em comum o seguinte: elas se baseiam na hipótese de que a situação presente de discriminação desaparecerá [43] quando sua participação na minoria for desconhecida, ignorada ou anulada. Assim como o adolescente espera ser aceito pelo mundo dos adultos quando conseguir convencer os adultos de que não é mais uma criança. Também como os adolescentes, o comportamento social destes dois tipos de minorias caracteriza-se pela intra-agressão, pela auto-acusação, pelo exagero em suas ambições, pelas recusas, pelos protestos e pelo mimetismo. Sua identificação com a maioria é equivalente e nos dois casos apoia- -se no temor. Há ambivalência a respeito de seu próprio grupo tanto quanto a respeito do grupo majoritário.

Quanto às minorias que tentam assegurar sua sobrevivência pela independência em relação à maioria, suas atitudes coletivas são de um nível mais adulto. Elas ganharão em maturidade se à identificação positiva com o grupo na qual inspiram-se seus comportamentos, vierem acrescentar-se, ao mesmo tempo, a capacidade de proceder periodicamente a autocríticas e a vontade de conseguir eventualmente sua independência pela inter  dependência com os outros grupos étnicos. [44]

Psicologia - Psicologia social
Religião - , 
1/6/2021 2:05:47 PM | Por Nanon Gardin
A religião na Mesopotâmia

Os mitos da Mesopotâmia desempenham um papel fundador em todas as mitologias ocidentais. O primeiro relato do Dilúvio, na epopeia de Gilgamesh, assemelha-se muito à narrativa bíblica do mesmo acontecimento, e o Jardim do Éden foi muitas vezes situado na foz do Tigre e do Eufrates, a leste da Mesopotâmia, no lado em que o Sol nasce, no fim do mundo... Em acadiano, o termo edinu significa «planície» e, em sumério, edin significa a «terra fértil». Algumas tabuinhas sumérias mencionam um lugar paradisíaco perto de Dolimun, habitado pelos deuses e por um só homem, Utanapishtim, salvo, tal como Noé, do Dilúvio. Nas narrativas sobre os deuses e os heróis mesopotâmios, encontramos em forma germinal muitos dos acontecimentos relatados nos grandes textos da Grécia antiga.

Tal como o seu nome indica, a Mesopotâmia é a terra «entre dois rios», e a água, elemento primordial, está sempre presente nos mitos da Suméria, da Babilônia e de Assur, as primeiras grandes civilizações do Ocidente. A civilização que nasce na Suméria, a mais antiga do mundo, forma-se sob a influência de um fator determinante: o caráter imprevisível do Tigre e do Eufrates, que ora enriquecem a planície com a sua lama fértil, ora a devastam, com as inunda­ções terríveis que dizimam a população. Quando Adad, o deus da Tempestade, decide «abrir as comportas do céu», os estragos causados pelas águas podem adquirir um carácter dramático. A precariedade da vida dos povos instalados no vale explica porque desde cedo sentiram uma necessidade profunda de religiosidade. Ainda antes do aparecimento da civilização suméria, por volta de 5000 a.e.c., o centro de culto de Eridu era um local importante de peregrina­ção, e a maioria das cidades da Suméria desenvolveu-se em redor dos centros religiosos implantados entre os dois rios. Compreende-se assim que os mitos da Mesopotâmia sejam frequentemente marcados por esse ambiente aquático e por que razão, na cosmogonia suméria, tudo começa com a fusão entre as águas doces e a água do mar.

«Quando no alto o céu ainda não tinha nome, E em baixo a terra firme não tinha nome, Apsu, o primeiro, o progenitor, E Tiamat, a progenitora que todos concebeu, Juntaram numa só todas as suas águas [...]»

(A Epopeia da Criação) Enuma Elish

Quase todos os deuses da Mesopotâmia são de origem suméria, à exceção de Marduk. No entanto, quando a Suméria é invadida, por volta de 2330 a.e.c., por Sargão I, soberano da cidade semita de Acádia, a nova civilização que se implanta conserva os deuses sumérios, mas dá-lhes outros nomes. Assim, Inanna torna-se Ishtar, An torna-se Anu e Enki passa a chamar-se Ea. Quanto a Marduk, a sua importância não pára de aumentar e, na Babilônia, o seu culto irá suplantar e, depois, englobar os grandes deuses da antiga Suméria e de Acádia.

Os mitos sumérios mais antigos começaram a ser transmitidos pela tradição oral. Os três grandes textos cosmogónicos - o Poema de Atrahasis, a Epopeia da Criação (Enuma Elish) e o Mito de Erra - foram redigidos entre 1700 e 850 a.e.c. Quanto à Epopeia de Gilgamesh, ainda que a versão mais completa que possuímos date apenas do século VII a.e.c., os textos mais antigos em sumério que relatam a sua história remontam a 2100 a.e.c., e o relato baseia-se num rei histórico que reinou em Uruk por volta de 2650 a.e.c.

A Criação: «Enuma Elish...»

É com estas palavras, que significam «quando no alto», que começa o relato babilônico da Criação.

O caos

No princípio era Apsu, a extensão infinita das águas doces, que evocava a vitalidade da natureza, e Tiamat, a água salgada - o mar -, que representava o caos e o perigo. Quando estas duas águas, a fértil e a infértil, se uniram, nasceu toda uma série de deuses bárbaros e criaturas monstruosas. Estes primeiros deuses assim criados representavam os diversos aspectos do mundo físico. Em primeiro lugar, nascem Lahmu e Lahamu, serpentes gigantescas que dão origem a Anshar (o princípio masculino) e a Kishar (o princípio feminino), que marcam os limites entre o céu e a terra, «separando a nuvem do lodo». Dão então origem a An, deus do Céu, que, por sua vez, engendra Enki, parecido com ele, mas mais sábio e mais forte, e, depois, ao conjunto dos deuses menores: os Igigi e os Anunnaki.

Mas estes filhos de deuses começam a guerrear-se, numa grande alga­zarra. «Agitam o Céu com as suas danças» e Apsu perde o sono. Então, tal como Oceano e Cronos na mitologia grega, resolve suprimi-los. Mas quando Enki, «fonte de sabedoria, a inteligência luminosa», sabe desse projeto, mata Apsu e apodera-se da sua coroa. Em seguida, estabelece a sua morada, com a esposa Damkina, sobre o corpo de Apsu. É então que Demkina dá origem ao divino Marduk, deus da Luz Solar e do Trovão. «Altiva era a sua forma, quando abria os olhos saíam deles grandes luzes, os seus passos eram majestosos, era poderoso desde o início.»

A conspiração

Tiamat, a Mãe original, furiosa com o assassínio do seu esposo, toma uma decisão terrível: «Tudo o que fizemos será destruído; que o seu destino seja repleto de miséria.» Em seguida, conspira com os outros deuses e molda-lhes armas. «Eles gritaram e rosnaram furiosamente, prontos para a batalha, enquanto que a velha feiticeira, a primeira Mãe, dava à luz uma nova ninhada.» Esta é constituída monstros, o mais aterradores que se possa imaginar: águias e dragões, cães furiosos, furacões, um petrel, um leão gigante e serpentes hediondas com dentes venenosos, com cujo apoio Tiamat espera exercer a sua vingança. Promove Kingu, um dos deuses que engendrara para a servir, ao estatuto de general do seu exército, desposa-o e confia-lhe as tábuas do Destino.

Enki vai falar com Anshar e pede-lhe que intervenha, pois Tiamat ergueu contra si os terríveis Anunnaki. Os Igigi reúnem-se em conselho para encontrarem uma solução. Enki, o Sábio, propõe que alguém vá ter com Tiamat e que a enfrente: «Entre nós, quem é impetuoso na batalha? O herói Marduk! Só ele é suficientemente forte para nos vingar.»

Marduk aceita lutar contra Tiamat, mas exige o poder supremo: «Se vou ser o vosso vingador, derrotando Tiamat e salvando as vossas vidas, exijo que a assembleia me dê a primazia; e quando se reunirem para votar os decretos, deixem-me fazer a lei. Serei eu, e já não vós, quem decidirá sobre a natureza do mundo e das coisas vindouras. Os meus decretos nunca serão alterados nem anulados, e a minha criação suportará as extremidades do mundo.» Anshar organiza um banquete para todos os deuses. «Quando beberam a bebida forte, os seus corpos incharam; começaram a gritar e, quando os seus corações se exaltaram por Marduk, o seu vingador, fixaram o destino.» A entronização de Marduk é selada por um milagre: os deuses colocaram um traje no meio deles e dirigiram-se a Marduk: «Senhor, és o primeiro entre os deuses! Fala e assim será: abre a boca e o traje desaparecerá; volta a falar e o traje reaparecerá intacto!» Com efeito, quando Marduk falou, o traje desapareceu e, quando Voltou a falar, o traje reapareceu. Os deuses, tendo verificado a eficácia da sua fala, prestaram-lhe homenagem: «Marduk é rei!»

O combate

Marduk fabrica um arco e uma rede, apodera-se de uma maça e do relâm­pago. Em seguida, sobe para o carro-tempestade e faz surgirem o Dilúvio, o vento Atroz, a Tempestade, o Turbilhão, o Furacão, o Vento Quádruplo e o Vento Séptuplo. Lança-se ao ataque a Tiamat, que tem nas mãos uma planta venenosa, grita, lança desafios e diz com os seus lábios amargos: «Serás assim tão importante para te ergueres acima de mim como deus supremo?» Os dois combatentes enfrentam-se: Marduk, o mais inteligente dos deuses, e Tiamat, à sós, numa luta singular.

«O Senhor lançou sobre ela a sua rede e, ao rosto dela, atirou o vento feroz, que estava atrás de si. Tiamat abriu então a sua enorme boca e Marduk atirou-lhe o vento antes de ela ter tempo de a fechar. O vento entrou-lhe nas entranhas, a coragem abandonou-a e ela abriu a boca. Com um golpe, espetou-lhe a lança no ventre, cortou-lhe as tripas e trespassou-lhe o coração. Tendo-a derrotado, tirou-lhe a vida. Depois atirou o corpo à terra e pôs-se em cima dela.»

Quanto aos seus acólitos, os 11 monstros que engendrara para a apoiarem no seu combate, «ficaram presos na rede. Todo o bando de demônios que havia marchado ao seu lado. Marduk pô-los a ferros e atou-lhes as mãos. Fortemente cercados, não conseguiram fugir».

Depois de ter matado Tiamat, prendido os 11 monstros e retirado de Kingu as tábuas do Destino, Marduk repousa e medita em cima do corpo da Mãe monstruosa. Como utilizar esta carcaça horrível?

Marduk, o Criador

Marduk olha fixamente para a enorme massa, pensando como usá-la, o que criar a partir dessa, matéria original. Resolve então cortar ao meio o corpo monstruoso, no sentido do comprimento, «como um peixe seco». Com uma metade, faz a abóbada celeste e, com a outra, a terra, emergida do Apsu. Em seguida, edifica no Céu um palácio para os grandes deuses, An, Enki e Enlil, e dá-lhes as estrelas como luminárias. Depois, Marduk «mede o ano», dá-lhe um princípio e um fim e fixa a sua divisão em 12 meses. Por último, incumbe Shamash, O Sol, de reinar sobre o dia, e Sin, a Lua, de velar sobre a noite, e organiza as fases lunares. Em seguida, faz surgir a terra da extensão das águas. Da cabeça de Tiamat, faz as colinas e, dos seus seios, as montanhas; dos seus olhos, faz correrem o Tigres e o Eufrates, e escava fontes em todo o seu corpo. Por fim, edifica Babilônia e o seu alto templo no meio da terra, para aí reproduzir a morada divina.

Por último, Marduk distribui os 600 deuses entre o Céu e os Infernos: 300 Igigi no mundo celeste e 300 Anunnaki nos Infernos. Passarão a ser os guar­diães do mundo.

O homem, nascido para servir

Agora, para distrair e servir os grandes deuses, era necessário criar a humanidade, tarefa que era outrora realizada pelos Igigi. Marduk propõe criar o homem a partir do seu próprio sangue, mas Enki sugere que se sacrifique um dos deuses vencidos. Marduk pede que lhe tragam os prisioneiros Anunnaki e pergunta quem é o responsável pela conspiração contra si. Unânimes, os deuses apon­tam para Kingu. Com a aprovação da assembleia, Kingu é executado e Nintu, a senhora do Nascimento, mistura argila com o sangue do deus, criando assim o homem, com a sua natureza dupla constituída por um corpo e uma alma.

Mas a raça dos homens não terá uma vida longa. Seiscentos anos depois, multiplicaram-se de tal maneira que produziam um barulho infernal; mais uma vez, os deuses não conseguiam dormir. Enlil encarrega Namtar, a incarnação do Destino e, depois, Adad, senhor das Tempestades, de se desembaraçarem dos homens provocando uma enorme seca. No entanto, avisados por Enki, os homens conseguem sobreviver, chegando ao ponto de devorar os seus filhos. Reunidos em assembleia, os deuses decidem então provocar um imenso dilúvio, do qual apenas um homem escapará, bem como um casal de todos os animais da criação.

Dos três grandes relatos mesopotâmios do dilúvio, um faz parte da Epopeia de Gilgamesh e tem por herói Utanapishtim; numa segunda narrativa suméria, a mesma personagem salva do dilúvio chama-se Ziusudra e, numa terceira, redigida em acadiano, embora os acontecimentos descritos sejam exatamente os mesmos, o protagonista chama-se Atrahasis, 0 «Supersábio».

Deuses da Suméria e de Acádia

An, Enlil e Enki, a grande tríade primitiva, são os descendentes de Anshar e de Kishar. A sua vinda ao mundo marca o princípio da ordem, que sucede ao caos e às lutas que presidiram à Criação. Quando An e os seus irmãos se unem contra Apsu e Tiamat, dá-se uma guerra de gerações, uma luta pela afirmação do seu poder contra o dos deuses primitivos, incapazes de assegurarem a ordem do mundo. Estabeleceram a sua morada no palácio celeste, onde se passaram a realizar as assembleias dos grandes deuses.

Os deuses fundadores

An, deus do Céu, representa a ordem do cosmos. Juiz supremo, é ele quem rege os conflitos entre os deuses. Tomando a defesa de Inanna, vai lançar o Touro celeste contra Gilgamesh e Enkidu, e intervir a favor da humanidade quando Enlil desencadeia o seu terrível dilúvio. An é geralmente representado sentado num trono, com uma tiara com cornos, que evoca a força viril do touro, ou simplesmente como um dragão com cornos.

Enlil, que mais tarde será denominado Bei (Senhor) pelos Babilônios, reina sobre a terra e tem como armas principais o amaru (o dilúvio) e o furacão. O Cavalgador das Nuvens» enfrenta um terrível dragão numa luta cósmica, que faz lembrar o combate entre Zeus e Tifeu. De resto, tem vários traços em comum com Zeus, bem como com Javé, o deus dos Hebreus, que também provocou um dilúvio. Enlil seduz uma jovem, Ninlil, a dama do Vento. Castigado pelos deuses, é enviado para os Infernos. Ninlil segue o amante e, no reino subterrâneo, dá à luz Sin. Com ela, engendrará também Nergal, soberano dos infernos. Com o nome de Baal, adquirirá entre os Fenícios um carácter muito mais temível, como divindade aterradora que exige incessantes sacrifícios humanos. A sua companheira Ninlil ou Ninursag amamenta aqueles que Enlil nomeou como reis da Terra.

Enki, deus sábio, reina sobre o Apsu e gere as questões terrestres. Inteligente e astuto, é por excelência o civilizador, aquele que resolve os problemas e que ensina os homens a resolvê-los. Deus das águas doces e fertilizadoras, é repre­sentado com dois fios de água que se escapam das suas mãos. As suas duas filhas, Inanna e Ereshkigal, reinam uma sobre o Amor (é a Afrodite mesopotâmica, assimilada a Ishtar) e a outra, esposa de Nergal, sobre os Infernos. Segundo o poema intitulado Enki e Ninmah, Enki terá criado o homem, com o auxílio de Ninmah, para libertar os deuses da tarefa cansativa de escavarem canais de irrigação. Os deuses celebram esta ideia com um banquete, e Ninmah, ébria, afirma ser capaz de fabricar esses futuros servidores dos deuses. No entanto, a tarefa não corre bem e os primeiros homens criados são muito imperfeitos. Enki, que previra o que iria acontecer, arranja então um papel para cada uma dessas criaturas defeituosas. De um homem que não era capaz de agarrar os objetos com as mãos, faz um servidor do rei, que não pode ser suspeito de roubo. Do segundo, um cego, faz um músico com a missão de divertir o rei. Ao terceiro, incapaz de reter a urina, Enki cura-o, dando-lhe um banho purificador.

Uma mulher estéril é colocada ao serviço da rainha, e um homem privado de órgãos sexuais torna-se guardião do harém real.

Marduk é um deus babilônio, que, depois de ter criado o mundo, ergue o seu templo, o Esagil, na cidade da Babilônia. A partir do II milênio, torna-se o soberano incontestado do universo e da vida, tendo ocultado mais ou menos An e Enlil. Um hino em honra de Marduk evoca esta simbiose dos grandes deuses: «Sin é a tua natureza divina, An o teu carácter real, Adad a tua força, Enki, o sábio, a tua inteligência.» O templo de Marduk na Babilônia, o Esagil, é um vasto complexo que engloba, além da residência do deus e da sua companheira, um enorme zigurate - construção de vários pisos, que foi identificada com a torre de Babel - e muitos outros templos consagrados a divindades. Na Babilônia, o ritual das cerimônias em honra de Marduk, o Akitu, serve para fortalecer a relação entre os deuses e a comunidade dos homens e, especialmente, para renovar a vassalagem do rei a Marduk, protetor da Cidade.

As festas desenrolam-se no início do ano babilônio, por volta do mês de março ou de abril. Duram pelo menos 13 dias, durante os quais alternam desfi­les, orações, oferendas, purificação do templo, banquete, viagem dos deuses numa barca e vários sacrifícios; as festividades terminam com a leitura pública do Enuma Elish em frente à estátua do deus. No quarto dia do ritual, o rei é arrastado pelas orelhas diante da estátua do deus e, depois, fisicamente mal­tratado pelo sumo-sacerdote. Se o rei verter lágrimas, é um bom presságio. Marduk perdoou-lhe as faltas e a Cidade gozará de um ano de prosperidade. Marduk é representado com grandes orelhas, que revelam a sua inteligência e a qualidade da sua audição, armado com uma espada com a qual abate um dragão, recordando a sua vitória sobre Tiamat.

A distribuição dos papéis entre os Anunnaki e os Igigi é muito complexa, porque, em certas narrativas, os Igigi são os deuses inferiores e os Anunnaki são os grandes deuses. No mito da descida de Inanna aos Infernos, os Anunnaki têm a função de juizes dos Infernos, tal como sucede na Epopeia de Gilgamesh. No Enuma Elish, Marduk fixa em 600 o número de deuses. Depois, divide-os em dois grupos: os 300 Igigi reinam nos céus e os 300 Anunnaki sobre a terra. Seja como for, as decisões eram tomadas pelo conselho de Anunnaki, super­visionado por An e, mais tarde, por Enlil.

Divindades siderais

Os Mesopotâmios eram apaixonados pela observação do movimento dos astros, pelas fases da Lua, pelos meteoros, pelas estrelas cadentes e pelos cometas; muito naturalmente, divinizaram as luminárias do palácio dos deuses. As três grandes divindades siderais são: Sin, o deus Lua, Shamash, o deus Sol, e Inanna, a deusa do Céu, do Amor e da Guerra.

Sin, o deus da Lua começou por se chamar Nannar. Filho de Enlil e de Ninlil, desempenha um papel muito importante como guia de caravanas, adminis­trador do tempo e senhor do calendário. Marduk atribuiu-lhe a sua tarefa logo nos primeiros tempos da Criação: «No início do mês, para brilhares sobre a terra, mostrarás cornos para fixar seis dias; ao sétimo dia, dividirás em duas a coroa; ao décimo quarto, colocar-te-ás de frente.» Sin dispõe de numerosos poderes e influencia o destino dos homens. Governa o ciclo menstrual das mulheres e, por isso, assiste aos partos. As mulheres estão encarregadas do seu culto. Nascido nos Infernos, Sin foi atacado por uma horda de demônios quando era ainda muito jovem. A mãe conseguiu salvá-lo substituindo-o por um espírito, mas Sin guarda ainda memória dessa passagem e, todos os meses, desaparece e esconde-se debaixo da terra durante uma noite. De vez em quando, os demônios voltam à carga e atacam Sin, que desaparece, cativo, durante os eclipses. O deus Sin é representado como um velho barbudo, sentado num trono e com um crescente na cabeça, ou de pé, numa barca em forma de crescente. Esposo de Ningal, deusa dos Juncos, engendra Inanna, Shamash e Adad.

Shamash

Verdade, justiça e força são os três atributos de Shamash, o deus Sol. A sua principal função consiste em inspirar os reis e ditar-lhes leis justas. Na estela onde estão inscritas as leis de Hamurabi, podemos ver o rei a oferecer o seu Código a Marduk/Shamash. «Quando Marduk me deu a missão de pôr em ordem o meu povo e pôr no bom caminho a minha terra, instalei nela o direito e a ordem e, assim, trouxe a prosperidade aos meus súditos.» Tal como Rá, o seu homólogo egípcio, Shamash, filho de Sin, atravessa todas as noites o Mundo Subterrâneo. À noite, mergulha no Ocidente, onde o esperam os homens-escorpiões para lhe abrirem a porta do Mundo Subterrâneo. Durante a sua travessia noturna, descobre o inverso das coisas e reaparece de manhã, nas Montanhas do Oriente. Os seus filhos, Kittu e Mesharu, personificarão a Justiça e o Direito. O juízo de Shamash é infalível, pois pode ver tudo o que se passa sobre a terra e debaixo dela. É também capaz de prever o futuro e de revelar o seu conteúdo aos sacerdotes que leem as entranhas dos animais sacrificados. Shamash é representado ora sentado num trono, com uma tiara e chamas que se elevam dos seus ombros, ora por um disco dentro de uma estrela com quatro pontas separadas por raios.

Inanna «A Dançarina»

Deusa do Céu, do Amor, da Fertilidade e da Guerra, identificada depois à deusa fenícia Astarte e a Afrodite, Inanna inspira o ter­ror tanto aos deuses como aos homens. A maioria dos mitos em que figura mostra-a como uma deusa cruel, um monstro capaz de matar os seus amigos e amantes. Desenfreada no campo de batalha, corta as cabeças e enumera, nos seus cantos de guerra, as armas afiadas com que massacrará o inimigo. Quando sobrevoa a terra, as montanhas prestam-lhe homenagem e inclinam-se diante do seu poder. Certo dia, em que o monte Ebih lhe recusou essa homenagem, declarou-lhe guerra e precipitou-se sobre ele, estrangulou-o, cerrou os dentes no seu ventre, secou a terra, arrancou as árvores e fez desaparecer o monte sob fumos densos.

Contudo, a narrativa mais famosa sobre Inanna é a história do seu casa­mento com o pastor Dumuzi, que se tornou deus da Vegetação. Vários relatos sumérios, autênticas odes ao amor físico que podem ter inspirado o Cântico dos Cânticos, narram essas bodas divinas. Era para celebrar esse acontecimento que, todos os anos, no ano novo, o soberano «desposava» uma das sacerdotisas de Inanna durante alegres festividades. A fertilidade das terras e a fecundidade das fêmeas animais ficava assim assegurada nesse ano. Existem numerosos textos cuneiformes (a escrita suméria, gravada em tabuinhas de argila) que descrevem como o pastor Dumuzi foi elevado ao estatuto de rei e de deus graças ao seu matrimónio com Inanna.

O ciclo de poemas dedicado à deusa do Amor mostra o caráter erótico e, ao mesmo tempo, sagrado dessa união. O próprio Enki evoca os poderes misteriosos do Amor: «A Inanna, minha filha, concedo o dom da verdade, da descida aos Infernos, do regresso dos Infernos, da arte de fazer amor, do amor com o falo.» A deusa, submersa pelo desejo, «entoa um hino de louvor à sua vulva», descrevendo-a como um «terreno em pousio, bem irrigado», e dirigindo-se a Dumuzi: «Por mim, abre-me a vulva, por mim! Por mim, a jovem, quem será o seu lavrador?» O sexo de Dumuzi torna-se o próprio símbolo da fertilização do terreno em pousio.

Mas o amor profundo que une Inanna e Dumuzi está condenado a ser anulado pelo outro aspecto da personalidade da deusa, o orgulho, a ambição e o desejo de vingança. Inanna vai aos Infernos visitar a irmã Ereshkigal, que ela pretende destronar. Em primeiro lugar, segundo o ritual da passagem para o Além, tem de transpor as sete portas do inferno, despojando-se, em cada porta, de uma peça de roupa ou de uma joia. Em cada porta, faz a mesma pergunta e recebe sempre a mesma resposta: «Guardião, por que me despo­jas desta roupa? - Entre, senhora, estas são as ordens da rainha do Inferno.» Nua e impotente, é finalmente levada diante de Ereshkigal, que a prende no seu palácio e lhe lança doenças que rapidamente lhe provocam a morte. A rainha dos Infernos pendura então o cadáver da irmã num gancho.

Os grandes deuses, alarmados por verem a terra a fenecer, reúnem-se em conselho e pedem a Ereshkigal que deixe Inanna regressar à terra. A deusa aceita, na condição de que a irmã arranje alguém que queira ocupar o seu lugar nos Infernos. Inanna volta então à terra e começa a procurar quem aceite tomar o seu lugar. Quando encontra o marido Dumuzi a festejar alegremente à sombra das árvores em vez de estar a chorar o seu desaparecimento, fica furiosa e decide escolhê-lo. Dumuzi recusa energicamente e tenta fugir do exército dos gallu, os soldados de Inanna, que ela lançou em sua perseguição. Com o auxílio de Shamash, Dumuzi muda cem vezes de aspecto, mas os gallu acabam por encurralá-lo na tapada da sua irmã Geshtinanna. Capturam Dumuzi e levam-no para os Infernos.

Pouco tempo depois, todos os protagonistas da história começam a lamentar o desaparecimento de Dumuzi: a sua mãe Ninsun, a irmã Geshtinanna, deusa do Vinho, e a própria Inanna! Os deuses tomam então uma decisão excecional: durante seis meses, Dumuzi ficará nos Infernos e, durante os outros seis meses, a sua irmã Geshtinanna, que se ofereceu como voluntária, tomará o seu lugar. É por isso que, todos os anos, durante seis meses, a terra seca e nada cresce. Durante os seis meses em que Dumuzi volta à terra e em que Geshtinanna ocupa o seu lugar nos Infernos, a vegetação volta a crescer. Este ciclo de morte invernal e de ressurreição primaveril evoca claramente os mitos de Deméter e Perséfone nos Gregos e de ísis e Osíris nos Egípcios.

Ninurta «Senhor da Terra Cultivável»

Ninurta é o equivalente do Marte dos Romanos, deus da Agricultura e da Guerra. Campeão dos deuses, surge armado com uma maça em torno da qual se enrolam duas serpentes. Ninurta ilustra-se pela sua vitória contra o pássaro Anzu, mas é sobretudo aquele que, «sozinho, devastou a montanha».

No antigo poema (III milênio) do Lugal-e, a Mesopotâmia está em luta permanente com os seus vizinhos e tem de reagir a um ataque dos povos da montanha, comandados pelo demônio Asakku. As tropas de Asakku tentam soterrar Ninurta num dilúvio de pedras, de lava e de deslizamentos de terras. A terra treme e Ninurta é obrigado a recuar. Numa segunda fase da batalha, Ninurta consegue juntar dois terços das pedras da montanha e acaba por derrotar Asakku. Em seguida, dedica-se à organização do ambiente selvagem: constrói canais de irrigação e diques para regar as culturas e desvia os cursos dos riachos da montanha para irrigarem as planícies. Por fim, começa a examinar as pedras. Esta parte da narrativa é dedicada à explicação da utilização técnica de numerosos minérios trazidos da montanha para as cidades da Mesopotâmia. Ninurta seleciona os minérios em função do papel que as pedras desempenha­ram na batalha, conforme tenham estado ou não do seu lado. Escolhe algumas frágeis, sujeitas à erosão, e outras tão duras que poderão ser utilizadas para fabricar as mós que esmagarão as pedras mais friáveis. Outras podem ser esculpidas, polidas e trabalhadas de muitas maneiras. Ninurta castiga a lava e o basalto, que haviam erguido muralhas contra ele, e serão reduzidos ao papel modesto de moldes para os ourives, e condena o calcário, que conspirara con­tra ele, a ser utilizado para construir as fundações dos edifícios implantados nos terrenos pantanosos. As rochas que a ele se aliaram, pelo contrário, têm um destino mais nobre. Assim, o lápis-lazúli e outras pedras preciosas serão consagrados aos deuses.

Adad 

O maior dos deuses da natureza é Adad, de iras terríveis, o senhor da Tempestade. Ora benévolo, ora destruidor, Adad está na origem da chuva e das secas que, por vezes, assolam a região. Assim, antes de desencadear o Dilúvio, por ordem de Enlil, provocou a seca que não conseguiu fazer desaparecer a humanidade. Mas Adad é também o deus que, graças às cheias fertilizantes dos rios, assegura a prosperidade da agricultura. Por vezes, é representado em cima de um touro ou a abater um monstro marinho.

Os gênios

Existem muitos gênios mediadores entre os deuses e os homens que influenciam a vida do povo. Uns são gênios protetores, os lamassu, com cabeça de homem e corpo de leão ou de touro. Os lamastu, em contrapartida, são demônios esté­reis que atacam as mulheres grávidas e matam os bebês. Os edimmu, almas dos mortos não sepultados que erram eternamente, perseguem os homens.

Quanto aos gallu, monstros hediondos vindos dos Infernos, providos de corpo de homem e cabeça de leão, introduzem-se no quarto dos jovens casados para neles semearem a discórdia, e propagam as doenças entre os homens e os animais. Os gênios malévolos são frequentemente considerados responsáveis pela doença e pela morte, e o poder deles deve ser dominado por meio de ritu­ais conjuratórios e pela magia. Imagens dos gênios protetores eram expostas nas casas e nos edifícios oficiais ou colocados nas fundações das habitações.

Em certos casos, é difícil distinguir os demônios malévolos dos gênios pro­tetores recrutados para os combaterem. Assim Pazuzu, o demônio do Vento do Sul, é representado em vários amuletos (um dos quais exposto no museu do Louvre) destinados a conjurar a doença. A placa representa Pazuzu a con­duzir o demónio Lamashtu de volta aos Infernos, abandonando o corpo do doente de que ela havia tomado posse. Pazuzu é, então, um demônio benévolo, ainda que o seu aspecto seja particularmente aterrador: cabeça de leão, corpo coberto de escamas, asas, garras e um pênis em forma de serpente. Quanto a Lamashtu (talvez antepassada de Lilith, demônio feminino que aparece na bíblia e no Talmude), é um demônio estéril, que rapta e massacra as crianças, ataca as mulheres grávidas e as mães e bebe o sangue dos homens. É representada nua, com patas de ave de rapina e cabeça de leoa ou de abutre.

O domínio infernal

«Terra sem retorno», o Inferno mesopotâmico é rodeado por sete muralhas intransponíveis. Ereshkigal, senhora da Grande Terra, é uma deusa sombria e violenta, que reina com o esposo Nergal sobre os Infernos. Certo dia, os deu­ses do Céu decidem partilhar um banquete. Mas o código divino impede-os de descerem ao Mundo Subterrâneo, tal como um deus dos Infernos não pode subir aos Céus. Mandam então um mensageiro a Ereshkigal, para que envie um dos seus servos para lhe levar a sua «porção» de alimentos divinos. Ereshkigal envia então o seu fiel ministro Namtar (o Destino), que sobe a «grande escada do Céu». Os deuses recebem-no respeitosamente e todos se inclinam diante dele. Todos menos Nergal, deus da Peste, da Destruição e da Guerra, que recusa saudar Namtar. Os deuses condenam-no então a apresentar as suas desculpas a Ereshkigal. Após a chegada de Nergal aos Infernos, Ereshkigal apaixona-se por ele e os dois amam-se perdidamente durante seis dias e seis noites. Quando ele tem de ir embora, a deusa, em lágrimas, ameaça An, o deus supremo, de acordar os mortos e de os enviar à terra para devorarem os vivos. Envia-lhe um mensageiro para exigir que Nergal lhe seja reenviado e se torne o seu esposo. Nergal corre então para os Infernos com 14 demônios, parte as sete portas do domínio dos mortos e cai nos braços de Ereshkigal: «Aproximou-se dela a rir, agarrou-a pelos cabelos, ergueu-a do seu trono e agarrou-a pelas tranças. E os dois abraçaram-se e deitaram-se na cama.» Mais uma vez, durante seis dias, Nergal e Ereshkigal amaram-se apaixonadamente, e Nergal decide ficar junto da rainha dos Infernos. Nergal é geralmente representado como um leão, e a sua cabeça colossal serve de guardião das portas dos templos e dos palácios babilónicos.

As lendas mesopotâmicas

Na Mesopotâmia, os homens, criados para servirem os deuses, multiplicam as demonstrações de respeito, obediência e temor. Os seus deveres para com os deuses consistem em construir-lhes templos sumptuosos, esculpir as suas imagens, venerá-los em grandes procissões e honrá-los através de grandes festas, com banquetes, cânticos e danças. O povo espera assim conciliar-se com os deuses e obter deles a paz e a prosperidade. Os Sumérios confiam tam­bém muito na justiça divina, considerada infalível. A desgraça e o sofrimento são o castigo por faltas anteriores. No entanto, nas epopeias, observa-se um questionamento deste juízo divino e, por volta do II milênio, os homens começam a pôr em dúvida a justiça divina, que nem sempre é bem exercida ou, pelo menos, segundo regras compreensíveis e aceitáveis. Três grandes relatos épicos narram a busca da imortalidade de reis ou heróis lendários ou semilendários: Etana, Adapa e Gilgamesh, que tentam, sem sucesso, desafiar a morte e ao quais a imortalidade será recusada.

Etana

Rei da cidade de Kish, junto ao Eufrates, Etana é um justo que deve a sua posi­ção a Enlil e a Inanna, e que governa pacificamente o seu reino. Mas, certo dia, começa a preocupar-se com o facto de não ter descendência: a quem deixará o poder após a sua morte? Dirige-se a Shamash, o juiz supremo, que lhe sugere que vá à morada dos deuses pedir a Inanna a erva da procriação. No decurso da viagem, salva uma águia de asas cortadas, que estava presa no fundo de um fosso. A águia promete então dar-lhe tudo o que ele desejar. Etana pede-lhe que o leve ao céu de An para ir buscar a erva da procriação. No entanto, chegado ao palácio de An, quer ir ainda mais alto e alcançar o palácio de Inanna. Sofrendo de uma vertigem, cai do dorso da águia, que o apanha mesmo antes de tocar no solo. O fim da narrativa nunca foi encontrado, mas, segundo a Lista Real da Suméria, sabemos que Etana teve um filho que lhe sucedeu. Podemos então concluir que Etana terá tido sucesso no seu empreendimento.

Adapa

O herói Adapa, primeiro dos sábios, desempenha na mitologia mesopotâmica um papel semelhante ao de Prometeu entre os Gregos. Provido de uma orelha gigante, é capaz de ouvir a mais pequena queixa dos humanos. A sua missão é ensinar aos homens as diferentes técnicas que lhes serão indispensáveis para sobreviverem. Mas, certo dia em que estava no rio, a sua barca afunda-se e ele mergulha na «casa dos peixes»; furioso, quebra as asas do Vento do Sul, causa da sua humilhação. Durante sete dias, o Vento do Sul não sopra em direção da terra.

An chama então Adapa. Antes de iniciar a viagem, Enki aconselha-o a vestir roupas de luto e avisa-o de que não deve comer nenhum dos alimentos nem beber a água que An lhe oferecerá, pois são a água da morte e o pão da morte.

Adapa sobe ao Céu e chega à entrada do palácio de An. Os deuses guardiães da porta, Tamuz e Gizzida, espantam-se ao vê-lo usar roupas de luto. Adapa diz-lhes que está de luto pelos dois deuses do seu país, Tamuz e Gizzida, asse­gurando assim o apoio e a simpatia destes deuses.

Adapa explica então ao rei do Céu o que aconteceu: «Senhor, eu estava a pescar no meio do mar para a casa do meu amo [Enki]. Mas um temporal levantou-se do mar. Depois, o Vento do Sul soprou e afundou-me! Fui obrigado a ir para a casa dos peixes. Na minha fúria, amaldiçoei o Vento do Sul.» Tamuz e Gizzida, os dois guardiães do palácio dos deuses, intercedem junto de An a favor de Adapa. An ordena então que lhe sirvam pratos de aspeto delicioso. Seguindo as recomendações de Enki, Adapa recusa os alimentos oferecidos por An, que, na realidade, eram... o pão e a água da vida eterna. An diz a Adapa que, por ter seguido os conselhos de Enki, perdeu a imortalidade e que fez cair sobre toda a humanidade o luto e a doença; doravante, só a deusa da Cura, Ninkrak, poderá aliviar os sofrimentos dos homens e permitir-lhes lutarem contra algumas doenças.

«A Epopeia de Gilgamesh»

Este texto com 5000 anos é a primeira obra literária da humanidade e é, talvez, o texto mais profundamente comovente da literatura mítica. Gilgamesh terá sido rei de Uruk, uma das cidades-Estado da Mesopotâmia, por volta de 2650 a.e.c.

A narrativa tem como tema principal a condição mortal do homem e a incompreensão dos deuses. Mas é, acima de tudo, um hino à amizade amorosa que une dois seres semelhantes e diferentes, cujos pontos de vista sobre a morte vão sempre evoluindo ao longo de uma estória repleta de aventuras temíveis. Esta amizade, tão próxima do amor, é análoga àquela que une Aquiles e Pátroclo, ou à que Montaigne sentia pelo seu amigo La Boétie, e que exprime em termos tão simples quanto fortes: «Porque era ele, porque era eu.»

O homem-deus e o homem-anima! Aruru, deusa da Criação, ouviu as queixas das gentes de Uruk. Gilgamesh, o rei, dois terços deus e um terço homem, apesar de grande e magnífico, abusa dos seus súbditos: não há noiva que não seja por ele tomada, antes do esposo, na noite de núpcias; não há jovem da cidade que não seja desafiado por ele para uma luta e depois morto. Aruru decide então dar a Gilgamesh um companheiro capaz de o chamar à razão. A partir de uma bola de argila, a deusa cria Enkidu, coberto de pelos e com cabelos «lanosos» (imaginamos a sua cabeleira com tranças enreda­das, semelhante ao cabelo dos saddhus indianos ou às rastas jamaicanas); inocente de humanidade, tão forte e belo quanto Gilgamesh, Enkidu é um selvagem que semeia o pânico entre os caçadores e os pastores. Gilgamesh, curioso em relação a tudo, ouve falar dele e interessa-se por essa estranha criatura. Para o humanizar, envia-lhe uma cortesã. Durante seis dias e sete noites, Enkidu ama-a selvaticamente. Quando se levanta, já não se parece com os animais selvagens, que agora o temem. A cortesã diz-lhe: «Agora, és um homem.» No entanto, dantes, Enkidu era feliz. Agora, tem de comer os alimentos amargos dos homens, sofrer os sofrimentos dos homens.

E a cortesã leva-o para a cidade.

Na noite anterior à chegada de Enkidu, Gilgamesh teve dois sonhos. Desce na sua direção uma estrela, pela qual se sente atraído como que por uma mulher. Em seguida, desce do céu na sua direção um machado, pelo qual é atraído como que por uma mulher. Ninsun explica os sonhos ao filho Gilgamesh: «É um amigo que vai chegar, um amigo tão forte como tu. Tem a essência de An. Será teu amigo.»

Na cidade de Uruk «de belas muralhas», Gilgamesh e Enkidu enfrentam-se, lutam como campeões. Gilgamesh não acredita no que vê: finalmente, encontra um campeão à sua altura. Mais uma vez, Gilgamesh apresta-se a fazer valer o seu «direito» sobre uma jovem noiva. Os dois heróis lutam no vão da porta da noiva, mas Enkidu interpõe-se e o rei, pela primeira vez, não poderá transpô-la. Em seguida, empurram-se, caem na rua, levantam-se, voltam a cair, derrubando as bancas do mercado. Enkidu é derrotado, mas por pouco, e admoesta Gilgamesh sobre o seu comportamento. O rei diz-lhe: «Nunca ninguém rivalizou comigo. Encontrei finalmente um companheiro digno de mim. Juntos, poderemos ir à floresta dos Cedros.»

Enkidu não compreende. Porquê a floresta dos cedros, onde reside o terrível Humbaba? Gilgamesh explica: é o seu sonho mais antigo, livrar a cidade do mal. Enkidu já fez metade do trabalho, domando o tirano. Agora, é necessário concluir a missão. Mas Enkidu tem medo de morrer. Gilgamesh diz que não tem medo e discorre sobre a imortalidade: «Quem pode chegar ao Céu, meu amigo? Sob o Sol, só os deuses são imortais, e os dias dos mortais estão aprazados.» Enkidu segue Gilgamesh; a assembleia de Uruk confiou-lhe Gilgamesh, o seu rei. Doravante, Enkidu é homem e tem uma missão: trazer Gilgamesh, ileso, da floresta dos Cedros.

Os monstros. Os dois amigos encontram-se face a Humbaba, gigante com cabeça de intestinos, que insulta Enkidu, chamando-lhe «filho de peixe» e «idiota que nunca mamou da sua mãe». Humbaba compreendeu a natureza selvagem de Enkidu. Shamash, deus do Céu e amigo dos heróis, lança os ventos sobre Humbaba para o enfraquecer: Grande Vento, Vento do Norte, Vento do Sul, Vento Rodopiante, Vento da Tormenta, Vento Gelado, Vento da Tempestade. De repente, Gilgamesh apieda-se e pede a Enkidu que poupe Humbaba. Mas Enkidu aprendeu a lição dura dos homens e explica ao amigo as leis da guerra, Humbaba é o inimigo dos homens, tem de morrer. Gilgamesh opõe-se, enfrenta Enkidu e chama mercenário ao amigo. Enkidu, indignado com essa renegação, corta a cabeça de Humbaba com um golpe de machado.

Exaustos, os heróis lavam-se e ataviam-se com os seus belos ornamentos. Com a sua tiara na cabeça, Gilgamesh é tão belo que a deusa Inanna se apai­xona por ele, quer torná-lo seu amante, promete-lhe cabras férteis e precioso lápis-lazúli. Gilgamesh repele a deusa, lembra-lhe os seus crimes anteriores e chama-lhe «sandália que magoa os pés», «odre de pele rugosa», «pedra friável que mina as muralhas», mulher instável, inconstante e malévola.

Inanna vai queixar-se a An, seu pai, o deus do Céu. A chorar por causa do vexame, exige vingança. Pede ao pai que mande o touro do Céu combater e matar Gilgamesh. Se ele recusar, ela abrirá as portas dos Infernos e os mor­tos sairão para devorar a comida dos vivos. An cede à exigência da filha. Os mugidos do touro do Céu abrem abismos profundos, onde caem às centenas os homens de Uruk. Enkidu cai numa das fendas. Retesa os músculos e, com um salto, sai da fenda; em seguida, agarra na cauda do Touro e espeta-lhe uma espada na nuca. Inanna ruge de raiva impotente. Orgulhoso, rebelde, resistente ao destempero e à arbitrariedade dos deuses, Enkidu atira-lhe à cabeça uma perna do Touro.

Os deuses reúnem-se então em conselho. As mortes de Humbaba e do touro do Céu devem ser punidas. Um dos dois deve morrer. «Enkidu deve morrer», diz Enlil. «Gilgamesh não morrerá!» E Shamash, o Justo, o Sol divino, responde a Enlil: «Não foi como resposta às tuas ordens que estes atos fatalmente se produziram? A morte do Touro Celeste e de Humbaba? E hoje dizes que Enkidu deve morrer!»

Enkidu é deitado no seu leito, de onde não voltará a levantar-se. Duplamente vítima, porque duas vezes nascido, lamenta-se. Porque o obrigaram a deixar a vida selvagem, a descobrir os costumes dos homens? Para chegar a este estado? Ao fim de sete dias, Enkidu morre. Gilgamesh invoca para o seu amigo Enkidu as lamentações do mundo inteiro. «Que o urso, a hiena, a pantera, o tigre, o cervo, o lobo, o boi, o gamo, que todos os animais da estepe chorem por ti!» Em seguida, estende o lençol por cima do rosto de Enkidu, como se se tratasse do rosto de uma noiva, e ruge «como uma leoa a quem tivessem retirado as crias.»
As Águas Mortais Gilgamesh erra pela estepe: «Deverei morrer como Enkidu? Tenho medo da morte.» Resolve então ir falar com Utanapishtim, o sobrevivente do Dilúvio que conquistou a imortalidade. Nenhum homem havia alguma vez entrado na noite escura da montanha, pelo caminho, pela passagem noturna, que conduz às Águas Mortais. «Seja qual for a dificuldade, seja qual for o sofri­mento, no calor extremo e no frio gélido, irei!», diz Gilgamesh. Na escuridão profunda, vestido com peles de animais e alimentado com bagas selvagens, Gilgamesh avança e conta a sua infelicidade a quem o queira ouvir: «Aquele com quem combati, aquele a quem tanto amei, conhece hoje a sorte que a todos nos espera. Não queria que o enterrassem, com medo de que ele não despertasse. Velei-o durante seis dias e sete noites. Depois, um verme saiu-lhe do nariz. Já não há vida para mim.» Incansavelmente, Gilgamesh repete as suas lamentações, a dor de ter perdido o seu «macho vagabundo», o seu «ónagro do deserto», a sua «pantera da estepe», o amigo a quem tanto amava. Por fim, Gilgamesh chega ao rio das Águas Mortais e encontra Urshanabi, o barqueiro. A embarcação lança-se sobre as vagas das Águas Mortais e, após três dias de uma travessia que equivalem a 15 dias no mar, os dois viajantes alcançam a outra margem. Gilgamesh encontra-se finalmente com Utanapishtim. Este compreende a sua dor, pois é um homem, ainda que tenha obtido a imorta­lidade. Diz a Gilgamesh: «Não devem todas as pessoas morrer? Construímos  as nossas casas para que durem eternamente? Os nossos compromissos são eternos? Será o ódio eternamente inextirpável? Desde o princípio dos tempos que nada é permanente.»

Utanapishtim ou a imortalidade negociada. Gilgamesh quer saber como Utanapishtim se tornou imortal. O idoso fala-lhe de uma época em que os homens se multiplicavam como moscas e em que o mundo mugia como um touro selvagem. Enlil declarou insuportável essa algazarra e os deuses concordaram em aniquilar a humanidade. Utanapishtim narra o Dilúvio, a grande invasão das águas. Avisado em sonhos por Ea, construiu um barco de juncos em forma de cubo perfeito e embarcou a sua família, famílias de artesãos e um casal de todos os animais da Criação. Quando Utanapishtim estava preparado, «uma enorme nuvem negra elevou-se no céu. No meio da nuvem, Adad trovejava. Siullat e Hanish, deuses gêmeos da destruição, avançaram, devastando montes e vales. Nergal, deus da pestilência, rompeu as barragens do Oceano profundo e Ninurta abriu as comportas do céu. Os deuses infernais inflamaram-se e incendiaram toda a terra».

O Dilúvio desejado por Enlil e Inanna durou seis dias e sete noites. Mas, passado esse tempo, Inanna começava a lamentar-se e a arrepender-se. Era preciso parar tudo isso. Utanapishtim libertou uma pomba e uma andorinha, que regressaram exaustas à arca; depois, libertou um corvo, que, tendo encontrado alimento, não regressou: as águas haviam começado a recuar. Por fim, o barco encalhou no cume do monte Nisir.

Enlil fica furioso. Jurara que não haveria sobreviventes. Mais uma vez, os deuses rejeitam a culpa. Mas Enki, cheio de compaixão, decide que Utanapishtim e a sua mulher viverão à distância, pois conhecem o segredo dos deuses e essa e a única maneira de garantirem que o guardarão. Enki consegue apaziguar Enlil, que aceita entrar na arca, abençoar Utanapishtim e conceder-lhe o dom da imortalidade.

A derrota Utanapishtim aflige-se por Gilgamesh. Quem lhe dará a vida eterna? Impõe-lhe uma prova: durante seis dias e sete noites, o herói deve ficar acocorado sem dormir. Mas logo o sono sopra sobre ele como uma bruma sob a chuva. Gilgamesh falhou. «Agora que fiz todo este caminho, deverei morrer e deixar a terra cobrir-me a cabeça para sempre? Não pode ser. Dá-me a imortalidade», suplica Gilgamesh. «Não», responde Utanapishtim, «nunca terás a vida eterna. Quando os deuses criaram a humanidade, criaram a morte, não a imortalidade. Tal como todos os homens, encherás a barriga de boa carne. Dançarás e serás feliz dia e noite. Festas e alegrias. Terás roupas limpas, lavar-te-ás na água fresca e cuidarás da criança que te dará a mão. e farás feliz a tua esposa. É o destino do homem e deves limitar-te a isso.» Em seguida, revela a Gilgamesh o local aquático onde cresce a planta espinhosa que, ainda que não conceda a imortalidade, devolve a juventude. Gilgamesh mergulha, encontra a planta, colhe-a e regressa à superfície. Depois ador­mece junto de uma nascente, e uma serpente engole a planta de um trago,
Libertando-se assim da sua pele velha. Gilgamesh chora a sua esperança perdida. Tal como Orfeu, não terá uma segunda oportunidade e, desiludido, empreende a viagem de regresso.

Vencido, despeitado e mortal, Gilgamesh está limitado a louvar os prodígios da sua própria criação e mostra ao barqueiro Urshanabi os esplendores de Uruk de belas muralhas: «Vem, vem até às muralhas, Urshanabi, vê este terraço, toca neste trabalho da pedra, nestes tijolos recozidos, magníficos. Os sete sábios edificaram as fundações destas paredes. Vê esta cidade, os seus jardins, os terrenos em redor. Uruk, a minha cidade, é tudo isto.»

Mitologia - Mitologia Mesopotâmica
Metodologia - Tipos de pesquisa, 
1/5/2021 11:45:24 AM | Por David Sullivan
Metanálise

O objetivo deste capítulo é introduzir o método de revisão da literatura quantitativa ou metanálise. Isso envolve um conjunto de técnicas de testagem de hipóteses estatís­ticas que supõem uma abordagem de “confirmação" de modelo. O capítulo elucidará brevemente alguns dos principais desafios envolvidos nas efetivas revisões de literatura e depois introduzirá os conceitos básicos da metanálise. Ele pretende mostrar como fazer uso efetivo dessa estratégia ao fornecer um exemplo elaborado do caso mais simples. Embora maiores detalhes possam ser requeridos para grande parte das apli­cações, pretende-se que este capítulo encoraje estudantes e pesquisadores a explorar mais a rica matriz de métodos metanalíticos e a considerar seriamente o uso dessa abordagem como uma parte essencial do processo de revisão da literatura em sua área de pesquisa. [455]

22.1 Introdução

Em psicologia é raro que um único projeto de pesquisa responda uma questão de uma vez por todas. Existem diversas razões por que isso deva ser assim, particularmente nas ciências comportamentais. As principais razões referem-se à natureza do objeto de estudo e aos métodos de pesquisa utilizados. Há sempre uma tensão entre, de um lado, os ambientes fechados baseados no laboratório em que tudo é controlado de tal modo que a validade ecológica se torna questionável e, de outro, os vagos ambientes baseados no campo, onde o controle das variáveis é difícil. De uma perspectiva geral, isso não é necessariamente problemático, pois a complexidade das questões psicológicas precisa ser estudada a partir de múltiplos pontos de vista. De fato, apegar-se rigidamente a pontos de vantagem metodológi­cos pode resultar em pontos cegos, com a resultante ausência de progresso.

Outro fator é a lógica probabilística que utilizamos para determinar se a con­tribuição de uma pesquisa apresenta um efeito. Podemos descrevê-la do seguin­te modo: não podemos nunca estar realmente seguros quanto à existência de um efeito, mas, com a aplicação da análise estatística apropriada, podemos determinar a probabilidade de o resultado ser a conseqüência do acaso. Embora tentemos nos guardar contra ele tanto quanto possamos, há sempre o acaso de um resultado positivo falso ou negativo falso. É por essa razão que a confiança excessiva em re­sultados isolados pode afinal provar-se enganosa.

Finalmente, temos de aceitar que grande parte de nossos resultados está ba­seada na amostra e no ambiente particular do estudo. Embora haja a expectativa de que esses resultados sejam generalizáveis, isso não pode ser garantido. Assim, por exemplo, resultados de estudos sobre estudantes universitários altamente in­teligentes que focalizam o funcionamento cognitivo podem ter pouca relevância para amostras mais gerais.

Por todas essas razões, e outras mais, precisamos utilizar os resultados múlti­plos da pesquisa na exploração de uma área determinada. Isso fica muito evidente em qualquer apresentação dos resultados de uma pesquisa. A introdução, ou revi­são da literatura, satisfaz o propósito de identificar a pesquisa relevante na área, situando-a em uma ordem avaliativa e fornecendo um esquema de apreciação so­bre o qual o valor da contribuição da pesquisa atual pode ser baseado. Isso significa que nossas revisões da literatura requerem de nós a identificação e a acumulação de evidência em favor ou contra uma posição particular. A metanálise é um termo usado para descrever a situação em que nossa apreciação qualitativa da literatura é sustentada por uma quantificação da evidência.

Como em todas as ciências, o desenvolvimento da psicologia é um processo contínuo de acumulação e de refinamento do conhecimento. Mesmo uma olhadela superficial sobre a literatura pode demonstrar que a demanda pela acumulação de conhecimento está sendo satisfeita. O número de periódicos que estão sendo pu­blicados cresce de ano para ano e, no entanto, parece haver mais artigos do espaço disponível nos periódicos. O refinamento do conhecimento pode ser desafiante em psicologia em virtude do modo não linear mediante o qual ele é produzido. Como em qualquer outra atividade, ele é uma função da complexidade do estudo da men­te e do comportamento humanos. Acrescente-se a isso metodologias diferentes, amostras e falta de acordo quanto às definições e à complexidade da tarefa se [456] torna evidente. A tarefa de refinamento do conhecimento não é tanto julgar sobre o valor ou a significação de uma obra particular quanto identificar as tendências e os prin­cípios subjacentes dentro de um corpo de obra. A revisão de literatura procura alcançar esse objetivo. Contudo, o esquema de uma revisão de literatura enquanto um método de metanálise não é sem dificuldades. A realização de uma revisão de literatura abrangente é dificultada pelo imenso volume de pesquisa que é pu­blicada. Obter domínio sobre isso é um desafio contínuo para os pesquisadores profissionais e se torna uma tarefa cada vez mais difícil para clínicos que lutam por uma prática baseada na evidência. Com essa imensa base de conhecimento, a revisão de literatura narrativa torna-se de difícil manejo e desproporcional em relação à tarefa. Além disso, nessas circunstâncias, a habilidade da mente humana para executar confiável e validamente essa tarefa é questionável (Glass, McGraw e Smith, 1981).

Para executar o trabalho de revisão na forma de um artigo ou de uma argu­mentação e gerir o material que precisa ser assimilado, analisado e interpretado, o pesquisador tem de ser seletivo quanto ao material a ser utilizado para extrair conclusões. Desse modo, a tarefa de cobrir todo esse material se transforma, de inclusiva, em seletiva, avaliando as fontes mais importantes. Inevitavelmente, o pesquisador deve tomar uma série de decisões subjetivas que podem introduzir viés. Somos predispostos a organizar o caos em padrões: geralmente percebemos formas e objetos quando, de fato, nenhuma dessas coisas existe. Essa tendência a procurar por padrões ou por resultados positivos aumenta em face dos níveis crescentes de conhecimento. A evidência negativa ou não confirmatória pode fa­cilmente ser negligenciada. Dados os vieses inerentes a nosso sistema cognitivo, sabemos que esse pode não ser o melhor método em que se possa basear um es­crutínio científico. Além disso, o método de seleção de estudos não é claro e tem levado à objeção segundo a qual os revisores podem escolher estudos por razões outras que uma avaliação completa do valor científico (Wolf, 1986, p. 10).

Como podemos estar seguros de que os autores não omitiram estudos porque eles não concordavam com seus propósitos (Knipschild, 1994)? De fato, uma das falhas das revisões narrativas tradicionais é que elas silenciam sobre como a me­todologia dos estudos foi avaliada (Knipschild, 1994). Essa falta de abrangência na cobertura dos estudos e a possibilidade de introdução de viés tornam as revisões narrativas de literatura uma maneira insegura de refinar o conhecimento, parti­cularmente nos contextos em que a sociedade precisa de respostas a questões de uma natureza psicológica que têm sido obtidas de um modo confiável.

22.2 Quantificando o processo de revisão

Embora a revisão de literatura possa ser considerada como uma forma de me­tanálise, no sentido mais vago do termo, é provavelmente mais apropriado passar­mos a uma definição mais estrita nesse momento. De agora em diante considera­remos que o termo designa o conjunto de métodos e de procedimentos estatísticos por meio do qual são combinados dados de diferentes estudos (Moncrieff, 1998) e a subsequente interpretação desses resultados. Nessa etapa é também impor­tante delinear o tipo de estudos que são acessíveis para a metanálise, na medida em que a redução da definição tem implicações aqui. Estamos examinando dados [457] empíricos» e nâo contribuições teóricas, os dados precisam ser quantitativos e não qualitativos, os resultados precisam ser configurados (ou aptos a ser configurados) de uma forma estatística que é comparável, e os construtos que estão sendo exa­minados devem ser os mesmos ou similares. O modo como esse último ponto é operacionalizado é importante. Pode variar desde a comparação de estudos em que há uma pura replicaçâo até aqueles em que há replicaçâo conceitual. A difi­culdade com a replicaçâo conceitual é que o pesquisador pode estar comparando estudos que na realidade são diferentes uns dos outros - o problema das maçãs e laranjas, não comparando igual com igual. As conclusões que o pesquisador extrai podem não ser relevantes. O modo de superar esse embaraço consiste em somen­te comparar estudos em que há replicaçâo pura. No entanto, o pesquisador pode acabar com muito poucos estudos para comparar e, consequentemente, tornar ne­cessária a generalizabilidade de suas conclusões. Alcançar esse equilíbrio é uma tarefa delicada.

Embora a metanálise resolva alguns dos problemas postos pelas revisões de nar­rativa. ela também traz alguns benefícios importantes para o processo de síntese de pesquisa, Knipschild (1994) apresenta duas dessas vantagens que podem também atuar como preparação para a realização de um teste. Uma vantagem é que uma revisão sistemática permitirá que a área possa ser estudada de forma abrangente, e, desse modo, um pesquisador saberá em que medida um novo teste acrescentará ao conhecimento. Esse é um modo efetivo de aumentar o valor das iniciativas de pesquisa propostas. Por sua própria natureza, a metanálise requererá que o pesqui­sador faça contato com os principais autores da área. É importante localizar, como veremos mais adiante, testes que falharam em produzir um resultado significativo. Esses testes tendem a não ser publicados, mas armazenados em arquivos, levando ao bem conhecido problema da gaveta (Rosenthal, 1979). Testes negativos podem fornecer boa informação sobre o que não funcionou, e, desse modo, o pesquisador, em vez de repetir todos os erros clássicos, aprende com a experiência dos outros pesquisadores da área.

Historicamente, o primeiro passo dado no sentido de combinar os resultados de estudos foi usar cada estudo como um voto em um referendo sobre a questão de pesquisa a ser respondida. Todos os estudos que abordaram essa questão foram identificados, e seus votos, se eles descobriram um efeito ou não, foram considera­dos como válidos. O resultado baseou-se nesse número total de votos. Essa é uma ideia intuitivamente atrativa, mas falha. Ela vai contra a natureza probabilística da testagem de hipóteses. Um resultado negativo não significa que não havia nenhum efeito. Significa que um efeito, se algum houve, pode não ser detectado dentro de limites aceitáveis. Consequentemente, um resultado negativo pode não ser um voto contra a questão, na medida em que não temos nenhum modo de distinguir entre resultados negativos verdadeiros e resultados negativos falsos. É claro que o oposto também pode ocorrer, pois temos alguns resultados positivos falsos entre nossos votos validados. Esse é o eterno problema dos erros de Tipo I e de Tipo II. Um pragmatista poderia argumentar que esses equilibrariam a si próprios e que, se uma questão paira sobre um ou dois votos ela não deveria ser trazida à baila. No entan­to, há uma questão prática aqui, referente ao ajuste aplicado. Estudos de tratamen­to podem frequentemente falhar em alcançar níveis significativos, não porque não exista nenhum efeito de tratamento, mas porque, devido a números [458] necessariamente pequenos, não é possível detectar o efeito estatisticamente, embora o efeito tenha um impacto clínico (Moncrieff, 1998). Um exemplo será suficiente para ilustrar os problemas que isso pode causar.

Suponhamos que eu esteja tentando avaliar a efetividade de um novo tipo de intervenção na habilidade de leitura de leitores disléxicos. Tem havido evidência anedótica de que essa abordagem é mais efetiva do que os métodos tradicionais de ensino da leitura, e uns poucos testes foram realizados. Eu gostaria de ver o que a pesquisa tem a dizer antes de me comprometer com um custoso programa de re-treinamento para professores da área. Antes de qualquer coisa, estabeleço critérios de inclusão:

  1. Os estudos incluídos devem ter envolvido uma intervenção que utiliza essa técnica de ensino particular.
  2. Os estudos devem ter tido um grupo de comparação que tenha recebido o ensino terapêutico convencional.
  3. O grupo de tratamento deve ter sido composto de indivíduos que tenham sido diagnosticados como portadores de uma dificuldade de leitura que é explicada e que está de acordo com a definição de dislexia.
  4. Os participantes devem ter sido aleatoriamente designados ou ao grupo de controle ou ao grupo de tratamento.

Em seguida, desenvolvo uma estratégia para encontrar estudos relevantes. Co­meço com uma busca de bancos de dados, de bibliografias, de atas de conferências, etc., relevantes. A partir dos elementos identificados, contato com os autores e sigo citações de modo a identificar mais estudos. Minha busca produz quatro estudos. Eu os coloco em uma tabela de contingência (ver Tabela 22.1) e, tendo contado os “votos”, resolvo a questão de saber se essa nova forma de ensino é mais efetiva do que os métodos convencionais.

Diante disso, resolve-se o problema: apenas um dos quatro estudos constata que esse tipo de intervenção foi efetivo. Assim, fica claro que o uso desse tipo de interven­ção não está justificado. Entretanto, os dados são problemáticos. Antes de qualquer coisa, sabemos que a falta de um resultado significativo pode ser a conseqüência de um teste não ter poder estatístico suficiente, e isso ocorre muito frequentemente, devido ao fato de um teste ter números baixos. Esse padrão certamente parece ficar evidente com os estudos A-C, e esses são estudos antigos. Também sabemos, a partir da leitura desses estudos, que, embora os efeitos não tenham sido estatisticamente significativos, os autores argumentaram que houve resultados presentes que [459] mostraram significação clínica. Essa, o leitor suspeitará, é a razão por que um teste (estudo D) com uma amostra maior e poder suficiente para detectar o suposto efeito foi encomendado. Embora seja, à primeira vista, uma tarefa simples, a interpretação dos dados da Tabela 22.1 está longe de ser não problemática.

Tabela 22.1

Seguir nossa intuição e interpretar os resultados com base no teste D, o qual sentimos fornecer a melhor representação do que está acontecendo, é cair na armadilha da revisão narrativa: escolher testes representativos por razões não objetivas. Em face disso, o único modo de seguir adiante é que devemos examinar pelo menos mais três testes que têm resultados positivos e eliminar aquele que suspeitamos ser um resultado errado.

Independentemente de qualquer coisa, isso resultaria em um grande dispêndio de esforço e, igualmente importante, teria o cheiro da má-fé científica dos que elegem testes para obter o resultado que dese­jam. Deve haver um modo de usar os dados de que dispomos para responder nossa questão original.

Esse foi o passo seguinte no desenvolvimento da técnica metanalítica. Em vez de examinar o nível de significação apenas, examinamos o efeito do tratamento dos testes e combinamos esses efeitos através de todos os testes. Combinando dados de diferentes estudos, o poder pode ser aumentado. Além disso, combinando estudos em uma variedade de ajustes, o total de efetividade do tratamento pode ser mensu­rado (Monerieff, 1998).

Houve um problema similar a esse, o debate sobre a efetividade da psícoterapia como um tratamento, que introduziu as técnicas da metanálise na psicologia. Em uma obra seminal, Eysenck (1952) concluiu que, depois de 20 anos de avaliação e de centenas de testes, o esforço de pesquisa fracassou em demonstrar que a psíco­terapia tenha qualquer efeito. Efetivamente, Eysenck tinha uma espécie de malote com um total dos votos. Sua controversa conclusão foi calorosamente e, às vezes, sordidamente debatida, então, como é ainda hoje. Demorou 25 anos para que uma contrarresposta pudesse aparecer. Smith e Glass (1977) abandonaram a testagem de significação pura e, em vez disso, examinaram a direção e a magnitude dos efeitos de tratamento através dos estudos. Usando essa abordagem, concluíram que a psicoterapia, de fato, funciona. Ao método de análise utilizado, eles chamaram meta­nálise. A introdução da metanálise na psicologia ilustra a fertilização recíproca que ocorre entre as áreas da investigação científica. Ela baseou-se nas idéias de Tippett [460] (1931) que ao interpretar os resultados de testes de campo agrícolas, concluiu que considerar em conjunto as probabilidades de uma série de estudos poderia deter­minar se um resultado era conseqüência de uma nova técnica agrícola ou do acaso. Foi Cochran (1937) que inventou um método para combinar tamanhos de efeitos de estudos independentes, o qual estabeleceu o fundamento estatístico para a aborda­gem metanalítica que foi usada por Smith e Glass.

Uma conclus&o interessante do trabalho de Smith e Glass (1977) é que eles não encontraram nenhuma grande diferença no impacto médio de vários tipos de tera­pia. As próprias terapias se diferenciam umas das outras principalmente conforme as teorias da natureza e do desenvolvimento humanos, as técnicas e as estratégias de intervenção. E, no entanto, na medida em que se constatou que funcionam de modo similar, elas devem funcionar, presumivelmente, por razões outras que o mé­todo e/ou a orientação teórica.

22.3 Passos na condução da metanálise

Voltemos agora ao que pretendemos que seja uma explicação mais prática do processo da metanálise. O leitor deve ter presente que se trata apenas de um pro­vador; para aguçar ainda mais seu apetite, diremos apenas que vários detalhes e aplicações mais amplas são discutidos na literatura sobre a metanálise.

22.3.1 Formulando o problema

A partir da teoria e da pesquisa em uma área específica, é possível localizar questões que ainda aguardam respostas? Embora o material bruto para a metaná­lise seja anterior ao conhecimento, a síntese dos estudos existentes deveria levar a um conhecimento novo. Em uma larga medida, a técnica tem sido associada com o exame das diferenças de grupo, particularmente na área dos efeitos de tratamento. Essa era a abordagem clássica capturada por Glass, McGraw e Smith (1981). Con­tudo, tanto quanto as diferenças constatadas entre grupos criados experimental­mente, também as diferenças entre grupos que ocorrem naturalmente podem ser examinadas. Além das diferenças entre os grupos, também podem ser exploradas as associações entre variáveis; essa abordagem pode ser usada na pesquisa da di­ferença individual ou na generalização da validade. Dentro dessa mistura de abor­dagens, a metanálise pode ser usada no tratamento de três questões amplas. Em primeiro lugar, que pesquisa tem sido produzida na área (se alguma)? Em segundo lugar, qual o melhor modo de resumir a pesquisa disponível? Se os pesquisadores estão interessados na replicação conceituai, mais do que na replicação pura, obser­varão que geralmente há uma grande quantidade de variabilidade entre os estudos em termos de, por exemplo, características de amostra, mensurações de resultados, etc. Nessa situação, os pesquisadores talvez estejam em posição de responder uma terceira e ampla questão e identificar a variabilidade entre os estudos e explicar por que essa tem levado a resultados diferentes. Não há nenhuma razão pela qual - cer­tamente as duas primeiras e, frequentemente, todas as três questões - não possam ser respondidas em uma metanálise. De fato, a metanálise está bem posicionada para responder a essas questões. [461]

22.3.2 A identificação dos estudos

Essa é a etapa mais importante do método metanalítico. A metanálise sintetiza os resultados de um grande número de estudos, e é porque ela resume todos os da­dos disponíveis, em vez de seções selecionadas deles, que suas conclusões se forta­lecem. Essa também é a etapa mais difícil. Embora o advento dos bancos de dados com dispositivos de busca torne mais fácil a localização de estudos apropriados, o fato é que, como veremos mais adiante, essas fontes também trazem consigo seus próprios problemas. Além disso, por sua própria natureza, os bancos de dados são
especializados e não há qualquer garantia de que todos os estudos relevantes te­nham sido indexados. Um exemplo ilustrativo será útil aqui.

Torgerson, Porthouse e Brooks (2003) estavam interessados em localizar e sintetizar os resultados de in­tervenções dentro da área da capacidade de ler e escrever e da capacidade aritmé­tica adultas. Seus termos de pesquisa incluíam capacidade de ler e escrever adulta; capacidade aritmética adulta; educação básica adulta; educação profissional; edu­cação no local de trabalho. Eles pesquisaram eletronicamente os seguintes bancos de dados: Psyclnfo, Educational Resources Information Centre (ERIC) [Centro de Informação de Recursos Educacionais], Social Science Citation Index (SSCI) [Index de Citação da Ciência Social], o Campbell Colaborations Social, Psychological, Edu­cational and Criminological Trials Register (C2-SPECTR) [Registro de Testes Sociais, Psicológicos, Educacionais e Criminológicos da Colaboração Campbell], System for Information on Grey Literature in Europe (SINGLE) [Sistema de Informação sobre Literatura Adulta na Europa] e Criminal Justice Abstracts (CJA) [Resumos da Justiça Criminal]. Utilizando bibliografias de revisões incluídas, eles conduziram uma pes­quisa manual em busca de testes potenciais que não tinham sido identificados nas pesquisas eletrônicas.

Eles identificaram 4.555 artigos que tinham um interesse possível. Seu passo se­guinte foi identificar entre esses os artigos relevantes. Por sua própria natureza, esse é um processo de seleção em que o julgamento do pesquisador (ou dos pesquisa­dores) é acionado. É importante que essa etapa seja conduzida tão objetivamente quanto possível. O fracasso aqui atrai a crítica quanto ao caráter subjetivo desse pro­cesso de seleção que tem sido dirigida contra as revisões narrativas. De fato, é impor­tante, ao avaliar a metanálise, estar consciente de como a subjetividade, introduzin­do um viés de seleção, tem influência sobre as conclusões extraídas. Esse problema pode ser evitado com o uso de critérios explícitos de inclusão e de exclusão e, depois, aplicando-os de um modo que seja confiável e repetíveL

Torgerson e colaboradores (2003) examinaram, então, essa massa de 4.555 ar­tigos segundo seus critérios de inclusão de “avaliações e de intervenções que pre­tenderam aumentar a capacidade de ler e escrever ou a capacidade aritmética no estudo de populações de adultos”. Os estudos teriam de ser testes controlados alea­tórios, testes controlados ou uma revisão desses. Além disso, eles deveriam ter sido executados em um país de língua inglesa e escritos em inglês. O critério final era que eles teriam de ser ou publicados ou não publicados entre os anos de 1980 e 2002. Havia também uma série de critérios de exclusão. Os estudos não poderiam ser es­tudos em que a primeira língua dos participantes não fosse o inglês ou se algum ou todos os participantes tivessem menos que 18 anos. Além disso, eles não poderiam ser estudos que fossem intervenções de um projeto precedente ou posterior e nem [462] estudos feitos sem o uso de intervenções. Na triagem inicial títulos e resumos foram usados. Para os quatro principais bancos de dados (Psydnfo, ERIC, CIA e SINGLE), dois dos pesquisadores, trabalhando independentemente, aplicaram os critérios de inclusão e de exclusão. A triagem dos artigos pertencentes aos dois bancos de da­dos menores (SSCI e C2-SPECTR) foi feita por apenas um pesquisador. Isso resultou em um conjunto de 168 artigos. Essa segunda dupla triagem foi baseada nos artigos completos. Todos os desacordos quanto a exclusão ou inclusão foram discutidos e resolvidos, de modo que um acordo total foi obtido.

22.3.3 Codificação e coleta dos dados

Torgerson e colaboradores (2003) codificaram seus estudos ou como RCT (en­saio controlado aleatorizado), ou como CT (ensaio controlado) ou como revisão. O propósito dessa codificação era fornecer uma descrição dos resultados em geral e também, se havia variabilidade dentro do conjunto dos estudos selecionados, uma descrição do modo como os estudos diferiam uns dos outros levando em conside­ração seus aspectos críticos. A fim de resumir ou de comparar estudos uns com os outros, os dados precisam ser extraídos dos estudos de um modo padronizado e cujo foco esteja bem definido.

Os dados precisam capturar o estudo de um modo relevante e precisam ser ex­traídos dos estudos consistentemente. De relevância seria o nome do estudo ou, no caso de uso do anonimato, o número, a fonte dos dados e o tipo de projeto do estudo. Além disso, deve haver uma descrição dos grupos de estudo: quantos grupos foram usados, quantos participantes em cada grupo, a distribuição de idade e sexo dos grupos e como os grupos foram originados. Se houve uma intervenção, em que ela consistiu e quanto tempo durou. Do mesmo modo, quais eram as variáveis depen­dentes e como foram mensuradas. Os resultados também precisam ser resumidos, o que incluiria a estatística descritiva das medidas dependentes dos grupos, bem
como a estatística de teste, os graus de liberdade e os valores-P. O protocolo pode precisar ser orientado sobre uns poucos estudos antes que o formato final seja fixa­do (Berman e Parker, 2002).

22.3.4 Análise dos dados

É o uso do tamanho de efeito que torna a metanálise possível. Ao sintetizar os dados da pesquisa não estamos mais interessados em saber se houve um resulta­ do significativo ou não; em vez disso, estamos interessados no efeito de, digamos, uma intervenção, em sua força e em sua direção. Usando o tamanho de efeito so­mos capazes de codificar os resultados da pesquisa em uma escala que é indepen­dente do número de participantes que tomam parte no estudo. Existem muitas e diferentes medidas de tamanho de efeito, algumas das quais são particularmente adequadas para tipos específicos de situações de pesquisa. De fato, algumas me­didas de tamanho de efeito podem ser computadas de diferentes modos. Isso é mencionado, não para aumentar a confusão, mas, antes, para diminuí-la, pois en­contramos estatísticas e métodos de computação de tamanho de efeito na litera­tura. Entretanto, pode-se dizer que existem dois principais tipos de estatística que são encontrados - medidas de tamanho de efeito para diferenças entre grupos e medidas para associações entre variáveis. [463]

Alguns estudos fornecerão estimativas do tamanho de efeito. Para aqueles que as omitem, elas têm de ser calculadas. Wolf (1986. p. 25) fornece uma fórmula bá­sica para diferenças de grupo, conhecida como uma diferença padronizada e de­ signada como d:

Equação 1

Essa diferença padronizada é o tamanho de efeito e é igual à diferença entre a média do grupo de tratamento e a média do grupo de controle, dividida por uma medida do desvio padrão. Geralmente, é o desvio padrão ou do grupo-controle ou do grupo pré-teste que é usado. Isso ocorre porque esses grupos não são afetados pelo tratamento ou pela intervenção (Glass et al., 1981), embora cada desvio padrão pos­sa ser usado, desde que a homogeneidade das variâncias seja suposta (Wolf, 1986, p. 25). Para os estudos correlacionais, a computação básica é fazer a média da correla­ção das duas variáveis nos dois estudos. Geralmente, o coeficiente da correlação de Pearson é usado (Wolf, 1986, p. 28-29).

Vamos retomar ao exemplo fictício que mencionamos anteriormente, quando usamos a imagem dos votos no método da votação. Embora os tamanhos de efeito não estejam informados nesses estudos, é relativamente fácil calculá-los a partir da estatística descritiva apresentada nos artigos. Isso feito, elaborar o tamanho de efei­to médio é fácil; a soma dos tamanhos de efeito divididos pelo número de estudos (Wolf, 1986, p. 26). Para os dados da Tabela 22.2, o tamanho de efeito médio é:

Equação 2

Como sabemos, uma das vantagens de usar uma medida de tamanho de efeito na estatística inferencial é que a medida não é afetada pelo tamanho da amostra e, desse modo, os resultados obtidos com diferentes tamanhos de amostra podem ser comparados uns com os outros. Não estamos interessados na amostra perse, mas no que ela nos diz sobre a população da qual ela foi extraída. Contudo, cada tamanho de efeito representa o verdadeiro tamanho do efeito de população mais o erro, e, como ocorre com todas as estatísticas, quanto maior a amostra, maior a probabilidade de que o tamanho de efeito seja uma estimativa verdadeira do tamanho de efeito da população (Clark-Carter, 2003).

Tabela 22.2

Com isso em mente, e examinando os dados da Tabela 22.2, não seria absurdo argumentar que, na medida em que o estudo D teve muitos participantes, esse [464] estudo pode fornecer a melhor estimativa do tamanho de efeito verdadeiro. Estendendo esse argumento, o cálculo do tamanho de efeito deveria levar isso em consideraçáo para minimizar a quantidade de erro, em vez de conferir a cada tamanho de efeito um peso igual. Vários métodos têm sido utilizados para produzir um tamanho de efeito ponderado (TEP) dos estudos individuais desse modo. Um modo intuitivamente atraente é usar o número de participantes como o peso. Uma fórmula que levaria isso em consideração seria multiplicar cada tamanho de efeito pelos graus de liberdade e depois dividi-los pela soma dos graus de liberdade:

Equação 3

Para os dados da Tabela 22.2 isso resultaria em:

Equação 4

Isso representa uma distribuição de 17% entre os escores dos grupos de trata­mento e de controle em favor do grupo de tratamento.

22.3.5 Interpretando a estatística do tamanho de efeito

Uma vez que tenhamos calculado o tamanho de efeito, precisamos estar em con­dições de dizer o que ele significa. Um dos tamanhos de efeito mais conhecidos é o d de Cohen (1988), que é usado para quantificar o grau de diferença entre médias de grupo. O r de Pearson pode ser usado para representar o tamanho de uma relação e também o grau de diferença entre médias de grupo. De fato, muitas medidas de tamanho de efeito podem ser convertidas umas nas outras (Rosenthal, 1991). Cohen forneceu uma métrica confortável para interpretar tamanhos de efeito que pode ser vista na Tabela 22.3.

Para o exemplo utilizado anteriormente, poderíamos interpretar o tamanho de efeito encontrado como sendo um efeito, de pequeno a médio. Embora o uso de di­retrizes convencionais possa ser útil, elas devem ser aplicadas com cuidado, pois diferentes áreas terão diferentes tamanhos de efeito, que são considerados como pratica ou clinicamente significativos. Como observaram Welkowitz, Ewen e Cohen (1982), essas diretrizes não devem ser usadas se o tamanho de efeito relevante para uma área particular é conhecido. Em geral, isso pode ser determinado consultando a literatura da área. É claro, se a área é nova, isso pode ser problemático. Uma saída, como Glass e colaboradores (1981) sugerem, é examinar a literatura de uma área conexa. Contudo, no caso de nenhuma estimativa de tamanho ter sido estabelecida, a orientação convencional talvez seja a única opção disponível.

Tabela 22.3

Nessa situação, a interpretação de um tamanho de efeito pequeno pode ser difícil, partícularmente quando se trata de avaliar tratamentos e especialmente quando esses tratamentos têm conseqüências em termos de vida ou morte. Embora os tratamentos psicológi­cos não sejam em geral considerados como tendo esse tipo de impacto, o contra-argumento pode ser formulado em relação às intervenções comportamentais dentro de ambientes médicos.

A questão consiste em saber como um efeito de tratamento expresso como um decimal do desvio padrão - tal como 0,01 ou 0,06 - se relaciona com sua significação prática ou clínica. O debate sobre essa questão tem levado ao reco­nhecimento de que um tamanho de efeito pequeno não implica que o efeito do tratamento seja similarmente pequeno (Lipsey e Wilson, 1993). Por exemplo, Ro­senthal (1991) relata que o efeito da aspirina sobre ataques cardíacos era conside­rado como conclusivo quando o tamanho de efeito alcançava 0,07. Se as diretrizes utilizadas fossem as de Cohen (1988), esse seria um tamanho de efeito pequeno, e teria representado 3,596 da diferença entre os grupos em tratamento com aspirina e os grupos não tratados desse modo. No entanto, em virtude de seu impacto em termos de vida ou morte, essa diferença foi considerada como clinicamente
significativa.

Relacionada a essas questões de interpretação do tamanho de efeito está a questão de saber se o tamanho de efeito é uma superestimativa do tamanho de efeito da população e, se é, em que medida. Essa é uma questão problemática por duas razões. Estudos com resultados positivos são mais propensos a serem submetidos para publicação. Greenwald (1975) estimou que aqueles estudos que tinham resultados significativos são oito vezes mais propensos a serem submeti­dos. Além disso, uma vez submetidos, tais estudos são mais propensos a serem publicados. Isso ocorre porque os editores frequentemente usam a significação estatística como uma medida de controle de qualidade para selecionar estudos para publicação (Gillet, 2001) e, como indicado anteriormente, uma falta de resul­tado significativo não implica a ausência de um efeito de tratamento. Esse viés de publicação significa que aqueles estudos que têm os efeitos mais fortes são mais propensos a serem publicados, e, consequentemente, qualquer metanálise desses estudos tende a superestimar o efeito de tratamento de população. Esse não é um problema insignificante, pois a metodologia rigorosa da metanálise pode dar cre­denciais científicas a conclusões errôneas (Begg, 1994). e esse é um sério abuso da metanálise. Além disso, aqueles que fazem metanálise também fazem julgamentos sobre os estudos que devem ser incluídos. Esse processo de seleção é elaborado no intento de evitar o problema das maçãs e laranjas. No entanto, ele pode também introduzir elementos de viés.

Há vários modos mediante os quais essa tendência pode ser minimizada. É importante definir explicitamente os critérios de inclusão e de exclusão que foram usados para selecionar os estudos. Além disso, a estratégia usada para resgatar os estudos precisa ser explicitada. Essa estratégia deve incluir tanto os bancos de dados óbvios quanto os não tão óbvios em acréscimo a outras fontes de es­tudos, tais como atas de conferência e bibliografias, bem como contatar autores no caso de estudo que são inéditos. Na medida em que esses passos são tornados explícitos, o leitor está apto a formar juízos sobre a possibilidade de presença de viés. Localizar estudos inéditos não é uma tarefa trivial, e nunca é possível saber se todos eles foram localizados. Rosenthal (1979) abordou esse problema de um ângulo diferente, que utilizava o método à prova de falhas. Ele desenvolveu uma fórmula para estimar quantos estudos não significativos o pesquisador precisa­ria encontrar, os quais, presumivelmente, se encontrariam na literatura inédita, para mostrar que não havia nenhum efeito. Certamente, se o pesquisador precisa de poucos estudos, então esses estudos poderiam estar escondidos na gaveta de alguém. Nessas circunstâncias, seria sábio não prestar muita atenção no efeito relatado. Revisar os participantes dos estudos usados também pode nos ajudar a formar um juízo. Estudos com números maiores de participantes são mais [467] propensos a ter tamanhos de efeito que são mais próximos do tamanho de efeito de população. Se a metanálise compreendesse estudos com tamanhos de amos­tra pequenos, isso deixaria alertas nossas suspeitas. Mais provavelmente, have­ria uma mistura, e a presença de estudos pequenos com tamanhos de amostra pequenos talvez distorcesse o tamanho de efeito. Aqui, procuraríamos ver se os tamanhos de efeito individuais dos estudos foram ponderados com base em seu tamanho de amostra. Evitar positivos falsos (erro de Tipo I), bem como assegurar que a descoberta de novas relações não está suprimida (negativos falsos, erro de Tipo II) é um problema perene não apenas para a metanálise, mas também para toda a psicologia científica.

Nem todas as metanálises são feitas com base em grandes conjuntos de estudos.

Shoham-Salomon, Avner e Neeman (1989) conduziram uma sobre intervenções pa­radoxais usando apenas 10 estudos. Aqui, o terapeuta encoraja o comportamento que o cliente está tentando mudar - os ansiosos, por assim dizer, são encorajados a se preocupar. Por alguma razão, isso sempre tem o efeito oposto. Eles descobriram que o efeito era muito forte e que funcionava tão efetivamente quanto uma série de outras terapias. Isso dito, com essa pequena base não foi possível determinar como e por que o procedimento funcionou. Contudo, o valor da metanálise que usa pe­quenas quantidades de estudos está mais em focalizar a pesquisa futura do que em obter conclusões firmes.

22.4 CONCLUSÃO

Este capítulo introduziu o conceito de metanálise. No espaço disponibilizado não é possível explorar os múltiplos e mais sofisticados desenvolvimentos nessa área. O leitor interessado pode consultar a literatura discutida abaixo. Nossa ex­pectativa é que o leitor deste capítulo esteja em uma posição de criticar as meta­nálises que são publicadas e possa ser inspirado a aplicar esses princípios a seu próprio trabalho.

22.5 LEITURAS RECOMENDADAS

Hunt (1997) fornece uma apresentação clara e abrangente da metanálise consi­derando sua história e sua contribuição para o progresso científico em uma série de campos de pesquisa. O texto de Wolf(1986) é uma boa fonte de muitas das fórmulas estatísticas e de seus usos, bem como de sua base lógica. Uma fonte alternativa é o texto de Lipsey e Wilson (2001), que é bom no que diz respeito à elaboração de exemplos práticos. Seria errado não apresentar os argumentos contra a metanálise: Eysenck é um crítico fervoroso, e a discussão de seu texto “Meta-analysis and its pro­blems” [“A metanálise e os seus problemas’] (1994) é digna de leitura.

Ralf Schwarzer tem elaborado um programa de computador disponível gratuita­mente para executar metanálises, e esse programa vem acompanhado de um exce­lente manual. Ele pode ser obtido em: http://www.fu-berlin.de/gesund/gasu_engl/ meta e.htm. [468]

Psicologia - Epistemologia
Ciências - , 
1/2/2021 6:12:09 PM | Por Mário Curtis Giordani
Escrita Etrusca

O mais antigo alfabeto etrusco de que se tem notícia foi encontrado em 1915, num túmulo de Marsiliana, gravado sobre uma tabuinha de marfim e datando do ano 700 a.e.c. O alfabeto de Marsiliana contém vinte e seis letras, en­tre as quais se contam as vinte e duas letras do alfabeto fenício e os sinais acrescentados pelos gregos. Ninguém duvida de que os etrus­cos tenham recebido o alfabeto dos gregos. Sobre a maneira como se teria realizado tal empréstimo é que os especialistas têm defendido opiniões diversas que podem ser sintetizadas nas duas seguintes teses: A tese clássica relaciona o alfabeto etrusco com os alfabetos gre­gos de tipo ocidental. Os etruscos teriam recebido sua escrita da colô­nia grega de Cumas, situada um pouco ao norte de Nápoles e fundada por gregos de Cálcis de Eubéia. A segunda tese, defendida especialmente por Grenier, se apóia no fato de que os alfabetos etruscos arcaicos de Marsiliana, Viterbo... conservaram, integralmente, as três consoantes do alfabeto fenício samek, sadé e shin (sigma em grego), enquanto que o alfabeto de Cálcis não revela traço das duas primeiras, conservando só a úl­tima.

Grenier conclui que o alfabeto etrusco derivou de um alfabeto grego ocidental, porém mais arcaico que qualquer alfabeto grego oci­dental conhecido. Possuímos milhares de inscrições etruscas, em sua grande maio­ria constituídas de textos funerários que aguardam um Champollion, não para decifrar a escrita, mas para desvendar o mistério da própria língua. Quase todas as inscrições encontradas são extremamente cur­tas, contendo, apenas, breves indicações sobre o nome do defunto, sua filiação e idade. A chave para o mistério do idioma etrusco se­ria (como o foi em casos semelhantes) a descoberta de um bom tex­to bilíngüe com o número suficiente de palavras para a aquisição de um vocabulário regular que possibilitasse a decifração de outras ins­crições e um estudo preciso da estrutura da língua, principalmente no campo morfológico. Se levarmos em consideração o intenso inter­-câmbio comercial e cultural dos etruscos com outras regiões mediter­râneas e a importante contribuição etrusca para a formação da pró­pria civilização romana, podemos esperar, em um futuro não muito remoto, o encontro de textos latinos, gregos ou púnicos paralelos a algumas inscrições etruscas já conhecidas mas não traduzidas, a uma época próxima à que assistiu à separação dos grandes grupos ocidentais e orientais, e à introdução de sinais complementares. Não esqueçamos que a própria língua latina contém um certo nú­mero de vocábulos herdados do etrusco, o que não deixa de ser uma pista para estudiosos do assunto.

A decifração da língua etrusca te­rá como conseqüência levantar o véu sobre a origem desse curioso povo. Lançará nova luz sobre os capítulos de sua epopéia na penín­sula itálica. «Na hora presente são conhecidas cerca de duzentas palavras-raízes etruscas e, conseqüentemente, todas as suas derivadas, sem contar os nomes próprios. Foram definidas as mais importantes leis da gramática; isolaram-se os prono­mes e as conjunções. Como puderam ser atingidos esses resultados já consideráveis? Em primeiro lugar, os autores gregos e latinos trans­mitiram-nos o sentido de inúmeras palavras: por exemplo, Suetônio, mencionando um jogo de palavras sobre César (em latim, Caesar), en­sina-nos que, em etrusco, aesar ou aisai queria dizer «os deuses», e este termo, seja no singular ais, seja no plural aisar, aparece, muitas vezes, nas inscrições assinalando o caráter religioso das mesmas»." As incrições funerárias fornecem também uma excelente pista, pois elas encerram, mais ou menos, o que se lê sobre os túmulos de todos os cemitérios do mundo: «Aqui jaz fulano, filho de fulano, neto de fulano, que, tendo sido isto ou aquilo, morreu com tal idade». «Assim, “ a repetição do mesmo lugar, das mesmas palavras, permitiu identifi­car os nomes de parentesco: clan (plural, clenai), filho, neíts (netos), formas verbais como lupuce (que significa «é morto»), os substantivos avil e tiv (que significam «ano e mês»), e os nomes de número, que, aliás, são muitas vezes escritos em algarismos romanos. Quando, pois, se encontra, sobre um sarcófago de Tarquínia, um epitáfio deste gê­nero: Larth Ceisinis, Arnthal clan, Velus nefts, avils LXX lupuce, se terá dificuldade em traduzir: «Larth Caesennius, filho de Ahnth, neto de Vel, morreu aos 70 anos».

História - Civilização Etrusca
Força Militar - , 
1/2/2021 5:46:09 PM | Por Marc Bloch
Características Gerais das invasões escandinavas

Depois de Carlos Magno, todas as populações de língua germânica que habitavam ao sul da Jutlandia, tornadas cristãs e incorporadas nos reinos francos, encontravam-se sob a influência da civilização ocidental. Mais longe, pelo contrário, para o Norte, viviam outros Germanos, os quais, com a independência, tinham conservado as suas tradições particulares. As suas linguagens, diferentes entre si, mas ainda mais diferentes dos idiomas da Germânia propriamente dita, pertenciam a outro ramo daqueles que há pouco se haviam destacado do tronco linguístico comum; damos-lhe hoje a designação de escandinavo. A originalidade da sua cultura, em relação com a dos vizinhos meridionais, manifesta-se definitivamente na sequência das grandes migrações que, nos séculos II e III da nossa era, tinham feito desaparecer muitos elementos de contato e de transição, quase esvaziando as terras germânicas de homens, ao longo do Báltico e nas margens do Elba.

Estes habitantes nem formavam um simples amontoado de tribos nem uma nação única. Distinguiam-se os Dinamarqueses, nas ilhas e, um pouco mais tarde, na península da Jutlandia; os Gotar, cuja memoria é hoje conservada nas províncias suecas de Oester e de Vestergotland; os Suecos, em redor do lago Malar; finalmente vários povos que, separados por vastas extensões de florestas, de planícies semicobertas de neve e de gelo, mas ligados pelo mar familiar, ocupavam os vales e as costas do país que em breve se chamaria Noruega. Todavia, havia entre estes grupos um ar de família muito acentuado e, sem duvida, de misturas demasiado frequentes que aos vizinhos não podia deixar de sugerir a ideia de lhes aplicar um rotulo comum. Como nada parecia mais característico do estrangeiro, ser misterioso por natureza, do que o ponto do horizonte de onde parecia surgir, os Germanos de além-Elba ganharam o habito de lhes chamar simplesmente: "homens do Norte", Nordman. Coisa curiosa: esta palavra, apesar da sua forma exótica, foi adoptada tal e qual pelas populações romanas da Gália: ou porque, antes de aprenderem a conhecer diretamente "a selvagem nação dos Normandos", a sua existência lhes tinha sido revelada por narrações vindas das províncias limítrofes; ou, mais provavelmente, porque os homens comuns a tenham ouvido nomear aos seus chefes, funcionários reais cuja maioria, no princípio do século IX, sendo oriunda de famílias austrasianas, falava geralmente o franco, de tal modo que o termo permaneceu estritamente continental. Os Ingleses, ou fariam um esforço por distingui-los, o melhor que podiam, entre os diferentes povos, ou então designavam-nos, coletivamente, pelo nome de um deles, o de Dinamarqueses, com os quais se encontravam mais em contato.

Estes eram os "pagãos do Norte", cujas incursões, desencadeadas bruscamente cerca do ano 800, durante perto de um século e meio, fariam gemer o Ocidente. Melhor do que os vigias que, então, no litoral, ao perscrutarem com os olhos o alto-mar, estremeciam à ideia de descobrirem as proas dos barcos inimigos, ou do que os monges, ocupados nos seus scriptoria com a anotação das pilhagens, podemos hoje restituir as investidas "normandas" o seu pano de fundo histórico. Encarados numa justa perspectiva, aparecem-nos apenas como um episodio de uma grande aventura humana, particularmente sangrenta, diga-se em boa verdade: estas amplas migrações escandinavas que, pela mesma época, da Ucrânia a Gronelandia, estabeleceram tantos novos laços comerciais e culturais.

Graças aos ritos funerários, podemos reconstituir com exatidão uma frota normanda. Um navio, oculto sob um montículo de terra amontoada, era, de fato, o túmulo preferido dos chefes. No nosso tempo, as pesquisas, sobretudo na Noruega, trouxeram à luz do dia vários desses túmulos marinhos: embarcações solenes, na verdade, destinadas às calmas deslocações, de Horda em Horda, mais do que as viagens para terras distantes, capazes, no entanto, quando era preciso, de efetuarem longos percursos, visto que um navio, exatamente copiado, por um deles - o de Gokstad - pode, no século XXI, atravessar o Atlântico de lado a lado. As "longas naves" que -espalharam o terror no Ocidente eram de tipo sensivelmente diferente. Não a tal ponto, todavia, que a sua imagem não possa ser reconstituída com bastante facilidade por meio do testemunho das sepulturas, devidamente completado e corrigido pelos textos. Eram barcas sem ponte, obras-primas de um povo de lenhadores, pela construção do seu madeiramento e criações de um grande povo de marinheiros pela correta proporção das suas linhas. Com o comprimento, em geral, de pouco mais de vinte metros, podiam mover-se a remos ou a vela e cada uma transportava, em media, de quarenta a sessenta homens, sem duvida um pouco apertados. A sua velocidade, se a avaliarmos pelo modelo feito a partir da descoberta da nave de Gokstad, atingia facilmente uma dezena de nos. Pouco do casco entrava na agua: cerca de um metro, o que constituía uma grande vantagem quando era preciso deixar o mar-alto para se aventurarem nos estuários, por vezes mesmo ao longo dos rios.

E isto porque, para os Normandos como para os Sarracenos, as aguas não eram mais do que uma via para as presas terrestres. Ainda que não desdenhassem, uma vez por outra, os ensinamentos de cristãos desertores, possuíam uma espécie de ciência inata dos rios, familiarizando-se tão rapidamente com a complexidade das suas vias que, em 830, alguns deles haviam podido servir de guias ao arcebispo Ebbon, a partir de Reims, na fuga daquele ao seu imperador. Diante das proas dos seus barcos, a rede ramificada dos afluentes abria a multiplicidade dos seus desvios, propícios às surpresas. No Escalda, são assinalados ate Cambrai; no Yonne, até Sens; no Eure, ate Chartres; no Loire, ate Fleury, muito a montante de Orleans. Na própria Grã-Bretanha, onde os cursos de agua, além da linha dos mares, são muito menos propícios à navegação, o Ouse levou-os, apesar disso, ate York, o Tamisa e um dos seus afluentes, ate Reading. Se as velas ou os remos não eram suficientes, recorriam à sirga. Muitas vezes, para não carregarem demasiado as naves, um destacamento seguia por via terrestre. Era preciso alcançar as margens, em fundos muito baixos? Ou, para proceder a uma pilhagem, utilizar um ribeiro de aguas pouco profundas? As canoas saiam dos barcos. Pelo contrário, era necessário contornar o obstáculo de fortificações que obstruíam a corrente da agua? Improvisavam um transporte por terra, para o barco; assim fizeram em 888 e em 890, para evitarem a passagem por Paris. La longe, no leste, nas planícies russas, os mercadores escandinavos não tinham adquirido uma longa pratica destas alternâncias entre a navegação e o transporte dos navios, de um rio para outro, ou ao longo dos rápidos?

Do mesmo modo, estes marinheiros admiráveis não receavam a terra, os seus caminhos e os seus combates. Não hesitavam em deixar os rios para se lançarem à caça de presas, quando era preciso: tal como aqueles que, em 870, através da floresta de Orleans, seguiram a pista dos monges de Fleury, fugidos da sua abadia à beira do Loire, seguindo os trilhos deixados pelos carros. Cada vez mais se foram habituando a utilizar cavalos, mais para as deslocações do que para os combates, a maior parte dos quais, naturalmente, roubados na própria região, ao sabor das pilhagens que faziam. Foi assim que, em 866, fizeram um grande roubo de cavalos em Anglia de leste. Por vezes transportavam os cavalos de um terreno pilhado para outro lado onde iam atuar; em 885, por exemplo, de França para Inglaterra. Deste modo, podiam afastar-se cada vez mais dos rios; não foram os Normandos assinalados, em 864, abandonando os navios no rio Charente e aventurando-se ate Clermont d'Auvergne, que tomaram? Por outro lado, deslocando-se mais depressa, surpreendiam mais facilmente os seus adversários. Eram extremamente hábeis em levantar entrincheiramentos e em defenderem-se neles. Sabiam também atacar praças-fortes, sendo nisso superiores aos cavaleiros húngaros. Em 888, já era longa a lista das cidades que, apesar das suas muralhas, haviam sucumbido ao assalto dos Normandos: Colônia, Ruao, Nantes, Orleans, Bordéus, Londres, York, para citar apenas as mais ilustres. Em boa verdade, além de o fator surpresa ter por vezes desempenhado o seu papel, como aconteceu com Nantes, assaltada num dia de festa, as velhas muralhas romanas estavam longe de se manterem bem conservadas e mais longe ainda de serem defendidas com muita coragem. Quando, em 888, em Paris, um punhado de homens enérgicos soube reparar as fortificações da Cite e revestir-se de ardor para o combate, a cidade que, em 845, quase abandonada pelos habitantes, havia sido saqueada e provavelmente, por mais duas vezes, tinha depois sofrido o mesmo ultraje, dessa vez resistiu vitoriosamente.

As pilhagens eram frutuosas. O terror que antecipadamente inspiravam não o era menos. Coletividades que viam os poderes públicos incapazes de as defenderem - tais como, desde 810, certos grupos frísios - e mosteiros isolados tinham sido os primeiros a pagar um tributo. Depois, os próprios soberanos se habituaram a tal prática: por dinheiro, obtinham dos bandos a promessa de susterem as suas pilhagens, pelo menos provisoriamente, ou de se voltarem para outras vitimas. Na França Ocidental, Carlos o Calvo dera esse exemplo, desde 845. O rei da Lorena, Lotário II, imitou-o em 864. Na França Oriental, foi a vez de Carlos o Gordo, em 882. Entre os Anglo-saxões, o rei de Mércia fez o mesmo, talvez desde 862; o rei de Wessex, temos a certeza, em 872. Pela sua própria natureza, tais resgates serviam de isca sempre renovada e, deste modo, repetiam-se indefinidamente. Como era aos seus súditos e, antes do mais as suas igrejas que os príncipes deviam atingir as somas necessárias, estabeleceu-se finalmente um escoamento das economias ocidentais para as economias escandinavas. Ainda hoje, em memórias dessas épocas heroicas, os museus do Norte conservam no expositores surpreendentes quantidades de ouro e de prata: contributos do comercio, decerto, em larga medida, mas também e em grande escala, como dizia o padre alemão Adam de Bremen, "frutos das pilhagens". Aliás curioso que, roubados ou recebidos como resgate, sob a forma de moedas ou de joias ao gosto do Ocidente, esses metais preciosos tenham sido geralmente refundidos para fazer novas joias de acordo com as preferências dos seus detentores: o que constitui uma prova de que estamos em presença de uma civilização especialmente segura das suas tradições.

Os prisioneiros eram também roubados e, a menos que fossem resgatados, levados para além-mar. Pouco depois de 860, são assim vendidos, na Irlanda, prisioneiros negros que haviam sido trazidos do Marrocos. Acrescentemos finalmente ao retrato destes guerreiros do Norte os fortes e brutais apetites sensuais, o prazer do sangue e da destruição, e, por vezes, ímpetos terríveis, um pouco loucos, em que a violência não tinha limites: tal como a famosa orgia durante a qual, em 1012, o arcebispo da Cantuária, até ali cuidadosamente poupado para ser por ele obtido um resgate, foi lapidado com os ossos dos animais consumidos no banquete. Diz-nos uma saga que um islandês, que tinha feito campanhas no Ocidente, tinha a alcunha de "homem das crianças" porque se recusava a empalá-las na ponta das lanças "como era hábito entre os seus companheiros". Isto é suficiente para fazer compreender o terror que estes invasores espalhavam à sua volta.

História - Normandos
Força Militar - , 
1/2/2021 5:34:31 PM | Por Lawrence Soundhaus
Os corsários alemães da Primeira Guerra Mundial

Os cruzadores de batalha britânicos Invincible e Inflexible, já não mais necessários no Atlântico Sul, partiram de volta para casa quatro dias depois de destruírem a esquadra de Spee. Os navios que eles deixaram para trás se concentraram em perseguir o Dresden, que tinha retornado para o Pacífico depois de sobreviver à Batalha das Malvinas com a intenção de chegar às Índias Orientais. O Dresden conseguiu afundar apenas um navio mercante Aliado antes que problemas com o motor e a falta de carvão levassem seu capitão a solicitar internação em Más a Tierra (ilha Robinson Crusoé), nas ilhas Juan Fernandez, a 640 km da costa chilena. Em 14 de março de 1915, o Kent e o Glasgow o encontraram e abriram fogo, ignorando a internação, o que levou o capitão do Dresden a afundar seu próprio navio.

Se a história operacional da esquadra de Spee tinha sido bastante breve, a atuação dos outros navios de guerra alemães, aventurando-se além de águas europeias, foi ainda pior, uma vez que todos eles afundaram ou foram bloqueados por ocasião da Batalha das Malvinas. O cruzador ligeiro Emden afundou 16 navios Aliados (70.800 toneladas) nas Índias Orientais e no oceano Índico, mas seu maior sucesso se deu contra um alvo em terra: um depósito de óleo em Madras, onde destruiu 346 mil toneladas de combustível em dez minutos de bombardeio na noite de 22 de setembro de 1914. As vítimas do Emden incluíram o cruzador protegido russo, o Zhemchug, afundado em Penang em 28 de outubro. Sua carreira terminou em um recife nas ilhas Coco, onde encalhou durante um duelo de artilharia com o cruzador australiano Sydney depois de demorar demais para destruir uma estação de rádio sem fio e cortar um cabo submarino. O cruzador ligeiro Karlsruhe, que tinha representado a Alemanha nas cerimônias de inauguração do canal do Panamá, em agosto de 1914, acabou afundando 16 navios mercantes (72.800 toneladas) no Caribe antes de naufragar devido a uma explosão acidental em 4 de novembro, ao largo das Pequenas Antilhas. O cruzador ligeiro Königsberg, que estava no posto naval da África Oriental quando a guerra teve início, afundou diversos navios mercantes e o cruzador protegido britânico Pegasus (ao largo da costa de Zanzibar) em 20 de setembro de 1914, antes de ser bloqueado por navios de guerra britânicos no rio Rufiji, um mês depois.

Continuou sendo um dos principais alvos da atenção Aliada até ser finalmente afundado em 11 de julho de 1915. Para suplementar sua frota de navios de guerra em operação, a Alemanha armou 16 navios de passageiros e navios mercantes para servirem como corsários em alto-mar. O maior deles, o navio de passageiros da Norddeutsche Lloyd, o Kronprinz Wilhelm, de 24.900 toneladas, afundou 15 navios (60.500 toneladas), mas consumia carvão demais para ser um corsário eficiente e foi entregue para internação em Newport News, Virgínia, em abril de 1915. O mais bem-sucedido foi o Möwe, de 9.800 toneladas, que afundou 41 navios (186.100 toneladas) antes de ser convertido em navio lança-minas. A viagem mais longa ficou com o Prinz Eitel Friedrich, de 16 mil toneladas, armado em Tsingtao em agosto de 1914, que seguiu a esquadra de Spee através do Pacífico, contornou o cabo Horn e chegou ao Atlântico Norte na primavera seguinte, percorrendo aproximadamente 40 mil km, tendo afundado apenas 11 navios (13.400 toneladas) antes de se entregar para internação em Norfolk, Virgínia, em abril de 1915. O mais famoso corsário alemão – e o único barco a vela empregado nessa função – foi o veleiro de três mastros Seeadler – comandado pelo conde Felix von Luckner, que afundou 16 embarcações (30.100 toneladas) em uma carreira de 8 meses antes de ir a pique em 2 de agosto nas ilhas Society. Dos 16 cruzadores auxiliares alemães, no fim das contas, 7 foram afundados – pelo inimigo ou deliberadamente pelos próprios comandantes –, quatro acabaram internados em portos neutros e dois naufragaram. Poucos continuaram em serviço depois da primavera de 1915, quando a Alemanha começou a usar submarinos para exercer as funções de corsários contra o comércio inimigo. Mesmo que, em última análise, os Unterseeboote (U-Boote) tenham afundado uma tonelagem inimiga bem maior do que os corsários de superfície, devido ao seu tamanho e alcance limitado, poucos operaram além das águas europeias e mediterrâneas, e os que o fizeram jamais deixaram o Atlântico Norte, dando aos Aliados liberdade para usar os outros sossegados oceanos do mundo assim que os corsários de superfície foram eliminados.

História - Primeira Guerra Mundial
Religião - , 
1/1/2021 6:12:01 PM | Por Jean Bottéro
Os hebreus e a invenção do pecado

Se acreditarmos no folclore bíblico, o crime é um hábito inveterado do homem. Ele ritmou e comandou inicialmente a mais velha "história", a "era mítica" que mais de uma mitologia antiga imaginou, das origens do mundo até o momento em que, por meio de retoques mais ou menos amplos ou brutais, a imagem do universo e do homem foi levada ao estado que todos conhecemos, de memória universal, e começou a funcionar como desde então sempre funcionou. Segundo a mitologia dos hebreus, o primeiro Homem que apareceu aqui embaixo - incitado por sua Mulher, que fora enganada pela Serpente - desobedeceu a Deus e comeu do Fruto proibido. É preciso que uma insubordinação como essa tenha sido tomada como um ato criminoso monstruoso, como uma verdadeira revolta, se julgarmos pelo terrível e definitivo castigo que implicou: a Mulher foi definitivamente condenada às dores do parto e à tirania do Homem, e este, a só poder subsistir ao preço de um trabalho extenuante (Gênesis III).

Dos primeiros filhos do casal, expulso para sempre de sua beatífica morada original, Caim assassina seu irmão Abel, do qual tem ciúmes, e este também é banido e condenado a uma vida errante e amedrontada.

Entre os descendentes do assassino surge uma espécie de besta, Lamec, que se gaba de ser muito mais sanguinário que Caim: "Por uma ferida, eu matarei um homem, e por uma cicatriz matarei um jovem. Se a vingança de Caim valia por sete, a de Lamec valerá por setenta e sete" (IV, 23).

Depois disso, ao longo das gerações, o crime se difunde em toda parte, de tal maneira que Deus fica desapontado ao ser obrigado a constatar "que a maldade do homem crescia na terra e que todo projeto do coração humano era sempre mau" (VI, 6). E decide aniquilá-lo com o Dilúvio, excetuando apenas o único justo, o único irrepreensível: Noé, salvo do cataclismo, com sua família, em sua "arca" flutuante (VI, 15; VIII).

Passado o Dilúvio, Cam, segundo filho do herói, ultraja gravemente seu pai - de acordo com as ideias que se tinham então das coisas - ao contemplá-lo totalmente nu e comprazendo-se na embriaguez: esta curiosidade doentia devia constituir, por si mesma, um novo crime, um imperdoável atentado, para que Noé maldissesse o culpado a ponto de fazer dele o pai de gerações de escravos (IX, 20s).

Enfim, os homens, novamente espalhados sobre a terra, conspiram para nada mais nada menos que afrontar Deus em pessoa, alçando-se assim para falar à Sua altura por meio de uma torre que lhes permitirá "(chegar) até o céu", simples "começo de seus empreendimentos" maléficos, como se nada mais pudesse freá-los na devastação de todos os interditos e na progressão do crime. É por isso que, confundindo e multiplicando suas línguas, Deus os condena a não mais se entenderem uns aos outros, o que os predispõe a agredirem-se e matarem-se (XI).

E essa sucessão arcaica, original e obstinada dos crimes passados, portando em germe os crimes futuros, sem número e sem termo, que leva Deus, como desalentado diante da súcia malfeitora e perversa dos homens, a preparar, unicamente para Si, uma comunidade restrita, que será, como Noé em seu tempo, a única justa, inocente e irrepreensível: Seu povo particular, que jamais deveria decepcioná-lo. Assim parte Ele para longe, no início da "era histórica", para buscar Abraão e trazê-lo ao teatro em que pretende vê-lo viver e proliferar-se para tornar-se o pai do povo de acordo com Seu coração (XI, ls).

Vê-se que, antes mesmo do início da história, o passado mais antigo do mundo, na mitológica bíblica, não passou de uma seqüência de catástrofes, comandadas a cada vez por crimes e pela repressão deles: pela reação legítima de Deus diante dos atos celerados dos homens.

As coisas infelizmente não se detiveram aí, e o relato bíblico foi obrigado a registrar, no decorrer dos tempos "históricos", uma nova e interminável série de ações criminosas, ora duramente castigadas, ora sem punição discernível, e até mesmo no seio do "povo de Javé". Basta reler os detalhes das abominações de Sodoma e de sua destruição (XIX); do ciúme de Sara, que obriga Abraão a expulsar Agar, mãe de seu filho Ismael, sob o risco de condená-los à morte com esse afastamento e esse abandono (XXI, 9s); do estupro de Dina por Siquém e da cruel vingança de Simeão e Levi (XXXIV); e assim sucessivamente, em uma longa litania, prolongada até o fim da bíblia. Sequer o rei ideal, o nobre e sedutor Davi, escapa, quando, depois de ter olhado do alto de seu terraço uma mulher "muito bonita" tomando banho e tê-la violentamente desejado e tornado mãe, livra-se hipocritamente do marido, fazendo com que o coloquem no centro de uma batalha sangrenta (II Samuel XI).

Tudo se passa como se, desde a primeira revolta criminosa do pai de todos os homens, a Má ação, com demasiada frequência alçada a este superlativo que é o Crime, houvesse entrado em nossa natureza, tornando-se conatural a nós, infectando todos os homens, até mesmo os do "povo eleito". Como observará muito mais tarde Coélet, filósofo que via as coisas de cima, "Deus fez o homem correto, mas o homem inventa muitas complicações" (Eclesiastes VII, 29).

Entretanto, não são o termo e a ideia de crime que dominam a bíblia, mas os de pecado, cujo alcance não é de maneira alguma o mesmo. Como se, para além do horror, da selvageria, da violência, do excesso e da vergonha de cada crime relatado, se quisesse destacar, como verdadeira razão de sua reprovação, seu caráter de "pecado": isto é, de recusa de obedecer a Deus, de rebelião contra Sua vontade e, portanto, contra Sua pessoa. Na bíblia, a gravidade do crime não é tomada pelo lado de seu caráter ignóbil, insuportável e atroz, como espetáculo condenável, mas do lado de Deus, a quem, simples e miserável criatura, o homem resiste por meio de tal ato e contra quem se insurge e desafia. Antes de ser aos nossos olhos um crime, a ação criminosa, na bíblia, é primeiramente condenada por Deus pelo fato de ser rebelião e "pecado". Consumado o adultério e assassinado o marido, Davi vê chegar a ele um daqueles intratáveis representantes da fidelidade a Javé, que se consideravam "enviados" por Ele, e que o censura violentamente, como o rei que é, por seu excesso criminoso, pelo fato de ser reprovado por Deus: "Então por que você desprezou Javé e fez o que Ele reprova?" (II Samuel XII, 9).

A religião de Israel, da qual a bíblia é ao mesmo tempo a carta de fundação e o dossiê de história, via, quanto a esse assunto, as coisas sob um ângulo bastante particular.

Os hebreus eram semitas e faziam, portanto, parte de um grupo cultural determinado, um dos mais antigos conhecidos, atestado, na Mesopotâmia, o mais tardar desde os primórdios do terceiro milênio, por sua linguagem, que revela obrigatoriamente uma cultura própria. Do ponto de vista religioso, o que sabemos sobre eles nos leva a pensar que tinham uma ideia bastante elevada da natureza e do papel dessa espécie de mundo sobrenatural que toda religião, de uma maneira ou de outra, sobrepõe ao nosso nível visível e palpável, a fim de nos fornecer a razão de ser de nossa existência e de seus grandes movimentos.

Na Mesopotâmia, via-se nele a projeção magnificada da classe política, que, nesse país, havia desde sempre assumido uma forma estritamente monárquica. Como tais, os deuses haviam criado os homens para desempenhar em relação a eles o mesmo papel dos súditos para com seu rei: prover com seu trabalho todas as necessidades deles, análogas às nossas - alimentação e bebida, roupas e ornamentos, edifícios para moradia, existência agradável e festiva -, que lhes eram asseguradas sob a forma de estátuas e imagens nos templos a eles erigidos. Nisso residia o essencial do culto que lhes era consagrado e, uma vez que nos haviam inventado e posto no mundo com esse objetivo preciso, eles não pediam mais. Mas também desempenhavam, em relação aos humanos, o papel do soberano e de seus auxiliares para com os súditos: tudo o que, para os homens, constituía uma obrigação ou uma defesa emanava da vontade deles, e quem quer que infringisse uma delas se tornava passível de um castigo, o qual tomava a forma desses aborrecimentos, males ou infortúnios que vêm de repente - inexplicavelmente - sombrear ou abalar nossa existência, e que ali encontravam sua justificação.

Temos apenas uma ideia bastante vaga da primeira religiosidade dos israelitas, que apareceram somente em meados do segundo milênio a.e.c. Ao modo deles, mais modesto e menos intelectualmente sistematizado, visto seu estado de nômades rudes, com certeza evocavam de maneira vaga e em pequeno formato o afresco amplo e multicolorido do panteão e do sistema mesopotâmicos.

Entretanto, no início do século XIII a.e.c., um deles, conhecido com o nome de Moisés, quis ao mesmo tempo dar- lhes um país que fosse deles - aquele que chamamos de "Palestina" - e ligar esse novo destino "nacional" a uma forma religiosa inédita que, em sua alma aberta e ardente, havia elaborado. Num mundo, porém, universalmente politeísta, ele preconizava que seu povo não devia se preocupar com os outros deuses, mas ligar-se a um só, de nome Javé, ao qual deveria permanecer para sempre e exclusivamente fiel, pois Ele protegeria Seu povo ainda frágil e asseguraria o sucesso de suas ambições territoriais e políticas. E para que esse Deus reservado aos hebreus permanecesse separado das outras inúmeras divindades veneradas pelos povos, não se devia tentar figurá-lo, representa-lo por meio de imagens ou estátuas: bastava saber que ele existia e daria a mão ao seu povo. Recorrendo a uma formalidade usual entre os antigos semitas, Moisés havia realizado e imaginado, entre Javé e seu povo, um verdadeiro pacto de Aliança: o povo se comprometia a permanecer ligado exclusivamente a seu deus, e esse último a apoiá-lo, contra ventos e marés.

Nova e admirável "invenção" de Moisés, decididamente à contracorrente de tudo o que se fazia em toda parte, o apego de seu povo ao seu deus não se manifestaria, como ocorria entre outros povos, inclusive mesopotâmios e outros semitas, por meio de um serviço de bens e provisões materiais - templos magníficos, roupas e ornamentos de valor, oferendas cotidianas e pluricotidianas de alimentos e outros subsídios -, mas unicamente pela conduta e obediência exclusiva, alienatória e total a uma espécie de "código moral", algo como aquele que a bíblia conservou para nós e que chamamos de "Decálogo":

Eu sou Javé seu Deus (...)/ Não tenha outros deuses além de mim./ Não faça para você ídolos (...)/Não se prostre diante desses deuses, nem sirva a eles, porque eu, Javé seu Deus, sou um Deus ciumento (...)/Não pronuncie em vão o nome de Javé seu Deus, porque Javé não deixará sem castigo aquele que pronunciar o nome dele em vão./ Lembre-se do dia de sábado, para santificá-lo./ Trabalhe durante seis dias e faça todas as suas tarefas./ O sétimo dia, porém, é o sábado de Javé seu Deus. (...)/Honre seu pai e sua mãe(...)/Não mate./ Não cometa adultério./ Não roube./ Não apresente testemunho falso contra o seu próximo./ Não cobice a casa do seu próximo, nem a mulher do próximo, nem o escravo, nem a escrava, nem o boi, nem o jumento, nem coisa alguma que pertença ao seu próximo. (Êxodo XX, 2-17)

Essa polarização ética de toda a atividade religiosa desenvolveu um sentimento agudo das obrigações de cada um, e do alcance delas. Num tempo em que o mundo - e muito menos esse povo alienado - ainda não estava, nem de longe, "desencantado" - e em que a religião acompanhava e recobria todo o campo da atividade humana, ainda mais entre aqueles que sentiam o "sobrenatural" tão profundamente mesclado à sua história - qualquer infração do "código moral" e daquilo que ele implicava, em detalhes, para além de suas grandes rubricas, qualquer transgressão, era estimada e julgada de saída em virtude do critério fundamental que a ligava à vontade de Deus e às obrigações para com Ele baseadas na Aliança e em seu pacto fundador. Conforme essa vontade e esse "código", tal ação era regular e própria do que Deus esperava de Seu povo; caso contrário, em qualquer que fosse o domínio da conduta, ela constituía antes de tudo um pecado, e era primeiramente por esse viés que suscitava reprovação e condenação.

A prioridade de um critério e de uma proscrição desse tipo foi, ao longo dos séculos, consideravelmente reforçada na consciência dos israelitas pela evolução de seu próprio destino e pela explicação que dela era dada pelos fiéis mais sobejos de Javé, aqueles que eram chamados de "profetas", por vocação renhidos defensores do integrismo religioso. Dilacerado, após um momento de glória, por terríveis dissensões internas e tristes fracassos políticos, o povo de Israel se via, o que era ainda pior, como vítima regular e impotente das impiedosas invasões conquistadoras empreendidas pelos formidáveis mesopotâmios. Ora, repetiam desafiadoramente os "profetas", isso tudo era apenas o castigo prometido por Javé às incessantes transgressões - é preciso dizer, humanamente inevitáveis - que os israelitas acumulvam contra seu Deus. Egoísmo e rapacidade de uns contra os outros, preferência pelos baixos prazeres da vida, maldades e atentados cada vez maiores, perversão do espírito para justificar a qualquer preço a má conduta, soberba e vaidade, desonestidade e injustiça, além de outros crimes, eram primeiramente condenados apenas por Deus, isto é, dito de outra maneira, como insultos e pecados dirigidos a esse tirano divino:

Ai daqueles que juntam casa com casa e emendam campo a campo, até que não sobre mais espaço e sejam os únicos a habitarem no meio do país./ (...) Ai daqueles que madrugam procurando bebidas fortes e se esquentam com o vinho até o anoitecer./ Em seus banquetes, eles têm harpas e liras, tambores e flautas, e vinho para suas bebedeiras (...)/ Ai dos que arrastam a culpa com cordas de bois, e o pecado com tirantes de uma carroça (...)/ Ai dos que dizem que o mal é bem, e o bem é mal, dos que transformam as trevas em luz e a luz em trevas, dos que mudam o amargo em doce e o doce em amargo!/ Ai dos que são sábios a seus próprios olhos e inteligentes diante de si mesmos!/ Ai dos que são fortes para beber vinho e valentes para misturar bebidas,/ Dos que absolvem o injusto a troco de suborno e negam fazer justiça ao justo! (Isaías 8-23)

Era esse o tom do discurso "profético", e pode-se compreender sem dificuldade como ele podia obliterar inteiramente o campo da consciência ao implantar nele a ideia central do pecado. Quaisquer que fossem os efeitos propriamente judiciários dos delitos e dos crimes da alçada do poder "civil" (a bíblia praticamente não aborda esse tema), a conduta tinha apenas um único juiz, supremo e sem recursos: Deus. E o peso, o perigo, o prejuízo, a abominação das más ações e dos crimes tinham menos importância que sua ignomínia essencial, a recusa de obedecer-lhe, que o obrigava, uma vez que Ele era absolutamente justo, a vingar-se sem falta, infligindo Ele mesmo a seus autores o castigo merecido: o infortúnio.

As coisas foram tão longe que um verdadeiro crime, aos nossos olhos, podia, comandado por Deus, ser tomado como uma ação admirável, heróica... É o sentido da história do assassinato de seu filho, exigido de Abraão por Deus: "Deus pôs Abraão à prova, e lhe disse (...)/ 'Tome seu filho, o seu único filho Isaac, a quem você ama, vá à terra de Moriá e ofereça-o aí em holocausto, sobre uma montanha que eu vou lhe mostrar!"' (Gênesis XXI, 1-2). É claro, como é dito com todas as letras, que Deus queria apenas "pôr à prova" a obediência e a devoção de Abraão, mas este partiu imediatamente, sem pestanejar, para executar essa ordem atroz, e se seu braço se deteve no final, no momento em que erguia a faca para matar o filho, não é menos verdade que ele havia aquiescido sem delongas, sem dizer palavra, sem hesitar, àquela ordem tão objetivamente criminosa.

Tudo se passa como se, na bíblia, do começo ao fim, a exclinica unidade de peso na balança das ações humanas houvesse sido, não o sentimento do "Direito", escrito ou não, mas a Vontade de Deus, desse ser pintado pela mitologia hebráica como um tirano divino, mesquinho, vaidoso, incoerente com seus próprios objetivos e também incompetente por criar uma raça de seres imperfeitos que mesmo incessantemente castigados, voltam a "ofender" e a cometer "crimes" pecando contra sua vontade; e como se, por mais terrível, inumano, odioso ou atroz que fosse, o crime houvesse assumido e conservado sua significação intrínseca de ato a ser condenado e evitado sobretudo a partir de sua qualidade de pecado.

Incorporada, por meio da mensagem do cristianismo, à própria raiz de nossa civilização, semelhante convicção pesou bastante na formação de nossa consciência e nesse extraordinário "senso do pecado" que a invadiu, ainda que se desvie com demasiada frequência na direção de um certo juridismo, tão distante da religiosidade autêntica...

História - Civilização Hebráica
Cosmogonia - , 
1/1/2021 6:08:06 PM | Por Pedro Pablo G. May
Simbolismos Celtas

Para os primitivos celtas, o mito suplantava a própria história. Em nenhuma outra sociedade se dava tão perfeita simbiose entre a realidade e a irrealidade, a narração e a fábula, o exotérico e o esotérico. Já o grego Estrabão, que  nasceu pouco antes de começar a nossa era, menciona os celtas na sua volumosa obra geográfica, baseando-se em escritos de anteriores historiadores clássicos, e faz menção à semelhança de ritos e costumes entre povos que, graças às  contínuas migrações daqueles tempos, geminavam as suas raças até chegar a uma  posterior simbiose.

Também cita algumas das suas peculiaridades, as quais fazem este povo primitivo mais atrativo do que outros muitos daquela época. Sabe-se, por exemplo, que os celtas adoravam as águas dos diferentes mananciais e consideravam sagradas todas as fontes. Em torno delas teceram variedade de lendas, algumas das quais sobreviveram até aos nossos dias.

Havia um deus das águas termais chamado Bormo, Borvo ou Bormanus -conceitos que têm o significado de "quente", daqui derivará Bourbon, ou "luminoso" e "resplandecente"-, com que era reconhecido também, em ocasiões, como o deus da luz. E o seu ancestral culto daria lugar à comemoração das célebres festas irlandesas -as "Baltené"-, que se  celebram no primeiro de Maio.

Muito freqüentemente, os heróis celtas consideravam-se filhos do rio Reno -pois da margem direita deste rio provinha essa etnia celta que invadiu a Gália, as  Ilhas Britânicas, Espanha, parte da Alemanha e a Itália e o vale do Danúbio-, dado que sentiam a necessidade de ser purificados pelo poder catártico da água.

Não obstante, a deidade mais peculiar das águas era Epona -assimilada do mundo grego, que sempre ia montada a cavalo, animal que o deus do mar, Posídon-, tinha feito surgir com o seu tridente, tal como ficava registrado na mitologia clássica, pelo qual também era considerada entre os celtas como uma deusa eqüestre. Havia também uma espécie de padroeira de mananciais e fontes à qual os galos denominavam Sirona.

Montanhas

É o galo, portanto, um povo de costumes ancestrais que introduz na história, talvez sem querer, o valor mágico da arte, dado que há mais de quinze mil anos representava nas paredes de ocultas covas uma série de estilizadas figuras que, na opinião de modernos investigadores da pré-história, estavam carregadas de simbolismo, e pelo menos especialmente ao representar o corpo de alguns animais, que lhes serviam de alimento, atravessados com flechas ou lanças como uma premonição mágica da sua posterior captura, pretendiam aproximar a realidade da sua imagem até identificar ambas.

Trata-se, portanto, de um povo que se caracteriza por introduzir nas suas legendárias epopéias, transmitidas habitualmente de forma oral, elementos mágicos e simbólicos que conformarão o mito do seu ancestral e da sua idiossincrasia, como raça e como etnia únicas. E, assim, os galos tinham uma concepção animista da natureza e da matéria -as coisas estão cheias de deuses e de demônios e têm vida- e, pelo mesmo motivo, consideravam sagradas as montanhas e, de forma especial, as suas cumeeiras e picos, onde se levavam a cabo rituais similares aos que se realizavam no Reno ao submergir nas suas águas os recém-nascidos; se o menino sobrevivia passava a ser filho legítimo dado que tinha um protetor, o rio Reno, comum a ele e ao seu progenitor. Algumas cumeeiras de montanhas eram consideradas como morada das deidades celtas e, nas suas cimeiras, se erigiam templos em honra aos deuses que melhor protegeriam estes lugares de silêncio e recolhimento.

Eram consideradas como deidades a Montanha Negra e algumas cumeeiras dos Pirineus. De resto, a semelhança com os lugares sagrados da mitologia clássica, tais como o Olimpo e o Parnaso, era evidente.

Bosques

Uma etnia, como a celta, que enchia as regiões em que habitava com infinidade de seres fantásticos, tais como fadas, gnomos, silfos, duendes e anões, tinha que conseguir lugares idôneos para o acomodo de semelhante figuras. E é assim como surge a preocupação e o respeito pela vegetação, pelas ervas, pelas árvores; o bosque erige-se em santuário celta, e as suas árvores -com as raízes procurando as profundidades da terra, e os ramos abrindo-se para o horizonte amplo do espaço exterior-, simbolizam a relação constante entre o que está abaixo e o que está acima, entre o imanente e o transcendente.

Seguindo o seu critério animista, os galos consideravam os seus bosques cheios de vida e, muito especialmente certas árvores, da família dos Quercus, que neles cresciam.

Entre estas, talvez o ritual mais oculto e eficaz fosse aquele das azinheiras, às quais se tinha um respeito religioso e transcendental, carregado de veneração. Era uma árvore bendita e, quando ardia, tinha a virtude de curar doenças. Talvez a tradição, que ainda dura, das fogueiras de São João tenha a sua origem em certos ritos celtas relacionados com a chama catártica da azinheira ao arder.

Simbolismo Vegetal

Aqueles que passassem pelo tronco oco das árvores do bosque seriam preservados de todas as doenças e todos os males. E, no caso do carvalho, tornava-se tão patente o seu caráter totêmico que era consagrado ao deus celta Dagda, que era uma deidade criadora que encarnava o princípio masculino, ao passo que o  princípio feminino era do Ágárico. Só os druídas -poderosos sacerdotes galos-, com as suas podadeiras de ouro e revestidos com túnicas brancas, numa cerimônia plena de pompa, podiam cortar e colher o agárico que crescia pegado aos carvalhos.

A cerimônia ia presidida por um ritual consistente em sacrificar touros brancos aos deuses; também o tecido onde se depositava o agárico podado devia ser branco. Havia também outras plantas que se utilizavam para curar as doenças contraídas por alguns animais e, para colhê-las, era necessário seguir um ritual consistente em utilizar somente a mão esquerda, jejuar e não olhar para a planta no momento de arrancá-la. Caso contrário, não surtiria o efeito desejado.

O carvalho, então, aparecia entre os celtas carregado de simbolismo e, pelo mesmo motivo, representava a boa acolhida, a tutela e o apoio.

Simbolismo Animal

Também os animais eram objeto de culto e veneração entre os galos. Alguns grupos tribais utilizavam o nome próprio de um determinado animal para, assim, mostrar-lhe a veneração e o culto devidos.

Por exemplo, a tribo dos "Tauriscí" recebia esse nome porque os seus componentes estavam considerados como "os homens e mulheres do Touro". Os "Deiotarus" pertenciam ao grupo do Touro deífico. Os "Lugdunum" eram chamados assim porque habitavam na colina do corvo. Os "Ruidiobus" apareciam associados com o javali e o cervo. A tribo dos "Artogenos" era um povo ligado à existência de animais como o urso. E até havia uma deusa que recebia o nome de "Artío", e aparecia representada com a figura de uma ursa.

A verdade é que existem numerosas representações artísticas que mostram a importância que, entre os celtas, adquiriria o totemismo animal. Existia também, uma abundante espécie de legislação não escrita, que é uma conseqüência direta desta consideração sagrada dos animais, pela qual os povoadores celtas se mostrarão escrupulosos à hora de conseguir os seus alimentos. Por exemplo, entre os celtas não se consumia carne de cavalo, dado que este era um dos animais considerados sagrado e exclusivamente destinados a trabalhos bélicos. Certos animais, como a lebre, eram utilizados pelos povoadores galos com fins relacionados com a predição profética e a visão futura. Também o frango, o galo e a galinha eram animais venerados pelos galos e a sua carne não podia comer-se.

Deidades Sanguinarias

O curioso é que, ao lado de tanto respeito pelos animais, os galos praticavam sacrifícios cruentos de seres humanos que ofereciam a umas deidades consideradas desapiadadas. Entre estes deuses cabe destacar Esus, Teutatés e Tarann; o primeiro deles era um deus lenhador, considerado como dono e senhor de campos e vidas. Era muito similar a um deus secundário do panteão clássico, especialmente do romano, que tinha os mesmos atributos que a deidade gala e que levava por nome Herus.

O segundo deles estava considerado como um deus relacionado com a população, com o povo, pois "Teutatés" guarda relação com uma palavra celta que significa povo.

Não parece, de resto, que tenha muito que ver com a existência de uma deidade sangüinária que exige vidas humanas.

O último dos três enumerados, Tarann -também chamado Taranis-, deriva o seu nome da palavra gala tarah, que significa "relâmpago", e estava considerado como o deus do fogo e das tempestades. Também aparecia, às vezes, como uma deidade relacionada com outros elementos essenciais diferentes do fogo, tais como a água, o ar e a terra, sobre os quais incidiria como uma espécie de princípio ativo.

Também foi relacionado com o conhecimento e a intuição, pelo qual não parece que seja um deus merecedor de semelhante barbaridade como era o sacrifício de vidas humanas.

Mitologia - Mitologia Celta
Agricultura - , 
1/1/2021 5:22:35 PM | Por Pierre Grimal
Origem camponesa da plebe romana

Com os progressos do poder romano, produziu-se rapidamente uma transformação social que teve como efeito modificar a distribuição da terra e criar uma aristocracia rural nas mãos da qual se concentrou uma grande parte da terra italiana. Esta evolução começou quando as gentes patrícias adquiriram a preponderância no Estado. Era inevitável tendo em conta a própria constituição da gens, que reunia um número considerável de pessoas sob a autoridade do "pai", o que colocava à sua disposição uma grande quantidade de mão-de-obra. Além disso, havia uma disposição legal que proibia que uma terra saísse da gens, o que assegurava a continuidade da propriedade. Pelo contrário, as terras pertencentes aos plebeus não eram atingidas por esta disposição, de tal modo que, progressivamente, as terras patrícias acabaram por prevalecer consideravelmente sobre as outras. Finalmente, como já dissemos, a propriedade privada compreendia uma porção relativamente fraca das terras nacionais; o resto pertencia ao domínio público, e não era diretamente admitido em exploração pelo Estado (pelo menos na prática mais corrente); era simplesmente ocupado, apenas a titulo de uso em benefício do explorador.

Compreende-se que este sistema fosse particularmente favorável às grandes gentes, ricas em homens e em rebanhos, e não beneficiasse em nada os cultivadores isolados, plebeus, sem outros auxiliares para além dos descendentes diretos e trabalhadores assalariados. Daí resultou um desequilíbrio que aumentou o poder do patriarcado à custa dos pequenos proprietários. Estes, vivendo do dia-a-dia, encontravam-se à mercê de uma má colheita e, como dispunham de pouco dinheiro, numa época em que a troca ainda era a base do negócio, viam-se obrigados a recorrer freqüentemente à empréstimos cuja taxa era tanto mais pesada quanto mais raro era o numerário na cidade. Muito rapidamente os juros atingiam e ultrapassavam o montante do capital. Infeliz do devedor que não pudesse libertar-se! Se os seus não o resgatassem, era vendido como escravo "para lá do Tibre", isto é, em terra etrusca, e nunca mais teria oportunidade de regressar à pátria. Para evitar tal infortúnio, o pequeno proprietário endividado servia-se do último recurso: vender a terra ao credor, cujo domínio ia assim aumentando; o camponês despojado vinha então instalar-se na cidade e tentava subsistir exercendo pequenos ofícios, entre a plebe urbana. E foi assim, em boa parte, que esta se formou. No principio das perturbações que marcaram os primeiros séculos da República encontra-se uma verdadeira crise agrária. Já dissemos quais foram as conseqüências: a formação de uma plebe consciente da sua força, das concessões lentamente arrancadas aos patrícios sob a ameaça de seqüestro e, finalmente, o desaparecimento dos quadros arcaicos da cidade, o acesso ao poder de homens novos e a laicização da vida pública.

Um fato ilustra bem o sentido desta origem camponesa da plebe. É significativo que a primeira organização da plebe se tenha formado em volta do templo da deusa Ceres, antiga divindade latina que presidia ao crescimento do trigo. Este templo, erguido nas proximidades do Aventino, a saída do vale do Circo Máximo (segundo todas as probabilidades, no local onde atualmente se encontra a Igreja de Santa Maria in Cosmédin), sucedia a um culto instalado neste local por imigrantes latinos, camponeses para ali transplantados depois da guerra e que se mantiveram fiéis à sua primeira protetora. Assim, não surpreende verificar que, durante toda a história de Roma, esta plebe urbana recorde (de forma mais ou menos viva e consciente) o tempo em que vivia livremente no campo, e exija que os seus defensores lhe coloque terras à disposição, votando leis agrárias.

A evolução que marcara a fisionomia do Lácio atingiu igualmente o resto da Itália, onde também se produziu uma certa concentração da propriedade. Muitas vezes, nas nações conquistadas por Roma, a burguesia local recorrera a Roma para se defender contra o partido popular e, em vez de sofrer com o novo regime, aproveitara para consolidar a sua posição. É o que se verifica, por exemplo, na Campânia. Ao lado dos antigos proprietários, os Romanos instalavam na região conquistada colonos romanos, muitas vezes antigos soldados, que partilhavam os melhores terrenos. Os restantes eram divididos em duas partes: uma era considerada ager publicus, isto é, propriedade coletiva, inalienável, do Estado romano, a outra era devolvida aos indígenas, por meio de venda ou aluguel. As partes não cultivadas até então eram abandonadas a quem as quisesse trabalhar, como outrora acontecera no Lácio. Estas medidas tinham por efeito permitir a sobrevivência do campesinato local, ao lado do campesinato formado pelos colonos romanos e seus descendentes. Quanto ao ager publicus, era geralmente ocupado, em virtude de um direito de utilização, pelos grandes senhores romanos, e também pelos grandes proprietários locais que assim constituíam latifundia, vastos domínios onde os escravos criavam rebanhos.

História - Civilização Romana
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1/1/2021 2:46:23 PM | Por Douglas Palmer
Antropologia Evolucionista

O século XVI descobre e explora espaços até então des­conhecidos e tem um discurso selvagem sobre os habitantes que povoam esses espaços. Após um parêntese no século XVII, esse discurso se organiza no século XVIII: ele é “iluminado” à luz dos filósofos, e a viagem se torna “viagem filosófica”. Mas a pri­meira — a grande — tentativa de unificação, isto é, de instaura­ção de redes entre esses espaços, e de reconstituição de tempo­ralidades é incontestavelmente obra do século XIX. Esse século XIX, hoje tão desacreditado, realiza o que antes eram apenas empreendimentos programáticos. Dessa vez, é a época duran­te a qual se constitui verdadeiramente a antropologia enquanto disciplina autónoma: a ciência das sociedades primitivas em to­das as suas dimensões (biológica, técnica, econômica, política, religiosa, linguística, psicológica...) enquanto que, notamo-lo, em se tratando da nossa sociedade, essas perspectivas estão se tornando individualmente disciplinas particulares cada vez mais especializadas.

Com a revolução industrial inglesa e a revolução política francesa, percebe-se que a sociedade mudou e nunca mais voltará a ser o que era. A Europa se vê confrontada a uma conjun­tura inédita. Seus modos de vida e suas relações sociais sofrem uma mutação sem precedente. Um mundo está terminando, e um outro está nascendo. Se o final do século XVIII começava a sentir essas transformações, ele reagia ao enigma colocado pela existência de sociedades que tinham permanecido fora dos pro­gressos da civilização, trazendo uma dupla resposta abandonada pela do século que nos interessa agora:

— resposta que confia nas vantagens da civilização e con­sidera totalmente estranhas a ela própria todas essas formas de existência que estão situadas fora da história e da cultura (de Pauw, Hegel);

— mas sobretudo resposta preocupada, que se expressa na nostalgia do antigo que ainda subsiste noutro lugar: o estado de felicidade do homem num ambiente protetor situa-se do lado do “estado de natureza”, enquanto que a infelicidade está do lado da civilização (Rousseau).

Ora, no século XIX o contexto geopolítico é totalmente novo: é o período da conquista colonial, que desembocará em especial na assinatura, em 1885, do Tratado de Berlim, que rege a partilha da África entre as potências europeias e põe um fim às soberanias africanas.

É no movimento dessa conquista que se constitui a antro­pologia moderna, o antropólogo acompanhando de perto, os passos do colono. Nessa época, a África, a índia, a Austrália, a Nova Zelândia passam a ser povoadas de um nú­mero considerável de emigrantes europeus; não se trata mais de alguns missionários apenas, e sim de administradores. Uma rede de informações se instala. São os questionários enviados por pesquisadores das metrópoles (em especial da Grã-Bretanha) para os quatro cantos do mundo, e cujas respostas constituem os materiais de reflexão das primeiras grandes obras de antropo­logia que se sucederão em ritmo regular durante toda a segunda metade do século. Em 1861, Maine publica Ancient law; em 1861, Bachofen, Das Mutterrecht; em 1864, Fustel de Coulanges, La cité antique; em 1865, MacLennan, O casamento pri­mitivo; em 1871, Tylor, A cultura primitiva; em 1877, Morgan, A sociedade antiga; em 1890, Frazer, os primeiros volumes do Ramo de ouro.

Todas essas obras, que têm uma ambição considerável — seu objetivo não é nada menos que o estabelecimento de um verdadeiro corpus etnográfico da humanidade — caracterizam-se por uma mudança radical de perspectiva em relação à época das “luzes”: o indígena das sociedades extra europeias não é mais o selvagem do século XVIII, tornou-se o primitivo, isto é, o an­cestral do civilizado, destinado a reencontrá-lo. A colonização atuará nesse sentido. Assim a Antropologia, conhecimento do primitivo, fica indissociavelmente ligada ao conhecimento da nossa origem, isto é, das formas simples de organização social e de mentalidade que evoluíram para as formas mais complexas das nossas sociedades.

Procuremos ver mais de perto em que consiste o pensa­mento teórico dessa antropologia que se qualifica de evolucionista. Existe uma espécie humana idêntica, mas que se desen­volve (tanto em suas formas tecnoeconômicas como nos seus aspectos sociais e culturais) em ritmos desiguais, de acordo com as populações, passando pelas mesmas etapas, para alcançar o nível final que é o da “civilização”. A partir disso, convém pro­curar determinar cientificamente a sequência dos estágios des­sas transformações.  O evolucionismo encontrará sua formulação mais siste­mática e mais elaborada na obra de Morgan e particularmente em Ancient society, que se tornará o documento de referência adotado pela imensa maioria dos antropólogos do final do século XIX, bem como na lei de Haeckel. Enquanto para De Pauw ou Hegel as populações “não civilizadas” são aquelas que, além de se situarem enquanto espécies fora da História, não têm história em sua existência individual (não são crianças que se tornaram adultos atrasados, e sim crianças que permanecerão inexoravel­mente crianças), Haeckel afirma rigorosamente o contrário: a ontogênese reproduz a filogênese; ou seja, o indivíduo atravessa as mesmas fases que a história das espécies. Disso decorre a identificação — absolutamente incontestada tanto pela primeira geração de marxistas quanto pelo fundador da psicanálise — dos povos primitivos aos vestígios da infância da humanidade?

O que é também muito característico dessa Antropolo­gia do século XIX, que pretende ser científica, é a considerável atenção dada: 

  • a essas populações que aparecem como sendo as mais “arcaicas” do mundo: os aborígines australianos;
  • ao estudo do “parentesco”;
  • ao estudo da religião. Parentesco e religião são, nessa época, as duas grandes áreas da Antropologia, ou, mais especificamente, as duas vias de acesso privilegiadas ao conhecimento das sociedades não ocidentais; elas permane­cem ainda, notamo-lo, os dois núcleos resistentes da pesquisa dos antropólogos contemporâneos.

1) A Austrália ocupa um lugar de primeira importância na própria constituição da nossa disciplina (cf. Elkin, 1967), pois é lá que se pode apreender o que foi a origem absoluta das nossas próprias instituições.

2) No estudo dos sistemas de parentesco, os pesquisa­dores dessa época procuram principalmente evidenciar a ante­rioridade histórica dos sistemas de filiação matrilinear sobre os sistemas patrilineares. Por deslize do pensamento, imagina-se um matriarcado primitivo, ideia que exerceu tal influência que ainda hoje alguns continuam inspirando-se nela [cf em especial Evelyn Reed, Feminismo e antropologia, (trad. francesa 1979), um dos textos de referência do movimento feminista nos Esta­ dos Unidos].

3) A área dos mitos, da magia e da religião deterá mais nossa atenção, pois parece-nos reveladora ao mesmo tempo da abordagem e do espírito do evolucionismo. Notemos em pri­meiro lugar que a maioria dos antropólogos desse período, ab­solutamente confiantes na racionalidade científica triunfante, são não apenas agnósticos mas também deliberadamente antir-religiosos. Morgan, por exemplo, não hesita em escrever que “todas as religiões primitivas são grotescas e de alguma forma ininteligíveis”, c Tylor deve parte de sua vocação a uma reação visceral contra o espiritualismo de seu meio. Mas é certamente o Ramo de ouro, de Frazer (trad. fr. 1981-1984), que realiza a melhor síntese de todas as pesquisas do século XIX sobre as “crenças” e “superstições”.

Nessa obra gigantesca, publicada em doze volumes, de 1890 a 1915, e que é uma das obras mais célebres de toda a li­teratura antropológica, Frazer retraça o processo universal que conduz, por etapas sucessivas, da magia à religião, e depois, da religião à ciência. “A magia”, escreve Frazer, “representa uma fase anterior, mais grosseira, da história do espírito humano, pela qual todas as raças da humanidade passaram, ou estão passando, para dirigir-se para a religião e a ciência”. Essas crenças dos povos primitivos permitem compreender a origem das “sobrevivências” (termo forjado por Tylor) que continuam existindo nas sociedades civilizadas. Como Hegel, Frazer con­sidera que a magia consiste num controle ilusório da natureza, que se constitui num obstáculo à razão. Mas, enquanto para Hegel, a primeira é um impasse total, Frazer a considera como religião em potencial, a qual dará lugar por sua vez à ciência que realizará (e está até começando a realizar) o que tinha sido imaginado no tempo da magia. 

O pensamento evolucionista aparece, da forma como po­demos vê-lo hoje, como sendo ao mesmo tempo dos mais sim­ples e dos mais suspeitos, e as objeções de que foi objeto podem organizar-se em torno de duas séries de críticas:

1 ) mede-se a importância do “atraso” das outras socieda­des destinadas, ou melhor, compelidas a alcançar o pelotão da frente, em relação aos únicos critérios do Ocidente do século XIX, o progresso técnico e econômico da nossa sociedade sendo considerado como a prova brilhante da evolução histórica da qual procura-se simultaneamente acelerar o processo e reconsti­tuir os estágios. Ou seja, o “arcaísmo” ou a “primitividade” são menos fases da História do que a vertente simétrica e inversa da modernidade do Ocidente, o qual define o acesso entusiasmante à civilização em função dos valores da época: produção econô­mica, religião monoteísta, propriedade privada, família monogâmica, moral vitoriana,

2 ) para o pesquisador, efetuando de um lado a definição de seu objeto de pesquisa através do campo empírico das socie­dades ainda não ocidentalizadas, e, de outro, identificando-se às vantagens da civilização à qual pertence, o evolucionismo aparece logo como a justificação teórica de uma prática: o colo­nialismo. Livingstone, missionário que, enquanto branco, isto é, civilizado, não dissocia os benefícios da técnica e os da religião, pode exclamar: “Viemos entre eles enquanto membros de uma raça superior e servidores de um governo que deseja elevar as partes mais degradadas da família humana”.

A antropologia evolucionista, cujas ambições nos pare­cem hoje desmedidas, não hesita em esboçar em grandes traços afrescos imponentes, através dos quais afirma com arrogância julgamentos de valores sem contestação possível. A convicção da marcha triunfante do progresso é tal que, juntando e inter­pretando fatos provenientes do mundo inteiro (à luz justamente dessa hipótese central), julga-se que será possível extrair as leis universais do desenvolvimento da humanidade. Assim, encontramo-nos frente a reconstituições conjunturais que têm, pelo volume dos fatos relatados, a aparência de um corpus científico, mas assemelham-se muito, na realidade, à filosofia do século anterior, a qual não tinha porém a preocupação de fundamentar sua reflexão na documentação enorme que será pela primeira vez reunida pelos homens do século XIX.

Essa preocupação de um saber cumulativo visa na reali­dade demonstrar a veracidade de uma tese mais do que verificar uma hipótese, os exemplos etnográficos sendo frequentemen­te mobilizados apenas para ilustrar o processo grandioso que conduz as sociedades primitivas a se tornarem sociedades ci­vilizadas. Assim, esmagados sob o peso dos materiais, os evolucionistas consideram os fenômenos recolhidos (o totemismo, a exogamia, a magia, o culto aos antepassados, a filiação matrilinear...) como costumes que servem para exemplificar cada estágio. E quando faltam documentos, alguns (Frazer) fazem por intuição a reconstituição dos elos ausentes; procedimento absolutamente oposto ao da etno­grafia contemporânea, que procura, por meio da introdução de fatos minúsculos recolhidos em uma única sociedade, analisar a significação e a função das relações sociais.

Isso colocado, é fácil — e até irrisório — desacreditar hoje todo o trabalho que foi realizado pelos pesquisadores — eruditos da época evolucionista. Não custa muito denunciar o etnocentrismo que eles demonstraram em relação aos “povos atrasados”, evidenciando assim também um singular espírito a-histórico — e etnocentrisía — em relação a eles, sendo que provavelmente, sem essa teoria, empenhada em mostrar as eta­pas do movimento da humanidade (teoria que deve ser ela pró­pria considerada como uma etapa do pensamento sociológico), a antropologia no sentido no qual a praticamos hoje nunca teria nascido.

Claro, nessa época o antropólogo raramente recolhe ele próprio os materiais que estuda e, quando realiza um trabalho de coleta direta, é antes no decorrer de uma expedição que visa tra­zer informações, do que de estadias que tenham por objetivo o de impregnar-se das categorias mentais dos outros. O que importa nessa época não é de forma alguma a problemática de etnografia enquanto prática intensiva de conhecimento de uma determinada cultura, mas a tentativa de compreensão, a mais extensa possí­vel no tempo e no espaço, de todas as culturas, em especial das “mais longínquas” e das “mais desconhecidas”, como diz Tylor.

Não poderíamos finalmente criticar esses pesquisadores da segunda metade do século XIX por não terem sido especia­listas no sentido atual da palavra (especialistas de uma pequena parte de uma área geográfica ou de uma microdisciplina de um eixo temático). Eles se recusavam a atuar dessa forma, julgando que observadores conscienciosos, guiados a distância por cien­tistas preocupados em criticar fontes, eram capazes de recolher todos os materiais necessários, e sobretudo considerando im­plicitamente que a antropologia tinha tarefas mais urgentes a realizar do que um estudo particular em tal ou tal sociedade. De fato, eles não tinham nenhuma formação antropológica (Maine, MacLennan, Bachofen e Morgan são juristas; Bastian é médico; Ratzel, geógrafo), mas como poderíamos criticá-los por isso, já que eles foram precisamente os fundadores de uma disciplina que não existia antes deles?

Em suma, o que me parece eminentemente característi­co desse período é a intensidade do trabalho que realizou, bem como sua imensa curiosidade. Durante o século XIX, assistimos à criação das sociedades científicas de etnologia, das primeiras cadeiras universitárias, e, sobretudo, dos museus como o que foi fundado no palácio do Trocadero em 1879 e que se tornará o atual Museu do Homem. É até difícil imaginar hoje em dia a abrangência dos conhecimentos dos principais representan­tes do evolucionismo. Tylor possuía um conhecimento perfeito tanto da pré-história da linguística, quanto do que chamaríamos hoje de “antropologia social e cultural” do seu tempo. Ele dedi­cava os mesmos esforços ao estudo das áreas da tecnologia, do parentesco ou da religião. Frazer, em contato epistolar perma­nente com centenas de observadores morando nos quatro cantos do mundo, trabalhou doze horas por dia durante sessenta anos, dentro de uma biblioteca de 30 mil volumes. A obra que ele próprio produziu estende-se, como diz Leach (1980), em quase dois metros de estantes.

Através dessa atividade extrema, esses homens do século passado colocavam o problema maior da antropologia: explicar a universalidade e a diversidade das técnicas, das instituições, dos comportamentos e das crenças, comparar as práticas sociais de populações infinitamente distantes uma das outras tanto no espaço como no tempo. Seu mérito é de ter extraído (mesmo se o fizeram com dogmatismo, mesmo se suas convicções fossem mais passionais do que racionais) essa hipótese mestra sem a qual não haveria antropologia, mas apenas etnologias regionais: a unidade da espécie humana, ou, como escreve Morgan, da “família humana”. Pode-se sorrir hoje diante dessa visão grandio­sa do mundo, baseada na noção de uma humanidade integrada, dentro da qual concorrem em graus diferentes, mas para chegar a um mesmo nível final, as diversas populações do globo. Mas são eles que mostraram pela primeira vez que as disparidades culturais entre os grupos humanos não eram de forma alguma a consequência de predisposições congênitas, mas apenas o re­sultado de situações técnicas e econômicas. Assim, uma das ca­racterísticas principais do evolucionismo — será que isso foi suficientemente destacado? — é o seu antirracismo.

Até Morgan (eu teria vontade de dizer sobretudo Morgan) não tem a rigidez doutrinal que lhe é retroativamente atribuída. Com ele, o objeto da antropologia passa a ser a análise dos processos de evolução que são os das ligações entre as relações sociais, jurídicas, políticas... a ligação entre esses diferentes as­pectos do campo social sendo em si característica de um de­ terminado período da história humana. A novidade radical da sociedade arcaica é dupla.

1) Essa obra toma como objeto de estudo fenômenos que até então não diziam respeito à História, a qual, para Hegel, só podia ser escrita. Qualificando essas sociedades de “arcaicas”, Morgan as reintegra pela primeira vez na humanidade inteira; e como destaque sendo colocado sobre o desenvolvimento mate­rial, o conhecimento da história começa a ser posto sobre bases totalmente diferentes das do idealismo filosófico.

2) Os elementos da análise comparativa não são mais, a partir de Morgan, costumes considerados bizarros, e sim redes de interação formando “sistemas”, termo que o antropólogo estadunidense  utiliza para as relações de parentesco.

Não há, como mostrou Kuhn, conhecimento cien­tífico possível sem que se constitua uma teoria servindo de “paradigma”, isto é, de modelo organizador do saber, e a teoria da evolução teve incontestavelmente, no caso, um papel deci­sivo. Foi ela que deu seu impulso à antropologia. O paradoxo (aparente, pois o conhecimento científico se dá sempre mais por descontinuidades teóricas do que por acumulação), é que a antropologia só se tornará científica (no sentido que enten­demos) introduzindo uma ruptura em relação a esse modo de pensamento que lhe havia no entanto aberto o caminho.

Ciências humanas - Antropologia
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12/30/2020 12:03:16 PM | Por Fabianna Zanni
Mochicas: Gigantes da América

1947, O norueguês Thor Heyerdahl, a bordo de uma balsa de troncos batizada de Kon-Tiki, lança-se do litoral peruano em direção à Polinésia. Seu objetivo: provar que os indígenas sul-americanos era capazes de cruzar o oceano e chegar a lugares muito distantes. O antropólogo havia observado que os ventos e as correntes marítimas fluíam do leste para o oeste, levando em consideração as similaridades culturais, propôs que os primeiros habitantes da Polinésia chegaram lá vindos da América do Sul. Na época, a maioria dos especialistas fazia pouco caso do projeto. Para provar sua teoria, Heyerdahl construiu uma balsa de madeira semelhante à utilizada pelos mochicas e, junto com cinco tripulantes, percorreu em 101 dias quase 7 mil quilômetros no oceano Pacífico, entre o Peru e Raroia, na Polinésia. A expedição do explorador, arqueólogo se tornou lendária e seu autor, que faleceu em 2002, aos 87 anos, virou um herói nacional não apenas na Noruega, mas no imaginário de todos que possuem um espírito aventureiro.

Desde então, os mochicas foram vistos com outros olhos pelos pesquisadores. Essa antiga civilização peruana estendeu-se entre o primeiro e o sétimo século da era cristã (100 e 700). No seu auge, cerca de 50 mil mochicas  viveram e cultivaram os férteis vales andinos de Pacasmayo, Chicama, Moche e Virú, trabalho facilitado pelas cheias periódicas dos rios.

Irrigação, aliás, era um de seus pontos fortes. Graças a métodos engenhosos de construção de reservatórios, canais e aquedutos, que deixavam a terá propícia ao cultivo, a população cresceu e a civilização floresceu. Só para se ter uma idéia, no vale do Chacama há sinais de canais de irrigação de 120 quilômetros e, em Ascope, aquedutos de 1,4 mil metros de comprimento e 15 metros de altura.

Com a água farta, os 355 quilômetros da de costa resultavam em safras grandes e variadas de frutas e legumes, como milho, abóbora, amendoim e feijão. A caça também era abundante e peixes dos rios e do mar completavam o cardápio.

 

Deus sacrificador

Os mochicas cultuavam o deus Ai-Apaec (todo-poderoso, na língua mochica), também conhecido como El Degollador em espanhol. Figura  comum entre as culturas andinas, foi elevado ao posto de divindade máxima entre os mochicas por volta do ano 50. Foi quando uma classe de sacerdotes-guerreiros tomou o poder, criando uma confederação de cidades-estado que dominou um território de 400 quilometros de extensão. Assim como os faraós do Egito, os sacerdotes reivindicavam para si o status de divindade e usavam o terror religioso como instrumento de poder político.

 

Sociedade de classes

A sociedade mochica era patriarcal e as mulheres dedicavam-se às tarefas domésticas. Boa parte da população era formada por camponeses, mas as pinturas dos artefatos encontrados descrevem uma sociedade dividida em várias classes, formada por militares, nobres e praticantes de vários ofícios, como ourives e oleiros. Acima desta hierarquia quem brilhava eram os soberanos e sacerdotes.

 

Gigantes da América

Em 2001, depois de 35 anos escavando vestígios de civilizações perdidas no Peru, o arqueólogo estadunidense, Christopher Donnan, da Universidade da Califórnia, em Los Angeles, foi recompensado por sua persistência. Em uma pirâmide  de 32 metros de altura camada Dos Cabezas, perto de Chiclayo, localizada ao norte do país, encontrou três túmulos pertencentes à nobreza mochica do período inicial da civilização (provavelmente a partir do ano 50 d.e.c.), época em que este povo começou a se organizar politicamente em cidades-estado, 14 séculos antes do império inca.

A excitação dos pesquisadores é justificada: foram os primeiros túmulos encontrados deste período. Todos repletos de objetos de cerâmica, tecidos e jóias confeccionadas em ouro e prata. A descoberta é fruto de três anos de escavações patrocinadas pela National Geographic Society.

Além da excelência em ourivesaria, os pesquisadores ficaram surpresos com a estatura elevada dos membros da elite mochica. É que os esqueletos encontrados possuem cerca de 1,80m, o que possivelmente os torna os indivíduos mais altos já encontrados em escavações na América do Sul.

Um ano depois, em 2002, novo achado: seis câmaras funerárias, com restos de 60 pessoas pertencentes à cultura, foram encontradas na cidae de Chepén, no norte do Perú. O líder da equipe, o arqueólogo Luis Castillo, responsável pela pesquisa esde 1991, comentou na época que as câmaras pertencem ao período de transição ( de 800 a 950 d.e.c.), quando o império mochica estava em franca decadência.

História - Civilização Moche
Epistemologia - Teoria, Conceito de humanidade
12/28/2020 5:27:01 PM | Por Gregory J. Feist, Jess Feist, Tomi-Ann Roberts
Conceito de humanidade para teoria de George Kelly

Kelly tinha uma visão essencialmente otimista da natureza humana. Ele via as pessoas como antecipando o futuro e vi­vendo de acordo com essas previsões. As pessoas são capazes de mudar seus construtos pessoais em qualquer época da vida, porém essas mudanças raramente são fáceis. O coro­lário de modulação de Kelly sugere que os construtos são permeáveis ou resilientes, significando que novos elemen­tos podem ser admitidos. Nem todas as pessoas, no entan­to, possuem construtos igualmente permeáveis. Algumas aceitam as experiências novas e reestruturam suas interpretações de acordo com elas, enquanto outras possuem cons­trutos concretos que são muito difíceis de alterar. Todavia, Kelly era bastante otimista na crença de que as experiências terapêuticas podem ajudar as pessoas a terem vidas mais produtivas. Na dimensão do determinismo versus livre-arbítrio a teo­ria de Kelly pende para o segundo tópico. Dentro de nosso sistema de construtos pessoais, somos livres para fazer uma escolha (Kelly, 1980). Escolhemos entre alternativas em um sistema de construtos que nós mesmos construímos. Fazemos essas escolhas com base em nossa antecipação dos eventos. Porém, mais do que isso, escolhemos as alternativas que pa­recem nos oferecer a maior oportunidade de elaboração de nosso sistema antecipatórío. Kelly se referiu a essa visão como escolha elaborativa; ou seja, ao fazer escolhas atuais, olha­mos em frente e optamos pela alternativa que irá aumentar nosso âmbito de escolhas futuras.

Kelly adotou uma visão teleológica, em oposição a uma visão causal da personalidade humana. Ele insistia em que os eventos da infância per se não moldam a personalidade atual. [390]

Nossa construção presente de experiências passadas pode ter alguma influência sobre o comportamento presente, mas a influência dos eventos passados é bastante limitada. A perso­nalidade muito, mais provavelmente, será guiada por nossa antecipação dos eventos futuros. O postulado fundamental de Kelly - aquele sobre o qual se baseiam todos os corolários e pressupostos - é que toda atividade humana está direcionada pela forma como antecipamos os eventos (Kelly, 1955). Não pode haver dúvida, então, de que a teoria de Kelly é essencial­mente teleológica.

Kelly enfatizou os processos conscientes mais do que os inconscientes. Contudo, ele não destacou a motivação cons­ciente, porque a motivação não desempenha um papel na teoria dos construtos pessoais. Kelly fala de níveis de cons­ciência cognitiva. Níveis de consciência altos referem-se aos processos psicológicos facilmente simbolizados em palavras e que podem ser expressos com precisão para outras pessoas. Os processos de nível baixo são simbolizados de forma incom­pleta e são difíceis ou impossíveis de comunicar.

As experiências podem ocorrer em níveis de consciência baixos por várias razões. Primeiro, alguns construtos são pré-verbais, porque eles são formados antes que a pessoa tenha adquirido uma linguagem significativa e, portanto, não po­dem ser simbolizados mesmo para a própria pessoa. Segun­do, algumas experiências estão em nível de consciência baixo porque a pessoa vê apenas as semelhanças e não consegue fazer contrastes significativos. Por exemplo, interpretação de que todos os indivíduos são confiáveis. No entanto, o polo im­plícito da inconfiabilidade é negado. Como o sistema de cons­truções superordenado da pessoa é rígido, ela não consegue adotar um construto realista de confiável/inconfiável e tende a ver as ações dos outros como completamente confiáveis. Terceiro, alguns construtos subordinados podem permane­cer em um nível de consciência baixo quando os construtos superordenados estão mudando. Por exemplo, mesmo depois que uma pessoa percebe que nem todos são confiáveis, ela pode se mostrar relutante em interpretar um indivíduo em particular como pouco confiável. Essa hesitação significa que um construto subordinado ainda não alcançou um superorde­nado. Por fim, como alguns eventos podem se encontrar fora do âmbito de conveniência de uma pessoa, certas experiên­cias não se tornam parte do sistema de construtos daquela pessoa. Por exemplo, processos involuntários, como o bati­mento cardíaco, a circulação sanguínea, o piscar dos olhos e a digestão, tendem a estar fora do âmbito de conveniência; e, em geral, a pessoa não está consciente deles.

Na questão das influências biológicas versus sociais, Kelly estava mais inclinado para as sociais. Seu corolário da socia­bilidade pressupõe que, até certo ponto, somos influenciados pelos outros e temos algum impacto sobre eles. Quando in­terpretamos com exatidão as construções de outra pessoa, podemos desempenhar um papel em um processo social que envolve essa outra pessoa. Kelly assumia que nossa interpre­tação dos sistemas de construção de outras pessoas importan­tes (como pais, cônjuge e amigos) pode ter alguma influên­cia sobre nossas construções futuras. Lembre-se de que, na terapia de papel fixo, os pacientes adotam a identidade de uma pessoa fictícia; e, experimentando esse papel em vários contextos sociais, eles podem vivênciar alguma mudança em seus construtos pessoais. Entretanto, as ações dos outros não moldam seu comportamento; em vez disso, é sua interpreta­ção dos eventos que altera seu comportamento.

Na dimensão final para uma concepção da humanidade - singularidade versus semelhanças -, Kelly enfatizou a singu­laridade da personalidade. Essa ênfase, contudo, foi tempera­da por seu corolário da comunalidade, que pressupõe que as pessoas de mesma origem cultural tendem a apresentar alguns dos mesmos tipos de experiências e, portanto, interpre­tam os eventos de forma similar. No entanto, Kelly sustentava que nossas interpretações individuais dos eventos são cruciais e que não existem duas pessoas que tenham exatamente os mesmos construtos pessoais. [391]

Psicologia - Teoria dos construtos pessoais
Epistemologia - Teoria, Classificação da teoria
12/28/2020 5:14:47 PM | Por Gregory J. Feist, Jess Feist, Tomi-Ann Roberts
Classificação da Teoria dos construtos pessoais

A maior parte da carreira profissional de Kelly foi passada trabalhando com universitários relativamente normais e inteligentes. É compreensível, assim, que a teoria de Kelly parece mais aplicável a essas pessoas. Ele não fez tentativas de elucidar as experiências infantis precoces (como Freud) ou a maturidade e a velhice (como Erikson). Para Kelly, as pessoas vivem unicamente no presente, com um olhar sempre no futuro. Tal visão, embora um tanto otimista, não explica as influências do desenvolvimento e da cultura na personalidade.

Como a teoria de Kelly se classifica nos seis critérios de uma teoria útil? Primeiro, a teoria dos construtos pessoais recebe uma classificação de moderada a forte na quanti­dade de pesquisa que ela gerou. O Teste Rep e a grade de [389] repertórios possibilitaram um número considerável de estudos, em especial na Grã-Bretanha, embora esses instru­mentos sejam usados com menos frequência pelos psicólo­gos nos Estados Unidos.

Segundo, apesar da parcimônia relativa do postulado básico de Kelly e dos 11 corolários de apoio, a teoria não se presta facilmente à verificação ou à refutação. Portanto, classificamos a teoria dos construtos pessoais como baixa em refutabilidade.

Terceiro, a teoria dos construtos pessoais organiza o conhecimento acerca do comportamento humano? Confor­me esse critério, a teoria deve ser classificada como baixa. A noção de Kelly de que nosso comportamento é consis­tente com nossas percepções correntes ajuda a organizar o conhecimento, porém sua esquiva dos problemas de mo­tivação, das influências do desenvolvimento e das forças culturais limita a capacidade de sua teoria de atribuir signi­ficados espedficos a muito do que é hoje sabido acerca da complexidade da personalidade.

Quarto, classificamos a teoria como baixa quanto a ser um guia para a ação. As idéias de Kelly sobre psicoterapia são inovadoras e sugerem ao praticante algumas técnicas interessantes. Desempenhar o papel de uma pessoa fictí­cia, alguém que o paciente gostaria de conhecer, é, na ver­dade, uma abordagem incomum e prática da terapia. Kelly baseava-se fortemente no bom senso nessa prática tera­pêutica, e o que funcionava para ele poderia não funcionar para outra pessoa. Entretanto, tal disparidade seria bastan­te aceitável para Kelly, porque ele via a terapia como um experimento científico. O terapeuta é como um cientista, usando a imaginação para testar uma variedade de hipóte­ses: ou seja, experimentar novas técnicas e explorar formas alternativas de olhar para as coisas. No entanto, sua teo­ria oferece poucas sugestões específicas a pais, terapeutas, pesquisadores e outros que estão tentando compreender o comportamento humano.

Quinto, a teoria tem coerência interna, com um con­junto de termos definidos operacionalmente? Na primeira parte dessa pergunta, a teoria dos construtos pessoais se classifica como muito alta. Kelly era muito cuidadoso em escolher termos e conceitos para explicar seu postulado fundamental e os 11 corolários. Sua linguagem, embora um tanto difícil, é sofisticada e precisa. A psicologia dos construtos pessoais (Kelly, 1995) contém mais de 1.200 páginas, porém toda a teoria é estruturada como um te­cido finamente tramado. Kelly parecia estar constante­mente consciente do que ele já havia dito e do que iria dizer. De acordo com a segunda parte desse critério, a teo­ria dos construtos pessoais é insuficiente, porque, como a maioria dos teóricos, Kelly não defi­niu seus termos de modo operacional. No entanto, ele foi exemplar em escrever definições abrangentes e exatas de quase todos os termos usados no postulado básico e nos corolários de apoio.

Por fim, a teoria é parcimoniosa? Apesar da extensão do livro de Kelly em dois volumes, a teoria dos construtos pessoais é excepcionalmente simples e econômica. A teoria básica é expressa em um postulado fundamental e, então, elaborada por meio de 11 corolários. Todos os demais con­ceitos e pressupostos podem ser relacionados com facilida­de a essa estrutura relativamente simples. [390]

Psicologia - Teoria dos construtos pessoais
Pesquisas - Pesquisas relacionadas, 
12/28/2020 4:44:17 PM | Por Gregory J. Feist, Jess Feist, Tomi-Ann Roberts
Pesquisas relacionadas à Teoria dos construtos pessoais

Muito embora George Kelly tenha escrito apenas um tra­balho pioneiro (1955, 1991), seu impacto na psicologia da personalidade é marcante. Sua teoria dos construtos pessoais gerou um número considerável de investigações científicas, incluindo quase 600 estudos empíricos sobre o Teste Rep, o que sugere que sua teoria se saiu muito bem em gerar pesquisa. Como ele estava entre os primeiros psi­cólogos a enfatizar disposições cognitivas como os esque­mas, a ideia de Kelly de construtos pessoais em um senti­do muito real foi instrumental na formação do campo da cognição social, uma das perspectivas mais influentes na psicologia social e da personalidade hoje. A cognição social examina as bases cognitivas e de atitudes da percepção da pessoa, incluindo esquemas, vieses, estereótipos e compor­tamento preconceituoso. Os esquemas sociais, por exem­plo, são representações mentais ordenadas das qualidades dos outros e considera-se que contêm informações sociais importantes. Apesar de muitos pesquisadores no campo da cognição social usarem questionários convencionais, al­guns seguiram a liderança de Kelly e empregaram medidas fenomenológicas e idiográficas como o Teste Rep ou algu­ma versão modificada dele (Neimeyer & Neimeyer, 1995). Aplicações mais recentes da metodologia do Teste Rep, por exemplo, analisaram os diferentes sistemas de construtos de indivíduos vítimas de violência sexual e não vitimizados (Lewis-Harter, Erbes, & Hart, 2004).

Nas próximas três seções, examinamos algumas pes­quisas sobre o gênero como um construto pessoal, com­preendendo o preconceito internalizado por meio da teoria dos construtos pessoais e como os construtos pessoais se relacionam com as medidas de personalidade dos Big Five.

O gênero como um construto pessoal

Marcel Harper e Wilhelm Schoeman (2003) argumenta­ram que, embora o gênero seja talvez um dos esquemas mais fundamentais e universais na percepção pessoal, nem todas as pessoas são iguais no grau em que organizam suas crenças e atitudes acerca dos outros em relação ao gênero. Em outras palavras, há diferenças individuais no grau em que as pessoas internalizam as visões culturais do gênero. Além do mais, Harper e Schoeman levantaram a hipótese de que os que usam o gênero para organizar suas percep­ções sociais podem fazer isso de maneira mais estereoti­pada do que aqueles que regularmente não usam o gênero [387] para organizar as percepções sociais. “O gênero, assim, tor­na-se um meio primário de resolver a ambigüidade social" (Harper & Schoeman, 2003, p. 518). Por fim, esses autores previram que, quanto menos informação alguém tem sobre uma pessoa, mais provavelmente ela usará esquemas este­reotipados de gênero para avaliá-la e percebê-la. Ou seja, com indivíduos conhecidos, devemos esperar atitudes mais complexas e menos estereotipadas.

No estudo de Harper e Schoeman, os participantes eram preponderantemente estudantes do sexo feminino de uma universidade na África do Sul. A versão do Teste Rep usada pelos pesquisadores requeria que os participan­tes dissessem se as categorias de pessoas usadas descre­viam mulheres, homens, nenhum, ou ambos, mulheres e homens. No primeiro estágio de procedimento do Teste Rep, os participantes escreveram os nomes das pessoas que melhor representavam um dos 15 títulos de papéis di­ferentes, tais como “palestrante/professor preferido”, uma pessoa com quem eles trabalhavam e “a pessoa de mais sucesso conhecida pessoalmente". No segundo estágio do procedimento, as pessoas que se enquadravam em cada pa­pel eram comparadas umas às outras em grupos de três, com dois títulos de papéis sendo comparados com um ter­ceiro. Por fim, no terceiro estágio do procedimento, os par­ticipantes classificavam os títulos de papéis quanto a serem mais descritivos de mulheres do que de homens, homens do que mulheres ou nenhum/ambos. As classificações por gênero receberam o escore 1; e as classificações sem gênero (ambos ou nenhum), o escore 0, com os escores possíveis variando de 0 a 20. Além do Teste Rep, os participantes completaram um questionário referente à estereotipia de gênero e à possibilidade de eles aplicarem estereótipos de gênero a estranhos em situações sociais, bem como um questionário sobre atitudes sexistas de gênero.

Os resultados mostraram que o gênero era uma cate­goria básica para muitos participantes, com ninguém ten­do escore 0, e a média foi um pouco menos de 10 em um máximo de 20. Além disso, aqueles que usaram o gênero principalmente como uma maneira de categorizar as pes­soas no Rep também tinham maior probabilidade de apli­car estereótipos de gênero a estranhos em situações sociais. Harper e Schoeman (2003) concluíram que “os participan­tes que frequentemente se engajavam em estereotipia de gênero também organizavam seus esquemas pessoais em termos de gênero. Isso sugere que aqueles que usam este­reótipos de gênero na percepção de estranhos também ten­dem a circunscrever suas percepções de amigos, membros da família e conhecidos de forma semelhante" (p. 523).

Compreendendo o preconceito internalizado pela teoria dos construtos pessoais

Talvez a característica mais insidiosa de ser uma pessoa que pertence a um grupo estigmatizado ocorra quando os indivíduos nesse grupo intemalizam o preconceito e pensam de modo negativo sobre si mesmos. Estudos mos­tram que o preconceito contra gays e lésbicas internalizado (geralmente referido como homofobia internalizada), por exemplo, está associado, em indivíduos e lésbicas, a resultados de estresse alto e saúde mental fraca (c.f. Szymanski, Kashubeck-West, & Meyer, 2008). Considerando isso, é importante para os psicólogos clínicos e psicoterapeutas entenderem o preconceito internalizado para tratar de forma efetiva os indivíduos em sofrimento.

Em 2009, Bonnie Moradi, Jacob van den Berg e Franz Epting usaram a teoria dos construtos pessoais de Kelly para fazer isso. A homofobia internalizada foi conceitualizada como contendo duas características: separação da identidade e depreciação da identidade. Esses pesquisado­res aplicaram as noções de Kelly (1991) de ameaça e culpa às duas características da homofobia internalizada. Isto é, o conceito de Kelly de ameaça, a experiência das pessoas que percebem seus construtos pessoais básicos como ins­táveis, pode levar gays e lésbicas a separar sua identidade homossexual do self para evitar uma mudança assusta­dora em sua autoconstrução. Kelly definiu a culpa como ocorrendo quando os indivíduos percebem que aspectos centrais dentro deles são incongruentes com o que eles deveriam ser. A culpa, então, pode levar gays e lésbicas a depreciar a identidade homossexual.

O estudo envolveu 102 participantes com idades de 18 a 73 anos e que se identificavam como lésbicas ou Gays. Eles preencheram questionários que incluíam medidas de ma­nejo da impressão, preconceito contra lésbicas e gays inter­nalizado e uma medida de 30 construtos pessoais bipolares derivados de um estudo prévio de 160 participantes usan­do o Teste Rep (Landfield, 1971). Os participantes gays e lésbicas de Moradi e colaboradores circularam o polo com o qual estavam mais associados por três vezes: primeiro, para como eles se veem; segundo, para como eles preferiam se ver; e, por último, para como eles se veem enquanto fo­cam o fato de serem gays ou lésbicas. A ameaça foi calcula­da como o número de cisões entre self e self preferido em relação ao self gay ou lésbico. A culpa foi calculada como o número de cisões entre self gay ou lésbico e self preferido.

Seus achados foram coerentes com os conceitos de Kelly de ameaça e culpa e mostraram que esses dois aspec­tos desempenham papéis distintos no preconceito interna­lizado. A ideia de Kelly de que os indivíduos se afastam de construtos ameaçadores foi verificada aqui quando os esco­res de ameaça em tal amostra associaram-se à preferência mais baixa pela orientação gay ou lésbica. Mantendo a ideia de Kelly de que se sente culpa quando os indivíduos perce­bem aspectos indesejáveis dentro do self, os participantes homossexuais que tinham culpa alta depreciavam mais a identidade gay ou lésbica.

Moradi e colaboradores (2009) apresentam suges­tões para intervenções de terapia dos construtos pessoais [388] para abordar de forma específica a ameaça e a culpa em indivíduos com preconceito internalizado. Por exemplo, os terapeutas podem obter contrastes das construções dos pacientes, pedindo que eles imaginem que tipo de pessoa não seria ansiosa quanto a ser possibilitando uma mudança de uma construção de self que é inaceitável para uma aceitável. Técnicas de redução da culpa focariam a substituição de construções de negativas por outras mais positivas. A redução da ameaça focaria capacitar os pacientes gays e lésbicas a verem que integrar ser homos­sexual a sua construção de self desejado não significa que eles devam mudar quem eles são em aspectos fundamen­tais. Esse trabalho representa formas verdadeiramente empolgantes de como a teoria da personalidade de Kelly pode ser aplicada para possibilitar a cura naqueles que so­frem com a internalização de construções preconceituosas no âmbito cultural.

Construtos pessoais e o Big Five

Pesquisadores começaram a investigar as conexões entre os construtos pessoais de Kelly e os traços Big Five. Os traços Big Five (neuroticismo, extroversão, abertura à experiência, amabilidade e conscienciosidade) têm recebi­do muita atenção na pesquisa moderna da personalidade. Os construtos pessoais de Kelly recebem uma quantidade moderada de atenção, mas não na mesma intensidade que o modelo Big Five. Nem todos os psicólogos da personali­dade concordam com essa distribuição desproporcional da pesquisa e o valor de cada abordagem. James Grice e colaboradores, por exemplo, compararam diretamente a teoria dos construtos pessoais de Kelly com os Big Five (Grice, 2004; Grice, Jackson, & McDaniel, 2006).

Essas duas abordagens da personalidade são mui­to diferentes, e vale a pena destacar a importância de tal comparação. A lista de traços dos Big Five foi criada essen­cialmente reduzindo as milhares de formas que as pessoas descrevem umas às outras a uma lista menor e mais gerenciável que capturasse os temas mais comuns. Ela procura descrever todos ao longo do mesmo continuum. A aborda­gem da grade de repertórios de Kelly, por sua vez, parece capturar a singularidade dos indivíduos. A singularidade é difícil de ser capturada no modelo Big Five, porque todos são descritos por apenas cinco dimensões. Porém, na grade de repertórios, o examinador cria o próprio continuum no qual descreve as pessoas. Por exemplo, o primeiro continuum descri­to na grade de repertórios na Figura 19.2 é a religiosidade; portanto, para a pessoa que preenche a grade de repertó­rios, a religiosidade é um descritor importante, mas não é um descritor que seja capturado de modo direto por muitas medidas dos Big Five.

A pesquisa de James Grice (Grice, 2004; Grice et al., 2006), em essência, procurou determinar o quanto a abor­dagem da grade de repertórios era boa em capturar a sin­gularidade, comparada com os Big Five. Para tanto, Grice (2004) pediu aos participantes que preenchessem uma versão modificada da grade de repertórios de Kelly e uma medida-padrão de autorrelato dos Big Five. Os participan­tes classificaram a si mesmos e às pessoas que eles conhe­ciam usando esses dois recursos. Com base em procedi­mentos estatísticos complexos, os pesquisadores puderam medir a quantidade de sobreposições nas classificações dos escores na grade de repertórios e no modelo Big Five dos participantes.

O que eles encontraram foi surpreendente: houve ape­nas cerca de 50% de sobreposições (Grice, 2004; Grice et al., 2006). Isso significa que a grade de repertórios estava capturando aspectos das pessoas que os Big Five não estavam e que estes, por sua vez, estavam apreendendo as­pectos que a grade de repertórios não estava. Alguns dos aspectos únicos capturados pela grade de repertórios era o tipo corporal, a etnia, os recursos, o status de fumante e a afiliação política (Grice et al., 2006). Esses são aspec­tos importantes das pessoas a serem considerados e certa­mente podem afetar o modo de interação, embora eles não apareçam em uma medida típica dos Big Five. Apesar disso, este ainda é um modelo valioso como uma estrutura para o estudo da personalidade. Em ciência, costuma ser im­portante, se não imperativo, que os pesquisadores tenham ferramentas e descritores comuns para comparar seus ob­jetos de estudo; no caso da psicologia da personalidade, as pessoas. A estrutura dos Big Five forneceu esses descritores comuns que facilitaram um grande número de pesquisas. Mas a psicologia da personalidade trata das diferenças in­dividuais e da importância do indivíduo e, comparada a esse modelo, a teoria dos construtos pessoais de Kelly faz um trabalho muito bom ao enfatizar a singularidade dos indivíduos e como estes definem a si mesmos e àqueles à sua volta em seus próprios termos.

Psicologia - Teoria dos construtos pessoais
Comportamento - Desequilíbrio psicológico, 
12/28/2020 1:39:23 PM | Por Gregory J. Feist, Jess Feist, Tomi-Ann Roberts
Aplicações da teoria dos construtos pessoais

Assim como a maioria dos teóricos da personalidade, Kelly desenvolveu suas formulações teóricas a partir de sua prá­tica como psicoterapeuta. Ele passou mais de 20 anos con­duzindo terapia antes de publicar A psicologia dos construtos pessoais, em 1955. Nesta seção, examinamos suas visões acerca do desenvolvimento anormal, sua abordagem à psicoterapia e, por fim, seu Teste de Repertório de Construtos de Papel (Rep).

Desenvolvimento anormal

Na visão de Kelly, as pessoas psicologicamente sadias vali­dam seus construtos pessoais opondo-os a suas experiên­cias com o mundo real. Elas são como cientistas competen­tes que testam hipóteses razoáveis, aceitam os resultados sem negação ou distorção e, então, prontamente, alteram suas teorias para adequá-las aos dados disponíveis. Os in­divíduos sadios não só antecipam os eventos como tam­bém são capazes de fazer ajustes satisfatórios quando as coisas não acontecem conforme esperavam.

As pessoas não sadias, por sua vez, apegam-se obstina­damente a construtos pessoais ultrapassados, temendo a validação de construtos novos que perturbariam sua visão de mundo confortável atual. Tais pessoas são semelhantes a cientistas incompetentes, que testam hipóteses irracio­nais, rejeitam ou distorcem resultados legítimos e se re­cusam a corrigir ou a abandonar antigas teorias que não são mais úteis. Kelly (1955) definiu um transtorno como [383] "qualquer construção pessoal que é usada repetidamente apesar da invalidação recorrente (p. 131).

O sistema de construção de uma pessoa existe no presente - não no passado ou no futuro. Os transtor­nos psicológicos, portanto, também existem no presen­te; eles não são causados por experiências infantis, nem por eventos futuros. Como os sistemas de construção são pessoais, Kelly se opôs às classificações tradicionais das condições psicológicas. Usar o Manual Diagnóstico e Esta­tístico de Transtornos Mentais (DSM-IV-TR) da American Psychiatric Association (2002) para rotular uma pessoa provavelmente resultará na má intepretação das constru­ções únicas da pessoa.

As pessoas psicologicamente não sadias, assim como qualquer um, possuem um sistema de construção com­plexo. Seus construtos pessoais, no entanto, tendem a fracassar no teste de permeabilidade em uma de duas maneiras: eles podem ser excessivamente impermeáveis ou flexíveis demais. No primeiro caso, as experiências novas não penetram no sistema de construção; portan­to, a pessoa não se ajusta ao mundo real. Por exemplo, uma criança vitimizada pode interpretar a intimidade com os pais como ruim e a solidão como boa. Os trans­tornos psicológicos desenvolvem-se quando o sistema de construção da criança nega rigidamente o valor de uma relação íntima e se apega à noção de que o afastamento ou o ataque são modos preferíveis de resolver problemas interpessoais. Outro exemplo é um homem com signifi­cativa dependência de álcool que se recusa a se ver como alcoolista mesmo quando seu comportamento de beber aumenta e seu emprego e casamento se desintegram (Burrell, 2002).

Entretanto, um sistema de construção que é muito frouxo ou flexível conduz à desorganização, a um padrão inconsistente de comportamento e a um conjunto transi­tório de valores. Um indivíduo sob tal sistema é facilmente “abalado pelo impacto de eventos menores diários inespe­rados" (Kelly, 1955, p. 80).

Apesar de Kelly não ter usado rótulos tradicionais na descrição da psicopatologia, ele identificou quatro elemen­tos comuns na maioria dos transtornos humanos: ameaça, medo, ansiedade e culpa.

Ameaça

As pessoas experimentam ameaça quando percebem que a estabilidade de seus construtos básicos provavelmente será abalada. Kelly (1955) definiu ameaça como "cons­ciência de mudanças abrangentes iminentes em suas estruturas centrais" (p. 489). A ameaça pode se manifestar por meio de pessoas ou eventos, e, às vezes, os dois não podem ser separados. Por exemplo, durante a psicoterapia, os pacien­tes, com frequência, sentem-se ameaçados diante da pers­pectiva de mudança, mesmo que seja uma mudança para melhor. Se eles veem o terapeuta como um possível ins­tigador da mudança, irão considerá-lo como uma ameaça. Os pacientes costumam resistir à mudança e interpretam o comportamento do terapeuta de uma maneira negativa. Essa resistência e “transferência negativa” são meios de re­duzir a ameaça e manter seus construtos pessoais (Stojnov & Butt, 2002).

Medo

Pela definição de Kelly, a ameaça envolve uma mudança ampla nas estruturas centrais de uma pessoa. O medo, por sua vez, é mais específico e incidental. Kelly (1955) ilustrou a diferença entre ameaça e medo com o seguinte exemplo. Um homem pode dirigir seu carro perigosamente como consequênda de raiva ou ostentação. Esses impulsos se tornam ameaçadores quando ele percebe que pode atrope­lar uma criança ou ser preso por direção perigosa e acabar como um criminoso. Nesse caso, uma porção ampla de seus construtos pessoais está ameaçada. Contudo, se ele, de repente, for confrontado com a probabilidade de bater com o carro, irá experimentar medo. Ameaça demanda uma reestruturação abrangente - medo, uma demanda inciden­tal. O transtorno psicológico resulta quando a ameaça ou o medo impedem de forma persistente que uma pessoa se sinta segura.

Ansiedade

Kelly (1955) definiu ansiedade como “o reconhecimento de que os eventos com os quais a pessoa é confrontada se encon­tram fora do âmbito de conveniência de seu sistema de constru­tos" (p. 495). Em geral, as pessoas se sentem ansiosas quan­ do experimentam um evento novo. Por exemplo, quando Arlene, a estudante de engenharia, estava negociando com o vendedor de carros usados, ela não estava certa do que fazer ou dizer. Ela nunca tinha negociado uma quantia tão grande de dinheiro, e, portanto, essa experiência estava fora do âmbito de sua conveniência. Como conseqüência, ela sentiu ansiedade, mas foi em nível normal; logo, não resultou em incapacitação.

A ansiedade patológica ocorre quando os construtos incompatíveis de uma pessoa não podem mais ser tolera­dos e o sistema de construção é rompido. Lembre-se de que o corolário da fragmentação de Kelly pressupõe que as pessoas podem desenvolver subsistemas de construção que são incompatíveis entre si. Por exemplo, quando uma pessoa que montou uma construção rígida de que todos os indivíduos são confiáveis é descaradamente enganada por um colega, essa pessoa pode, por algum tempo, tolerar a ambigüidade dos dois subsistemas incompatíveis. Contu­do, quando as evidências de falta de confiança se tornam muito claras, o sistema de construtos da pessoa pode se romper. O resultado é uma experiência de ansiedade relati­vamente permanente e debilitante. [384]

Culpa

O corolário da sociabilidade de Kelly pressupõe que as pes­soas interpretam um papel central que fornece um senso de identidade em um ambiente social. No entanto, se esse papel central é enfraquecido ou dissolvido, a pessoa desen­volve um sentimento de culpa. Kelly (1970) definiu culpa como “o sentimento de ter perdido a própria estrutura do pa­pel central (p. 27). Ou seja, as pessoas se sentem culpadas quando se comportam de forma inconsistente com seu senso de quem elas são.

As pessoas que nunca desenvolveram um papel cen­tral não se sentem culpadas. Elas podem ser ansiosas ou confusas, mas, sem um senso de identidade pessoal, elas não experimentam culpa. Por exemplo, uma pessoa com uma consciência subdesenvolvida tem pouco ou nenhum senso integral de self e uma estrutura de papel central fraca ou inexistente. Essa pessoa não possui diretrizes estáveis para violar e, portanto, sentirá pouca ou nenhuma culpa, mesmo por um comportamento depravado ou vergonhoso (Kelly, 1970).

Psicoterapia

Existe sofrimento psicológico sempre que as pessoas ti­verem dificuldade em validar seus construtos pessoais, antecipar eventos futuros e controlar seu ambiente atual. Quando o sofrimento se torna incontrolável, elas podem buscar ajuda externa na forma de psicoterapia.

Na visão de Kelly, as pessoas devem ser livres para es­colher os cursos de ação mais coerentes com sua antecipa­ção dos eventos. Na terapia, essa abordagem significa que os pacientes, não o terapeuta, escolhem o objetivo. Os pa­cientes são participantes ativos no processo terapêutico, e o papel do terapeuta é auxiliá-los a alterar seus sistemas de construtos para melhorar a eficiência em fazer predições.

Para alterar os construtos dos pacientes, Kelly usou um procedimento denominado terapia de papel fixo. Seu propósito é ajudar os pacientes a mudarem sua perspec­tiva da vida (construtos pessoais) encenando um papel predeterminado, primeiro dentro da segurança relativa do ambiente terapêutico e, depois, no ambiente além da tera­pia, onde eles encenarão o papel continuamente durante várias semanas. Com o terapeuta, os pacientes exercitam um papel que inclui atitudes e comportamentos que, no momento, não fazem parte de seu papel central. Ao escre­verem a definição do papel fixo, o paciente e o terapeuta são cuidadosos para incluir os sistemas de construção de outras pessoas. Como o cônjuge ou os pais ou o chefe ou os amigos do paciente irão reconstruir os eventos de forma mais produtiva?

Então, esse novo papel é experimentado na vida diária de forma muito parecida com um cientista que testa uma hipótese - de forma cuidadosa e objetiva. Na verdade, a definição do papel fixo costuma ser esboçada na terceira pessoa, com o ator assumindo uma nova identidade. O pa­ciente não está tentando ser outra pessoa, apenas repre­sentando a parte de alguém que é digno de ser conhecido. O papel não deve ser levado muito a sério; ele é apenas um ato, algo que pode ser alterado quando as evidências justificarem.

A terapia de papel fixo não visa a resolver problemas específicos ou reparar construtos obsoletos. Ela é um processo criativo que permite aos pacientes descobrirem de modo gradual aspectos previamente ocultados de si mesmos. Nos primeiros estágios, os clientes são apresen­tados somente a papéis periféricos; então, depois que se mostrarem à vontade com mudanças menores na estru­tura da personalidade, eles experimentam novos papéis centrais, que permitem uma alteração mais profunda (Kelly, 1955).

Antes de desenvolver a abordagem de papel fixo, Kelly (1969a) incluiu um procedimento incomum, que se pare­ce muito com a terapia de papel fixo. Insatisfeito com as técnicas freudianas, Kelly decidiu oferecer a seus pacien­tes “interpretações absurdas" para suas queixas. Algumas eram interpretações freudianas exageradas; entretanto, a maioria dos clientes aceitou essas “explicações" e as usou como guias para ação futura. Por exemplo, Kelly poderia di­zer a um paciente que seu treinamento esfincteriano rígido tinha feito com que ele construísse sua vida de uma manei­ra dogmaticamente rígida, mas que ele não precisava conti­nuar a ver as coisas dessa maneira. Para a surpresa de Kelly, muitos de seus pacientes começaram a funcionar melhor! A chave para a mudança era a mesma que com a terapia de papel fixo: os pacientes devem começar a interpretar sua vida a partir de uma perspectiva diferente e a verem a si mesmos em um papel distinto.

O Teste Rep

Outro procedimento usado por Kelly, tanto dentro quanto fora da terapia, era o Teste de Repertório de Construtos de Papel (Rep). O propósito do Teste Rep é descobrir formas pelas quais as pessoas constroem os indivíduos significati­vos em sua vida.

No Teste Rep, uma pessoa recebe uma lista de títulos de papéis e deve designar pessoas que se enquadrem nos títulos de papéis, escrevendo seus nomes em um cartão. Por exemplo, para “um professor de quem você gostava”, a pessoa deve atribuir um nome particular. O número de títulos de papéis pode variar, mas Kelly (1955) listou 24 em uma versão (ver Tab. 19.1). A seguir, a pessoa recebe três nomes da lista e ela precisa julgar quais duas pessoas são parecidas e também diferentes da terceira. Lembre-se de que um construto requer tanto uma semelhança quanto um contraste; portanto três é o número mínimo para um construto. Digamos, por exemplo, que uma pessoa inter­preta o número 1 ("Um professor de quem você gostava") [385]

TABELA 19.1

e o número 6 (“Sua mãe”) como semelhantes e o número 9 (“Sua irmã de idade mais próxima à sua”) como diferente. Então, pergunta-se em que a mãe e o professor favorito são pareddos e ainda diferentes da irmã. A r a z ã o que a pessoa dá para a semelhança e o contaste constitui o construto. Se a pessoa dá uma resposta superficial, como: "Ambos são velhos, e a minha irmã é jovem", o examinador pode dizer: "Este é um aspecto em que eles são parecidos. Você consegue pensar em outro?” A pessoa pode, então, decla­ rar: “Minha mãe e meu professor favorito são altruístas, e a minha irmã é muito autocentrada". O examinador regis­ tra o construto e, na sequênda, pede que a pessoa separe mais três cartões. Nem todas as combinações são obtidas, e o examinador tem alguma liberdade na determinação de quais combinações usar.

Tabela 19.1

Depois da conclusão de algumas combinações, o exa­minador transfere as informações para uma grade de reper­tórios. A Figura 19.2 mostra uma grade hipotética, na qual 19 títulos de papéis estão listados ao longo do eixo hori­zontal; e 22 construtos pessoais, ao longo do eixo vertical. No número 1, a pessoa que preencheu essa grade interpre­tou as pessoas 17 e 18 como parecidas, porque elas não acreditam em Deus e a pessoa 19 como diferente, por ser muito religiosa. O examinando também marcou as pessoas 7,10 e 12, porque elas são interpretadas como semelhan­tes às duas pessoas no polo emergente; isto é, elas também não acreditam em Deus. Da mesma forma, a pessoa marca cada fila até que toda a grade esteja completa.

Há várias versões do Teste Rep e da grade de repertó­rios, mas todas são concebidas para avaliar os construtos pessoais. Por exemplo, uma mulher pode ver em que seu pai e o chefe são parecidos ou diferentes; se ela se identifica ou não com sua mãe; em que o namorado e o pai são pare­cidos; ou como ela interpreta os homens em geral. Além disso, o teste pode ser aplicado no início da terapia e no­vamente no final. As mudanças nos construtos pessoais revelam a natureza e o grau do movimento feito durante a terapia.

Kelly e colaboradores usaram o Teste Rep em uma va­riedade de formas, e não são aplicadas regras definidas de pontuação. A fidedignidade e a validade do instrumento não são muito altas, e sua utilidade depende, em grande parte, da habilidade e da experiência do examinador (Fransella & Bannister, 1977). [386]

Figura 19.2

[387]

Psicologia - Teoria dos construtos pessoais
Personalidade - Cognição, Elaboração
12/28/2020 12:15:46 PM | Por Gregory J. Feist, Jess Feist, Tomi-Ann Roberts
Construtos pessoais

A filosofia de Kelly pressupõe que a interpretação das pessoas em relação a um mundo unificado e em constan­te mudança constitui sua realidade. Tome como exemplo Arlene, uma estudante com o automó­vel quebrado. A percepção de Arlene de seu problema de transporte não foi estática. Enquanto conversava com um mecânico, um vendedor de carros usados, um vendedor de carros novos, um bancário, seus pais e outros, ela estava constantemente mudando sua interpretação da realidade. De forma semelhante, todas as pessoas criam continua­mente a própria visão do mundo. Algumas são bem infle­xíveis e quase nunca mudam sua maneira de ver as coisas. Elas se apegam a sua visão da realidade mesmo quando o mundo real muda. Por exemplo, pessoas com anorexia ner­vosa continuam a se ver como gordas enquanto seu peso diminui até um nível que coloca a vida em risco. Algumas pessoas constroem um mundo que é substanrialmente di­ferente do mundo das outras pessoas. Por exemplo, pacien­tes psicóticos em hospitais mentais podem falar com pes­soas que ninguém mais consegue enxergar. Kelly (1963) insistiria em que essas pessoas, junto a todas as outras, estão olhando para seu mundo por meio de “padrões ou moldes transparentes" que elas criaram para lidar com as realidades do mundo. Ainda que esses padrões ou moldes nem sempre se encaixem com precisão, eles são o meio pelo qual as pessoas compreendem o mundo. Kelly se refe­riu a tais padrões como construtos pessoais.

Eles são formas de interpretar o mundo. Eles são o que possibilita que [as pessoas], e os animais inferiores tam­bém, tracem o rumo do comportamento, formulado explicitamente ou atuando implicitamente, expresso verbalmente ou totalmente inarticulado, consistente ou inconsistente com outros rumos do comportamento, pensado intelectualmente ou sentido vegetativamente.

Um construto pessoal é a forma pela qual a pessoa vê como as coisas (ou pessoas) se parecem e ainda como são diferentes das outras coisas (ou pessoas). Por exemplo, você pode ver como Ashly e Brenda se parecem e como elas são diferentes de Carol. A comparação e o contraste devem ocorrer dentro do mesmo contexto. Por exemplo, dizer que Ashly e Brenda são atraentes e Carol é religiosa não consti­tuiria um construto pessoal, porque atratividade é uma di­mensão e religiosidade é outra. Um construto seria forma­ do ao constatar que Ashly e Brenda são atraentes e Carol não é, ou se você considera Ashly e Brenda não religiosas e Carol religiosa. Tanto a comparação quanto o contraste são essenciais.

Sejam eles percebidos com clareza ou vagamente sen­tidos, os construtos pessoais moldam o comportamento de um indivíduo. Como exemplo, considere Arlene com seu carro quebrado. Depois que o carro velho parou de funcio­nar, seus construtos pessoais moldaram seu curso de ação posterior, mas nem todos os seus construtos foram defini­dos de forma clara. Por exemplo, ela pode ter decidido com­prar um automóvel de modelo recente porque interpretou a amabilidade e a persuasão do vendedor como significando que o carro era confiável. Os construtos pessoais de Arlene podem ser precisos ou imprecisos, mas, em cada um dos ca­sos, eles são seus meios de predizer e controlar o ambiente.

Arlene tentou aumentar a precisão de suas previsões (de que o carro seria um transporte confiável, econômico e confortável) aumentando seu estoque de informações. Ela pesquisou sua compra, pediu a opinião de terceiros, testou o carro e mandou revisá-lo por um mecânico. De forma muito parecida, todas as pessoas tentam validar seus cons­trutos. Elas procuram moldes que se encaixem melhor e, assim, tentam melhorar seus construtos pessoais. Entre­tanto, a melhoria pessoal não é inevitável, porque o inves­timento que as pessoas fazem em seus construtos estabe­lecidos bloqueia o caminho do avanço do desenvolvimento. O mundo está mudando constantemente, portanto o que é exato em um momento pode não ser exato em outro. A bicicleta azul confiável que Arlene usou durante a infân­cia não deve iludi-la com a interpretação de que todos os veículos azuis são confiáveis.

Postulado básico

A teoria dos construtos pessoais é expressa em um postu­lado fundamental, ou pressuposto, e elaborada por meio de 11 corolários de apoio. O postulado básico pressupõe que “os processos de uma pessoa são psicologicamente canalizados pelas formas como [essa pessoa] prevê os eventos" (Kelly, 1955, p. 46). Em outras palavras, os comportamentos (pensa­mentos e ações) são direcionados pela forma como as pes­soas veem o futuro. Esse postulado não pretende ser uma declaração absoluta da verdade, mas é um pressuposto pro­visório aberto a questionamento e verificação científica.

Kelly (1955,1970) esclareceu esse pressuposto fun­damental definindo seus termos-chave. Primeiro, [378] a expressão processos da pessoa se refere a um ser humano vivo, em mutação e em movimento. Aqui, Kelly não esta­va preocupado com os animais, com a sociedade ou com qualquer parte da função da pessoa. Ele não reconheceu motivos, necessidades, impulsos ou instintos como forças subjacentes à motivação. A própria vida explica o movi­mento da pessoa.

Kelly escolheu o termo canalizado para sugerir que as pessoas se movem em uma direção, mediante uma rede de caminhos ou canais. A rede, no entanto, é flexível, facili­tando e restringindo o âmbito de ação das pessoas. Além disso, o termo evita a implicação de que algum tipo de energia está sendo transformado em ação. As pessoas já estão em movimento; elas somente canalizam ou orientam seus processos na direção de algum fim ou propósito.

A expressão-chave seguinte é formas de prever os even­tos, o que sugere que as pessoas orientam suas ações de acordo com suas previsões do futuro. Nem o passado nem o futuro per se determinam o comportamento. Ao contrário, a visão presente do futuro molda as ações. Ar­lene não comprou um carro azul porque ela teve uma bi­cicleta azul quando criança, embora esse fato possa tê-la ajudado a interpretar o presente de forma que ela previu que seu carro azul de modelo recente seria confiável no futuro. Kelly (1955) afirmou que as pessoas são afligidas não pelo passado, mas por sua visão do futuro. As pessoas continuamente “se aproximam do futuro pela janela do presente” (p. 49).

Corolários de apoio

Para elaborar sua teoria dos construtos pessoais, Kelly pro­pôs 11 corolários de apoio, todos os quais podem ser infe­ridos a partir de seu postulado básico.

Semelhanças entre os eventos

Dois eventos não são exatamente iguais, embora interpre­temos eventos similares de modo que eles sejam percebi­dos como o mesmo. Um nascer do sol nunca é idêntico a outro, mas nosso construto amanhecer comunica nosso reconhecimento de alguma semelhança ou alguma replicação dos eventos. Ainda que dois amanheceres nunca sejam exatamente iguais, eles podem ser parecidos o suficiente para que os interpretemos como o mesmo evento. Kelly (1955,1970) se referiu a essa semelhança entre os eventos como o corolário da construção.

O corolário da construção declara que "uma pessoa antecipa os eventos interpretando suas replicações" (Kelly, 1955, p. 50). Esse corolário, mais uma vez, indica que as pessoas estão olhando para a frente; seu comportamento é forjado pela antecipação de eventos futuros. Ele também enfatiza a noção de que as pessoas constroem ou interpretam eventos futuros de acordo com temas recorrentes ou replicações. O corolário da construção pode parecer pouco mais do que o senso comum: as pessoas veem semelhanças entre os eventos e usam um único conceito para descrever as propriedades comuns. Kelly, no entanto, considerava ser necessário incluir o óbvio quando se constrói uma teoria.

Diferenças entre as pessoas

O segundo corolário de Kelly é igualmente óbvio. “As pessoas diferem umas das outras em sua interpretação dos eventos" (Kelly, 1955, p. 55). Kelly denominou essa ênfase nas diferenças individuais de corolário da individualidade.

Como as pessoas possuem repertórios de experiências diferentes, elas interpretam o mesmo evento de maneiras diferentes. Logo, não existem duas pessoas que criam uma experiência exatamente da mesma maneira. Tanto a subs­tância quanto a forma de seus construtos são diferentes. Por exemplo, um filósofo pode incluir o construto verdade sob a rubrica de valores eternos; um advogado pode enca­rar a verdade como um conceito relativo, útil para um pro­pósito particular; e um cientista pode interpretar a verdade como um objetivo inalcançável, algo a ser procurado, mas nunca atingido. Para o filósofo, o advogado e o cientista, a verdade possui uma substância diferente, um significa­ do distinto. Além do mais, cada pessoa chegou a sua in­terpretação particular de uma maneira diferente e, assim, atribuiu uma forma diferente. Mesmo gêmeos idênticos vivendo em ambientes quase iguais não interpretam even­tos exatamente da mesma maneira. Por exemplo, parte do ambiente do gêmeo A inclui o gêmeo B, uma experiência não compartilhada pelo gêmeo B.

Apesar de Kelly (1955) ter enfatizado as diferenças individuais, ele assinalou que as experiências podem ser compartilhadas e que as pessoas podem encontrar um ponto comum para interpretar as experiências. Isso possi­bilita a comunicação verbal e não verbal. Contudo, devido a diferenças individuais, a comunicação nunca é perfeita.

Relações entre os construtos

O terceiro corolário de Kelly, o corolário da organização, enfatiza as relações entre os construtos e refere que as pes­soas “desenvolvem caracteristicamente, para [a sua] conveniên­cia na antecipação de eventos, um sistema de interpretação que abarca as relações ordinais entre os construtos" (Kelly, 1955, p. 56).

Os primeiros dois corolários assumem semelhanças entre os eventos e diferenças entre as pessoas. O terceiro enfatiza que pessoas diferentes organizam eventos seme­lhantes de uma maneira que reduz ao mínimo incompatibi­lidades e inconsistências. Organizamos nossas interpreta­ções de modo que possamos nos mover de uma para outra de forma ordenada, o que nos permite prever eventos de maneiras que transcendem contradições e evitam conflitos desnecessários. [379]

O corolário da organização também pressupõe uma re­lação ordinal dos construtos, permitindo que um construto possa ser incluído em outro. A Figura 19.1 ilustra uma hie­rarquia de construtos que podem se aplicar a Arlene, a es­tudante de engenharia. Ao decidir um curso de ação depois que seu carro quebrou, a jovem pode ter visto sua situa­ção em termos de construtos dicotômicos superordenados como bom versus ruim. Naquele ponto de sua vida, Arle­ne considerava a independência (de amigos ou pais) como boa e a.dependência como ruim. No entanto, seu sistema de construtos pessoais, sem dúvida, incluía uma variedade de construtos considerados bons e ruins. Por exemplo, Arlene provavelmente interpretou inteligência e saúde como bom e estupidez e doença como ruim. Além do mais, as visões de Arlene de independência e dependência (como seus construtos de bom e ruim) teriam apresentado um grande número de construtos subordinados. Nessa situação, ela interpretou permanecer na faculdade como independência e morar com os pais como dependência. Para permanecer na faculdade e continuar no emprego, Arlene precisava de transporte. Havia muitos meios possíveis de locomoção, porém Arlene considerava apenas quatro: usar o transporte público, caminhar, depender dos amigos ou dirigir o pró­prio carro. Incluídos no construto do carro, estavam três construtos subordinados: consertar o carro velho, comprar um novo ou comprar um carro usado de modelo recente.
Esse exemplo sugere que os construtos possuem não só uma relação ordinal complexa entre si, mas também uma relação dicotômica.

Figura 19.1

Dicotomia dos construtos

Agora chegamos a um corolário que não é tão óbvio. O co­rolário da dicotomia afirma que “o sistema de construção é composto de um número finito de construtos dicotômicos" (Kelly, 1955, p. 59).

Kelly insistia em que um construto é uma proposição ou-ou - preto ou branco, sem nuances de cinza. Na nature­za, as coisas podem não ser ou-ou, mas os eventos naturais não possuem outro significado além daqueles atribuídos a eles pelo sistema de construtos pessoais de um indivíduo. Na natureza, a cor azul pode não ter polo oposto (exceto em um quadro de cores), mas as pessoas atribuem quali­dades contrastantes ao azul, como azul-claro versus azul-escuro ou bonito versus feio.

Para formar um construto, as pessoas precisam ser ca­pazes de ver semelhanças entre os eventos, mas elas tam­bém devem contrastar esses eventos com seu polo oposto. Kelly (1955) se expressou da seguinte maneira: “Em seu contexto mínimo, um construto é uma forma em que pelo menos dois elementos são semelhantes e contrastam com um terceiro" (p. 61). Como exemplo, vamos voltar à Figura 19.1. O quanto inteligência e independência são semelhan­tes? Seu elemento comum não possui significado sem con­trastá-lo com um oposto. Inteligência e dependência não têm um elemento sobreposto quando comparadas com um martelo ou uma barra de chocolate. Contrastando inteli­gência com estupidez e independência com dependência, é possível perceber como são semelhantes e como podem ser organizados sob o construto “bom" em oposição a “ruim". [380]

Escolha entre dicotomias

Se as pessoas interpretam os eventos de uma forma dicotomizada, elas têm a mesma escolha nos seguintes cursos de ação alternativos. Esse é o corolário da escolha, para­fraseado da seguinte forma: as pessoas escolhem por si aquela alternativa em um construto dicotomizado; por meio dela veem a maior possibilidade de extensão e definição de construtos futuros.

Esse corolário pressupõe muito do que é declarado no postulado básico de Kelly e nos corolários precedentes. As pessoas fazem escolhas com base em como elas antecipam os eventos, e essas escolhas estão entre alternativas dico­tômicas. Além disso, o corolário da escolha pressupõe a seleção de ações que têm maior probabilidade de ampliar o âmbito de escolhas futuras.

A decisão de Arlene de comprar um carro usado foi ba­seada em uma série de escolhas anteriores, cada uma das quais estava entre alternativas dicotomizadas e ampliava seu âmbito de escolhas futuras. Primeiro, ela escolhe a independência da faculdade sobre a dependência de voltar a morar com seus pais. A seguir, comprar um carro oferecia mais liberdade do que depender dos amigos ou dos horá­rios de ônibus ou caminhar (o que ela percebia como demo­rado). Consertar seu carro velho era financeiramente arris­cado em comparação com a maior segurança de comprar um usado. Comprar um carro novo era muito caro comparado com o carro usado relativamente barato. Cada opção estava entre alternativas em um construto dicotomizado, e, com cada opção, Arlene previa a maior possibilidade de ampliar e definir construtos futuros.

Ambito de conveniência

O corolário do âmbito de Kelly pressupõe que os cons­trutos pessoais são finitos e não relevantes para tudo. “Um construto é conveniente para a antecipação apenas de uma faixa finita de eventos” (Kelly, 1955, p. 68). Em outras palavras, um construto está limitado a uma faixa de conveniência particular.

O construto independência estava dentro da faixa de conveniência de Arlene quando ela estava decidindo com­prar um carro, mas, em outras ocasiões, a independência estaria fora dessas fronteiras. A independência carrega consigo a noção de dependência. A liberdade de Arlene de permanecer na faculdade, a liberdade de continuar em seu emprego e a liberdade de se movimentar rapidamente de um lugar para outro sem depender dos outros recaem em sua faixa de conveniência de independênda/dependência. Contudo, o construto de independência de Arlene exdui todas as irrelevândas como acima/abaixo, daro/escuro ou seco/molhado, ou seja, ele é conveniente apenas para uma faixa de eventos finita.

O corolário do âmbito permitiu a Kelly distinguir en­tre um conceito e um construto. Um conceito indui todos os elementos que possuem uma propriedade comum e exclui aqueles que não têm essa propriedade. O conceito alto inclui todas as pessoas e todos os objetos que têm al­tura alongada e exclui todos os demais conceitos, mesmo aqueles que estão fora de sua faixa de conveniência. Por­tanto, rápido, independente ou escuro são todos excluídos do conceito alto, porque eles não possuem altura alongada. Porém, essas exclusões são infindávéis e desnecessárias. A ideia de construto contrasta alto com baixo, limitando, assim, sua faixa de conveniênda. “Aquilo que está fora da faixa de conveniência do construto não é considerado par­te do campo contrastante, mas simplesmente uma área de irrelevância” (Kelly, 1955, p. 69). Assim, as dicotomias li­mitam a faixa de conveniênda de um construto.

Experiência e aprendizagem

A antecipação dos eventos é básica para a teoria do cons­truto. Olhamos para o futuro e fazemos suposições acerca do que irá acontecer. Então, quando os eventos nos são re­velados, validamos nossos construtos existentes ou, então, reestruturamos esses eventos para adequá-los nossa experiênda. A reestruturação dos eventos nos permite apren­der com nossas experiências.

O corolário da experiência refere: “O sistema de inter­pretação de uma pessoa varia conforme ela interpreta sucessi­vamente as replicações dos eventos (Kelly,1955,p.72). Kelly usou a palavra “sucessivamente" para assinalar que presta­mos atenção a apenas uma coisa por vez. “Os eventos de
nossa interpretação marcham em fila indiana ao longo do caminho do tempo” (p. 73).

A experiência consiste na interpretação sucessiva dos eventos. Os eventos em si não constituem experiência - é o significado que atribuímos a eles que modifica nossas vi­das. Para ilustrar essa ideia, vamos retomar o exemplo da Arlene e seu construto pessoal de independênda. Quan­do seu carro velho (um presente de formatura no ensino médio dado pelos pais) quebrou, ela decidiu permanecer [381] na faculdade, em vez de voltar para a segurança e o status dependente de voltar para a casa dos pais. Conforme Arle­ne posteriormente se deparou com eventos sucessivos, ela teve que tomar decisões sem o benefício do conselho dos pais, uma tarefa que a forçou a reestruturar sua noção de independência. Em outro momento, ela havia interpreta­do independência como liberdade da interferência externa. Após decidir fazer uma dívida referente a um carro usado, ela começou a alterar seu significado de independência para incluir responsabilidade e ansiedade. Os eventos, por si só, não forçaram a reestruturação. Arlene poderia ter se tornado uma espectadora dos eventos à sua volta. Em vez disso, seus construtos existentes foram flexíveis o suficien­te para permitir sua adaptação à experiência.

Adaptação à experiência

A flexibilidade de Arlene ilustra o corolário da modulação de Kelly. “A variação no sistema de interpretação de uma pessoa está limitada pela permeabilidade dos construtos dentro de cuja faixa de conveniência as variantes se encontram” (Kely, 1955, p. 77). Esse corolário provém do corolário da experiência e a expande. Ele pressupõe que o grau em que as pessoas revisam seus construtos está relacionado ao nível de per­meabilidade de seus construtos existentes. Um construto é permeável se novos elementos podem ser acrescidos a ele. Construtos impermeáveis ou concretos não admitem novos elementos. Se um homem acredita que as mulheres são inferiores aos homens, evidências contraditórias não encontrarão seu caminho na faixa de conveniência. Em vez disso, esse homem irá atribuir as realizações das mulheres à sorte ou a uma vantagem social injusta. Uma mudança nos eventos significa uma alteração nos construtos somen­te se estes forem permeáveis.

O construto pessoal de Arlene de independência versus dependência foi suficientemente permeável para incorporar novos elementos. Quando, sem consultar os pais, ela to­mou a decisão de comprar um carro usado, o construto da maturidade versus infantilidade penetrou na independência versus dependência e acrescentou um novo sentido a ele. Anteriormente, os dois construtos estavam separados e a noção de independência de Arlene estava limitada à ideia de fazer o que ela escolhia, enquanto a dependência estava associada à dominação parental. Agora, ela interpretou in­dependência como significando responsabilidade madura e dependência como significando uma inclinação infantil para os pais. Dessa maneira, todas as pessoas modulam ou ajustam seus construtos pessoais.

Construtos incompatíveis

Ainda que Kelly tenha presumido uma estabilidade ou con­sistência global do sistema de construtos de uma pessoa, seu corolário da fragmentação permite a incompatibili­dade de elementos específicos. “Uma pessoa pode empregar de modo sucessivo uma variedade de subsistemas de interpretação que são inferencialmente incompatíveis entre si" (Kelly, 1955, p. 83).

No início, pode parecer que os construtos pessoais são incompatíveis, mas, se examinarmos nosso próprio comportamento e pensamento, é fácil perceber algumas inconsistências. Walter Mischel (um aluno de Kelly) acreditava que o comporta­mento tende a ser mais inconsistente do que os teóricos dos traços nos fariam acreditar. As crianças, muitas vezes são pacientes em uma situação, embora impacientes em outra. Do mesmo modo, uma pessoa pode ser corajosa ao se defrontar com um cachorro bravo, mas covarde quando se defronta com um chefe ou professor. Ainda que nossos comportamentos com frequência pareçam inconsistentes, Kelly percebia uma estabilidade subjacente na maioria de nossas ações. Por exemplo, um homem pode ser protetor com sua esposa, enquanto a incentiva a ser mais indepen­dente. Proteção e independência podem ser incompatíveis entre si em um nível, mas, em um plano mais amplo, am­bas estão incluídas no construto de amor. Assim, as ações do homem para proteger sua esposa e encorajá-la a ser mais independente são consistentes com um construto superior.

Os sistemas superiores também podem mudar, mas essas mudanças ocorrem dentro de um sistema ainda maior. No exemplo anterior do marido protetor, o amor do homem pela esposa pode, gradualmente, mudar para ódio, mas essa mudança permanece dentro de um construto maior de autoconsideração. O amor anterior pela esposa e o ódio atual são ambos consistentes com sua visão de autoconsideraçâo. Se construtos incompatíveis não pudessem coexistir, as pessoas estariam presas em um construto fixo, o qual tornaria a mudança quase impossível.

Semelhanças entre as pessoas

Ainda que o segundo corolário de apoio de Kelly assuma que as pessoas são diferentes umas das outras, seu corolá­rio da comunalidade presume semelhanças interpessoais.

Segundo ele: “ Na medida em que uma pessoa emprega uma construção da experiência similar à usada por outra pessoa, os processos [de ambas] são psicologicamente semelhantes” (Kelly, 1970, p. 20).

Duas pessoas não precisam experimentar o evento ou eventos similares para que seus processos sejam psicologi­camente semelhante. Elas devem apenas interpretar suas experiências de forma similar. Como as pessoas interpre­tam ativamente os eventos fazendo perguntas, formulan­do hipóteses, tirando conclusões e, depois, fazendo mais perguntas, indivíduos diferentes com experiências muito distintas podem interpretar eventos de forma bem seme­lhante. Por exemplo, duas pessoas podem chegar a visões políticas semelhantes, embora sejam provenientes de [382] backgrounds diferentes. Uma pode ser proveniente de uma família rica, tendo desfrutado uma vida de lazer e contem­plação, enquanto a outra pode ter experiendado uma in­fância indigente, lutando constantemente pela sobrevivên­cia. No entanto, ambas adotam uma visão política liberal.

Mesmo que pessoas de diferentes backgrounds possam ter construtos semelhantes, pessoas com experiências si­milares apresentam maior probabilidade de interpretar os eventos de forma similar. Dentro de determinado grupo social, as pessoas podem empregar construções similares, mas é sempre o indivíduo, nunca a sociedade, quem in­terpreta os eventos. Isso é semelhante à noção de Albert Bandura de eficácia coletiva: é o indivíduo, não a sociedade, que possui níveis variados de alta ou baixa eficácia coleti­va. Kelly também assume que duas pessoas nunca interpretam as experiências exatamente da mesma maneira. Os estadunidenses podem ter uma construção simi­lar de democracia, mas dois estadunidenses não a encaram em termos idênticos.

Processos sociais

“As pessoas pertencem ao mesmo grupo cultural, não só porque elas se comportam de modo semelhante, nem por­ que elas esperam as mesmas coisas dos outros, mas, em espedal, porque interpretam sua experiência da mesma maneira" (Kelly, 1955, p. 94).

O corolário de apoio final, o corolário da sociabi­lidade pode ser parafraseado da seguinte maneira: o ponto em que as pessoas interpretam corretamente o sistema de crenças dos outros, elas podem desempenhar um papel em um processo social que envolva essas outras pessoas.

As pessoas não se comunicam entre si simplesmente com base em experiêndas comuns ou mesmo constru­ções similares; elas se comunicam porque interpretam as construções umas das outras. Nas relações interpessoais, elas não só observam o comportamento alheio; elas tam­bém interpretam o que esse comportamento significa para aquela pessoa. Quando Arlene estava negociando com o vendedor de carros usados, ela estava consciente não só de suas palavras e ações, mas também de seus significados. Ela percebeu que, para o vendedor, ela era um comprador potencial, alguém que poderia proporcionar uma comissão substancial. Ela interpretou as palavras dele como exage­ros e, ao mesmo tempo, percebeu que ele interpretava sua indiferença como uma indicação de que ela interpretava as motivações dele como diferentes das dela.

Tudo isso parece um tanto complicado, mas Kelly es­tava apenas sugerindo que as pessoas estão envolvidas ati­vamente em relações interpessoais e percebem que fazem parte do sistema de construção da outra pessoa.

Kelly introduziu a noção de papel com seu corolá­rio da sociabilidade. Um papel refere-se a um padrão de comportamento que resulta da compreensão que a pessoa tem dos construtos das outras com quem está envolvida em uma tarefa. Por exemplo, quando Arlene estava nego­ciando com o vendedor de carros usados, ela construiu seu papel como o de um comprador potencial, porque ela entendia que essa era a expectativa que ele tinha dela. Em outros momentos e com outras pessoas, ela constrói seu papel como estudante, empregada, filha, namorada, e as­sim por diante.

Kelly construiu papéis a partir de uma perspectiva psicológica, em vez de sociológica. O papel de uma pes­soa não depende de seu lugar ou sua posição em um con­texto social, mas de como ela interpreta esse papel. Kelly também destacou o aspecto de que a construção que se faz de um papel não precisa ser exata para que a pessoa o desempenhe.

Os papéis de Arlene como estudante, empregada e fi­lha seriam considerados papéis periféricos. Mais essencial para sua existência é seu papel central. Com nosso papel central, definimos nós mesmos em termos do que de fato somos. Ele nos dá um senso de identidade e nos fornece diretrizes para a vida cotidiana. [383]

 

Psicologia - Teoria dos construtos pessoais
Epistemologia - Teoria, Filosofia
12/28/2020 11:50:36 AM | Por Gregory J. Feist, Jess Feist, Tomi-Ann Roberts
Posição filosófica de Kelly

O comportamento humano é fundamentado na realidade ou na percepção que as pessoas têm da realidade? George Kelly diria ambos. Ele não aceitava a posição de Skinner de que o comportamento é moldado pelo ambien­te, isto é, pela realidade. Entretanto, ele também rejeitou a [376]  fenomenologia extrema (ver Combs & Snygg, 1959), que defende que a única realidade é o que as pessoas percebem. Kelly (1955, 1991) acreditava que o universo é real, mas que pessoas diferentes o interpretam de formas distintas. Logo, os construtos pessoais, ou maneiras de interpre­tar e explicar os eventos, continham a chave para prever o comportamento das pessoas.

A teoria dos construtos pessoais não tenta explicar a natureza. Em vez disso, ela é uma teoria da construção de eventos das pessoas, ou seja, sua investigação pessoal do mundo. É “uma psicologia da busca humana. Ela não diz o que foi ou será encontrado, mas propõe como podemos realizá-la” (Kelly, 1970, p. 1).

A pessoa como cientista

Quando você decide o que comer no almoço, a que progra­mas de televisão assistir ou em que ocupação ingressar, está agindo de forma muito parecida com um cientista. Isto é, você faz perguntas, formula hipóteses, testa as hi­póteses, tira conclusões e tenta predizer eventos futuros. Como todas as outras pessoas (incluindo os cientistas), sua percepção da realidade é influenciada por seus construtos pessoais - sua maneira de olhar, explicar e interpretar even­tos em seu mundo.

De modo similar, todas as pessoas, em sua busca pelo significado, fazem observações, interpretam as relações entre os eventos, formulam teorias, geram hipóteses, tes­tam as mais plausíveis e chegam a conclusões a partir de seus experimentos. As conclusões de uma pessoa, como as de qualquer cientista, não são fixas ou finais. Elas estão abertas a reconsideração e a reformulação. Kelly tinha a ex­pectativa de que as pessoas, de modo individual e coletivo, irão encontrar formas melhores de reestruturar suas vidas por meio da imaginação e da previsão.

O cientista como pessoa

Se as pessoas podem ser vistas como cientistas, os cientis­tas podem ser vistos como pessoas. Portanto, as declara­ções dos cientistas devem ser consideradas com o mesmo ceticismo com o qual abordamos qualquer comportamen­to. Cada observação científica pode ser examinada a partir de uma perspectiva diferente. Cada teoria pode ser um tan­to tendenciosa e ser encarada a partir de um ângulo novo. Essa abordagem, é claro, significa que a teoria de Kelly não está isenta de reestruturação. Kelly (1969b) apresentou sua teoria como um conjunto de meias verdades e reconheceu a imprecisão de suas construções. Assim como Carl Rogers, Kelly esperava que sua teoria fosse derruba­da e substituída por uma melhor. Na verdade, Kelly, mais do que qualquer outro teórico da personalidade, formulou uma teoria que encoraja a própria morte. Assim como to­dos nós podemos usar a imaginação para ver os eventos cotidianos de forma diferente, os teóricos da personalidade podem empregar sua engenhosidade para construir teorias
melhores.

Alternativismo construtivo

Kelly começou com o pressuposto de que o universo real­mente existe e funciona como uma unidade integral, com todas as suas partes interagindo com precisão entre si. Além do mais, o universo está constantemente mudando; portanto, algo está acontecendo o tempo todo. Somada a esses pressupostos básicos está a noção de que os pensa­mentos das pessoas também existem, de fato, e de que elas se esforçam para compreender seu mundo em constante mudança. Pessoas diferentes interpretam a realidade de maneiras distintas, e a mesma pessoa é capaz de mudar a própria visão de mundo.

Em outras palavras, as pessoas sempre têm maneiras alternativas de olhar para as coisas. Kelly (1963) considera­va “que todas as nossas intepretações presentes do universo es­tão sujeitas a revisão ou a substituição" (p. 15). Ele se referiu a esse pressuposto como alternativismo construtivo e re­sumiu a noção com as seguintes palavras: “Os eventos que enfrentamos hoje estão sujeitos a uma grande variedade de construções, tanto quanto a nossa inteligência seja capaz de idealizar” (Kelly, 1970, p. 1). A filosofia do alternativis­mo construtivo presume que o acúmulo dos fatos, peça por peça, não se soma à verdade; em vez disso, ela supõe que os fatos podem ser olhados a partir de perspectivas dife­rentes. Kelly concordava com Adler no sentido de que a interpretação acerca dos eventos é mais impor­tante que os eventos em si. Em contraste com Adler, no entanto, Kelly enfatizava a noção de que as interpretações têm significado na dimensão do tempo, e o que é válido em um momento se torna falso quando interpretado de forma diferente em um momento posterior. Por exemplo, quando Freud originalmente ouvia os relatos de seus pacientes sobre uma sedução na infância, ele acre­ditava que as experiências sexuais precoces eram responsá­veis pelas reações histéricas posteriores. Se Freud tivesse continuado a interpretar dessa forma os relatos de seus pacientes, toda a história da psicanálise teria sido muito diferente. Então, por uma variedade de razões, Freud reestruturou seus dados e abandonou a hipótese da sedução. Logo depois, ele inclinou um pouco o quadro e teve uma vi­são muito diferente. Com essa nova visão, ele concluiu que tais relatos de sedução eram meramente fantasias infantis. Sua hipótese alternativa foi o complexo de Édipo, um con­ceito que permeia a teoria psicanalítica atual e está 180° afastado de sua teoria da sedução original. Se considerar­mos as observações de Freud ainda por outro ângulo, como a perspectiva de Erikson, poderemos chegar ainda a uma conclusão diferente.

Kelly acreditava que a pessoa, não os fatos, detém a chave para o futuro de um indivíduo. Os fatos e os eventos [377] não ditam as conclusões; em vez disso, eles carregam sig­nificados para descobrirmos. Todos nós defrontamos cons­tantemente com alternativas, as quais podemos explorar conforme nossa opção, mas, de qualquer modo, precisamos assumir a responsabilidade por como interpretamos o mun­do. Não somos vítimas da história, nem das circunstâncias presentes. Isso não significa que possamos fazer do mundo o que quer que desejemos. Estamos “limitados por nossa in­teligência frágil e nossa confiança tímida no que é familiar" (Kelly, 1970, p. 3). Nem sempre recebemos bem as idéias novas. Assim como os cientistas em geral e os teóricos da personalidade em particular, com frequência julgamos a reestruturação perturbadora e, assim, adotamos idéias que são confortáveis e teorias que estão bem-estabelecidas. [378]

Psicologia - Teoria dos construtos pessoais
Epistemologia - Teoria, Conceito de humanidade
12/26/2020 3:54:31 PM | Por Gregory J. Feist, Jess Feist, Tomi-Ann Roberts
Conceito de humanidade para teoria da aprendizagem social cognitiva

Rotter e Mischel veem as pessoas como animais cognitivos cujas percepções dos eventos são mais importantes do que os próprios eventos. As pessoas são capazes de interpretar os eventos de várias maneiras, e essas percepções cognitivas ten­dem a ser geralmente mais influentes do que o ambiente na determinação do valor do reforçador. A cognição capacita pes­soas diferentes a verem a mesma situação de formas distintas e a atribuírem valores diferentes ao reforço que se segue ao comportamento.

Tanto Rotter quanto Mischel entendem os humanos como animais direcionados para o objetivo que não reagem meramente ao ambiente, mas que interagem com seus am­bientes psicologicamente significativos. Portanto, a teoria da aprendizagem social cognitiva é mais teleológica ou orienta­da para o futuro, do que causal. As pessoas atribuem valor positivo aos eventos que elas percebem que as aproximam de seus objetivos e atribuem valor negativo aos eventos que as impedem de atingi-los. Os objetivos, então, servem como critérios para avaliar os eventos. As pessoas são motivadas menos pelas experiências passadas com o reforço do que por suas expectativas de eventos futuros.

A teoria da aprendizagem social cognitiva sustenta que as pessoas se movem na direção dos objetivos que estabelece­ram para si. Esses objetivos, no entanto, modificam-se confor­me mudam as expectativas de reforço das pessoas e sua pre­ferência por um reforço em relação a outro. Como as pessoas estão continuamente no processo de estabelecer objetivos, elas possuem alguma escolha na direção de suas vidas. O livre-arbítrio não é ilimitado, no entanto, porque as experiências passadas e os limites das competências pessoais determinam, em parte, o comportamento.

Como Rotter e Mischel são realistas e pragmáticos, é difí­cil lclassificá-los na dimensão do otimismo versus pessimismo. Eles acreditam que as pessoas podem aprender estratégias construtivas para a solução de problemas e que elas são capa­zes de aprender novos comportamentos em qualquer ponto da vida. Contudo, esses teóricos não sustentam que as pessoas tenham dentro de si uma força inerente que as move inevita­velmente na direção do crescimento psicológico.

Quanto ao aspecto dos motivos conscientes versus inconscientes, a teoria da aprendizagem social cognitiva pende na direção das forças conscientes. As pessoas podem consciente­mente estabelecer objetivos para si e lutar de modo conscien­te para resolver velhos e novos problemas. Entretanto, nem sempre estão conscientes das motivações subjacentes de uma boa parte de seu comportamento atual.

Quanto à questão de a personalidade ser moldada por influências sociais ou biológicas, a teoria da aprendizagem social cognitiva enfatiza os fatores sociais. Rotter destacou particularmente a importância da aprendizagem dentro de um ambiente social. Mischel também enfatizou as influências sociais, mas ele não negligencia a importância dos fatores ge­néticos. Ele e Shoda (Mischel & Shoda, 1999) sustentam que as pessoas têm uma predisposição tanto genética quanto social para agir de determinada maneira. A predisposição genética, é claro, provém de sua dotação genética, enquanto sua predis­posição social resulta de sua história social.

Quanto à ênfase na singularidade ou nas semelhanças, colocamos Rotter em uma posição intermediária. As pessoas possuem histórias individuais e experiências únicas que per­mitem estabelecer objetivos personalizados, mas também há semelhanças suficientes entre as pessoas para possibilitar a construção de fórmulas matemáticas que, na presença de in­formações suficientes, permitem a predição fidedigna e preci­sa do comportamento.
Por comparação, Mischel claramente coloca maior ênfase na singularidade do que nas semelhanças. As diferenças entre as pessoas resultam da assinatura comportamental de cada in­divíduo e dos padrões únicos de variação no comportamento de cada pessoa. Em suma, a teoria da aprendizagem social cog­nitiva considera as pessoas como animais direcionados para o futuro, orientadas, unificadas, cognitivas, afetivas e sociais que são capazes de avaliar experiências atuais e prever eventos fu­turos com base em objetivos que elas escolheram para si. [372]

Psicologia - Teoria da aprendizagem social cognitiva
Epistemologia - Teoria, Classificação da teoria
12/26/2020 3:43:46 PM | Por Gregory J. Feist, Jess Feist, Tomi-Ann Roberts
Classificação da Teoria da aprendizagem social cognitiva

A teoria da aprendizagem social cognitiva é atraente para quem valoriza os rigores da teoria da aprendizagem e o pressuposto especulativo de que as pessoas são seres cognitivos orientados para o futuro. Rotter e Mischel de­senvolveram teorias da aprendizagem para humanos pen­santes, avaliadores e direcionados para objetivos, em vez de para animais de laboratório. Como as demais teorias, o valor da teoria da aprendizagem social cognitiva reside em como ela se classifica em relação aos seis critérios para uma teoria útil.

Em primeiro lugar, as teorias de Rotter e Mischel es­timularam um corpo de pesquisa significativo? Com base nesse critério, as teorias da aprendizagem social cognitiva geraram tanto quantidade quanto qualidade de pesquisa. Por exemplo, o conceito de Rotter de locus do controle foi, e continua a ser, um dos tópicos mais amplamente pesquisa­ dos na literatura psicológica. O locus do controle, no entan­to, não é o núcleo da teoria da personalidade de Rotter, e a teoria em si não gerou um nível comparável de pesquisa. Em contraste com o conceito de Rotter de locus do contro­le, a teoria de Mischel gerou um pouco menos de pesquisa, porém mais relevante para suas idéias centrais.

Segundo, as teorias da aprendizagem social cognitiva são refutáveis? A natureza empírica do trabalho de Rotter e Mischel expõe essas teorias a possível refutação e verifica­ção. Entretanto, a fórmula de predição básica e a fórmula de predição geral são completamente hipotéticas e não po­dem ser testadas com precisão. Por comparação, a teoria de Mischel se presta um pou­co mais à refutação. De fato, a pesquisa sobre adiamento da gratificação levou-o a colocar mais ênfase nas variáveis da situação e menos na inconsistência do comportamento. Essa redução da ênfase no adiamento da gratificação per­mitiu a Mischel evitar as abordagens metodológicas limitadas usadas em sua pesquisa inicial.

Terceiro, conforme o critério de organização do conhe­cimento, a teoria social cognitiva se classifica um pouco acima da média. Em tese, pelo menos, a fórmula de pre­dição geral de Rotter e seus componentes de potencial da necessidade, liberdade de movimento e valor da necessida­de oferecem uma estrutura útil para compreender muito do comportamento humano. Quando o comportamento é visto como uma função dessas variáveis, ele assume um matiz diferente. A teoria de Mischel agora se classifica aci­ma da média nesse critério, porque ele continuou a ampliar o âmbito de sua teoria para incluir disposições pessoais e unidades cognitivo-afetivas capazes de predizer e explicar o comportamento.

Quarto, a teoria da aprendizagem social cognitiva serve como um guia para a ação útil? Com base em tal cri­tério, classificamos a teoria como apenas moderadamente alta. As idéias de Rotter sobre psicoterapia são bastante explícitas e constituem um guia útil para o terapeuta, po­rém sua teoria da personalidade não é tão prática. As fór­mulas matemáticas servem como uma estrutura útil para organizar o conhecimento; contudo, não sugerem um cur­so específico de ação para o praticante, porque o valor de cada fator dentro da fórmula não pode ser conhecido com certeza matemática. Da mesma forma, a teoria de Mischel é apenas moderadamente útil para o terapeuta, o profes­sor ou o pai. Ela sugere aos praticantes que eles devem esperar que as pessoas se comportem de formas diferen­tes em situações distintas e até mesmo de um momento para outro, mas fornece poucas diretrizes específicas para a ação.

Quinto, as teorias de Rotter e Mischel têm coerên­cia interna? Rotter é cuidadoso na definição de conceitos para que o mesmo termo não tenha dois ou mais signi­ficados. Além disso, os componentes separados de sua teoria são logicamente compatíveis. A fórmula de pre­dição básica, com seus quatro fatores específicos, é logi­camente coerente com as três variáveis mais amplas da fórmula de predição geral. Mischel, assim como Bandura, desenvolveu uma teoria a partir da pesqui­sa empírica sólida, um procedimento que favorece muito a coerência.

Sexto, a teoria da aprendizagem social cognitiva é parcimoniosa? Em geral, ela é relativamente simples e não pretende oferecer explicações para toda a personalidade humana. Mais uma vez, a ênfase na pesquisa em vez de na especulação filosófica contribuiu para a parcimônia das teorias da aprendizagem social cognitiva tanto de Rotter quanto de Mischel. [371]

Psicologia - Teoria da aprendizagem social cognitiva
Pesquisas - Pesquisas relacionadas, 
12/26/2020 3:15:32 PM | Por Gregory J. Feist, Jess Feist, Tomi-Ann Roberts
Pesquisas relacionadas à Teoria da aprendizagem social cognitiva

As idéias de Rotter sobre controle interno e externo ge­raram uma quantidade considerável de pesquisa em psi­cologia, com muitos pesquisadores de outras disciplinas aproveitando os conceitos desse autor para as próprias investigações. O CAPS de Mischel, embora um modelo re­lativamente novo da personalidade (foi proposto de forma integral na metade da década de 1990), gerou um forte corpus de trabalho, considerando sua idade, com vários es­tudos focando a estrutura se-então discutida previamente.

Locus de controle e heróis do holocausto

As variáveis da personalidade podem ser usadas para predizer resultados incontáveis. Alguns resultados são triviais e rotineiros, como se La Juan irá deitar a cabeça durante uma palestra maçante, enquanto outros são extraordinários, tais como se La Juan obterá doutorado em psicologia. Mas talvez ne­nhum resultado seja mais extraordinário do que o selecio­nado pela psicóloga Elizabeth Midlarsky e colaboradores. Midlarsky procurou usar variáveis da personalidade para predizer quem era um herói do holocausto e quem era um espectador durante os anos trágicos da II Guerra Mundial (Midlarsky, Fagin Jones, & Corley, 2005). O genocídio de 6 milhões de judeus pelos nazistas foi tão extremo, tão terrível, que é difícil imaginar que apenas metade de 1% das pessoas em território ocupado pelos nazistas optou por ajudar seus vizinhos judeus quando a vida deles corria perigo (Oliner & Oliner, 1988). Mas o perigo apresentado àqueles que auxiliavam os judeus era igual ao risco de ser judeu; portanto, as ações dos civis não judeus que coloca­ram suas vidas em risco para auxiliar seus vizinhos perse­guidos eram verdadeiramente atos raros e heroicos.

Para investigar o poder da personalidade para predizer tais atos heroicos raros, Midlarsky e colaboradores reuni­ram uma amostra extraordinária de pessoas que consistia de 80 salvadores de judeus durante a II Guerra Mundial, 73 espectadores que viviam na Europa durante o mesmo período, mas não auxiliaram os judeus, e uma amostra de comparação de 43 pessoas que eram da Europa, mas imigraram para a América do Norte antes da guerra. Os par­ticipantes tinham cerca de 72 anos, em média, na época em que o estudo foi conduzido, significando que a maioria deles estava na faixa dos 20 anos durante a II Guerra Mun­dial. O status de salvador foi verificado pelo testemunho de sobreviventes do holocausto resgatados pelos participan­tes do estudo.

Os pesquisadores incluíram diversas variáveis de per­sonalidade em seu esforço para predizer quem era um he­rói e quem era um espectador; uma dessas variáveis era o locus de controle. Ser orientado mais em direção ao senso de controle interno era previsto como relacionado a ser um herói do holocausto, porque tais indivíduos acreditam ter controle sobre os eventos da vida e que o sucesso não se deve à sorte ou ao acaso (como as pessoas com um senso de controle externo acreditariam). Para usar a linguagem de Rotter (Rotter, 1966), aqueles com controles internos são pessoas que possuem uma expectativa generalizada de que seus atos para salvar a vida dos vizinhos perseguidos seriam bem-sucedidos. Outras variáveis que Midlarsky e colaboradores examinaram eram autonomia (ter um senso de independência), correr riscos, responsabilidade social, autoritarismo (relacionado a possuir atitudes preconcei­tuosas em relação a grupos de minorias e o oposto da to­lerância), empatia e raciodnio moral altruísta (altos níveis dos quais requerem raciocínio abstrato, incluindo o uso de valores internalizados). Todas as variáveis da personalida­de foram mensuradas por meio de medidas de autorrelato-convencionais, e os participantes preencheram as medidas durante entrevistas face a face com um dos pesquisadores na casa do participante.

Os pesquisadores constataram que possuir um senso interno de controle estava positivamente relacionado a to­das as variáveis da personalidade medidas, ou seja, aque­les que tinham um alto senso de controle interno também eram mais autônomos, corriam mais riscos, apresentavam um senso de responsabilidade social mais forte, eram mais tolerantes (menos autoritários), eram mais empáticos e exibiam níveis mais elevados de raciocínio moral altruísta.

Para testar sua hipótese principal de que a personali­dade poderia predizer o status de herói, os pesquisadores usaram um procedimento estatístico que permitiu reunir todos os participantes (heróis, expectadores e a amostra de comparação de imigrantes pré-guerra) e, então, empregar os escores de cada pessoa nas variáveis de personalidade para predizer a qual categoria cada participante pertencia. Corroborando a hipótese dos pesquisadores, a personali­dade predizia corretamente quem era um herói e quem não era 93% das vezes, o que é uma taxa de precisão muito alta para esse tipo de análise. [369]

Análises adicionais revelaram que aqueles que coloca­ram a própria vida em risco para ajudar seus vizinhos per­seguidos tinham um senso de controle interno mais alto do que aqueles que não ofereceram assistência. E isso faz muito sentido: se uma pessoa tem um senso de controle externo, acreditando que o resultado dos eventos é uma casualidade, então por que iria arriscar a própria segurança para tomar uma atitude de ajudar a assegurar a segurança de outros? Ter uma expectativa generalizada de que suas ações terão um efeito positivo e que o resultado dos even­tos não é uma casualidade é essencial para ser capaz de aju­dar os outros sob condições extraordinárias.

Interação pessoa-situação

Walter Mischel conduziu uma grande quantidade de pes­quisas sobre as complexidades associadas a personalida­de, situações e comportamento. Sua pesquisa e teoria da aprendizagem social cognitiva geraram ainda mais pesqui­sas, realizadas por muitos estudiosos no campo. Talvez a mais importante delas tenha sido a pesquisa recente sobre a interação pessoa-situação. A essência dessa abordagem é resumida pela contingência contextual entre comporta­mento e contexto na declaração “Se estou nesta situação, então faço X; mas, se estou naquela situação, então faço Y". Conforme discutimos na seção sobre sistema de persona­lidade cognitivo-afetivo, Mischel e Shoda desenvolveram métodos conceituais e empíricos de investigação da intera­ção pessoa-situação simplesmente fazendo os participan­tes responderem a situações se-então.

Em um estudo recente, sofisticado em sua simplicida­de, uma das alunas de Mischel, Lara Kammrath, e colabo­radores demonstraram a estrutura “Se... então” de forma muito clara (Kammrath, Mendoza-Denton, & Mischel, 2005). O objetivo do estudo era mostrar que as pessoas compreendem a estrutura se-então e a usam quando fazem julgamentos acerca dos outros. Os participantes desse es­tudo receberam apenas um traço de uma estudante fictícia e, então, foram convidados a predizer a afetividade com que a estudante se comportaria em várias situações dife­rentes. O traço descritor que cada participante recebeu foi determinado aleatoriamente a partir da seguinte lista: ami­gável, aduladora, sedutora, tímida ou hostil. Com apenas um desses traços em mente, os participantes tinham que prever como a estudante fictícia se comportaria com os pa­res, os professores, as mulheres, os homens, os familiares e as pessoas estranhas.

O que os pesquisadores encontraram corroborou perfeitamente a estrutura se-então das interações pessoa-situação. Por exemplo, quando o descritor do traço para a estudante fictícia era aduladora, os participantes predisseram que ela agiria de modo muito afetivo com os professores, mas não excepcionalmente afetiva com os pares. Em outras palavras, se o alvo da interação fosse de alto status (professor), então a estudante era muito afetiva; mas se o alvo não fosse de alto status, então a estudante não era afetiva. Do mesmo modo, quando a estudante era descrita como hostil, os par­ticipantes predisseram que ela seria mais afetiva com pes­soas conhecidas, mas absolutamente não afetiva com estra­nhos. Esses achados demonstram claramente que a pessoa mediana compreende que os indivíduos não se comportam da mesma maneira em todas as situações - dependendo da personalidade, as pessoas ajustam o comportamento para se adequarem à situação.

Mischel e colaboradores concluíram que a conceitualizaçâo interacionista social cognitiva do ambiente pessoa-situação é uma forma mais apropriada de compreender o comportamento humano do que as visões da personali­dade “descontextualizadas" tradicionais, em que os indiví­duos se comportam de determinada maneira independentemente do contexto.

Autorregulação ao longo da vida

A primeira pesquisa de Walter Mischel em psicologia da personalidade foi sobre o adiamento da gratificação. Lembre-se de que, em seus primeiros estudos com Ebbesen (1970), Mischel identificou que as crianças que eram capazes de resistir à tentação (neste caso, não comer um marshmallow, mas, em vez disso, esperar para receber dois marshmallows mais tarde) faziam isso com o uso de uma variedade de estratégias cognitivas e comportamentais. Desde aquele trabalho inicial, décadas de pesquisa longi­tudinal acompanharam os pré-escolares ao longo de sua vida para explorar os mecanismos que possibilitam a au­torregulação efetiva.

Em uma revisão recente desses estudos de follow-up, Walter Mischel, Yuichi Shoda e colaboradores (2012) apre­sentam evidências da validade de predição surpreendente­mente significativa do “teste do marshmallow’’ para resulta­dos sociais, cognitivos e mentais ao longo da vida. A lista de conseqüências marcantes é longa. Por exemplo, o núme­ro de segundos que os pré-escolares eram capazes de esperar para obter os dois marshmallows preferidos predizia de forma significativa escores mais altos no SAT quando eles estavam no ensino médio e, posteriormente, uma conquis­ta educacional mais elevada, maior autoestima e uma capa­cidade mais aprimorada de lidar com o estresse (Ayduk et al., 2000; Shoda et al., 1990). Além disso, os pré-escolares que cederam à tentação de um marshmallow apresentaram 30% a mais de probabilidade de ter sobrepeso aos 11 anos de idade (Seeyave et al., 2009) e maior probabilidade de desenvolver características de personalidade borderline na idade adulta (Ayduk et al., 2008) do que os que foram capa­zes de esperar pela recompensa adiada.

O que possibilita essa incrível força de vontade em alguns, mas não em todos nós? Mischel e colaboradores [370] publicaram substancialmente sobre essa questão e con­cluíram que os que conseguem resistir à tentação em favor de objetivos de longo prazo usam duas estratégias amplas: redirecionamento da atenção ou reestruturação cognitiva (Mischel et al., 2010). Ignorar ou prestar atenção em algo além do objeto tentador ajuda os retardadores. Reestrutu­rar uma situação a partir do que Mischel e colaboradores denominaram de características “quentes" (p. ex., o sabor delicioso do marshmallow) e se direcionar para represen­tações “mais frias” (a forma do marshmallow) também estimula a capacidade de adiar. Essas estratégias simples podem ser ensinadas para melhorar de modo substancial a capacidade de adiar a gratificação e aprimorar a autorregulação e, por extensão, a vida. As demonstrações apa­rentemente simples de Walter Mischel das competências autorregulatórias do início da vida se revelaram preditores poderosos de personalidade flexível e saudável durante a meia-idade. [371]

Psicologia - Teoria da aprendizagem social cognitiva
Comportamento - Predição do comportamento, 
12/26/2020 3:14:46 PM | Por Gregory J. Feist, Jess Feist, Tomi-Ann Roberts
Sistema de personalidade cognitivo-afetivo

Para resolver o clássico paradoxo da consistência, Mischel e Shoda (Mischel, 2004; Mischel & Shoda, 1995, 1998, 1999; Shoda & Mischel, 1996,1998) propuseram um sis­tema de personalidade cognitivo-afetivo (CAPS; cogni­tive-affective personality system), também chama sistema de processamento cognitivo-afetivo) que explica a variabilidade entre as situações e a estabilidade do com­portamento de uma pessoa. As inconsistências aparentes no comportamento de uma pessoa não são resultado de um erro aleatório, nem produzidas apenas pela situação. Ao contrário, elas são comportamentos potencialmente previsíveis que refletem padrões de variação estáveis em uma pessoa. O CAPS prediz que o comportamento de uma pessoa muda de situação para situação, mas de maneira significativa.

Mischel e Shoda (Mischel, 1999, 2004; Mischel & Ayduk, 2002; Shoda, LeeTiernan, 8 Mischel, 2002) de­fendem que as variações no comportamento podem ser conceitualizadas na seguinte estrutura: Se A, então X; mas se B, então Y. Por exemplo, se Mark for provocado por sua esposa, então ele reagirá agressivamente. No entan­to, quando o “se" muda, o "então" também se modifica. Se Mark for provocado por seu chefe, então ele reagirá de
forma submissa. O comportamento de Mark pode parecer inconsistente, porque, ao que parece, ele reage de forma diferente ao mesmo estímulo. Mischel e Shoda, no entan­to, argumentam que ser provocado por duas pessoas dife­rentes não constitui o mesmo estímulo. O comportamen­to de Mark não é inconsistente e pode refletir um padrão de reação estável. Essa interpretação, acreditam Mischel e Shoda, resolve o paradoxo da consistência, levando em consideração o longo histórico de variabilidade observado no comportamento e a convicção intuitiva de psicólogos e leigos de que a personalidade é relativamente estável. A variabilidade observada com frequência no comporta­mento é apenas uma parte essencial de uma estabilidade unificadora da personalidade.

Essa teoria não propõe que os comportamentos se­jam fruto de traços de personalidade globais estáveis. Se os comportamentos fossem resultado de traços globais, então haveria pouca variação individual no comportamen­to. Em outras palavras, Mark reagiria de maneira muito parecida à provocação, independentemente da situação es­pecífica. No entanto, o padrão duradouro de variabilidade [364] de Mark atesta a inadequação tanto da teoria da situação quanto da teoria dos traços. Seu padrão de variabilidade é sua assinatura comportamental da personalidade, ou seja, sua maneira consistente de variar o comportamento em situações específicas (Shoda, LeeTieman & Mischel, 2002). Sua personalidade tem uma assinatura que perma­nece estável entre as situações, mesmo que o comporta­mento mude. Mischel (1999) acredita que uma teoria ade­quada da personalidade deve "tentar predizer e explicar essas assinaturas da personalidade, em vez de eliminá-las ou ignorá-las" (p. 46).

Predição do comportamento

As teorias efetivas de­vem ser apresentadas em uma estrutura se-então, porém Mischel (1999,2004) é um dos poucos teóricos da perso­nalidade a fazer isso. Sua posição teórica básica para pre­dizer e explicar é apresentada da seguinte maneira: “Se a personalidade é um sistema estável que processa as infor­mações acerca das situações, externas ou internas, então, quando os indivíduos encontram diferentes situações, os seus comportamentos devem variar entre as situações" (p. 43). Essa posição teórica pode gerar inúmeras hipóte­ses acerca dos resultados do comportamento. Ela presu­me que a personalidade pode ter estabilidade temporal que os comportamentos podem variar conforme a situa­ção. Ela também sugere que a predição do comportamen­to se baseia no conhecimento de como e quando as várias unidades cognitivo-afetivas são ativadas. Essas unidades incluem codificações, expectativas, crenças, competên­cias, planos e estratégias autorregulatórias, bem como afetos e objetivos.

Variáveis da situação

Mischel acredita que a influência relativa das variáveis da situação e das qualidades pessoais pode ser determi­nada pela observação da uniformidade ou da diversidade das respostas em determinada situação. Quando pessoas diferentes se comportam de maneira muito similar - por exemplo, enquanto assistem a uma cena emotiva em um filme envolvente -, as variáveis da situação são mais pode­rosas do que as características pessoais. Todavia, eventos que parecem os mesmos podem produzir reações muito di­ferentes, porque as qualidades pessoais superam as situacionais. Por exemplo, vários trabalhadores podem ser des­pedidos do emprego, mas as diferenças individuais levam a comportamentos diversos, dependendo da necessidade de trabalho percebida dos trabalhadores, da confiança em seu nível de habilidade e da capacidade percebida de encontrar outro emprego.

No início de sua carreira, Mischel conduziu estudos demonstrando que a interação entre a situação e as várias qualidades pessoais era um determinante importante do comportamento. Em um estudo, por exemplo, Mischel e Ervin Staub (1965) examinaram as condições que influen­ciavam a escolha de uma recompensa e constataram que tanto a situação quanto a expectativa de sucesso do indi­víduo eram significativas. Esses investigadores pediram, inicialmente, que meninos da sétima série classificassem suas expectativas de sucesso em tarefas de raciocínio ver­bal e informações gerais. Posteriormente, depois que os es­ tudantes trabalharam em uma série de problemas, foi dito a alguns que eles tinham obtido sucesso naqueles proble­mas; outros foram informados de que haviam fracassado; e o terceiro grupo não recebeu qualquer informação. Então, solicitou-se que escolhessem entre uma recompensa não contingente menos valiosa e imediata e uma recompensa contingente mais valiosa e adiada.

Consistente com a teoria da interação de Mischel, os estudantes a quem tinha sido dito que haviam obtido sucesso na tarefa similar anterior apresentaram maior probabilidade de esperar pela recom­pensa mais valiosa que era contingente a seu desempenho; aqueles que foram informados de que haviam fracassado anteriormente tenderam a escolher uma recompensa me­nos valiosa imediata; e aqueles que não tinham recebido feedback fizeram escolhas baseadas em suas expectativas originais de sucesso; ou seja, os estudantes no grupo sem informação que, a princípio, tinham altas expectativas de sucesso fizeram escolhas similares àqueles que acredita­ vam que haviam tido sucesso, enquanto aqueles que originalmente tinham baixas expectativas de sucesso fizeram escolhas similares àqueles que acreditavam ter fracassado. A Figura 18.2 mostra como o feedback situacional interage com a expectativa de sucesso para influenciar a escolha das recompensas.

Figura 18.2

Mischel e colaboradores também demonstraram que as crianças podem usar seus processos cognitivos para mudar uma situação difícil transformando-a em fácil. Por exemplo, Mischel e Ebbe B. Ebbesen (1970) descobriram que algumas crianças eram capazes de usar sua habilida­de cognitiva para mudar uma espera desagradável por um presente, transformando-a em uma situação mais agradá­vel. Em seu estudo sobre o adiamento da gratificação, foi dito a crianças de uma creche que elas receberiam uma pequena recompensa depois de um curto período de tem­po, mas um presente maior se elas pudessem esperar mais tempo. As crianças que pensaram no presente tiveram di­ficuldade de esperar, enquanto aquelas que conseguiram esperar por mais tempo usaram uma variedade de formas de se distrair para evitar pensarem na recompensa. Elas ignoraram o presente, fecharam os olhos ou cantaram músicas para transformar a situação de espera aversiva em uma situação agradável. Esses e outros resultados de pesquisa levaram Mischel a concluir que tanto a situação quanto os vários componentes cognitivo-afetivos da per­sonalidade desempenham um papel na determinação do comportamento. [365]

Unidades cognitivo-afetivas

Em 1973, Mischel propôs um conjunto de cinco variáveis sobrepostas relativamente estáveis que interagem com a situação para determinar o comportamento. Mais de 30 anos de pesquisa fizeram com que Mischel e colaboradores ampliassem sua concepção dessas variáveis, as quais chamaram de unidades cognitivo-afetivas {Mischel, 1999, 2004; Mischel & Ayduk, 2002; Mischel & Shoda, 1995, 1998, 1999). Tais variáveis pessoais mudaram a ênfase do que a pessoa tem (i.e., traços globais) para o que a pessoa faz em uma situação particular. O que uma pessoa faz inclui mais do que ações; abarca qualidades cognitivas e afetivas como pensar, planejar, sentir e avaliar.

As unidades cognitivo-afetivas incluem todos os as­pectos psicológicos, sociais e fisiológicos que fazem as pes­soas interagirem com seu ambiente em um padrão de va­riação relativamente estável. Essas unidades envolvem: (1) estratégias de codificação; (2) competências e estratégias autorregulatórias; (3) expectativas e crenças; (4) objetivos e valores; e (5) respostas afetivas.

Estratégias decodificação

Uma unidade cognitivo-afetiva importante que acaba afe­tando o comportamento são os construtos pessoais das pessoas e as estratégias de codificação, ou seja, as for­mas de categorização das informações recebidas dos es­tímulos externos. As pessoas usam processos cognitivos para transformar esses estímulos em construtos pessoais, incluindo seu autoconceito, sua visão acerca das outras pessoas e sua maneira de encarar o mundo. Diferentes pessoas codificam os mesmos eventos de formas distin­tas, o que explica as diferenças individuais nos construtos pessoais. Por exemplo, uma pessoa pode reagir com raiva quando insultada, enquanto outra pode optar por ignorar o mesmo insulto. Além disso, a mesma pessoa pode codi­ficar o mesmo evento de formas diferentes em situações distintas. Por exemplo, uma mulher que normalmente interpreta um telefonema da melhor amiga como uma experiência agradável pode, em determinada situação, percebê-la como incômoda.

As entradas de estímulos são alteradas de modo substancial pela atenção seletiva das pessoas, pelo modo como elas interpretam sua experiência e pela forma como categorizam essas entradas. Mischel e o ex-aluno de doutorado Bert Moore (1973) constataram que as crianças podem transformar eventos ambientais focan­do aspectos selecionados das entradas dos estímulos. Nesse estudo do adiamento da gratificação, as crianças expostas a imagens das recompensas (petiscos ou moe­das) conseguiam esperar mais tempo pelas recompensas do que aquelas encorajadas a construir cognitivamente (imaginar) recompensas reais enquanto visualizavam as figuras. Um estudo anterior (Mischel, Ebbesen, & Zeiss, 1972) demonstrou que as crianças expostas a recompen­sas reais durante um período de espera tinham maior di­ficuldade em esperar do que as que não eram expostas à recompensa. Os resultados desses dois estudos suge­riram que, em pelo menos algumas situações, as trans­formações cognitivas dos estímulos podem ter quase o mesmo efeito que os estímulos reais.

Competências e estratégias autorregulatórias

A forma como nos comportamos depende, em parte, dos comportamentos potenciais disponíveis, de nossas cren­ças do que podemos fazer, de nossos planos e estratégias para realizar comportamentos e de nossas expectativas de sucesso (Mischel, Cantor, & Feldman, 1996). Nossas crenças no que podemos fazer relacionam-se às nossas competências. Mischel (1990) usou o termo “competências" para se referir a um amplo leque de informações que adquirimos acerca do mundo e de nossa relação com ele. Observando nossos próprios comportamentos e os dos outros, aprendemos o que podemos fazer em uma si­tuação específica, assim como o que não podemos fazer.

Mischel concordou com Bandura em relação ao fato de que não atentamos a todos os estímulos em nosso am­biente; em vez disso, construímos seletivamente ou gera­mos nossa própria versão do mundo real. Assim, adquiri­mos um conjunto de crenças acerca de nossas capacidades de desempenho, com frequência na ausência do desempe­nho real. Por exemplo, uma estudante excepcional pode acreditar que possui a competência para se sair bem no Graduate Record Exam (GRE)* mesmo que nunca tenha se submetido a esse teste.

Competências cognitivas, como se sair bem em um teste, são, em geral, mais estáveis temporariamente e en­tre as situações do que outras unidades cognitivo-afetivas. Ou seja, os escores das pessoas nos testes de habilidade mental não costumam apresentar grandes flutuações de uma vez até a seguinte ou de uma situação para a outra. De fato, Mischel (1990) argumentou que uma das razões para a aparente consistência dos traços é a estabilidade relativa da inteligência, um traço básico subjacente a muitas dispo­sições pessoais. Segundo ele, as competências cognitivas, conforme medidas pelos testes tradicionais de habilidade mental, revelaram ser alguns dos melhores preditores do ajuste social e interpessoal e, assim, dão aos traços sociais e interpessoais uma aparência de estabilidade. Além disso, Mischel sugeriu que, quando a inteligência é avaliada por medidas não tradicionais que incluem o potencial de uma pessoa para ver soluções alternativas aos problemas, ela ex­plica as porções ainda maiores da consistência encontrada em outros traços.

Mischel acre­dita que as pessoas usam estratégias autorregulatórias para controlar o próprio comportamento por meio de ob­jetivos autoimpostos e conseqüências autoproduzidas. As pessoas não precisam de recompensas externas e punições para moldarem seu comportamento; elas podem estabele­cer objetivos para si mesmas e, então, recompensarem ou criticarem a si próprias, conforme seu comportamento as move, ou não, na direção desses objetivos.

O sistema autorregulatório possibilita planejar, ini­ciar e manter comportamentos mesmo quando o apoio ambiental é fraco ou inexistente. Pessoas como Abraham Lincoln e Mohandas Gandhi foram capazes de regular o próprio comportamento em face de um ambiente não apoiador e hostil, mas cada um de nós pode persistir sem incentivo ambiental se tivermos objetivos e valores pode­rosos autoproduzidos. Contudo, objetivos inapropriados e estratégias ineficazes aumentam a ansiedade e levam ao fracasso. Por exemplo, pessoas com objetivos inflexíveis e exagerados podem persistir tentando atingi-los, mas a falta de competência e de apoio ambiental impede que isso ocorra.

Expectativas e crenças

Toda situação apresenta um grande número de potencial do comportamento, mas a forma como as pessoas se com­portam depende de suas expectativas e crenças específicas sobre as conseqüências de cada uma das diferentes possi­bilidades de comportamento. O conhecimento de hipóteses ou crenças das pessoas referentes ao resultado de uma situação é um preditor mais preciso do comportamento do que o conhecimento de sua capacidade de desempenho (Mischel et aL, 2002).

A partir da experiência prévia e observando os outros, as pessoas aprendem a executar os comportamentos que elas esperam que tenham os resultados mais valorizados subjetivamente. Quando as pessoas não possuem informa­ção acerca do que podem esperar de um comportamento, elas executam os comportamentos que receberam o maior reforço em situações prévias semelhantes. Por exemplo, um universitário que nunca se submeteu ao GRE já teve, no entanto, a experiência de se preparar para outros testes. O que esse estudante faz para se preparar para o GRE é influenciado, em parte, por aquilo que os comportamentos de preparação para testes anteriores apresentaram como melhores resultados. Um estudante que anteriormente foi recompensado por usar técnicas de autorrelaxamento para se preparar para os testes tem a expectativa de que as mesmas técnicas o ajudem a se sair bem no GRE. Mischel (1990, 2004) se referiu a esse tipo de expectativa como expectativa de comportamento-resultado. As pessoas, com frequência, interpretam as expectativas de comportamen­to-resultado em uma estrutura “se... então". "Se eu usar procedimentos de autorrelaxamento, então posso esperar me sair bem no GRE.” “Se eu disser à minha chefe o que realmente penso dela, então posso perder meu emprego."

Mischel também identificou um segundo tipo de ex­pectativa: as expectativas de estímulo-resultado, que se refere às muitas condições de estímulos que influenciam as pro­váveis conseqüências de um padrão de comportamento. As expectativas de estímulo-resultado ajudam a predizer quais eventos têm probabilidade de ocorrer após certos estímu­los. Talvez o exemplo mais óbvio seja uma expectativa de um trovão alto e desagradável após a ocorrência de um raio (o estímulo). Mischel acredita que as expectativas de estí­mulo-resultado são unidades importantes para compreen­der o condicionamento clássico. Por exemplo, uma criança que foi condicionada a associar dor com enfermeiras em um hospital começa a chorar e demonstrar medo quando vê uma enfermeira segurando uma seringa.

Mischel (1990) acredita que uma razão para a in­consistência do comportamento é nossa incapacidade de [367] predizer o comportamento das pessoas. Não hesitamos em atribuir traços pessoais aos outros, mas, quando no­tamos que seu comportamento é inconsistente com esses traços, temos menos certeza de como reagir a elas. Nosso comportamento será consistente entre as situações até o ponto em que as nossas expectativas se mantiverem. Mas nossas expectativas não são constantes; elas mudam por­ que podemos discriminar e avaliar a grande variedade de reforçadores potendais em determinada situação (Mischel &Ayduk, 2002).

Objetivos e valores

As pessoas não reagem passivamente às situações, mas são ativas e direcionadas para o objetivo. Elas formulam objeti­vos, fazem planos para atingi-los e, em parte, criam as pró­prias situações. Os objetivos, os valores e as preferências subjetivas das pessoas representam uma quarta unidade cognitivo-afetiva. Por exemplo, dois universitários podem ter a mesma capacidade acadêmica e também a mesma expectativa de sucesso na pós-graduação. O primeiro, no entanto, atribui maior valor a ingressar no mercado de tra­balho do que a fazer pós-graduação, enquanto o segundo escolhe fazer pós-graduação em vez de procurar uma car­reira imediata. Os dois podem ter vivenciado experiêndas muito semelhantes durante a universidade, mas, como possuem objetivos diferentes, tomaram decisões muito distintas.

Valores, objetivos e interesses, juntamente com as competências, estão entre as unidades cognitivo-afetivas mais estáveis. Uma razão para essa consistência são as propriedades dessas unidades de desencadearem emoções. Por exemplo, uma pessoa pode atribuir um valor negati­vo a determinada comida, porque a associa com a náusea que certa vez experimentou enquanto consumia aquele ali­mento. Sem o contracondidonamento, é provável que essa aversão persista, devido à forte emoção negativa produzida pela comida. De modo semelhante, valores patrióticos po­dem durar uma vida inteira, porque eles estão associados a emoções positivas, como segurança e vinculação ao lar e ao amor materno.

Respostas afetivas

Durante o início da década de 1970, a teoria de Mischel era, sobretudo, uma teoria cognitiva. Ela estava baseada no pressuposto de que os pensamentos e outros processos cognitivos interagem com uma situação particular para determinar o comportamento. Desde então, no entanto, Mischel e colaboradores (Mischel & Ayduk, 2002; Mischel & Shoda, 1998,1999) acrescentaram as respostas afetivas à lista de unidades cognitivo-afetivas importantes. As res­postas afetivas incluem emoções, sentimentos e reações fisiológicas. Mischel considera as respostas afetivas inseparáveis das cognições e compreende as unidades cognitivo-afetivas interconectadas como mais básicas do que outras unidades cognitivo-afetivas.

As respostas afetivas, então, não existem de forma isolada. Elas não só são inseparáveis dos processos cog­nitivos, como também influenciam cada uma das demais unidades cognitivo-afetivas. Por exemplo, a codificação da visão de self de uma pessoa inclui certos sentimentos posi­tivos e negativos. “Vejo-me como um estudante de psicolo­gia competente e isso me agrada." “Não sou muito bom em matemática e não gosto disso." Do mesmo modo, as com­petências e as estratégias de enfrentamento das pessoas, suas crenças e expectativas e seus objetivos e valores são
todos influenciados por suas respostas afetivas.

Mischel e Shoda (1995) afirmaram:

As representações cognitivo-afetivas não são unidades discretas desconectadas simplesmente evocadas como “respostas" em isolado: essas representações cognitivas e esses estados afetivos interagem de forma dinâmica e influenciam uns aos outros de modo reciproco, e é a organização das relações entre eles que forma a essência da estrutura da personalidade e que guia e condiciona seu impacto, (p. 253) [368]

Em resumo, as unidades cognitivo-afetivas inter-relacionadas contribuem para o comportamento quando interagem com traços de personalidade estáveis e com um ambiente receptivo. As mais importantes dessas variáveis incluem: (1) estratégias de codificação, ou como as pessoas interpretam ou categorizam um evento; (2) competências e estratégias de autorregulação, ou seja, o que as pessoas podem fazer e suas estratégias e seus planos para realizar um comportamento desejado; (3) expectativas e crenças de comportamento-resultado e estímulo-resultado referentes auma situação específica; (4), valores e preferências subjetivos que determinam, em parte, a atenção seletiva aos eventos; e (5) respostas afetivas, incluindo sentimentos e emoções, além de afetos que acompanham as reações fi­siológicas. [369]

Psicologia - Teoria da aprendizagem social cognitiva
Intervenção - Psicoterapia, 
12/25/2020 2:05:01 PM | Por Gregory J. Feist, Jess Feist, Tomi-Ann Roberts
A psicoterapia de Rotter

Para Rotter (1964), “os problemas da psicoterapia referem-se a como efetuar mudanças no comportamento por meio da interação de uma pessoa com outra. Ou seja, eles são problemas de aprendizagem humana em uma situação so­cial” (p. 82). Ainda que Rotter adote uma abordagem de so­lução de problemas para a psicoterapia, ele não limita sua preocupação a soluções rápidas para problemas imediatos. Seu interesse é de alcance mais longo, envolvendo uma mudança na orientação do paciente em relação à vida.

Em geral, o objetivo da terapia de Rotter é trazer har­monia à liberdade de movimento e ao valor da necessidade, reduzindo, assim, comportamentos defensivos e de esqui­va. O terapeuta assume um papel ativo como um professor e tenta atingir o objetivo terapêutico de duas maneiras bá­sicas: (1) mudando a importância dos objetivos e (2) eli­minando expectativas irrealisticamente baixas de sucesso (Rotter, 1964,1970,1978; Rotter & Hochreich, 1975).

Mudando objetivos

Muitos pacientes não conseguem resolver problemas da vida porque estão perseguindo objetivos distorcidos. O pa­pel do terapeuta é ajudar esses pacientes a compreender a natureza equivocada de seus objetivos e ensinar meios construtivos de lutar por objetivos realistas. Rotter e Ho­chreich (1975) listaram três fontes de problemas que se seguem a objetivos inapropriados.

Primeiro, dois ou mais objetivos importantes podem estar em conflito. Por exemplo, os adolescentes, com fre­quência, valorizam independência e proteção-dependência. Por um lado, eles desejam ser livres da dominação e do controle dos pais, mas, por outro, mantêm a necessidade de uma pessoa que cuide deles e os proteja de experiêndas dolorosas. Seus comportamentos ambivalentes costumam ser confusos tanto para eles quanto para os pais. Nessa si­tuação, o terapeuta pode ajudar os adolescentes a verem como comportamentos específicos estão relacionados a cada uma dessas necessidades e continuar a trabalhar com eles na mudança do valor de uma ou de ambas as neces­sidades. Alterando o valor da necessidade, os pacientes, de forma gradual, começam a se comportar de modo mais consistente e experimentam maior liberdade de movimen­to na obtenção de seus objetivos.

Uma segunda fonte de problemas é um objetivo des­trutivo. Alguns pacientes perseguem com persistência ob­jetivos autodestrutivos que, inevitavelmente, resultam em fracasso e punição. O trabalho do terapeuta é assinalar a natureza prejudicial da busca por tais objetivos e a probabilidade de que ela seja seguida de punição. Uma técnica possível usada nesses casos é reforçar positivamente mo­vimentos que se afastem dos objetivos destrutivos. Rotter, no entanto, é tanto pragmático quanto eclético e não se limita a um conjunto específico de técnicas para cada pro­blema imaginável. Para ele, o procedimento apropriado é o que funciona com determinado paciente.

Terceiro, muitas pessoas se encontram com problemas porque elas estabelecem objetivos muito altos e são conti­nuamente frustradas quando não conseguem alcançá-los ou superá-los. Objetivos altos conduzem ao fracasso e à dor; portanto, em vez de aprenderem meios construtivos de obter um objetivo, as pessoas aprendem maneiras não produtivas de evitar a dor. Por exemplo, uma pessoa pode aprender a evitar experiências dolorosas fugindo fisicamen­te da experiência ou reprimindo-a psicologicamente. Como essas técnicas têm sucesso, a pessoa aprende a usar a fuga e a repressão em uma variedade de situações. Nesse caso, a terapia consistiria em fazer o paciente reavaliar de modo realístico e diminuir os objetivos exagerados, reduzindo o valor do reforço desses objetivos. Como o valor do reforço alto costuma ser aprendido pela generalização, o terapeuta trabalharia para ensinar os pacientes a discriminarem entre os valores legítimos prévios e os valores falsos atuais.

Eliminando expectativas baixas

Além de modificar os objetivos, o terapeuta tenta eliminar as expectativas baixas de sucesso e seu movimento análogo de pouca liberdade. As pessoas podem ter liberdade de mo­vimento reduzida por, pelo menos, três razões.

Primeiro, elas podem carecer de habilidades ou infor­mações necessárias para se esforçarem com sucesso em di­reção a seus objetivos (Rotter, 1970). Com tais pacientes, o terapeuta se torna um professor, instruindo-os afetiva e empaticamente em técnicas mais eficazes para a solução de problemas e a satisfação das necessidades. Se um paciente, por exemplo, tem dificuldades nas relações interpessoais, o terapeuta possui um arsenal de técnicas, incluindo a ex­tinção de comportamentos inapropriados, simplesmente ignorando-os; o emprego da relação com o terapeuta como um modelo para um encontro interpessoal efetivo que pos­sa, então, generalizar para além da situação terapêutica; e o aconselhamento do paciente quanto a comportamentos específicos a serem tentados na presença de outras pessoas que têm maior probabilidade de serem receptivas.

Uma segunda fonte de liberdade de movimento baixa é a avaliação equivocada da situação presente. Por exem­plo, uma mulher adulta pode não ter assertividade com seus colegas, porque, durante a infância, ela foi punida por competir com os irmãos. Essa paciente precisa aprender a diferenciar entre o passado e o presente, além de entre ir­mãos e colegas. A tarefa do terapeuta é ajudar a fazer essas distinções e ensinar técnicas assertivas em uma variedade de situações apropriadas.

Por fim, a liberdade de movimento baixa pode se ori­ginar de generalização inadequada. Os pacientes, com fre­quência, usam o fracasso em uma situação como prova de [360] que não podem ter sucesso em outras áreas. Tome o exem­plo do adolescente fisicamente fraco que, por não ter sucesso no esporte, generalizava esse fracasso para áreas não atléticas. Seus problemas atuais provêm da generalização equivocada, e o terapeuta deve reforçar mesmo os peque­nos sucessos em relações sociais, conquistas acadêmicas e outras situações. O paciente acabará aprendendo a discriminar entre falhas realistas em uma área e comportamen­tos bem-sucedidos em outras situações.

Ainda que Rotter reconhecesse que os terapeutas de­veriam ser flexíveis em suas técnicas e utilizar abordagens distintas com pacientes diferentes, ele sugeriu várias téc­nicas interessantes que considerava efetivas. A primeira é ensinar os pacientes a procurarem cursos de ação alter­nativos. Os pacientes, muitas vezes, queixam-se de que o cônjuge, o pai, o filho ou o chefe não os entende, trata-os de forma injusta e é a fonte de seus problemas. Nessa si­tuação, Rotter simplesmente ensinaria o paciente a mu­dar o comportamento da outra pessoa. Tal mudança pode ser obtida examinando os comportamentos do paciente que em geral conduzem a reações negativas da esposa, dos pais, do filho ou do chefe. Se for possível encontrar um método alternativo em relação a outras pessoas im­portantes, provavelmente elas mudarão seu comporta­mento em relação ao paciente. Depois disso, o paciente será recompensado por se comportar de uma forma mais apropriada.

Rotter também sugeriu uma técnica para ajudar os pa­cientes a compreenderem os motivos das outras pessoas. Muitos pacientes têm uma atitude desconfiada em relação aos outros, acreditando que um cônjuge, professor ou che­fe está tentando prejudicá-los de forma maldosa e intencio­nal. Rotter tentaria ensinar esses pacientes a descobrirem como eles podem estar contribuindo para o comportamen­to defensivo ou negativo da outra pessoa e ajudá-los a per­ceber que a outra pessoa não é simplesmente desagradável ou maldosa, mas pode se sentir amedrontada ou ameaçada pelo paciente.

Os terapeutas também podem ajudar os pacientes a olharem para as conseqüências de longo prazo de seus comportamentos e a entenderem que muitos comporta­mentos desadaptados produzem ganhos secundários que compensam a frustração atual dos pacientes. Por exem­plo, uma mulher pode adotar o papel de uma criança in­defesa para obter controle sobre o marido. Ela se queixa ao terapeuta de que está insatisfeita com sua impotência e gostaria de se tornar mais independente, tanto por sua causa quanto em benefício do marido. O que ela pode não perceber, no entanto, é que seu comportamento atual de impotência está satisfazendo sua necessidade básica de dominância. Quanto mais impotente se mostra, mais controle ela exerce sobre o marido, que deve responder a sua impotência. O reforço positivo que ela recebe do reco­nhecimento do marido é mais forte do que os sentimentos negativos que o acompanham. Além disso, ela pode não perceber com clareza as conseqüências positivas de longo prazo da autoconfiança e da independência. A tarefa dos terapeutas é treinar os pacientes a adiar satisfações meno­res atuais por outras futuras mais importantes.

Outra técnica nova sugerida por Rotter é fazer os pacientes entrarem em uma situação social previamente dolorosa, mas, em vez de falar tanto quanto o habitual, devem permanecer em silêncio o máximo possível, e ape­nas observar. Observando outras pessoas, o paciente tem maior probabilidade de aprender sobre seus motivos. Os pacientes podem usar essa informação no futuro para alterar o próprio comportamento, mudando, assim, a rea­ção dos outros e reduzindo os efeitos dolorosos de encon­tros futuros com essas pessoas.

Em resumo. Rotter acredita que um terapeuta deve ser um participante ativo na interação social com o paciente. Um terapeuta eficaz possui as características de afetividade e aceitação não só porque essas atitudes encorajam o paciente a verbalizar os problemas, mas também porque o reforço de um terapeuta afetivo e receptivo é mais efetivo do que o reforço de um terapeutafrio e rejeitador (Rotter, Chance, & Phares, 1972). O terapeuta tenta minimizar a discrepância entre o valor da necessidade e a liberdade de movimento ajudando os pacientes a alterarem os objetivos ou ensinando meios efetivos de obter tais objetivos. Mes­mo que o terapeuta seja um solucionador de problemas ati­vo, Rotter (1978) defende que os pacientes devem apren­der a resolver os próprios problemas. [361]

Psicologia - Teoria da aprendizagem social cognitiva
Comportamento - Comportamento desadaptado, 
12/25/2020 1:54:16 PM | Por Gregory J. Feist, Jess Feist, Tomi-Ann Roberts
Comportamento desadaptado

O comportamento desadaptado na teoria da aprendiza­gem social de Rotter é um comportamento persistente que impede a pessoa de se aproximar de um objetivo desejado. Ele, com frequência, mas não de modo inevitável, surge da combinação de valor da necessidade alto e liberdade de mo­vimento baixa: isto é, de objetivos que são irrealisticamente altos em relação à capacidade de alcançá-los (Rotter, 1964).

Por exemplo, a necessidade de amor e afeição é realis­ta, porém algumas pessoas estabelecem o objetivo inalcançável de ser amadas por todos. Desse modo, seu valor da necessidade quase certamente excederá sua liberdade de movimento, resultando em comportamento que, muito provavelmente, será defensivo ou desadaptado. Quando as pessoas definem metas muito altas, elas não conseguem aprender comportamentos produtivos, porque seus objeti­vos estão fora de alcance. Em vez disso, elas aprendem a evitar o fracasso ou a se defenderem contra a dor que acompanha o fracasso. Por exemplo, uma mulher cujo objetivo é ser amada por todos inevitavelmente será ignorada ou rejeitada por alguém. Para obter amor, ela pode se tornar socialmente agressiva (uma estratégia não produtiva e con­traproducente) ou se afastar das pessoas, o que impede que seja magoada por elas, mas que também é não produtivo.

Estabelecer objetivos muito altos é apenas um dos vá­rios contribuintes possíveis para o comportamento desadap­tado. As pessoas podem ter expectativas de sucesso baixas porque não possuem informação ou capacidade de realizar os comportamentos que serão seguidos pelo reforço positivo. Uma pessoa que valoriza o amor, por exemplo, pode não ter as habilidades interpessoais necessárias para obtê-lo.

As pessoas também podem ter liberdade de movimento baixa porque fazem uma avaliação incorreta da situação pre­sente. Por exemplo, as pessoas, às vezes, subestimam suas ha­bilidades intelectuais porque, no passado, foi dito a elas que eram limitadas. Mesmo que seus valores da necessidade não sejam irrealisticamente altos, elas possuem uma expectativa de sucesso baixa pois acreditam de modo equivocados que são incapazes, por exemplo, de ter bom desempenho na escola ou de competir com êxito por um emprego de nível mais alto.

Outra possibilidade é a de que as pessoas tenham bai­xa liberdade de movimento porque generalizam de uma situação para a qual, de fato, não estejam capacitadas, para outras para as quais tenham habilidades suficientes para serem bem-sucedidas. Por exemplo, um adolescente fisica­mente fraco que não tem as habilidades para ser um atleta realizado pode, de modo equivocado, se ver como incapaz de competir por um papel na peça da escola ou de ser um líder em um clube social. Ele generaliza inapropriadamente suas inadequações nos esportes para a falta de habilidade em áreas não relacionadas.

Em resumo, os indivíduos desadaptados são caracteri­zados por objetivos irrealistas, comportamentos inapropriados, habilidades inadequadas ou expectativas irracionalmente baixas de serem capazes de executar os comportamentos necessários para o reforço positivo. Mesmo tendo aprendi­do formas inadequadas de resolver problemas dentro de um contexto social, eles podem desaprender esses comporta­mentos e também aprender outros mais apropriados em um ambiente social controlado oferecido pela psicoterapia. [359]

Psicologia - Teoria da aprendizagem social cognitiva
Comportamento - Predição do comportamento, Intenção
12/25/2020 11:55:02 AM | Por Gregory J. Feist, Jess Feist, Tomi-Ann Roberts
Predição de comportamentos gerais

Para predizer comportamentos gerais, observamos David, que trabalhou por 18 anos na loja de ferragens do senhor Hoffman. David foi informado de que, devido a um declí­nio nos negócios, o senhor Hoffman precisa fazer cortes no pessoal e que David pode perder o emprego. Como po­demos predizer o comportamento subsequente de David? Ele vai implorar ao senhor Hoffman para deixá-lo perma­necer na empresa? Ele vai se voltar com violência contra a loja ou contra o empregador? Ele vai deslocar sua raiva e agir agressivamente com sua esposa ou seus filhos? Ele vai [354] começar a beber demais e se tornar apático quanto à busca de um novo emprego? Ele vai procurar outro emprego ime­diatamente?

Expectativas generalizadas

Já que a maioria dos comportamentos possíveis de David é nova para ele, como podemos predizer o que ele irá fazer?

Nesse ponto, os conceitos de generalização e expectativa generalizada entram na teoria de Rotter. Se, no passado, David, em geral, foi recompensado por comportamen­tos que aumentaram seu status social, existe apenas uma pequena probabilidade de que ele vá implorar ao senhor Hoffman pelo emprego, porque tais ações são contrárias ao status social mais elevado. Todavia, se suas tentativas ante­riores de comportamentos responsáveis e independentes foram reforçadas e se ele teve liberdade de movimento - ou seja, a oportunidade de se candidatar a outro emprego - então, presumindo que ele precisa de trabalho, existe uma alta probabilidade de que se candidate a outro emprego ou comporte-se de modo independente. Essa precisão, embo­ra não tão específica quanto a que prediz a probabilidade da universitária de dormir durante uma aula maçante, é, no entanto, mais útil em situações em que o controle ri­goroso das variáveis pertinentes não é possível. Predizer a reação de David à provável perda de um emprego é uma questão de saber como ele encara as opções disponíveis e também o status de suas necessidades atuais.

Necessidades

Rotter (1982) definiu necessidades como um comporta­mento ou conjunto de comportamentos que as pessoas veem como impulsionando-as na direção de um objetivo. As necessidades não são estados de privação ou excitação, mas indicadores da direção do comportamento. A dife­rença entre necessidades e objetivos é apenas semântica. Quando o foco está no ambiente, Rotter se refere a objeti­vos; quando está na pessoa, refere se a necessidades.

O conceito de necessidades permite previsões mais generalizadas do que as possibilitadas pelas quatro variá­veis específicas que compreendem a fórmula de predição básica. Em geral, a teoria da personalidade lida com predições amplas do comportamento humano. Por exemplo, é provável que uma pessoa com fortes necessidades de dominância tente obter a posição de poder na maioria das relações interpessoais, bem como em uma variedade de ou­tras situações. Em situações específicas, no entanto, uma pessoa dominante pode se comportar de uma maneira não dominante ou até mesmo submissa. A fórmula de predição básica permite predições específicas, com o pressuposto, é claro, de que todas as informações relevantes estão à dis­posição. Ela é a fórmula mais apropriada para experimen­tos de laboratório controlados, porém não é adequada para predizer comportamentos cotidianos. Por essa razão, [354] Rotter introduziu o conceito de necessidades e sua fórmula predição geral.

Categorias das necessidades

Rotter e Hochreich (1975) listaram seis categorias amplas de necessidades, com cada categoria representando um grupo de comportamentos funcionalmente relacionados: isto é, comportamentos que levam aos mesmos reforços ou a reforços similares. Por exemplo, as pessoas podem satisfazer suas necessidades de reconhecimento em uma variedade de situações e por meio de muitos indivíduos diferentes. Portanto, elas podem receber reforço para um grupo de comportamentos funcionalmente relacionados que satisfazem a necessidade de reconhecê-las. A relação a seguir não é completa, mas representa a maioria das neces­sidades humanas importantes.

Reconhecimento-status. A necessidade de ser reconheci­do pelos outros e de alcançar um status a seus olhos é um aspecto poderoso para a maioria das pessoas. Reconheci­mento-status inclui a necessidade de se sobressair naquilo que a pessoa considera importante, como, por exemplo, escola, esportes, ocupação, hobbies e aparência física. Tam­bém inclui a necessidade de status socioeconômico e prestí­gio pessoal. Jogar uma boa partida de bridge é um exemplo da necessidade de reconhedmento-status.

Dominância. A necessidade de controlar o comporta­mento dos outros é chamada de dominância. Essa necessi­dade inclui um conjunto de comportamentos direcionados para obter o poder sobre a vida de amigos, família, colegas, superiores e subordinados. Convencer os colegas a aceitarem suas idéias é um exemplo específico de dominância.

Independência. Independência é a necessidade de ser livre da dominação dos outros. Ela inclui comportamen­tos que têm como objetivo ganhar a liberdade para tomar decisões, depender de si mesmo e atingir metas sem a aju­da dos outros. Rejeitar ajuda para consertar uma bicicleta pode ser uma necessidade de independência.

Proteção-dependência. Um conjunto de necessidades quase opostas à independência são as de proteção e depen­dência. Essa categoria indui as necessidades de ser cuidado pelos outros, de ser protegido da frustração e dos danos e de satisfazer as outras categorias de necessidades. Um exemplo específico de proteção-dependência é pedir ao cônjuge para não ir trabalhar e ficar em casa para cuidar de você quando está doente.

Amor e afeição. A maioria das pessoas possui fortes ne­cessidades de amor e afeição, isto é, necessidades de aceita­ção por parte dos outros que vai além de reconhecimento e status, de modo a indicar que os outros possuem sentimen­tos afetuosos e positivos por elas. As necessidades de amor e afeição incluem comportamentos que visam a assegurar a consideração amigável, o interesse e a devoção por parte dos outros. Fazer favores aos outros para receber expres­sões verbais de consideração positiva e gratidão pode ser um exemplo dessa necessidade.

Conforto físico. O conforto físico é talvez a necessidade mais básica, porque as demais necessidades são aprendidas em relação a ele. Essa necessidade inclui comportamentos que visam a assegurar o alimento, a boa saúde e a seguran­ça física. Outras necessidades são aprendidas como uma conseqüência das necessidades de prazer, contato físico e bem-estar. Ligar o aparelho de ar condicionado ou abraçar alguém são exemplos de necessidade de conforto físico.

Componentes das necessidades

Um complexo de necessidades possui três componentes essenciais: potencial da necessidade, liberdade de movimen­to e valor da necessidade. Esses componentes são análogos aos conceitos mais específicos de potencial do comporta­mento, expectativa e valor do reforço (Rotter, Chance, & Phares, 1972).

Potencial da necessidade. Potencial da necessidade (PN) refere-se à possível ocorrência de um conjunto de comportamentos funcionalmente relacionados e direcio­nados para a satisfação dos mesmos objetivos ou de ob­jetivos similares. Trata-se de um conceito análogo ao de potencial do comportamento. A diferença entre os dois é que o primeiro se refere a um grupo de comportamentos funcionalmente relacionados, enquanto o segundo é a pro­babilidade de que um comportamento particular ocorra em determinada situação em relação a um reforço específico.

O potencial da necessidade não pode ser medido ape­nas por meio da observação do comportamento. Se pes­soas diferentes são vistas se comportando aparentemente da mesma maneira - por exemplo, comendo em um res­taurante fino não se deve concluir que todas estejam satisfazendo o mesmo potencial da necessidade. Uma pessoa pode estar satisfazendo a necessidade de conforto físico, ou seja, comida; outra pode estar mais interessada em amor e afeição; e a terceira pode estar tentando, principal­mente, satisfazer a necessidade de reconhecimento-status. Provavelmente, alguma das seis necessidades amplas po­deria ser satisfeita comendo no restaurante. No entanto, a realização ou não do potencial da necessidade depende não só do valor ou da preferência que o indivíduo tem por aque­le reforço, mas também de sua liberdade de movimento em dar respostas que levem àquele reforço.

Liberdade de movimento. O comportamento é determina­do, em parte, por nossas expectativas ou seja, pela suposi­ção de que um reforço particular vá se seguir a uma resposta específica. Na fórmula geral de predição, liberdade de mo­vimento (LM) é análoga à expectativa. Ela é a expectativa global do indivíduo de ser reforçado realizando [355] comportamentos direcionados para a satisfação de alguma necessidade geral. Para ilustrar, uma pessoa com uma forte necessidade de dominância poderia se comportar de várias formas para satisfazer essa necessidade. Ela poderia escolher as roupas do marido, deridir qual curso universitário seu filho irá seguir, dirigir atores em uma peça, organizar uma conferênda pro­fissional envolvendo dezenas de colegas ou realizar qualquer um das centenas de comportamentos que visam a garantir o reforço para sua necessidade de dominânda. A média ou o nível médio de expectativas de que esses comportamentos conduzirão à satisfação desejada é uma medida de sua liber­dade de movimento na área da dominância.

A liberdade de movimento pode ser determinada man­tendo-se o valor da necessidade constante e observando-se o potencial da necessidade do indivíduo. Por exemplo, se uma pessoa atribui exatamente o mesmo valor a dominância, independência, amor e afeição e a cada uma das outras necessidades, ela realizará os comportamentos avaliados como tendo a maior esperança de serem reforçados. Se a pessoa realiza comportamentos que levam ao conforto físico, por exemplo, haverá mais liberdade de movimento nesse complexo de necessidades do que em outros. Nor­malmente, é claro, o valor da necessidade não é constante, porque a maioria das pessoas prefere a satisfação de uma necessidade em detrimento de outras.

Valor da necessidade. O valor da necessidade (VN) de uma pessoa é o grau em que ela prefere um conjunto de ne­cessidades em detrimento de outro. Rotter, Chance e Phares (1972) definiram esse aspecto como “o valor médio de preferência de um conjunto de reforços funcionalmente relacionados" (p. 33). Na fórmula geral de predição, o valor da necessidade é o análogo do valor do reforço. Quando a liberdade de movimento é mantida constante, as pessoas realizam as seqüências de comportamento que levam à sa­tisfação da necessidade preferida. Se as pessoas possuem ex­pectativas iguais de obter reforço positivo pelos comporta­mentos que visam à satisfação de alguma necessidade, então o valor que elas atribuem a um complexo de necessidades particular é o determinante principal de seu comportamen­to. Se preferem a independência a qualquer outro complexo de necessidades e se têm expectativa igual de serem refor­çadas na busca de alguma das necessidades, então seu com­portamento é direcionado para atingir a independência.

Fórmula de predição geral

A fórmula de predição básica está limitada a situações al­tamente controladas, em que as expectativas, o valor do reforço e a situação psicológica são todos relativamente simples e discretos. Na maioria das situações, no entanto, a predição do comportamento é muito mais complexa, por­ que os comportamentos e os reforços em geral ocorrem em seqüências funcionalmente relacionadas. Considere outra vez o caso de La Juan, a estudante dedicada que estava ten­do dificuldades em se manter acordada durante uma aula desagradável e maçante. A fórmula de predição básica ofe­rece alguma indicação da probabilidade de que, na situação específica de uma aula maçante, La Juan vá deitar a cabe­ça sobre a mesa. No entanto, é necessária uma fórmula de predição mais generalizada para prever seu potencial da necessidade de obter o reconhecimento-status que provém de se formar com as honrarias mais altas. A probabilida­ de de La Juan satisfazer essa necessidade depende de um complexo de comportamentos. Para fazer predições gene­ralizadas referentes a um conjunto de comportamentos concebidos para satisfazer as necessidades. Rotter introduziu a seguinte fórmula de predição geral:

Tal equação significa que o potencial da necessidade é uma função da liberdade de movimento (LM) e o valor da necessidade (VN), e cada fator é paralelo aos fatores corres­pondentes daquela fórmula básica. Para ilustrar a fórmula de predição geral, podemos examinar a situação de La Juan em relação a seu futuro trabalho acadêmico. Para predizer o potencial da necessida de para trabalhar por uma gradua­ção com as honrarias mais altas, precisamos medir sua li­berdade de movimento, ou seja, sua expectativa média de ser reforçada por uma série de comportamentos necessá­rios para atingir seu objetivo, mais o valor da necessidade de todos aqueles reforços, isto é, o valor que ela atribui ao reconhecimento-status ou a alguma outra necessidade que ela associe a receber horarias acadêmicas. O valor que La Juan atribui a reconhecimento-status (valor da necessida­de) mais sua expectativa média de ser reforçada pela reali­zação da série de comportamentos necessária (liberdade de movimento) é igual a seu potencial para seguir um conjun­to de comportamentos necessários (potencial da necessi­dade). Uma comparação entre a fórmula de predição básica (específica) e a fórmula de predição generalizada é apresen­tada na Figura 18.1

Figura 18.1

A fórmula de predição geral de Rotter permite que a história da pessoa de usar experiências similares antecipe o reforço atual. Ou seja, ela tem uma expectativa generali­zada de sucesso. As duas escalas mais populares de Rotter para medir a expectativa generalizada são a Escala de Con­trole Intemo-Extemo e a Escala de Confiança Interpessoal.

Controle interno e externo do reforço

Na essência da teoria da aprendizagem social de Rotter encontra-se a noção de que o reforço não se reflete auto­maticamente nos comportamentos, mas que as pessoas têm a capacidade de ver uma conexão causal entre o pró­prio comportamento e a ocorrência do reforçador (Rotter, 1954; Rotter, & Hochreich, 1975). As pessoas se esforçam para atingir seus objetivos, porque elas têm uma expectati­va generalizada de que tais esforços serão bem-sucedidos. [356] 

Durante a década de 1950 e início da década de 1960, Rotter ficou intrigado com a observação de que muitas pes­soas não aumentavam seus sentimentos de controle pessoal depois do sucesso e outras não diminuíam suas expectativas após falhas repetidas (Rotter, 1990,1993; Zuroff, & Rotter, 1985). Em outras palavras, algumas pessoas tendiam a expli­car resultados de sucesso como decorrentes de sorte ou aca­so, enquanto outras mantinham um alto senso de controle pessoal mesmo depois de vários comportamentos não refor­çados. Essas tendências pareciam especialmente verdadeiras em situações consideradas ambíguas ou novas (Rotter, 1992) ou quando não havia clareza se o resultado de seu comporta­mento era devido à habilidade ou ao acaso. Rotter (1990) su­geriu que tanto a situação quanto a pessoa contribuem para sentimentos de controle pessoal. Assim, uma pessoa com uma expectativa generalizada de sucesso em uma situação pode ter sentimentos de controle pessoal baixos em outra.

Para avaliar o controle interno e externo do reforço, ou locus do controle, Rotter (1966) desenvolveu a Escala de Controle Interno-Extemo (I-E), com base nas teses de douto­rado de dois de seus alunos, E. Jerry Phares (1955) e William H. James (1957). A escala I-E consiste em 29 itens de escolha obrigatória, em que 23 pares são pontuados e seis são afir­mações inócuas concebidas para disfarçar o propósito da es­cala. A escala é pontuada na direção do controle externo, de forma que 23 é o escore externo mais alto possível e 0 é o es­core interno mais alto possível. A Tabela 18.1 mostra vários itens com exemplos da escala I-E. As pessoas devem escolher entre a alternativa “a" ou a “b" de cada par de itens. Ainda que a direção interna ou externa desses itens possa parecer óbvia, Rotter (1990) relatou que os escores têm apenas uma correlação modesta com uma escala de conveniência social.

A escala 1-E tenta medir o grau em que as pessoas per­cebem uma relação causal entre os próprios esforços e as conseqüências no ambiente. As pessoas que têm escore alto em controle interno de modo geral acreditam que a fonte do controle reside dentro delas e que elas exercem um alto nível de controle pessoal na maioria das situações. As pessoas com escore alto em controle externo tendem a acreditar que sua vida é regulada, em grande parte, por forças externas a elas, como o acaso, o destino ou o comportamento de ter­ceiros. ... conforme Rotter (1975,1990) referiu, controle interno excessivo nem sempre é socialmente desejável. 

A escala I-E de Rotter se tornou um dos tópicos mais detalhadamente investigados em psicologia, bem como em outras ciências sociais, tendo estimulado milhares de pu­blicações desde sua concepção. Apesar de sua popularida­de, os conceitos de controle interno e externo nem sempre são compreendidos com clareza. Ainda que Rotter (1975) tenha apontado várias concepções falsas comuns referen­tes ao controle interno e externo do reforço (raras vezes se referiu a ele como “locus de controle"), as pessoas conti­nuam a fazer uso indevido do instrumento e a interpretá-lo mal. Uma concepção falsa é que os escores na escala são determinantes do comportamento. Rotter insistia em que eles não devem ser vistos como causas do comportamento, mas como indicadores de expectativa generalizada. Como tal, eles devem ser considerados com o valor do reforço ao predizer o potencial do comportamento.

Tabela 18.1

Uma segunda concepção falsa é de que o locus do contro­le é específico e pode predizer a realização em uma situação [357] em particular. Mais uma vez, o conceito se refere à expectati­va generalizada de reforço e indica o grau em que as pessoas, em geral, acreditam que estão no controle de suas vidas.

Uma terceira concepção falsa comum é de que a escala divide as pessoas em dois grupos distintos: internas e ex­ternas. Rotter (1975,1990) insistia em que as expectativas generalizadas implicam um gradiente de generalização e que, em situações específicas, uma pessoa com sentimen­tos geralmente expressivos de controle interno pode acre­ditar que o resultado de seu comportamento seja devido, sobretudo, ao destino, ao acaso ou ao comportamento de outros inidvíduos poderosos.

Quarto, muitas pessoas parecem acreditar que escores internos altos significam traços socialmente desejáveis e que escores externos altos indicam características indesejáveis no âmbito social. Na verdade, escores extremos em cada uma das direções são indesejáveis. Escores externos muito altos podem estar relacionados a apatia e a desespero, com as pessoas acreditando que não possuem controle sobre o am­biente, enquanto escores internos extremamente altos signi­ficam que as pessoas aceitam a responsabilidade por tudo o que acontece com elas - fracasso nos negócios, filhos delin­qüentes, sofrimento de outros e tempestades que interferem nas atividades planejadas ao ar livre. Escores em algum pon­to entre esses extremos, mas pendendo na direção do contro­le interno, provavelmente são os mais saudáveis e desejáveis.

Escala de Confiança Interpessoal

Outro exemplo de uma expectativa generalizada que pro­duziu considerável interesse e pesquisas é o conceito de confiança interpessoal. Rotter (1980) definiu confiança interpessoal como “uma expectativa generalizada susten­tada por um indivíduo de que se pode confiar na palavra, na promessa, na declaração oral ou escrita de outro indivíduo ou grupo" (p. 1). Confiança interpessoal não se refere à crença de que as pessoas são naturalmente boas ou que elas vivem no melhor de todos os mundos possíveis. Nem ela deve ser igualada à ingenuidade. Rotter entendia a con­fiança interpessoal como uma crença nas comunicações dos outros quando não existem evidências para desacre­ditar, enquanto ingenuidade é acreditar de forma tola ou ingênua na palavra de outra pessoa.

Como muitas de nossas recompensas e punições pro­vêm de outras pessoas, desenvolvemos expectativas gene­ralizadas de que algum tipo de reforço se seguirá a promes­sas ou a ameaças verbais feitas por outros. Às vezes, essas promessas e ameaças são cumpridas; outras vezes, não. Dessa forma, cada pessoa aprende a confiar ou a desconfiar da palavra dos outros. Como temos experiências distintas com a palavra dos outros, há diferenças individuais no que diz respeito à confiança interpessoal.

Para medir as diferenças na confiança interpessoal. Rot­ter (1967) desenvolveu a Escala de Confiança Interpessoal, que solicitava às pessoas que concordassem ou discordassem dos 25 itens que avaliavam a confiança interpessoal e apre­sentava 15 itens inócuos concebidos para ocultar a natureza do instrumento. A escala é pontuada em uma graduação de 5 pontos, desde "concordo plenamente” até "discordo total­mente”, de modo que as respostas "concordo plenamente” e "concordo” indicariam confiança em 12 itens; e as respostas "discordo totalmente” e "discordo”, confiança nos outros 13 itens. A Tabela 18.2 mostra alguns itens da Escala de Con­fiança Interpessoal de Rotter. Os escores para cada um dos 25 itens são somados, de forma que pontuação alta indica a presença de confiança interpessoal; e pontuação baixa nos escores, uma expectativa generalizada de desconfiança.

É mais desejável ter escore alto ou baixo na escala, ser confiante ou desconfiado? Quando confiança é definida de modo independente de ingenuidade, conforme defendia Rotter (1980), então confiança não é somente desejável, mas essencial para a sobrevivência da civilização. As pessoas confiam que a comida que elas compram não é enve­nenada; que a gasolina em seus carros não irá explodir na ignição; que os pilotos sabem conduzir o avião em que elas [358] viajam; e até mesmo que o serviço postal irá entregar a cor­respondência sem violá-la. As sociedades funcionam sem dificuldades apenas quando as pessoas têm pelo menos uma quantidade moderada de confiança umas nas outras.

Tabela 18.2

Rotter (1980) resumiu os resultados dos estudos que indicam que as pessoas com escore alto em confiança inter­pessoal, em oposição àquelas com escore baixo, apresentam os seguintes aspectos: (1) menor probabilidade de mentir; (2) menor probabilidade de trapacear ou roubar; (3) maior probabilidade de dar aos outros uma segunda chance; (4) maior probabilidade de respeitar os direitos dos outros; (5) menor probabilidade de serem infelizes, conflitadas ou desa­justadas; (6) tendência a serem um pouco mais admiradas e populares; (7) mais confiáveis; (8) nem mais nem menos ingênuas; e (9) nem mais nem menos inteligentes. Em outras palavras, indivíduos com confiança alta não são crédulos ou ingênuos, e, em vez de serem prejudicados por sua atitude confiante, eles parecem possuir muitas das características que outras pessoas consideram positivas e desejáveis. [359]

Psicologia - Teoria da aprendizagem social cognitiva
Comportamento - Predição do comportamento, Intenção
12/25/2020 11:22:53 AM | Por Gregory J. Feist
Predição de comportamentos específicos

Como a preocupação primária de Rotter é a predição do comportamento humano, ele sugeriu quatro variáveis que devem ser analisadas para que se façam predições corretas em uma situação específica. Essas variáveis são o potencial do comportamento, a expectativa, o valor do reforço e a si­tuação psicológica. O potencial do comportamento refere-se à probabilidade de que determinado comportamento ocorra em uma situação particular; expectativa é a esperança que a pessoa tem de ser reforçada; valor do reforço é a preferência por um reforço em particular; e situação psicológica refere-se a um padrão complexo de pistas que a pessoa percebe durante um período de tempo específico.

Potencial do comportamento

Considerado de forma ampla, o potencial do comporta­mento (PC) é a possibilidade de que uma resposta parti­cular ocorra em determinado tempo e espaço. Existem vá­rios potenciais de comportamento de forças variadas em uma situação psicológica específica. Por exemplo, quando Megan caminha até um restaurante, ela tem vários poten­ciais de comportamento. Ela pode passar sem notar o res­taurante; ignorá-lo ativamente; parar e comer; pensar em parar para comer, mas ir em frente; examinar o prédio e seu conteúdo com a intenção de comprá-lo; ou parar, en­trar e roubar o caixa. Para Megan, nessa situação, o poten­cial para algum desses comportamentos se aproximaria de zero, alguns seriam muito prováveis e outros estariam entre tais extremos. Como uma pessoa pode predizer quais comportamentos têm maior ou menor probabilidade de ocorrer?

O potencial do comportamento em determinada situação é função da expectativa e do valor do reforço. Se uma pessoa deseja saber a probabilidade de Megan roubar o caixa em vez de comprar o restaurante ou parar para comer, por exemplo, deve manter constante a expectativa e variar o valor do reforço. Se cada um desses comportamentos po­tenciais tivesse uma expectativa de 70% de ser reforçado, então uma pessoa poderia fazer uma predição acerca de sua probabilidade relativa de ocorrência com base unicamente no valor do reforço de cada uma. Se assaltar o caixa tiver um valor de reforço positivo maior do que fazer o pedido de uma comida ou comprar o restaurante, ele seria o com­portamento de maior potencial de ocorrência.

A segunda abordagem da predição é manter o valor do reforço constante e variar a expectativa. Se os reforços totais de cada comportamento possível forem de igual va­lor, então o comportamento que terá maior probabilidade de ocorrer será o que tiver maior expectativa de reforço. De modo mais específico, se os reforços de roubar o cai­xa, comprar o negócio e fazer o pedido de um jantar forem igualmente valorizados, a resposta de PC mais alto será a que tiver maior probabilidade de produzir reforço.

Rotter emprega uma definição ampla de comporta­mento, que se refere a qualquer resposta, implícita ou ex­plícita, capaz de ser observada ou medida de forma direta ou indireta. Esse conceito abrangente permite que Rotter inclua como comportamento construtos hipotéticos como a generalização, a solução de problemas, o pensamento, a análise, entre outros.

Expectativa

Expectativa (E) refere-se à esperança de que algum reforço específico ou conjunto de reforços ocorra em determinada situação. A probabilidade não é definida pelo histórico de reforços do indivíduo, como alegava Skinner, mas é sus­tentada subjetivamente pela pessoa. O histórico, é claro, é um fator contribuinte, mas também o são o pensamento irrealista, as expectativas baseadas na falta de informação e as fantasias, desde que a pessoa acredite sinceramente que determinado reforço ou grupo de reforços seja contingente em uma resposta particular.

As expectativas podem ser gerais ou específicas. As ex­pectativas generalizadas (EGs) são aprendidas por meio de experiências prévias com uma resposta particular ou com respostas similares e estão baseadas na crença de que cer­tos comportamentos serão seguidos por reforço positivo. Por exemplo, universitários cujo trabalho árduo anterior foi reforçado por notas altas terão uma expectativa geral de recompensa futura e trabalharão arduamente em uma variedade de situações acadêmicas.

As expectativas específicas são designadas como E' (E linha). Em determinada situação, a expectativa de um reforço particular é estabelecida por uma combinação de E’ e EG. Por exemplo, um estudante pode ter uma expecta­tiva geral de que determinado nível de trabalho acadêmico será recompensado por boas notas, mas pode acreditar que uma quantidade igual de trabalho árduo em uma aula de francês não será recompensada.

A expectativa total de sucesso é uma função tanto das expectativas generalizadas quanto de uma expectativa es­ pecífica do indivíduo. A expectativa total determina, em parte, a quantidade de esforço que as pessoas empregarão na busca de seus objetivos. Uma pessoa com baixa expec­tativa total para o sucesso na obtenção de um emprego de [352] prestígio provavelmente não irá se candidatar à posição, enquanto uma pessoa com alta expectativa para o sucesso empregará muito esforço e persistirá diante dos contra­ tempos para atingir os objetivos que parecem possíveis.

Valor do reforço

Outra variável na fórmula da predição é o valor do refor­ço (VR), o qual é a preferência que uma pessoa associa a algum reforço quando as probabilidades de ocorrência de inúmeros reforços diferentes são iguais.

O valor do reforço pode ser ilustrado pelas interações de uma mulher com uma máquina de venda automática que contém diversas opções possíveis, todas de mesmo preço. A mulher se aproxima da máquina disposta a pagar 75 centavos de dólar para receber um petisco. A máquina de venda está em perfeitas condições de funcionamento; portanto, existe 100% de probabilidade de que a resposta da mulher seja seguida pelo mesmo tipo de reforço. Sua expectativa de reforço, portanto, para uma barra de choco­late, salgadinhos de milho, batata chips, milho, tortilhas e biscoitos amanteigados são iguais. Sua resposta - ou seja, qual botão ela pressiona - é determinada pelo valor do re­forço de cada petisco.

Quando as expectativas e as variáveis situacionais são mantidas constantes, o comportamento é moldado pela preferência do indivíduo pelos reforços possíveis, ou seja, o valor do reforço. Na maioria das situações, é claro, as ex­pectativas raramente são iguais, e a predição é difícil, por­ que tanto a E quando o valor do reforço podem variar.

O que determina o valor do reforço para um evento, uma condição ou uma ação? Primeiro, a percepção do in­divíduo contribui para o valor positivo ou negativo de um evento. Rotter chama essa percepção de reforço interno e a distingue do reforço externo, que se refere a eventos, condições ou ações aos quais a sociedade ou a cultura atri­buem um valor. Os reforços internos e externos podem estar em harmonia ou diferir entre si. Por exemplo, se você gosta de filmes populares - isto é, dos mesmos que a maioria das outras pessoas gosta - então seus reforços internos e externos para assistir a esses tipos de filmes es­tão em acordo. No entanto, se seu gosto por filmes segue o caminho contrário ao de seus amigos, então seus reforços internos e externos são discrepantes.

Outro contribuinte para o valor do reforço são as neces­sidades do indivíduo. Em geral, o valor de um reforço espe­cífico aumenta à medida que a necessidade que ele satisfaz se torna mais forte. Uma criança com muita fome atribui um valor mais alto a uma tigela de sopa do que uma com fome moderada.

Os reforços também são valorizados de acordo com suas conseqüências esperadas para reforços futuros. Rot­ter acredita que as pessoas são capazes de usar a cognição para antecipar uma seqüência de eventos que conduzem a algum objetivo futuro e que o objetivo final contribui para o valor do reforço de cada evento na seqüência. Os reforços raras vezes ocorrem de modo independente dos reforços relacionados ao futuro, mas é provável que apareçam nas seqüências reforço-reforço, as quais Rotter (1982) deno­minou grupos de reforço.

Os humanos são orientados para os objetivos; eles acreditam que atingirão um objetivo se se comportarem de uma maneira particular. Quando outros aspectos fo­rem iguais, os objetivos com o valor do reforço mais alto serão mais desejáveis. No entanto, o desejo, sozinho, não é suficiente para predizer o comportamento. O potencial do comportamento é função da expectativa e do valor do reforço, bem como da situação psicológica.

Situação psicológica

A quarta variável na fórmula da predição é a situação psicológica(s), definida como a parte do mundo externo e interno à qual uma pessoa está respondendo. Ela não é sinônimo de estímulo externo, embora os eventos físicos em geral sejam importantes para a situação psicológica.

O comportamento não é resultado nem dos eventos ambientais nem dos traços pessoais; em vez disso, ele se origina da interação de uma pessoa com seu ambiente sig­nificativo. Se os estímulos físicos sozinhos determinas­sem o comportamento, dois indivíduos responderiam da mesma forma a estímulos idênticos. Se os traços pessoais fossem os únicos responsáveis pelo comportamento, uma pessoa sempre responderia da mesma forma e característi­ca, inclusive a eventos diferentes. Como nenhuma dessas condições é válida, outro aspecto além do ambiente ou dos traços pessoais deve moldar o comportamento. A teoria da aprendizagem social de Rotter levanta a hipótese de que a interação entre pessoa e ambiente é um fator crucial na modelagem do comportamento.

A situação psicológica é "um conjunto complexo de sinais em interação que agem sobre um indivíduo por um período de tempo específico" (Rotter, 1982, p. 318). As pessoas não se comportam em um vácuo; em vez dis­so, elas respondem a sinais no ambiente percebido. Esses sinais servem para determinar para elas certas expectati­vas quanto a seqüências de comportamento-reforço, bem como para seqüências de reforço-reforço. O período de tempo para os sinais pode variar de momentâneo a prolongado; assim, a situação psicológica não está limitada pelo tempo. A situação conjugal do indivíduo, por exemplo, pode ser relativamente constante por um longo período, enquanto a situação psicológica enfrentada por um moto­rista rodando fora de controle em uma estrada congelada seria muito breve. A situação psicológica deve ser conside­rada, com as expectativas e o valor do reforço, determinan­do a probabilidade de uma resposta específica. [353]

Fórmula de predição básica

Como um meio hipotético de predizer comportamentos específicos, Rotter propôs uma fórmula básica que inclui as quatro varáveis da predição. A fórmula representa um meio de predição teórica em vez de prática associado, e nenhum valor preciso pode ser associado a ela. Conside­re o caso de La Juan, uma universitária com bons recur­sos acadêmicos que está ouvindo uma palestra maçante e longa feita por um de seus professores. Para os sinais internos de tédio e os sinais externos de ver os colegas letárgicos, qual é a probabilidade de que La Juan responda descansando a cabeça sobre a mesa em uma tentativa de dormir? A situação psicológica isolada não é responsável por seu comportamento, porém ela interage com sua ex­pectativa de reforço mais o valor do reforço de dormir na­quela situação particular. O potencial do comportamen­to de La Juan pode ser estimado pela fórmula básica de Rotter (1982, p. 302) para a predição de comportamento direcionado para o objetivo:

Esta fórmula significa: o potencial para o comportamento X ocorrer na situação 1 em relação ao reforço é uma fun­ção da expectativa de que o comportamento X seja seguido pelo reforço a na situação 1 e pelo valor do reforço a na situação 1.

Aplicada a nosso exemplo, a fórmula sugere que a pro­babilidade (ou PC) de que La Juan repouse a cabeça sobre a mesa (comportamento X) em uma aula maçante e cha­ta com outros alunos adormecidos (a situação psicológi­ca, ou s.) com o objetivo de dormir (reforço, ou r) é uma função de sua expectativa de que tal comportamento (E1) seja seguido pelo sono (r2) nessa situação particular d esala de aula (S1), mais uma medida do quanto ela deseja dor­mir (valor do reforço, ou VR ) em tal situação específica (s). Como a medida exata de cada uma dessas variáveis pode estar além do estudo científico do comportamento huma­no, Rotter propôs uma estratégia para a predição de com­portamentos gerais. [354]

Psicologia - Teoria da aprendizagem social cognitiva
Conceito de humanidade - Conceito de humanidade, 
12/23/2020 12:35:01 PM | Por Gregory J. Feist, Jess Feist, Tomi-Ann Roberts
Conceito de humanidade para Bandura

Bandura considera os humanos como detentores da capa­cidade de se tornar muitas coisas, e a maioria dessas coisas é aprendida por modelagem. Se a aprendizagem humana dependesse da experiência direta de ensaio e erro, ela seria excessivamente lenta, entediante e perigosa. Felizmente, "os humanos desenvolveram uma capacidade cognitiva avançada para a aprendizagem por observação que lhes possibilita mol­dar e estruturar suas vidas mediante o poder da modelagem" (Bandura, 2002a, p. 167).

Bandura acredita que as pessoas são plásticas e flexíveis e que a plasticidade e a flexibilidade são a essência da nature a básica da humanidade. Como os humanos desenvolveram mecanismos neurofisiológicos para simbolizar suas experiên­cias, sua natureza é marcada por um grande grau de flexibili­dade. As pessoas têm a capacidade de armazenar experiências anteriores e usar essas informações para traçar ações futuras.

A capacidade de usar símbolos proporciona uma ferra­menta poderosa para entender e controlar o ambiente. Ela possibilita às pessoas resolver problemas sem precisar recorrer ao comportamento ineficiente de ensaio e erro, imaginar as conseqüências de suas ações e estabelecer objetivos para si.

Os humanos são direcionados para os objetivos, são ani­mais orientados que conseguem encarar o futuro e lhe confe­rir significado, tendo consciência das possíveis conseqüências de um comportamento futuro. Os humanos antecipam o fu­turo e se comportam em conformidade no presente. O futuro não determina o comportamento, mas sua representação cog­nitiva exerce um efeito poderoso sobre as ações presentes. "As pessoas estabelecem objetivos, antecipam as prováveis conse­qüências das ações prospectivas e selecionam e criam cursos de ação que provavelmente irão produzir os resultados dese­jados e evitar os resultados prejudiciais” (Bandura, 2001, p. 7).

Ainda que as pessoas sejam, basicamente, orientadas para os objetivos, Bandura acredita que elas possuem inten­ções e propósitos específicos, em vez de gerais. As pessoas não são motivadas por um único objetivo dominante, como a luta pela superioridade ou pela autoatualízação, mas por uma multiplicidade de objetivos, alguns distantes, outros [347] próximos. Essas intenções individuais, no entanto, não costumam ser anárquicas; elas possuem alguma estabilidade e ordem. A cognição dá às pessoas a capacidade de avaliar prováveis conseqüências e eliminar comportamentos que não satisfa­zem seus padrões de conduta. Os padrões pessoais, portanto, tendem a fornecer ao comportamento humano um grau de coerência, muito embora esse comportamento não possua um motivo-mestre para guiá-lo.

O conceito de Bandura de humanidade é mais otimista do que pessimista, porque sustenta que as pessoas são capazes de aprender novos comportamentos durante a vida. No entanto, os comportamentos desadaptados podem persistir, devido à baixa autoeficácia ou porque são percebidos como reforçados. Porém, esses comportamentos desadaptados não precisam persistir, porque a maioria das pessoas tem a capacidade de mudar imitando comportamentos produtivos dos outros e usando suas habilidades cognitivas para resolver problemas.

A teoria social cognitiva de Bandura, é claro, enfatiza mais os fatores sociais do que os biológicos. Contudo, ela reconhece que a genética contribui para a variável da pes­soa (P) no paradigma da causação recíproca triádica. Porém, mesmo dentro desse modelo, a cognição ganha ascendência; portanto, os fatores biológicos se tornam menos importan­tes. Além do mais, os fatores sociais são claramente mais es­senciais do que as outras duas variáveis: o ambiente (E) e o comportamento (B).

Classificamos Bandura como alto em liberdade versus de­terminismo, porque ele acredita que as pessoas podem exer­cer uma grande medida de controle sobre suas vidas. Mesmo sendo afetadas pelo ambiente e pelas experiências com refor­ço, elas têm algum poder de moldar essas duas condições ex­ternas. Até certo ponto, as pessoas conseguem manejar essas condições ambientais que moldarão o comportamento futuro e podem escolher ignorar ou aumentar as experiências pré­vias. A agência humana sugere que as pessoas que possuem alta eficácia pessoal e coletiva e que fazem uso eficiente de “procuradores" têm uma grande influência sobre as próprias ações. No entanto, algumas pessoas têm mais liberdade do que outras, porque elas são mais aptas na regulação do pró­prio comportamento. Bandura (1986) definiu liberdade como "o número de opções disponíveis às pessoas e seu direito de exercê-las" (p. 42). A liberdade pessoal, então, é limitada; por restrições físicas como as leis, por preconceitos, por regulações e pelos direitos das outras pessoas. Além disso, fatores pessoais, como ineficácia percebida e falta de confiança res­tringem a liberdade individual.

Na questão de causalidade ou a posição de Bandura é descrita como moderada. O funcionamento hu­mano é produto de fatores ambientais que interagem com o comportamento e com variáveis pessoais, em especial a ativi­dade cognitiva. As pessoas se movem com um propósito em direção aos objetivos que elas estabeleceram, mas não existe motivação no passado nem no futuro; ela é contemporânea. Ainda que eventos futuros não possam motivar as pessoas, a concepção que as pessoas têm do futuro pode e, de fato, regula o comportamento atual.

A teoria social cognitiva enfatiza o pensamento conscien­te sobre as determinantes inconscientes do comportamento. Aautorregulação das ações se baseia no automonitoramento, no julgamento e no autorreação, todos os quais tendem a ser conscientes durante a situação de aprendizagem. “As pessoas não deixam de ter reflexão durante o processo de aprendi­zagem. Elas fazem julgamentos conscientes sobre como suas ações afetam o ambiente" (Bandura, 1986, p. 116). Depois que as aprendizagens estão bem-estabelecidas, especialmente as aprendizagens motoras, elas podem se tornar inconscientes. As pessoas não têm que estar conscientes de todas as suas ações enquanto caminham, comem ou dirigem um carro.

Bandura (2001) acredita que a divisão entre fatores bio­lógicos e sociais é uma falsa dicotomia. Apesar de as pessoas serem limitadas por forças biológicas, elas possuem uma plas­ icidade notável. Seus ambientes sociais lhes permitem um amplo leque de comportamentos, incluindo o uso de outras pessoas como modelos. Cada pessoa vive dentro de inúmeras redes sociais e, assim, é influenciada por uma variedade de pessoas.

A tecnologia moderna, na forma da Rede Mundial e da mídia, facilita a propagação das influências sociais.

Como as pessoas possuem uma notável flexibilidade e ca­pacidade de aprendizagem, há grandes diferenças individuais entre elas. No entanto, a ênfase de Bandura na singularidade é moderada pelas influências biológicas e sociais, ambas as quais contribuem para algumas semelhanças entre as pessoas. [348]

Psicologia - Teoria social cognitiva
Epistemologia - Teoria, Classificação da teoria
12/23/2020 12:25:02 PM | Por Gregory J. Feist, Jess Feist, Tomi-Ann Roberts
Classificação da Teoria social cognitiva

Abert Bandura desenvolveu sua teoria social cognitiva por meio de um equilíbrio cuidadoso dos dois componentes principais da estrutura teórica: especulação inovadora e observação acurada. Suas especulações teóricas raras vezes ultrapassaram seus dados, mas avançaram com cuidado, apenas um passo à frente das observações. Tal procedi­mento cientificamente sólido aumenta a probabilidade de que suas hipóteses produzam resultados positivos e que sua teoria gere hipóteses verificáveis adicionais.

A utilidade da teoria da personalidade de Bandura, como a de outras teorias, reside na capacidade de gerar pes­quisa, de se oferecer para refutação e organizar o conheci­mento. Além disso, ela deve servir como um guia prático para a ação e ser internamente coerente e parcimoniosa. Como ela se classifica segundo esses seis critérios?

A teoria de Bandura gerou milhares de estudos de pesquisa e, assim, recebe uma classificação muito alta na capacidade de gerar pesquisa. Bandura e seus colaborado­res conduziram boa parte do trabalho, mas outros pes­quisadores também foram atraídos pela teoria. Bandura pode ser o escritor mais meticuloso de todos os teóricos da personalidade. Suas formulações cuidadosamente construídas prestam-se à formação de inúmeras hipóte­ses verificáveis.

Segundo o padrão de refutabilidade, classificamos a teoria de Bandura como alta. A teoria da autoeficácia su­gere que "as crenças das pessoas em sua eficácia pessoal influenciam o curso de ação que escolhem seguir, o quanto de esforço irão investir nas atividades, por quanto tempo irão perseverar em face de obstáculos e experiências de fracasso e sua resiliência após contratempos" (Bandura, 1994, p. 65). Tal afirmação sugere várias áreas possíveis de pesquisa que poderiam levar à refutação da teoria da auto­ eficácia.

Na capacidade de organizar o conhecimento, a teoria de Bandura recebe uma classificação alta. Muitos achados da pesquisa em psicologia podem ser organizados pela teoria social cognitiva. O modelo de causação recíproca triádica é um conceito abrangente que oferece uma explicação viável para a aquisição dos comportamentos mais observáveis.

A inclusão de três variáveis nesse paradigma confere à teo­ria maior flexibilidade para organizar e explicar o compor­tamento do que o behaviorismo radical de Skinner, o qual se baseia fortemente nas variáveis ambientais.

O quanto a teoria social cognitiva de Bandura é prática? Para o terapeuta, o professor, o pai ou alguém interessado [346] na aquisição e na manutenção de novos comportamentos, a teoria da autoeficácia fornece diretrizes úteis e específi­cas. Além de apresentar técnicas para melhorar a eficácia pessoal e coletiva para uso eficiente por procuração, a teo­ria de Bandura sugere formas pelas quais a aprendizagem por observação e a modelagem podem ser empregadas para adquirir comportamentos.

A teoria é coerente internamente? Como a teoria social cognitiva de Bandura não é especulativa, ela possui coerência interna excepcional. Bandura não tem medo de es­pecular, mas se nunca arrisca muito além dos dados em­píricos disponíveis. O resultado é uma teoria formulada com cuidado, escrita de modo rigoroso e intemamente coerente.

O critério final de uma teoria útil é a parcimônia. Mais uma vez, a teoria de Bandura satisfaz altos padrões. A teo­ria é simples e sem restrições de explicações hipotéticas ou fantasiosas. [347]

Psicologia - Teoria social cognitiva
Pesquisas - Pesquisas relacionadas, 
12/23/2020 12:02:32 PM | Por Gregory J. Feist, Jess Feist, Tomi-Ann Roberts
Pesquisas relacionadas à Teoria social cognitiva

A teoria social cognitiva de Albert Bandura continua a pro­duzir uma grande quantidade de pesquisa em vários domí­nios da psicologia, com o conceito de autoeficácia gerando, por si só, centenas de estudos por ano. A autoeficácia foi aplicada a uma ampla variedade de domínios, incluindo desempenho acadêmico, produção no trabalho, depressão, escape da privação de abrigo, enfrentamento do terrorismo e comportamentos relacionados à saúde. Selecionamos, a seguir, apenas duas das muitas aplicações interessantes do conceito de autoeficácia de Albert Bandura: o enfrentamen­to da ameaça de terrorismo e o manejo do diabetes tipo II.

Autoeficácia e terrorismo

O terrorismo há tempo vem sendo uma ameaça para as sociedades modernas, mas, como sabem todos os que lembram de 2001, em 11 de setembro daquele ano, o ter­rorismo atingiu um nível de perigo e promoveu o medo em pessoas por todo o globo. Os psicólogos, sobretudo em áreas do mundo comumente afetadas pelo terrorismo, sempre estiveram interessados em como os indivíduos in­gressam na cultura terrorista e como pessoas inocentes lidam com a ameaça constante de terrorismo (Ben-Zur & Zeidner, 1995; Moghaddam & Marsella, 2004; Zeidner, 2007). Mas esse interesse no terrorismo aumentou exponencialmente depois de 2001, e foi na estrutura da mente pós-11/9 que alguns pesquisadores começaram a conside­rar como a autoeficácia poderia ajudar as pessoas a lidar com o terrorismo.

Na seqüência de um ataque terrorista, as pessoas re­latam experimentar menos segurança pessoal (Gallup, 2002). Com frequência, os ataques terroristas parecem surgir de lugar nenhum, e, assim, as pessoas sentem como se não tivessem controle sobre a prevenção ou a esquiva de tais ataques. A crença de que podemos controlar os eventos é a essência do que Bandura pretendia dizer com autoefi­cácia. Portanto, um sentimento aumentado de autoeficácia pode ajudar a aliviar os sentimentos negativos e de insegu­rança associados aos ataques terroristas. Ainda que possa parecer improvável que determinada pessoa tenha poder de impedir o próximo grande ataque, apenas o sentimen­to de ser possível fazer algo para tornar um ataque menos provável pode ser útil. Talvez isso signifique tomar atitu­des concretas, como manter um olhar atento a malas aban­donadas em aeroportos e estações de metrô, ou algo mais abstrato, como rezar ou encontrar algum sentimento de conforto e segurança na religião.

Peter Fischer e colaboradores estavam interessados em investigar a possível ligação entre religião, autoeficácia e enfrentamento da ameaça de terrorismo (Fischer, Greitemeyer, Kastenmuller, Jonas, & Frey, 2006). Para examinar o papel da religião, Fischer e colaboradores usa­ram a Escala de Orientação Religiosa de Gordon Allport (ROS, Religious Orientation Scale). A ROS mede o grau em que as pessoas são intrinsecamente versus extrinsecamente religiosas. A re­ligiosidade intrínseca é caracterizada por viver, de fato, a religião, não como um meio para um fim, mas como uma busca por significado e valor. Pesquisas anteriores cons­tataram que o uso da oração como um mecanismo de en­frentamento está relacionado a um sentimento aumen­tado de controle interno sobre os eventos (Ai, Peterson, Rodgers, & Tice, 2005), e, então, Fischer e colaboradores (2006) levantaram a hipótese de que as pessoas intrin­secamente religiosas experimentariam um maior nível de autoeficácia. Essa autoeficácia aumentada as ajudaria [344] a enfrentar a ameaça de terrorismo quando comparadas aos indivíduos que não são religiosos.

Para testar sua predição, Fischer e colaboradores co­letaram dados de uma amostra alemã em novembro de 2003. Durante esse mês, a relevância do terrorismo esta­va muito em alta na Europa, porque, em 20 de novembro, homens-bomba atacaram duas sinagogas em Istambul, e, cinco dias depois, o consulado britânico em Istambul e a sede turca de um banco britânico foram atacados simul­taneamente. Ao todo, 38 pessoas perderam a vida nesses ataques e mais de 500 pessoas ficaram feridas.

Com a ameaça de mais ataques terroristas na mente de todos, os pesquisadores recrutaram participantes para completar a ROS, uma medida de autorrelato de autoeficácia contendo itens como: “Graças à minha capacidade, sei como lidar com situações imprevistas”, e uma medida do humor. Dois meses depois, quando a evidência de terroris­mo amenizou, os pesquisadores administraram outra vez essas mesmas medidas, em uma nova amostra de alemães.

A maior parte dos resultados confirmou as hipóteses dos pesquisadores. Quando a relevância do terrorismo era alta, pessoas intrinsecamente religiosas estavam com hu­mor melhor e relatavam maior autoeficácia do que os indi­víduos não religiosos. Além disso, os pesquisadores cons­tataram que o melhor humor experimentado pelas pessoas intrinsecamente religiosas era resultado de seus sentimen­tos aumentados de autoeficácia, Quando as evidências de terrorismo eram baixas, no entanto, não houve diferenças no humor ou na autoeficácia entre pessoas intrinsecamen­te religiosas e não religiosas. Assim, quando uma pessoa se defronta com uma ameaça, a autoeficácia é crucial para reduzir o impacto nocivo da ameaça. A religiosidade é uma forma, mas provavelmente não a única, de desenvolver um sentimento mais forte de autoeficácia durante tais ameaças. A ameaça de terrorismo, provavelmente, não irá declinar de modo rápido, mas essa pesquisa da teoria da personalidade de Bandura demonstrou que, quanto mais nos sentirmos no controle e capazes de lidar com circuns­tâncias imprevistas, menos a ameaça de terrorismo afeta de modo negativo nosso bem-estar.

Autoeficácia e diabetes

Uma das formas pelas quais a teoria social cognitiva de Al­bert Bandura teve o maior impacto na vida diária de mui­tos indivíduos foi na promoção da saúde e na prevenção de doença. O próprio Bandura escreveu a respeito da utilidade de sua teoria para encorajar as pessoas a se engajarem em comportamentos saudáveis que podem aumentar o bem-estar geral, a saúde e a longevidade (Bandura, 1998b).

Recentemente, William Sacco e colaboradores (2007) estudaram o construto de autoeficácia de Bandura em rela­ção com o diabetes tipo II. O diabetes é uma doença crôni­ca que requer um tratamento muito cuidadoso, incluindo uma dieta especial e um programa de exercícios. O diabetes apresenta às pessoas uma variedade de desafios físicos, mas também está associado a desafios significativos em saúde mental. De fato, a prevalência de depressão entre diabéticos é o dobro da população geral (Anderson, Freed- land, Clouse, & Lustman, 2001). Um dos traços caracterís­ticos da depressão é a falta de motivação e, devido à dieta restrita e ao plano de exercícios ao qual os pacientes devem aderir, isso é particularmente problemático para aqueles que tentam tratar do diabetes. Quanto menos os pacientes aderem a seu plano de tratamento da doença, maiores se tornam seus sintomas de diabetes, o que cria uma espiral descendente, com implicações negativas para a saúde física e mental.

Sacco e colaboradores (2007), portanto, procuraram explorar o papel da autoeficácia como uma variável capaz de aumentar a adesão ao plano de manejo da doença e re­duzir os sintomas negativos de saúde física e mental. A pre­dição do estudo desses autores era de que, quanto maior o nível de autoeficácia que os pacientes sentissem, mais provavelmente as pessoas iriam aderir a seu plano de trata­mento da doença e, assim, melhor se sentiriam.

Para testar tal hipótese, Sacco e colaboradores recru­taram uma amostra de adultos que haviam sido diagnos­ticados com diabetes tipo II. Os participantes completa­ram medidas de autorrelato sobre o quanto eles aderiram a dieta, exercícios, teste de glicose e plano de medicação, uma medida de depressão e uma medida de autoeficácia especificamente adaptada para avaliar o quanto de autoe­ficácia eles sentiam com relação ao tratamento da doença. Além disso, os participantes completaram uma medida da frequência e gravidade dos sintomas de diabetes, e seu ín­dice de massa corporal (IMC) foi computado com base em dados de seus registros médicos.

Os resultados desse estudo demonstraram claramen­te o quanto a autoeficácia é importante para o tratamen­to de doenças crônicas. Níveis mais altos de autoeficácia estavam relacionados a níveis mais baixos de depressão, adesão aumentada às ordens médicas, IMC mais baixo e menor gravidade dos sintomas de diabetes. Considerando esses resultados substanciais para a importância da autoe­ficácia, os pesquisadores examinaram melhor o papel dela no tratamento do diabetes. Em outras análises, Sacco e co­laboradores identificaram que o IMC estava positivamente relacionado à depressão e que a adesão às ordens médicas estava negativamente relacionada à depressão.

Mas a autoeficácia pode desempenhar um papel nes­sas relações? Para responder a essa pergunta, os pesquisa­dores realizaram análises mais complexas, e o que eles en­contraram só destacou ainda mais o quanto é importante o paciente peceber um sentimento de controle sobre sua saúde quando se trata de tratar uma doença como o diabe­tes. A autoeficácia foi diretamente responsável pela relação entre IMC e depressão e pela relação entre adesão e [345] depressão. De forma mais específica, ter um IMC alto levava as pessoas a sentirem menos autoeficácia, o que, por sua vez, conduzia a um aumento na depressão. Ao contrário, ser ca­paz de aderir ao plano de tratamento da doença servia para aumentar a autoeficácia, e esse aumento no sentimento de controle sobre a doença foi o responsável pela diminuição da depressão.

A teoria social cognitiva “se torna global"

O trabalho mais recente de Albert Bandura está levando a teoria social cognitiva a novas direções, para encontrar soluções para problemas globais como o crescimento eleva­do da população. Em colaboração com o Population Media Center, um grupo que proporciona entretenimento e edu­cação para a mudança social na África, na Ásia e na Améri­ca Latina, Bandura ajudou a produzir dramas em seriados que encorajam comportamentos de mudança positiva com base em evidências, para a audiência da televisão e do rádio modelar por meio da aprendizagem por observação. Essas produções para mídias de massa demonstraram melhorar a eficácia percebida do público para determinar o tama­nho de sua família, aumentar o uso de contraceptivos e promover o status das mulheres na vida familiar, social e educacional (Bandura, 2002c). Um trabalho mais recente dessa equipe de colaboradores está explorando a eficácia de seriados dramáticos similares para a melhoria de práticas de preservação.

Em uma apresentação que fez à British Psychological Society em 2009 sobre essa notável aplicação efetiva de seu trabalho, Bandura encerrou com o seguinte chamado à ação:

Os problemas globais instilam um sentimento de para­lisia nas pessoas. Elas acham que há pouco que possam fazer para reduzir tais problemas. O mantra “pense glo­balmente, aja localmente” é um esforço para localizar o global. Nossas aplicações globais aumentam a escala e a abrangência da teoria social cognitiva na promoção de mudanças pessoais e sociais. Elas ilustram como um es­forço coletivo, combinando o desempenho dos diferentes atores, pode ter um impacto mundial sobre proble­mas aparentemente intransponíveis. Como sociedade, desfrutamos dos benefícios deixados por aqueles que antes de nós trabalharam coletivamente pelas mudan­ças sociais que melhoraram nossas vidas. Nossa pró­pria eficácia coletiva determinará se entregaremos um planeta habitável para nossos netos e gerações futuras. Assim, enquanto você mobiliza nosso conhecimento e sua influência pessoal para salvar nosso planeta maltra­tado: que a força da eficácia esteja com você! (Bandura, 2009, p. 506).

Esse novo e excitante trabalho colaborativo é uma ilustração forte de como uma teoria da personalidade pode estruturar soluções para problemas sociais globais. A au­toeficácia é claramente um construto com implicações de longo alcance, não só para nossas vidas pessoais, mas para a ação coletiva. Considerando isso, é fácil perceber por que a teoria de Albert Bandura continua a gerar uma quanti­dade impressionante de pesquisa e aplicação. [346]

Psicologia - Teoria social cognitiva
Intervenção - Psicoterapia, 
12/23/2020 11:53:48 AM | Por Gregory J. Feist, Jess Feist, Tomi-Ann Roberts
A psicoterapia de Bandura

De acordo com Bandura, comportamentos desviantes são iniciados com base nos princípios da aprendizagem social cognitiva e são mantidos porque, em alguns aspectos, eles continuam a servir a um propósito. A mudança terapêuti­ca, portanto, é difícil, pois envolve eliminar comportamen­tos que são satisfatórios para a pessoa. Fumar, comer em excesso e consumir bebidas alcoólicas, por exemplo, em geral, têm efeitos positivos, e suas conseqüências aversivas de longo alcance não costumam ser suficientes para produ­zir comportamento de esquiva.

O objetivo final da terapia social cognitiva é a autorregulação (Bandura, 1986). Para atingir esse fim, o terapeu­ta introduz estratégias designadas para induzir mudanças comportamentais específicas, generalizar tais mudanças para outras situações e mantê-las prevenindo recaída.

O primeiro passo para o sucesso da terapia é instigar alguma mudança no comportamento. Por exemplo, se um terapeuta consegue extinguir o medo de altura em uma pessoa previamente acrofóbica, então a mudança foi in­duzida e aquela pessoa não terá medo de subir uma es­cada de 6 metros. Um nível mais importante da terapia é generalizar mudanças específicas. Por exemplo, a pessoa acrofóbica não só será capaz de subir uma escada como também será capaz de andar de avião ou olhar por janelas de edifícios altos. Alguns terapeutas induzem mudança e facilitam a generalização, mas, com o tempo, os efeitos terapêuticos são perdidos, e a pessoa readquire o com­portamento desadaptado. Essa recaída é particularmen­te provável quando as pessoas estão extinguindo hábitos mal-adaptativos, tais como fumar e comer em excesso. A terapia mais efetiva atinge o terceiro nível de conquis­ta, que é a manutenção dos comportamentos funcionais recém-adquiridos. [343]

Bandura (1986) sugeriu várias abordagens terapêu­ticas básicas. A primeira incluia modelagem explícita ou vicariante. As pessoas que observam modelos ao vivo ou fil­mados realizando atividades ameaçadoras com frequência sentem menos medo e ansiedade e, então, sáo capazes de realizar essas mesmas atividades.

Em um segundo modo de tratamento, modelagem velada ou cognitiva, o terapeuta treina os pacientes para visualizarem modelos que realizam comportamentos te­míveis. As estratégias de modelagem explícita e velada são mais efetivas, no entanto, quando combinadas com abor­dagens orientadas para o desempenho.

Um terceiro procedimento, denominado domínio enativo, requer que os pacientes executem comportamentos que anteriormente produziram medos incapacitantes. Contudo, a execução não costuma ser o primeiro passo no tratamento. Os pacientes, em geral, começam observando modelos ou diminuindo sua excitação emocional por meio da dessensibilização sistemática, que envolve a extinção da ansiedade ou do medo mediante relaxamento autoinduzido ou induzido pelo terapeuta. Com a dessensibilizaçào sistemática, o terapeuta e o paciente trabalham juntos para colocar as situações temíveis em uma hierarquia, desde a menos ameaçadora até a mais ameaçadora (Wolpe, 1973). Os pacientes, enquanto relaxados, executam o comporta­mento menos ameaçador e, então, de forma gradual, avan­çam pela hierarquia até conseguirem realizar a atividade mais ameaçadora, ao mesmo tempo permanecendo em estado de excitação emocional baixo.

Bandura demonstrou que cada uma dessas estratégias pode ser efetiva e que elas são mais poderosas quando usa­das em combinação. Bandura (1989) acredita que a razão para sua eficácia pode ser rastreada até um mecanismo co­mum em cada uma dessas abordagens, ou seja, a mediação cognitiva. Quando as pessoas usam a cognição para aumentar a autoeficácia, ou seja, quando elas se convencem de que podem realizar tarefas difíceis, então, de fato, elas se tornam capazes de enfrentar situações previamente intimidadoras. [344]

Psicologia - Teoria social cognitiva
Comportamento - Comportamento desadaptado, 
12/23/2020 11:52:18 AM | Por Gregory J. Feist, Jess Feist, Tomi-Ann Roberts
Comportamento desadaptado

O conceito de Bandura de causação recíproca triádica presume que o comportamento é aprendido como conse­qüência de uma interação mútua (1) da pessoa, incluindo cognição e processos neurofisiológicos; (2) do ambiente, incluindo relações interpessoais e condições socioeconômicas; e (3) de fatores comportamentais, incluindo experiências prévias com reforço. O comportamento desadaptado não é exceção. O conceito de Bandura de comportamento desadaptado se presta mais pronta­mente a reações depressivas, fobias e comportamentos agressivos.

Depressão

Padrões e objetivos pessoais altos podem levar a realiza­ções e satisfação consigo próprio. No entanto, quando as pessoas estabelecem objetivos muito altos, é provável que fracassem. O fracasso, em geral, conduz a depressão, e as pessoas deprimidas amiúde subestimam suas realizações. O resultado é infelicidade crônica, sentimento de desvalia, falta de propósito e depressão generalizada. Bandura (1986, 1997) acredita que pode ocorrer depressão desadaptada em qualquer uma das três subfunçôes autorregulatórias: (1) auto-observação, (2) processos de julgamento e (3) autorreações.

Primeiro, durante a auto-observação, as pessoas po­dem julgar erroneamente o próprio desempenho ou dis­torcer sua lembrança de realizações passadas. As pessoas deprimidas tendem a exagerar seus erros passados e a minimizar suas realizações anteriores, uma tendência que perpetua sua depressão.

Segundo, as pessoas deprimidas tendem a fazer jul­gamentos equivocados. Elas estabelecem seus padrões irrealisticamente tão altos que qualquer realização pessoal é julgada como um fracasso. Mesmo quando atingem o su­cesso aos olhos dos outros, elas continuam a criticar com severidade o próprio desempenho. A depressão é especial­mente provável quando as pessoas estabelecem objetivos e padrões pessoais muito mais altos do que sua eficácia per­cebida para atingi-los.

Por fim, as reações dos indivíduos deprimidos são mui­to diferentes daquelas das pessoas não deprimidas. As pes­soas deprimidas não só se julgam duramente, mas também são inclinadas a se tratarem mal devido a seus defeitos.

Fobias

Fobias são medos fortes e disseminados o suficiente para terem efeitos debilitantes graves na vida diária da pessoa. Por exemplo, fobias a cobras impedem as pessoas de terem uma variedade de empregos e desfrutarem de muitos tipos de atividades recreativas. As fobias e os medos são aprendidos por contato direto, generalização inadequada e, es­pecialmente, experiências de observação (Bandura, 1986). Eles são difíceis de extinguir, porque a pessoa fóbica sim­plesmente evita o objeto ameaçador. A menos que o objeto temido seja encontrado de alguma maneira, a fobia irá du­rar de modo indefinido.

Bandura (1986) credita à televisão e a outras mídias de notícias a geração de muitos de nossos medos. Estupros, assaltos à mão armada ou assassinatos divulgados pela mídia aterrorizam uma comunidade, fazendo as pessoas terem as vidas confinadas por portas trancadas. A maioria das pessoas nunca foi estuprada, roubada ou machucada de modo intencional; no entanto, muitas vivem com medo de serem agredidas por criminosos. Os atos criminais vio­lentos que parecem aleatórios e imprevisíveis são mais pro­váveis de instigar reações fóbicas.

Depois de estabelecidas, as fobias são mantidas por determinantes conseqüentes, ou seja, o reforço negativo que a pessoa fóbica recebe por evitar a situação que produz medo. Por exemplo, se a pessoa espera passar por experiên­cias aversivas (ser assaltada) enquanto atravessa o parque da cidade, ela reduz seu sentimento de ameaça não entrando no parque ou até mesmo não chegando perto dele. Nesse exemplo, o comportamento desadaptado (esquiva) é produzido e mantido pela interação mútua das expectati­vas da pessoa (crença de que será assaltada), pelo ambiente externo (o parque da cidade) e por fatores comportamen­tais (suas experiências prévias com o medo).

Agressividade

Comportamentos agressivos, quando levados a extremos, também são desadaptados. Para Bandura (1986), o com­portamento agressivo é adquirido por meio de observação de outros, experiências diretas com reforços positivos e ne­gativos, treinamento ou instrução e crenças bizarras.

Depois de estabelecido o comportamento agressivo, as pessoas continuam a agredir por, pelo menos, cinco razões: [342]  (1) elas gostam de infligir danos à vitima (reforço positi­vo); (2) elas evitam ou contrariam as conseqüências aversivas da agressão pelos outros (reforço negativo); (3) elas recebem lesões ou danos por não se comportarem agres­sivamente (punição); (4) elas correspondem aos padrões pessoais de conduta por seu comportamento agressivo (autorreforço); e (5) elas observam outros recebendo recom­pensas por atos agressivos ou punição por comportamento não agressivo.

Bandura acredita que as ações agressivas conduzam a mais agressividade. Essa crença está baseada no clássi­co estudo de Bandura, Dorrie Ross e Sheila Ross (1963), o qual constatou que as crianças que observavam outros comportarem-se com agressividade exibiam mais agressi­vidade do que um grupo-controle de crianças que não viam atos agressivos. Nesse estudo, os pesquisadores dividiram os meninos e as meninas da creche em três grupos experi­mentais combinados e um grupo-controle.

As crianças no primeiro grupo experimental observa­ram um modelo ao vivo se comportando com agressivida­ de física e verbal com inúmeros brinquedos, incluindo um grande João-Bobo inflado; o segundo grupo experimen­tal observou um filme que mostrava o mesmo modelo se comportando de maneira idêntica; o terceiro grupo experi­mental viu um desenho animado em que um modelo, ves­tido como um gato preto, comportava-se agressivamente contra o João-Bobo. As crianças do grupo-controle foram combinadas com aquelas dos grupos experimentais em classificações prévias de agressividade, mas elas não foram submetidas a um modelo agressivo.

Depois que as crianças nos três grupos experimen­tais observaram um modelo repreendendo, chutando, soqueando e batendo no João-Bobo com um taco, elas direcionaram-se para outra sala, onde foram frustradas de forma sutil. Imediatamente após tal frustração, cada criança entrava na sala experimental, que continha alguns brinquedos (como uma versão menor do João-Bobo) que podiam ser usados de modo agressivo. Além disso, alguns brinquedos não agressivos (como um aparelho de chá e material para colorir) estavam presentes. Os observadores assistiram à resposta agressiva ou à não agressiva com os brinquedos por meio de uma sala de espelho.

Conforme esperado, as crianças expostas a um mo­delo agressivo exibiram mais respostas agressivas do que aquelas que não tinham sido expostas. Mas, ao contrário das expectativas, os pesquisadores não constataram di­ferenças na quantidade total de agressividade demons­trada pelas crianças nos três grupos experimentais. As crianças que tinham observado o personagem de dese­nho animado eram pelo menos tão agressivas quanto as expostas a um modelo ao vivo ou a um modelo filmado. Em geral, as crianças em cada grupo experimental exibi­ram quase duas vezes mais comportamento agressivo do que as do grupo-controle. Além disso, o tipo particular de resposta agressiva foi extremamente semelhante ao exibido pelos modelos adultos. As crianças repreende­ram, chutaram, soquearam e bateram no boneco com um taco, em uma imitação muito próxima do que havia sido modelado.

Esse estudo, agora com mais de 40 anos, foi conduzido em uma época em que as pessoas ainda debatiam os efei­tos da violência na televisão sobre as crianças e os adultos. Algumas pessoas argumentavam que assistir a comporta­mentos agressivos na televisão teria um efeito catártico sobre as crianças, ou seja, as que experimentavam agres­sividade vicariamente teriam pouca motivação para agir de maneira agressiva. O estudo de Bandura, Ross e Ross (1963) ofereceu algumas das primeiras evidências experi­mentais de que a violência na TV não refreia a agressivi­dade; ao contrário, ela produz comportamentos agressivos adicionais. [343]

Psicologia - Teoria social cognitiva
Personalidade - Cognição, Autocontrole
12/22/2020 1:55:51 PM | Por Gregory J. Feist, Jess Feist, Tomi-Ann Roberts
Autorregulação

Quando as pessoas possuem altos níveis de autoeficácia, são confiantes em relação a suas procurações e possuem eficácia coletiva sólida, elas têm capacidade considerável de regular o próprio comportamento. Bandura (1994) acredi­ta que as pessoas usam estratégias reativas e proativas para autorregulaçâo. Ou seja, elas reativamente tentam reduzir as discrepâncias entre suas realizações e seu objetivo; mas depois que acabam com essas discrepâncias, elas proativamente estabelecem novos objetivos e mais altos para si. “As pessoas se motivam e guiam suas ações por meio do controle proativo, estabelecendo para si objetivos valorizados que criam um estado de desequilíbrio e mobilizando suas capacidades e esforços com base na estimativa antecipatória do que é necessário para alcançar os objetivos" (p. 63). A noção de que as pessoas procuram um estado de desequi­líbrio é semelhante à crença de Gordon Allport de que os indivíduos são motivados para criar tensão tanto quanto para reduzi-la.

Que processos contribuem para essa autorregulaçâo? Primeiro, as pessoas possuem capacidade limitada para [338] manipular os fatores externos que se integram ao paradig­ma interativo recríproco. Segundo, as pessoas são capazes de monitorar o próprio comportamento e avaliá-lo em ter­mos de objetivos próximos e distantes. O comportamento, então, origina-se de uma influência recíproca de fatores externos e internos.

Fatores externos na autorregulação

Os fatores externos afetam a autorregulação pelo menos de duas formas. Primeiro, eles fornecem um padrão para a avaliação de nosso comportamento. Os padrões não pro­vêm unicamente de forças internas. Fatores ambientais, interagindo com influências pessoais, moldam os padrões individuais para avaliação. Mediante princípios, aprende­mos com pais e professores o valor do comportamento honesto e amistoso; pela experiência direta, aprendemos a atribuir mais valor a sermos afetuosos do que frios; e por meio da observação de outros, desenvolvemos inúme­ros padrões para avaliar nosso desempenho. Em cada um desses exemplos, fatores pessoais afetam quais padrões aprendemos, porém as forças ambientais também desem­penham um papel.

Segundo, fatores externos influenciam a autorregulação, fornecendo os meios para o reforço. As recompensas intrínsecas nem sempre são suficientes; também precisa­mos de incentivos que emanem de fatores externos. Um artista, por exemplo, pode precisar de mais reforço do que autossatisfação para concluir um grande mural. O apoio ambiental, em forma de um adiantamento financeiro ou de um elogio e encorajamento dos outros, também pode ser necessário.

Os incentivos para concluir um projeto moroso geral­mente provêm do ambiente e, com frequência, assumem a forma de pequenas recompensas contingentes à conclu­são de subobjetivos. O artista pode ter prazer com uma xícara de café depois de ter pintado a mão de um dos su­jeitos ou fazer uma pausa para o almoço depois de termi­nar outra pequena parte do mural. No entanto, a autorrecompensa pelo desempenho inadequado provavelmente resulta em sanções ambientais. Os amigos podem criticar o trabalho do artista ou zombar dele, os patrocinadores podem retirar o apoio financeiro ou o artista pode ser autocrítico. Quando o desempenho não satisfaz nossos próprios padrões, tendemos a retirar as recompensas de nós mesmos.

Fatores internos na autorregulação

Fatores externos interagem com fatores internos ou pes­soais na autorregulação. Bandura (1986,1996) reconhece três requisitos internos no exercício constante da autoinfluência: (1) auto-observação, (2) processos de julgamento e (3) autorreação.

Auto-observação

O primeiro fator interno na autorregulação é a auto-observação do desempenho. Precisamos ser capazes de mo­nitorar nosso próprio desempenho, embora a atenção que damos a isso não precise ser completa ou mesmo acurada. Atentamos de forma seletiva a alguns aspectos de nosso comportamento e ignoramos outros por completo. O que observamos depende dos interesses e de outras autoconcepções preexistentes. Em situações de realização, como pintar quadros, praticar jogos ou fazer exames, prestamos atenção à qualidade, à quantidade, à velocidade ou à ori­ginalidade de nosso trabalho. Em situações interpessoais, como conhecer novos indivíduos ou relatar eventos, moni­toramos a sociabilidade ou a moralidade de nossa conduta.

Processo de julgamento

A auto-observação, sozinha, não fornece uma base sufi­ciente para a regulação do comportamento. Também preci­samos avaliar nosso desempenho. Esse segundo processo, o processo de julgamento ajuda a regular nosso comporta­mento por meio do processo de mediação cognitiva. Somos capazes não só de autoconsciência reflexiva como também de julgamento do valor de nossas ações com base nos obje­tivos que estabelecemos para nós mesmos. De forma mais específica, o processo de julgamento depende de padrões pessoais, desempenhos referenciais, valorização da ativida­de e atribuição de desempenho.

Os padrões pessoais nos permitem avaliar nosso desem­penho sem compará-lo à conduta dos outros. Para uma criança de 10 anos profundamente incapacitada, o ato de dar um laço em seu calçado pode ser muito valorizado. Ela não precisa desvalorizar sua conquista simplesmente porque outras crianças podem realizar o mesmo ato com menos idade.

Os padrões pessoais, no entanto, são uma fonte limita­da de avaliação. Para a maioria de nossas atividades, avalia­mos nosso desempenho comparando-o com um padrão de referência. Os estudantes comparam suas notas nos testes com as de seus colegas, e jogadores de tênis julgam suas habilidades pessoais comparando-as com as dos outros jo­gadores. Além disso, usamos nossos níveis prévios de rea­lizações como uma referência para a avaliação do desempe­nho presente: “Minha voz ao cantar melhorou ao longo dos anos?”, "Minha habilidade para ensinar agora está melhor do que nunca?”. Além disso, podemos julgar nosso desem­penho comparando-o com o de outro indivíduo - um ir­mão, uma irmã, um genitor ou até mesmo um rival odiado - ou podemos compará-lo a uma norma-padrão, como o par no golfe ou um escore perfeito no boliche.

Além dos padrões pessoais e de referência, o proces­so de julgamento também depende do valor global que atribuímos a uma atividade. Se atribuirmos valor menor à habilidade de lavar pratos ou tirar o pó da mobília, então [339] empregaremos pouco tempo ou esforço para tentar melho­rar tais habilidades. Entretanto, se atribuímos valor alto a estar à frente no mundo dos negócios ou a obter um di­ploma profissional ou um mestrado, então empregaremos muito esforço para atingir o sucesso nessas áreas.

Por fim, a autorregulação também depende de como julgamos as causas de nosso comportamento, ou seja, a atribuição de desempenho. Se acreditarmos que nosso su­cesso resulta dos próprios esforços, iremos nos orgulhar de nossas conquistas e tenderemos a trabalhar mais ar­duamente para atingir nossos objetivos. No entanto, se atribuirmos nosso desempenho a fatores externos, não sentiremos muita autossatisfação e, provavelmente, não empregaremos esforços árduos para atingir nossos obje­tivos. Contudo, se acreditarmos que somos responsáveis por nossos fracassos ou desempenho inadequado, traba­lharemos mais prontamente na direção da autorregulação do que se estivermos convencidos de que nossas falhas e nossos medos se devem a fatores que estão além de nosso controle (Bandura, 1986,1996).

Autorreação

O terceiro fator interno na autorregulação é a autorreação. As pessoas respondem de forma positiva ou negativa a seus comportamentos, dependendo do quanto eles estão à altura de seus padrões pessoais. Ou seja, as pessoas criam incentivos para as próprias ações por meio do autorreforço ou da autopunição. Por exemplo, uma estudante aplicada que concluiu uma tarefa de leitura pode se recompensar as­sistindo a seu programa de televisão favorito.

O autorreforço não se baseia no fato de que ele se segue imediatamente a uma resposta. Ao contrário, ele se baseia, em grande parte, no uso de nossa habilidade cogni­tiva para mediar as conseqüências do comportamento. As pessoas estabelecem padrões de desempenho que, quando satisfeitos, tendem a regular o comportamento por meio de recompensas autoproduzidas, tais como orgulho e au­tossatisfação. Quando as pessoas não conseguem corres­ponder a seus padrões, seu comportamento é seguido de autoinsatisfação ou autocrítica.

Esse conceito de conseqüências automediadas é um grande contraste com a noção de Skinner de que as con­seqüências do comportamento são determinadas pelo ambiente. Bandura levanta a hipótese de que as pessoas trabalham para obter recompensas e para evitar punições de acordo com padrões autoimpostos. Mesmo quando as recompensas sejam tangíveis, elas costumam ser acompa­nhadas por incentivos intangíveis automediados, como um sentimento de realização. O Prêmio Nobel, por exemplo, implica uma recompensa substancial em dinheiro, porém seu valor maior para a maioria dos ganhadores é o senti­mento de orgulho ou autossatisfação por realizarem tare­fas que conduziram à premiação.

Autorregulação por meio da agência moral

As pessoas também regulam suas ações por meio de pa­drões morais de conduta. Bandura (1999a) considera a agência moral composta por dois aspectos: (1) não causar danos às pessoas e (2) ajudar as pessoas proativamente. Nossos mecanismos autorregulatórios, no entanto, não afetam outras pessoas até que atuemos sobre eles. Não temos um agente controlador automático interno, como uma consciência ou um superego, que invariavelmente di­recione nosso comportamento para valores correntes no âmbito moral. Bandura (2002a) insiste em que os preceitos morais predizem o comportamento moral somente quan­do convertidos em ação. Em outras palavras, as influên­cias autorreguiatórias não são automáticas, mas operam somente se ativadas, um conceito que Bandura chama de ativação seletiva.

Como as pessoas com fortes crenças morais referentes a valor e dignidade da humanidade podem se comportar de forma desumana? A resposta de Bandura é que “as pessoas normalmente não se engajam em conduta repreensível até que elas tenham se justificado da moralidade de suas ações” (p. 72). Justificando a moralidade de suas ações, elas podem se separar ou se desengajar das conseqüências de seu comportamento, um conceito que Bandura denomina desengajamento do controle interno.

As técnicas de desengajamento permitem que as pes­soas, individualmente ou em conjunto com outras, engajem-se em comportamentos desumanos ao mesmo tempo em que mantêm seus padrões morais (Bandura, 2002a). Por exemplo, os políticos, com frequência, convencem seus eleitores da moralidade da guerra. Assim, as guerras são empreendidas contra pessoas “más", indivíduos que mere­cem ser derrotados ou até mesmo aniquilados.
A ativação seletiva e o desengajamento do controle in­terno permitem que pessoas com os mesmos padrões mo­rais se comportem de formas muito diferentes, assim como possibilitam que a mesma pessoa se comporte de forma diferente em situações distintas. A Figura 17,2 ilustra os vários mecanismos por meio dos quais o autocontrole é desengajado ou ativado seletivamente. Primeiro, as pessoas podem redefinir ou reconstruir a natureza do comportamento em si por meio de técnicas como justificá-lo moralmente, fazer comparações vantajosas ou rotular suas ações de modo eufemístico. Segundo, elas podem minimizar, ignorar ou distorcer as conseqüências nocivas de seu comportamento. Terceiro, elas podem acusar ou desumanizar a vítima. Quar­to, elas podem deslocar ou diluir a responsabilidade por seu comportamento obscurecendo a relação entre suas ações e os efeitos destas.

Figura 17.2

Redefinir o comportamento

Com a redefinição do comportamento, as pessoas justifi­cam ações de outra forma repreensíveis por meio de uma [340] reestruturação cognitiva, capaz de minimizar ou elimi­nar a responsabilidade. Elas podem se aliviar da respon­sabilidade por seu comportamento por meio de, pelo menos, três técnicas (ver quadro superior à esquerda na Fig. 17.2).

A primeira é a justificativa moral, em que um compor­tamento de outra forma culpável tende a parecer defen­sável ou até mesmo nobre. Bandura (1986) citou o exem­plo do herói da I Guerra Mundial, o sargento Alvin York, o qual, como um objetor consciencioso, acreditava que matar era moralmente errado. Depois que o comandante de seu batalhão citou da Bíblia as condições sob as quais era moralmente justificado matar e após uma longa vigília de orações, York se convenceu de que matar soldados ini­migos era defensável sob o âmbito moral. Depois de sua redefinição de matar, York prosseguiu matando e captu­rando mais de cem soldados alemães e, como conseqüên­cia, torou-se um dos maiores heróis de guerra na história estadunidense.

Um segundo método de redução da responsabilidade pela redefinição do comportamento ilícito é fazer compa­rações vantajosas ou paliativas entre aquele comportamen­to e as atrocidades ainda maiores cometidas por outros. A criança que vandaliza o prédio de uma escola usa a des­culpa de que os outros quebraram mais janelas.

Uma terceira técnica na redefinição do comportamen­to é o uso de rótulos eufemísticos. Os políticos que promete­ram não elevar os impostos falam de “aumento da receita”, em vez de taxas; alguns líderes nazistas chamavam o assas­sinato de milhões de judeus de “purificação da Europa" ou "a solução final".

Desconsiderar ou distorcer as conseqüências do comportamento

Um segundo método para evitar a responsabilidade envol­ve distorcer ou obscurecer a relação entre o comportamento e suas conseqüências nocivas (ver quadro superior central da Fig. 17.2). Bandura (1986,1999a) reconheceu pelo menos três técnicas de distorção ou obscurecimento das conseqüências nocivas das ações de um indivíduo. Primeiro, as pessoas podem minimizar as conseqüências de seu compor­tamento. Por exemplo, um motorista ultrapassa um sinal vermelho e atropela um pedestre. Enquanto a vítima está sangrando e inconsciente no chão, o motorista diz: “Ela não está muito machucada. Ela vai ficar bem".

Segundo, as pessoas podem desconsiderar ou ignorar as conseqüências de suas ações, como quando elas não veem inicialmente os efeitos prejudiciais de seu comportamento. Em tempos de guerra, os chefes de Estado e os generais do exército raramente veem a destruição total e as mortes resultantes de suas decisões.

Finalmente, as pessoas podem distorcer ou interpretar mal as conseqüências de suas ações, como quando um pai bate muito no filho, causando hematomas graves, mas ex­plica que a criança precisa de disciplina para amadurecer de forma adequada.

Desumanizar ou culpar as vítimas

Terceiro, as pessoas podem obscurecer a responsabilidade por suas ações desumanizando suas vítimas ou atribuindo a culpa a elas (ver quadro superior à direita na Fig. 17.2). Em tempos de guerra, as pessoas, muitas vezes, consideram o inimigo como sub-humano; portanto, não precisam se sen­tir culpadas por matarem soldados rivais. Em vários mo­mentos na história estadunidense, judeus, afro-americanos, hispano-americanos, americanos nativos, asiático-americanos, homossexuais e moradores de rua se tornaram vítimas desumanizadas. Pessoas de outra forma amáveis, atenciosas e gentis perpetraram atos de violência, insulto ou outras formas de maus-tratos contra esses grupos ao mesmo tempo em que evitavam a responsabilidade por seu comportamento.

Quando as vítimas não são desumanizadas, elas são, às vezes, acusadas pela conduta culpável do perpetrador. Um estuprador pode acusar a vítima por seu crime citando seu vestido ou comportamento provocativo. [341] 

Deslocar ou diluir a responsabilidade

O quarto método para dissociar as ações das conseqüências é deslocar ou diluir a responsabilidade (ver quadro inferior na Fig. 17.2). Com o deslocamento, as pessoas minimizam as conseqüências de suas ações, atribuindo a responsabilida­de a uma fonte externa. Exemplos incluem uma emprega­da que alega que seu chefe é responsável por sua ineficiên­cia e um universitário que culpa o professor por suas notas baixas.

Um procedimento relacionado é diluir a responsabilida­de - espalhá-la tanto que ninguém seja responsável. Uma funcionária pública pode diluir a responsabilidade por suas ações por toda a burocracia, com comentários como: “É as­sim que as coisas são feitas por aqui” ou “Isto é simples­mente política". [342]

Psicologia - Teoria social cognitiva
Personalidade - Cognição, Motivação
12/22/2020 1:04:02 PM | Por Gregory J. Feist, Jess Feist, Tomi-Ann Roberts
Agência humana

A teoria social cognitiva assume uma visão agêntica da per­sonalidade, significando que os humanos têm a capacidade de exercer controle sobre a própria vida (2002b). Na verda­de, a agênda humana é a essência da humanidade. Ban­dura (2001) acredita que as pessoas são autorreguladas, proativas, autorrefiexivas e auto-organizadas e que elas têm o poder de influenciar as próprias ações para produzir as conseqüências desejadas. Agência humana não signi­fica que as pessoas possuem um homúnculo - isto é, um agente autônomo - tomando decisões que são coerentes com sua visão do self. Nem significa que reajam de forma automática a eventos externos e internos. A agência huma­na não é uma coisa, mas um processo ativo de exploração, manipulação e influênda do ambiente para atingir os re­sultados desejados.

Características fundamentais da agência humana

Bandura (2001, 2004) refere quatro características fundamentais da agência humana: intencionalidade, antecipação, autorreatividade e autorreflexão.
Intencionalidade refere-se a atos realizados de forma intencional. Uma intenção inclui planejamento, mas tam­bém envolve ações. “Não é simplesmente uma expectativa ou predição de ações futuras, mas um comprometimento proativo de provocá-las" (2001, p. 6). Intencionalidade não significa que todos os planos de uma pessoa serão concretizados. As pessoas continuamente alteram seus planos conforme se conscientizam das conseqüências de suas ações.

As pessoas também possuem antecipaçâo para estabe­lecer objetivos, para antecipar os prováveis resultados de suas ações e escolher comportamentos que irão produzir os resultados desejados e evitar os indesejados. A anteci­pação possibilita às pessoas libertarem-se das restrições do ambiente. Se o comportamento fosse completamente uma função do ambiente, então ele seria mais variável e menos consistente, porque estaríamos constantemente reagindo [334] à grande diversidade de estímulos ambientais. "Se as ações fossem determinadas unicamente por recompensas e pu­nições externas, as pessoas se comportariam como cataventos" (Bandura, 1986, p. 335). Mas as pessoas não se comportam como cataventos, “constantemente mudando de direção para se adequarem às influências que as afetam no momento" (Bandura, 2001, p. 7).

Elas fazem mais do que planejar e contemplar com­portamentos futuros. Elas também são capazes de reatividade no processo de motivação e regulação de suas ações. As pessoas não só fazem escolhas, mas também monitoram seu progresso para cumprirem tais escolhas. Bandura (2001) reconhece que o estabelecimento de ob­jetivos não é suficiente para atingir as conseqüências de­ sejadas. Os objetivos devem ser específicos, estar dentro da capacidade da pessoa de atingi-los e refletir as realiza­ções potenciais que não estão muito distantes no futuro.

Por fim, as pessoas têm autorreflexão. Elas são avalia­doras do próprio funcionamento; podem pensar a respeito e analisar suas motivações, seus valores e os significados de seus objetivos de vida, e refletir quanto à adequação de seu pensamento. Elas também podem avaliar o efeito que as ações das outras pessoas tem sobre elas. O mecanismo autorreflexivo mais crucial é a autoeficácia, seja, as crenças pessoais de ser capaz de executar ações que irão produzir um efeito desejado.

Autoeficácia

A forma como as pessoas agem em uma situação em par­ticular depende da reciprocidade das condições comportamentais, ambientais e cognitivas, em especial aqueles fatores cognitivos relacionados às crenças de que elas podem ou não executar o comportamento necessário para produzir os resultados desejados em uma situação específica. Bandura (1997) chama essas expectativas de autoeficácia. De acordo com Bandura (1994), “as cren­ças das pessoas em sua eficácia pessoal influenciam o curso de ação que escolhem seguir, o quanto de esforço irão investir nas atividades, por quanto tempo irão perseverar em face de obstáculos e experiências de fracasso e sua resiliência após contratempos" (p. 65). Apesar de a autoeficácia ter uma influência causal poderosa sobre as ações das pessoas, ela não é o único determinante. Em vez disso, a autoeficácia se combina com o ambiente, o comportamento prévio e outras variáveis pessoais, prin­cipalmente as expectativas de resultado, para produzir o comportamento.
No modelo causal triádico recíproco, que postula que o ambiente, o comportamento e a pessoa têm uma in­fluência interativa entre si, autoeficácia refere-se ao fator P (pessoa).

O que é autoeficácia?

Bandura (2001) definiu autoeficácia como "crenças das pessoas em sua capacidade de exercer alguma medida de controle sobre o próprio funcionamento e sobre eventos ambientais” (p. 10). Ele refere que "as crenças na eficácia são o fundamento da agência humana" (p. 10). As pes­soas que acreditam que podem fazer algo que tenha o potencial de alterar eventos ambientais têm maior pro­babilidade de agir e ter sucesso do que aquelas com baixa autoeficácia.

Autoeficácia não é a expectativa pelos resultados de nossas ações. Bandura (1986,1997) distinguiu entre ex­pectativas de eficácia e expectativas de resultados. Eficácia refere-se à confiança das pessoas de que elas têm a capaci­dade de realizar certos comportamentos, enquanto expec­tativa de resultados refere-se à predição que a pessoa faz sobre as conseqüências prováveis daquele comportamento. Resultado não deve ser confundido com realização bem-sucedida de um ato; ele se refere às conseqüências do com­portamento, não à realização do ato em sl Por exemplo, uma candidata a um emprego pode ter confiança de que se sairá bem durante a entrevista de seleção, terá a capacidade de responder as perguntas possíveis, permanecerá relaxada e controlada e exibirá um nível apropriado de comporta­mento amistoso. Portanto, ela tem alta autoeficácia com relação à entrevista de emprego. Contudo, apesar dessas expectativas de alta eficácia, ela pode ter baixas expecta­tivas de resultados. Existiria uma baixa expectativa de re­sultado se ela acreditasse ter poucas chances de receber um cargo. Esse julgamento pode se dever a condições ambien­tais não promissoras, como alta taxa de desemprego, de­ pressão na economia ou competição superior. Além disso, outros fatores pessoais, como idade, gênero, altura, peso ou saúde física, podem afetar negativamente as expectati­vas de resultados.

Além de ser diferente das expectativas de resultados, a autoeficácia deve ser distinguida de vários outros concei­tos. Primeiro, eficácia não se refere à capacidade de execu­tar habilidades motoras básicas como caminhar, alcançar ou agarrar. Eficácia também não implica que podemos exe­cutar comportamentos designados sem ansiedade, estres­se ou medo; ela é meramente nosso julgamento, preciso ou falho, sobre podermos ou não executar as ações necessá­rias. Por fim, os julgamentos de eficácia não são a mesma coisa que os níveis de aspiração. Os aditos em heroína, por exemplo, muitas vezes, desejam estar livres da droga, mas podem ter pouca confiança em sua capacidade de romper o vício com sucesso (Bandura, 1997).

Auteficácia não é um conceito global ou generali­zado, como autoestima ou autoconfiança. As pessoas podem ter alta autoeficácia em uma situação e baixa autoeficácia em outra. Ela varia conforme a situação, de­ pendendo das competências necessárias para diferentes [335] atividades, da presença ou ausência de outras pessoas, da competência percebida dessas outras pessoas, especial­mente se elas são competidoras, da predisposição da pessoa a prestar atenção no fracasso do desempenho, em vez de no sucesso, e dos estados fisiológicos concomitantes, particularmente a presença de fadiga, ansiedade, apatia ou prostração.

Alta e baixa eficácia combinam com ambientes res­ponsivos e não responsivos para produzir quatro variáveis preditivas possíveis (Bandura, 1997). Quando a eficácia é alta e o ambiente é responsivo, é mais provável que os re­sultados sejam de sucesso. Quando a baixa eficácia é com­binada com um ambiente responsivo, as pessoas podem ficar deprimidas ao observarem que os outros têm sucesso em tarefas que parecem muito difíceis para elas. Quando pessoas com alta eficácia encontram situações ambientais não responsivas, elas, em geral, intensificam seus esfor­ços para mudar o ambiente. Elas podem usar o protesto, o ativismo social ou mesmo a força para instigar mudança; mas, se todos os esforços falham, Bandura levanta a hipó­tese de que ou elas desistem daquele curso e assumem um novo ou procuram um ambiente mais responsivo. Por fim, quando a baixa autoeficácia se combina com um ambiente não responsivo, as pessoas provavelmente sentem apa­tia, resignação e desamparo. Por exemplo, um executivo júnior com baixa autoeficácia que percebe as dificuldades de se tornar presidente da empresa irá desenvolver senti­mentos de desencorajamento, desistirá e não conseguirá transferir esforços produtivos para um objetivo semelhan­te, porém menor.

O que contribui para a autoeficácia?

A eficácia pessoal é adquirida, melhorada ou diminuída por meio de uma fonte ou da combinação de quatro fontes: (1) experiências de domínio, (2) modelagem social, (3) per­suasão social e (4) estados físicos e emocionais (Bandura, 1997). Com cada método, as informações sobre si mesmo e sobre o ambiente são processadas cognitivamente e, com as lembranças de experiências prévias, alteram a autoeficá­cia percebida.

Experiências de domínio. As fontes mais influentes de autoeficácia são as excperiênrías de domínio, ou seja, os de­sempenhos passados (Bandura, 1997). Em geral, o desem­penho de sucesso aumenta as expectativas de eficácia; o fracasso tende a reduzi-las. Essa afirmação geral possui seis corolários.

Primeiro, o desempenho de sucesso eleva a autoeficá­cia proporcionalmente à dificuldade da tarefa. Jogadores de tênis muito habilidosos adquirem pouca autoeficácia derrotando oponentes inferiores, porém ganham muito ao terem bom desempenho contra oponentes superio­res. Segundo, as tarefas realizadas com sucesso, por si só, são mais eficazes do que aquelas concluídas com a ajuda de outros. Nos esportes, as realizações em equipe não aumentam a eficácia pessoal tanto quanto as realizações individuais. Terceiro, o fracasso é mais provável de redu­zir a eficácia quando sabemos que empreendemos nossos melhores esforços. Fracassar quanto se tentou apenas pela metade não é tão ineficaz quanto ficar aquém apesar dos melhores esforços. Quarto, o fracasso sob condições de alta excitação emocional ou angústia não é tão autodebilitante quanto o fracasso sob condições máximas. Quinto, o fra­casso antes de estabelecer um sentimento de domínio é mais prejudicial para os sentimentos de eficácia pessoal do que o fracasso posterior. Um sexto corolário relacionado é que o fracasso ocasional tem pouco efeito sobre a eficácia, em especial para pessoas com uma expectativa em geral alta de sucesso.

Modelagem social. Uma segunda fonte de eficácia é a modelagem social, ou seja, as experiências vicariantes proporcionadas por outras pessoas. Nossa autoeficácia é aumentada quando observamos as realizações de outras pessoas de igual competência, mas é diminuída quando ve­mos um par fracassar. Quando a outra pessoa é diferente de nós, a modelagem social terá pouco efeito sobre nossa autoeficácia. Um velho e covarde sedentário observando um jovem ativo e corajoso artista de circo andar sobre um arame sem dúvida terá pouca melhora nas expectativas de eficácia para duplicar o feito.

Em geral, os efeitos da modelagem social não são tão fortes quanto os do desempenho pessoal em elevar os níveis de eficácia, mas eles podem ter efeitos poderosos quando se refere à ineficácia. Observar um nadador de igual habilidade fracassar em atravessar um rio agitado provavelmente irá dissuadir o observador de tentar a mes­ma façanha. Os efeitos dessa experiência vicariante podem durar até mesmo a vida inteira. [336]  

Persuasão social. A autoeficácia também pode ser adqui­rida ou enfraquecida pela persuasão social (Bandura, 1997). Os efeitos dessa fonte são limitados, mas, sob as condições adequadas, a persuasão dos outros pode aumentar ou redu­zir a autoeficácia. Exortações ou críticas de uma fonte con­fiável têm maior poder de eficácia do que aquelas de uma pessoa não confiável. Incentivar a autoeficácia por meio da persuasão social será efetivo somente se a atividade que a pessoa estiver sendo encorajada a experimentar encontrar-se dentro de seu próprio repertório de comportamento. Nenhuma quantidade de persuasão verbal pode alterar o julgamento de eficácia de uma pessoa quanto à capacidade de correr 100 metros em menos de 8 segundos.

Bandura (1986) levanta a hipótese de que a eficácia da sugestão está diretamente relacionada ao status e à autori­dade percebida do persuasor. Status e autoridade, é claro, não são idênticos. Por exemplo, a sugestão de um psicoterapeuta para pacientes fóbicos de que eles conseguem andar em um elevador lotado tem maior probabilidade de aumentar a autoeficácia do que o encorajamento por parte do cônjuge ou dos filhos dessas pessoas. Porém, se esse mesmo terapeuta disser aos pacientes que eles têm a capacidade de trocar um interruptor de luz estragado, os pacientes provavelmente não irão melhorar sua autoefi­cácia para essa atividade. Além disso, a persuasão social é mais efetiva quando combinada com o desempenho bem-sucedido. A persuasão pode convencer alguém a tentar uma atividade e, se o desempenho for bem-sucedido, tanto a realização quanto as recompensas verbais posteriores au­mentarão a eficácia futura.

Estados físicos e emocionais. A fonte final de eficácia são os estados físicos e emocionais (Bandura, 1997). Uma emoção forte tende a reduzir o desempenho; quando as pessoas experimentam medo intenso, ansiedade aguda ou altos níveis de estresse, é provável que elas tenham expec­tativas de eficácia mais baixas. Um ator em uma peça da escola sabe seu texto durante o ensaio, mas percebe que o medo que ele sente na noite de estreia pode bloquear sua memória. A propósito, para algumas situações, a excitação emocional, se não for muito intensa, está associada a um desempenho aumentado, de modo que a ansiedade mode­rada sentida por aquele ator na noite de estreia tem poten­cial para aumentar suas expectativas de eficácia. A maioria das pessoas, quando não está com medo, tem a capacidade de segurar cobras venenosas. Elas apenas devem pegar a cobra com firmeza por trás da cabeça; mas, para muitas pessoas, o medo que acompanha o contato com a cobra é debilitante e reduz sobremaneira sua expectativa de desempenho.

Os psicoterapeutas já reconheceram há tempo que uma redução na ansiedade ou um aumento no relaxamento físico podem facilitar o desempenho. A informação da excitação está relacionada a inúmeras variáveis. Primeiro, é claro, está o nível de excitação - em geral, quanto maior a excitação, mais baixa a autoeficácia. A segunda variável é o realismo percebido da excitação. Se a pessoa sabe que o medo é realis­ta, como quando dirige na estrada congelada de uma mon­tanha, a eficácia pessoal pode ser aumentada. Entretanto, quando a pessoa percebe o absurdo da fobia - por exemplo, medo de lugares abertos - então a excitação emocional ten­de a baixar a eficácia. Por fim, a natureza da tarefa é uma variável adicional. A excitação emocional pode facilitar a rea­lização bem-sucedida de tarefas simples, mas é provável que interfira no desempenho de atividades complexas.
Ainda que a autoeficácia seja “o fundamento da agên­cia humana" (Bandura, 2001, p. 10), ela não é o único modo de agência humana. As pessoas também podem exercer controle sobre suas vidas por meio da agência por procuração e da eficácia coletiva.

Agência por procuração

Procuração envolve o controle indireto sobre as condições sociais que afetam a vida diária. Bandura (2001) observou que “ninguém possui o tempo, a energia e os recursos para ter domínio em todos os terrenos da vida diária. O fun­cionamento de sucesso, necessariamente, envolve uma combinação de confiança na agência por procuração em algumas áreas de funcionamento" (p. 13). Na sociedade estadunidense moderna, por exemplo, as pessoas seriam quase impotentes se dependessem unicamente das realizações pessoais para regular suas vidas. A maioria não tem a capa­cidade pessoal de consertar um condicionador de ar, uma câmera ou um automóvel. Por meio da agência por pro­curação, no entanto, elas podem realizar seu objetivo de­ pendendo de outras pessoas para consertar esses objetos. As pessoas tentam mudar sua vida diária fazendo contato com seu representante no congresso ou com outra pessoa potencialmente influente; elas buscam mentores para aju­dá-las a aprender habilidades úteis; elas contratam um menino da vizinhança para cortar sua grama; elas se baseiam nos serviços de notícias internacionais para saberem de eventos recentes; elas contratam advogados para resolver problemas legais; e assim por diante.

Procuração, no entanto, possui um aspecto negativo. Ao dependerem muito da competência e do poder dos ou­tros, as pessoas podem enfraquecer seu senso de eficácia pessoal e coletiva. Um cônjuge pode se tornar dependente do outro para cuidar dos afazeres domésticos; filhos no fim da adolescência ou jovens adultos podem esperar que os pais cuidem deles.

Eficácia coletiva

O terceiro modo de agência humana é a eficácia coletiva. Bandura (2000) definiu eficácia coletiva como “as cren­ças compartilhadas das pessoas em seu poder coletivo de [337] produzir os resultados desejados” (p. 75). Em outras pa­lavras, eficácia coletiva é a confiança que as pessoas têm de que seus esforços combinados ocasionarão realizações para o grupo. Bandura (2000) sugeriu duas técnicas para medir a eficácia coletiva. A primeira é combinar as ava­liações dos membros individuais sobre suas capacidades de exercer comportamentos que beneficiem o grupo. Por exemplo, os atores em uma peça teriam alta eficácia co­letiva se todos tivessem a confiança em sua capacidade pessoal de realizar seu papel de modo adequado. A segun­da abordagem proposta por Bandura é medir a confiança que cada pessoa tem na capacidade do grupo de produzir um resultado desejado. Por exemplo, jogadores de beisebol podem ter pouca confiança em cada um de seus compa­nheiros de time, mas possuem alta confiança de que o time
terá um ótimo desempenho. Essas duas abordagens um pouco diferentes da eficácia coletiva requerem técnicas de medida distintas.

A eficácia coletiva não se origina de uma “mente” co­letiva, mas da eficácia pessoal de muitos indivíduos traba­lhando em conjunto. A eficácia coletiva de um grupo, no entanto, depende não só do conhecimento e das habilida­des de seus membros individuais, mas também das cren­ças de que eles podem trabalhar juntos de maneira coorde­nada e interativa (Bandura, 2000). As pessoas podem ter alta autoeficácia, mas baixa eficácia coletiva. Por exemplo, uma mulher pode ter alta eficácia pessoal para perseguir um estilo de vida saudável, mas ela pode ter baixa eficácia coletiva para ser capaz de reduzir a poluição ambiental, as condições de trabalho perigosas ou a ameaça de doença infecciosa.

Bandura (1998b) assinalou que diferentes culturas possuem níveis distintos de eficácia coletiva e trabalham de forma mais produtiva sob sistemas diferentes. Por exemplo, as pessoas nos Estados Unidos, uma cultura indi­vidualista, sentem maior autoeficácia e trabalham melhor sob um sistema orientado individualmente, enquanto as pessoas na China, uma cultura coletivista, sentem maior eficácia coletiva e trabalham melhor sob um sistema orien­ tado para o grupo.

Bandura (1997,1998b, 2001) lista vários fatores que podem minar a eficácia coletiva. Primeiro, os humanos vivem em um mundo transnacional; o que acontece em uma parte do globo pode afetar pessoas em outros países, dando-lhes um sentimento de desamparo. A destruição da floresta amazônica, as políticas de comércio internacional ou a destruição da camada de ozônio, por exemplo, podem afetar a vida de pessoas em qualquer lugar e minar sua con­fiança para moldar um mundo melhor para elas.

Segundo, tecnologias recentes que as pessoas não en­tendem nem acreditam que conseguem controlar podem diminuir seu sentimento de eficácia coletiva. Em anos pas­sados, muitos motoristas, por exemplo, tinham confiança em sua capacidade de manter seu carro em condições de
funcionamento. Com o advento dos controles computa­dorizados em automóveis modernos, muitos mecânicos moderadamente habilidosos não só perderam a eficácia pessoal para consertar seu veículo como também apresen­taram baixa eficácia coletiva para inverter a tendência dos automóveis cada vez mais complicados.

Uma terceira condição que mina a eficácia coletiva é a complexa máquina social, com níveis de burocracia que impedem a mudança social. As pessoas que tentam mudar as estruturas burocráticas com frequência são desenco­rajadas pelo fracasso ou pelo longo lapso de tempo entre suas ações e alguma alteração perceptível. Ao ficarem de­sencorajadas, muitas pessoas, “em vez de desenvolverem os meios para moldar seu futuro... com relutância abdicam do controle, deixando-o para especialistas técnicos e fun­cionários públicos” (Bandura, 1995, p. 37).

Quarto, o grande âmbito e a magnitude dos proble­mas humanos podem prejudicar a eficácia coletiva. Guer­ras, fome, superpopulação, crime e desastres naturais são apenas alguns dos problemas globais que podem deixar as pessoas com um sentimento de impotência. Apesar desses enormes problemas transnacionais, Bandura acre­dita que mudanças positivas são possíveis se as pessoas perseverarem com seus esforços coletivos e não ficarem desencorajadas.

Segundo uma ótica mundial, Bandura (2000) concluiu que, “conforme a globalização atinge mais profundamente a vida das pessoas, um sentimento resiliente de eficácia compartilhada se torna essencial para promover seus inte­resses comuns” (p. 78). [338]

Psicologia - Teoria social cognitiva
Personalidade - Cognição, Aprendizagem
12/22/2020 11:55:57 AM | Por Gregory J. Feist, Jess Feist, Tomi-Ann Roberts
Causação recíproca triádica

Para Skinner, o comportamen­to é uma função do ambiente; ou seja, o comportamento, em última análise, pode ser rastreado até forças externas à pessoa. À medida que as contingências ambientais mu­dam, o comportamento se modifica também. Mas que impulso muda o ambiente? Skinner reconhecia que o com­portamento humano pode exercer alguma medida de contracontrole sobre o ambiente, porém insistia em que, na análise final, o comportamento é ambientalmente deter­minado. Outros teóricos, como Gordon Allport e Hans Eysenck enfatizaram a importância dos traços ou da disposição pessoal para moldar o comporta­mento. Em geral, esses teóricos sustentavam que fatores pessoais interagem com as condições ambientais para pro­duzir o comportamento.

Albert Bandura (1986, 1999b, 2001, 2002b) adota uma posição um pouco diferente. Sua teoria social cogni­tiva explica o funcionamento psicológico em termos de causação recíproca triádica. Esse sistema pressupõe que a ação humana é resultado de uma interação entre três va­riáveis: ambiente, comportamento e pessoa. Por “pessoa" Bandura queria dizer, em grande parte, mas não exclusi­vamente, fatores cognitivos como memória, antecipação, planejamento e julgamento. Como as pessoas possuem e usam essas capacidades cognitivas, elas possuem alguma capacidade de selecionar ou reestruturar seu ambiente, ou seja, a cognição determina, pelo menos em parte, a quais eventos ambientais as pessoas atentam, que valor elas atribuem a esses eventos e como elas os organizam para uso futuro. Ainda que a cognição possa ter um forte efeito causal sobre o ambiente e o comportamento, ela não é uma entidade autônoma, independente dessas duas variáveis. Bandura (1986) criticava os teóricos que atribuem a causa do comportamento humano a forças internas como instin­tos, impulsos, necessidades e intenções. A própria cognição é determinada, sendo formada pelo comportamento e pelo ambiente.

A causação recíproca triádica é representada de forma esquemática na Figura 17.1, em que B significa comporta­ mento (behavior)-, E é o ambiente externo (environment)-, e P representa a pessoa (person), incluindo o gênero, a posição social, o tamanho e a atratividade física, mas especialmen­te fatores cognitivos como pensamento, memória, julga­mento e previsão.

Figura 17.1Bandura usa o termo “recíproca" para indicar uma interação triádica de forças, não uma ação contrária. Os [332] três fatores recíprocos não precisam ser de mesma força ou fazer contribuições iguais. A potência relativa dos três varia conforme o indivíduo e a situação. Por vezes, o comportamento pode ser mais potente, como quando a pessoa toca piano para o próprio prazer. Outras vezes, o ambiente exerce a maior influência, como quando um barco vira e todos os sobreviventes começam a pensar e a agir de uma forma muito semelhante. Mesmo que comportamento e ambiente possam, por vezes, ser os contribuintes mais fortes para o desempenho, a cognição (pessoa), em geral, é o contribuinte mais significativo para o desempenho. A cognição provavelmente seria ativada nos exemplos da pessoa tocando piano para o próprio prazer e nos sobrevi­ventes de um barco virado. A influência relativa do comportamento, do ambiente e da pessoa depende de qual dos fatores triádicos é mais forte em um momento específico (Bandura, 1997).

Um exemplo de causação recíproca triádica

Considere o seguinte exemplo de causação recíproca triádica. Uma criança implorando ao pai por um segundo brownie é, do ponto de vista do pai, um evento ambien­tal. Se o pai automaticamente (sem pensamento) desse ao filho o que foi solicitado, então os dois estariam con­dicionando o comportamento um do outro no sentido skinneriano. O comportamento do pai seria controlado pelo ambiente, mas também teria um efeito de contracontrole em seu ambiente, ou seja, o filho. Na teoria de Bandura, no entanto, o pai é capaz de pensar sobre as con­ seqüências de recompensar ou ignorar o comportamento do filho. Ele pode pensar: “Se eu lhe der outro brownie, ele vai parar de chorar por um tempo, mas, em casos futuros, ele terá maior probabilidade de persistir até que eu ceda. Portanto, não vou permitir que ele ganhe outro ." Dessa forma, o pai tem um efeito sobre o ambiente (a criança) e sobre o próprio comportamento (rejeitando o pedido do filho). O comportamento posterior da criança (ambiente do pai) ajuda a moldar a cognição e o compor­tamento do pai. Se a criança pára de insistir, o pai pode, então, ter outros pensamentos. Por exemplo, ele pode avaliar seu comportamento pensando: “Sou um bom pai porque fiz a coisa certa". A mudança no ambiente também permite ao pai buscar comportamentos diferentes. Assim, seu comportamento posterior é parcialmente determina­do pela interação recíproca do ambiente, da cognição e do comportamento.

Esse exemplo ilustra a interação recíproca dos fatores comportamentais, ambientais e pessoais segundo o pon­to de vista do pai. Primeiro, os apelos do filho afetaram o comportamento do pai (E => B); eles também determi­naram, em parte, a cognição do pai (E => P); o comporta­mento do pai ajudou a moldar o comportamento do filho, ou seja, o ambiente dele (B =>E); o comportamento também interferiu em seus pensamentos (B => P); e sua
cognição determinou parcialmente seu comportamento (B =s> P). Para completar o ciclo, P (pessoa) deve influen­ciar E (ambiente). Como a cognição do pai pode moldar diretamente o ambiente sem antes ser transformada em comportamento? Não pode. No entanto, P não significa cognição apenas; representa pessoa. Bandura (1999b) le­vantou a hipótese de que “as pessoas evocam diferentes reações de seu ambiente social, devido a suas caracterís­ticas físicas - como idade, altura, raça, sexo e atratividade física - mesmo antes de dizerem ou fazerem algo" (p. 158).

O pai, então, devido a seu papel e status como pai e talvez em conjunção com o seu tamanho e força, tem um efeito decisivo sobre o filho. Assim, a ligação causal é completa (P=>E).

Encontros casuais e eventos fortuitos

Ainda que as pessoas possam exercitar, e exercitem, uma dose significativa de controle sobre suas vidas, elas não podem predizer ou antecipar todas as mudanças ambien­tais possíveis. Bandura é o único teórico da personalidade a considerar com seriedade a possível importância dos en­contros casuais e dos eventos fortuitos.

Bandura (1998a) definiu um encontro casual como “um encontro não intencional de pessoas que não são fa­miliarizadas entre si" (p. 95). Um evento fortuito é uma experiência ambiental inesperada e não intencional, A vida diária é afetada em maior ou menor grau por indivíduos que as pessoas acabam encontrando por acaso e por even­tos aleatórios que elas não poderiam prever. O parceiro conjugal de uma pessoa, sua ocupação e local de [333] residênda podem, em grande parte, ser resultado de um encontro fortuito.

Assim como a fortuidade influenciou as vidas de to­dos nós, ela também moldou a vida e a carreira de teóricos famosos da personalidade. Dois exemplos são Abraham H. Maslow e Hans J. Eysenck. Quando jovem, Maslow era extremamente tímido com as mulheres. Ao mesmo tempo, ele estava muito apaixonado por sua pri­ma Bertha Goodman, mas era muito tímido para expres­sar seu amor. Um dia, enquanto estava visitando a prima, a irmã mais velha de Berta o empurrou na direção de sua amada prima, dizendo: “Pelo amor de Deus, beije-a, vamos lá!” (Hoffman, 1988, p. 29). Maslow a beijou e, para sua surpresa, Bertha não ofereceu resistência. Ela o beijou, e, a partir daquele momento, a vida antes sem propósito de Maslow foi transformada.

Além disso, Hans Eysenck, o conhecido psicólogo bri­tânico, aproximou-se da psicologia completamente por acaso. Ele pretendia estudar física na Universidade de Lon­dres, mas primeiro teria que passar no exame de ingres­so. Depois de esperar um ano para fazer o exame, foi dito que ele havia se preparado para o teste errado e que teria de esperar mais um ano para fazer o teste correto. Em vez de retardar ainda mais sua educação, ele peiguntou se ha­via algum tema científico que pudesse seguir. Quando lhe disseram que ele poderia se matricular em um programa de psicologia, Eysenck perguntou: “Mas o que vem a ser psicologia?" (Eysenck, 1982, p. 290). Eysenck, é claro, formou-se em psicologia e se tornou um dos psicólogos mais famosos do mundo.

A fortuidade acrescenta uma dimensão específica a qualquer esquema usado para predizer o comportamen­to humano e torna predições exatas praticamente im­possíveis. Contudo, os encontros casuais influenciam as pessoas somente pela entrada no paradigma da causação recíproca triádica no ponto E (ambiente), somando-se à interação mútua de pessoa, comportamento e ambiente. Nesse sentido, os encontros casuais influenciam as pes­soas da mesma maneira que os eventos planejados. Depois que ocorre um encontro casual, as pessoas se comportam em relação ao novo relacionamento de acordo com suas atitudes, seus sistemas de crenças e seu interesse, como também de acordo com a reação da outra pessoa a elas.

Assim, enquanto muitos encontros casuais e eventos não planejados têm pouca ou nenhuma influência no compor­tamento, “outros têm efeitos mais duradouros, e outros ainda impulsionam as pessoas para novas trajetórias na vida" (Bandura, 2001, p.12).

Os encontros casuais e os eventos fortuitos não são incontroláveis. De fato, as pessoas podem fazer a oportuni­dade acontecer. Um homem divorciado que está procuran­do uma oportunidade para se casar novamente aumentará sua chance de encontrar uma esposa potencial seguindo um curso de ação proativo, por exemplo, associando-se a um clube de solteiros, indo a lugares onde é provável que encontre mulheres solteiras ou pedindo que um amigo lhe apresente uma parceira potencial elegível. Se ele conhece uma mulher elegível e desejável, aumentam as chances de uma relação duradoura se ele se preparou para ser atraente ou interessante para as mulheres. Bandura (2001) cita Louis Pasteur: “O acaso favorece apenas a mente prepara­da” (p. 12). Todavia, a pessoa preparada é capaz de escapar de encontros casuais desagradáveis e infortúnios do acaso antecipando a possibilidade de acontecerem e tomando providêndas para minimizar algum impacto negativo que possam ter no desenvolvimento futuro. [334]

Psicologia - Teoria social cognitiva
Personalidade - Cognição, Aprendizagem
12/21/2020 1:29:54 PM | Por Gregory J. Feist, Jess Feist, Tomi-Ann Roberts
Aprendizagem para Bandura

Um dos primeiros e mais básicos pressupostos da teoria social cognitiva de Bandura é que os humanos são muito flexíveis e capazes de aprender inúmeras atitudes, habilida­des e comportamentos e que boa parte dessas aprendiza­gens são resultado de experiências vicariantes. Ainda que as pessoas possam aprender e aprendam com a experiência direta, muito do que elas aprendem é adquirido por meio da observação dos outros. Bandura (19986) afirmou que, “se o conhecimento só pudesse ser adquirido por meio dos efeitos das próprias ações, o processo do desenvolvimento cognitivo e social seria enormemente retardado, para não dizer excessivamente entediante” (p. 47).

Aprendizagem por observação

Conforme Bandura, a observação permite que as pessoas aprendam sem realizar qualquer comportamento. As pes­soas observam fenômenos naturais, plantas, animais, ca­choeiras, o movimento da lua e das estrelas, e assim por diante, mas especialmente importante para a teoria so­cial cognitiva é o pressuposto de que elas aprendem pela observação do comportamento de outras pessoas. A esse [330] respeito, Bandura difere de Skinner, para quem o compor­tamento enativo é o dado básico da ciência psicológica. Ele também discorda de Skinner por acreditar que o reforço não é essencial para a aprendizagem. Ainda que o refor­ço facilite a aprendizagem, Bandura afirma que ele não é uma condição necessária. As pessoas podem aprender, por exemplo, observando modelos sendo reforçados.

Para Bandura (1986, 2003) a aprendizagem por obser­vação é muito mais eficiente do que a aprendizagem pela experiência direta. Observando outras pessoas, os humanos poupam incontáveis respostas que poderiam ser seguidas por punição ou por nenhum reforço. As crianças observam as personagens na televisão, por exemplo, repetem o que ou­ vem ou veem; elas não precisam executar comportamentos aleatórios, esperando que algum deles seja recompensado.

Modelagem

A essência da aprendizagem por observação é a modelagem. Aprender por modelagem envolve somar e subtrair a partir do comportamento observado e generalizar de uma observa­ção para outra. Em outras palavras, modelagem envolve pro­cessos cognitivos e não simplesmente mimetismo ou imitação. É mais do que combinar as ações de outra pessoa; implica representar simbolicamente as informações e armazená-las para uso em um momento futuro (Bandura, 1986,1994).

Vários fatores determinam se uma pessoa irá aprender com um modelo em uma situação particular.

Primeiro, as características do modelo são importantes. As pessoas têm maior probabilidade de usar como modelo indivíduos de alto status do que aqueles de baixo status, competentes em vez de sem habilidades ou incompetentes, e poderosos em vez de impotentes.

Segundo, as características do observador afetam a probabilidade da modelagem. As pessoas que não pos­suem status, habilidade ou poder têm maior probabilidade de modelar. As crianças modelam mais do que as pessoas mais velhas, e os novatos têm mais probabilidade de modelar do que os experts.

Terceiro, as conseqüências do comportamento a ser modelado podem ter um efeito no observador. Quanto maior o valor que um observador atribui a determinado comportamento, mais provavelmente ele irá adquirir tal comportamento. Além disso, a aprendizagem pode ser facilitada quando o observador vê um modelo recebendo punição severa; por exemplo, ver outra pessoa receber um choque forte ao tocar em um fio elétrico ensina ao observa­dor uma lição valiosa.

Processos que governam a aprendizagem por observação

Bandura (1986) reconhece quatro processos que governam a aprendizagem por observação: atenção, representação, produção do comportamento e motivação.

Atenção. Antes que possamos modelar outra pessoa, pre­cisamos prestar atenção nela. Que fatores regulam a aten­ção? Primeiro, como temos mais oportunidades de obser­var indivíduos com quem frequentemente nos associamos, temos mais probabilidade de prestar atenção nessas pes­soas. Segundo, modelos atraentes têm maior probabilidade de serem observados dos que os não tão atraentes - figuras populares na televisão, em esportes ou em filmes tendem a ser observadas de modo atento. Além disso, a natureza do comportamento a ser moldado afeta nossa atenção: obser­vamos o comportamento que consideramos importante ou valioso para nós.

Representação. Para que a observação conduza a novos padrões de resposta, esses padrões devem ser simbolica­mente representados na memória. A representação simbó­lica não precisa ser verbal, porque algumas observações são retidas em imagens e podem ser evocadas na ausência do modelo físico. Esse processo é especialmente importante na infância, quando as habilidades verbais ainda não se de­ senvolveram.

A codificação verbal, no entanto, acelera muito o pro­cesso da aprendizagem por observação. Com linguagem, podemos avaliar verbalmente nossos comportamentos e decidir quais deles desejamos descartar e quais desejamos experimentar. A codificação verbal também nos ajuda a en­saiar o comportamento simbolicamente, ou seja, diz repe­tidas vezes a nós mesmos como iremos realizar o compor­tamento quando surgir a oportunidade. O ensaio também pode envolver a realização real da resposta modelada, e sua prática auxilia o processo de retenção.

Produção do comportamento. Depois de prestar atenção a um modelo e reter o que observamos, então produzimos o comportamento. Ao converter as representações cogniti­vas em ações apropriadas, precisamos nos fazer várias per­guntas acerca do comportamento a ser modelado. Primeiro perguntamos: “Como posso fazer isto?". Depois de ensaiar simbolicamente as respostas relevantes, experimentamos o novo comportamento. Enquanto o executamos, monito­ramos a nós mesmos com a pergunta: “O que estou fazen­do?". Por fim, avaliamos nosso desempenho perguntando: “Estou fazendo isto certo?”. Esta última pergunta nem sempre é fácil de responder, em especial se ela se refere a uma habilidade motora, como dançar balé ou pular de um trampolim, em que não podemos nos ver realmente. Por tal razão, alguns atletas usam câmeras de vídeo para ajudá-los a adquirir ou a melhorar habilidades motoras.

Motivação. A aprendizagem por observação é mais efe­tiva quando os aprendizes estão motivados para realizar o comportamento modelado. Atenção e representação po­dem levar à aquisição da aprendizagem, mas o desempe­nho é facilitado pela motivação para executar aquele com­portamento em particular. Mesmo que a observação dos [331] outros possa nos ensinar como fazer algo, podemos não ter o desejo de realizar a ação necessária. Uma pessoa pode ob­servar outra usando uma serra elétrica ou um aspirador de pó e não estar motivada para experimentar qualquer uma dessas atividades. A maioria dos pedestres que observam uma obra em construção não tem o desejo de imitar o tra­balhador da construção.

Aprendizagem enativa

Cada resposta dada é seguida por uma conseqüência. Algu­mas dessas conseqüências são satisfatórias, outras insatis­fatórias ou simplesmente não são captadas de modo cog­nitivo e, portanto, têm pouco efeito. Bandura acredita que o comportamento humano complexo pode ser aprendido quando as pessoas pensam a respeito e avaliam as conse­qüências de seus comportamentos.

As conseqüências de uma resposta servem a, pelo me­nos, três funções.

Primeiro, as conseqüências da resposta nos informa dos efeitos de nossas ações. Podemos reter essa informação e usá-la como um guia para ações futu­ras.

Segundo, as conseqüências de nossas respostas mo­tivam nosso comportamento antecipatório; isto é, somos capazes de representar simbolicamente resultados futuros e agir em conformidade. Não só possuímos insight, como também somos capazes de previsão. Não temos que sofrer o desconforto das temperaturas frias antes de decidirmos vestir um casaco quando saímos em um clima gélido. Em vez disso, antecipamos os efeitos do clima frio e úmido e nos vestimos de acordo.

Terceiro, as conseqüências das respostas servem para reforçar o comportamento, uma função que foi solidamente documentada por Skinner e por outros teóricos do reforço. Bandura (1986), no entanto, discute que, embora o reforço possa ser in­consciente e automático às vezes, os padrões comportamentais complexos são bastante facilitados pela interven­ção cognitiva. Ele defende que a aprendizagem ocorre de forma muito mais eficiente quando o aprendiz está envolvido cognitivamente na situação de aprendizagem e compreende quais comportamentos precedem respostas de sucesso.

Em resumo, conforme Bandura, novos comporta­mentos são adquiridos por meio de dois tipos principais de aprendizagem: aprendizagem por observação e apren­dizagem enativa. O elemento central da aprendizagem por observação é a modelagem, que é facilitada pela observa­ ção de atividades apropriadas, pela codificação apropriada desses eventos para representação na memória, pela real execução do comportamento e por estar motivado o su­ficiente. A aprendizagem enativa permite que as pessoas adquiram novos padrões de comportamento complexo pela experiência direta, pensando a respeito e avaliando as conseqüências de seus comportamentos. O processo de aprendizagem permite que as pessoas tenham algum grau de controle sobre os eventos que moldam o curso de suas vidas. O controle, entretanto, depende da interação recíproca de variáveis pessoais, do comportamento e do ambiente.

Psicologia - Teoria social cognitiva
Epistemologia - Teoria, Conceito de humanidade
12/20/2020 1:00:46 PM | Por Gregory J. Feist, Jess Feist, Tomi-Ann Roberts
Conceito de humanidade para B. F. Skinner

Sem dúvida, B. F. Skinner apresentava uma visão determinista da natureza humana, e conceitos como livre-arbítrio e escolha individual não tinham lugar em sua análise do comportamento. As pessoas não são livres, mas controladas por forças ambien­tais. Elas podem parecer motivadas por causas internas, mas, na realidade, essas causas podem ser rastreadas até fontes externas ao indivíduo. O autocontrole depende, em última análise, de variáveis ambientais, e não de alguma força interna. Quando as pessoas controlam as próprias vidas, elas fazem isso manipulan­do o ambiente, o qual, por sua vez, molda seu comportamento. Tal abordagem ambiental nega construtos hipotéticos como for­ça de vontade ou responsabilidade. O comportamento humano é extremamente complexo, mas as pessoas se comportam se­gundo as mesmas leis que as máquinas e os animais.

A noção de que o comportamento humano é determina­do por completo é bastante problemática para muitas pessoas [325] que consideram observar todos os dias vários exemplos de livre-arbftrio em si mesmas e nos outros. O que explica essa ilusão de liberdade? Skinner (1971) afirmava que liberdade e dignidade são conceitos reforçadores, porque as pessoas en­contram satisfação na crença de que são livres para escolher e também na fé na dignidade básica dos seres humanos. Como esses conceitos fictícios são reforçadores em muitas socieda­des modernas, as pessoas tendem a se comportar de formas que aumentam a probabilidade de que esses construtos se­jam perpetuados. Quando liberdade e dignidade perderem seu valor de reforço, as pessoas irão parar de se comportar como se esses conceitos existissem.

Antes de Louis Pasteur, muitas pessoas pensavam que as larvas eram geradas de forma espontânea nos corpos dos animais mortos. Skinner (1974) usou essa observação para fazer uma analogia com o comportamento humano, apon­tando que a geração espontânea do comportamento não é uma realidade mais do que a geração espontânea das larvas. O comportamento acidental ou aleatório pode parecer livre­mente escolhido, mas ele é, na verdade, produto de condições ambientais e genéticas acidentais ou aleatórias. As pessoas não são autônomas, porém a ilusão de autonomia persiste, devido ao conhecimento incompleto da história de um indiví­duo. Quando as pessoas não conseguem compreender o comportamento, elas o atribuem a algum conceito interno, como livre-arbítrio, crenças, intenções, valores ou motivos. Skinner acreditava que as pessoas são capazes de refletir sobre a pró­pria natureza e que esse comportamento reflexivo pode ser observado e estudado como qualquer outro.

O conceito de humanidade de Skinner é otimista ou pes­simista? A princípio, pode parecer que uma postura determi­nista seja, necessariamente, pessimista. Entretanto, a visão de Skinner da natureza humana é altamente otimista. Como o comportamento humano é moldado pelos princípios do refor­ço, a espécie é bastante adaptável. De todos os comportamen­tos, os mais satisfatórios tendem a aumentar a frequência de ocorrência. As pessoas, portanto, aprendem a viver harmonio­samente com seu ambiente. A evolução das espécies se dá na direção de um maior controle sobre as variáveis ambientais, o que resulta em um repertório crescente de comportamentos que vão além daqueles essenciais para a mera sobrevivência. Entretanto, Skinner (1987a) também se preocupava que as práticas culturais modernas ainda não tinham evoluído até o ponto em que a guerra nuclear, a superpopulação e o esgo­tamento dos recursos naturais pudessem ser interrompidos. Nesse sentido, ele era mais realista do que otimista.

Ainda assim, Skinner forneceu um modelo para uma so­ciedade utópica: Walden II (Skinner, 1948,1976b). Se suas re­comendações fossem seguidas, as pessoas poderiam aprender a organizar as variáveis em seus ambientes, de modo que a probabilidade das soluções corretas ou satisfatórias seria au­mentada.

A humanidade é basicamente boa ou má? Skinner an­siava por uma sociedade idealista, em que os indivíduos se comportassem de forma amável, sensível, democrática, inde­pendente e boa, porém as pessoas não são, por natureza, des­sa maneira. Mas elas também não são essencialmente más. Dentro dos limites definidos pela hereditariedade, as pessoas são flexíveis em sua adaptação ao ambiente, porém nenhuma avaliação de bom ou mau deve ser colocada sobre o compor­tamento individual. Se uma pessoa se comporta de forma al­truísta para o bem dos outros, é porque esse comportamento, seja na história evolutiva da espécie, seja na história pessoal do indivíduo, já foi reforçado antes. Se o indivíduo age com covardia, é porque as recompensas para a covardia superam as variáveis aversivas (Skinner, 1978).

Na dimensão causalidade versus teleologia, a teoria da personalidade de Skinner é muito alta em causalidade. O comportamento é causado pelo histórico de reforço da pessoa, bem como pelas contingências para sobrevivência da espécie e pela evolução das culturas. Ainda que as pessoas se comportem de forma velada (dentro da pele) quando pensam sobre o futuro, todos esses pensamentos são determinados por experiências passadas (Skinner, 1990b).

O complexo de contingências ambientais responsáveis por tais pensamentos, assim como por todos os demais com­portamentos, está além da consciência das pessoas. Elas rara­mente têm conhecimento da relação entre todas as variáveis genéticas e ambientais e seu comportamento. Por essa razão, classificamos Skinner como muito alto na dimensão incons­ciente da personalidade.

Mesmo acreditando que a genética desempenha um pa­pel importante no desenvolvimento da personalidade, Skin­ner sustentava que a personalidade humana é moldada, em grande parte, pelo ambiente. Porque uma parte importante desse ambiente é outra pessoa, o conceito de humanidade de Skinner se inclina mais para os determinantes sociais do que biológicos do comportamento. Como espécie, os humanos se desenvolveram até sua forma atual em decorrência de fatores ambientais particulares que desencontraram. O clima, a geo­grafia e a força física em relação a outros animais ajudaram a moldar a espécie humana. Mas o ambiente social, incluindo estrutura familiar, experiências precoces com os pais, sistemas educacionais, organização governamental, entre outros, de­sempenhou um papel ainda mais importante no desenvolvi­mento da personalidade.

Skinner esperava que as pessoas fossem confiáveis, com­preensivas, afetivas e empáticas - características que seu ad­versário amistoso Carl Rogers acreditava estarem na essência da personalidade psicologicamente sadia. Em con­traste com Rogers, que defendia que esses comportamentos positivos são, pelo menos em parte, resultado da capacidade humana de ser autodirecionada, Skinner sustentava que eles estão completamente sob o controle das variáveis ambientais. [326] 

Os humanos não são bons por natureza, mas eles podem se tornar se forem expostos às contingências de reforço apropria­das. Apesar de sua visão da pessoa ideal ser semelhante à de Rogers e de Abraham H. Maslow, Skinner acredi­tava que os meios para se tornar autônomo, afetuoso e auto-atualizado não devem ser deixados ao acaso, mas devem ser concebidos de forma específica dentro da sociedade. A história de uma pessoa determina o comportamento, e como cada humano tem uma história singular de contingên­cias de reforço, o comportamento e a personalidade são rela­tivamente singulares. As diferenças genéticas também justifi­cam a singularidade entre as pessoas. As diferenças biológicas e históricas moldam indivíduos únicos, e Skinner enfatizava a singularidade das pessoas mais do que suas semelhanças. [327]

Psicologia - Análise do comportamento
Epistemologia - Teoria, Classificação da teoria
12/20/2020 12:54:39 PM | Por Gregory J. Feist, Jess Feist, Tomi-Ann Roberts
Classificação da teoria de Skinner

Certa vez, o psicólogo independente Hans J. Eysenck (1988) criticou Skinner por ignorar conceitos como dife­renças individuais, inteligência, fatores genéticos e todo o domínio da personalidade. Essas alegações são apenas parcialmente verdadeiras, porque Skinner reconhecia os fatores genéticos e apresentou uma definição pouco entu­siástica da personalidade, dizendo que é, "na melhor das hipóteses, um repertório de comportamento partilhado por um conjunto organizado de contingências” (Sldnner, 1974, p. 149). Ainda que as opiniões de Eysenck sejam interessantes, elas não apresentam uma crítica cuidadosa ao trabalho de Skinner. Como a teoria de Skinner satisfaz os seis critérios de uma teoria útil?

Primeiro, como a teoria gerou uma grande quantidade de pesquisa, ela é classificada como muito alta na capacidade de gerar pesquisa. Segundo, a maioria das idéias de Skinner pode ser refutada ou verificada; portanto classificamos a teoria como alta em refutabilidade.

Terceiro, em sua habilidade para organizar tudo o que é conhecido acerca da personalidade humana, damos à teoria apenas uma classificação moderada. A abordagem de Skin­ner foi descrever o comportamento e as contingências am­bientais sob as quais ele ocorre. Seu propósito era reunir esses fatos descritivos e generalizar a partir deles. Muitos traços de personalidade, como os do modelo dos cinco fa­tores, podem ser explicados pelos princípios do condicio­namento operante. Entretanto, outros conceitos, como insight, criatividade, motivação, inspiração e autoeficácia não se encaixam facilmente na estrutura do condiciona­mento operante.

Quarto, como um guia para a ação, classificamos a teo­ria de Skinner como muito alta. A abundância de pesqui­sas descritivas produzidas por Skinner e seus seguidores tornou o condicionamento operante um procedimento ex­tremamente prático. Por exemplo, as técnicas skinnerianas têm sido usadas para ajudar pacientes fóbicos a superarem seus medos, para melhorar a adesão a recomendações mé­dicas, para ajudar as pessoas a superarem adições ao tabaco e a outras substâncias, para melhorar hábitos alimentares e aumentar a assertividade. De fato, a teoria skinneriana pode ser aplicada a quase todas as áreas de treinamento, ensino e psicoterapia.

O quinto critério de uma teoria útil é a coerência interna; e julgada segundo esse padrão, classificamos a teoria skinneriana como muito alta. Skinner definiu seus termos de modo preciso e operacional, um processo auxiliado, em grande escala, pela esquiva de conceitos mentais ficcionais. A teoria é parcimoniosa? Segundo esse critério final, a teoria de Skinner é difícil de classificar. Por um lado, a teo­ria é livre de construtos hipotéticos complicados, mas, por outro, demanda uma nova manifestação das expressões do dia a dia. Por exemplo, em vez de dizer: “Fiquei tão bra­va com meu marido que joguei um prato nele, mas errei”, seria preciso dizer: “As contingências de reforço dentro de meu ambiente foram organizadas de tal maneira que ob­servei meu organismo jogando um prato contra a parede da cozinha”. [325]

Psicologia - Análise do comportamento
Pesquisas - Pesquisas relacionadas, 
12/20/2020 12:35:23 PM | Por Gregory J. Feist, Jess Feist, Tomi-Ann Roberts
Pesquisas relacionadas ao Behaviorismo radical

Em sua história inicial, o condicionamento operante foi usado, sobretudo, em estudos com animais e, depois, res­ postas humanas simples; porém, mais recentemente, as idéias de Skinner foram empregadas em inúmeros estu­ dos que lidam com comportamentos humanos complexos. Alguns desses estudos se preocuparam com a relação en­ tre os padrões de comportamento de longo prazo (i. e., a personalidade) e as contingências de reforço. Tais estudos costumam ser de dois tipos: eles indagam como o condi­ cionamento afeta a personalidade e como a personalidade afeta o condicionamento. [321] 

Como o condicionamento afeta a personalidade

Os elementos-chave da per­ sonalidade são a estabilidade do comportamento ao longo do tempo e em diferentes situações. Por esses critérios, a mudança na personalidade ocorre quando novos compor­ tamentos se tomam estáveis ao longo do tempo e/ou em diferentes situações. Um domínio em que a mudança na personalidade pode ser evidenciada é a psicoterapia. De fato, um objetivo principal da terapia é modificar o compor­ tamento, e, se as mudanças são estáveis ao longo do tempo e nas situações, então podemos falar de mudança na perso­ nalidade. Dizemos isso para deixar claro que, embora Skin­ ner discutisse a mudança do comportamento a longo prazo, ele nunca abordou, de fato, a alteração na personalidade.

Um suposto básico do condicionamento skinneria- no é que o reforço molda o comportamento. No entanto, quais são os fatores que modificam o reforço, isto é, certos estímulos podem se tomar mais ou menos reforçadores para um indivíduo ao longo do tempo? Essa é uma per­ gunta importante no tratamento de pessoas com abuso de substândas, porque o sucesso terapêutico requer que um reforçador (a substância) perca seu valor de reforço. Para os fumantes, por exemplo, a nicotina, gradualmente, se toma um reforçador negativo, conforme estados leves de tensão são removidos pelos efeitos dessa substânda.

Certas evidências mostraram que estimulantes psico- motores (como cocaína ou d-anfetamina) aumentam os níveis de tabagismo naqueles que fumam. Existem duas explicações possíveis para o efeito: primeiro, talvez o esti­ mulante aumente, de forma específica, o efeito de reforço da nicotina; segundo, talvez os estimulantes psicomotores apenas aumentem os níveis de atividade em geral, e fumar é uma delas. Para testar essas duas explicações, Jennifer Ti- dey, Suzane O'Neill e Stephen Higgins (2000) conduziram um estudo com 13 fumantes e os submeteram a um ela­ borado procedimento de teste (12 sessões separadas de 5 horas), em que eles recebiam um placebo ou d-anfetamina. Depois de 90 minutos, os fumantes tinham que escolher entre dois reforços diferentes: dinheiro ($ 0,25) ou fumar (duas tragadas). Se escolhessem o dinheiro, a contagem total da quantia acumulada era mostrada na tela de um computador, e os participantes recebiam aquela quantia no final da sessão de teste. Se optassem pelo cigarro, po­ diam dar duas tragadas imediatamente após expressarem o comportamento desejado. Se o estimulante simplesmente aumentar os níveis de atividade geral, não deve haver pre­ferência sistemática por um reforçador em relação ao ou­ tro (em comparação com as preferências da linha de base). Além disso, depois que a sessão experimental terminou, foi permitido aos participantes um período em que poderiam fumar o quanto desejassem, muito ou pouco (sessão com fumo liberado).

No entanto, os resultados mostraram que os níveis de tabagismo em ambas as sessões experimentais, de escolha (comparado com o dinheiro) e fumo livre, aumentaram em proporção à d-anfetamina. Quanto mais alta a dose de d-anfetamina, mais os participantes fumavam. E ainda mais importante, o fumo era preferido ao dinheiro na sessão de escolha em proporção direta com a quantidade de d-anfetamina administrada. Portanto, o estimulante deve aumentar o valor de reforço da nicotina especificamente, e não o outro reforçador (dinheiro). Em resumo, a resposta à pergunta sobre se os reforçadores podem alterar seu valor ao longo do tempo e em combinação com outros estímulos é “sim”, e, nesse caso, a nicotina pode se tomar ainda mais reforçadora na presença de estimulantes psicomotores.

Como a personalidade afeta o condicionamento

Se o condicionamento pode afetar a personalidade, o in­verso também é verdadeiro? Ou seja, a personalidade pode afetar o condicionamento? Milhares de estudos com ani­mais e humanos demonstraram a força que o condiciona­mento tem de alterar o comportamento/a personalidade. Com os humanos em particular, no entanto, está claro que diferentes pessoas respondem de modos distintos aos mesmos reforçadores, e a personalidade pode fornecer um indício importante sobre por que isso ocorre.
Voltando à pesquisa sobre d-anfetamina e tabagismo, por exemplo, parece haver diferenças individuais sistemá­ ticas no efeito; ou seja, funciona para algumas pessoas, mas não para outras. Assim como no estudo anterior, Sta­cey Sigmon e colaboradores (2003) estudaram os efeitos que a d-anfetamina tem sobre o tabagismo usando dois reforçadores diferentes: cigarros e dinheiro. Além de ten­ tar replicar o achado de que os estimulantes psicomotores aumentam especificamente o valor de reforço da nicotina comparada com o dinheiro, eles queriam examinar a exis­ tência de diferenças individuais no feito. Se houvesse, então quais seriam as explicações possíveis?

Os participantes eram fumantes adultos (em média, 20 cigarros por dia) entre 18 e 45 anos de idade, com uma idade média de 21 anos; 78% eram euro-americanos e 61% eram do sexo feminino. Para serem incluídos no estudo, os participantes tinham que apresentar teste negativo para outras substâncias além da nicotina e não relatar proble­ mas psiquiátricos, e as mulheres tinham que praticar uma forma aceitável para a saúde de controle de natalidade e apresentar teste negativo para gravidez. Os participantes foram informados de que poderiam receber vários medica­ mentos, incluindo placebos, estimulantes e sedativos, e que o propósito do estudo era investigar os efeitos de tais substâncias no humor, no comportamento e na fisiologia. Os participantes recebiam $ 435 se concluíssem as nove sessões. [322]

O procedimento geral incluía nove sessões, a primei­ ra das quais era uma sessão de 3,5 horas para familiarizar os participantes com os procedimentos e o equipamento; não foram administradas substâncias na primeira sessão. As sessões 2 até 9 duraram 5 horas cada e incluíram testes respiratórios para assegurar que eles não haviam fumado anteriormente. As medidas da linha de base envolviam questionários e medidas fisiológicas pré-sessão, tais como frequência cardíaca, temperatura corporal e pressão arte­rial. Além disso, cada participante acendia um cigarro e dava pelo menos uma tragada para assegurar um tempo igual para todos desde a última exposição à nicotina. O me­dicamento experimental (ou placebo) era, então, adminis­ trado, seguido por perguntas referentes ao humor e uma refeição leve para evitar náusea. As perguntas relativas ao humor incluíam: “Você sente algum efeito bom?", “Você se sente 'alto'?”, "Você se sente nervoso?”, e assim por dian­ te. Usando um procedimento duplo-cego, os participantes receberam placebo ou d-anfetamina. O participante, en­ tão, completava um teste de múltipla escolha que opunha dinheiro a fumar para avaliar os níveis básicos do valor monetário de fumar. Por exemplo, o participante recebia uma série de 45 escolhas hipotéticas entre fumar e uma quantidade progressiva de dinheiro. O ponto em que o par­ ticipante parava de escolher fumar e selecionava o dinheiro erareferidocomo“pontodeintersecção”,eeraconsiderado um índice de eficácia do reforço da substância.

A seguir, começava uma sessão de reforço positivo (RP) de 3 horas. O RP envolve o aumento do número de respostas que são necessárias antes do reforço. Nesse caso, os parti­ cipantes tinham que executar uma tarefa motora repetitiva por um número n de vezes (começando com 160 e indo até 8.400 vezes) para ganhar duas tragadas de um cigarro ou $ 1. Qual reforçador escolhiam dependia deles. A ideia por trás da natureza progressiva do procedimento de reforço era ver quanto tempo levava para que uma pessoa parasse de res­ ponder (desistir de tentar obter um cigarro ou dinheiro). Esse ponto de parada é considerado a força do reforçador. Se o ponto de parada dos participantes aumentasse mais na condição com a substância do que na linha de base, eles eram considerados respondentes (à substância); senão, eram considerados não respondentes. Como no estudo de Tidey e colaboradores, a última sessão permitia que os participantes fumassem livremente o quanto quisessem, pouco ou muito.

O resultado geral foi que houve um pequeno efeito da d-anfetamina no aumento do tabagismo. Entretanto, hou­ve diferenças individuais significativas e, quando se exami­navam os efeitos para os respondentes comparados com os não respondentes, o efeito era claro. Os pontos de para­ da do fumo para os 10 respondentes foram cada vez mais altos com dosagens aumentadas de d-anfetamina, e os pontos de parada do dinheiro foram cada vez mais baixos. Em outras palavras, os respondentes estavam dispostos a trabalhar mais para obter cigarros com quantidades cres­centes de d-anfetamina. Mas esse padrão de resultados não se manteve para os oito não respondentes; a d-anfetamina não tinha efeito real sobre seu comportamento de fumar cigarros. As possíveis razões para tal efeito foram vistas nas classificações subjetivas dos efeitos da substância: os respondentes referiram que se sentiram “altos” e sono­lentos e que a substância tinha bons efeitos. Nas medidas objetivas (efeitos fisiológicos), no entanto, não houve dife­rença entre os dois grupos.

Ainda que esse estudo não tenha apresentado evidên­cias diretas, outras pesquisas fornecem uma explicação plausível para as diferenças individuais constatadas na d-an- fetamina: ela resulta em diferenças individuais em sensibili­ dade ao neurotransmissor dopamina, o qual está associado a maior bem-estar e humor positivo. Em outras palavras, os respondentes têm maior probabilidade de serem afetados pelo estimulante, porque sua sensibilidade à dopamina é maior. Uma vez que a personalidade tem uma base biológica, ela pode afetar a sensibilidade ao condi­ cionamento. Na verdade, muitos pesquisadores consideram a dopamina como um sistema de “reforço positivo”.

Mais evidências de que os estados do temperamento e biológicos afetam a sensibilidade da resposta ao condi­cionamento provêm de Jeffrey Gray e Alan Pickering e sua teoria da sensibilidade ao reforço (RST, reinforcement sensitivity theory, Pickering&tGray,1999).Essesdoispesquisa­ dores conduziram dezenas de estudos testando sua teoria, e, embora os resultados sejam em geral complexos, tendem aapoiaraRST.

Contudo, a associação entre sensibilidades ao reforço e outras dimensões da personalidade e sua interação apenas recentemente começou a ser explorada. Philip Corr (2002), por exemplo, conduziu um dos primeiros estudos a exami­nar as diferenças na ansiedade e na impulsividade e sua as­ sociação com as sensibilidades à resposta. A sensibilidade ao reforço prediz que os indivíduos introvertidos, assim como os altamente ansiosos, devem ser mais sensíveis à punição, devido à forte necessidade de evitar estados aversivos. As­sim como os extrovertidos, os indivíduos altamente impul­sivos devem ser mais sensíveis à recompensa, devido à forte necessidade de experimentar estados positivos. Além disso, na formulação original da teoria, as dimensões da persona­ lidade devem operar completamente de modo independen­te, enquanto, na reformulação de Corr, elas podem operar de forma conjunta e interdependente. Para testar a hipó­tese reformulada da influência conjunta, Corr previu que a impulsividade deveria interagir com a ansiedade, de modo que pessoas ansiosas, mas impulsivas, deveriam responder menos a um estímulo assustador quando vissem imagens negativas ( slidesde corpos mutilados) do que os indivíduos ansiosos, mas não impulsivos. Por contraste, a formulação da RST anteciparia apenas que as pessoas ansiosas seriam mais responsivas ao sobressalto durante um estado de hu­ mor negativo e que a impulsividade não teria efeito algum. [323]

Os resultados corroboraram a hipótese do subsistema conjunto e refutaram a hipótese do subsistema separado. Ou seja, os participantes que eram altamente ansiosos, mas tam­bém impulsivos, demonstraram uma resposta de sobressalto mais baixa, sobretudo quando viam imagens negativas, com­parados aos participantes que eram altamente ansiosos, mas não impulsivos. Em outras palavras, para os participantes muito ansiosos, a impulsividade atua como um amortecedor para a responsividade a imagens negativas. A questão global, no entanto, ainda permanece: as pessoas não respondem aos reforçadores da mesma maneira, e a personalidade é um dos mecanismos-chave que modera seu efeito.

Corr e colaboradores ampliaram essa pesquisa em um esforço para compreender o lado mais sombrio da persona­lidade, aplicando a RST revisada à emergência da psicopatia (Hughes, Moore, Morris, & Corr, 2012). Os indivíduos psicopatas são caracterizados por extremo egocentrismo, au­ sência de remorso, impulsividade e, relacionado a um capí­tulo sobre Skinner, uma capacidade prejudicada de aprender com as conseqüências negativas. A maioria dos estudos de psicopatia examina as populações clínicas ou aprisionadas, mas esse pesquisou 192 universitários no Reino Unido para fornecer informações importantes sobre como a personali­ dade não perturbada pode evoluir para patologia.

Corr e colaboradores avaliaram estudantes com as escalas Sistema de Inibição Comportamental/Escala de Ativação Comportamental (BIS/BAS, Behavioral Inhibition System/BehavioralActivation System Scales; Carver&White, 1994), bem como a Escala de Autorrelato de Psicopatia de Levenson (LSRP, Levenson Self-Report Psychopathy Scale; Levenson, Kiehl, & Fitzpatrick, 1995), que mede as atitudes e as crenças disposicionais que presumidamente subjazem à psicopatia, como a ausência de remorso ou uma tendência a mentir. Os resultados foram coerentes com o modelo neuropsicológico de Corr (2010), o qual propõe um sistema de inibição comportamental (BIS) hipoativo nas pessoas psicopáticas, que, em geral, não antecipa ou responde a eventos potencialmente punitivos. Isto é, aqueles que tiveram esco­re mais elevado na LSRP também tendiam a exibir escores baixos no BIS. A ideia, aqui, é que os psicopatas apresentam déficits em sua capacidade de detectar conflito de objetivos e, assim, aprender com experiências aversivas.

Mais pesquisas são necessárias para refinar nossa compreensão da relação entre personalidade e condiciona­ mento, mas todo esse trabalho proporciona uma visão fas­cinante de como a personalidade sadia e a psicopatológica são moldadas pela ansiedade disposicional, pela impulsivi­dade e pela capacidade de resolver conflitos de objetivos e de aprender com as experiências aversivas.

O reforço e o cérebro

Recentemente, pesquisadores deram um passo adiante na pesquisa da sensibilidade à reação analisando diferenças
individuais na ativação cerebral em conseqüência da expo­sição a estímulos de recompensa como comida (Beaver et al., 2006). A ativação cerebral pode ser estudada de diferen­tes maneiras, mas os pesquisadores nesse estudo usaram a tecnologia de imagem de ressonância magnética funcional (IRMf), a qual está baseada na mesma tecnologia que o mé­dico usa quando solicita uma imagem de ressonância mag­nética (1RM) do seu corpo para diagnosticar um problema de saúde. Em essência, a tecnologia da IRM (tanto IRMf quanto IRM convencional) detecta o fluxo de oxigênio no interior do cérebro. O oxigênio, transportado pelo sangue, é necessário para todas as atividades cerebrais, e quanto mais oxigênio houver em uma área particular, mais ativi­dade existe lá. John Beaver e colaboradores (2006) usaram a IRMf para examinar quais partes do cérebro eram ativa­ das quando os participantes olhavam para vários estímu­los relacionados a comida e se havia diferenças individuais na personalidade que prediziam essa ativação cerebral. Os estímulos com comida eram ideais para esse experimento, porque algumas comidas são muito gratificantes (como sorvete e bolo), enquanto outras não são tão gratificantes (como arroz e batatas),

Para conduzir seu experimento, John Beaver e cola­boradores (2006) primeiramente fizeram os participantes completarem a Escala de Ativação Comportamental (BAS), a qual é uma medida de autorrelato que capta a tendência geral de perseguir recompensas de modo ativo. Para se ter uma ideia do que a BAS mede, pense em como você respon­deria ao seguinte item: “Saio de meu caminho para obter as coisas que desejo?" (Carver & White, 1994). Alguém que tenha uma alta tendência a perseguir ativamente as recom­pensas responderia de forma muito positiva a esse item. Após completar a BAS, os participantes eram colocados em um scanner de IRM que foi especialmente equipado para tal experimento. De forma mais específica, o scanner foi adap­tado com um monitor que permitia aos pesquisadores apre­sentar imagens a cada participante enquanto um técnico, de modo simultâneo, verificava as zonas ativadas do cérebro do participante. Várias imagens eram apresentadas aos par­ticipantes enquanto estavam no scanner, porém, para fins desta discussão, você pode pensar nelas como situadas em duas categorias: (1) prazerosas (bolo de chocolate e sundaes) e (2) sem interesse (arroz e batatas cruas). Os pesquisadores conseguiram determinar qual área do cérebro era ativada durante a apresentação das figuras prazerosas versus sem interesse e, o que é mais importante, se as diferenças indivi­duais quanto à ativação de comportamentos informada na escala de autorrelato estavam relacionadas a essa ativação.

Os pesquisadores constataram que as pessoas com es­cores mais altos na variável de personalidade da ativação do comportamento experimentavam maior ativação diante das imagens de bolo e sorvete em cinco áreas específicas do cérebro (corpo estriado ventral direito e esquerdo, amígdala esquerda, substância negra e córtexorbitofrontal esquerdo) [324] do que suas contrapartes com baixa ativação do compor­tamento. Em outras palavras, os resultados corroboraram a conclusão mais geral de que a personalidade está relacio­nada a diferenças nos processos biológicos de como res­pondemos à recompensa. Nesse estágio inicial da pesquisa da ativação cerebral, é difícil saber o que significa ativação aumentada, porém uma hipótese é que a ativação aumenta­da experimentada por alguns indivíduos torna mais difícil para eles dizerem não a estímulos atraentes. Se essa hipó­tese se revelar correta em pesquisas futuras, isso significa que as variáveis de personalidade e as diferenças individuais na ativação cerebral desempenham um papel importante em questões de saúde como a obesidade e sugerem formas como os terapeutas podem usar as recompensas para tratá-las. De modo mais geral, isso também significa que estaremos mais próximos de compreender por que e o que as pessoas consideram gratificante e reforçador. [325]

Psicologia - Análise do comportamento
Intervenção - Psicoterapia, Processo terapêutico
12/20/2020 12:03:30 PM | Por Gregory J. Feist, Jess Feist, Tomi-Ann Roberts
A psicoterapia na Análise do comportamento

Skinner (1978b) acreditava que a psicoterapia é um dos principais obstáculos que bloqueiam a tentativa da psico­logia de se tornar científica. No entanto, suas idéias sobre a modelagem do comportamento não só tiveram um impac­to significativo na terapia comportamental como também se estenderam para uma descrição de como toda terapia funciona.

Independentemente da orientação teórica, um tera­peuta é um agente controlador. Nem todos os agentes con­troladores, no entanto, são nocivos, e um paciente precisa aprender a discriminar entre figuras de autoridade puni­tivas (passadas e presentes) e um terapeuta permissivo. Enquanto os pais de um paciente são frios e rejeitadores, o terapeuta é caloroso e receptivo; enquanto os pais do paciente são críticos e julgadores, o terapeuta é apoiador e empático.

A modelagem de qualquer comportamento leva tem­po, e o comportamento terapêutico não é exceção. Um te­rapeuta molda o comportamento desejável reforçando mu­danças no comportamento que vão melhorando de forma sutil. O terapeuta não comportamental pode afetar o comportamento de modo acidental ou inadvertido, enquanto o terapeuta comportamental atenta de modo específico para essa técnica (Skinner, 1953).
Os terapeutas tradicionais em geral explicam os com­portamentos recorrendo a uma variedade de construtos fictícios, como os mecanismos de defesa, a luta pela su­perioridade, o inconsciente coletivo e as necessidades de autoatualização. Skinner, no entanto, acreditava que es­ses e outros construtos fictícios são comportamentos que podem ser explicados pelos princípios da aprendizagem. Nenhum propósito terapêutico é servido pela postulação de ficções explanatórias e causas internas. Segundo os fundamentos de Skinner, se o comportamento for mol­dado por causas internas, então alguma força deve ser responsável pela causa interna. As teorias tradicionais precisam, em última análise, explicar essa causa, mas a te­rapia comportamental meramente salta sobre ela e lida de modo direto com a história do organismo; e é essa histó­ria que, afinal de contas, é responsável por alguma causa interna hipotética.

Os terapeutas comportamentais desenvolveram uma variedade de técnicas ao longo dos anos, a maioria baseada no condicionamento operante (Skinner, 1988), embora algumas sejam construídas em torno dos princípios do condicionamento clássico (respondente). Em geral, esses terapeutas desempenham um papel ativo no processo de tratamento, apontando as conseqüências positivas de certos comportamentos e os efeitos aversivos de outros e também sugerindo comportamentos que, a longo prazo, resultarão em reforço positivo. [321]

Psicologia - Análise do comportamento
Comportamento - Desequilíbrio psicológico, 
12/20/2020 11:54:49 AM | Por Gregory J. Feist, Jess Feist, Tomi-Ann Roberts
A personalidade desadaptada

Infelizmente, as técnicas de controle sodal e autocontrole por vezes produzem efeitos nocivos, o que resulta em com­portamento inapropriado e no desenvolvimento de uma personalidade desadaptada. Quando o controle social é excessivo, as pessoas podem usar estratégias básicas para combatê-lo - elas podem fugir, revoltar-se ou usar a resistência passiva (Skinner, 1953). Com a estratégia defensiva de fuga, as pessoas se afastam do agente controlador física ou psicologicamente. Nesse caso, encontram dificuldade em se envolverem em relações pessoais íntimas, tendem a ser desconfiadas e pre­ferem ter vidas solitárias, sem envolvimento.

As pessoas que se revoltam contra os controles da sociedade se comportam de modo mais ativo, combatendo o agente controlador. Elas podem se rebelar vandalizando a propriedade pública, atormentando professores, agredindo verbalmente outros indivíduos, furtando equipamento dos patrões, provocando a polícia ou derrubando organizações estabelecidas, como religiões ou governos.

As pessoas que combatem o controle por meio da re­sistência passiva são mais sutis do que as que se rebelam e mais irritantes para os controladores do que aquelas que [320]  se baseiam na fuga. Skinner (1953) acreditava que a resis­tência passiva tem maior probabilidade de ser empregada quando a fuga e a revolta fracassaram. A característica evi­dente da resistência passiva é a obstinação. Uma criança com a tarefa escolar para fazer encontra uma dúzia de des­culpas por que a tarefa não pode ser terminada; um empre­gado retarda o progresso minando o trabalho dos outros.

Comportamentos inapropriados

Os comportamentos inapropriados se seguem a técnicas autodestrutivas de combate ao controle social ou a tenta­tivas malsucedidas de autocontrole, especialmente quando esses fracassos são acompanhados de forte emoção. Como a maioria dos comportamentos, as respostas inapropriadas ou inadequadas são aprendidas. Elas são moldadas por re­forço positivo e negativo e, príncipalmente, pelos efeitos da punição.
Os comportamentos inapropriados incluem compor­tamento excessivamente enérgico, que não faz sentido em termos da situação contemporânea, mas pode ser razoável em termos da história passada; e comportamento contido em demasia, que as pessoas usam como um meio de evitar os estímulos adversos associados à punição. Outro tipo de comportamento inapropriado é bloquear a realidade sim­plesmente não prestando atenção aos estímulos aversivos.

Uma quarta forma de comportamento indesejável re­sulta do autoconhecimento distorcido, a qual se manifesta por meio de respostas autoenganadoras, como contar van­tagem, racionalizar ou alegar ser o Messias. Esse padrão de comportamento é reforçado negativamente, porque a pes­soa evita a estimulação aversiva associada a pensamentos de inadequação.

Outro padrão de comportamento inapropriado é a autopunição, exemplificada por pessoas que se castigam diretamente ou que organizam as variáveis ambientais de modo que possam ser punidas pelos outros. [321]

Psicologia - Análise do comportamento
Temas gerais - Temas gerais, 
12/17/2020 11:15:50 AM | Por Gregory J. Feist, Jess Feist, Tomi-Ann Roberts
O organismo humano e o behaviorismo radical

Os princípios do comportamento coleta­dos de ratos e pombos se aplicam ao organismo humano? A visão de Skinner (1974,1987a) era que o conhecimento do comportamento de animais de laboratório pode se ge­neralizar para o comportamento humano, assim como a física pode ser usada para interpretar o que é observado no espaço exterior e um conhecimento de genética bási­ca pode ajudar na interpretação de conceitos evolutivos complexos.

Skinner (1953,1990a) concordava com John Watson (1913) em relação ao fato de que a psicologia deve ser limi­tada a um estudo científico dos fenômenos observáveis, ou seja, o comportamento. A ciência deve começar pelo sim­ples e avançar para o mais complexo. Essa seqüência pode avançar do comportamento dos animais para o dos psicóti­cos, para o das crianças com limitações cognitivas, daí para o de outras crianças e, por fim, para o comportamento complexo dos adultos. Skinner (1974, 1987a), portanto, não fez apologia para começar com o estudo de animais.

De acordo com Skinner (1987a), o comportamento humano (e a personalidade humana) é modelado por três forças: (1) a seleção natural, (2) as práticas culturais e (3) o histórico de reforço do indivíduo. No entanto, “tudo é uma questão de seleção natural, uma vez que o condicionamento operante é um processo evoluído, do qual as práticas culturais são aplicações espe­ciais" (p. 55).

Seleção natural

A personalidade humana é produto de uma longa histó­ria evolutiva. Como indivíduos, nosso comportamento é determinado pela composição genética e especialmente por nossos históricos de reforçamento pessoais. Como es­pécie, no entanto, somos modelados pelas contingências da sobrevivência. A seleção natural desempenha um [316] papel importante na personalidade humana (Skinner, 1974, 1987a, 1990a).

O comportamento individual que é reforçado tende a ser repetido; do contrário, tende a se extinguir. Do mesmo modo, os comportamentos que, durante a história, foram benéficos para a espécie tenderam a sobreviver, enquanto os reforçados apenas de modo idiossincrático tendiam a se extinguir. Por exemplo, a seleção natural favoreceu aque­les indivíduos cujas pupilas dilatavam e contraíam com as alterações na iluminação. Sua habilidade superior de en­xergar durante a luz do dia e à noite os capacitou a evitar perigos ameaçadores à vida e a sobreviverem até a idade reprodutiva. De forma semelhante, os bebês cujas cabe­ças se voltavam na direção de um leve toque na bochecha eram capazes de sugar, aumentando, assim, suas chances de sobrevivência e a probabilidade de essa característica de procura ser transmitida para sua prole. Esses são apenas dois exemplos de vários reflexos que caracterizam o bebê humano hoje. Alguns, como o reflexo pupilar, continuam a ter valor para a sobrevivência, enquanto outros, como o reflexo perioral, são de benefício menor.

As contingências de reforço e as de sobrevivência in­teragem, e alguns comportamentos individualmente reforçadores também contribuem para a sobrevivência da es­pécie. Por exemplo, o comportamento sexual costuma ser reforçador para um indivíduo, mas ele também tem valor para a seleção natural, porque os indivíduos que eram mais excitados pela estimulação sexual também eram os que ti­nham maior probabilidade de produzir uma prole capaz de padrões de comportamento similares.
Nem todo remanescente da seleção natural continua a ter valor de sobrevivência. Na história humana inicial, comer em excesso era adaptativo, porque permitia às pes­soas sobreviver durante os períodos em que o alimento era menos abundante. Agora, nas sociedades em que o alimen­to está sempre disponível, a obesidade se tornou um pro­blema de saúde, e comer em excesso perdeu seu valor de sobrevivência.

Ainda que a seleção natural tenha ajudado a moldar parte do comportamento humano, é provável que seja responsável por apenas um pequeno número de ações das pessoas. Skinner (1989a) argumentou que as contingên­cias de reforço, em especial aquelas que moldaram a cul­tura humana, explicam a maior parte do comportamento humano.

Podemos rastrear uma pequena parte do comporta­mento humano... até a seleção natural e a evolução da espécie, mas a maior parte do comportamento humano deve ser rastreada até as contingências de reforço, em especial as contingências sociais muito complexas que chamamos de culturas. Somente quando levamos essas histórias em consideração, é que podemos explicar por que as pessoas se comportam da forma como se com­portam. (p. 18)

Evolução cultural

Em seus últimos anos, Skinner (1987a, 1989a) elaborou de modo mais integral a importância da cultura na mode­lagem da personalidade humana. A seleção é responsável pelas práticas culturais que sobreviveram, da mesma forma que desempenha um papel crucial na história evolutiva dos humanos e também nas contingências de reforço. "As pes­soas não observam práticas particulares para que o grupo tenha maior probabilidade de sobreviver; elas as observam porque os grupos que induziram seus membros a fazer isso sobreviveram e as transmitiram" (Skinner, 1987a, p. 57). Em outras palavras, os humanos não tomam uma decisão cooperativa para fazer o que é melhor para a sociedade, mas as sociedades cujos membros comportaram-se de modo cooperativo tenderam a sobreviver.

Práticas culturais como a fabricação de ferramentas e o comportamento verbal começaram quando um indivíduo foi reforçado por usar uma ferramenta ou por pronunciar um som distintivo. Com o tempo, desenvolveu-se uma prática cultural que era reforçadora para o grupo, embora não necessariamente para o indivíduo. Tanto a fabricação de ferramentas quando o comportamento verbal possuem valor de sobrevivência para um grupo, mas poucas pessoas agora fabricam ferramentas e ainda menos inventam no­vas linguagens.

Os remanescentes da cultura, como aqueles da seleção natural, não são todos adaptativos. Por exemplo, a divisão de trabalho que evoluiu da Revolução Industrial ajudou a sociedade a produzir mais bens, porém conduziu a um trabalho que já não é mais diretamente reforçador. Outro exemplo é a guerra, que, no mundo pré-industrializado, be­neficiou certas sociedades, mas, agora, evoluiu como uma ameaça para a existência humana.

Estados internos

Ainda que rejeitasse explicações do comportamento fun­damentadas em construtos hipotéticos não observáveis, Skinner (1989b) não negava a existência de estados in­ternos, como sentimentos de amor, ansiedade ou medo. Os estados internos podem ser estudados como qualquer outro comportamento, porém sua observação é, obvia­mente, limitada. Em uma comunicação pessoal de 13 de junho de 1983, Skinner referiu: "Acredito que seja possí­vel falar sobre eventos privados e, em particular, estabe­lecer os limites com os quais fazemos isso com tanta exa­tidão. Acredito que isso coloca dentro do alcance os assim chamados de 'não observáveis"’. Qual é, então, o papel de estados internos como autoconsciência, impulsos, emo­ções e propósito?

Autoconsciência

Skinner (1974) acreditava que os humanos não só têm consciência como também estão cientes da própria [316] consciência; eles nâo estão apenas conscientes de seu ambiente, mas também têm consciência de si mesmos como parte do ambiente; além de observarem os estímulos externos, também estão conscientes de si mesmos percebendo tais estímulos.

O comportamento é função do ambiente, e parte des­se ambiente está sob a própria pele. Tal porção do universo é peculiarmente nossa e, portanto, é privada. Cada pessoa está subjetivamente consciente dos próprios pensamen­tos, sentimentos, recordações e intenções. A autoconsdência e os eventos privados podem ser ilustrados pelo exem­plo seguinte. Uma trabalhadora relata para uma amiga: “Eu estava tão frustrada hoje que quase abandonei meu em­prego". O que pode ser feito com tal declaração? Primeiro, o relato, em si, é um comportamento verbal e, como tal, pode ser estudado da mesma maneira que outros compor­tamentos. Segundo, a declaração de que ela estava a ponto de abandonar seu emprego se refere a um não comporta­mento. Respostas nunca emitidas não são respostas e, é claro, não possuem significado para a análise científica do comportamento. Terceiro, um evento privado transpira­va "dentro da pele” da trabalhadora. Esse evento privado, como seu relato verbal para a amiga, pode ser analisado cientificamente. No momento em que a trabalhadora teve vontade de desistir, ela poderia ter constatado o seguinte comportamento oculto: “Estou observando dentro de mim graus crescentes de frustração que estão aumentando a probabilidade de que eu informe meu chefe de que estou indo embora". Essa declaração é mais precisa do que dizer “Quase abandonei meu emprego" e se refere ao comporta­mento que, embora privado, está dentro das fronteiras da análise científica.

Impulsos

Do ponto de vista do behaviorismo radical, os impulsos não são a causa do comportamento, apenas ficções explanatórias. Para Skinner (1953), os impulsos referem-se sim­plesmente aos efeitos de privação e saciedade e à probabili­dade correspondente de que o organismo responda. Privar uma pessoa de comida aumenta a probabilidade de comer; saciar uma pessoa reduz essa probabilidade. Entretanto, privação e saciedade não são os únicos correlatos de comer. Outros fatores que aumentam ou diminuem a probabili­dade de comer são a sensação de fome, a disponibilidade de comida e as experiências prévias com reforçadores de comida.

Se os psicólogos conhecessem o suficiente acerca dos três aspectos essenciais do comportamento (antecedente, comportamento e conseqüências), saberiam por que uma pessoa se comporta de determinada forma, ou seja, que impulsos estão relacionados a comportamentos específi­cos. Somente então os impulsos teriam um papel legítimo no estudo científico do comportamento humano. Atual­mente, no entanto, as explicações baseadas em construtos fictícios, como os impulsos ou as necessidades, são apenas hipóteses não verificáveis.

Emoções

Skinner (1974) reconheceu a existência subjetiva das emoções, é claro, mas ele insistia em que o comportamen­to não deve ser atribuído a elas. Ele explicava as emoções pelas contingências de sobrevivência e de reforço. Por milênios, os indivíduos que estavam mais fortemente dispostos para o medo ou para a raiva eram aqueles que escapavam ou triunfavam sobre o perigo e, assim, eram capazes de transmitir essas características para a prole. Em um nível individual, os comportamentos seguidos por deleite, alegria, prazer e outras emoções agradáveis tendem a ser reforçados, aumentando, assim, a probabilidade de que tais comportamentos se repitam na vida do indivíduo.

Propósito e intenção

Skinner (1974) também reconheceu os conceitos de pro­pósito e intenção, porém, mais uma vez, alertou contra a atribuição de comportamento a eles. Propósito e intenção existem dentro do indivíduo, mas não estão sujeitos ao escrutínio externo direto. Um propósito constantemen­te sentido pode ser, por si só, reforçador. Por exemplo, se você acredita que seu propósito em correr é se sentir melhor e viver mais, então tal pensamento age como um estímulo reforçador, em especial durante o trabalho árduo da corrida ou quando tenta explicar sua motivação para alguém que não é corredor.

Uma pessoa pode “pretender" assistir a um filme na noite de sexta-feira, porque assistir a filmes similares foi reforçador. No momento em que a pessoa pretende ir ao cinema, ela sente uma condição física e a rotula como uma “intenção”. O que é chamado de intenções ou propósitos, portanto, são estímulos sentidos fisicamente dentro do organismo, e não eventos mentais responsáveis pelo com­portamento. “As conseqüências do comportamento operante não são o que o comportamento é no momento; elas são apenas similares às conseqüências que o moldaram e o mantiveram" (Skinner, 1987a, p. 57).

Comportamento complexo

O comportamento humano pode ser bastante complexo, embora Skinner acreditasse que mesmo o comportamento mais abstrato e complexo seja moldado pela seleção natu­ral, pela evolução cultural ou pela história e pelo reforço do indivíduo. Mais uma vez, Skinner não negou a existência de processos mentais superiores, como cognição, raciocí­nio e evocação, nem ignorou esforços humanos complexos, como criatividade, comportamento inconsciente, sonhos e comportamento social. [317]

Processos mentais superiores

Skinner (1974) admitia que o pensamento humano é, en­tre todos os comportamentos, o mais difícil de analisar; todavia, é possível entendê-lo, desde que não se recorra a uma ficção hipotética como a “mente". Pensar, resolver problemas e recordar são comportamentos encobertos que ocorrem dentro do indivíduo, mas não dentro da mente. Como comportamentos, eles são receptivos às mesmas contingências de reforço dos comportamentos explícitos. Por exemplo, quando uma mulher perde as chaves do carro, ela procura por elas, porque um comportamento de busca similar já foi reforçado previamente. Da mesma maneira, quando ela não consegue lembrar o nome de um conheci­do, ela procura aquele nome de modo encoberto, porque esse tipo de comportamento já foi reforçado em outra si­tuação. Entretanto, o nome do conhecido não existia em sua mente mais do que as chaves do carro. Skinner (1974) resumiu tal procedimento dizendo que “as técnicas de evo­cação não têm a ver com uma busca em um depósito da memória, mas com o aumento da probabilidade das res­postas" (p. 109-110).

A resolução de problemas também envolve o compor­ tamento encoberto e, com frequência, requer que a pes­soa manipule de modo velado as variáveis relevantes até que seja encontrada a solução correta. Em última análise, essas variáveis são ambientais e não surgem como mági­co da mente da pessoa. Um jogador de xadrez que parece irremediavelmente acuado examina o tabuleiro e, de re­pente, faz um movimento que permite a sua peça escapar. O que provocou esse insight inesperado? Ele não resolveu o problema em sua mente. Ele manipulou as várias peças (não as tocando, mas de forma velada), rejeitou movimen­tos não acompanhados de reforço e, por fim, escolheu aquele que foi seguido por um reforçador interno. Ainda que a solução possa ter sido facilitada por suas experiên­cias prévias de ler um livro sobre xadrez, ouvir conselhos de um especialista ou praticar o jogo, ela foi iniciada por contingências ambientais, e não fabricada por maquina­ções mentais.

Criatividade

Como o behaviorista radical explica a criatividade? Logica­mente, se o comportamento não fosse nada além de uma resposta previsível a um estímulo, o comportamento cria­tivo não poderia existir, porque apenas o comportamento previamente reforçado seria emitido. Skinner respondeu a esse problema comparando comportamento criativo com seleção natural na teoria evolucionista. "Assim como os traços acidentais, que surgem de mutações, são seleciona­dos por sua contribuição para a sobrevivência, também as variações acidentais no comportamento são selecionadas por suas conseqüências reforçadoras" (p. 114). Do mesmo modo como a seleção natural explica a diferenciação entre as espécies sem recorrer a uma mente onipotente criativa, também o behaviorismo explica um comportamento novo sem recorrer a uma mente criativa pessoal.

O conceito de mutação é crucial tanto para a seleção natural quanto para o comportamento criativo. Em ambos os casos, são produzidas condições aleatórias ou acidentais que têm a mesma possibilidade de sobrevivência. Os escri­tores criativos alteram seu ambiente, produzindo, assim, respostas que têm alguma chance de serem reforçadas. Quando sua “criatividade seca", eles podem se mudar para um local diferente, viajar, ler, falar com outras pessoas, co­locar palavras no computador com pouca expectativa de que sejam o produto final ou podem experimentar várias palavras, sentenças e idéias de forma velada. Para Skinner, então, criatividade é simplesmente o resultado de compor­tamentos aleatórios ou acidentais (manifestos ou encobertos) que acabam sendo recompensados. O fato de algumas pessoas serem mais criativas do que outras se deve a diferenças na dotação genética e a experiências que moldaram seu comportamento criativo.

Comportamento inconsciente

Como behaviorista radical, Skinner não podia aceitar a no­ção de um depósito de idéias ou emoções inconscientes. No entanto, aceitava a ideia de comportamento inconscien­te. De fato, como as pessoas raramente observam a rela­ção entre as variáveis genéticas e ambientais e o próprio comportamento, quase todo o nosso comportamento é motivado de forma inconsciente (Skinner, 1987a). Em um sentido mais limitado, o comportamento é rotulado como inconsciente quando as pessoas não pensam mais nele, porque ele foi suprimido pela punição. O comportamento que tem conseqüências aversivas apresenta a tendência de ser ignorado ou não pensado. Uma criança que foi puni­da várias vezes com severidade por um jogo sexual pode suprimir o comportamento sexual e reprimir qualquer pen­samento ou lembrança de tal atividade. Por fim, a criança pode negar que a atividade sexual aconteça. Tal negação evita os aspectos aversivos associados a pensamentos de punição e, assim, é um reforçador negativo. Em outras pa­ lavras, a criança é recompensada por pensar acerca de certos comportamentos sexuais.

Um exemplo de não pensar acerca de estímulos aver­sivos é uma criança que se comporta de forma furiosa em relação à mãe. Ao fazer isso, ela também exibe alguns com­portamentos menos antagonistas. Se o comportamento indesejável for punido, ele será suprimido e substituído por comportamentos mais positivos. Por fim, a criança será re­compensada por gestos de amor, os quais, então, aumen­tarão em frequência. Depois de um tempo, seu comporta­mento se torna cada vez mais positivo e pode até mesmo parecer o que Freud (1926/1959a) denominou “amor rea­tivo". A criança já não tem mais pensamentos de ódio em [318]  relação à mãe e se comporta de forma excessivamente cari­nhosa e subserviente.

Sonhos

Skinner (1953) considerava os sonhos como formas vela­das e simbólicas de comportamento que estão sujeitas às mesmas contingências de reforço que os demais comporta­mentos. Ele concordava com Freud sobre os sonhos servi­rem ao propósito de satisfação do desejo. O comportamen­to do sonho é reforçador quando é permitida a expressão de estímulos sexuais ou agressivos reprimidos. Realizar as fantasias sexuais e, de foto, infligir dano a um inimigo são dois comportamentos com probabilidade de estar asso­ciados à punição. Até mesmo pensar veladamente nesses comportamentos pode ter efeitos punitivos, mas, nos so­ hos, esses comportamentos expressam-se de modo sim­bólico e sem que uma punição os acompanhe.

Comportamento social

Os grupos não agem; apenas os indivíduos. Os indivíduos estabelecem grupos porque foram recompensados por fa­zer isso. Por exemplo, os indivíduos formam clãs de modo que possam ser protegidos contra animais, desastres na­turais ou tribos inimigas. Também formam governos, fun­dam igrejas ou se tornam parte de uma multidão sem re­gras, porque eles são reforçados por esse comportamento.

A filiação a um grupo social nem sempre é reforçadora; no entanto, pelo menos por três razões, algumas pessoas continuam como membros de um grupo. Primeiro, podem permanecer em um grupo que abusa delas porque alguns membros do grupo as estão reforçando; segundo, algumas pessoas, especialmente as crianças, podem não possuir os meios para deixar o grupo; e terceiro, o reforço pode ocor­rer de forma intermitente, de modo que o abuso sofrido por um indivíduo é mesclado com recompensa ocasional. Se o reforço positivo for forte o suficiente, seus efeitos se­rão mais fortes do que os da punição.

Controle do comportamento humano

Por fim, o comportamento de um indivíduo é controlado por contingências ambientais. Essas contingências podem ser impostas pela sociedade, por outro indivíduo ou pelo próprio indivíduo, mas o ambiente, não o livre-arbítrio, é responsável pelo comportamento.

Controle social

Os indivíduos agem para formar grupos sociais, porque tal comportamento tende a ser reforçador. Os grupos, por sua vez, exercem controle sobre seus membros formulando leis, regras e costumes, escritos ou não escritos, que pos­suem existência física que vai além da vida dos indivíduos.

As leis de uma nação, as regras de uma organização e os costumes de uma cultura transcendem os meios de contracontrole de qualquer indivíduo e servem como variáveis potentes de controle na vida dos membros individuais.

Um exemplo um tanto cômico de comportamento inconsciente e controle social envolveu Skinner e Erich Fromm, um dos críticos mais severos de Skinner. Em um encontro profissional no qual os dois participaram, Fromm argumentou que as pessoas não são pombos e não podem ser controladas por meio de técnicas de condicionamento operante. Enquanto estava sentado em frente a Fromm, do outro lado da mesa, e ouvia tal tirada, Skinner decidiu reforçar o comportamento de Fromm ao acenar com o braço. Ele passou um bilhete para um de seus amigos que dizia: “Observe a mão esquerda de Fromm. Vou modelar um movimento de corte" (Skinner, 1983, p. 151). Sempre que Fromm erguia a mão esquerda, Skinner olhava direta­mente para ele. Se o braço esquerdo de Fromm abaixasse em um movimento de corte, Skinner sorria e balançava a cabeça com aprovação. Se Fromm mantinha o braço rela­tivamente imóvel, Skinner olhava para outro lado ou apa­rentava estar entediado com a fala de Fromm. Após 5 mi­nutos desse reforço seletivo, Fromm, inconscientemente, começou a bater com o braço de modo tão vigoroso que seu relógio de pulso deslizou sobre sua mão.

Assim como Erich Fromm, cada um de nós é contro­lado por uma variedade de forças e técnicas sociais, mas todas elas podem ser agrupadas sob os seguintes títulos: (1) condicionamento operante, (2) descrição de contingên­cias, (3) privação e saciedade e (4) restrição física (Skinner, 1953).

A sociedade exerce controle sobre seus membros por meio de quatro métodos principais de condicionamento operante: reforço positivo, reforço negativo e duas técnicas de punição (acrescentando um estímulo aversivo e remo­vendo um positivo).

Uma segunda técnica de controle social é descrever para uma pessoa as contingências de reforço. Isso envol­ve a linguagem, geralmente verbal, para informar as pes­soas das conseqüências de seu comportamento ainda não emitido. Muitos exemplos de descrição das contingências estão disponíveis, em especial ameaças e promessas. Um meio mais sutil de controle social é a propaganda, concebi­da para manipular as pessoas para comprarem certos pro­dutos. Em nenhum desses exemplos, a tentativa de con­trole será perfeitamente bem-sucedida, embora cada uma delas aumente a probabilidade de ser emitida a resposta desejada.

Terceiro, o comportamento pode ser controlado pri­vando as pessoas ou satisfazendo-as com reforçadores. Mais uma vez, mesmo que a privação e a saciedade sejam estados internos, o controle se origina com o ambiente. As pessoas privadas de comida têm maior probabilidade de comer, aquelas saciadas têm menor probabilidade de co­mer, mesmo quando uma refeição deliciosa está disponível. [319]

Por fim, as pessoas podem ser controladas por meio de restrições físicas, como segurar uma criança para que não caia de um barranco ou colocando na prisão pessoas que desrespeitam a lei. A restrição física atua para contrariar os efeitos do condicionamento e resulta em comportamento contrário àquele que teria sido emitido caso a pessoa não tivesse sido restringida.

Alguns poderiam argumentar que a restrição física é um meio de negar a liberdade. Contudo, Skinner (1971) sustentava que o comportamento não tem nada a ver com liberdade pessoal, mas é moldado pelas contingências de sobrevivência, os efeitos do reforço e as contingências do ambiente social. Portanto, o ato de restringir fisicamente uma pessoa não nega a liberdade mais do que qualquer ou­tra técnica de controle, incluindo o autocontrole.

Autocontrole

Se a liberdade pessoal é uma ficção, então como uma pes­soa pode exercer o autocontrole? Skinner diria que, da mesma forma como as pessoas podem alterar as variáveis no ambiente de outro indivíduo, elas também podem ma­nipular as variáveis dentro do próprio ambiente e, assim, exercer alguma medida de autocontrole. As contingências de autocontrole, no entanto, não residem dentro do indi­víduo e não podem ser livremente escolhidas. Quando as pessoas controlam o próprio comportamento, elas fazem isso manipulando algumas variáveis que usariam no con­trole do comportamento de outra pessoa, e, em última análise, essas variáveis se encontram fora delas.

Skinner e Margaret Vaughan (Skinner & Vaughan, 1983) discutiram várias técnicas que as pessoas podem usar para exercer autocontrole sem recorrer ao livre-arbítrio. Primeiro, elas podem usar ajuda física, como ferramentas, máquinas e recursos financeiros, para alterar seu ambiente. Por exemplo, uma pessoa pode levar um dinhei­ro extra quando vai às compras para se dar a opção de com­prar por impulso. Segundo, as pessoas podem alterar seu ambiente, aumentando, assim, a probabilidade do compor­tamento desejado. Por exemplo, um estudante que deseja se concentrar em seus estudos pode desligar uma TV que o está distraindo. Terceiro, as pessoas podem organizar o ambiente de forma que possam escapar de um estímu­lo aversivo apenas produzindo a resposta apropriada. Por exemplo, uma mulher pode ajustar o despertador de forma que o som aversivo só possa ser interrompido se ela sair da cama para desligar o alarme.

Quarto, as pessoas podem usar substâncias, especial­mente álcool, como um meio de autocontrole. Por exem­plo, um homem pode ingerir tranquilizantes para tornar seu comportamento mais calmo. Quinto, as pessoas po­dem simplesmente fazer outra coisa para evitar se com­portarem de uma forma indesejável. Por exemplo, uma mulher obsessiva pode contar os padrões repetitivos no papel de parede para evitar pensar em experiências prévias que gerariam culpa. Nesses exemplos, os comportamentos substitutos são reforçadores negativos, porque permitem que a pessoa evite comportamentos ou pensamentos de­sagradáveis. [320]

Psicologia - Análise do comportamento
Personalidade - Hábito, Modelagem
12/16/2020 1:06:22 PM | Por Gregory J. Feist, Jess Feist, Tomi-Ann Roberts
Condicionamento clássico e operante

Skinner (1953) reconheceu dois tipos de condicionamen­to, clássico e operante. Com o condicionamento clássico (o qual Skinner chamou de condicionamento respondente), obtém-se uma resposta do organismo por um estímulo específico identificável. Com o condicionamento operante (também chamado de condicionamento skinneriano), é mais provável que um comportamento se repita se for ime­diatamente reforçado.

Uma distinção entre o condicionamento clássico e o operante é que, no primeiro, o comportamento é eliciado no organismo, enquanto no segundo, o comportamento é emitido. Uma resposta eliciada é extraída do organismo, en­quanto uma resposta emitida é aquela que simplesmente aparece. Como não existem respostas dentro do organis­mo e, assim, não podem ser extraídas, Skinner preferiu o termo "emitida”. As respostas emitidas não existem previa­mente dentro do organismo; elas apenas aparecem devido à história individual de reforço do organismo ou à história evolutiva da espécie.

Condicionamento clássico

No condicionamento clássico, um estímulo neutro (condicionado) é pareado - isto é, precede de imediato - a um estímulo incondicionado inúmeras vezes, até que ele seja capaz de provocar uma resposta previamente incondicionada, agora denominada resposta condicionada. Os exemplos mais simples envolvem o comportamento reflexo. A luz que brilha no olho estimula a pupila a se contrair; o alimento colocado sobre a língua provoca salivação; e pimenta nas narinas resulta no reflexo do espir­ro. Com o comportamento reflexo, as respostas não são aprendidas, são involuntárias e comuns, não somente à espécie, mas também entre as espécies. O condiciona­mento clássico, no entanto, não está limitado a reflexos simples. Ele também pode ser responsável por aprendi­zagens humanas mais complexas, como fobias, medos e ansiedades.

Um primeiro exemplo de condicionamento clássico com humanos foi descrito por John Watson e Rosalie Rayner, em 1920, e envolvia um menino - Albert B., geralmen­te citado como o Pequeno Albert. Albert era uma criança normal e saudável que, aos 9 meses de idade, não demons­trava medo de coisas como um rato branco, um coelho, um cachorro, um macaco com máscaras, entre outras. Quando Albert tinha 11 meses, os pesquisadores lhe apresentaram um rato branco. Quando Albert estava começando a tocar o rato, um dos pesquisadores bateu com uma barra atrás da cabeça de Albert. O menino imediatamente mostrou si­nais de medo, embora não tenha chorado. Então, quando ele tocou o rato com a outra mão, um pesquisador bateu com a barra outra vez. De novo, Albert demonstrou medo e começou a choramingar. Uma semana depois, Watson e Rayner repetiram o procedimento várias vezes e, finalmente, apresentaram o rato branco sem o som alto e abrupto da batida da barra. Dessa vez, Albert tinha aprendido a ter medo do próprio rato e logo começou a engatinhar se afastando dele. Alguns dias depois, foram apresentados a Albert alguns blocos. Ele não demonstrou medo. A seguir, eles mostraram o rato sozinho. Albert demonstrou medo. Então, eles ofereceram os blocos novamente a Albert. Nenhum medo. Eles seguiram essa parte do experimento mostrando a Albert um coelho. Albert prontamente come­çou a chorar e engatinhou se afastando do coelho. Watson e Rayner, então, mostraram a Albert os blocos novamente, depois um cachorro, depois os blocos, depois um casaco de pele e, então, um pacote de lá. Para todos os objetos, ex­ceto os blocos, Albert demonstrou algum medo. Por fim, Watson trouxe a máscara do Papai Noel, para a qual Albert demonstrou sinais de medo. Esse experimento, que nunca foi concluído, porque a mãe de Albert interveio, demons­trou pelo menos quatro pontos. Primeiro, os bebês têm pouco ou nenhum medo inato de animais; segundo, eles podem aprender a ter medo de um animal se ele for apre­sentado em associação com um estímulo aversivo; terceiro, os bebês conseguem discriminar entre um rato branco pe­ludo e um bloco de madeira pesado, de modo que o medo de um rato não se generaliza para o medo de um bloco; e quarto, o medo de um rato branco peludo pode se genera­lizar para outros animais, bem como para outros objetos cabeludos ou peludos.

A chave para tal experimento de condicionamento clássico foi o pareamento de um estímulo condicionado (o rato branco) com um estímulo incondicionado (medo de um som alto e abrupto) até que a presença do estímulo condicionado (o rato branco) fosse suficiente para desenca­dear o estímulo incondicionado (medo).

Condicionamento operante

Ainda que o condicionamento clássico seja responsável por algum aprendizado humano, Skinner acreditava que [310] a maioria dos comportamentos é aprendida por meio do condicionamento operante. A solução para o condicio­namento operante é o reforço imediato de uma resposta. O organismo, primeiro, faz algo e depois é reforçado pelo ambiente. O reforço, por sua vez, aumenta a probabilidade de que o mesmo comportamento ocorra de novo. Esse con­dicionamento é denominado condicionamento operante, porque o organismo opera no ambiente para produzir um efeito específico. O condicionamento operante muda a fre­quência de uma resposta ou a probabilidade de que ocorra uma resposta. O reforço não causa o comportamento, mas aumenta a probabilidade de que ele seja repetido.

Modelagem

Na maioria dos casos de condicionamento operante, o comportamento desejado é muito complexo para ser emi­tido sem antes ser modelado pelo ambiente. Modelagem é o procedimento em que o experimentador ou o ambiente primeiro recompensa aproximações grosseiras do com­portamento, depois aproximações mais refinadas e, final­mente, o comportamento desejado em si. Por meio desse processo de reforço de aproximações sucessivas, o expe­rimentador ou o ambiente, de forma gradual, molda o com­plexo conjunto final de comportamentos (Skinner, 1953).

A modelagem pode ser ilustrada pelo exemplo do treinamento de um menino com problemas mentais gra­ves para aprender a se vestir. O comportamento final da criança é vestir toda a roupa. Se o pai retivesse o reforço até que ocorresse o comportamento-alvo, a criança nunca completaria a tarefa com sucesso. Para treinar o menino, o pai deve dividir o comportamento complexo em segmen­tos simples. Primeiro, o pai dá ao filho uma recompensa, digamos um doce, sempre que este se aproximar do com­portamento de posicionar a mão esquerda perto da parte interna da manga esquerda de sua camisa. Depois que o comportamento estiver suficientemente reforçado, o pai retém a recompensa até que a criança coloque sua mão dentro da manga apropriada. Então, o pai recompensa o filho somente por colocar o braço esquerdo inteiramente dentro da manga. Os mesmos procedimenos são usados com a manga direita, os botões, as calças, as meias e os sapatos. Assim que a criança aprende a se vestir comple­tamente, o reforço não precisa se seguir a cada tentativa bem-sucedida. Nesse momento, de fato, a habilidade de vestir toda a roupa se tornará uma recompensa em si. Ao que parece, a criança poderá atingir o comportamento-alvo somente se o pai dividir o comportamento complexo em suas partes componentes e, então, reforçar as aproxima­ções sucessivas para cada resposta.

Nesse exemplo, como em todos os casos de condicio­namento operante, três condições estão presentes: o antecedente (A), o comportamento (B) e a conseqüência (C). O an­tecedente (A) se refere ao ambiente ou ao contexto em que o comportamento ocorre. Em nosso exemplo, o ambiente seria a casa ou algum outro lugar em que a criança pudes­se vestir as roupas. A segunda condição essencial nesse exemplo é o comportamento (B) do menino de se vestir. Essa resposta deve estar dentro do repertório do menino e não ter a interferência de comportamentos paralelos ou antagonistas, como a distração dos irmãos ou da televisão. A conseqüência é a recompensa (C), ou seja, o doce.

Se o reforço aumenta a probabilidade de que deter­minada resposta se repita, então como o comportamento pode ser moldado a partir de um comportamento relati­vamente indiferenciado para um bastante complexo? Em outras palavras, por que o organismo simplesmente não repete a antiga resposta reforçada? Por que ele emite no­vas respostas que nunca foram reforçadas, mas que, de forma gradual, avançam em direção ao comportamento-alvo? A resposta é que o comportamento não é descon­tínuo, mas contínuo; ou seja, o organismo, em geral, se move um pouco além da resposta reforçada previamente. Se o comportamento fosse descontínuo, a modelagem não poderia ocorrer, porque o organismo ficaria estag­nado na simples emissão de respostas reforçadas previa­mente. Como o comportamento é contínuo, o organismo se move um pouco além da resposta antes reforçada, e esse valor um tanto excepcional pode, então, ser usado como o novo padrão mínimo para reforço. (O organismo também pode se mover um pouco para trás ou um pouco para os lados, mas somente os movimentos de avanço em direção ao alvo desejado são reforçados.) Skinner (1953) comparou a modelagem do comportamento a um escul­tor moldando uma estátua a partir de um grande bloco de argila. Em ambos os casos, o produto parece ser diferente da forma original, mas a história da transformação revela um comportamento contínuo, e não um conjunto de pas­sos aleatórios.

O comportamento operante sempre ocorre em algum ambiente, e este possui um papel seletivo na modelagem e na manutenção do comportamento. Cada um de nós tem [311] uma história de ser reforçado pela reação a alguns elemen­tos em nosso ambiente, mas não a outros. O histórico de reforço diferencial resulta em discriminação operante. Skinner alegava que a discriminação não é uma habilidade que possuímos, mas uma conseqüência de nosso histórico de reforço. Não vamos para a mesa de jantar porque dis­cernimos que a comida está pronta; vamos porque nossas experiências prévias de reação de uma forma similar foram, em sua maioria, reforçadas. Essa distinção pode parecer uma falácia, mas Skinner defendia que ela possuía implica­ções teóricas e práticas importantes. Os defensores da pri­meira explicação veem a discriminação como uma função cognitiva, existindo dentro da pessoa, enquanto Skinner explicava tal comportamento pelas diferenças ambientais e pelo histórico de reforço do indivíduo. A primeira explica­ção vai além do âmbito da observação empírica; a segunda pode ser estudada de modo científico.

Uma resposta a um ambiente semelhante na ausência de reforço prévio é chamada de generalização do estímu­lo. Um exemplo de generalização do estímulo é dado pela compra que uma estudante universitária faz de um ingres­so [312] para um show de rock apresentado por uma banda que ela nunca viu nem ouviu, mas que alguém lhe disse que é parecida com sua banda preferida. Tecnicamente, as pes­soas não generalizam de uma situação para outra, mas elas reagem a uma nova situação da mesma maneira que rea­giram a uma anterior, porque as duas situações possuem alguns elementos idênticos; ou seja, comprar ingresso para um show de rock contém elementos comuns a comprar um ingresso para um show de rock diferente. Skinner (1953) expressou isso da seguinte maneira: “O reforço de uma res­posta aumenta a probabilidade de todas as respostas que contêm os mesmos elementos” (p. 94).

Reforço

De acordo com Skinner (1987a), o reforço possui dois efeitos: ele reforça o comportamento e recompensa a pes­soa. Reforço e recompensa, portanto, não são sinônimos. Nem todo comportamento que é reforçado é gratificante ou agradável para a pessoa. Por exemplo, as pessoas são reforçadas por trabalhar, porém muitas consideram seus empregos entediantes, desinteressantes e não gratificantes. Os reforçadores existem no ambiente e não são algo percebido pela pessoa. O alimento não é reforçador porque ele tem gosto bom; ao contrário, ele tem gosto bom porque é reforçador (Skinner, 1971).

Todo comportamento que aumenta a probabilidade de sobrevivência da espécie ou do indivíduo tende a ser fortalecido. Alimento, sexo e cuidado parental são neces­sários para a sobrevivência das espécies, e todo comporta­mento que produz tais condições é reforçado. Ferimentos, doenças e clima extremo são prejudiciais à sobrevivência, e qualquer comportamento que tende a reduzir ou evitar es­sas condições é igualmente reforçado. O reforço, portanto, pode ser dividido entre aquilo que produz uma condição ambiental benéfica e aquilo que reduz ou evita uma con­dição nociva. O primeiro é chamado de reforço positivo, o segundo, de reforço negativo.

Reforço positivo. Qualquer estímulo que, quando acresri­do a uma situação, aumenta a probabilidade de que ocorra determinado comportamento é denominado reforçador positivo (Skinner, 1953). Comida, água, sexo, dinheiro, aprovação social e conforto físico em geral são exemplos de reforçadores positivos. Quando contingentes ao comporta­mento, cada um tem a capacidade de aumentar a frequên­cia de uma resposta. Por exemplo, se aparecer água limpa sempre que uma pessoa abrir a torneira da cozinha, então esse comportamento será reforçado, porque um estímulo ambiental benéfico foi acrescido. Boa parte do comporta­mento humano e animal é adquirida por meio de reforço positivo. Sob condições controladas, Skinner conseguiu treinar animais para realizarem uma grande variedade de tarefas relativamente complexas.

Com os humanos, no entanto, o reforço, com frequên­cia, é acidental, e, portanto, o aprendizado é ineficiente. Outro problema com o condicionamento de humanos é determinar quais conseqüências são reforçadoras e quais não são. Dependendo da história pessoal, surras e repreen­sões podem ser reforçadores e beijos e elogios podem ser punitivos.

Reforço negativo. A remoção de um estímulo aversivo de uma situação também aumenta a probabilidade de que ocorra o comportamento precedente. Tal remoção resulta em reforço negativo (Skinner, 1953). Redução ou esquiva de sons altos, choques e fome seriam reforçadores negati­vos, porque fortalecem o comportamento que as precede de imediato. O reforço negativo difere do reforço positivo uma vez que ele requer a remoção de uma condição aversiva, enquanto o reforço positivo envolve a apresentação de um estímulo benéfico. O efeito do reforço negativo, no en­tanto, é idêntico ao do positivo: ambos fortalecem o com­portamento. Algumas pessoas comem porque elas gostam de uma comida em particular; outras comem para dimi­nuir a fome. Para o primeiro grupo, a comida é um reforça­ dor positivo; para o segundo grupo, a remoção da fome é um reforçador negativo. Em ambos os casos, o comporta­mento de comer é reforçado porque as conseqüências são gratificantes.

Existe um número quase ilimitado de estímulos aversivos, cuja remoção pode ser um reforço negativo. Ansiedade, por exemplo, costuma ser um estímulo aver­sivo, e qualquer comportamento que a reduza é reforça­dor. Esses comportamentos podem incluir fazer exercí­cios, reprimir lembranças desagradáveis, pedir desculpas por um comportamento inapropriado, fumar, beber ál­cool e inúmeros outros comportamentos concebidos de forma intencional ou não para reduzir o caráter desagra­dável da ansiedade.

Punição

Reforço negativo não deve ser confundido com punição. Os reforçadores negativos removem, reduzem ou evitam estímulos aversivos, enquanto punição é a apresentação de um estímulo aversivo, como um choque elétrico, ou a remoção de um estímulo positivo, como desligar o telefone de um adolescente. Um reforçador negativo fortalece uma resposta; a punição não. Ainda assim, ela também não a enfraquece inevitavelmente. Skinner (1953) concordou com Thorndike que os efeitos da punição são menos previ­síveis do que os da recompensa.

Efeitos da punição. O controle do comportamento hu­mano e animal é mais bem servido pelos reforços positivo e negativo do que pela punição. Os efeitos da punição não são opostos aos do reforço. Quando as contingências de reforço são estritamente controladas, o comportamento pode ser modelado com precisão e previsto com exatidão. Com a punição, no entanto, essa exatidão não é possível.

A razão para tal discrepância é simples. A punição costu­ma ser imposta para impedir que as pessoas ajam de uma maneira particular. Quando ela tem sucesso, as pessoas param de se comportar daquela maneira, mas ainda preci­sam fazer algo. O que elas fazem não pode ser previsto com
exatidão, porque a punição não diz o que elas devem fa­zer; ela meramente suprime a tendênda a se comportarem da maneira indesejável. Como conseqüência, um efeito da punição é suprimir o comportamento. Por exemplo se um menino provoca sua irmã menor, seus pais podem fazê-lo parar batendo nele, mas, infelizmente, essa punição não irá melhorar sua disposição em relação à irmã. Ela apenas su­prime a provocação por um tempo ou na presença dos pais.

Outro efeito da punição é o condicionamento de um sentimento negativo pela associação de um forte estímulo aversivo com o comportamento que está sendo punido. No exemplo anterior, se a dor da surra for forte o sufidente, ela instigará uma resposta (choro, retraimento, ataque) que é incompatível com o comportamento de provocar a irmã menor. No futuro, quando o menino pensar em tra­tar mal a irmã mais nova, esse pensamento pode provocar uma resposta condidonada clássica, como medo, ansieda­de, culpa ou vergonha. Tal emoção negativa serve, então, para impedir que o comportamento indesejável se repita. Lamentavelmente, ela não oferece instrução positiva algu­ma para a criança.

Um terceiro resultado da punição é a difusão de seus efeitos. Todo estímulo assodado com a punição pode ser suprimido ou evitado. Em nosso exemplo, o menino pode aprender a evitar sua irmã menor, ficar longe dos pais ou desenvolver sentimentos negativos em relação à palmada ou ao lugar em que a palmada ocorreu. Em conseqüência, o comportamento do menino em relação à família se tor­na mal-adaptativo. No entanto, esse comportamento inapropriado serve ao propósito de impedir punições futuras. Skinner reconheceu os mecanismos de defesa freudianos clássicos como meios efetivos de evitar a dor e sua ansie­dade concomitante. A pessoa punida pode fantasiar, proje­tar sentimentos nos outros, radonalizar comportamentos agressivos ou deslocá-los para outras pessoas ou animais.

Punição e reforço comparados. A punição apresenta vá­rias características em comum com o reforço. Assim como existem dois tipos de reforços (positivo e negativo), há dois tipos de punição. O primeiro requer a apresentação de um estímulo aversivo; o segundo envolve a remoção de um reforçador positivo. Um exemplo do primeiro é a dor sentida por cair em conseqüência de caminhar muito rá­pido em uma calçada congelada. Um exemplo do segundo é uma multa pesada dada a um motorista por dirigir em alta velocidade. O primeiro exemplo (cair) resulta de uma condição natural; o segundo (ser multado) decorre de uma intervenção humana. Esses dois tipos de punição revelam uma segunda característica comum à punição e ao reforço: ambos podem derivar de conseqüências naturais ou da im­posição humana. Por fim, tanto a punição quanto o reforço são meios de controlar o comportamento, seja o controle premeditado ou por acaso. Skinner, obviamente, preferia o controle planejado, e seu livro Walden II (Skinner, 1948) apresenta muitas de suas idéias sobre o controle do com­portamento humano.

Reforçadores condicionados e generalizados

A comida é um reforço para humanos e animais, porque ela remove uma condição de privação. Mas como o dinheiro, que não pode remover diretamente uma condição de priva­ção, pode ser reforçador? A resposta é que o dinheiro é um reforçador condicionado. Reforçadores condicionados (às vezes chamados de reforçadores secundários) envolvem estímulos ambientais que não são por natureza satisfató­rios, mas que se tomam satisfatórios porque se associam a reforçadores primários não aprendidos, como comida, água, sexo ou conforto físico. O dinheiro é um reforçador condi­cionado porque ele pode ser trocado por uma grande varie­dade de reforçadores primários. Além disso, constitui um reforçador generalizado, pois está associado a mais de um reforçador primário.

Skinner (1953) reconheceu cinco reforçadores gene­ralizados importantes que sustentam muito do compor­tamento humano: atenção, aprovação, afeição, submissão a outros e símbolos (dinheiro). Cada um pode ser usado como reforçador em uma variedade de situações. A aten­ção, por exemplo, é um reforçador condicionado generali­zado, porque está associada a reforçadores primários como comida e contato físico. Quando as crianças estão sendo alimentadas ou estão no colo, elas também estão [313] recebendo atenção. Depois que comida e atenção são combinadas por várias vezes, a atenção, em si, se torna reforçadora, pelo processo de condicionamento respondente (clássico). Crianças, e adultos também, trabalham por atenção sem qualquer expectativa de receberem comida ou contato fí­sico. De forma muito parecida, a aprovação, a afeição, a submissão a outros e o dinheiro adquirem valor de reforço generalizado. O comportamento pode ser modelado e as respostas aprendidas, com reforçadores condicionados ge­neralizados constituindo um único reforço.

Esquema de reforço

Todo comportamento seguido pela apresentação de um reforçador positivo ou pela remoção de um estímulo aversivo tende, depois disso, a ser mais recorrente. A frequência desse comportamento, no entanto, está sujeita às condi­ções sob as quais ocorreu o treinamento, de forma mais específica, as várias programações de reforço (Ferster & Sldnner, 1957).

O reforço pode seguir o comportamento em uma pro­gramação contínua ou intermitente. Com um esquema de reforço continuo, o organismo é reforçado a cada res­posta. Esse tipo de esquema aumenta a frequência de uma resposta, mas é um uso ineficiente do reforçador. Skinner preferia os esquemas intermitentes não só porque eles fazem uso mais eficiente do reforçador, mas também porque produzem respostas mais resistentes à extinção. É interessante observar que Skinner começou a usar os esquemas intermitentes porque ele estava com estoque baixo de ração (Wiener, 1996). Os esquemas intermitentes baseiam-se no comportamento do organismo ou no tempo decorrido; eles podem ser estabelecidos em uma frequên­cia fixa ou variar de acordo com um programa aleatório. Ferster e Skinner (1957) reconheceram um grande número de esquemas de reforço, mas os quatro esquemas intermi­tentes básicos são: razão fixa, razão variável, intervalo fixo e intervalo variável.

Razão fixa (FR). Com um esquema de razão fixa, o or­ganismo é reforçado de forma intermitente, de acordo com o número de respostas que ele dá. Razão refere-se à pro­porção entre respostas e reforçadores. Um experimentador pode decidir recompensar um pombo com um grão de ra­ção a cada quinta bicada que ele der em um disco. O pombo é, então, condicionado em um esquema de relação fixa de 5 para 1, ou seja, FR 5.
Quase todos os esquemas de reforço começam com re­forço contínuo, mas, em seguida, o experimentador pode avançar da recompensa contínua para um reforço inter­mitente. Da mesma forma, esquemas de razão fixa extre­mamente alta, como 200 para 1, devem começar com uma proporção baixa de respostas e, de modo gradual, avançar para uma mais alta. Um pombo pode ser condicionado a trabalhar por longo tempo e de modo rápido em troca de um grão de ração, contanto que ele tenha sido previamente reforçado em uma proporção mais baixa.

Tecnicamente, quase nenhuma escala de pagamento para humanos segue um esquema de razão fixa ou de outro tipo, porque os trabalhadores, em geral, não começam com um esquema de reforço contínuo imediato. Uma aproxima­ção de um esquema de razão fixa seria o pagamento de pedreiros que recebem uma quantidade fixa de dinheiro para cada tijolo que colocam.

Razão variável (VR). Com um esquema de razão com relação fixa, o organismo é reforçado depois de cada enésima resposta. Com a o esquema de razão variável, ele é reforçado após a enésima resposta em média. Mais uma vez, o treinamento deve começar com reforço contínuo, prosseguir para um número baixo de respostas e, então, aumentar para uma taxa mais alta de resposta. Um pombo recompensado a cada terceira resposta em média pode de­senvolver um esquema de até VR 6, depois VR 10 e assim por diante; porém, o número médio de respostas deve ser aumentado de forma gradual, para evitar a extinção. Depois de alcançada uma média alta, digamos VR 500, as respos­tas se tornam extremamente resistentes à extinção. Para os humanos, jogar em caça-níqueis é um exemplo de esquema de razão variável. A máquina é ajustada para pagar em determinado ritmo, mas o ritmo deve ser flexí­vel, ou seja, variável, para impedir que os jogadores prevejam os pagamentos.

Intervalo fixo. Com um esquema de intervalo fixo, o organismo é reforçado para a primeira resposta após um período de tempo designado. Por exemplo, FI 5 indica que o organismo é recompensado por sua primeira resposta após cada 5 minutos de intervalo. Os empregados que [314] trabalham por salário ou por pagamento se aproximam de um esquema de intervalo fixo. Eles são pagos todas as sema­nas, a cada duas semanas ou a cada mês; mas essa progra­mação de pagamento não é estritamente um esquema de intervalo fixo. Ainda que os pombos geralmente apresentem um impulso no trabalho próximo ao final do período de tempo, a maioria dos trabalhadores humanos distribui seus esforços de modo uniforme, em vez de trabalharem pouco a maior parte do tempo e, depois, se empenharem mais no final do período. Essa situação se deve, em parte, a fatores como supervisores atentos, ameaças de demissão, promessas de promoção ou reforçadores autogerados.

Intervalo variável (VI). Um esquema de intervalo va­riável é aquele em que o organismo é reforçado após de­ corridos períodos de tempo aleatórios ou variados. Por exemplo, VI 5 significa que o organismo é reforçado após intervalos de duração aleatória que têm, em média, 5 mi­nutos. Tais programações resultam em mais respostas por intervalo do que os esquemas de intervalo fixo. Para os hu­manos, o reforço resulta, com mais frequência, do próprio esforço do que da passagem do tempo. Por essa razão, os esquemas de razão são mais comuns do que os de interva­lo, e o esquema com intervalo variável é provavelmente o menos comum de todos.

Extinção

Depois de aprendidas, as respostas podem ser perdidas por, pelo menos, quatro razões. Primeiro, elas podem sim­plesmente ser esquecidas com a passagem do tempo. Se­gundo, e mais provável, elas podem ser perdidas devido à interferência de aprendizado precedente ou subsequente. Terceiro, elas podem desaparecer devido à punição. E quar­to, devido à extinção, definida como a tendência de uma resposta previamente adquirida se tornar enfraquecida de modo progressivo com a ausência de reforço.

A extinção operante ocorre quando um pesquisador retém de modo sistemático o reforço de uma resposta pre­viamente aprendida até a probabilidade de que aquela res­posta diminua até zero. O ritmo da extinção operante de­pende, em grande parte, do esquema de reforço sob a qual o aprendizado ocorreu.

Comparado com as respostas adquiridas em um es­quema contínuo, o comportamento treinado com um es­quema intermitente é muito mais resistente à extinção. Skinner (1953) observou 10 mil respostas não reforçadas com esquemas intermitentes. Tal comportamento parece se autoperpetuar e é praticamente indistinguível do com­portamento que dispõe de autonomia funcional, um con­ceito sugerido por Gordon Allport. Em geral, quanto mais alta a taxa de respostas por re­forço, mais lento o ritmo de extinção; quanto menos res­postas um organismo precisa dar ou quanto mais curto o tempo entre os reforçadores, mais rapidamente ocorre a extinção. Esse achado sugere que o elogio e outros refor­çadores devem ser usados com moderação no treinamen­to de crianças.

A extinção raramente é aplicada de modo sistemático ao comportamento humano fora da terapia ou da modifi­cação do comportamento. A maioria de nós vive em am­bientes relativamente imprevisíveis, e quase nunca experi­mentamos a retenção metódica do reforço. Assim, muitos de nossos comportamentos persistem por um longo pe­ríodo de tempo, porque eles estão sendo reforçados de for­ma intermitente, muito embora a natureza desse reforço possa ser obscura para nós. [315]

Psicologia - Análise do comportamento
Temas gerais - Temas gerais, 
12/15/2020 12:09:08 PM | Por Gregory J. Feist, Jess Feist, Tomi-Ann Roberts
O behaviorismo científico

Assim como Thorndike e Watson, Skinner insistia em que o comportamento humano deve ser estudado de forma científica. Seu behaviorismo científico sustenta que o com­portamento pode ser mais bem estudado sem referência a necessidades, instintos ou motivos. Atribuir motivação ao comportamento humano seria como atribuir livre-arbítrio aos fenômenos naturais. O vento não sopra porque ele quer girar os moinhos; as pedras não rolam encosta abaixo por­ que elas possuem uma noção de gravidade; e os pássaros não migram porque eles gostam mais do clima em outras regiões. Os cientistas podem aceitar facilmente a ideia de que o comportamento do vento, das pedras e, até mesmo, dos pássaros pode ser estudado sem referência a uma mo­tivação interna, porém a maioria dos teóricos da personali­dade pressupõe que as pessoas são motivadas por impulsos internos e que um conhecimento dos impulsos é essencial.

Skinner discordava. Por que postular uma função men­tal interna? As pessoas não comem porque estão com fome. A fome é uma condição interna não observável diretamente. Se os psicólogos desejam aumentar a probabilidade de que uma pessoa coma, devem observar primeiro as variáveis re­lacionadas ao comer. Se a privação de comida aumenta a pro­babilidade de comer, então eles podem privar uma pessoa de comida para melhor predizer e controlar o comportamento alimentar posterior. Tanto a privação quanto o ato de comer são eventos físicos claramente observáveis e, portanto, estão [308] dentro do domínio da ciência. Os cientistas que afirmam que as pessoas comem porque estão com fome estão presumindo uma condição mental desnecessária e inobservável entre o fato físico da privação e o fato físico de comer. Esse pressu­posto obscurece a questão e relega muito da psicologia àquele domínio da filosofia conhecido como cosmologia, ou a preo­cupação com a causação. Para ser científica, insistia Skinner (1953,1987a), a psicologia deve evitar os fatores mentais in­ternos e se limitar aos eventos físicos observáveis.

Mesmo que Skinner acreditasse que os estados inter­nos estão fora do domínio da ciênda, ele não negava sua existência. Há condições como fome, emoções, valores, autoconfiança, necessidades agressivas, crenças religiosas e maldade, mas elas não são explicações para o compor­tamento. Usá-las como explicações não só é inútil como também limita o avanço do behaviorismo científico. Outras ciêndas fizeram avanços maiores porque há tempo abandonaram a prática de atribuir motivos, necessidades ou força de vontade ao movimento (comportamento) de organismos vivos e objetos inanimados. O behaviorismo científico de Skinner faz o mesmo (Skinner, 1945).

Filosofia da ciência

O behaviorismo científico permite uma interpretação do comportamento, mas não uma explicação de suas causas. A interpretação permite ao cientista generalizar a partir de uma condição de aprendizagem simples para uma mais complexa. Por exemplo, Skinner generalizou dos estudos com animais para as crianças e depois para os adultos. Qualquer ciênda, incluindo a do comportamento huma­no, começa com os prinrípios simples e evolui para os mais amplos, que permitem uma interpretação dos mais com­plexos. Skinner (1978) usou princípios derivados de estu­dos de laboratório para interpretar o comportamento dos seres humanos, mas insistia em que a interpretação não deveria ser confundida com uma explicação de por que as pessoas se comportam da forma que se comportam.

Características da ciência

De acordo com Skinner (1953), a ciênda possui três caracte­rísticas principais: primeiro, a ciência é cumulativa; segundo, ela é uma atitude que valoriza a observação empírica; tercei­ro, trata-se de uma busca pela ordem e por relações legítimas.

A ciência, em contraste com a arte, a filosofia e a li­teratura, avança de maneira cumulativa. A quantidade e a natureza do conhecimento científico que os alunos do en­sino médio têm hoje da física ou química são muito mais sofisticadas do que até mesmo os gregos mais instruídos 2.500 anos atrás. O mesmo não pode ser dito das ciências humanas. A sabedoria e a genialidade de Platão, Michelan­gelo e Shakespeare, é claro, não são inferiores à sabedoria e à genialidade de qualquer filósofo, artista ou escritor mo­derno. No entanto, conhecimento cumulativo não pode ser
confundido com progresso tecnológico. A ciência é única não por causa da tecnologia, mas devido a sua atitude.

A segunda e mais crítica característica da ciência é uma atitude que coloca valor na observação empírica acima de tudo. Nas palavras de Skinner (1953): “Ela é uma disposi­ção para lidar com os fatos, em vez de com o que alguém disse sobre eles" (p. 12). Em particular, existem três componentes para a atitude científica. Primeiro, ela rejeita a au­toridade - até mesmo a própria autoridade. Apenas porque uma pessoa respeitada, como Einstein, diz algo, isso em si não torna uma afirmação verdadeira. Ela deve se submeter ao teste de observação empírica. [Dizia] Aristóteles ... que corpos de diferentes massas caem em velocidades distintas. Isso foi aceito como fato por cerca de mil anos apenas por­ que Aristóteles disse. Galileu, no entanto, testou essa ideia cientificamente e descobriu que ela não era verdadeira. Segundo, a ciência demanda honestidade intelectual e requer que os cientistas aceitem os fatos mesmo quando eles são opostos a seus desejos. Tal atitude não significa que os cien­tistas sejam inerentemente mais honestos do que as outras pessoas. Eles não são. Temos conhecimento de cientistas que fabricaram dados e manipularam seus resultados. No entanto, como disciplina, a ciência valoriza muito a hones­tidade intelectual simplesmente pois, a resposta certa acaba sendo descoberta. Os cientistas não têm escolha, a não ser relatar os resultados que vão contra suas esperanças e hipó­teses, pois, se não o fizerem, outra pessoa fará, e os novos resultados irão mostrar que os cientistas manipulavam os dados. “Não ser possível estabelecer o certo e o errado de forma rápida é fácil, não existe pressão similar a isso" (Skin­ner,1953,p.13). Porfim, a ciência suspende o julgamento até que surjam tendências claras. Nada é mais prejudicial para a reputação de um cientista do que a pressa em reproduzir dados que são insuficientemente verificados e testados. Se os dados a que o cientista chegou não resistem a duplicação, então esse cientista parece tolo na melhor das hipóteses e desonesto na pior. Um ceticismo saudável e uma disposição para suspender o julgamento são, portanto, essenciais para ser um cientista.

Uma terceira característica da ciência é a busca pela ordem e por relações legítimas. Toda ciência começa com a observação de eventos individuais e, então, tenta inferir princípios e leis gerais a partir desses eventos. Em resumo, o método científico consiste em predição, controle e descri­ção. Um cientista faz observações guiado por supostos teó­ricos, desenvolve hipóteses (faz predições), verifica-as por meio da experimentação controlada, descreve os resultados de forma honesta e fidedigna e, por fim, modifica a teoria para se adequar aos resultados empíricos reais.

Skinner (1953) acreditava que a predição, o contro­le e a descrição são possíveis no behaviorismo científico, porque o comportamento é determinado e possui leis. [309]

O comportamento humano, como o das entidades físicas e biológicas, não é caprichoso, nem resultado do livre-arbítrio. Ele é determinado por certas variáveis identifi­cáveis e segue princípios de leis definidas, que, em tese, podem ser conhecidos. O comportamento que parece caprichoso ou individualmente determinado está apenas além da capacidade atual dos cientistas de predizer ou controlar. Porém, de forma hipotética, as condições sob as quais ele ocorre podem ser descobertas, permitindo, assim, a predição e o controle, além da descrição. Skin­ner dedicou muito de seu tempo tentando descobrir essas condições, usando um procedimento que chamou de con­dicionamento operante.

Psicologia - Análise do comportamento
Epistemologia - Teoria, Conceito de humanidade
12/13/2020 2:19:46 PM | Por Gregory J. Feist, Jess Feist, Tomi-Ann Roberts
Conceito de humanidade na teoria evolucionista da personalidade

É difícil dizer em qual lado do debate evolucionista do otimismo-pessimismo a teoria recai. Ela é, principalmente, descriti­va e, nesse sentido, tende a ser mais neutra quanto à descri­ção da natureza humana. Os humanos são e foram capazes de atos incrivelmente edificadores de heroísmo, bravura e cooperação, inspirando trabalhos de criatividade, e atos ina­creditáveis e inqualificáveis de violência e crueldade. Os dois extremos fazem parte da natureza humana (Pinker, 2002).

A psicologia evolucionista tem uma visão complexa so­bre a questão determinismo versus livre-arbitrío. Um suposto comum dos críticos acerca da teoria evolucionista é que ela é fortemente determinista, uma vez que explica o comporta­mento em termos de um passado evoluído e de influências genéticas. Na verdade, a psicologia evolucionista costuma ser criticada por pactuar com os papéis sexuais tradicionais (p. ex., as mulheres são atraídas por homens de alto, e os homens são atraídos por mulheres fisicamente atraentes). Buss e outros teóricos evolucionistas deixam claro, no en­tanto, que a psicologia evolucionista é uma teoria de como esses traços começaram, e não como eles deveriam ser. Em outras palavras, ela pretende ser mais descritiva do que prescritiva. Além disso, conforme a visão de Buss da origem da personalidade, as explicações biológicas e ambientais não são mutuamente exdudentes. Elas são ambas necessárias. Buss (1999) argumenta, na verdade, que o conhecimento e a consciência de nossos mecanismos psicológicos e estraté­gias evoluídos nos dão mais poder de modificá-los se assim desejarmos.

Quanto à questão da causalidade versus teleologia está claro que a teoria evolucionista pende fortemente para o lado da causalidade na equação. A evolução pela seleção natural é, acima de tudo, uma teoria de origens ou causa. O livro de Darwin, afinal de contas, foi intitulado A origem das espécies.

A teoria evolucionista relaciona-se de modo mais direto com as influências inconscientes sobre o pensamento, o com­portamento e a personalidade do que com as conscientes. A maior parte do que fazemos está além de nossa percepção consciente, e isso é especialmente verdadeiro para as origens e as estratégias evolutivas que moldam nosso comportamen­to. Não estamos mais conscientes de por que preferimos o doce e gorduroso ao amargo do que estamos conscientes de por que somos atraídos por uma pessoa e não por outra. Da mesma maneira, não temos ideia de por que ficamos ansiosos e sensíveis ao estresse, enquanto outra pessoa fica calma e controlada sob pressão.

Na verdade, uma razão por que os indivíduos podem resistir aos relatos evolucionistas do comportamento, muito como resistiram às idéias de Freud, é que ele torna o incons­ciente consciente, e as idéias conscientes das pessoas de por que elas fazem o que fazem, gostam do que gostam e são influenciadas pelo que são influenciadas está quase sempre em conflito com as evidências da ciência, em geral, e da psicolo­gia evolucionista e da biologia, em particular. E, no entanto, não temos que tomar conhecimento de como os olhos e o co­ração evoluíram para que possamos usá-los. Simplesmente os usamos. Do mesmo modo, simplesmente agimos, pensamos, sentimos e somos motivados. A consciência não é necessária e, em muitos casos, seria muito perturbadora.

O conceito de humanidade mais surpreendente para muitas pessoas é a posição da psicologia evolucionista quanto à influência biológica versus social. Existe claramente uma for­te ênfase nas influências biológicas, dos sistemas cerebrais, da neuroquímica e da genética. Mas, conforme deixamos claro no capítulo, os mecanismos evoluídos só podem operar com a contribuição do ambiente. Portanto, a teoria evolucionista é completamente equilibrada na questão das causas biológicas versus ambientais da personalidade.

A teoria evolucionista também é equilibrada na questão da singularidade do indivíduo, comparada aos pontos comuns entre todas as pessoas. A estrutura dos mecanismos evoluídos, ou seja, quais mecanismos operam são espécies típicas e uni­versais, mas o conteúdo dos mecanismos é único e demonstra diferenças consideráveis entre os indivíduos. [300]

Psicologia - Psicologia Evolucionista
Pesquisas - Pesquisas relacionadas, 
12/13/2020 1:53:19 PM | Por Gregory J. Feist, Jess Feist, Tomi-Ann Roberts
Pesquisas relacionadas à Teoria evolucionista da personalidade

O modelo evolucionista da personalidade não pode ser testado diretamente, uma vez que não podemos conduzir estudos por centenas de gerações. Além disso, assim como na biologia, há evidências consideráveis para a base evolu­tiva da personalidade humana, a qual pode ser dividida em, pelo menos, três tópicos gerais: temperamento, genética e personalidade animaL As três linhas de evidência apoiam a visão de que a personalidade possui uma base biológica e que tais sistemas biológicos evoluíram.

Temperamento e ambiente pré e pós-natal

Quase todos os pais de dois ou mais filhos sabem que os bebês são diferentes entre si desde o primeiro dia. Tais diferenças no comportamento têm uma base biológica e são conhecidas como temperamento (A. Buss, 2012). O temperamento lança as bases para os traços de perso­nalidade posteriores. Uma vez que ele é expresso antes e [295] imediatamente após o nascimento, isso significa que ele se desenvolve principalmente a partir de sistemas biológicos, mas é modificado pela contribuição do ambiente. Além do mais, as diferenças nos sistemas biológicos entre os indivíduos - alguns são mais ativos e outros são mais sensíveis à estimulação sensorial - foram moldadas pelas pressões da seleção natural e sexual, isto é, pela evolução.

Evidências sugerem que as diferenças de tempera­mento e personalidade são manifestas ainda antes do nas­cimento, no período pré-natal. Ao que parece, a atividade fetal e a frequência cardíaca podem revelar algo acerca das diferenças de comportamento durante o primeiro ano de vida (DiPietro et al., 1996). Em particular, uma frequência cardíaca alta com 36 semanas de gestação (quase a termo) prediziam hábitos alimentares e de sono menos previsíveis 3 a 6 meses após o nascimento e menos emocionalidade aos seis meses após o nascimento. Ter altos níveis de ativi­dade com 36 semanas de gestação mostrou-se um preditor de lentidão para se adaptar a pessoas ou situações novas e de hábitos alimentares e de sono mais irregulares aos 3 a 6 meses, assim como ser uma criança mais difícil ou irritadi­ça aos 6 meses (DiPietro et al., 1996).

O ambiente pré-natal desempenha um papel importante na modelagem da personalidade. Na verdade, a quantidade de estresse que a mãe experimenta durante a gravidez pode alterar a resposta ao estresse do próprio bebê. Ou seja, bebês nascidos de mães que experimentaram uma quantidade incomum de estresse durante a gravidez tendem a ter função do estresse afetada; níveis de base mais altos de hormônios do estresse; e resposta fisiológica ao estresse mais rápida, mas forte e mais pronunciada, o que persiste durante toda a in­fância (Barbazanges et aL, 1996; Clark & Schneider, 1997).

Após o nascimento, no período pós-natal imediato, os recém-nascidos já exibem diferenças regulares e consisten­tes no comportamento; isto é, eles possuem temperamen­tos distintos (A. Buss, 2012). Tais diferenças comportamentais são mais pronunciadas em quatro dimensões do temperamento: atividade, emocionalidade, sociabilidade e impulsividade. Atividade é simplesmente o quanto o bebê é ativo e quanta energia ele usa fazendo as coisas, ou seja, a rapidez ou a lentidão com que realiza as ações. A emocionalidade é vista na frequência e na intensidade com que experimenta emoção positiva ou negativa, isto é, o quan­to é feliz ou irritadiço. Sociabilidade refere-se à resposta do bebê às outras pessoas, especialmente estranhos. Alguns bebês são sociáveis e extrovertidos, e outros se retraem e choram, ou são reservados e tímidos na presença de estra­nhos (Clarke-Stewart, Umeh, Snow, &Peterson, 1980). Por fim, impulsividade envolve a prontidão e a velocidade para agir sem reflexão. Todos os bebês são relativamente im­pulsivos; porém, mesmo no período de lactância, existem diferenças consistentes entre eles. Essas diferenças tendem a se tornar mais perceptíveis durante a infânda e a adolescênda. Além do mais, uma pesquisa de longo prazo relatou que as crianças até 2 anos que têm temperamento impul­sivo apresentam maior probabilidade de cometer atividade criminal e de ter problemas com álcool na época em que atingem os 21 anos, além de pior desempenho acadêmico e escores mais baixos em testes admissionais ao ensino su­perior (Caspi, 2000; Mischel, Shoda, & Rodriguez, 1989).

Genética e personalidade

Em parte devido a como a genética foi ensinada na esco­la, um pressuposto comum que muitas pessoas têm é que há uma correspondência simples de quase 1:1 entre genes e traços. Lembre-se de como você aprendeu a calcular a probabilidade de que a prole herdasse um traço se os pais fossem portadores dominantes ou recessivos daquele traço. Existem traços categóricos simples (p. ex., cor dos olhos), que são transmitidos por um gene. Porém, todos os traços psicológicos complexos que são expressos em um continuum de valores baixos a valores altos são transmitidos por mui­tos, muitos genes. De modo mais técnico, os traços catego­ricamente simples são transmitidos “monogenicamente” (um gene), enquanto os traços que variam de pouco a muito (p. ex., agressividade, altura, peso, ansiedade) são transmi­tidos “poligenicamente" (Ebstein, 2006; Evans et al., 2007). Expresso de maneira mais elementar, a transmissão monogênica acontece quando um gene produz um traço (fenótipos) e a transmissão poligênica ocorre quando muitos genes interagem para criar uma característica (Rutter, 2006). Tal distinção é muito importante para a compreen­são de uma ideia fundamental na genética moderna, isto é, nosso genoma é o ponto de partida, não o ponto final, para como nossos genes são expressos (nosso fenótipo). Não existe um gene “inteligente”, um gene “tímido" ou um gene “agressivo". Muitos, muitos genes (dezenas e talvez mais) são responsáveis pelos traços de personalidade.

Quando estudam a genética do comportamento, os pesquisadores empregam dois métodos principais para in­vestigar a relação entre genética, comportamento e persona­lidade. Com o primeiro método, a abordagem dos loci de traços quantitativos (QTL; do inglês, Quantitative Trait Loci), eles procuram a localização de partes específicas de DNA nos genes que podem estar associadas a comportamen­tos particulares. Nesse sentido, é uma busca por “marcadores genéticos" do comportamento. Os traços são quantitativos, porque representam marcadores para comportamentos que são expressos em um continuum amplo, de bem pouco até muito. Por exemplo, a ansiedade é um traço quantitativo, porque algumas pessoas não são nada ansiosas, a maioria dos indivíduos está na média e alguns são muito ansiosos. O método QTL descobre a localização de genes particulares que está associada a níveis altos ou baixos de um traço. Essas localizações também são conhecidas como "marcadores".

A pesquisa dos QTL aponta para os marcadores ge­néticos de vários traços básicos da personalidade, como [296] busca por novidade ou emoção, impulsividade e neuroticismo/ansiedade (Benjamin et al., 1996; Hamer & Cope­ land, 1998; Lesch et al., 1996; Plomin & Caspi, 1999; Retz et al., 2010; Rutter, 2006). Considere o caso da busca por emoção, um traço que envolve correr riscos. As pessoas com esse traço podem procurar atividades altamente ex­citantes, como bungee jumping, alpinismo ou mergulho. As atividades de busca de emoção criam um “ímpeto" de exci­tação - um sentimento positivo que pode estar relacionado à liberação de dopamina, um neurotransmissor associado à excitação fisiológica. Dada a possível conexão entre do­pamina e busca de emoção, uma teoria sugere que as pes­soas que têm deficiência de dopamina tenderão a procurar situações excitantes como uma maneira de aumentar a li­beração de dopamina e compensar os baixos níveis desse neurotransmissor.

Na metade da década de 1990, pesquisadores apresen­taram a primeira evidência genética que corrobora tal teo­ria. O gene DRD4 está envolvido na produção de dopamina no sistema límbico, e, quanto mais longa a seqüência gené­tica, menos eficiente é aprodução desse neurotransmissor. Em outras palavras, as versões longas do gene DRD4 estão associadas a produção menos eficiente de dopamina. Se a teoria estiver correta, as pessoas que buscam emoções de­vem ter a forma mais longa desse gene, e isso é exatamen­te o que as pesquisas demonstraram (Ebstein et al., 1996; Hamer & Copeland, 1998). Um aspecto estimulante de tal achado é que ele foi o primeiro a demonstrar uma influên­cia genética específica sobre um traço de personalidade normal (não patológico).

O segundo método usado pelos geneticistas do com­portamento para desvendar os efeitos da genética e do ambiente na personalidade [provém] em estudos de adoção de gêmeos. ... a conclusão dessa pesquisa foi que entre 40 a 60% das diferenças na personalidade provêm da influência genéti­ca (Bouchard & Loehlin, 2001; Caspi, Roberts, & Shiner, 2003; Kruger & Johnson, 2008; Loehlin et al., 1998; Plomin & Caspi, 1999; Tellegen et al., 1988). Essa linha de pesquisa, portanto, sugere que cerca de metade das dife­renças que existem entre as pessoas em suas personalida­des é atribuída à genética, e a outra metade é influenciada pelo ambiente ou por outros fatores desconhecidos. Esses resultados são coerentes com a visão de que personalida­de, inteligência, motivação e outras qualidades psicológi­cas são produtos não só de forças biológicas ou ambientais isoladas, mas da interação entre ambas. Em resumo, as diferenças na personalidade são criadas tanto por fatores inatos quanto adquiridos.

Personalidade animal

A maioria das pessoas que já tiveram gatos ou cães de es­timação concordaria prontamente que seus bichinhos possuem personalidade única. Um dos autores deste livro (GJF), por exemplo, atualmente tem dois gatos irmãos, um macho (Scooter) e uma fêmea (Belle). Esses dois felinos di­ficilmente poderiam ser mais diferentes em termos de com­portamento e personalidade. Scooter é curioso e sociável. Ele explorou cada polegada do novo lar no primeiro dia e interfere em todas as atividades de seu dono - comer, as­sistir à TV, trabalhar no computador e dormir. Nenhuma vez, ele demonstrou ter medo de alguma situação. Ele se aproxima de tudo com alegria e admiração. Belle, no entan­to, ficou ansiosa e tímida no começo. Ela levou cerca de três dias para deixar de se esconder e ficar tranqüila no novo lar. Ela brinca com estranhos, mas não muito. No entanto, adora brincar com seu irmão, e eles costumam provocar e perseguir um ao outro. Agora, ela interage com a família e gosta de uma boa massagem, mas ainda fica ressabiada com abordagens repentinas.

Para os donos de animais, a questão da personalidade animal parece ter uma resposta óbvia: os animais possuem personalidades distintas. Mas, para os psicólogos, a ques­tão poderia estar estendendo muito a definição de perso­nalidade. Mesmo que possamos ver evidências de perso­nalidade em animais como cães e gatos, podemos observar em outros animais? E quanto aos pássaros? Aos répteis? Aos peixes? Aos vermes?

Até a década de 1990, a maioria dos psicólogos teria argumentado que o termo personalidade aplica-se somen­te a humanos, mas, desde então, inúmeros estudos têm corroborado a noção de que animais não humanos não só possuem personalidades distintas como têm personalida­des em dimensões similares ao Big Five nos humanos (Dingemanse. Both, Drent, Van Oers, & Van Noordwijk, 2002; Gosling, 1998; Gosling, Kwan, & John, 2003; Weinstein, Capitanio, & Gosling, 2008). Por exemplo, Gosling e Oliver John (1999) conduziram uma metanálise (revisão quanti­tativa) de 19 estudos sobre 12 espécies não humanas. Eles encontraram evidências de traços de personalidade que podem ser categorizados nas mesmas dimensões da personalidade humana para, pelo menos, 14 espécies não hu­manas. O resumo desses achados é apresentado na Tabela 15.4. Tenha em mente que os rótulos do Big Five são gerais e os rótulos específicos usados nesses estudos variam um pouco. Por exemplo, neuroticismo é, por vezes, chamado de estabilidade emocional, excitabilidade, medo, reatividade emocional, medo-esquiva ou emocionalidade. Amabilidade é, por vezes, referida como agressividade, hostilidade, compreensão, oportunismo, sociabilidade, afeição ou luta-timidez. Além disso, dominância-submissão é um traço que costuma ser visto e medido em animais não humanos, mas não se encaixa em qualquer uma das cinco grandes categorias. Essas classificações da personalidade animal foram feitas por meio de uma das duas técnicas de obser­vação comportamental: mediante treinadores de animais que tinham amplo conhecimento de cada um dos animais [297] ou mediante observadores sem histórico com animais, mas que foram treinados até que conseguissem avaliar de modo fidedigno as dimensões em questão.

Tabela 15.5 - Dimensões da personalidade entre as espécies

Pode não causar surpresa que os primatas e outros ma­míferos tenham a tendência a compartilhar o maior núme­ro de traços de personalidade com os humanos (Weinstein et al., 2008). Por exemplo, os chimpanzés, nossos paren­tes mais próximos, compartilham com os humanos uma dimensão de "conscienciosidade” diferenciada. Tal achado sugere que a conscienciosidade - que envolve o controle dos impulsos e, portanto, requer regiões cerebrais alta­mente desenvolvidas capazes de controlar os impulsos - é o traço de personalidade evoluído de modo mais recente. Assim, com exceção dos chimpanzés e dos cavalos, outros animais não humanos não possuem as estruturas cere­brais necessárias para controlar os impulsos e organizar e planejar suas atividades com antecipação. Mesmo com os chimpanzés, a dimensão da conscienciosidade foi definida de um modo um tanto restrito como falta de atenção, de direção dos objetivos e comportamento desorganizado.

Pode, no entanto, ser surpreendente ver pássaros sel­vagens, peixes e até mesmo polvos em uma lista de animais que possuem traços de personalidade parecidos com os dos humanos. Por exemplo, em um estudo de um pássaro euro­peu parecido com um chapim, quando os pesquisadores co­locaram um objeto estranho, como uma pilha ou um bone­co da Pantera Cor-de-rosa, dentro da gaiola, alguns pássaros se mostraram muito curiosos e exploraram o novo objeto, enquanto outros se retraíram e o evitaram (Zimmer, 2005; cf. Dingemanse et al., 2002). Os pesquisadores definiram essas diferenças nos pássaros como “ousado" e “tímido". Tais diferenças são muito parecidas com as que os psicólo­gos observam quando colocam um bebê em uma sala com um estranho. Abordagem-ousadia e timidez-esquiva tam­bém são dimensões do temperamento humano.

Em suma, assim como os olhos, os ouvidos, o cérebro e a termorregulação são soluções evoluídas e compartilha­das entre as espécies e os gêneros de animais, os traços de personalidade são soluções compartilhadas e encontradas em quase todos os animais, desde invertebrados, peixes, répteis, pássaros até mamíferos (incluindo primatas). Quanto mais semelhante o gênero e a espécie, mais similar o sistema - e isso vale para a personalidade. A estrutura da personalidade dos primatas é mais semelhante entre si do que em comparação com a dos mamíferos em geral, a qual, por sua vez, é mais similar à dos primatas do que à de pássaros ou invertebrados. Tais evidências corroboram a visão de que os traços de personalidade evoluíram muito antes de os humanos modernos e têm suas origens em um ancestral comum, milhões de anos atrás. [298]

Psicologia - Psicologia Evolucionista
Epistemologia - Teoria, Classificação da teoria
12/12/2020 4:27:55 PM | Por Gregory J. Feist, Jess Feist, Tomi-Ann Roberts
Críticas à teoria evolucionista da personalidade

A psicologia evolucionista, em geral, e a psicologia evo­lucionista da personalidade, em particular, estimularam muita controvérsia, mas também um grande corpo de [298] pesquisa empírica. O campo possui a própria sociedade cien­tífica (Human Behavior and Evolutionary Society - HBES) e o próprio jornal científico, Evolution and Human Behavior (Evolução e Comportamento Humano). A disciplina também relaciona-se a outras áreas científicas, como a biologia evolucionista, a etologia, a genética do comportamento e a neurociência; portanto, existe um fundamento empí­rico sólido para o campo. Do mesmo modo, uma rápida pesquisa no Google Scholar gerou mais de 34 mil artigos para o termo “psicologia evolucionista”. A mesma busca no Google Scholar sobre “psicologia evolucionista da persona­lidade" resultou em 660 artigos entre 1990 e 2012.

Quanto à questão de a teoria evolucionista da perso­nalidade ser irrefutável, a resposta ainda é complexa. Em geral, a teoria evolucionista é difícil de refutar no sentido estrito da palavra (Stamos, 1996). Muitos críticos da teo­ria evolucionista são rápidos em apontar que os princí­pios centrais da teoria evoludonista inerentemente não podem ser refutados ou verificados, porque a evolução é um evento passado e levaria pelo menos milhares de anos para se observar o resultado dela nos animais. Além disso, eles argumentam que a psicologia evolucionista centra-se, principalmente, em explicações após o fato (post hoc) para determinado fenômeno - em resumo, a psicologia evolu­cionista produz histórias do tipo “foi assim” plausíveis, e muitas histórias plausíveis diferentes sempre podem ser construídas para explicar um resultado evolutivo (Gould & Lewontin, 1979; Horgan, 1995).

No entanto, outros estudiosos argumentaram que isso é um tanto impreciso e também não é de todo verdade. Os defensores da teoria evolucionista, por exemplo, assinala­ram que derrubar a teoria por meio de fatos contrários (re­futação) é a única forma pela qual a ciência avança (Ellis & Ketelaar, 2000; Ketelaar & Ellis, 2000). Um critério alter­nativo para o progresso científico é se ele gera novas predições e explicações. Sob tal padrão, a teoria evolucionista se sai muito bem.

Em termos de como a teoria evolucionista da personali­dade organiza o conhecimento, argumentaríamos que se clas­sifica como muito alta. A teoria evolucionista é muito ampla e de longo alcance em seu âmbito, e, nesse sentido, ela for­nece uma gama de explicações raramente vistas na ciência social. Ela oferece explicações para as origens últimas não só de todos os sistemas biológicos, mas também do pensamen­to, do comportamento e da personalidade humanos.

No entanto, como um guia para os praticantes, damos à teoria uma classificação relativamente baixa. A teoria evolucionista diz pouco acerca de como devemos criar nos­sos filhos, o que devemos lhes ensinar e de que forma, ou como conduzir a terapia para tratar transtornos mentais. A teoria é mais abstrata e pura do que concreta e aplicada.

A teoria evolucionista da personalidade se classifica como moderada em coerência interna. A adaptação é um princípio orientador, e muitas idéias se originam desse conceito central. Além disso, a maioria dos estudiosos con­corda quanto a como definir adaptação. Entretanto, nem todos chegam a um consenso sobre o que é e o que não é adaptação. O exemplo mais evidente é a personalidade. Ainda que Buss, MacDonald e Nettles concordem que a va­riabilidade da personalidade é uma adaptação, dois outros teóricos importantes, Tooby e Cosmides, discordam.

A teoria evolucionista da personalidade tem escore alto no critério da parcimônia. A ideia de que você pode explicar as origens da personalidade humana com alguns conceitos-chave de adaptação, mecanismo e seleção natu­ral e sexual é muito simples. [299]

Psicologia - Psicologia Evolucionista
Temas gerais - Temas gerais, 
12/12/2020 1:43:06 PM | Por Gregory J. Feist, Jess Feist, Tomi-Ann Roberts
Mal-entendidos comuns na teoria evolucionista

Quando a teoria evolucionista se tornou popular, na dé­cada de 1980, ela causou certa controvérsia. Houve muita resistência dentro e fora dos ambientes acadêmicos contra a aplicação das idéias evolucionistas ao pensamento e ao comportamento humano. Ainda que boa parte dessa resistência tenha diminuído durante os últimos 20 a 30 anos, alguns mal-entendidos ainda ocorrem (D. Buss, 1999). [294]

Evolução implica determinismo genético (comportamento imutável e livre de influências do ambiente)

Evolução se refere a mudanças corporais decorrentes de al­terações no ambiente. Nesse sentido, ela é inerentemente uma perspectiva de interação "inato e adquirido”. A evolu­ção ocorre como resultado da interação entre as adaptações e a contribuição do ambiente que desencadeia as adaptações. Buss usa as calosidades como um exemplo: as calosidades são adaptações evoluídas, mas não são expressas sem a contribuição do ambiente, como caminhar de pés descalços por longos períodos ou tocar violão. As calosida­des são expressas pela formação geneticamente induzida de proteínas, e essa expressão genética somente ocorre com a contribuição do ambiente (Ulrich-Vinther, Schwarz, Pedersen, Soballe, &Andreassen, 2005).

De forma mais geral, a descoberta da epigenética é um exemplo ainda mais poderoso de como a influência genética não é inalterável no momento da concepção e in­terage com a contribuição do ambiente. Epigenética é a mudança na função do gene que não envolve alterações no DNA (Meaney, 2010; Rutter, 2006). Em outras palavras, as experiências que os animais têm criam marcas que ade­rem à estrutura externa do DNA e controlam a expressão genética. A epigenética alterou fundamentalmente nossa visão da influência genética. Ela deixa claro que as expe­riências que temos (como comer, beber ou ser expostos a substância químicas) podem afetar mudanças nos genes (Watters, 2006). De fato, os cânceres são um dos exemplos mais generalizados de mudança epigenética na expressão dos genes e demonstram tragicamente como o que come­mos, bebemos e fumamos pode alterar a atividade genéti­ca (Jones & Baylin, 2002). De fato, em um sentido muito real, as mudanças em órgãos, sistemas fisiológicos e corpos que ocorrem por longos períodos de tempo (i. e., evolução) são o resultado não somente de mutações nos genes, mas também de processos epigenéticos. Em resumo, o fato de o DNA não ser destino está perfeitamente coerente com a teoria evolucionista.

A execução de adaptações requer mecanismos conscientes

Dizer que os mecanismos (cognitivos e de personalidade) evoluíram para resolver problemas importantes de sobre­vivência e reprodução não significa que eles requerem ha­bilidades matemáticas complexas (conscientes) para ope­rar. Por exemplo, a noção de “adequação inclusiva” orbita na ideia de que temos maior probabilidade de ajudar um irmão do que um primo e um primo mais do que um es­tranho, porque o irmão está mais intimamente relaciona­do a nós e um primo está mais intimamente relacionado do que um estranho. Esse não é um cálculo matemático maior do que o que uma aranha precisa compreender de geometria para tecer uma teia. Além disso, quando os psi­cólogos evolucionistas falam de “estratégias”, estas não são consideradas como atos conscientes ou intencionais. De fato, as pessoas não têm consciência dessas influências e, quando discutido o tema, até as lamentam. “Ugh, eu não estou atraída por ele por causa dos seus recursos e forma física!". "Estratégia sexual” é apenas um termo abreviado para uma ideia complicada de que a evolução moldou nos­sas preferências pelos parceiros porque somos atraídos por aqueles que produzem uma prole saudável e adequada e, de maneira ideal, continuam a fornecê-lo. Isso aumenta a pro­babilidade de que eles sobrevivam até a idade reprodutiva e transmitam seus genes saudáveis.

Os mecanismos visam a um ideal

Por vezes, as pessoas chegam à conclusão de que a evolução produz soluções que são ideais. Na verdade, algumas adap­tações são estranhas. A mudança evolutiva ocorre duran­te centenas de gerações, e sempre existe uma defasagem entre adaptação e ambiente. A preferência humana por alimentos gordurosos e salgados é um bom exemplo. Em ambientes ancestrais, dezenas de milhares de anos atrás, alimentos gordurosos e açucarados eram muito difíceis de obter. No entanto, eles fornecem benefícios nutricio­nais importantes. Durante os últimos cem anos, gordura e açúcar se tornaram baratos e abundantes. Nossas barrigas cresceram até o ponto em que dois terços dos norte-ame­ricanos adultos têm agora sobrepeso ou são obesos (Flegal et al., 2010). Se eles fossem projetados visando a um ideal, teriam se tornado mais eficientes e responderiam de modo mais rápido a mudanças no ambiente. [295]

Psicologia - Psicologia Evolucionista

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